Organizadores Adriana Nogueira V. Lima Daniela Libório Edésio Fernandes Ellade Imparato Fernanda Costa Carolina Fernando Dantas Jussara Maria Pordeus e Silva Leticia Marques Osório Nelson Saule Júnior Paulo Romeiro Rosane Tierno Vanêsca Buzzolato Prestes
Organizadores Adriana Nogueira V. Lima Daniela Libório Edésio Fernandes Ellade Imparato Fernanda Costa Carolina Fernando Dantas
Jussara Maria Pordeus e Silva Leticia Marques Osório Nelson Saule Júnior Paulo Romeiro Rosane Tierno Vanêsca Buzzolato Prestes
Diretoria do IBDU Biênio 2007-2008
Biênio 2009-2010
Betânia Alfonsin Ellade Imparato Evangelina Pinho Nelson Saule Júnior Rodrigo Dantas Bastos
Ellade Imparato Fernando Bruno Henrique Frota Paula Lousada Ravanelli Rosane Tierno
Diretoria da Editora Magister Ana Maria Paixão Fábio Paixão José Roberto Penz Luiz Antonio Paixão Rogério Rodrigues Tuchaua Rodrigues
Porto Alegre, 2009
Copyright 2009 by Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, Nelson Saule Júnior
1ª edição: novembro de 2009 Editoração Eletrônica: Editora Magister Revisão: Nelson Saule Júnior e Camila Gerassi Capa: Apollo 13
Todos os direitos reservados. É expressamente proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem prévia autorização do autor. (Lei 9.610, de 19.02.98 – DOU 20.02.98) Impresso no Brasil Printed in Brazil
A533
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico – Manaus 2008: O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas / [Organizado por] Nelson Saule Júnior et al. – Porto Alegre : Magister, 2009. 16x23 cm. ; 443 p. ISBN 978-85-85275-20-4 1. Direito. 2. Direito Urbanístico. 3. Planejamento urbano. I. Saule Júnior, Nelson. CDU 349.44
Catalogação na publicação: Leandro Augusto dos Santos Lima – CRB 10/1273
Alameda Coelho Neto, 20 / 3º andar 91340-340 – Porto Alegre – RS (51) 3027.1100 – www.editoramagister.com
Apresentação O Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU, é uma associação civil de âmbito nacional dedicada a estudos e pesquisas no campo do direito urbanístico,que tem como finalidade entre outras: I. Promover a consolidação da disciplina do Direito Urbanístico nas faculdades públicas e particulares; II. Reunir especialistas em estudos urbanos de diferentes ramos disciplinares nacionais e internacionais, voltado para as modalidades do direito urbanístico e o desenvolvimento sustentável da cidade; III. Desenvolver pesquisas que servirão de apoio a políticas governamentais na área urbanística; IV. Promover congressos, cursos, palestras, encontros, seminários multidisciplinares, bem como editar e publicar estudos e pareceres técnicos periódicos que envolvam a área de direito urbanístico e planejamento urbano. O IBDU surgiu a partir da realização de diversos congressos científicos, que contaram com a participação de juristas, operadores de direito, urbanistas, pesquisadores, estudantes e demais profissionais que atuam com o tema do urbanismo e, todo o Brasil. Os congressos são dedicados à apresentação e discussão de trabalhos científicos e pesquisas acadêmicas realizadas sobre direito urbanístico, que abordam temas atuais e relevantes. O V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico realizado na cidade de Manaus, entre os dias 16 e 19 de novembro de 2008, como mote central, discutiu os avanços e as dificuldades para a consolidação do Direito Urbanístico brasileiro nestes vinte anos que transcorreram desde que a promulgação da Constituição brasileira, em outubro de 1988. O V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico promoveu um balanço sobre a evolução do direito urbanístico brasileiro no decorrer dos 20 (vinte) anos da Constituição Brasileira de 1988, mediante o debate e diálogos públicos com os diferentes sujeitos que atuam nos Poderes Públicos, na academia e na sociedade civil sobre o Direito Urbanístico e a ordem jurídica urbanística brasileira. Como é sabido, a Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu normas específicas, sobre a política urbana, voltadas à promoção do desenvolvimento das funções
sociais da cidade, da função social da propriedade urbana e do bem estar dos habitantes das cidades brasileiras. Estas normas foram disciplinadas infraconstitucionalmente pelo Estatuto da Cidade, que adotou um conjunto de diretrizes, instrumentos e medidas para os objetivos da política urbana serem alcançados como o estabelecimento da democracia participativa através da gestão democrática das cidades, dos seus habitantes terem acesso a condições dignas de vida com o desenvolvimento do direito a cidades sustentáveis. A realização de um balanço sobre o direito urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira teve como foco avaliar a evolução da ordem jurídica urbanística brasileira, o estágio da sua assimilação pelas instituições e agentes responsáveis pela promoção da política urbana, tais como autoridades e gestores públicos, operadores do direito, considerando os paradigmas emergentes desta ordem jurídica, fundados nas funções sociais da cidade, função social e ambiental da propriedade urbana, direito à cidade, gestão democrática da cidade e desenvolvimento urbano sustentável. Pretende-se, então, discutir os olhares dos diferentes sujeitos que atuam nos Poderes Públicos, na academia e na sociedade civil sobre o Direito Urbanístico, bem como debater as interfaces do Direito Urbanístico com outros ramos do Direito. A escolha da cidade de Manaus para a realização deste Congresso teve como estratégia propiciar uma avaliação sobre a aplicação do direito urbanístico nas cidades da Amazônia que por conterem uma diversidade cultural e territorial, exigem uma abordagem específica sobre a possibilidade da aplicação dos instrumentos e institutos jurídicos da política urbana previstos na ordem jurídica urbanística. Os trabalhos científicos deste Congresso foram apresentados e discutidos nas seguintes oficinas temáticas: 1 – A Ordem Jurídica Urbanística e Regularização fundiária 2 – Ensino jurídico do Direito Urbanístico 3 – A Ordem Jurídica Urbanística e a Função Social das Terras Publicas 4 – Instrumentos para a governabilidade das Cidades / a gestão democrática das Cidades 5 – Proteção do Direito à Cidade, a ordem urbanística e a sua judiciabilidade 6 – Proteção do Direito à Moradia nos Conflitos Fundiários Urbanos 7 – Formas e Instrumentos de regulação do mercado de terras 8 – A Revisão da Legislação do parcelamento do solo urbano – balanço e novas perspectivas
9 – Plano Diretor participativo e instrumentos de política urbana 10 – A Aplicação da Ordem Jurídica Urbanística nas Cidades da Amazônia A publicação dos Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico com os trabalhos científicos sobre os temas de direito urbanístico, estimula e possibilita e a promoção de troca de experiências para todas as pessoas que desenvolvam atividades, estudos, pesquisas neste campo do conhecimento do direito. A oportunidade da publicação dos trabalhos científicos do Congresso atende os objetivos de fomentar a produção científica e propiciar um maior aprofundamento científico sobre temas de direito urbanístico , bem como de disseminar e analisar experiências sobre a aplicação e implementação da ordem jurídica urbanística nas cidades brasileiras. Nelson Saule Júnior Presidente do IBDU Biênio 2006-2008
Sumário
1. A ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA E REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA O território da dicotomia urbanístico-ambiental: a favela Raphael Bischoff dos Santos .......................................................................................... 15 Loteamentos irregulares e clandestinos: sua regularização no município de Porto Alegre Leila Maria Reschke, Luciano Saldanha Varela, Simone Santos Moretto , Simone Somensi ............................................................................................................. 29 Desafios do serviço legal em ações de usucapião coletivo no judiciário paulista: experiências de extensão universitária na comunidade do Paraisópolis Rodrigo Ribeiro de Souza, Ana Carolina Navarrete, Marco Aurélio Purini Belém, Renata Gomes da Silva, Stacy Natalie Torres da Silva ..................................................43 Retomando a problemática da integração das favelas à cidade: Após 20 anos da “Constituição Cidadã”, o Estado de Direito chegou às favelas? Alex Ferreira Magalhães ...............................................................................................55 2. A ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA E A FUNÇÃO SOCIAL DAS TERRAS PÚBLICAS Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia: fundamentos jurídicourbanísticos, aplicabilidade e gestão pós-titulação, no Município de Osasco, São Paulo Patryck Araújo Carvalho ...............................................................................................71 Aluguel entre particulares em áreas públicas municipais: considerações sobre conflitos enfrentados na implementação do programa paulistano de regularização fundiária de favelas Ana Paula Bruno, Candelaria Maria Reyes Garcia, Raphael Bischof dos Santos ....... 85 Fundamentos e instrumentos à ampliação da proteção às áreas especiais referentes aos direitos à moradia e ao meio ambiente: notas introdutórias Marise Costa de Souza Duarte, Maria Dulce P. Bentes Sobrinha ................................93
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
3. INSTRUMENTOS PARA A GOVERNABILIDADE DAS CIDADES / A GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES Gestão democrática das cidades: a Constituição de 1988 é efetiva? Marinella Machado Araújo, Gabriela Mansur Soares, Mariano Henrique Maurício de Campos .................................................................................................... 103 Governança participativa de áreas públicas: em que avançamos da Constituição de 1988 ao Estatuto da Cidade Marinella Machado Araújo, Gabriela Mansur Soares, Thaís Louzada de Sousa ....... 115 A educação jurídica popular como instrumento do direito à gestão democrática da cidade: a prática extensionista na busca por uma participação popular efetiva Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Marco Aurélio Purini Belém, Stacy Natalie Torres da Silva ............................................................................................................. 125
4. PROTEÇÃO DO DIREITO À CIDADE, A ORDEM URBANÍSTICA E A SUA JUDICIABILIDADE A difícil implementação dos instrumentos urbanísticos quando da revisão da legislação do uso e ocupação do solo urbano Tatiana Monteiro Costa e Silva, Marcel Alexandre Lopes .......................................... 139 Política habitacional no Rio de Janeiro: dez anos de morar sem risco (1994 a 2004) Roberto Jansen das Mercês .........................................................................................151 Acesso à justiça e segurança da posse da terra: obstáculos judiciais à regularização fundiária plena Vera Lúcia de Orange Lins da Fonseca e Silva, Juliana Accioly Martins .................. 163
5. PROTEÇÃO DO DIREITO À MORADIA NOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS Conflitos fundiários urbanos: o dilema do direito à moradia em áreas de preservação ambiental Ana Maria Filgueira Ramalho, Vera Lúcia de Orange Lins da Fonseca e Silva ........179 Vila Itororó: direito à cultura como ameaça ao direito à moradia? Aline Viotto , Bianca Tavolari, Jonnas Vasconcelos, Yasmin Pestana ......................... 187 A experiência do SAJU-USP na Vila Itororó: assistência e assessoria podem caminhar juntas? Caio Santiago, Paulo L. Martins, Rafaela Oliveira, Vivian Barbour ..........................201
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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Pluralismo jurídico e o direito à moradia em Fortaleza Francisco Filomeno de Abreu Neto ............................................................................. 211 Direito à moradia: os planos diretores da RMBH aplicam o Estatuto da Cidade e a Constituição Federal de 1988? Naiane Loureiro dos Santos, Circlaine da Cruz Santos Faria, Marinella Machado Araújo ..........................................................................................................................223
6. FORMAS E INSTRUMENTOS DE REGULAÇÃO DO MERCADO DE TERRAS Dinâmica urbana e a legalização da produção do espaço (i)legal Kênia de Souza Barbosa .............................................................................................. 237
7. A REVISÃO DA LEGISLAÇÃO DO PARCELAMENTO DO SOLO URBANO – BALANÇO E NOVAS PERSPECTIVAS O direito à cidade e a revisão da lei de parcelamento do solo urbano Nelson Saule Júnior .....................................................................................................249 Revisão da lei de parcelamento do solo e ampliação da oferta de terras para habitação de interesse social: aprendizados de Fortaleza/CE Antonio Jeovah de Andrade Meireles, Henrique Botelho Frota .................................. 275
8. PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO E INSTRUMENTOS DE POLÍTICA URBANA A outorga onerosa do direito de criar solo: a experiência da cidade de Porto Alegre Andrea Teichmann Vizzotto ..........................................................................................289 Uma proposta inovadora: operação urbana consorciada Lomba do Pinheiro – Porto Alegre Denise Bonat Pegoraro, Cléia B. Hauschild de Oliveira, Andréa Oberrather ...........301 Planejando o território regionalmente: planos diretores para além dos limites municipais Luiz Alberto Souza ....................................................................................................... 313 Outorga Onerosa do Direito de Construir: a experiência de Belém Helena Lúcia Zagury Tourinho ....................................................................................325
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Estudo de Impacto de Vizinhança: a legislação do EIV em Porto Alegre Gladis Weissheimer, Maria Tereza Fortini Albano ...................................................... 339
9. A APLICAÇÃO DA ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA NAS CIDADES DA AMAZÔNIA Balneabilidade na Praia da Ponta Negra, direito à cidade e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado Danielle de Ouro Mamed, Cyntia Costa de Lima, Joelson Rodrigues Cavalcante .....353 Criação de municípios indígenas: desafios ao direito brasileiro Caroline Barbosa Contente Nogueira, Prof.Dr. Fernando Antônio de Carvalho Dantas .......................................................................................................... 365 Municipalização da licença ambiental em Manaus: compatibilização entre licença ambiental e urbanística Edson R. Saleme .......................................................................................................... 375 O licenciamento urbanístico no município de Manaus Jussara Maria Pordeus e Silva .................................................................................... 387 Planos diretores, participação popular e a questão indígena: reflexões sobre o texto constitucional e o Município de São Gabriel da Cachoeira (AM) Mariana Levy Piza Fontes ........................................................................................... 427 Proposta de compensação fiscal para assentamento de populações carentes de Manaus-AM Miguel Angelo Feitosa Melo, Simone Minelli de Lima Texeira ...................................433
1 A ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA E REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
O Território da Dicotomia Urbanístico-Ambiental: a Favela RAPHAEL BISCHOF
DOS
SANTOS*
Advogado e Mestrando da FAUUSP.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Da realidade enfrentada pelos programas de regularização fundiária; 2. Confusões no debate ambiental sobre a regularização fundiária; 3. Efetividade de políticas ambientais e a rediscussão da cidade; Conclusão; bibliografia
INTRODUÇÃO As conquistas dos movimentos de moradia e de reforma urbana nos últimos anos fizeram emergir uma disputa legal e institucional nos territórios urbanos, que ficara obscurecida anteriormente. Para a introdução de regimes diferenciados de produção de habitação destinada à população de baixa renda e para a intervenção do Estado na legalização de assentamentos precários (assim compreendidas as favelas e loteamentos informais ocupadas pela mesma população de baixa renda), foi necessária a revisão de marcos legais (em especial, com o advento do Estatuto da Cidade), a regulamentação de dispositivos constitucionais, o avanço institucional da burocracia e a construção de sistemas nacionais de financiamento. Todos, fatores necessários para uma reforma na maneira de ordenar os territórios urbanos. A montagem de um sistema de habitação voltada à população de baixa renda, sobretudo a consolidação de políticas de regularização fundiária de favelas, parece haver se processado em descompasso com outro sistema nacionalmente estruturado, qual seja, o Sistema Nacional de Meio Ambiente – o SISNAMA. *
Coordenador de Gestão Patrimonial / Gerência regional do Patrimônio da União em São Paulo. E-mail: rbischof@gmail.com. Telefone: (11) 9723-5822
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Mais do que analisar e propor uma eventual sujeição de um sistema a outro, o presente estudo buscará abordar as consequências no descompasso da aplicação de ambos nas áreas de preservação permanente localizadas no espaço urbano. A explicitação desse conflito tornou-se ainda mais pungente em fevereiro de 2006, quando o Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA – aprovou em sua 46a Reunião Extraordinária o texto de uma Resolução que propugnava a regularização fundiária sustentável de assentamentos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda dentro das faixas definidas como Áreas de Preservação Permanente – APPs. Um mês após sua aprovação, foi publicada a Resolução n. 369/06, em 29 de março de 2006. Em vigor a partir de então, a aplicação da Resolução passa por seu processo natural de consolidação (senão construção) de entendimentos e avaliação de seus desdobramentos. É sobre a construção de alguns desses entendimentos que se presta o presente estudo. 1. DA REALIDADE ENFRENTADA PELOS PROGRAMAS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA O déficit habitacional apontado pela Fundação João Pinheiro e pelo Ministério das Cidades, a partir dos dados do Censo de 2000, representa a necessidade de 5.890.139 moradias1. Os números passam as 6 milhões quando adotados os ajustes estatísticos propostos pelo estudo elaborado pelo Centro de Estudos da Metrópole, contratado posteriormente pelo mesmo Ministério. Além do déficit, os estudos apontaram as condições de inadequação habitacional, hipótese que não chegaria a configurar déficit em virtude da possibilidade de adequação da possibilidade de melhoramentos da moradia no próprio local. Constituem situações caracterizadoras da inadequação a irregularidade fundiária, o adensamento excessivo, a ausência de banheiro e a carência de infra-estrutura. Na hipótese de inadequação habitacional, os números não se reduzem à necessidade de moradias novas (tal como se opera na questão do déficit habitacional), haja vista a possibilidade de sobreposição de fatores de inadequação. Apenas a título de ilustração, o estudo da Fundação João Pinheiro define a ocorrência, nos aglomerados subnormais (categoria em que o IBGE coloca as favelas), de 433.293 domicílios com irregularidade
1
Disponível em: http://www.cidades.qov.br/secretarias-nacionais/secretaria-de-habitacao/biblioteca/publicacoese-artigos/deficit-habitacional-no-brasil-2005/Deficit2005.pdf
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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fundiária, 300.250 apresentam adensamento excessivo, 206.489 não possuem banheiro e 677.349 demandam algum tipo de infra-estrutura. Os casos, comumente sobrepondo tais hipóteses, representam 1.622.323 moradias inadequadas. A aferição desses números vem sendo continuamente objeto de discussão junto aos órgãos formuladores de políticas habitacionais, em virtude da necessidade de adoção de critérios limitados, sobretudo aqueles fornecidos pelos dados do IBGE (Censo de 2000)2. Prova dos dados subestimados pelos critérios do IBGE são as informações apuradas por Santo André, Curitiba e São Paulo, por meio do cadastramento de favelas elaborados por suas respectivas Prefeituras. Ainda assim, os dados constituem fonte oficial de informação para o próprio Ministério das Cidades, na ausência de qualquer outro dado de melhor qualidade. E são bastante ilustrativos da realidade imposta às gestões públicas. Com efeito, somado o déficit às situações de inadequação, a atuação dos agentes públicos acaba havendo que implementar medidas eminentemente curativas para cerca de 7,5 milhões de moradias pelo país. Obviamente, a essas medidas, acrescentam-se outras políticas habitacionais voltadas à provisão de moradia originada a partir da nova demanda a ser projetada, a qual não se confunde com a provisão de moradias para atendimento do déficit. Nesse estudo, reforça-se o contexto atual para se proceder a uma análise das políticas habitacionais destinadas exclusivamente a medidas curativas no ordenamento territorial das cidades.Pretende-se, aqui, relacionar os números do déficit habitacional com a ocorrência de favelas em áreas com restrições ambientais. A aferição do número de famílias irregularmente ocupantes de áreas urbanas e atingidas pelas APPs não sabido. Dessa maneira, com exceção dos dados curitibanos, utilizam-se os dados preliminares, referentes ao número de favelas situadas nessas nas APP para melhor ilustrar o problema. Segundo Taschner, o cadastro de favelas da Prefeitura de São Paulo apontava quase 60% das favelas paulistanas nas margens de vias hídricas e 30% delas em terrenos de alta declividade. Ambas são situações caracterizadoras da restrição ambiental (APP). Os fatores considerados podem encontrar-se sobrepostos.
2
Para os censos realizados pelo IBGE, “favela é um setor especial do aglomerado urbano formada por pelo menos 50 domicílios, na sua maioria carentes de infra-estrutura e localizados em terrenos não pertencentes aos moradores” (TASCHNER:2003,28). E problemas surgem da estipulação de número mínimo de domicílios e, sobretudo, da definição acerca da propriedade do terreno. Este dado, no mais das vezes, é baseado em informações fornecidas pelo próprio morador, que comumente desconhece sua irregularidade fundiária.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
Também são pertinentes os dados apontados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA –, utilizados por Ackermann, sobre a situação geográfica das favelas nas cidades de Natal e Recife (ACKERMANN:2008): Situação das favelas em Natal (68 favelas no total, conforme dados de 1993 do IMPLANAT) Dunas
33,82%
Plano
32,35%
Mangue
17,65%
Encosta
5,88%
Canal
2,94%
Irregularidade do terreno
7,36%
Tabela 1 – Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA – in: IMPLANAT, 1993, p. 187 apud Ackermann, 2008.
Situação das favelas em Recife (494 assentamentos no total, conforme dados de 1990 da Secretaria Municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano) Várzeas e mangues
48,99%
Topo do morro
4,65%
Encostas íngremes
17,81%
Outros
28,55%
Tabela 2 – Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA – in: Secretaria Municipal de desenvolvimento e Urbano e Habitação, 1990, p.188 apud Ackermann, 2008.
Em São Vicente, no estado de São Paulo, dos 46 assentamentos precários, 27 apresentam severas restrições sob a perspectiva da legislação ambiental, ainda que comportem possibilidades de consolidação urbanística. O Plano curitibano de Regularização Fundiária sintetiza um quadro estimativo bastante apurado das ocupações irregulares situadas nas áreas de preservação permanente, agrupando-as ocupações por sub-bacia hidrográfica. Vale lembrar que foi melhor dimensionamento do total de moradias atingidas pela restrição ambiental definida em lei entre todos os municípios considerados neste estudo. A avaliação dessas situações, conforme discriminação do próprio Plano, foi feita a partir do mapa do programa municipal PROLOCAR, a hidrografia do Município e as fotos aéreas de 2002 e 2003.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
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Localização
Tipologia da ocupação
Nº Total
Nº em APP
Nº estimado de domicílios (2005)
Nº de domicílios em APP
Sub-bacia do Rio Passaúna
Assentamentos espontâneos Loteamentos clandestinos PROLOCAR Sub-Total Assentamentos espontâneos Loteamentos clandestinos PROLOCAR Sub-Total Assentamentos espontâneos Loteamentos clandestinos PROLOCAR Sub-Total Assentamentos espontâneos Loteamentos clandestinos PROLOCAR Sub-Total Assentamentos espontâneos Loteamentos clandestinos PROLOCAR Sub-Total Assentamentos espontâneos Loteamentos clandestinos PROLOCAR Sub-Total Assentamentos espontâneos Loteamentos clandestinos PROLOCAR Total
9
3
1.061
279
Total de domicílios/ domicílios em (%) APP 26,3%
11
7
1.041
170
16,3%
6 26 96
4 14 72
89 2.191 21.503
47 496* 4.874
52,8% 22,6% 22,7%
31
20
3.339
597
18,9%
17 144 33
12 104 15
1.066 25.908 4.623
499 5.970 880
46,8% 23,0% 19,0%
5
3
581
53
9,1%
15 53 55
9 27 38
181 5.385 13.079
94 1.027 2.593
51,9% 19,1% 19,8%
28
16
1.490
171
11,5%
10 93 41
7 61 25
172 14.741 8.109
155 2.919 1.405
90,1% 19,8% 17,3%
4
3
89
29
32,6%
5 50 20
2 30 11
86 8.284 5.587
31 1.465 1.166
36,0% 17,7% 20,9%
8
4
472
93
19,7%
3 31 254
16 164
33 6.092 53.962
1.259 11.197
20,6% 20,7%
87
53
7.012
1.113
15,9%
56 397
34 252
1.627 62.576
826 13.136
50,7% 21,0%
Sub-bacia do Rio Bariguí
Sub-bacia do Rio Belém
Sub-bacia do Rio Atuba
Sub-bacia do Ribeirão dos Padilhas
Bacia do Alto Iguaçu
Sub-total por tipologia
Tabela 3 – Número de domicílios em APP por sub-bacia hidrográfica (faixa de 30,00m e 50,00m) Fonte: IPPUC / COHAB-Ct/ SMMA, Elaboração: COHAB-CT, disponível no Plano de Regularização Fundiária das APPs.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
A ocorrência de moradias irregulares nas APPs varia em escala para cada localidade do país, considerados fatores como a distribuição de renda, a geografia local e tamanho da aglomeração urbana. Mas ainda assim, os dados curitibanos chamam a atenção pelo número de remoções necessárias apenas para a recuperação das APPs daquele Município. Ou seja, a produção de mais de 13.000 imóveis em área urbana e minimamente inseridos na cidade (com infra-estrutura e transporte) somar-se-ia a outras situações caracterizadas por constatações fáticas de risco, necessidade de desadensamento de ocupações, além de atendimento de demanda por novas moradias. 2. CONFUSÕES NO DEBATE AMBIENTAL SOBRE A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA Retomando o debate ocorrido por ocasião da deliberação do CONAMA, acerca da resolução n. 369 (ainda sob a forma de uma proposta), a indignação de vários conselheiros presentes à 80a Reunião Ordinária e à 46a Reunião Extraordinária refletia o posicionamento sobre o tema da regularização. A manifestação do representante de uma organização não-governamental demonstra a solução imaginada para o problema3: “Nós temos que ter uma faixa mínima porque senão o que vai valer não é o interesse de conservação do curso d’água, não é o interesse de remover a população de área de risco, mas o interesse daquele que vai ter que desapropriar aquela faixa, que vai ter que indenizar aquela população, que vai ter que remover aqueles moradores.”
Ou ainda: “Eu acho que isso é um absurdo, é um desrespeito ao nosso Direito Ambiental, é um desrespeito à população que vive nas margens desses córregos e que estão sujeitas a esses projetos de regularização fundiária, sem que a gente possa dispor de uma faixa mínima de segurança, de respeito ao meio ambiente, de respeito à saúde, à sadia qualidade de vida dessa população.”
Tais observações denotam a “solução” de alguns conselheiros para o reconhecimento do direito à moradia: a remoção, independentemente da possibilidade técnica de manutenção das casas. O debate também demonstrou o receio com a alegada discricionariedade dos processos de regularização fundiária. Vislumbrada a possibilidade de redução da faixa marginal de preservação para quinze metros ao longo de cursos d’água (e até mesmo suprimi-las em alguns casos), conselheiros representativos de vários segmentos tomaram a tribuna para expressar o risco de qualquer permissivo normativo nesse 3
Conforme ata de transcrição da 46a Reunião Extraordinária.
O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas
21
sentido. Mais do que isso, ao tratar da redução das faixas de preservação combinada à apresentação de um Plano de Regularização Fundiária Sustentável, identifica-se a desconfiança em relação aos processos de regularização fundiária em curso pelo país: “O que a proposta que nós [do Ministério do Meio Ambiente] defendemos junto com [o Ministério das] Cidades e outros que negociaram, visa restringir o poder discricionário e garantir que esta decisão seja uma decisão motivada.”4
Ainda que o conceito de “ato discricionário” demande motivação, distinguindoo daquele “arbitrário”, as exigências para o Plano de Regularização Fundiária Sustentável (previsto na Resolução, artigo 9º, inciso VI) foram pormenorizadas no texto, por meio de 9 exigências relativas ao conteúdo mínimo dos referidos Planos. As exigências variam desde fatores absolutamente relevantes como o impacto na sub-bacia em que está situado o assentamento informal até a necessidade de apontamento de aspectos culturais da comunidade a ser regularizada, de utilidade discutível. A posição dos conselheiros do CONAMA pouco difere de alguns argumentos recorrentemente expostos pela sociedade em audiências públicas. O Plano curitibano de Regularização Fundiária em APPs foi prova disso. A contraposição do interesse coletivo (representado pelo meio ambiente) ao interesse individual (do invasor) foram sintetizadas nas seguintes intervenções5: “Se é área de preservação permanente, porque discutirmos a legalização de habitações? Pode o interesse de alguns moradores dessas regiões sobrepor o interesse e a necessidade da humanidade presente e futura de viver num mundo de equilíbrio do meio ambiente?”
Ou, ainda: “O Plano prevê a realocação de famílias que se encontram fixadas em áreas irregulares? Existe algum programa previsto para fiscalização dessas áreas, com a intenção de impedir que novas famílias possam invadir essa área? Qual?”
As queixas e expectativas da população com Plano naquele Município informam o caráter provisório como são compreendidas tais ocupações. Não há diferenciação expressa para casos de ocupação consolidada, como a Favela do Parolim, existente desde os anos 50, tratada anteriormente neste estudo. A análise de outras intervenções nas mesmas audiências públicas permitem, no entanto,concluir a existência de
4
Conforme ata de transcrição da 46a Reunião Extraordinária.
5
Disponível em: http://www.cohabct.com.br/Noticias/PlanoHabRegFundiaria/prf-Anexos/audiencia.htm
22
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expectativas diametralmente opostas, no caso dos próprios moradores dessas áreas, no aguardo da regularização fundiária de seus terrenos: “Moro há mais de quinze anos em área na beira de rio, não há risco de enchentes, está para sair a regularização do meu terreno, apenas falta rede de esgoto, eu corro o risco de ter que sair da minha propriedade?”
O desconhecimento da incoerência legal justificado pela experiência diuturna de cidadãos em metrópoles absolutamente consolidadas sobre APPs antropizadas conduz a posicionamentos apressados sobre a possibilidade de efetiva recuperação ambiental dessas áreas. Os mesmos discursos de recuperação ambiental (e aqui não restritas apenas aos casos de APP) e contenção de invasões também vêm ocorrendo em outras metrópoles do país e servindo à insegurança da posse e desconhecimento de qualquer direito de moradia. No caso carioca, a Prefeitura local foi compelida, pela 4a Vara de Fazenda do Rio de Janeiro, a proceder à remoção integral de 14 favelas situadas em áreas de proteção ambiental sob o argumento de acelerados processos de adensamento e risco da ocupação a seus próprios moradores. As alegações não comprovaram expansão horizontal das favelas consideradas, conforme propugnado pelo autor da ação (o Ministério Público fluminense). Tampouco foram lastreadas nos laudos geotécnicos do órgão municipal responsável, que indicavam situações pontuais de risco. Além disso as áreas eram objeto de programas de regularização fundiária da Prefeitura. Apesar dessa considerações, as alegações foram acatadas pela Juíza responsável, determinando a remoção integral das famílias, fundamentadas pelo receio de formação um único conglomerado de favelas com a Rocinha e o Vidigal. referido receio fora amplamente difundido nos meios de comunicação, sobretudo pela série “Ilegal, e daí?”, veiculada pelo jornal “O Globo” (COMPANS:2007). Na mesma linha, as reportagens da informando a expansão da Favela Chácara do Céu, situada no Morro Dois Irmãos e próxima ao Vidigal. A Revista Veja anunciava na edição de n. 2040 (de 26 de dezembro de 2007) a ameaça de ocupação desenfreada do ponto turístico da zona sul carioca (o Morro Dois Irmãos) pela Favela em questão, sob o título: “Salvem o cartão-postal”. A mesma edição conclamava os leitores a exigir das autoridades providências para evicção daqueles moradores: “O Morro Dois Irmãos, no Rio, está ameaçado por uma favela. É preciso derrubá-la imediatamente.”
Dias depois, o jornalista Elio Gaspari, na edição de 6 de janeiro de 2008 da Folha de São Paulo, noticiava a diligência de autoridades no local, acompanhados do levantamento de fotos aéreas de 2004.
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Constatou-se que a expansão da Favela Chácara do Céu (com certa de 200 famílias), alertada pela Revista dias antes, assim como noticiadas nos jornais locais reduzira-se a ampliação de uma casa, representando área impermeabilizada dentro do Parque Penhasco Dois Irmãos de cerca de 20 metros quadrados, que foi prontamente demolida. Na mesma oportunidade, o morador da área propôs importante indagação ao chamar a atenção à implantação de uma quadra de tênis (com área significativamente maior que 20 metros quadrados), em condomínio de alto luxo do bairro Alto Leblon, a cerca de 200 metros do local onde ocorria a diligência e dentro de área com restrição ambiental. O episódio é concluído da seguinte forma pelo jornalista: “Foram procurar a expansão da favela no andar de baixo e acharam a invasão do andar de cima.”
Na Grande São Paulo, a confusão dos discursos ocorre com grande intensidade com relação à questão de ocupação dos mananciais, a requerem estudo específico. Com efeito, reduzindo-se novamente o escopo da discussão às APPs urbanas. Adotam-se dados quantitativos de Santo André para ilustrar a questão. Apesar da área urbana desse Município representar menos de 40% de seu território (o restante integra Área de Proteção dos Mananciais da Região Metropolitana), essa porção de território concentra 130 dentre o total de 150 assentamentos precários. Consideradas as moradias prejudicadas pela irregularidade fundiária e carência de infra-estrutura, são 29.130 residências na área urbana e 3.206 em áreas abrangidas pela proteção legal dos mananciais. A discussão dessas áreas urbanas deve ser necessariamente contextualizada à ocupação de seu entorno. 3. EFETIVIDADE DE POLÍTICAS AMBIENTAIS E A REDISCUSSÃO DA CIDADE Cumpre destacar que a legislação ambiental adota para alguns casos os conceitos de recuperação e restauração ambiental6. Por analogia, quando aplicadas às APPs, a recuperação implicaria a reconstituição do ambiente natural sem degradação, ainda que diferente da situação inicial. Já a restauração seria a restituição de um ambiente natural à situação mais próxima possível de sua conformação original. A opção de qualquer um desses métodos, no entanto, equivoca-se ao definir a linha de corte de políticas públicas de recuperação das APPs pela legalidade da 6
Lei federal n. 9.985/2000 (do Sistema Nacional de Unidades de Conservação).
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ocupação. A efetividade das políticas visando à sustentabilidade ambiental das cidades não se circunscreve à avaliação de impactos de processos de regularização fundiária. De certa forma, é o que já vem sendo considerado pelo Grupo Técnico de Recuperação das APPs, organizado pelo CONAMA. Mas a análise dos efeitos da legislação ambiental, sobretudo da Resolução CONAMA n. 369/06, aplicável aos processos de regularização fundiária, leva à conclusão do equívoco suscitado no parágrafo anterior. O Plano de Regularização Fundiária Sustentável, conforme proposto no texto da Resolução, apesar de não necessariamente abranger todas as favelas de um Município, acaba exigindo um nível de aperfeiçoamento institucional e diagnóstico da situação hidrológica que superam a intervenção nas favelas, conforme a decisão de indeferimento nos pedidos de autorização pleiteados pelo Município de Santo André. De fato, as informações a serem utilizadas configuram uma necessidade de conferir maiores poderes ao próprio planejamento urbano da cidade existente de fato, independentemente de sua regularidade. O modelo de gestão da cidade por bacias é ponto de intersecção das óticas ambientalista e urbanista, não havendo razão para contraposição de interesses7. O Plano representa também uma necessidade de organização institucional dos Municípios ainda não verificada em boa parte das cidades brasileiras. Mas a análise da sub-bacia no âmbito reduzido e já difícil dos programas de regularização, obstaculiza a implementação destes. Prova disso são os dados apresentados nesse estudo, que autorizam os poderem locais a procederem a urbanização de favelas, mas não autorizam a o reconhecimento oficial da existência das moradias, o que significa a sua manutenção da insegurança jurídica de suas posses. Outro aspecto a ser considerado na perspectiva ambiental das cidades é a comum contraposição entre do direito ao meio ambiente e o direito à moradia. O primeiro é indiscutivelmente compreendido como um direito difuso, que não pode ser individualizado, cuja titularidade pertenceria a toda a coletividade. O direito a moradia, no entanto, não parece compreendido como algo coletivo. A alteração de 2000 na Constituição brasileira para incluir o direito à moradia no rol de direitos sociais assegurados a todos os cidadãos ainda se encontra em fase de consolidação no ordenamento do país. E as políticas de regularização fundiária nada mais representam formas de concretização desse direito dentro do contexto urbano imposto.
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Nesse sentido, o posicionamento de Maricato (MARICATO:2002,79)
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Trata-se de direito de interesse igualmente público e coletivo, de acesso de todos ao solo urbanizado, de maneira alguma correspondente ou reduzido ao direito de propriedade. O modelo de construção da cidades e a provisão habitacional à população de baixa renda é matéria de interesse ambiental e urbanístico. Curiosamente, a regularização fundiária não acompanha esse consenso. As razões, conforme anteriormente abordadas neste estudo, parecem ser o desconhecimento do volume da ilegalidade ambiental nas favelas e a ausência de discussão de alternativas técnicas de manutenção das famílias nos locais de ocupação irregular de APP (sobretudo sobre as condições geotécnicas e a mitigação de efeitos nocivos da ocupação). Os potenciais ganhos ambientais nessas iniciativas de consolidação de assentamentos tecnicamente viáveis parecem demonstrar maior efetividade que a pura aplicação da restrição normativa, esvaziada de avaliação técnica. Com efeito, colaciona-se o resultado de entrevistas apresentadas em dissertação mestrado desenvolvido junto ao Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo, nas quais 13 profissionais especializados e reconhecidos nas áreas de agronomia, biologia, engenharia, geografia e geologia foram consultados. As respostas desses profissionais à indagação sobre o tratamento diferenciado às APPs urbanas ilustram a necessidade de aprofundamento da discussão de legitimidade da lei. Sete dos entrevistados defenderam a necessidade de tratamento diferenciado das APPs em áreas urbanas e outros 2 defenderam tratamento diferenciado em hipóteses específicas do espaço urbano como alta antropização (ACKERMANN:2008). CONCLUSÃO A contradição de políticas públicas para a gestão de problemas urbanos presente estudo parece ser carecer de efetividade de ganhos ambientais para a coletividade. A análise de casos, bem como a análise dos argumentos utilizados demonstram a maneira como a disciplina normativa supera qualquer discussão de resultados. Nesses casos, uma vez que o objeto de estudo foram os processos de regularização fundiária de assentamentos situados sobre APPs, ressalta-se que a decisão de manter determinada população no local da ocupação ou de removê-la afasta-se muitas vezes da avaliação de exequibilidade dessas decisões. A efetividade de que se trata remete àqueles objetivos gerais da população urbana, sinteticamente reduzidos ao anseio de melhor ocupação de seu território, com melhor qualidade de vida, a que se referiu acima. Portanto, prescindindo-se da avaliação de resultados, foram apresentados casos e argumentações nas quais se privilegiou a coesão do sistema jurídico, no lugar da discussão de legitimidade das
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normas impostas ao meio urbano. Com efeito, o estudo não pretende propugnar pelo desconhecimento ou rejeição ao ordenamento jurídico posto. Ao contrário, buscouse tão somente evidenciá-lo nas suas contradições internas, perceptíveis apenas quando aplicado à realidade. De fato, o sistema normativo construído visa adequar as exigências da legislação ambiental a uma nova ordem jurídico-urbanística – a qual ainda é de reduzida aplicação no país. Ou seja, sob o ponto de vista do operador do Direito, parece haver uma coesão. Essa coesão, contudo, sucumbe a uma apurada análise da gestão pública nesses assentamentos precários. A presença da favela no meio urbano, após anos de admissibilidade de políticas de urbanização e implantação de infra-estrutura vem sendo novamente questionada, sendo forçoso perceber que o debate sobre ocupações consolidadas e existentes há décadas é comumente confundido com novas ocupações. Trata-se da mesma maneira situações absolutamente diversas. Emprega-se o mesmo argumento para o espaço construído o espaço ainda natural (sujeito a novas ocupações). Espera-se haver contribuído para a discussão da regularização fundiária de favelas como meio de reconhecimento do estoque habitacional para a população de baixa renda existente nas cidades e inserção dessas favelas no tecido urbano como alternativas à tradição brasileira de remoção dos pobres para áreas periféricas e expansão horizontal das cidades. BIBLIOGRAFIA ACKERMANN, Mareio. A Cidade e o Código Florestal. São Paulo: Editora Plêiade, 2008. ANCONA, Ana Lúcia. Direito Ambiental, Direito de Quem? Políticas Públicas do Meio Ambiente na Metrópole Paulista. Tese de Doutorado. São Paulo: FAUUSP, 2002. BUENO, L. M. M. O Saneamento na Urbanização de São Paulo. São Paulo: FAUUSP, 1994. CASTRO, Sônia Rabello de. Favela Bairro: Breve Análise Institucional de Programa Habitacional e de seus Aspectos Fundiários. In: Revista da Faculdade de Direito da UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, 1999. CAVALLIERI, Fernando et alli. Diferenciais intra-urbanos no Rio de Janeiro: Contribuição ao cumprimento da Meta 11 do Milênio. Rio de Janeiro: IPP, 2007. COMPANS, Rose. A Cidade contra a Favela: A Nova Ameaça Ambiental. Anais do XII Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. Belém, 2007. CONSELHO NACIONAL DE MEIO AMBIENTE (CONAMA). Ata da 46a Reunião Extraordinária do Conselho Nacional de Meio Ambiente. Disponível em: http://www.mma.gov.br/port/conama/reuniao/dir726/Transc46RE21e220206.pdf ______. Ata da 80a Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Meio Ambiente. Disponível em: http:// www.mma.gov.br/port/conama/reuniao/dir597/Transc80RO301105.pdf
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Loteamentos Irregulares e Clandestinos: Sua Regularização no Município de Porto Alegre LEILA MARIA RESCHKE1 Procuradora.
LUCIANO SALDANHA VARELA Engenheiro.
SIMONE SANTOS MORETTO Assessora Jurídica.
SIMONE SOMENSI Procuradora.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Regularização fundiária; 2.1. Dimensão urbanística; 2.2. Dimensão jurídica; 2.3. Tipos de irregularidade fundiária; 3. Gerência de regularização de loteamentos; 3.1. Competência; 3.2. Áreas loteadas x áreas ocupadas; 4. Formas de atuação. 4.1. Ações de prevenção; 4.1.1. Fiscalização; 4.1.2. Medidas judiciais; 4.2. Ações de repressão; 4.3. Ações de regularização; 4.3.1. Procedimento; 4.3.2. Etapas. 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO A questão habitacional exige um cuidado apurado da Administração Pública. A moradia do cidadão é direito fundamental inerente à dignidade da pessoa humana, ou seja, ocupa lugar central no pensamento filosófico e político como valor fundamental da ordem jurídica de nossa sociedade, sustentando um dos pilares do Estado Democrático de Direito.
1
Integrantes da Gerência de Regularização de Loteamentos da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre.
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Constitucionalmente previsto como direito social pelo artigo 6º da Magna Carta, impõe aos administradores públicos intensa e constante preocupação com a forma de seu atendimento. Neste contexto, a regularização fundiária assume importante papel, pois é a base para a prestação de uma série de serviços públicos. Além disso, no momento em que se regularizam as ocupações irregulares, em qualquer uma de suas modalidades, estamos resolvendo problemas habitacionais e acalentando a tão sonhada tranquilidade das famílias que residem em áreas que não proporcionam segurança jurídica da posse e propriedade, muito menos oferecem serviços públicos adequados. Visa este trabalho, então, demonstrar como o Município de Porto Alegre trabalha a regularização fundiária dos loteamentos implantados de forma irregular ou clandestina, bem como delinear os entraves urbanísticos e jurídicos que dificultam sobremaneira o processo. A problemática envolve questões jurídicas, fundiárias, urbanísticas e avaliação do desempenho das configurações espaciais, das atribuições do Poder Público e da capacidade de gestão. 2. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA Denomina-se regularização fundiária o processo de verificação da situação da propriedade e posse de áreas urbanas ou rurais, públicas ou privadas que se formaram em desacordo com as normas legais que regulam a matéria. Pressupõe, portanto, uma utilização do território em condições que trazem dúvidas sobre os direitos de propriedade e posse do local. Segundo Betânia Alfonsin2, é o processo de intervenção pública, sob os aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitação, implicando melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária. O que se busca com a regularização fundiária é, sem dúvida, transformar a irregularidade na ocupação do solo em domínio e posse legítimas, a fim de cumprirem sua função social, como preconiza a Constituição Brasileira. Neste processo, o grande desafio dos agentes públicos é fazer este trabalho de forma a evidenciar a permanência das populações moradores naquele espaço, evitando o reassentamento. Nesse contexto, foram propostos novos instrumentos legislativos, jurídicos e urbanísticos com o escopo de contribuir para a formulação de uma nova política de 2
FERNANDES, Edésio e ALFONSIN, Betânia (coordenadores e co-autores). A Lei e a Ilegalidade na Produção do Espaço Urbano, Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
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uso racional e socialmente adequada do solo urbano. O envolvimento do ente municipal nestas questões, com objetivo de minimizar os problemas decorrentes da irregularidade fundiária certamente é uma estratégia inteligente de gestão dirigida para disponibilizar moradia de qualidade e com infra-estrutura adequada aos munícipes, pois ao resgatar a segurança jurídica da posse e da propriedade trará aos cidadãos benefícios em diversos setores, iniciando pelo acesso digno às redes de água, luz e esgotamento sanitário, passando pela presença de serviços públicos, tais como escolas e postos de saúde, até chegar ao acesso facilitado ao transporte público. Não é fácil trabalhar a irregularidade fundiária. Cada ocupação consolida-se de uma forma e por isso possui características próprias. Em cada caso é necessário verificar sua origem (assentamento autoproduzido, invasão, loteamento irregular ou clandestino, etc.) e quais os desdobramentos urbanísticos e jurídicos ocorreram durante e após sua formatação. Como se vê, a regularização fundiária se dá em duas dimensões: urbanística e jurídica. Faticamente até se poderia trabalhar somente um dos aspectos. Entretanto, a história já nos mostrou que os resultados somente serão positivos quando as duas dimensões são avaliadas e trabalhadas. 2.1. Dimensão urbanística A esfera urbanística trabalha as etapas que precedem a regularização jurídica e registraria da gleba. O objetivo desta etapa é a formatação de um programa de urbanização que prevê a aprovação de projetos nos órgãos públicos, implementação de infra-estrutura e prestação de serviços públicos. Tudo começa com a realização de um levantamento topográfico-cadastral da área demonstrando como se deu o parcelamento do solo. Após, é necessário elaborar um estudo de viabilidade urbanística ou projeto urbanístico baseado nesse levantamento, redefinindo os usos e padrões de ocupação previstos na legislação e adequando-os à realidade atual. É nesta etapa que se encontram as maiores dificuldades do trabalho de regularização fundiária. Neste momento é que aparecem os condicionantes urbanísticos e ambientais não respeitados pela ocupação, como, por exemplo, a existência de moradia em faixas não edificáveis sobre redes de esgoto, de preservação ambiental marginal de arroio ou nascente, incidência de diretriz de abertura viária, etc. Neste âmbito, importante destacar os instrumentos urbanísticos alcançados pelo Estatuto da Cidade, tais como o zoneamento urbano e ambiental, definição de planos de regularização fundiária, parcelamento compulsório, e, principalmente, a instituição de zonas especiais de interesse social. Sem estes instrumentos não é possível obter a regularização.
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Ultrapassada esta fase, com o projeto urbanístico discutido e aprovado primeiro pela comunidade e depois pelo Município, inicia-se a etapa jurídica. 2.2. Dimensão jurídica Estando a ocupação devidamente inserida na cidade formal em decorrência da aprovação do estudo de viabilidade urbanística ou do projeto urbanístico e sua decorrente implantação, necessário adequar o título de propriedade à realidade fática, dando início à política de legalização das áreas e dos lotes ocupados, gerando segurança jurídica aos moradores. Neste aspecto, o Estatuto da Cidade também auxilia sobremaneira, trazendo inúmeros instrumentos jurídicos e principalmente traçando as diretrizes básicas de utilização ordenada do solo urbano, cujo centro é a preocupação constante com a função social da propriedade. De acordo com o tipo de propriedade (pública ou privada) e a forma de ocupação do solo (assentamento autoproduzido, invasão, loteamentos irregulares ou clandestinos) é possível utilizar institutos como concessão especial para fins de moradia, usucapião individual ou coletivo e ação de registro para transferir a titularidade do imóvel a quem de direito. Importante destacar que a dimensão jurídica somente estará completa quando finalizada a etapa registrai, ou seja, quando disponibilizado ao morador o seu título de posse ou propriedade devidamente registrado no cartório imobiliário. 2.3. Tipos de irregularidade fundiária Como citado anteriormente, várias são as formas de irregularidade fundiária: favelas, assentamentos autoproduzidos, loteamentos clandestinos ou irregulares. As especificidades se referem às formas de aquisição da posse ou propriedade e aos distintos processos de consolidação dos assentamentos. Cada caso exige um tratamento específico. Os habitantes irregulares, por sua vez, dividem-se em dois segmentos básicos: um é constituído pelos núcleos e vilas irregulares e outro pelos loteamentos irregulares e clandestinos. Para um melhor esclarecimento traçamos aqui a caracterização dos dois segmentos irregulares: a) núcleos e vilas irregulares: são formados por moradores em área pública ou privada com os problemas de irregularidade fundiária e com um grau variável de deficiência de infra-estrutura urbana e de serviços. Os núcleos e vilas irregulares são aqueles cujos habitantes não são proprietários da terra e não têm nenhum contrato legal que lhes assegurem permanência no local. São, na sua maioria, formados através
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das ocupações (invasões). Na terminologia adotada pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental do Município de Porto Alegre (PDDUA) são os assentamentos autoproduzidos; b) loteamentos: é uma das formas de parcelamento do solo urbano, com desmembramento da área em lotes e abertura de novas vias de circulação. Pela Lei Federal n. 6.766/79, o loteador é obrigado a elaborar projeto de loteamento, aproválo perante os órgãos municipais e depois registrá-lo no cartório imobiliário, além de ser obrigado a realizar as obras de infra-estrutura. Somente após o cumprimento destas etapas é possível iniciar a comercialização dos lotes. A Lei Federal n. 6.766/79 define lote como terreno servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor. Infra-estrutura básica, por sua vez, são os equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, redes de esgoto sanitário e abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação. Quando o loteamento não atende aos preceitos legais, torna-se irregular ou clandestino: a) irregular: é aquele que possui algum tipo de registro no Município. O responsável pode ter dado entrada com a documentação, mas não chegou a aprovar o projeto. Também é considerado irregular o loteamento que tem projeto aprovado, mas o loteador deixou de atender as outras etapas previstas na Lei Federal n. 6.766/79, como a realização das obras de infra-estrutura ou registro do loteamento no cartório de imóveis; b) clandestino: é aquele realizado sem nenhum tipo de projeto ou intervenção pública, ou seja, nenhuma norma é respeitada. Feita a distinção, começaremos agora a tratar especificamente dos loteamentos irregulares e clandestinos e como o Município de Porto Alegre trabalha a sua regularização. 3. GERÊNCIA DE REGULARIZAÇÃO DE LOTEAMENTOS Colocada como premissa básica a necessidade dos programas de regularização objetivar a integração dos assentamentos informais ao conjunto da cidade, e não apenas o reconhecimento da segurança individual da posse e propriedade para os ocupantes, o Município de Porto Alegre montou uma equipe de trabalho multidisciplinar, formada por procuradores, arquitetos, agentes comunitários, engenheiros, topógrafos, biólogos e geólogos, criando a chamada de Gerência de Regularização de Loteamentos. Esta foi instituída através do Decreto Municipal n. 15.432, de 26 de dezembro de 2006, é coordenada pela Procuradoria-Geral do Município e possui em sua estrutura
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além de um núcleo jurídico, um núcleo de análise urbanística, coordenado pela Secretaria de Planejamento Municipal, e um grupo técnico de regularização fundiária composto por representantes de diversos órgãos, como Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Departamento de Esgotos Pluviais, Departamento Municipal de Água e Esgoto, Secretaria Municipal de Obras e Viação, Secretaria Municipal de Coordenação Política e Governança Local e Departamento Municipal de Habitação. Este grupo técnico tem como objetivo elaborar diretrizes urbanísticas para a regularização dos loteamentos irregulares e clandestinos, o que acarreta na agilização do processo de regularização e procura dar um olhar diferenciado para a questão, pois o processo se dá de maneira inversa, ou seja, parte-se de uma situação consolidada. 3.1. Competência Entre as competências da Gerência de Regularização de Loteamentos, podemos listar: a) análise de expedientes administrativos cujo objeto sejam loteamentos clandestinos e irregulares, abrangendo os procedimentos necessários à etapa da regularização urbanística através da instituição de área especial de interesse social – AEIS ou aplicação da Lei Complementar Municipal n. 140, de 22/07/86 (para loteamentos implantados antes de 1979); b) ajuizamento de ações competentes para responsabilização civil e penal dos loteadores irregulares e clandestinos; c) execução de levantamentos topográficos e projetos urbanísticos em situações submetidas à análise e consideração da Gerência de Regularização de Loteamentos; d) ajuizamento de ações de registro com base no Provimento n. 28/2004 da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, denominado Projeto More Legal. Sob este enfoque, necessário registrar que a regularização dos loteamentos pode ser dividida em administrativa, urbanística e registraria, sendo a primeira a destinada à coleta de documentos, a segunda destinada à aprovação dos projetos junto aos órgãos gestores de planejamento urbano e, a última, aquela que se ocupa da retificação e ratificação da titularidade das glebas. 3.2. Áreas loteadas x áreas ocupadas Acima demonstrou-se a distinção entre os loteamentos clandestinos ou irregulares e assentamentos autoproduzidos. No Município de Porto Alegre diferentes órgãos trabalham a regularização fundiária: os primeiros são tratados pela Gerência
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de Regularização de Loteamentos, já os segundos são tratados pelo Departamento Municipal de Habitação, que coordena o Programa de Regularização Fundiária – PRF. A opção por esta formatação, embora questionável, levou em consideração a questão da propriedade da gleba, que é fator de relevância para fins de regularização, e as diferentes legislações aplicáveis a cada caso. Ocorre que para a regularização de loteamentos há a necessidade de prévia aprovação de projeto urbanístico pelos órgãos municipais e, conforme artigo 14 do Decreto Municipal n. 12.715, para tal aprovação é necessário requerimento firmado pelo proprietário ou pessoa por este autorizada. Em consequência disso, o órgão público só poderá atuar em casos onde não há litígio acerca da propriedade. Cumpre ainda lembrar que nas ações judiciais com base no Provimento n. 28/2004 da CGJ/TJRS – Projeto More Legal – o pedido de registro dos lotes leva em conta os contratos de compra e venda apresentados e sua devida quitação. Em relação aos assentamentos autoproduzidos, que podem estar sobre área pública ou privada, geralmente a regularização leva em consideração somente a posse dos moradores, ou seja, não há uma relação jurídica formal entre os ocupantes e os proprietários das áreas. Aliás, a possibilidade é de que existam conflitos pela ameaça concreta de expulsão dos ocupantes com base em ações judiciais de reintegração de posse promovidas pelos proprietários. 4. FORMAS DE ATUAÇÃO 4.1. Ações de prevenção 4.1.1. Fiscalização Não há como trabalhar a prevenção dos loteamentos clandestinos ou irregulares senão com a atuação da fiscalização dos órgãos municipais. A única forma de evitar a sua implantação é através de fiscalização planejada e adequada que contemple um diagnóstico completo dos vazios urbanos e imediato agir dos órgãos públicos tão logo se tome conhecimento do parcelamento do solo ou de sua expansão. O exercício do poder de polícia administrativo contempla a notificação do responsável, a lavratura de autos de infração por danos ao parcelamento do solo e por danos ambientais (o que ocorre na maioria das hipóteses), bem como termos de interdição/embargo de obra e aplicação de multas. Poderá prever, também, a apreensão de materiais utilizados na implantação do parcelamento do solo, mormente quando houver caracterização de delito ambiental. Além disso, é preciso conscientizar os moradores da importância deste processo, demonstrando os prejuízos advindos da clandestinidade. Com isso, busca-se um comprometimento da comunidade e o desenvolvimento da cidadania e senso coletivo.
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4.1.2. Medidas judiciais Caso as medidas administrativas não sejam suficientes para impedir a formação do loteamento irregular ou clandestino, necessário o ajuizamento de ações judiciais. Neste aspecto, o melhor instrumento à disposição da municipalidade, sem dúvida, é a ação civil pública, regulamentada pela Lei Federal n. 7.347/85. Aliás, a alteração legislativa ocorrida em 2001 com o advento do Estatuto da Cidade afastou qualquer discussão a respeito do cabimento desta ação ao incluir o inciso VI no artigo 1º, enfatizando que os danos causados à ordem urbanística são passíveis de responsabilização e indenização através deste instrumento processual. O desenvolvimento urbano submete-se a regramentos previstos em lei – Lei Federal n. 6.766/79 e aos planos diretores municipais. A coletividade tem direito de ver observados os padrões legais de urbanismo. Por outro lado, é dever constitucional do órgão federado – no caso os municípios – defender a ordem urbanística, bem de uso comum do povo. Por isso não há dúvida de que a lesão à ordem urbanística autoriza o Município a buscar judicialmente a reparação ao mesmo, nos termos do artigo 5º c/c artigo 1º, inciso VI, da Lei Federal 7.347/85. Assim como o direito ao meio ambiente saudável e sustentável pertence à coletividade e não ao indivíduo isolado, a gestão ordenada do solo urbano também representa um direito difuso, como soma e síntese de interesses individuais que merece proteção jurídica de forma diferenciada daquelas previstas pela regras processuais do direito clássico. Nas palavras de Fernando Gama de Miranda Netto3, “A proliferação dos interesses coletivos revelou-se inevitável. Ora, é da própria natureza humana que os indivíduos se aproximem uns dos outros, em razão da sua sociabilidade. (...) Nesta linha, foram os interesses coletivos “ganhando terreno” à medida que se tornava mais vacilante a linha fronteiriça entre o público e o privado. A sociedade de massa, de fato, exacerbou o coletivo, diminuindo as áreas afetadas ao particular e provocando o fenômeno da “publicização do direito”. A legitimidade passiva resta evidenciada a partir da enunciação dos fatos. Deve figurar como réu na ação o loteador, seja ele proprietário e/ou vendedor da área a ser loteada, com prova da comercialização dos lotes. E, nos casos em que as vendas não são realizadas pelo proprietário, este também será responsável pelo parcelamento na medida em que perdura documentalmente a indivisibilidade do patrimônio imóvel e o consequente dever de zelar pela imutabilidade da área. Ademais, qualquer procedimento a ser adotado para fins de regularização do parcelamento dependerá da
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MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. A Ponderação de Interesses na Tutela de Urgência Irreversível, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, pp. 129/130.
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regularidade registrai, por isso a importância em responsabilizar o proprietário que consta como titular na matrícula do imóvel. O pedido principal desta ação judicial será a condenação dos responsáveis pela tentativa de implantação do loteamento à obrigação de não fazer, consistente na vedação de execução de loteamento e de venda de lotes. A obtenção de liminar, nesta hipótese, é de extrema importância, pois somente se evitará a consolidação do loteamento se houver ordem que impeça os loteadores de efetuarem parcelamento do solo, vendas ou construções, sob pena de multa diária em caso de descumprimento4. Importante destacar que a tomada de providências pelo município não é opção, mas imposição, pois a inércia do ente público o faz co-responsável, de forma solidária ou subsidiária, como preconiza a Lei Federal n. 6.766/79, ou seja, somente desta forma evitar-se-á a responsabilização dos gestores públicos pela proliferação da irregularidade urbana e a obrigatoriedade em proceder a regularização. 4.2. Ações de repressão A melhor e mais eficaz medida repreensiva que se pode tomar contra loteadores clandestinos e irregulares é, certamente, o ajuizamento de ação penal pela prática do delito previsto no art. 50 da Lei Federal n. 6.766/79. Entretanto, trata-se de ação penal pública incondicionada, ou seja, o titular da ação é o Ministério Público. Mas isso não significa que o município não possa e deva tomar providências no âmbito penal. No Município de Porto Alegre é prática comum o pedido de envio de ofício ao Ministério Público quando do ajuizamento de ações de prevenção ou regularização no âmbito civil. Além disso, sempre que se tem notícia de crimes em processos administrativos ou vistorias objeto de loteamentos irregulares ou clandestinos, com prova inequívoca de venda de lotes (contratos de compra e venda), elabora-se dossiês noticiando os crimes praticados pelos loteadores ao Ministério Público. De posse da
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Refere Rodolfo de Camargo Mancuso, citando Lúcia Valle Figueiredo, que “a antecipação dos efeitos da tutela (CPC, art. 273, conforme Lei 8.952/94) é de ser aplicada à ação civil pública, já que esta tramita pelo procedimento comum, sobretudo o contraditório, sendo-lhe subsidiário o Código de Processo Civil (art. 19 da Lei 7.347/85). Para tanto, hão que estar presentes os pressupostos específicos, que comportam: a) núcleo comum (prova inequívoca, conducente à verossimilhança da alegação – caput – e mais, a não irreversibilidade do provimento antecipado – § 2º); b) virtuais alternativas (receio de dano irreparável ou de difícil reparação; conduta processual reprovável, do réu – incs, I e II). (...) Deverá o magistrado, pela prova trazida aos autos, no momento da concessão da tutela, estar convencido de que – ao que tudo indica – o autor tem razão e a procrastinação do feito ou sua delonga normal poderia pôr em risco o bem da vida pretendido – dano irreparável ou de difícil reparação. A irreversibilidade do dano na ação civil pública é manifesta e o “fluid recovery” não será suficiente a elidir o dano.” In Ação Civil Pública, 6. ed., São Paulo: RT, 1999, pp. 81/82.
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documentação, o parquet tem condições de ajuizar a ação penal ou, se entender necessário, complementar as informações através de inquérito penal. 4.3. Ações de regularização 4.3.1. Procedimento O trabalho da Gerência de Regularização de Loteamentos começa em razão de uma denúncia de loteamento irregular ou clandestino ou devido a um pedido de regularização por parte da comunidade. A partir de então são adotados os seguintes procedimentos: a) identificação da gleba: correta localização em mapa cadastral do Município; b) busca da titularidade junto aos cartórios imobiliários da matrícula atualizada visando identificar se a área é pública ou privada e se o proprietário foi o loteador; c) avaliação da existência de loteamento e da época de sua implantação: este procedimento orientará os técnicos de que maneira se efetivará a regularização, ou seja, através da instituição de Áreas Especiais de Interesse Social (art. 76, inciso II, do PDDUA) ou através da Lei Complementar Municipal n. 140/86. A próxima providência é identificar o loteador. Nesse aspecto a presença da comunidade é indispensável, pois são os compradores dos lotes que fornecem a documentação necessária para tanto, ou seja, os contratos de compra e venda. Identificado o proprietário da área e o loteador, esses são notificados nos termos do art. 49 da Lei Federal n. 6.766/79 e do art. 218 da Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, pois a responsabilidade pela regularização, como enfaticamente referido, é decorrente do ônus de sua atividade. Obtido acordo para proceder a regularização é firmado termo de ajustamento de conduta, como preconiza o § 6º do art. 5º da Lei Federal n. 7.347/85, estabelecendose prazos para cumprimento das etapas de regularização mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial em caso de não cumprimento5. Não sendo possível ajustar um procedimento junto ao loteador e/ou proprietário para obter a regularização, o Município poderá assumir, juntamente com os moradores,
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Sobre a importância do compromisso de ajustamento de conduta já se manifestou Fernando Reverendo Vidal Akauoi, citando Celso António Pacheco Fiorillo: “trata-se o instituto de meio de efetivação do pleno acesso à justiça, porquanto se mostra como instrumento de satisfação da tutela dos direitos coletivos, à medida que evita o ingresso em juízo, repelindo os reveses que isso pode significar à efetivação do direito material.” In Compromisso de Ajustamento de Conduta Ambiental, São Paulo: RT, 2003, p. 68.
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a regularização, sem prejuízo das ações punitivas cíveis e penais cabíveis contra os loteadores, nos termos do artigo 208 da Lei Orgânica Municipal. Nestes casos também é utilizada ação civil pública como instrumento processual viável para obrigar os responsáveis a proceder à regularização. Entretanto, o pedido é completamente diferente, pois o loteamento já está consolidado. Se por ventura não for possível obter a recomposição dos danos causados à coletividade, ou seja, se o loteamento não puder ser regularizado pelos loteadores, deverá ser convertido o pedido em indenização, por compensação econômica, a ser fixada pelo prudente critério do julgador. Destaca-se, mais uma vez, a importância, relevância e conveniência do ajuizamento da ação civil pública regularizatória, para afastar a pecha de inoperância e omissão dos órgãos públicos. 4.3.2. Etapas A regularização propriamente dita inicia, como referido anteriormente, após avaliação e enquadramento da gleba nas hipóteses de regularização, com enquadramento na Lei Complementar Municipal n. 140/86 ou no Plano Diretor, Lei Complementar Municipal n. 434/99. A Lei Complementar Municipal n. 140/86 é aplicada como instrumento urbanístico para a regularização dos parcelamentos do solo implantados irregular ou clandestinamente anteriormente à Lei Federal n. 6.766/79, independentemente da observância dos padrões urbanísticos definidos no Plano Diretor. Os demais casos devem atender o Plano Diretor ou, se for necessário, prever a instituição de Áreas Especiais de Interesse Social – AEIS, que é o instrumento urbanístico previsto no art. 76 da Lei Complementar Municipal n. 434/99 (segundo PDDUA de Porto Alegre), o qual viabiliza a produção e manutenção de habitação de interesse social através da adoção de padrões especiais de parcelamento e uso do solo e da permissão de normas construtivas específicas para núcleos habitacionais consolidados e novas áreas destinadas a programas habitacionais de interesse social. Os loteamentos clandestinos e irregulares enquadram-se no art. 76, inciso II, da Lei Complementar Municipal n. 434/99. As AEIS, denominadas ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) no Estatuto da Cidade, permitem que os loteamentos irregulares ou clandestinos sejam integrados à cidade formal. Ao gravar uma área como AEIS, permitimos que esta seja regularizada no próprio local com regras diferenciadas daquelas previstas no Plano Diretor. Tais áreas poderão ser urbanizadas considerando, sempre que possível, a forma como o núcleo está organizado.
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Na regularização de loteamentos irregulares ou clandestinos todos assumirão suas parcelas de responsabilidade: o município, os moradores e os loteadores. Após, necessária realização de levantamento topográfico e cadastral da área, que demonstre a realidade do assentamento e do parcelamento do solo no local, a fim de verificar quais medidas deverão ser realizadas para que ocorra regularização, ou seja, fixam-se diretrizes urbanísticas6. O próximo passo é a apresentação do projeto urbanístico e sua aprovação perante os órgãos técnicos. Com o projeto aprovado e o loteamento inserido na cidade formal, encerram-se os procedimentos urbanísticos e inicia a fase jurídica da regularização do loteamento, com vistas à retificação da matrícula (se necessário) e registro do loteamento perante o Registro de Imóveis, com abertura de matrícula dos lotes e equipamentos públicos. Para que isto ocorra, geralmente é necessário o ingresso de ação de registro com base no Provimento n. 28/2004 da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, pois na maioria dos casos não é possível atender os requisitos previstos na Lei Federal n. 6.015/73. Este Provimento, denominado Projeto More Legal, estabelece padrões diferenciados e flexibilização na documentação a ser apresentada para registro do loteamento e individualização das matrículas por lote. Muito embora os moradores já preencherem os requisitos para ver declarado seu domínio por usucapião, optam por ver regularizado o loteamento como um todo, pois entendem como mais salutar e econômico, tanto do ponto de vista processual como financeiro, o ajuizamento em conjunto, dando por encerrada a situação fundiária na sua integralidade. 5. CONCLUSÃO A irregularidade urbana é um dos problemas mais graves a serem enfrentados por administradores e administrados, pois se trata de fenômeno social generalizado que atinge níveis altíssimos. Não é de hoje que esta realidade vem sendo enfrentada sob a ótica legislativa. Já em 1937 houve a edição de legislação cuja finalidade era disciplinar a produção de loteamentos e as vendas de terrenos em prestações (Decreto-Lei n. 58/37). Ainda nesta senda, novas tentativas para solucionar estes problemas foram encaminhadas 6
Instituiu-se o Grupo Técnico de Regularização Fundiária (GTRF) para fixar estas diretrizes, incumbidos os técnicos de avaliar a realidade sob um enfoque diferenciado que parte da situação consolidada tentando adequála ao ordenamento jurídico da melhor forma possível.
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por ocasião da promulgação da Lei Federal n. 6.766/79 e do Estatuto da Cidade, sem que se houvesse alcançado a efetividade necessária e desejada. Porto Alegre faz algum tempo enfrenta esta realidade de modo especial. Para tanto, estruturou uma série de instrumentos jurídicos e urbanísticos cuja finalidade é dar novo paradigma no trato da irregularidade urbana como política pública, observando, desta forma, tanto o ordenamento jurídico nacional quanto local. Entretanto, por sua natureza enquanto fenômeno social, a regularização fundiária se mostra multidisciplinar e requer a intervenção de profissionais de diversas áreas do conhecimento científico para obter resultados satisfatórios, os quais não se vislumbram concretamente a curto prazo, ao contrário, é um processo longo que demanda tempo, dinheiro e boa vontade, seja do ente público, do loteador ou da população envolvida. Trata-se de uma forma de ampliar o acesso à habitação regular para a população, através de estratégia de gestão do solo urbano dirigida para disponibilizar moradia de qualidade e com infra-estrutura adequada, mormente para os setores de baixa renda. Enfim, é um meio viável para adequar a norma legal à realidade fática, uma vez que cria condições jurídicas, financeiras, urbanísticas e administrativo-institucionais aos cidadãos, assegurando o direito à moradia e à cidade de forma articulada, reconhecendo e assegurando direito de posse e propriedade, prevenindo, inclusive, a formação de novos assentamentos irregulares na cidade. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AKAOUI, Fernando Reverendo Vidal. Compromisso de Ajustamento de Conduta Ambiental, São Paulo: RT, 2003. AZEVEDO, Renan Falcão de. Posse: efeitos e proteção, 5. ed., Caxias do Sul: EDUCS, 2000. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2001. DALLARI, Adilson Abreu e FERRAZ, Sérgio (coordenador). Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2002. FERNANDES, Edésio e ALFONSIN, Betânia (coordenadores e co-autores). A Lei e a Ilegalidade na Produção do Espaço Urbano, Belo Horizonte: Del Rey, 2003. ______. Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade, Belo Horizonte: Fórum, 2004. GOMES, Orlando. Direitos Reais, 12. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996. LEAL, Rogério Gesta. A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico, Rio de Janeiro: Renovar, 1997. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública, 6. ed., São Paulo: RT, 1999.
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MATTOS, Liana Portilho (Organizadora). Estatuto da Cidade Comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. MEDAUAR, Odete e ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de (Coordenadores). Estatuto da Cidade. 2. ed., São Paulo: RT, 2004. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 16. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2003. MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. A Ponderação de Interesses na Tutela de Urgência Irreversível, Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2005. MUKAI, Toshio. O Estatuto da Cidade, Saraiva: Rio de Janeiro, 2001. PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico Plano Diretor e Direito de Propriedade, São Paulo: RT, 2005. PRESTES, Vanêsca Buzelato (Organizadora). Temas de Direito Urbano-Ambiental,Belo Horizonte: Fórum, 2006. SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, 2. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
Desafios do Serviço Legal em Ações de Usucapião Coletivo no Judiciário Paulista – Experiências de Extensão Universitária na Comunidade do Paraisópolis RODRIGO RIBEIRO
DE
SOUZA
Advogado e Orientador do Departamento Jurídico “XI de Agosto” da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
ANA CAROLINA NAVARRETE, MARCO AURÉLIO PURINI BELÉM, RENATA GOMES DA SILVA E STACY NATALIE TORRES DA SILVA Graduandos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
INTRODUÇÃO Com as inovações trazidas pela Constituição Federal em seus artigos 182 e 183, pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/01) e pelo Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (Lei Municipal 13.430/02), estabeleceu-se uma série de instrumentos para a garantia, no âmbito do município, do direito à cidade, da defesa da função social da propriedade e da democratização da gestão urbana. Este instrumental coloca a gestão democrática, a sustentabilidade urbanoambiental, a cooperação entre setores sociais, bem como ajusta distribuição dos benefícios e ônus que decorrem do processo de urbanização como os principais objetivos do pleno desenvolvimento da função social da cidade. Temos claro, contudo, que esses objetivos, na prática, estão submetidos a procedimentos jurídicos subordinados à tradicional preocupação de gerar segurança, identificação e titularidade ao direito de propriedade. Dessa forma, surge um choque entre as aspirações sociais garantidas constitucionalmente e as barreiras processuais encontradas no Poder Judiciário, exigindo um redimensionamento do papel da propriedade, do direito à moradia e da implementação de políticas públicas urbanas.
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O presente artigo visa expor diversos aspectos da atuação do “Grupo de Regularização Fundiária em Paraisópolis” e os obstáculos por ele enfrentados frente ao Poder Judiciário ao lidar com demandas coletivas. 1. A EVOLUÇÃO DO GRUPO No ano de 2003, foi assinado um convênio entre a Prefeitura Municipal de São Paulo e o Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), a fim de realizar um projeto-piloto de regularização fundiária em uma quadra localizada na Comunidade de Paraisópolis, periferia da zona sul do município de São Paulo. Assim, além do existente projeto de urbanização – obrigatório de acordo com o Plano Diretor Estratégico – objetivou-se produzir novos conhecimentos jurídicos e sociais com os estudantes de direito, os quais se envolveriam simultaneamente em ações judiciais e numa aproximação da comunidade. Participam do projeto estudantes de todos os anos da FDUSP, coordenados por um advogado cedido pelo Departamento Jurídico XI de Agosto da FDUSP, entidade estudantil que realiza assistência jurídica gratuita à população carente. 1.1. A ESTRUTURAÇÃO FILOSÓFICA E PRÁTICA O grupo de Regularização Fundiária se identifica como um serviço jurídico inovador1, que privilegia a organização popular, bem como, valoriza a apropriação do conhecimento, por parte dos moradores da comunidade, de direitos como cidadãos. É nesta medida que se torna possível a grande parte da população reivindicar tais direitos e, nesse ínterim, resultar numa transformação de tais demandas em importantes políticas públicas. Dessa forma, o grupo contribui para clarear a dimensão extralegal, permitindo que os interessados analisem criticamente as questões políticas, econômicas e sociais conexas com a atividade jurídica, que permanece amiúde escondida pelo tratamento formalista e excessivamente processual dado aos casos. Não se trata, certamente, de desprezar a estratégia legal, mas sim de utilizar esta via de maneira politizada, de modo a desprivilegiar o tecnicismo, a racionalidade formal e a análise estrutural formalista. Enquanto prática inovadora, o grupo ressalta a necessidade de mecanismos mais flexíveis de defesa dos interesses em questão, a fim de que os demandantes devidamente apreendam seus problemas como “problemas legais” e, além disso, acentua a importância de se viabilizar a discussão dos remédios jurídicos disponíveis – ou mesmo de novos remédios. 1
“expressão que tende a designar o conjunto de entidades voltadas para auxílio jurídico gratuito”. In: LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
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Assim como outras Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs), a busca por um serviço jurídico inovador2 privilegia as experiências com práticas coletivas, não hierarquizadas, dialógicas, multidisciplinares e transformadoras. A partir desses pressupostos, fez-se uma análise jurídica de Paraisópolis, mais especificadamente junto aos moradores da área usucapienda e, após o convênio com a prefeitura, foram ajuizadas três ações de usucapião coletivo. E pelo comprometimento desafiador de um direito igualitário, reconhece-se através da prática uma incompatibilidade entre as demandas da comunidade e os instrumentos exigidos pelo judiciário. Esta tensão entre os mecanismos será analisada através das experiências acumuladas na atuação do grupo. 2. OS MAIORES ENTRAVES À REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA Abaixo estão descritos os principais desafios encontrados durante todo o processo de regularização fundiária na Comunidade de Paraisópolis, que foi iniciado em 2003 e que ainda se encontra em face incipiente. 2.1. O despreparo do nosso sistema jurídico em lidar com o coletivo A dificuldade de lidar com o direito à moradia através de ações de usucapião especial urbano coletivo surge antes mesmo do ajuizamento da ação judicial. Este instrumento, previsto no Estatuto da Cidade em seu art. 10, foi criado para regularizar a situação fundiária de aglomerações da população de baixa renda, em que é difícil realizar a individualização dos imóveis. Ao mesmo tempo em que se trouxe uma grande inovação social, com a possibilidade de inclusão de um grande número de autores e/ou réus, verificaram-se diversas dificuldades a serem enfrentadas, porque o direito processual brasileiro ainda é baseado em concepção liberal de partes individuais na disputa por direitos disponíveis, a despeito da recente evolução da possibilidade de demandas coletivas. Na atuação judicial, encontram-se sérios obstáculos práticos como a dificuldade no recolhimento de documentos essenciais para a proposição desse tipo especial de ação – por exemplo, a prova documental de que os autores residem na área há mais de 5 (cinco) anos, algo complicado devido à quantidade de pessoas geralmente envolvidas, o que dificulta, também, os próprios atos judiciais; é perceptível, outrossim, a dificuldade na própria mobilização comunitária de um modo geral, que é pressuposto para a participação efetiva no âmbito processual.
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CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência Jurídica e realidade social: apontamentos para uma tipologia dos serviços legais in Discutindo Assessoria Popular. Coleção Seminários, nº 15. Rio de Janeiro: FASE, 1991.
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A mobilidade dos moradores é outro problema, já que as frequentes mudanças atrapalham o mapeamento dos moradores das áreas e também complicam o andamento dos processos à medida que a alteração constante dos pólos ativos pode tumultuar o desenvolvimento das ações judiciais, além de dificultar a comprovação de documentos que comprovem a posse há mais de 5 (cinco) anos, requisito legal da prescrição aquisitiva. Diante de tal experiência, percebeu-se que ao invés de haver simplificação e flexibilização da ação de usucapião ordinário, tendo em vista as condições diferenciadas destas populações, a ação acaba se tornando ainda mais complexa, porque passa a aglutinar as especificidades da ação de usucapião a uma multiplicidade de autores e réus, sendo necessários os mesmos documentos, requisitos e procedimentos. Desse modo, o processo de usucapião coletivo uma sofre grande incongruência, já que sendo ele voltado a áreas em que a individualização é complicada, não é fácil a obtenção de provas individuais da prescrição aquisitiva. Por exemplo, a obtenção de uma simples correspondência com o endereço residencial pode ser dificultada em virtude da numeração desordenada das habitações. Em virtude disso, muitas correspondências acabam sendo centralizadas em um único “endereço”. É, portanto, necessário destacar que, apesar das grandes inovações trazidas pelo Estatuto da Cidade, a ação de usucapião especial urbano coletivo não tem uma aplicação prática veemente, sendo extremamente semelhante ao usucapião ordinário individual, diferenciando-se, mais substancialmente, em relação ao prazo para a prescrição aquisitiva. 2.2. A questão do registro de imóveis Na Comunidade de Paraisópolis, assim como em grande parte do Brasil, a transmissão da propriedade se dá de maneira informal, por meio dos chamados “contratos de gaveta”, compromissos de compra e venda averbados na matrícula do imóvel ou registrados no cartório de registro civil; apesar de fazerem parte de um grande e complexo sistema de contratos, tais instrumentos não são registrados de maneira definitiva no registro do imóvel. Esta informalidade é causada principalmente por causa dos altos preços cobrados pelos Cartórios de Registro de Imóveis, sendo que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. Quer dizer que, mesmo com este aspecto público, não são previstas condições especiais ou isenções de custas para aqueles que comprovadamente são de baixa renda. Na tentativa de romper com essa lógica, o Estatuto da Cidade previu que a sentença declaratória da ação de usucapião especial urbano serviria como título para registro. Esta é uma previsão relevante, contudo, não soluciona o problema, visto que as próximas transmissões dos imóveis não serão registradas gratuitamente.
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Justamente ao se considerar isto, provavelmente nem haverá novos registros, o que inclui a área em um ciclo vicioso de constante necessidade de regularização fundiária. Esta falta de isenções gera desvantagens para o possuidor que, apesar de ter comprado o imóvel, não é formalmente proprietário, e para toda a coletividade, que tem um serviço desatualizado, muito distante do plano fático. 2.3. Os encalços do Processo Civil O Código de Processo Civil tem mais de 30 anos e, apesar das reformas constantes, ainda traz problemas para processos complexos como o usucapião, em especial o coletivo. Através do Estatuto da Cidade, esta forma de aquisição da propriedade ganhou contornos mais flexíveis e mais adequados à realidade brasileira, saindo daquela situação originada no Código Civil, que trazia muitas limitações, para, talvez, vir a se tornar um processo de maior importância para a construção de cidades menos desiguais. Apesar de parecer um grande avanço, tal instrumento tem suas restrições, que são originadas principalmente, na falta de conhecimento dos operadores do direito a seu respeito e nas limitações do processo civil tradicional. Além de suas peculiaridades, o usucapião especial urbano coletivo, assim como outras ações coletivas, sofre com a estruturação liberal do processo, baseada na relação credor-devedor, com o envolvimento de somente duas partes defendendo direitos disponíveis. A despeito disso, o processo civil deve abarcar, atualmente, novos sujeitos que coletivamente tentam englobar as pessoas que estejam na mesma situação, ainda que não estejam completamente identificadas. Órgãos como o Ministério Público, as Defensorias Públicas, Sindicatos e Associações têm tido grande importância figurando no pólo ativo de ações na defesa de direitos difusos e coletivos e em processos que apontam falhas ou omissões na consecução de políticas públicas. A ilegitimidade ativa é um argumento muito utilizado na tentativa de não prover direitos garantidos. Por conta disso, o Estatuto da Cidade foi expresso ao dispor, em seu artigo 12, III, a legitimidade de Associação de Moradores regularmente constituída, desde que autorizada por seus representados, para atuar como substituta processual. Entretanto, mesmo com a existência desta previsão, sua aceitação ainda deve sofrer com as barreiras criadas pelo Poder Judiciário, tendo em vista a problemática relação deste poder com as ações coletivas. Esta legitimação extraordinária das associações se justifica devido à situação peculiar destas comunidades, que contam com muitas pessoas nas áreas usucapiendas e intensiva mobilidade residencial. A moradia é ainda, por diversos motivos históricos, tratada como um direito individual; não obstante, ao se considerar o elevado número de pessoas na mesma situação em ocupações irregulares, verifica-se que ajuizar ações coletivas traz
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benefícios evidentes ao Poder Judiciário, pois pode evitar a sobrecarga com demandas semelhantes e relacionadas. Além disso, tais ações favorecerem a segurança jurídica, criam a possibilidade maior de mobilização entre os moradores – o que os favorece contra problemas como a forte especulação imobiliária e, além disso, trazem mais repercussão e pressão social para a questão das deficiências das políticas públicas urbanas, de uma maneira geral. Outra inovação trazida pelo Estatuto da Cidade é referente à previsão do rito sumário para as ações de usucapião especial urbano. Entretanto, por envolver diretamente o direito de propriedade – garantia consagrada ainda em nosso ordenamento como absoluta – seu processamento é demorado e burocrático. Seria realmente desejável que a enorme demanda por processos deste tipo pudesse ser resolvida mais rapidamente, mas a mera previsão legal não garante isso. Tal questão é comumente ignorada, observando-se, na prática, o rito ordinário. Além disso, o juiz teria a possibilidade de converter o procedimento de sumário para ordinário na audiência, segundo o diploma processual (art. 277, § 4º do Código de Processo Civil). Outra questão é que há uma grande dificuldade durante a fase citatória, já que os últimos registros na matrícula dos imóveis de que tratam as ações datam de meados da década de 1970, o que gera obstáculos para encontrar os pólos passivos das ações. É importante, nesse sentido, tecer algumas considerações: a ação de usucapião tem natureza declaratória devendo somente declarar um direito já existente com a prova em juízo os requisitos necessários. No entanto, a ação acaba sofrendo de uma burocracia exacerbada e as provas exigidas, muitas vezes, estão acima das possibilidades dos possuidores. Isso leva a questionamentos sobre a imensa burocracia causada pelos entraves do Direito Processual, pois mesmo um terreno abandonado há décadas, tem que ser submetido a um dos procedimentos mais complexos do ordenamento jurídico para a formalização de uma situação fática evidente. 2.4. A atuação dos Operadores do Direito O problema se agrava ainda mais porque a atuação acanhada do Judiciário e a visão conservadora em relação aos problemas sociais parece ser um sério fruto da tradição do que de teorias embasadas cientificamente ou reflexões mais profundas, reflexo da formação antiquada dos juristas, conforme esclarece Edésio Fernandes: “O olhar da maioria dos juristas e dos juizes ainda é profundamente marcado pelo paradigma civilista, que se encontra materializado nos currículos obsoletos das faculdades de direito no Brasil e nos países latino-americanos, sendo que as decisões judiciais mais comprometidas com outros princípios e valores tendem a ser anuladas por tribunais superiores conservadores.”3 3
FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. Direito urbanístico: Estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 10.
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O Ministério Público, nas ações em que se manifestou, demonstrou um desconhecimento da realidade de uma comunidade de baixa renda: foram requisitadas diversas informações já presentes no processo, além de documentos sem relação direta coma demanda ou sequer “realizáveis” como declarações de imposto de renda, individualização de imóveis comerciais, certidões de casamento/nascimento atualizadas de todos os autores, demonstrativos de índices de violência na área e, ainda, informações sobre a existência de moradores da comunidade que não estejam na ação (sendo que a região de Paraisópolis conta com cerca de 80 mil habitantes!). Na última ação de usucapião coletivo que foi distribuída, foi requerido, além da declaração de propriedade dos moradores, a inspeção judicial (art. 440 a 443 do Código de Processo Civil), um meio de prova raramente utilizado, mas que pode realizar um exercício interessante de aproximação entre as partes e o judiciário, na medida em que pode contribuir para o juiz entender a realidade em que está intervindo e para os moradores se aproximarem da mítica figura do magistrado; foi requerida, também, a tutela antecipada visando garantir, desde já, maior segurança da posse dos autores, no entanto, os requerimentos foram ignorados. 2.5. As deficiências na assistência jurídica O Brasil tem uma grande deficiência na assistência jurídica à população de baixa renda. A lei que cuida deste assunto (Lei Federal 1.060/50) é da década de 50 e parte da concepção, já ultrapassada, de assistência judiciária. A evolução do direito e da sociedade exige que os conflitos sejam resolvidos de forma mais célere e eficiente, surgindo daí a necessidade de outras formas de resolução de conflitos; além do mais, a previsão de isenção de custas processuais não abrange custas extrajudiciais, que são extremamente relevantes para a propositura de demandas, como a já mencionada matrícula dos imóveis para o usucapião ou mesmo para a prevenção e resolução de conflitos meramente administrativos. Além disso, a ação de usucapião exige uma perícia realizada por engenheiro civil ou arquiteto e, apesar de estar previsto em lei o pagamento dos honorários de advogados e peritos (art. 3º, inc. V da lei 1.060/50), não são previstos recursos certos e suficientes na lei federal para este pagamento, o que pode prejudicar a efetividade deste direito caso se considere a cobrança de honorários periciais, pois não possibilitar o acesso à perícia gratuita inviabiliza a ação de usucapião. Em decisão sobre o assunto, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o Estado de São Paulo deveria fornecer a perícia através de membros do seu quadro de funcionários. Entendeu-se que, apesar de ser previsto o pagamento em lei, não há recursos destinados e, portanto, não é possível exigir a realização desta perícia gratuitamente. O acórdão chega inclusive a sugerir que os peritos poderiam pedir compensações aos juízes por realizarem estas
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perícias de forma gratuita – ou com pagamento tardio, apenas ao fim do processo – com a previsão de novas perícias – desta vez pagas – em que ele seria nomeado: “O art. 3º, V, da Lei n. 1.060/50, assegura a isenção no pagamento dos honorários do perito. Significa, tenho eu, que apenas não constitui uma obrigação prévia da parte assistida pela justiça gratuita o depósito da importância correspondente aos honorários e demais gastos necessários com realização da prova técnica. Mas isso não significa que vá competir ao Estado arcar com o valor correspondente. [...] Lembro que essa situação é muito comum na Justiça Obreira, quando a perícia é postulada pelo empregado reclamante, e nem por isso elas têm deixado de ser realizadas, até porque os profissionais que costumam prestar serviço para os magistrados de 1º grau, que gozam da sua confiança, logram, em compensação, obter ocupação contínua em processos outros, em que recebem devida e antecipadamente pela atividade.”4
Este problema generalizado foi encontrado em nosso processo: o trabalho do perito foi orçado em R$ 6.000,00 (seis mil reais) em uma ação e R$ 2.000,00 (dois mil reais) em outra; por tratar-se de beneficiários da justiça gratuita, os autores não têm condições de arcar com tal despesa, tendo sido necessário a realização de diversas petições, com esclarecimentos ao juiz para a compreensão da situação. Ora, se são os autores pobres na acepção jurídica do termo, portanto não dispondo de recursos para as despesas processuais sem prejuízo de seu sustento e de sua família, como seria possível efetuar tal pagamento? Uma das ações ainda não teve resposta judicial. A outra solução foi uma exceção: os honorários foram reduzidos para R$ 700,00 (setecentos reais) e a perícia será paga pelo Estado. No entanto, a dificuldade em conseguir tal solução mostra o quanto ela é excepcional e o quanto uma sistematização para a realização de perícias complexas gratuitamente é necessário. Enquanto não for realizada uma revisão ou complementação da lei de assistência judiciária a realização de processos de usucapião para a população de baixa renda dependerá da boa vontade de magistrados e das relações dúbias entre estes e os peritos.
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Ementa: PROCESSUAL CIVIL. PERÍCIA. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. DESPESAS COM A PROVA TÉCNICA DE ENGENHARIA. USUCAPIÃO URBANO. AUSÊNCIA DE COMPLEXIDADE OU CUSTO ELEVADO NA REALIZAÇÃO DA PERÍCIA. POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DIRETA DO TRABALHO PELO ESTADO, EM TAIS CIRCUNSTÂNCIAS. OBRIGAÇÃO DE CUSTEIO DE PERITO AUTÔNOMO AFASTADA. I. A isenção prevista na Lei n. 1.060/50 não obriga o Estado a reembolsar as despesas necessárias à realização da prova pericial requerida pela parte assistida pela Justiça gratuita. 11 .Caso, todavia, em que dado ausência de complexidade ou onerosidade da perícia, que não demanda, na espécie, gastos significativos com recursos humanos, materiais ou exames laboratoriais, pode o trabalho ser exercido diretamente por repartição administrativa do próprio ente público, quando necessária mera disponibilização de infra-estrutura já existente, em colaboração com o Poder Judiciário! 11. Recurso especial conhecido e provido em parte. (Superior Tribunal de Justiça, Quarta Turma, Relator: Aldir Passarinho Júnior, Recurso Especial 81.901/SPJ. 07.08.2001)
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2.6. A consolidação da associação de moradores Muitos dos problemas decorrentes do processo civil e mesmo nos registros de imóveis podem ser amenizados pela propositura da ação de usucapião por associação de moradores, conforme previsto no Art. 12, III, do Estatuto da Cidade. Esta associação pode agir como substituta processual, ou seja, requerendo direitos em nome de outros. Isto facilitaria, num primeiro momento, a busca de documentos entre os moradores, o pólo ativo da ação não precisaria ser constantemente modificado no processo judicial. Desta maneira, o registro de imóveis seria sempre em nome da associação, mas com a posse garantida ao morador residente e, posteriormente, as alterações do registro de imóveis não precisariam ser realizadas constantemente. Além disso, a articulação dos moradores permitiria uma maior participação no processo e na própria coletividade, gerando uma maior consciência de seus direitos e maior força oriunda da soma dos esforços individuais na busca de um objetivo comum. Nesse sentido, a união dos moradores numa associação pode dificultar a atuação da especulação imobiliária na obtenção dos terrenos obtidos por meio do usucapião e articular a coletividade na pressão, junto ao poder público, pela implementação de políticas públicas urbanas. No entanto, o condomínio também pode gerar diversos problemas futuros. Dificilmente, obter a fração ideal de uma propriedade satisfaz os anseios da população que busca a declaração de propriedade. A indefinição da propriedade pode gerar diversas limitações econômicas ou mesmo jurídicas: tem-se um instrumento inovador limitado pela realidade fática, que não encara a propriedade de maneira coletiva. É necessário, portanto, criar mecanismos para incentivar e fortalecer as Associações, fundamentais para auxiliar na resolução de diversos problemas relacionados, principalmente, à pluralidade de autores. CONCLUSÃO Diante do exposto, diversas conclusões podem ser depreendidas a partir da experiência do “Grupo de Regularização Fundiária de Paraisópolis” junto ao judiciário paulista. É necessário concluir que os instrumentos introduzidos na ordem jurídicourbanística após a Constituição Federal de 1988 e, principalmente, após a edição do Estatuto da Cidade, garantiram diversos avanços no Direito material, tentando dar contornos mais delineados às funções socioambientais da cidade e da propriedade. Entretanto, esses instrumentos encontram uma série de entraves no Direito Processual, na Administração Pública e na cultura jurídica dos operadores do Direito, apoiados por uma tradição extremamente formalista, privatista e liberal do Direito. Dessa forma, as ações de usucapião coletivo, muitas vezes, nada mais são do que uma multiplicidade de ações individuais. Este posicionamento esvazia de sentido
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uma luta por uma prática coletivista, visto que a burocracia procedimental das ações é multiplicada muitas vezes, variando de acordo com o número de integrantes dos pólos passivos e ativos. Ao analisarmos essa questão sob um prisma meramente processual, não há simplificação procedimental efetiva nesse tipo de ação coletiva. No que se refere ao direito registrário, enquanto não se pensar em modos de isentar de custas extrajudiciais a população de baixa renda, as transmissões continuarão a ser informais e os processos de usucapião e adjudicação compulsória resultantes da informalidade tendem a crescer e prejudicar mais ainda a celeridade processual e o bom andamento do Judiciário. É necessária uma mudança na “cultura jurídica” dos operadores do Direito, para que seja menos dogmática, formalista e liberal e mais baseada na realidade social. Por fim, diagnosticadas essas questões, é preciso concluir que é necessária uma intensa reforma legislativa nos campos do Direito Processual e do Direito Registrário, que, por sua vez, podem influenciar a mudança da cultura jurídica nas Faculdades de Direito e, portanto, na formação dos operadores de Direito. A mudança, entretanto, é difícil porque afeta grupos de pressão extremamente poderosos e organizados. Atualmente, como a ordem jurídico-urbanística está construída, as ações coletivas não se confirmaram como um incentivo ao trabalho dos serviços legais inovadores, mas sim um óbice aos mesmos. Essa dificuldade apenas prejudica a população residente na área, que deve esperar o longo procedimento judicial, decorrente do próprio abandono do imóvel em questão, ou seja, o ônus da insegurança jurídica acaba recaindo sobre aqueles que buscam dar à propriedade a função social necessária após grande período de inércia dos proprietários. Fica uma reflexão baseada nas experiências com a ação de usucapião coletivo: Quando se constata que a maioria da população não tem acesso aos meio formais de aquisição da propriedade, verifica-se que a lei já não traz mais segurança jurídica, pois exclui mais do que regula. Se a grande maioria fica à margem do ordenamento, não é hora de rever os ordenamentos e as concepções de propriedade e do direito processual, para que as conquistas do campo constitucional não sejam apenas mera retórica desprovida de efeitos? REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Trotta, 2002, 254p. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência Jurídica e realidade social: apontamentos para uma tipologia dos serviços legais In Discutindo Assessoria Popular. Coleção Seminários, nº 15. Rio de Janeiro: FASE, 1991.
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Retomando a Problemática da Integração das Favelas à Cidade: Após 20 Anos da “Constituição Cidadã”, o Estado de Direito Chegou às Favelas? ALEX FERREIRA MAGALHÃES Mestre em Direito.
1. INTRODUÇÃO No presente artigo, deseja-se discutir as implicações jurídicas dos negócios de compra e venda de imóveis realizados nas favelas. Estes negócios, de um lado, revelam a sensibilidade jurídica dos moradores da favela e, de outro, a ordem jurídicourbanística interna à favela, que vai sendo constituída por força do conjunto das relações sociais aí configuradas. De outro lado, tais negócios podem e devem ser examinados quanto às implicações que produzem à luz da própria ordem jurídica oficial vigente, a fim de que se esclareçam as conexões existentes entre essas duas ordens, bem como se registrem os direitos já adquiridos pelos moradores das favelas, a despeito da pendência de regularização urbanística e fundiária de suas moradias. De diversas formas, esses moradores configuram-se como sujeitos de direitos que, ao menos em tese, são plenamente judiciáveis, embora, de fato, observemos uma série de processos nos quais essa condição adquire peso bastante relativo no deslinde dos conflitos que emergem nas relações cotidianas, da qual aquela ora estudada constitui um destacado exemplo. O debate trazido à tona no presente artigo insere-se no contexto de uma pesquisa mais ampla, que ora realizamos, sobre o Direito à Cidade por parte dos moradores de favelas e sobre a vigência (ou não) do Estado Democrático de Direito nas favelas cariocas, após 20 anos da edição da Carta de 1988, que visou desconstituir e superar o regime autoritário então existente. O debate sobre as chamadas “zonas cinzentas”, isto é, regiões onde não vigoram, ou são relativizadas, as instituições do Estado de Direito, é uma problemática classicamente presente nos estudos jus-políticos das sociedades latino-americanas. Tal debate não perdeu a sua atualidade mesmo no
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contexto pós-Constituição de 1988, no qual não desapareceram – e talvez até mesmo tenham se acentuado – os processos de segregação sócio-espacial consubstanciados nas favelas, tal como evidenciou uma série de reportagens, realizada pelo jornal carioca O Globo em 2007, intitulada “Os brasileiros que ainda vivem na ditadura”. Propomo-nos re-examinar tal problemática, basicamente a partir da análise de conteúdo de um conjunto de entrevistas realizadas, ao longo de 2008, com moradores de uma favela, situada na cidade do Rio de Janeiro, que passou por intervenções públicas no sentido de promover a sua urbanização e regularização urbanística, a fim de integrá-la à cidade. Em tais entrevistas se procurou perceber as normas que de fato estão operando no espaço da favela, no tocante às relações de vizinhança e a apropriação, uso e ocupação do solo, bem como qual a fonte dessa normatividade – se estatal, “comunitária”, ou uma combinação de ambas – além, por fim, da natureza dessas normas, forjando uma interpretação sobre o significado social da regulação do espaço que nelas se materializa. Os argumentos e conclusões aqui apresentados são parciais, tendo em vista a etapa inicial em que se encontra a pesquisa e as limitações à extensão do presente artigo, o que demandou um recorte a mais em nosso objeto de estudo. 2. A COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS NO CASO ESTUDADO 2.1. O que se vende e como se paga Conforme informaram os depoimentos, atualmente é muito escasso o acesso a imóveis na favela estudada por meio de invasão, predominando o acesso pelos mecanismos de mercado, notadamente a compra ou a locação. Um dos depoimentos colhidos apontou que a aquisição da sua casa se deu mediante doação, que foi feita visto que a entrevistada e sua família foram vítimas de incêndio que destruiu completamente a sua casa, ficando em situação de virtual indigência. Em vista disso, um dos moradores doou a sua própria laje para que a entrevistada reconstruísse ali a sua casa, enquanto os demais vizinhos fizeram doações de material de construção, móveis e roupas. Trata-se de uma situação a primeira vista incomum, verificada normalmente entre familiares, mas que pode guardar certas analogias com outras, que relataremos adiante. Com relação ao processo de compra e venda de imóveis, percebe-se, inicialmente, que são objeto dessa forma de acesso à moradia desde lotes vazios até terrenos edificados, incluindo-se aí a venda de lajes, prática já identificada há algumas décadas, no início do processo de verticalização das favelas. O processo de verticalização encontra-se amplamente desenvolvido no caso estudado, no qual se observa que 82,6% dos lotes possuem mais do que 1 pavimento, e que 35,75% possuem
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3 pavimentos, sendo perceptível a tendência de que o gabarito de 4 andares ocupe uma faixa relevante de casos, dentro de alguns anos (PREFEITURA, 2006). De outro lado, não somente lotes edificados em alvenaria são objeto de troca, mas também imóveis com barracos de madeira, ou, ainda, construções precárias, adquirem valor de troca e são efetivamente vendidos, a exemplo de um dos entrevistados, que informou que, quando adquiriu sua casa, por compra, a mesma era desprovida de teto. Outro aspecto do processo de compra e venda diz respeito ao pagamento do preço, no qual se verifica amplo recurso ao pagamento parcelado e sem incidência de juros e/ou correção monetária das prestações. Em geral, verificou-se que o comprador lança mão de verbas salariais extraordinárias a fim de realizar a compra do imóvel – indenização rescisória, férias, 13º salário, além do próprio FGTS, instituído para essa finalidade. No entanto, face às normas que regem a utilização do FGTS, que impedem a sua utilização para aquisição de imóveis que não estejam devidamente matriculados e registrados no Cartório Imobiliário, verifica-se o recurso ao “acordo de demissão” a fim de liberar os recursos do Fundo. Em 100% dos depoimentos colhidos, o próprio vendedor operou como concedente do crédito, a exemplo do que também ocorre na venda de materiais de construção, uma vez que os compradores em geral não conseguem acesso ao crédito bancário. Houve mais de um relato em que o morador até tentou obter financiamento da Caixa Econômica Federal, porém sem êxito uma vez que não possuía bens suficientes ou hábeis a fornecer garantia do pagamento – por exemplo, o morador possuía imóvel de valor superior ao capital desejado, porém o mesmo não se encontrava sequer matriculado no Cartório Imobiliário. 2.2. A interveniência da Associação de Moradores Um aspecto de suma importância, e que se pode indagar se não integraria o Direito Consuetudinário1 da favela estudada, consiste no fato de que a compra e venda de imóveis deve ser intermediada pela Associação de Moradores, isto é, a compra só seria válida e reconhecida publicamente se realizada perante o representante da Associação, via de regra o seu próprio Presidente. Segundo os depoimentos colhidos, tal norma vale para todo e qualquer imóvel vendido na área da favela, “até mesmo para o mais modesto barraquinho”, e constitui um procedimento reconhecido por todos e que oferece a segurança consistente na legitimação do adquirente em face 1
O mesmo que Direito Costumeiro. Na doutrina, define-se como o conjunto de regras que se estabeleceram pelo costume ou pela tradição. Para que o costume seja admitido como tal, a teoria jurídica considera indispensável que se tenha fundado em uso geral e prolongado, havendo a presunção de que o consenso geral o aprovou. Assim, constituem requisitos para seu reconhecimento (a) consistirem em fatos repetidos, de modo uniforme, por longo tempo; (b) a sua prática ser generalizada e pública; (c) serem fatos lícitos e não contrários à lei ou à ordem pública. Cumpridos esses requisitos, o costume se considera fonte formal do Direito. No caso estudado, como se trata de situação não cogitada na lei, dir-se-ia que se trata de um costume praeter legem. Cf. verbete respectivo in SILVA (2000, p. 270).
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de todos os moradores atuais e futuros daquela favela. Tratar-se-ia, pois, de um ato que, à luz dos costumes locais, confere eficácia erga omnes à compra do imóvel. Para esse fim, a Associação criou e utiliza um documento padrão, denominado Termo de Transferência de Benfeitoria, do qual consta o seguinte: declaração da venda; identificação das partes; endereço, medidas e nº de cômodos do imóvel vendido; preço e condições de pagamento; data do negócio; assinatura das partes, seus cônjuges, testemunhas e, aspecto indispensável, do próprio Presidente da Associação. Ou seja, trata-se de uma compra e venda feita por instrumento particular, porém com uma espécie de interveniência obrigatória de um terceiro, que lavra e subscreve o respectivo instrumento. A atuação da Associação guarda analogia tanto com a função do Notário, pois redige o contrato, quanto com a função do Registrador, uma vez que a Associação anota essa venda no arquivo por ela mantido, com base no qual se pode saber quem, para a Associação, é o “proprietário” de cada imóvel da favela. À luz da legislação em vigor, tal interveniência, conquanto não seja vedada ou vista como ilícita, não seria de forma alguma obrigatória, uma vez que a Associação não é formalmente investida em qualquer função pública, muito embora, de fato, opere como uma espécie de “governo da favela”, face às funções que o próprio Estado a ela delega, o que constitui uma das múltiplas ambiguidades que marcam esses territórios. Além disso, uma vez que o vendedor não é proprietário do imóvel, este sequer dependeria de instrumento público para transferir os direitos que possui sobre o mesmo, tal como ocorre na lavratura de escritura pública2. Isto somente ocorreria caso o imóvel estivesse matriculado no Registro Imobiliário, bem como seu valor fosse igual ou superior a 30 vezes o maior salário mínimo vigente no país3, conforme dispõe o art. 108 do Código Civil. A despeito de todas essas considerações, num caso concreto relatado nas entrevistas, o Presidente da Associação teria afirmado categoricamente à entrevistada que, sem a sua assinatura, o documento de compra do imóvel não teria nenhum valor, o que, usando as categorias jurídicas, equivaleria a afirmar a nulidade do título aquisitivo do comprador. Dessa forma, fica evidenciada a particularidade das instituições, e da sensibilidade jurídica, desenvolvidas na favela estudada. Abrimos aqui um pequeno parêntesis, a fim de justificar as aspas que envolvem a palavra proprietário no parágrafo anterior, parêntesis que optamos por inserir no 2
Em virtude da ausência de propriedade, as vendas de imóveis em favelas, no rigor da técnica jurídica, constituiriam contratos de Cessão de Posse, para os quais a lei não exige forma especial, o que significa que são válidos até mesmo se celebrados verbalmente.
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Segundo informações colhidas na rede mundial de computadores, o maior salário mínimo vigente no país é o do estado do Paraná, no valor de R$ 548,00. Com base nisso pode-se afirmar que, mesmo que ocorra a regularização fundiária, com a abertura de matrícula no RGI para todos os imóveis situados em determinada favela, a venda de boa parte dos imóveis aí existentes poderá continuar a ser feita sem necessidade de escritura pública. Isto porque a lei civil só a exige para imóveis vendidos a valores superiores à quantia acima especificada, que corresponderia, atualmente, ao montante de R$ 16.440,00.
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texto, e não em notas, dada a sua relevância para nossa argumentação. Num olhar, digamos, externo ao discurso dos envolvidos – por exemplo, à luz da legislação em vigor – aqueles que a Associação reputa proprietários seriam, em verdade, possuidores dos imóveis, uma vez que, no caso estudado, a propriedade cabe indiscutivelmente à União, e dado que nenhum dos moradores adquiriu seu lote em face dela, nenhum deles poderia transmitir um direito que não possui. No entanto, segundo esse mesmo olhar, seria possível afirmar que os moradores agem como se proprietários fossem, isto é, exercem posse com animus tenendi4, quiçá com animus domini5, o que, para aquela coletividade, é suficiente para permitir que a pessoa seja reconhecida como proprietária. Por fim, pode-se afirmar, com base nos depoimentos, que os moradores da favela estudada têm consciência de que aquilo que eles consideram proprietário, para sua economia interna, não é a mesma coisa que o Estado, ou aqueles que não moram em favela, consideram como tal. Vários depoimentos registraram com clareza a percepção de que existem critérios diferenciados para cada um dos casos, isto é, de que há regras, instituições, procedimentos e obrigações que são vigentes apenas fora da favela, não dentro, e vice-versa. Ou seja, é clara a percepção da segmentação, ou ausência de integração, entre os espaços interno e externo à favela, não nos parecendo passar despercebido aos moradores do local a existência de uma dualidade de conceitos de propriedade. Além daquelas analogias entre instituições oficiais do Estado e comunitárias da favela acima indicadas, no caso estudado há mais uma analogia relevante a ser assinalada: à semelhança dos Registradores, que devem observar o chamado princípio da continuidade registraria, a Associação demonstra ter o idêntico cuidado de somente aceitar e reconhecer uma venda caso seja realizada por aquela pessoa que, nos seus registros, consta como “dono” do imóvel, isto é, aquela pessoa que tenha previamente adquirido tal imóvel. Percebemos do depoimento do Presidente da Associação que ele é bastante rigoroso nesse aspecto, já tendo se recusado a reconhecer tentativas de venda em descumprimento dessa norma. Os depoimentos colhidos ainda não permitem fornecer uma explicação segura sobre que fatores teriam determinado essa similitude de procedimentos, que a princípio surpreende o pesquisador na medida em que não consta que os Presidentes da Associação tenham qualquer formação em Direito Registrário. Uma hipótese mais rudimentar diria que tal semelhança se deve ao fato de ser uma espécie de necessidade lógica e/ou uma necessidade operacional, isto é, seria uma norma que decorre do bom senso na administração dos negócios imobiliários, 4
Vontade ou intenção de ter e de possuir um bem, agindo em relação a ele do mesmo modo que o legítimo dono procederia, como se fosse o próprio dono. Também designada por affectio tenendi (SILVA, 2000).
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Vontade ou intenção de ser dono; intenção de ter e de possuir um bem como dono (SILVA, 2000).
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sem o qual esta perderia a sua racionalidade. Uma outra hipótese, que a princípio nos parece seja mais digna de ser investigada com seriedade e aprimorada, diria que tal fato constituiria um indicador da comunicação discreta e imperceptível, que estaria em curso há algum tempo (isto é, não haveria nada de “novo” nisso), entre os costumes vigentes na favela e os rituais e procedimentos legais definidos pelo Estado. Em outras palavras, a despeito dos inegáveis processos de segregação sócio-espacial, tal fator não é impeditivo de que haja certo intercâmbio e/ou apropriação de instituições oficiais do Estado por parte das coletividades favelizadas. Estas, à medida que as suas organizações internas se institucionalizam, tenderiam a começar a absorver, de maneira parcial e fragmentária, algumas técnicas e instrumentos de administração da vida coletiva desenvolvidos no núcleo da sociedade nacional, plenamente vigentes em suas regiões não segregadas. O próprio nomen conferido ao documento lavrado pela Associação – Termo de Transferência de Benfeitoria – revela algum nível de incorporação da técnica jurídica ao se referir à benfeitoria, e não ao solo, como objeto da venda, pois o solo não é de propriedade do vendedor, logo, este não poderia alienálo, ao contrário da construção. Tal hipótese implica em afirmar que as favelas estariam mais integradas à vida social do que aparentariam á primeira vista, com o que se reitera a crítica à interpretação dualista da sociedade, critica que tem na obra de Francisco de Oliveira (OLIVEIRA, 1988) uma de suas clássicas sínteses e referência teórica obrigatória. Implica, ainda, em afirmar uma certa via, ou estratégia (talvez não rigorosamente consciente), de exercício da cidadania pelos segmentos sociais favelizados, que através da apropriação fragmentária das instituições do Estado buscaria legitimar, interna e externamente, as suas próprias instituições. 2.3. O preço da intermediação Outro aspecto relevante, da intermediação da Associação na compra e venda de imóveis no caso estudado, consiste no fato de que essa intermediação não é gratuita, mas há um preço a ser suportado pelo comprador, de maneira também análoga aos custos de lavratura de escritura e de registro, nos casos compra de imóveis matriculados no Cartório Imobiliário. No Termo de Transferência de Benfeitoria figura uma cláusula segundo a qual, em qualquer venda de imóvel situado na favela, o vendedor deverá arcar com o pagamento de um percentual sobre o valor de venda, em favor da Associação, a título de doação. Esse ônus, no entanto, é sistematicamente transferido ao comprador, tal como ocorre com os emolumentos cartorários e tributos incidentes sobre a venda de imóveis regularizados. Na mesma cláusula, aparece a menção de que tal cobrança se fundamenta nos “Direitos do Costume”. Ressalte-se que tal cláusula figura abaixo, e após, a assinatura das partes, o que seria algo inadequado segundo as técnicas usuais de redação contratual.
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O documento padrão utilizado pela Associação sugere que o percentual cobrado não é fixo, igual para todos os casos, mas pode variar. Isto porque, na cláusula em questão, figura um campo em branco no contrato-modelo, que deve ser preenchido com o percentual efetivamente cobrado em cada caso concreto, o que provavelmente é feito pelo Presidente da Associação. Tal variação é corroborada pelas entrevistas realizadas, que se referem a pagamentos entre 2 e 5%, feitos nos seus respectivos casos. Pelas informações disponíveis, a variação no percentual se deve a diversas circunstâncias, tais como valor do imóvel, metragem do mesmo (alguns entrevistados relataram que um funcionário da Associação fez medição do imóvel antes da venda ser efetivada) ou até mesmo o poder de barganha das partes. Esta última variável foi claramente explicitada no seguinte depoimento, que, por sinal, permite que sejam levantadas diversas questões, a título de exercício analítico: “Eu acho um absurdo você pagar um preço de cartório para botar uma casa no seu nome. Do valor da casa você paga 10%. Eu comprei minha casa por R$ 6 mil e falei para ele que foi R$ 4 mil para eu poder pagar R$ 400,00. Ele (se refere a alguém da Associação, que faz as transferências dos imóveis, possivelmente o próprio Presidente) vai lá no computador, muda o nome do dono, põe o seu nome, você assina, o dono assina e pronto, aí você paga. Ele falou: “tem que pagar R$ 200,00”. Eu falei que não tinha esse dinheiro, de onde que eu vou tirar R$ 200,00? Ele perguntou “quanto você pode me dar?” Eu falei “R$ 50,00”. Ele disse “não, então R$ 100,00”. Aí eu perguntei se não dava para passar aquele documento lá em casa, porque só ia gastar uma folha. Ele disse que não era pela folha, mas que tinha que constar na Prefeitura que é outra pessoa que mora. Eu falei “todas as casas têm registro na Prefeitura?” Ele disse “todas não, mas a maioria tem; você não quer a sua casa legalizada?”. Eu falei “quero” e ele “então?” Eu falei “eu vou ver se eu posso pagar R$ 200,00. Eu falei com meu marido e ele disse para pagar os R$ 100,00 que ele não queria confusão. Eu paguei R$ 50,00 no dia que ele passou o papel e deixei os outros R$ 50,00 para pagar no outro mês, porque nem eu nem ninguém tem condição de pagar tudo de uma vez. Ele não assinou o papel e falou “só assino quando me pagar os outros R$ 50,00”. Ele só assinou depois que eu paguei os outros R$ 50,00. Ele me deu o papel, mas falou que sem a assinatura dele aquele papel não valia nada. Quando eu estava com os outros R$ 50,00 eu fui lá, paguei e ele assinou. Meu marido falou “esse dinheiro não vai nem para a Associação, não vai nem para ele comprar lâmpada para colocar nos postes, porque isso é serviço da Prefeitura”. Se eles vão receber algum dinheiro não custava nada eles comprarem as lâmpadas e falarem com o pessoal que trabalha na Associação para eles mesmos trocarem, porque eles têm aquelas escadas e não precisam ir na Prefeitura.”
Observe-se, primeiramente, que os moradores lançam mão de diversos recursos a fim de minimizar os custos da transação. No excerto acima, a entrevistada não somente declara um valor de compra menor do que aquele efetivamente avençado com o vendedor – expediente que também foi noticiado por outros entrevistados, sendo o valor declarado, em média, 33% menor do que o real – como também força a Associação a aceitar redução e parcelamento do preço da intermediação. Além desses instrumentos de redução dos custos, um entrevistado declarou não ter realizado a compra com a intermediação da Associação, realizando-a diretamente com o
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vendedor, sem submetê-la ao processo habitual de legitimação pela Associação, na qual seu imóvel ainda figura em nome do vendedor, conforme transcrição abaixo: “Quando eu comprei uma casa lá na Rua 50, eu paguei R$15.000. A moça lá da Associação queria 500 contos para passar para o meu nome, aí eu não passei, ué (os outros entrevistados riem). Eu ainda estou com o documento do rapaz que me vendeu, eu peguei o documento e depois eu vou lá no cartório, vou fazer um... entendeu, bonitinho lá em casa no computador e vou levar no cartório para mim autenticar isso. Pô, pagar 500 contos...” (Pergunto) Então você não registrou na Associação? “Está no nome do outro cara, ele registrou.” (Pergunto) E o cara já foi embora? “Ele ainda mora lá no morro. Está por perto. Qualquer hora eu vou chamar ele para a gente trocar uma pedra, aí nós vamos lá e...” (Pergunto) E não te dá problema não ter feito isso na Associação? Não traz risco? “Até agora não deu nada.”
Os depoimentos acima deixam nítida a racionalidade do homo aeconomicus, tal como já amplamente verificado nos estudos sobre a evasão tributária, que se vê sobremaneira alimentada em função da situação de baixa renda, amplamente presente no caso estudado, uma vez que 63,08% dos titulares de imóveis declararam perceber renda mensal igual ou inferior a 3 salários mínimos, sendo que é expressivo o percentual na faixa 0-1 SM (27%). (PREFEITURA, 2006) De outro lado, pode-se verificar que se a legitimidade da intermediação da Associação não é questionada em princípio, pode passar a ser em função de circunstâncias como o seu custo, ou mesmo os serviços prestados em retorno aos recursos arrecadados coletivamente. A relação entre os moradores da favela e a Associação, nesse caso, assume forte analogia com o modo como os contribuintes se relacionam com o Estado-Fisco. Com relação a esse ponto, chama atenção a maneira como o representante da Associação justifica a cobrança da “taxa” de transferência do imóvel. O argumento aparenta conter certa ambiguidade, podendo tanto dar a entender que, mediante tal pagamento, a Associação se encarregará de promover a regularização do imóvel junto à Prefeitura, como que, diversamente, constitui condição necessária a uma futura regularização a ser feita pela Prefeitura, ou ainda que, cumprido o procedimento da Associação a propriedade estará efetivamente regularizada. Em qualquer dos casos, no entanto, abre-se mão de justificar a cobrança em função não somente dos serviços, como do reconhecimento coletivo, que somente a validação da compra junto a Associação pode oferecer. Bem ou mal, a Associação tem a oferecer aos moradores da favela, um grau de segurança da posse que o próprio Estado é incapaz de oferecer. Goste-se ou não, a Associação detém um poder e legitimidade dentro da favela, que somente é contrastado pelo poder dos grupos armados nela
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existentes, e os seus registros e seu ativo envolvimento certamente serão indispensáveis aos trabalhos de regularização realizados pelo Poder Público. Tais fatores, em tese suficientes a justificar a cobrança, não são acionados no exemplo acima reproduzido, o que constitui elemento importante na reconstrução da maneira como moradores e lideranças da favela representam a instituição Associação de Moradores e seu papel no seio dessa coletividade. O fato de alguns poucos moradores, segundo percebemos na pesquisa realizada até aqui, não fazerem a venda do imóvel perante a Associação mostra como pode haver informalidade mesmo no interior de um sistema informal. Seria o que, a grosso modo, provisoriamente e à falta de categorias mais consistentes e satisfatórias, podemos chamar de informalidade dentro da informalidade. No caso estudado, salvo poucas exceções, toda a massa de transações envolvendo imóveis se desenrola sem que se cogite submetê-las aos rituais de escritura e registro criados pelo Estado, até porque esta última seria impossível na ausência de regularização fundiária. De fato, vigora o processo de chancela, reconhecimento, validação ou legitimação perante a Associação de Moradores, cuja intermediação não pode deixar de ser vista como a formalidade instituída pelos costumes estabelecidos naquela parcela da sociedade, válida e exigível especifica e unicamente para os imóveis situados em sua “jurisdição”. Ora, nos depoimentos acima reproduzidos, observamos que mesmo esta formalidade, de origem interna à favela, é evitada, driblada ou minimizada por alguns agentes que operam nesse universo, que continuam a agir em busca de formas livres de quaisquer intermediações, mais simples e menos onerosas, a fim de realizar os negócios de seu interesse. Trata-se de formalidade não estabelecida pelo Estado, mas sim pelos usos e costumes daquele próprio microcosmo, porém, mesmo essas, quando necessário, são burladas pelos que atuam nesse microcosmo. Assim, a informalidade dentro da informalidade constituiria um processo, de natureza socioeconômica, através do qual os agentes desenvolveriam sucessivos meios de se furtarem aos controles burocráticos e mecanismos de formalização estabelecidos, mesmo aqueles supostamente mais simples, mais próximos e mais legítimos. Ela consistiria, assim, numa eterna capacidade de se constituírem procedimentos oficiosos, subterrâneos, paralelos e ocultos aos mecanismos institucionalizados para controlar a vida social, mesmo que estes nada tenham a ver com o Estado. Ou seja, a informalidade não se reduz estritamente à fuga dos controles e formalidades de origem estatal, não sendo um processo relacionado à presença e ação da burocracia estatal, mas parece ser relativamente indiferente a matriz dessas formalidades. Também merece atenção um outro nuance presente no relato da discussão entre Associação e um morador em torno do quantum da taxa de transferência do imóvel. De um lado, a Associação teria aceitado, de imediato e sem contestação, a barganha em torno do preço a ser cobrado por sua intermediação, assumindo tacitamente que
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se tratava de um valor barganhável, não sujeito a critérios estritamente objetivos. De outro, a posição conciliadora do marido da entrevistada, que “põe panos quentes” no conflito de interesses com a Associação, assumindo que o seu recrudescimento seria o mal maior a ser evitado, aceitando pagar uma quantia que, mesmo parecendo excessiva, poria de imediato um fim ao caso. Os dois lados mostram-se dispostos a fazer concessões, até certo limite, revelando um modo de administração do conflito que se, de um lado, não cede inteiramente à vontade da outra parte, de outro, não trata seus próprios interesses como direitos irrenunciáveis e indisponíveis. Teríamos, talvez, uma postura com certo grau de flexibilidade e de conformismo, que possivelmente se baseia na percepção realista da virtual inviabilidade de exigência estrita do que talvez constituíssem seus direitos, até porque estes não seriam nítidos o suficiente para conferir força e poder de convencimento à sua arguição. O que dá a Associação o direito de cobrar aquele valor? O que dá ao morador o direito de contestá-lo se ele seria cobrado de todos os que estão na mesma situação? Na medida em que a resposta a essas questões não emerge com clareza, a esfera do direito fica embaçada, tanto que nenhuma das partes verbaliza algo nesse sentido, sendo fatalmente remetidas ao plano da negociação, cujo desfecho seria bastante incerto e que poderia mesmo gerar tratamentos diferenciados a situações assemelhadas. Essa possibilidade, por sua vez, pode comprometer a legitimidade dos procedimentos geridos pela Associação perante o conjunto dos moradores. 2.4. A insegurança do comprador em seus direitos As entrevistas realizadas revelaram, ainda, a ocorrência de um incidente consistente na desistência de uma venda já concluída, por parte do vendedor, de maneira repentina e imotivada. Tal caso foi narrado da seguinte forma pela depoente: “Passei dois anos numa casa; depois passei para outra que a gente pretendia comprar, até pagou a entrada e depois o moço não quis, quis desfazer o negócio. Ele falou que não queria mais vender, nós não podíamos ficar lá. Aí eu passei para a minha atual. Ele ficou insistindo para a gente comprar, que a casa era boa... Meu marido falou que não ia ter dinheiro para pagar na hora e ele dizia que esperava ele ir pagando aos poucos, dava uma entrada e podia ir morar na casa. Meu marido deu R$ 2 mil a ele, a casa era R$ 6 mil, para ficar pagando o restante aos poucos. Quando foi em dezembro, meu marido ia pagar mais R$ 1 mil a ele com o 13º, aí ele falou que não queria mais. A gente só tinha falado de boca, ninguém assinou papel nem nada, aí pronto, o gato comeu... Aí a parte que a gente pagou ele devolveu, e a gente ficou pagando aluguel.” (Pergunto) Porque vocês acham que ele desistiu? “Não sei. Depois a irmã dele ficou com a casa, não sei se foi porque a irmã pediu a ele a casa, ela andava comprando casa. Na realidade ele só falou que não queria. Daí a gente ficou morando e dali a uns 6 meses ele falou que queria a casa e que me dava 15 dias para desocupar. Eu falei que só saía quando arrumasse uma outra casa, que não tinha 15 dias,
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não tinha 1 mês, não tinha nada, o meu aluguel está em dia, o meu mês está pago e você não tem o direito de fazer isso. Meu marido, que não gosta de arrumar confusão com ninguém, chegou a dizer “deixa”, e eu disse “deixa nada, o senhor nem volte daqui a 15 dias; quando eu desocupar a casa eu levo a chave para o senhor”. E ele não voltou. Eu fiquei igual a uma maluca procurando casa. Conheci todos os becos do Parque Royal. Uma amiga minha que me falou dessa casa onde estou morando agora. Ficamos 3 anos e alguns meses pagando aluguel e depois que fomos comprar.” (Pergunto) Nessa tentativa de compra, não chegaram a pensar em fazer um contrato escrito? “Não, porque ele já era conhecido do meu marido há muitos anos, desde 1993, e meu marido confiou, achou que não ia acontecer nada. Ele devolveu o dinheiro, mas ficamos muito chateados com ele. Na hora ficamos muito chateados, mas depois passou.”
Do ângulo da legislação em vigor, o casal comprador da casa não poderia ser compelido a desfazer o negócio, salvo se essa possibilidade tivesse sido expressamente acordada antes, uma vez que o comprador já havia iniciado o pagamento e, inclusive, recebido o imóvel objeto da compra, ou seja, tratava-se de ato jurídico perfeito, encontrando-se o contrato em franca etapa de cumprimento. O fato de ter sido ajustado verbalmente em nada o prejudica, ao menos na linha de princípio, uma vez que a lei admite, nesse e em vários outros casos, o contrato verbal.6 Ainda dessa perspectiva, seria lícito que, além da devolução do que pagou, monetariamente corrigido, exigisse do vendedor uma indenização a título de perdas e danos, já que tratava-se de uma ruptura sem motivo que a lei considere justo, bem como tal ruptura trouxe ao comprador os ônus de arcar com aluguéis, procurar outro imóvel e fazer sua mudança, o que não ocorreria se o negócio fosse mantido. Ao invés disso, os compradores, bem ou mal, aceitaram o desfazimento exigido pelo vendedor de maneira arbitrária. Não lhes é vedado por lei assim agirem, uma vez que qualquer contrato bilateral entre particulares pode ser revogado por mútuo acordo dos contratantes, pelo que o ato de revogação, nos termos em que foi combinado, também pode ser classificado, à luz da lei civil, como um ato válido. No entanto, o aspecto relevante a ser aqui ressaltado é o de que, à semelhança do conflito em torno da “taxa” cobrada pela Associação – por sinal, nos dois casos trata-se do mesmo casal – a dimensão jurídica do caso – isto é, os direitos que porventura pudessem ter, naquela situação – não constitui o aspecto determinante das decisões tomadas pelos interessados, pouco ou nada interferindo na administração que fizeram do conflito de interesses. Em suma, trata-se de uma dimensão praticamente alheia à maneira como as partes conduzem o caso. O fato de tratar-se de um contrato verbal, a julgar pelas palavras expressas da entrevistada, levou as partes a crer que o mesmo poderia ser desfeito a qualquer momento. Porém, esta não nos parece ser a única variável que determinou essa 6
Por exemplo, no caso do contrato de locação, quer de bens móveis quer de imóveis, prevalece a mesma regra.
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percepção. Levando-se em consideração vários elementos dispersos no conjunto dos depoimentos colhidos, provavelmente também contribuiu para essa percepção o fato de tratar-se de uma compra de imóvel dentro da favela, onde, segundo vários dentre os entrevistados, não vigoram as leis que valem fora da favela. Tal situação se veria, ainda, agravada pelo fato de a compra ter sido feita a um conhecido de longa data dos compradores, o que conduz a que as relações pessoais entre as partes se imiscuam na relação de compra e venda, pondo por terra uma das máximas que exprimem a racionalidade da economia de mercado, segundo a qual “amigos são amigos, negócios ficam à parte”. Se estiver correta a percepção dos entrevistados que aponta para a clivagem de regras do asfalto, ou da cidade, e da favela, o comportamento desse casal, diante de idêntica situação, provavelmente seria diverso caso tivessem atravessado a avenida que passa em frente à favela em que residem, a fim de adquirir imóvel nos conjuntos habitacionais existentes no entorno da favela. Trata-se de uma instigante hipótese, ainda a ser devidamente tratada na pesquisa que ora desenvolvemos. 3. CONCLUSÃO Os dados revelados por nossa pesquisa empírica parecem reforçar a tese de que as ordens jurídicas estatal e favelar se encontram em um contínuo e conflituoso processo de diálogo, havendo diversas formas em que uma é condicionada pela outra, ou em que uma se constitui recorrendo à incorporação de elementos originários da outra. Vemos nesse processo um capítulo dos conflitos sociais mais amplos, próprios de sociedades capitalistas periféricas como a brasileira, isto é, tratar dessas ordens jurídicas constitui nada mais do que um ângulo para tratar de como se constitui a ordem social como um todo. Não estamos, pois, diante de duas ordens estanques, isoladas entre si, o que representaria uma perspectiva dualista a respeito do objeto estudado, perspectiva que refutamos em nossas referências teórico-metodológicas. O fato de recusar-se esse dualismo metodológico não se confunde com a negativa do reconhecimento da situação de subordinação à qual as coletividades favelizadas encontram-se submetidas, posto que a comunicação e os fluxos existentes entre ambas essas ordens é profundamente desigual. Talvez signifique, diversamente, o abandono da noção de exclusão como ferramenta explicativa dos processos sob análise – o que deliberadamente ocorreu no presente trabalho – uma vez que nossa interpretação caminha na perspectiva da integração subordinada, que nos parece mais acertada e fértil ao trabalho analítico. Também significa que recusamos uma perspectiva moral na abordagem das duas ordens, que promove a associação intrínseca de virtudes positivas a uma delas e negativas a outra, ou vice-versa. O fato de falarmos de uma ordem jurídica interna à favela não significa que ela seja necessariamente melhor ou pior, mais ou menos democrática, do que a ordem legal oficial.
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Esse dualismo metodológico que criticamos parece comparecer nos trabalhos acadêmicos e jornalísticos que tratam do problema da não vigência de fato do Estado Legal, e/ou as ambiguidades do funcionamento do sistema legal, como um problema restrito às favelas e às outras regiões definidas costumeiramente como áreas cinzentas. Na verdade, este é um problema que diz respeito ao conjunto da cidade e ao Direito Urbanístico de maneira geral, que tem sido histórica e recorrentemente marcado por crônica inefetividade. Preferimos afirmar que o sistema legal, de maneira geral, apresenta graduações em sua efetividade ao longo do tempo e do espaço social como um todo, e em função de diversas circunstâncias, que não se reduzem de maneira alguma aos chamados “territórios de exceção”. Nossa hipótese é a de que a grande diferença que marca a ordem jurídica nos distintos espaços sociais seja de natureza ideológica e não empírica, isto é, seria extremamente difundida socialmente a imagem das favelas como regiões essencialmente anômicas, isto é, espaços “sem lei nem ordem”. Essa visão seria compartilhada em certa medida pelos próprios favelados, conforme demonstram as entrevistas aludidas neste trabalho. Em que pese o fato de que os próprios moradores das favelas fazem distinções rígidas entre as normas que valem dentro e fora da favela, o fato é que o espaço da favela parece ser amplamente regulado, bem como se observa a presença relevante de diversas instituições oficiais, de maneira surpreendente em alguns casos. É o que vemos no caso exemplar da absorção, pela Associação de Moradores, do princípio da continuidade registraria, que a nosso ver constituiria a ponta do iceberg de um processo de socialização das instituições oficiais, que vai discretamente introduzindo-as no senso comum e nos procedimentos mais comezinhos. Por mais que algumas dinâmicas sociais sejam efetivamente duais, tal aspecto não pode ser transportado acriticamente para o plano da teoria social, de forma a determinar a aceitação do dualismo metodológico, o que comprometeria os resultados analíticos. O que deve ser objeto de atenção do pesquisador é, em primeiro lugar, o fato de que as soluções de força, em alguns casos arbitrárias, ao arrepio dos direitos que o sistema legal oficialmente reconhece, constituem um componente presente e relevante nas relações sociais estudadas em nosso caso. Isto é, as relações jurídicas seriam marcadas por 3 distintas determinações: a) os usos e costumes locais, estabelecidos em processos de negociação; b) as apropriações do sistema legal estatal; c) as imposições e/ou soluções arbitrárias na solução de litígios, que exibem o aspecto de violência latente, presente nas relações sociais de maneira geral. Em segundo lugar, deve ser ressaltada a importância da análise e interpretação, à luz do Direito oficial vigente, das relações jurídicas travadas no âmbito das favelas. Trata-se, a nosso sentir, de um exercício estratégico, quer do ângulo teórico-jurídico, quer do ângulo das suas implicações sociopolíticas. Tal exercício muito pode contribuir
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para a afirmação da cidadania e da condição de sujeito de direito por parte das coletividades objeto de segregação sócio-espacial. Julgamos que, até o presente momento, tal exercício foi pouco realizado, aquém do que seria necessário, sendo esse mais um dos efeitos da barreira ideológica, de natureza dualista, a qual nos referimos anteriormente, que atira acriticamente a quase totalidade das relações e negócios jurídicos realizados entre pobres no terreno da extralegalidade, reproduzindo aquilo que Boaventura Santos (1980) já denominou de “ilegalidade existencial”. Esta seria, provavelmente, uma das grandes barreiras para que se possa configurar a almejada integração, que configuraria a vigência do Estado de Direito no espaço das favelas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Habitação; AGRAR. Regularização urbanística, administrativa e fundiária dos imóveis da área denominada Parque Royal – Ilha do Governador: relatório final. Rio de Janeiro: agosto / 2006. 55 p. OLIVEIRA, Francisco de. A economia brasileira: crítica à razão dualista. 6. ed. Petrópolis: Vozes/ Cebrap, 1988. SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. In: SOUTO, Cláudio; FALCÃO, Joaquim. Sociologia e Direito: textos básicos de Sociologia Jurídica. São Paulo: Pioneira, 1980. p. 109-117. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
2 A ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA E A FUNÇÃO SOCIAL DAS TERRAS PÚBLICAS
Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia: Fundamentos Jurídico-Urbanísticos, Aplicabilidade e Gestão Pós-Titulação, no Município de Osasco, São Paulo PATRYCK ARAÚJO CARVALHO* Arquiteto e Urbanista, Diretor de Regularização Fundiária do Município de Osasco.
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA COMO PARTE DA POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO URBANO O Município de Osasco, localizado na região metropolitana de São Paulo, teve, como a maioria das grandes cidades brasileiras, um processo de expansão urbana desigual e excludente, pautado pela precariedade e informalidade. Osasco foi um distrito da cidade de São Paulo até 1962, quando teve sua emancipação políticoadministrativa. É um município com uma superfície de 64,93 km2, inteiramente urbano, população de 701.120 habitantes (IBGE – posição de 2007), sendo a quinta maior densidade populacional do Estado de São Paulo. A cidade formou-se dentro do modelo de expansão periférica da cidade de São Paulo, abrigando uma parcela da população que teve como alternativa habitacional a aquisição de lotes em loteamentos populares, quase sempre à margem do mercado formal. Esse modelo foi definido por Nabil Bonduki como “auto-empreendimento da moradia popular, baseado no trinômio loteamento periférico, casa própria e autoconstrução”1. Osasco possui cerca de 170 assentamentos informais, implantados sobre áreas públicas municipais, identificados como “áreas livres”. Nesses assentamentos residem *
Rua Fradique Coutinho, 237 ap 09B – Pinheiros – São Paulo – SP – CEP 05416-010. Email: paca0803@yahoo.com.br. Tel: 11 9622-3828 ou 11 9641-6506.
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BONDUKI, Nabil G. Origens da habitação social no Brasil. Arquitetura moderna, Lei do Inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade: FAPESP, 1998.
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cerca de 120 mil pessoas, quase 20% da população total da cidade. Muitos desses assentamentos foram implantados em terrenos municipais que tinham outra destinação que não a habitacional. Sem contar os loteamentos informais e clandestinos que ocupam uma grande parcela da cidade. Estima-se que cerca de 60% do território apresentam algum tipo de desconformidade fundiária, aquém dos padrões urbanísticos mínimos ou desprovidos de regularidade jurídica. Tendo em vista esse quadro, a partir de 2005, a administração do município de Osasco elaborou uma Política Habitacional e de Desenvolvimento Urbano na qual a questão habitacional não se restringiu a produzir e financiar novas habitações. Estabeleceu a necessidade de coordenar e articular ações que melhorassem a qualidade dos assentamentos precários existentes. Neste sentido a regularização fundiária despontou como um dos principais programas habitacionais. O Programa de Regularização Fundiária do Município de Osasco partiu do pressuposto que a Regularização Fundiária é um processo de intervenção, geralmente pública, que envolve três ações complementares: – Físico-habitacional – melhoria das condições de habitabilidade nos assentamentos informais através da implantação de projetos de urbanização. – Social – garantia de participação democrática da população, buscando também a articulação com outros programas e políticas públicas destinados à inclusão social, cidadania, geração de emprego e renda. – Jurídica – aplicação das leis que asseguram a permanência da população nas áreas ocupadas, garantindo o direito constitucional à moradia. A REGULARIZAÇÃO DAS ÁREAS PÚBLICAS OCUPADAS PARA FINS HABITACIONAIS O principal objetivo da regularização é aplicar os instrumentos jurídicos previstos no Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/01 e na Medida Provisória 2.220/ 01 para garantir, aos moradores das áreas públicas ocupadas, a segurança jurídica da posse. Principalmente se considerarmos que as ocupações para fins de moradia em áreas públicas municipais representam quase 20% da população do Município. Os moradores de algumas dessas áreas públicas haviam recebido, em outros momentos, títulos precários de moradia, como por exemplo, permissão de uso a título precário. O Município de Osasco, compreendendo o poder-dever de regularizar as áreas públicas ocupadas, emanado da MP 2.220/01, especialmente no seu art. 6º, adiantouse ao pleito daqueles que moram em áreas públicas há décadas e outorgou por procedimento “ex officio” os devidos Termos de Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia.
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Esse procedimento foi precedido de critérios para seleção das áreas públicas que integrariam o que foi chamado de Fase I do Programa de Regularização. Dessa forma, foram inicialmente selecionados assentamentos que: – apresentassem ocupação consolidada, dotados de infra-estrutura mínima e serviços; – tivessem recebido algum tipo de intervenção ou urbanização pelo poder público; – não estivessem inseridos em áreas de proteção ambiental ou de risco; – fossem implantados em áreas públicas de loteamentos regulares. A metodologia de trabalho proposta está centrada em atividades que envolvem a gestão democrática e participação das comunidades em todas as etapas do processo de regularização fundiária, atendendo ao disposto pelo inciso II, do art. 2º do Estatuto da Cidade. Como instância de participação, foi criado o Fórum de Regularização que reúne cerca de 120 representantes das 33 áreas públicas inicialmente selecionadas para o Programa. Para orientar as atividades do Fórum de Regularização, foi elaborado material que redundou na publicação de “Roteiro para as áreas públicas ocupadas – Programa de Regularização da Prefeitura do Município de Osasco”. Esse material apresenta os chamados “10 passos fundamentais” para a regularização fundiária de áreas públicas ocupadas, a partir da aplicação dos instrumentos da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia (CUEM) e da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). A formulação dos “10 passos” aconteceu nas reuniões iniciais do Fórum de Regularização. A metodologia dos 10 passos serviu também para orientar o andamento dos trabalhos na rotina dos técnicos envolvidos2: – 1º passo: Identificação, mapeamento e seleção dos assentamentos informais. – 2º passo: Garantia de participação da população nos processos de regularização. – 3º passo: Projeto de lei autorizando a desafetação das áreas públicas e a aplicação dos instrumentos de regularização fundiária. – 4º passo: Projeto de lei delimitando as áreas ocupadas como zonas especiais de interesse social (zeis). – 5º passo: Realização do levantamento planialtimétrico cadastral (lepac). 2
Roteiro para as Áreas Públicas Ocupadas. Programa de Regularização da Prefeitura do Município de Osasco / Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano, 2006.
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– 6º passo: Realização do cadastro sócio-econômico e coleta de documentos pessoais que comprovem o tempo de posse. – 7º passo: Registro da área municipal nos Cartórios de Registro de Imóveis. – 8º passo: Definição dos instrumentos a serem aplicados em cada situação, elaboração da planta de concessão e dos memoriais dos lotes. – 9º passo: Assinatura do termo de concessão (contrato). – 10º passo: registro dos termos de concessão nos Cartórios de Registro de Imóveis. Integraram a Fase I do Programa de Regularização de Áreas Públicas, 33 assentamentos informais, totalizando cerca de 10.800 lotes. Das 33 áreas, 15 foram incluídas em Convênios com o Ministério das Cidades, no Programa de Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários / Ação de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável de Assentamentos Informais em Áreas Urbanas. A ESPECIALIZAÇÃO E DESAFETAÇÃO DAS ÁREAS PÚBLICAS OCUPADAS Outro pressuposto do Programa implantado foi a emissão de instrumentos de regularização registráveis nos Cartórios de Registro de Imóveis. Para tanto foi necessário buscar de início a especialização das áreas públicas. Não é pouco comum encontrar municípios nos quais o controle do patrimônio público encontra-se desatualizado. As áreas públicas oriundas de parcelamentos do solo registrados, raramente, possuem matrículas próprias ou quando possuem, essas são imprecisas ou não correspondem à realidade. A tarefa de proceder ao registro das áreas públicas junto aos Cartórios de Registro de Imóveis obedeceu aos princípios preconizados pela Lei de Registros Públicos, Lei Federal 6.015/73. O registro inicial deu-se conforme informações contidas nas plantas de loteamentos já depositadas junto aos Cartórios de Registros de Imóveis. Entretanto, invariavelmente, fez-se necessária a retificação desses registros uma vez que as informações tabulares eram distintas das informações obtidas por meio de levantamento topográfico. Posteriormente ao registro em Cartório, procedeu-se à desafetação das áreas públicas, com base em autorização feita por meio da Lei Municipal nº 4.059/2006. Nos termos do art. 5º da MP 2.220/01, é facultado ao Poder Público assegurar o direito à concessão especial em outro local, na hipótese de ocupação de imóvel classificado como bem de uso comum do povo. Entretanto, essa faculdade não se afigurava como passível de aplicação no Município de Osasco, uma vez que a quase
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totalidade das áreas públicas ocupadas está incluída na categoria dos bens de uso comum do povo. E, especialmente, se considerarmos que o Município quase não dispõe de vazios urbanos significativos, nos quais essa população pudesse ser reassentada. Ainda que houvesse disponibilidade de terras, não haveria recursos financeiros suficientes para os reassentamentos. A opção pela desafetação das áreas públicas visava atender, principalmente, aos moradores dessas áreas que não preenchessem o requisito da comprovação de cinco anos de posse ininterrupta até 30 de junho de 2001, para adquirir o direito subjetivo à Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia. Nesses casos, seria aplicado o instrumento da Concessão de Direito Real de Uso. Mesmo com a autorização legal para desafetação das áreas públicas municipais, só foi possível efetuar o registro dessas desafetações a partir de 31 de janeiro de 2007. Vale lembrar que o inciso VII da Constituição do Estado de São Paulo vedava expressamente a mudança de destinação das áreas definidas como “áreas verdes” e “institucionais” em planos de loteamentos. Esse era um dos principais entraves à regularização dos assentamentos informais implantados em áreas públicas dessa natureza. Entretanto, a Emenda Constitucional nº 23, de 31/01/2007, introduziu a possibilidade de exceção à vedação legal nos casos em que a alteração de destinação tivesse como finalidade a regularização fundiária de núcleos habitacionais de interesse social, destinados à população de baixa renda e cuja situação estivesse consolidada até dezembro de 2004. O DESENVOLVIMENTO DE UM SISTEMA PARA GERAÇÃO DE PLANTAS, MEMORIAIS E TÍTULOS Considerando os objetivos do Programa implantado e o número de lotes a serem regularizados, foi necessário o desenvolvimento de um sistema informatizado que possibilitasse a geração de plantas, memoriais descritivos e o controle da emissão dos títulos de concessão para fins de moradia. O sistema tem como objetivo automatizar o processo de modelagem e preparação das plantas, possibilitando a extração dos dados das poligonais, gerando assim, os memoriais descritivos e os croquis de localização de todos os lotes de maneira automática. A partir do tratamento das informações obtidas por meio do levantamento planialtimétrico cadastral é feita a individualização e geocodificação dos lotes e de todos os demais elementos que serão descritos. Após este tratamento inicial, a base é convertida em um formato que possibilita a migração para um ambiente de dados
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geográficos integrados, onde será realizada a extração das informações que geram os memoriais descritivos de qualquer parcelamento. O Cadastro Sócio-econômico também é modelado e integrado ao sistema, permitindo dessa forma, a geração dos termos de concessão na forma de títulos emitidos por meio do próprio Sistema. OS PRIMEIROS RESULTADOS DO PROGRAMA Garantidos os procedimentos de especialização e desafetação das áreas públicas, o Município providenciou a elaboração de chamada “planta de concessão”. Essa planta possibilita a identificação de todas as parcelas objeto de concessão. A planta de concessão reflete o cruzamento das informações geográficas com os dados sócioeconômicos e de documentação pessoal dos moradores. As informações obtidas na fase do cadastramento e coleta de documentos permitem que sejam definidos os instrumentos que serão aplicados em cada situação específica. A planta de concessão permite tanto ao Município, quanto aos Cartórios de Imóveis, o controle de disponibilidade da “gleba”. Com base na metodologia apresentada, foram emitidos, até julho de 2008, cerca de 3.000 títulos de regularização, incluindo Termos Administrativos de Concessão de Uso Especial, Termos Administrativos de Concessão de Direito Real de Uso ou Contratos de Compra e Venda. Desse total, 1.557 já obtiveram o devido registro junto aos Cartórios de Registro de Imóveis, sendo 995 títulos de concessão de uso. O Município cuidou do encaminhamento aos Cartórios, das plantas de concessão, acompanhadas dos respectivos memoriais descritivos e dos Termos Administrativos de Concessão de Uso. O Município requereu a gratuidade dos atos a serem praticados, tendo em vista a disposição do § 15 do art. 213 da Lei Federal nº 6.015/73: “Não são devidos custas ou emolumentos notariais ou de registro decorrentes de regularização fundiária de interesse social a cargo da administração pública”. AS QUESTÕES COLOCADAS EM DUVIDA PERANTE O JUÍZO CORREGEDOR Os Termos Administrativos de Concessão de Uso foram prenotados e registrados pelo 1º Oficial de Registro de Imóveis de Osasco. As áreas localizadas na Zona Norte do Município, sob a jurisdição do 2º Oficial de Registro de Imóveis de Osasco, não tiveram seus registros efetuados e foram objeto de suscitação de dúvida junto ao Juízo Corregedor Permanente. De forma simplificada, destacamos as questões que foram apontadas como impeditivas ao registro:
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1) O registro de Termos Administrativos de Concessão de Uso não se caracteriza como registro de regularização fundiária. “A ‘Regularização Fundiária’ é uma expressão que vem sendo utilizada costumeiramente em seu sentido sociológico. Regularização fundiária em seu sentido jurídico é um procedimento administrativo de legalização de parcelamentos do solo, normatizado pelos itens 152, 153, 154 e 155 do Capítulo XX das normas de Serviço da Corregedoria, cujos requisitos deverão ser observados. O fundamento de validade destes itens está na Lei 6.766/79. O trâmite da regularização, conforme item 154, ocorre no Juízo Corregedor Permanente, com a manifestação necessária do douto representante do Ministério Público e do Oficial Registrador competente, que deverão analisar todas as plantas e documentos necessários.”3 2) Há ilegalidade da exigência de “anuência prévia e expressa” da Prefeitura para fins de transferência das concessões. 3) Para o registro das concessões, o Município deve apresentar as informações do cadastro de IPTU de cada “lote”. 4) Necessidade de reconhecimento de firma das assinaturas constantes dos termos administrativos de concessão. O feito tramita sob o nº 2.055/2007 perante a 6a Vara Cível da Comarca de Osasco. Entretanto, mesmo que não tenha havido decisão pelo Juízo Corregedor, acreditamos importante apresentar, de forma resumida, a linha de argumentação adotada pela Municipalidade. Especialmente nos aspectos que defendem que a emissão e o registro dos Termos Administrativos de Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia ou de Concessão de Direito Real de Uso caracterizam-se como ações de regularização fundiária, para efeitos de aplicação do § 15 do art. 213 da Lei 6.015/73, ou do Estatuto da Cidade. A Regularização fundiária de assentamentos informais urbanos deve ser interpretada em seu sentido lato, visto comportar diversas espécies e, consequentemente, legislação disciplinadora própria para cada espécie. Neste sentido, vale destacarmos as lições do Desembargador Kiotsi Chicuta: “Tradicionalmente, a regularização fundiária se fazia com observância da Lei 6.766/79, mas, agora, a visão não é mais tópica e sim abrangente, o que pode ser observado pela Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece as diretrizes básicas da política urbana, na forma do artigo 182 da Constituição Federal (a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes), dispondo no parágrafo 1º que “o plano diretor, aprovado pela 3
Processo nº 2.055/07 – 6ª Vara Cível da Comarca de Osasco – SP.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”, acrescentando no parágrafo 2º que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. Salta claro que, em todas as cidades, principalmente aquelas de grande porte como São Paulo, inúmeras são as ocupações decorrentes de invasões ou parcelamentos clandestinos e parte das quais em próprios municipais, fazendo com que soluções sejam adotadas para inclusão desse segmento no mundo legal, inclusive com títulos inscritos no Registro de Imóveis para que haja até mesmo outorga de direitos reais aos possuidores e titulares de direitos.”4
Das linhas acima, depreende-se a elasticidade do conceito de regularização fundiária que, como analisaremos, não mais compreende somente as formas de implantação, previstas na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, Lei Federal nº 6.766/1979. O art. 38 e seguintes da Lei Federal nº 6.766/79 estabelecem, minuciosamente, todos os procedimentos de regularização do parcelamento do solo pela Municipalidade, em lugar do loteador faltoso, iniciando-se com a notificação deste para cumprir suas obrigações legais, interrupção de recebimento de prestações dos adquirentes dos lotes, depósito judicial destas prestações, culminando na realização das obras de infraestrutura pela Prefeitura, às expensas das prestações depositadas, ou às expensas do loteador. Nesses casos, a Municipalidade torna-se uma espécie de substituta do loteador, para fins de cumprimento das obrigações legais daquele que promoveu o parcelamento, minimizando a lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes. Assim, sempre que regulariza parcelamentos do solo que não deu causa, não o faz em nome próprio, e sim em nome de outrem. É nessa esteira que as Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, Provimento nº 58/89, legitimam a Municipalidade para registrar a regularização fundiária de parcelamento promovido por outrem. Assinale-se também que, os dispositivos supra mencionados, das normas em regência, podem também ser aplicáveis aos parcelamentos promovidos pela Municipalidade, mesmo que excepcionalmente. São os casos em que o Município promove o parcelamento do solo, alienando os lotes produzidos, em conformidade com a prerrogativa prevista no Inciso IX do art. 23 da Constituição Federal. Trata-se de produção de lotes visando à diminuição do déficit habitacional do Município, com a contrapartida do recebimento do valor empregado para a produção 4
A função registrai e a atuação do Judiciário – Breves considerações sobre a desapropriação judicial e a concessão real de uso. In Boletim Eletrônico IRIB/ANOREGSP 804 DE 28/03/2003.
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dos mesmos, pelos adquirentes (munícipes). Nesse caso, a atividade exercida pelo Município equivale ao do loteador particular e, portanto, subsume-se a toda legislação atinente ao parcelamento do solo urbano, especialmente, à Lei Federal nº 6.766/79. Nas situações em que o Município efetua o parcelamento do solo antes de seu licenciamento junto aos órgãos competentes, a única solução jurídica traduz-se na promoção da regularização fundiária. Em se tratando do Estado de São Paulo, o procedimento de regularização fundiária é aquele previsto nas Normas da Corregedoria Geral de Justiça, acima aludidas. A par das características das normas, que anteriormente expusemos, destacamos uma em especial: o registro da regularização fundiária de parcelamentos do solo produzidos informalmente, com a alienação de lotes, no Estado de São Paulo, só pode ser registrado através de mandado judicial, ou seja, é defeso ao Cartório de Registro de Imóveis proceder ao registro do parcelamento, se o título hábil ao registro não ingressar pela via judicial. Entretanto, existem outras espécies de regularização fundiária. É o caso que ora analisamos, de registro de Termos Administrativos de Concessão de Uso para Fins de Moradia. Para as áreas públicas historicamente ocupadas por população de baixa renda, até o advento do Estatuto da Cidade, não havia previsão normativa que possibilitasse a sua regularização fundiária. Note-se que estamos falando de áreas públicas ocupadas, o que exclui as áreas públicas objeto de projetos habitacionais implantados pelo Poder Público. Com a publicação do Estatuto da Cidade, Lei Federal nº 10.257/01, as áreas públicas passaram a ter a proteção legal em nível nacional por meio da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia, dentre outros instrumentos legais. A Medida Provisória nº 2.220/01, editada logo após o Estatuto da Cidade, disciplinou esse instrumento. A primeira característica é o reconhecimento do direito à moradia à população de baixa renda nas áreas públicas, por meio da concessão de uso especial. Este reconhecimento deixa de ser mero ato discricionário do Poder Público e torna-se um poder-dever. Os requisitos estampados na Medida Provisória são: que o morador possua como seu, até 30 de junho de 2001, ininterruptamente e sem oposição, até 250 m2 de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. Podemos inferir então, que a outorga da concessão de uso especial para fins de moradia ao morador de área pública que atenda aos requisitos da Medida Provisória
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2.220/01, é ato vinculado, não restando alternativa ao poder Público senão praticá-lo em conformidade com a legislação pertinente. Neste sentido, a doutrina também se posiciona. Segundo Nelson Saule Júnior5: “A concessão de uso deixa de ser uma faculdade do Poder Público para efeito de promover a regularização fundiária das ocupadas pela população de baixa renda. Esta norma constitucional, de forma idêntica ao usucapião urbano, caracteriza a concessão de uso como direito subjetivo, que deve ser declarado por via administrativa ou pela via judicial, mediante provocação dos interessados, nos termos do art. 6º da MP. De acordo com este artigo, o título de concessão de uso especial para fins de moradia será obtido pela via administrativa perante o órgão competente da Administração Pública ou, em caso de recusa ou omissão deste, pela via judicial”.
Tal direito subjetivo importa em um poder-dever do Poder Público, que materializa sua própria vinculação quanto ao ato de outorga da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia àqueles moradores de área pública que preenchem os requisitos autorizadores do reconhecimento deste direito. Vejamos o que afirmam Carlos Aguiar e Teresa Borba6: “A CUEM é dotada de ação e sanção. É norma jurídica, nas feições objetiva e subjetiva. É lei que impõe direitos e deveres; regra escrita que incumbe ao ente estatal o dever de legalizar a posse da terra. Apesar de editada pelo Executivo na forma de medida provisória, a própria Carta Federal, em ser art. 62 atribui a ela força de lei. Registrem-se a eficácia e vigência da medida provisória nº 2220/01, por força do art. 2º, da emenda constitucional nº 32 de II de setembro de 2001. Aspecto de não menos importância é a percepção de que a CUEM concretiza um dever “ex lege”, atribuído aos entes estatais. Impõe uma conduta, uma prestação, no caso, a realização de uma atividade em favor daqueles que se ajustam aos seus requisitos. Tais fatos nos levam à conclusão de que, de forma inédita no Sistema Jurídico Nacional, tem-se uma espécie normativa que impõe um dever ao Estado de regularizar a posse da terra, urbanizar ou colocar à disposição do concessionário uma habitação. No direito pátrio, as disposições normativas existentes sempre trataram a legalização administrativa como uma faculdade do Poder Público – a expressão de um ato discricionário. Na CUEM, encontramos a expedição de um título, como expressão de um ato administrativo vinculado, com o Poder Público sem condições de negar o direito ao concessionário.”
5
SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004.
6
AGUIAR, Carlos e TERESA, Borba. Regularização Fundiária e Procedimentos Administrativos. In ROLNIK, Raquel [et al.]. Regularização Fundiária Plena, Referências Conceituais. Brasília: Ministério das Cidades, 2007.
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A compreensão da natureza jurídica do instituto da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia é fundamental para o entendimento da sua consequência no que tange à regularização do solo. Imaginemos a hipótese de uma área pública onde todos ou a maioria da população atenda aos requisitos da Medida Provisória nº 2.220/01. A Administração Municipal outorgou os respectivos títulos administrativos de Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia. Além disso, o Poder Público elaborou planta apta à identificação dos terrenos objetos de outorga de Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia, medida que, além de vir ao encontro da política de planejamento urbano de competência do Município, apresenta-se como indispensável ao controle de disponibilidade da gleba objeto de outorga da CUEM. No presente caso, a Municipalidade ao ofertar a mencionada planta e pleitear o registro dos termos administrativos de CUEM outorgados, apenas adiantou-se ao reconhecimento de um direito previsto constitucionalmente (art. 183, §§ 2º e 3º da CF/88), e na Medida Provisória nº 2.220/01, não possuindo alternativa, senão agir de modo vinculado. Portanto, é de rigor concluir que o reconhecimento do direito à moradia conferido aos moradores de áreas públicas nos termos da Medida Provisória nº 2.220/ 01 trata-se, mesmo que por via transversa, de regularização fundiária empreendida pelo Poder Público, para fins do § 15 do art. 213 da Lei Federal 6.015/73. Ainda que essa regularização se dê de modo diverso daquele previsto da Lei Federal nº 6766/79 ou das Normas de Serviço acima aludidas, da lavra da Corregedoria Geral de Justiça. Imaginemos agora a hipótese de centenas de moradores de área municipal que pleiteiam a Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia de determinada área pública. Que estes moradores e a área pleiteada pelos mesmos possuam as características previstas na Medida Provisória nº 2.220/01. Que diante da recusa administrativa da administração pública, os mesmos consigam guarida judicial para seus pleitos. Todos se dirigem ao Cartório de Registro competente para efetivar o registro dos títulos concedidos. Decerto, a situação apresentada representará um entrave de monta ao registrador para o controle da disponibilidade da gleba onde se localizam os terrenos dos tais titulares do direito. Trata-se de regularização fundiária para efeito do § 15 do art. 213 da Lei 6.015/ 73? Temos que não, posto que não foi ato requerido, impulsionado, ou promovido pelo poder público. Vejamos: “Lei de Registro Públicos, Lei Federal nº 6015/73, art. 213 § 15. Não são devidos custas ou emolumentos notariais ou de registro decorrentes de regularização fundiária de interesse social a cargo da administração pública. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004) (g.n.)
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O comando legal é claro: só goza de isenção total de emolumentos e custas o registro dos atos de regularização fundiária promovidos pela Administração Pública. Como então deverá proceder o Oficial para o controle da disponibilidade da gleba pública “parcelada”? Decerto terá enormes dificuldades, visto que a maioria delas nem conta com matrícula aberta, e nos raros casos em que há matrícula, as mesmas são descritas de forma imperfeita, impondo a necessidade de prévia retificação judicial. E quem poderá efetuar todo o complexo procedimento de retificação prévia de registro, considerando que é vedado ao Oficial agir de ofício? Nem a legislação, nem a doutrina e muito mesmos a jurisprudência podem ainda responder a estes questionamentos. Essa breve exposição de duas situações tem o fito de demonstrar as dificuldades procedimentais que todos os atores envolvidos na regularização fundiária de assentamentos informais encontrarão ao se depararem com situações similares, mas é importante expô-las, visto que há outra forma de solucionar tais impasses. Temos que para evitar todos os entraves procedimentais acima expostos e crentes que a regularização fundiária de assentamentos informais é um dos atos por excelência de inclusão social e de inserção de bairros de moradores de baixa renda na Cidade formal, em obediência ao previsto no Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257 de 2001, a Municipalidade de Osasco, como já afirmado anteriormente, adiantou-se ao pleito daqueles que moram em áreas públicas há décadas e outorgou por procedimento “ex officio” os devidos Termos de Concessão de Uso Especial para fins de moradia. E mais, incluiu a regularização fundiária de áreas públicas no seu Programa de Planejamento Urbano e Habitacional, por meio de seus diplomas municipais norteadores do planejamento urbano da Cidade, quais sejam: Plano Diretor, Lei de ZEIS e demais legislações complementares. Portanto, a outorga de Termos de Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia não se trata de ação isolada da Prefeitura de Osasco, mas sim de política pública de planejamento de seu território previsto em lei. Além da obrigação legal imposta à Municipalidade, elencamos algumas das vantagens do poder público se adiantar ao pleito da população de áreas públicas: – Transparente planejamento municipal das áreas públicas ocupadas; – Inserção das áreas públicas ocupadas no mapa oficial da Cidade; – Cumprimento da função social da propriedade pública, prevista constitucionalmente;
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– Garantia de perfeito controle da disponibilidade da gleba pública pelo Oficial de Registro, com a elaboração de planta de concessão; – Evita-se que centenas de pedidos de Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia cheguem ao judiciário, que já conta com inumeráveis demandas ordinárias. Do exposto concluímos que, a ação intentada pela Municipalidade de Osasco ao outorgar Termos Administrativos de Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia, é parte integrante de seu Programa de Regularização Fundiária, na perspectiva do planejamento urbano municipal. Contrariamente, se os pedidos de Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia fossem pleiteados individualmente, além de atentar ao princípio da economia processual, dificilmente poderiam ser caracterizados como regularização fundiária, para efeitos do § 15 do art. 213 da Lei 6.015/73, ou do Estatuto da Cidade.
Aluguel Entre Particulares em Áreas Públicas Municipais: Considerações Sobre Conflitos Enfrentados na Implementação do Programa Paulistano de Regularização Fundiária de Favelas ANA PAULA BRUNO Arquiteta e Doutoranda da FAUUSP. Coordenadora do Programa de Regularização Fundiária da Prefeitura de São Paulo.
CANDELÁRIA MARIA REYES GARCIA Advogada. Consultora Jurídica da Prefeitura de São Paulo.
RAPHAEL BISCHOF
DOS
SANTOS
Advogado e Mestrando da FAUUSP. Coordenador de Gestão Patrimonial da Gerência de Patrimônio da União em São Paulo.
INTRODUÇÃO Em 2002, o Município de São Paulo promulgou seu Plano Diretor Estratégico (Lei n. 13.430/02), definindo a regularização fundiária de determinadas porções de seu território (nas ZEIS, disciplinadas pelos artigos 171 e seguintes) uma das ações estratégicas dentro da Política Habitacional do Município. Na sequência, a cidade planejou e iniciou a implementação da 1a Fase do Programa de Regularização Fundiária, atendendo parcela significativa de seus assentamentos precários ocupados por população de baixa renda. O Programa – e, em especial, essa primeira fase –, foi impulsionado pela Lei n. 13.514/03, a qual desafetou cerca de 160 áreas públicas e previu os instrumentos de regularização da posse entre outras medidas. Na sequência, a lei foi regulamentada pelo Decreto n. 43.474/03. A implementação do programa, no entanto, enfrentou diversos óbices. Apesar do vultoso e inédito volume de famílias atendidas e tituladas – cerca de 42.000 –,
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seus resultados demandaram aprimoramento de algumas respostas do Poder Público na execução da 2a Fase do Programa em 2008 – com proposta de atendimento de 23.000 famílias. Parte das demandas foi acolhida por revisão dos instrumentos normativos, representado significativos avanços na execução do Programa. Em especial, destacamse a possibilidade de desafetação de áreas por meio de decreto e a admissibilidade de fotos aéreas como meios com probatórios da posse para outorga da titulação requisitada. Com efeito, tais avanços não seriam possíveis caso o Município não houvesse posto em prática sua política de regularização fundiária a partir de 2003, tampouco experimentado as dificuldades operacionais do Programa para a escala de irregularidade da cidade1. As inovações normativas encontram-se consubstanciadas na Lei municipal n. 14.665/08 e no Decreto n. 49.498/08. No entanto, algumas das dificuldades encontradas na primeira fase persistiram no momento de implementação da segunda. Entre elas, fazem-se necessárias algumas considerações acerca do aluguel nas áreas regularizadas. A importância das leis municipais mencionadas acima reside essencialmente na autorização que deram ao Poder Executivo de alterar a destinação de áreas objeto de intervenção (permitindo, inclusive, a ampliação desse rol). Além disso, a Prefeitura fora igualmente autorizada a outorgar títulos para o uso dessas áreas por terceiros, o que simplesmente consolidava uma situação de ocupação de fato obscurecida pela legislação até então vigente. Faz-se relevante prever no presente estudo indagar sobre as naturezas jurídicas dos institutos empregados para a titulação dos moradores, para em seguida, se fazerem algumas indagações acerca do animus domini. Pertinentes, ainda, algumas considerações acerca da observação histórica do papel da locação dentro da provisão de moradia para a população de baixa renda, o papel das áreas de domínio público e as limitações existentes no próprio Programa. DAS FORMAS DE TITULAÇÃO E DE SEUS REQUISITOS Em síntese, o Programa paulistano propõe a outorga de três tipos de títulos, a concessão de uso especial para fins de moradia, a concessão de direito real de uso e 1
Apenas para ilustração do volume da demanda de atendimento, são quase 1.600 favelas na cidade de São Paulo, com diferentes características e tamanhos, dentro das quais a Prefeitura calcula existirem cerca de 390.000 domicílios, conforme dados do HABISP disponível em <www.habisp.inf.br>.
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a autorização de uso. Além dos títulos, vinculantes dos beneficiários à área regularizanda, há também a possibilidade da Municipalidade conferir declarações de preenchimento dos requisitos necessários à concessão de uso especial para fins de moradia, que o Programa aplica aos casos onde se verifica a impossibilidade de consolidação da ocupação no local (como situações de risco ou justificados pela necessidade de realização de obras). A regra é a concessão de uso especial para fins de moradia, prevista na Medida Provisória 2.220/01, aplicando-se subsidiariamente a concessão de direito real de uso, prevista no ordenamento desde que outorgado o Decreto-Lei n. 271/67. Aos casos de atividade não residencial (ou não predominantemente residencial) aplica-se a autorização de uso, prevista na mencionada Medida Provisória, apenas retomando o instituto há muito existente no Direito Administrativo. Os institutos não transferem a titularidade plena sobre a propriedade imobiliária do ente público (o que é vedado constitucionalmente), mas possibilitam o uso privativamente por beneficiários. As concessões são compreendidas como atos bilaterais entre as partes. No caso, as partes são a Prefeitura de São Paulo (como proprietária dos imóveis onde se situam os assentamentos regularizados na 1a e 2a fases) e as famílias beneficiárias do Programa (os concessionários). A concessão de uso especial para fins de moradia, apesar de arrolada como instrumento de política urbana no artigo 4º do Estatuto da Cidade, teve seu disciplinamento constante nos artigos 15 a 20 daquele diploma vetado pela então Presidência da República. Os efeitos do veto foram revistos, também por intervenção do Executivo Federal, com adição da Medida Provisória n. 2.220/012, a qual, diferentemente da disposição do Estatuto aprovada pelo Congresso, previu a exigência de prescrição aquisitiva de direito até a data da de promulgação do Estatuto da Cidade. Ou seja, a MP somente permitiu a regularização fundiária de posses preexistentes há cinco anos ou mais, até a sua entrada em vigor. Tratando-se de instrumento preferencial de regularização fundiária, a aplicação da concessão de uso especial para fins de moradia requer a observância dos seguintes requisitos: (i) possuir como sua área urbana de até 250m2; (ii) ter a posse da área urbana pelo período mínimo de cinco anos, ininterruptamente e sem oposição; (iii) utilizar a área urbana para sua moradia ou de sua família; (iv) não ser proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural (SAULE JR.:2004, 399).
2
Ainda não convertida em lei até a presente data.
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Destacam-se, por ora, a primeira e a última condição, uma vez que o destaque deste estudo corresponde à confrontação dos instrumentos de titulação com a locação de moradias celebrada entre particulares. Ao referir-se expressamente ao possuidor que houvesse como seu o imóvel urbano, a Medida Provisória identifica com precisão o animus domini, intrínseco aos requisitos a serem observados. Ademais, constitui-se a impossibilidade de outorga de títulos no caso de propriedade ou domínio útil concomitante ao pleito da concessão de uso especial para fins de moradia. A exegese das condições constantes da Medida Provisória parece bastante simples. Mas sua aplicação nas favelas regularizadas pelo Programa paulistano de Regularização Fundiária defrontou-se, no entanto, com circunstâncias historicamente construídas entre particulares onde a verificação de ocorrência do animus domini não é segura. A orientação do Município, no intuito de resolver essa incerteza, é acomodar toda e qualquer relação jurídica entre particulares de maneira alheia à constatação da posse pelos serviços prévios de cadastramento e selagem das moradias regularizadas3. Vale dizer, uma vez que posse é fato (ainda que juridicamente qualificado), é a situação de fato que prevalece, desfazendo-se o aluguel eventualmente avençado entre as partes (particulares). Por se tratar de áreas públicas municipais, o Município como legítimo proprietário não reconhece tais negócios jurídicos, restando à assessoria jurídica do Programa a acomodação das negociações entre particulares por meio de outros institutos de direito civil (notadamente, a confissão de dívida). O Programa tenta desta maneira combinar a desconsideração dos contratos de aluguel e eliminar o enriquecimento sem causa (comumente representado pela titulação do “inquilino” que recebe uma casa ou outro tipo de benfeitoria sem nunca haver concorrido com as despesas para construí-la). A situação é extremamente controversa nas áreas regularizadas. Além disso os casos são muito diversificados. O aluguel nas favelas localizadas em áreas públicas municipais representa tanto benfeitorias erguidas como investimento acumulado de uma vida inteira como casos da mais absoluta opressão entre particulares. Certo é que verdadeiras relações jurídicas de locação formaram-se em décadas de omissão do Município, mesmo que calcadas sobre posses qualificadas como injustas sob uma perspectiva meramente civilista. O Município, por sua vez, para voltar a se assenhorear 3
Resumidamente, cadastramento e selagem são etapas que precedem à titulação uma vez que, respectivamente, (i) identificam a composição das famílias beneficiárias e constatam quais são os possuidores de fato e (ii) delimitam o perímetro da parcela do imóvel a ser conferida a cada beneficiário, por meio da atribuição de um selo.
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de seu patrimônio e implementar uma política habitacional significativa no parque habitacional para baixa renda estabelece na posse (uma situação de fato) o único critério para restabelecimento da tutela dessas porções territoriais. Some-se a isso o fato da diretriz ser diametralmente oposta na regularização fundiária de loteamentos irregulares ou clandestinos. Ou seja, nessas circunstâncias o setor competente da Prefeitura, dentro da mesma Secretaria, adota considera o adquirente, independentemente da posse direta sobre o imóvel, como beneficiário. DA LOCAÇÃO PARA POPULAÇÃO DE BAIXA RENDA Do ponto de vista jurídico, a outorga da concessão de uso especial para fins de moradia poderia ser preterida para aplicação da concessão de direito real de uso, conforme previsto na legislação municipal, caso admitida a locação de imóveis sobre área pública municipal. A diretriz do Programa, no entanto, não admite o aluguel entre particulares apesar de propor esse questionamento. Senão vejamos. A locação fora alternativa habitacional relevante em São Paulo na transição entre os Séculos XIX e XX. Ressaltem-se as observações de Raquel Rolnik sobre os subúrbios populares, caracterizando-os como fonte de renda intimamente ligados à sua falta de regulação urbanística: “As casinhas ou cômodos de alugar situavam-se em lotes compridos e estreitos, de 9 metros por 60 ou 65 metros, geralmente com uma casa na frente e um portão lateral dando acesso para várias casas de fundo. Famílias também sublocavam cômodos no interior de suas casas alugadas a fim de complementar sua renda, de tal forma que uma rede complexa de senhorios e inquilinos, constituía um mercado de alta densidade que foi gerador, ao longo do tempo, de um processo de valorização quiçá mais rápido e intenso que as áreas de alta renda e uma ampla gama de alternativas de aluguel, para várias faixas de renda.” (ROLNIK:1999,118)
No mesmo sentido, a descrição de Nabil Bonduki acerca da produção habitacional com finalidade rentista: “Desde o surgimento do problema habitacional em São Paulo no final do Século XIX até a década de 1930, surgiram várias modalidades de moradia para alojar os setores sociais de baixa renda, todas construídas pela iniciativa privada. Entre elas, as mais difundidas foram o cortiço-corredor, o cortiço casa de cômodos, os vários tipos de vilas e correr de casas geminadas. É importante ressaltar o que essas habitações possuíam em comum: quase todas eram moradias de aluguel.” (BONDUKI:2004,43)
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Registre-se, por ora, que a diferença entre os regimes de direito privado e público afastam as situações verificadas no passado por Rolnik e Bonduki daquelas atualmente observadas nas favelas. Também distinguem-se as situações de precariedade urbanística. Mas, de fato, nas favelas regularizadas no Século XXI mantém-se uma intrincada gama de alternativas de aluguel para a população de baixa renda, todas resultantes de regimes de autoconstrução. Portanto, repetindo a iniciativa privada observada um século antes. Nos casos enfrentados por ocasião da 2ª fase do Programa, em 2008, os atendimentos prestados pela assessoria jurídica disponibilizada aos moradores constatou a cobrança de alugueres em torno de R$ 200 (duzentos reais) por mês, variando conforme a infra-estrutura instalada e o tamanho da benfeitoria. A localização demonstrava-se bastante relativa, cabendo afirmar que alguns dos maiores valores de alugueres foi encontrado na área denominada Guapira I (com valores em torno de trezentos reais), a qual, dentro do universo regularizado, era uma das áreas mais distantes do centro da cidade de São Paulo. DA NATUREZA PÚBLICA DOS IMÓVEIS REGULARIZADOS Voltam, contudo, as indagações referentes às possibilidades de usos de imóveis de propriedade do Município, definidas por sua lei como zonas especiais de interesse social. O aluguel para a população de baixa renda nessas áreas configuraria uso especulativo ou seria alternativa de provisão habitacional (com a construção das moradias a um público que normalmente não tem acesso a crédito pelos meios formais)? Quais seriam as circunstâncias a diferenciarem ambas as situações? E como proceder a qualquer avaliação dessas circunstâncias sem configurar puro arbítrio dos agentes públicos? O Programa de Regularização Fundiária de favelas em São Paulo, adotando o critério da posse direta dos imóveis, afastou-se de qualquer arbítrio. Contudo, persistem os conflitos evidenciados em todas as áreas regularizadas, diferenciando-se apenas em maior ou menor incidência, a serem expostos a seguir. Não menos importante, para a Prefeitura cabe o questionamento acerca de sua presença após a titulação dos possuidores de fato. Queixas de moradores em áreas recém tituladas, algumas vezes colacionadas nos plantões de atendimento à população indicam a persistência de relações opressivas nas áreas, consubstanciadas nas relações entre alegados “donos” de imóveis e “inquilinos” titulados. A pressão para desocupação dos imóveis, antes e depois da entrada do Programa de Regularização, é extremamente forte. Isso, na prática, representa a permanência das avenças entre particulares.
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E a capacidade de resposta do Município ainda é lenta e pouco representativa em termos da escala. Porém, é válido dizer que medidas exitosas da Coordenadoria do Programa no sentido de resguardar os direitos de beneficiários titulados produzem repercussão que extrapolam apenas as partes. Além dessa resposta do Poder Público municipal pôr em risco a efetividade dos diretos atribuídos por meio da titulação, registra-se no caso específico da concessão de uso especial para fins de moradia a ainda incipiente discussão jurídica acerca de sua natureza. Vale dizer, não agindo a Prefeitura em tempo para impedir uma ação opressiva entre particulares, o próprio Poder Judiciário pouco se manifestou acerca dos desdobramentos do instituto criado pela MP. Assim, apesar do Programa municipal entender que seus instrumentos de titulação outorgam o domínio útil de determinada porção territorial a um beneficiário, existem posicionamentos a considerarem a concessão de uso especial como direito pessoal e não real entre Poder Publico e beneficiário, o que, a princípio, não representaria a almejada segurança da posse4. O risco à segurança da posse de moradores (originalmente “inquilinos”) decorrente de tal entendimento ainda é desconhecido, mas fornece indicativos de que a posse no local objeto de titulação pode ser prejudicada. CONCLUSÃO A locação operada entre particulares sobre área de domínio público municipal é rechaçada pelas diretrizes do Programa de Regularização Fundiária de Favelas. Mas suas implicações levam a questionamentos fulcrais na definição das políticas habitacionais exequíveis. Dessa maneira, o enfrentamento dos contratos de aluguel sobre imóveis públicos municipais implicam a necessidade de métodos que ofereçam maior segurança ao morador e menos arbitrariedade ao Poder Público. As formas interpretativas do ordenamento jurídico nesses casos, o papel da moradia alugada dentro da provisão habitacional de interesse social, a diferenciação entre situações de subsistência e sujeição, a especulação imobiliária em áreas públicas municipais e, até mesmo, a efetividade para resguardar a posse de “locatários” reconhecidos como ocupantes e assim titulados, todas consubstanciam etapas que somente a implementação de uma política de regularização fundiária ao longo do tempo poderá avaliar.
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Nesse sentido, a sentença proferida pela MM. 10a Vara da Fazenda Pública de São Paulo, nos autos n. 053.08.111129-8. Compartilha esse entendimento também o Tabelião e Registrador Imobiliário do Ceará, Regnoberto Marques de Melo Jr., conforme estudos divulgados em 2002, disponível no sítio JusNavigandi: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3237.
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Fundamentos e Instrumentos à Ampliação da Proteção às Áreas Especiais Referentes aos Direitos à Moradia e ao Meio Ambiente: Notas Introdutórias1 MARISE COSTA DE SOUZA DUARTE2 Doutoranda em Urbanismo, Mestre em Direito Público e Especialista em Serviço Social, todos pela UFRN.
MARIA DULCE P. BENTES SOBRINHA3 Procuradora do Município de Natal/RN.
RESUMO: O trabalho busca introduzir ideias quanto à criação de mecanismos de proteção das áreas de interesse social e ambiental no Município de Natal. A partir da experiência de revisão do Plano Diretor de Natal (período 2004-2007), constatou-se a elevada vulnerabilidade a que essas áreas especiais (já protegidas legalmente desde o Plano Diretor de 1994) estavam sujeitas. Identificou-se que as pressões econômicas e políticas, principalmente no âmbito do Legislativo, representavam bem mais um campo de “ameaças” às conquistas sociais efetivadas do que de consolidação e ampliação da proteção desses espaços. Diante desse quadro e considerando o patamar de proteção jurídica conquistada a partir das lutas sociais, com marco na Constituição Federal de 1998, pontuamos alguns fundamentos e instrumentos na linha de ampliação da proteção dessas áreas, pela função social e ambiental que exercem.
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As ideias contidas neste artigo fazem parte da tese de doutorado “Ampliação dos instrumentos de proteção das áreas especiais estabelecidas no Plano Diretor de Natal de 2007 a partir dos direitos à moradia e ao meio ambiente” em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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Professora do Curso de Especialização em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Universidade Potiguar – UNP e do Curso de Especialização em Meio Ambiente e Gestão Urbana do Departamento em Geografia da UFRN.
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Arquiteta e Urbanista, Doutora em Estruturas Ambientais Urbanas – FAUUSP. Docente do Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/PPGAU/UFRN.
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INTRODUÇÃO As cidades brasileiras, notadamente aquelas situadas em regiões litorâneas, vivem um momento de grande expansão do turismo imobiliário, verificando-se intensas pressões sobre áreas especiais protegidas4, notadamente aquelas que abrigam os recursos ambientais e as áreas de moradia de interesse social. Isso significa ameaças à proteção de direitos hoje considerados fundamentais em nosso ordenamento. Não é por acaso que isso ocorre já que a produção do espaço urbano não se dá de forma neutra, mas é resultante de um processo histórico no qual se expressam as forças de poder existentes em um espaço e tempo determinados, em especial, o modo de produção que se encontra na base econômica da sociedade5. No atual estágio do capitalismo globalizado o desenvolvimento imobiliário urbano se torna motor central da expansão econômica das cidades, o solo urbano, meio privilegiado para valorização do capital privado6, e as áreas frágeis, como as destinadas a resguardar recursos ambientais e os interesses das camadas de baixa renda, ficam cada vez mais vulneráveis. Inserida nessa dinâmica, a cidade de Natal apresenta um crescimento urbano expressivo a partir da década de 1990, quando ocorre a implementação do Projeto Parque das Dunas/Via Costeira, considerado um marco nos conflitos entre proteção ambiental, direitos sociais de moradia e grandes empreendimentos de infra-estrutura urbana ligados ao desenvolvimento do turismo em Natal. A partir de 2000, as ações do Programa de Desenvolvimento Turístico do Nordeste – PRODETUR contribuíram para a expansão do capital turístico imobiliário, com ampliação e redefinição das pressões sobre o ambiente e as áreas de vulnerabilidade social. Num contexto em que a cidade de Natal conta com reduzidas áreas na faixa litorânea em porte adequado para a implantação de grandes empreendimentos imobiliários, a revisão do Plano Diretor de Natal (2004-2007) foi marcada pela forte pressão sobre as áreas protegidas, em processos que buscaram a desconstrução das leis que amparam as áreas especiais de interesse social e ambiental no Plano Diretor de Natal, pelo menos desde 1994. Embora a revisão do Plano Diretor (Lei Complementar nº 82/2007) tenha se pautado pela participação social, abrangendo diversos formatos de discussão pública (grupos temáticos, conferência, conselhos, audiências públicas), foi no processo 4
Como as áreas especiais de interesse social, as áreas de proteção ambiental, as áreas de controle de gabarito e de interesse paisagístico, dentre outras.
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Baseada no pensamento de Harvey (2004), compreendemos que a lógica de acumulação capitalista se assenta em uma contradição e incompatibilidade fundamental entre as necessidades de acumulação intrinsecamente inerentes ao capital e as demandas sociais derivadas dos direitos conquistados pela população (tendo em vista a equidade social).
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Mattos, (2004).
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legislativo onde se verificaram as mais sérias ameaças às conquistas sociais e ambientais já efetivadas. A partir dessa experiência, constatou-se a necessidade de estudos sobre as possibilidades de aprofundamento dos instrumentos de proteção às áreas de interesse social e ambiental, que neste trabalho coloca-se de forma introdutória, pontuando alguns fundamentos e instrumentos na linha de ampliação e proteção dessas importantes áreas. FUNDAMENTOS E INSTRUMENTOS EM DIREÇÃO À AMPLIAÇÃO DOS ESPAÇOS URBANOS PROTEGIDOS EM FAVOR DO DIREITO DE MORADIA E AO MEIO AMBIENTE SADIO Partindo da Carta Magna de 1988, constata-se que a dignidade da pessoa humana (valor sobre o qual se assentam os direitos humanos fundamentais) se constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, III). Em seu artigo 3º a Constituição define os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre os quais inclui: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem-estar de todos, excluída qualquer forma de discriminação. No Capítulo da Política Urbana (Capítulo II do Título VII), artigo 182, a Constituição Federal trata das funções sociais da cidade e da garantia do bem-estar dos habitantes como objetivos da política de desenvolvimento urbano; além de considerar expressamente a função social da propriedade urbana. Importante destacar esse capítulo constitucional foi fruto de uma intensa luta do Movimento Nacional pela Reforma Urbana7 cujos ideários se manifestam tanto nos embates sociais e políticos no território concreto da cidade como na construção de direitos formalmente reconhecidos; enfrentando, portanto, reações tanto no âmbito de interesses patrimoniais contrariados quanto no contexto de posições ideológicas conservadoras. Ainda importa considerar que, inicialmente com foco na Justiça Social, a Reforma Urbana a partir dos anos 90 passou também a focalizar com mais ênfase a Justiça Ambiental, que parte da compreensão de que o modelo de desenvolvimento no Brasil tem como característica a apropriação elitista do território e dos recursos naturais, a concentração dos benefícios usufruídos do meio ambiente, a destruição dos ecossistemas e a
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Nos termos postos por Maricato (1994), a luta pela “reforma urbana” se origina a partir da evidência do fosso que, nas cidades brasileiras, divide os espaços reservados aos ricos e aos pobres, tendo no seu ideário a busca pela construção de direitos formalmente reconhecidos, dentre os quais o direito de moradia e à qualidade de vida.
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exposição desigual da população à poluição e aos custos ambientais do desenvolvimento, indicando a necessidade de trabalhar a questão do “ambiente” não apenas em termos de preservação mas também de distribuição de justiça8, aproximando as lutas populares pelos direitos sociais e humanos e pela qualidade coletiva de vida com a sustentabilidade ambiental9. Tratando, pela primeira vez, do meio ambiente, em seu Capítulo VI do Título VIII, a Carta Maior prescreve, em seu artigo 225, que: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Essa norma10 se constitui um marco na proteção e de defesa do meio ambiente no Brasil já que insere um novo direito (meio ambiente ecologicamente equilibrado) no ordenamento jurídico, além de tratar do meio ambiente como bem e impor à coletividade, juntamente, com o poder público, o dever de proteção e defesa desse direito. Vale ressaltar que, além do referido artigo 225, vários outros artigos constitucionais11 se referem à matéria ambiental, inaugurando uma nova etapa no tratamento do meio ambiente no Brasil. Por outro lado, os direitos sociais à moradia, à saúde, à educação, ao trabalho e ao lazer, dentre outros direitos fundamentais à pessoa humana, também encontram suas bases da Constituição Federal (art. 6º). O Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), norma regulamentadora dos artigos 182 e 183 da Carta Magna, segue a orientação dos preceitos constitucionais referidos, estabelecendo que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, apoiandose em diversas diretrizes gerais, dentre as quais: a garantia do direito a cidades sustentáveis, compreendido como “direito à terra urbana, moradia, saneamento
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O Movimento por Justiça Ambiental surgiu no Brasil, a partir de 2001, com objetivo de ampliar o diálogo e a articulação entre sindicatos, movimentos sociais, ambientalistas e pesquisadores, no sentido de estimular o fortalecimento da luta ambiental articulada à luta pela democracia e pelo bem comum, integrando as dimensões ambiental, social e ética, vez que parte da compreensão que a proteção do meio ambiente depende do combate à desigualdade social, não se podendo enfrentar a crise ambiental sem promover a justiça social. Atualmente é objeto de coordenação por parte da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, tendo como seu principal articulador Henri Acselrad.
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Conforme Acserald, H.; Herculano, S.; Pádua, J. A. (2004).
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Que se decompõe em sete incisos e seis parágrafos, com importantes disposições normativas.
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Como os artigos 5º, LXXIII; 23, III, IV, VI, VII, IX, XI; 24, VI, VII, VIII; 129, III; 170; 174; 200 e 216; dentre outros.
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ambiental, infra-estrutura urbana, transportes e serviços públicos, trabalho e lazer, para presentes e futuras gerações” (artigo 2º e inciso I). Conforme mandamento constitucional (artigo 182) e o disposto no Estatuto da Cidade, o Plano Diretor se constitui em um instrumento de planejamento “básico para a política de desenvolvimento e de expansão urbana” no qual se estabelecem as exigências fundamentais para que a propriedade cumpra sua função social. Assim, é através do Plano Diretor e suas leis regulamentadoras, que devem ser estabelecidas normas que venham efetivar os direitos fundamentais à moradia e ao meio ambiente, tendo especial importância o estabelecimento de áreas especiais de proteção ambiental e de interesse social, que ganham um status de proteção diferenciado exatamente em razão dos frágeis12 interesses que vem resguardar. Na linha de análise aqui desenvolvida, emerge o princípio da função social da propriedade13 e, mais recentemente, o princípio da função sócio-ambiental da propriedade, tratado por diversos doutrinadores de Direito Ambiental14, que configurase a partir da interpretação sistemática das normas constitucionais referentes ao uso da propriedade urbana e rural e das normas relativas à proteção ao meio ambiente. Ainda que não expressamente inscrito na legislação15 o princípio da função sócioambiental da propriedade é compreendido como o ônus que é atribuído ao proprietário, que consiste em um conjunto de deveres e responsabilidades que permeia toda a relação de propriedade (e não apenas limita o seu exercício), de modo com que, mesmo sem dar destinação produtiva aos recursos ambientais16, o proprietário está obrigado a utilizá-los realizando finalidades sociais (vinculando-se a uma ética de responsabilidade solidária) e o dever da coletividade (art. 225 da Constituição Federal de 1988). Desse modo, a propriedade protegida em nosso sistema jurídico é aquela na qual se desenvolve uma relação individualizada sustentável social e ambientalmente; devendo ser reprimidas as práticas que atentam contra essa ideia, como a supressão de espaços ambientais e sociais. Seguindo na busca pela ampliação da proteção aos espaços especialmente protegidos em favor do direito de moradia e ao meio ambiente, encontramos o princípio da vedação ao retrocesso social. Desenvolvido pela jurisprudência europeia, tal princípio é visto como uma “cláusula geral” de proteção dos direitos fundamentais, 12
Do ponto de vista da dinâmica territorial urbana atual, onde o uso do solo passa ser uma importante fonte de ganhos financeiros.
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Introduzido em nosso sistema jurídico desde a Constituição de 1934.
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Edis Milaré (2005), Rodrigues (2005), Mirra (1996), dentre outros.
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Importa destacar que o princípio da função social se encontra inscrito expressamente na Constituição Federal nos artigos 5º, XXIII, 182, § 2º (referente à propriedade urbana) e 186, caput (propriedade rural).
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Art. 2º da Lei Federal 6.938/81.
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especializados pela legislação infraconstitucional, e que assume uma função de defesa para o cidadão contra as ingerências do Estado. Buscando uma maior interferência na efetiva estabilidade constitucional em face dos direitos sociais, tal princípio tem como escopo essencial evitar que a ordem jurídica sofra a insegurança reformista, se constituindo mola mestra na condução da estabilidade dos direitos fundamentais que asseguram a dignidade da pessoa humana como um todo e, por consequência, a efetividade da segurança jurídica no Estado de Direito17. Pensamos que, diante das ameaças colocadas às áreas de interesse social e ambiental, de grande valia será a utilização desse poderoso instrumento. Por fim, não se pode deixar de considerar que o aperfeiçoamento do sistema de proteção internacional aos direitos de moradia e ao meio ambiente, dentre outros direitos sociais, se coloca como importante instrumento em favor da ampliação da proteção aqui defendida. Materializado em algumas ações concretas, esse sistema de proteção tem na Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Plataforma DHESCA Brasil) um dos principais espaços de articulação nacional de movimentos e organizações da sociedade civil para o desenvolvimento de ações para a promoção, defesa e reparação dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais, visando ao fortalecimento da cidadania e à radicalização da democracia. CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluindo, é necessário considerar que as ideias aqui colocadas se constituem na introdução de uma pesquisa em desenvolvimento e que requerem um amplo aprofundamento teórico e prático, com foco nas novas ideias e saberes que na atualidade se colocam na linha da garantia aos direitos humanos fundamentais (como os direitos à moradia e ao meio ambiente) tão arduamente conquistados, pelo menos a nível formal e normativo, pela sociedade. Ainda que estejamos na condução do trabalho de revisão bibliográfica sobre o tema estudado, seu fio condutor não se afasta da ideia central de garantir aos espaços de interesse social e ambiental inseridos no Plano Diretor de Natal um grau de consolidação capaz de resistir às sérias ameaças que se colocam em face da pressão política associada à, cada vez mais, intensa pressão imobiliária urbana, com evidente influência nos fóruns onde se discutem e constroem as normas de uso e ocupação do solo. Não olvidando a importância da participação social em todo o processo de construção das normas urbanas e nas ações e discussões sobre as (tão desejadas)
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Brasil, (2007).
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cidades justas, inclusivas e sustentáveis, em especial no processo de revisão do Plano Diretor de Natal 2007, pensamos que o aprofundamento do debate sobre o tema no campo acadêmico se constitui uma exigência necessária, possível e um dos grandes desafios para todos os que se preocupam com a efetivação da justiça social e da qualidade de vida nas cidades. REFERÊNCIAS ACSELRAD, Henri. Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto. Justiça Ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. BENJAMIN, Antônio Herman V. Objetivos do direito ambiental. In: Congresso Internacional de Direito Ambienta\ (5. São Paulo, 2001). Anais... São Paulo: IMESP, 2001. p.57-78. BENTES, Dulce. Zonas Especiais de Interesse Social – Zeis e Grandes Empreendimentos: resistência de territórios populares e elementos para inclusão sócio-territorial no litoral potiguar. Trabalho apresentado no Seminário Política e Planejamento: Economia, Sociedade e Território. Curitiba, 2008. BRASIL, Francisca Narjana de Almeida. O princípio da proibição do retrocesso social como efetividade da segurança jurídica. Disponível em: http://www.jusacademico.v10.com.br/12docsinternauta/ docvisit_088.doe. Acesso em: 17 out. 2007. BRASIL. Constituição Federal (1988). In: MEDAUAR, Odete. Coletânea da Legislação Ambiental. São Paulo: RT, 2007. CORAGGIO, José Luiz. A construção de uma economia popular como horizonte para cidades sem rumo. In: RIBEIRO, Luis César de Queiroz; SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos (orgs). Globalização, fragmentação e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. DANIEL, Celso. Governo local e Reforma Urbana num quadro de crise estrutural. In: RIBEIRO, Luis César de Queiroz; SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos (orgs). Globalização, fragmentação e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio Ambiente Sadio: Direito Fundamental em Crise. Curitiba: Juruá, 2003. GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005. HARVEY, David. O Novo Imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2004. LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: RT, 2000. MARICATO, E. Reforma Urbana: Limites e Possibilidades. Uma Trajetória Incompleta. In RIBEIRO, Luiz César de Queiroz; SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos (orgs). Globalização, fragmentação e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. ______. Habitação e cidade. São Paulo, Atual, 1999.
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3 INSTRUMENTOS PARA A GOVERNABILIDADE DAS CIDADES / A GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES
Gestão Democrática das Cidades: a Constituição de 1988 é Efetiva?1 MARINELLA MACHADO ARAÚJO Professora Doutora do Programa de PósGraduação e Graduação em Direito da PUC Minas. Coordenadora do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas.
GABRIELA MANSUR SOARES Mestranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela PUC Minas. Pesquisadora do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR (NUJUP).
MARIANO HENRIQUE MAURÍCIO
DE
CAMPOS
Mestrando em Direito Público do Programa de PósGraduação da PUC Minas. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG). Pesquisador do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR (NUJUP).
RESUMO: Ao expressamente atribuir aos Municípios brasileiros a competência para elaborar planos diretores, a Constituição de 1988 expressamente determinou a aplicação do princípio federativo da subsidiariedade ao planejamento urbano. Em 2001, o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, ao regular o capítulo de política urbana da Constituição de 1988, artigos 182 e 183, institucionalizou o modelo dialógico do planejamento urbano participativo. Vinte anos depois, apesar dos avanços, a gestão democrática das cidades ainda continua sendo um desafio para a Administração Pública brasileira. A tradição liberal de
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Esse artigo resulta das discussões desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho Administração Pública Dialógica do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas, coordenado pela professora doutora Marinella Machado Araújo. As ideias aqui apresentadas representam ainda reflexões preliminares desenvolvidas pelos co-autores a partir seus respectivos projetos de pesquisa desenvolvidos no Programa de Pós-graduação da PUC Minas.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 gestão de interesse público, fundada na universalização desmotivada da aplicação princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, reflete um abismo que ainda separa a construção coletiva, participativa, do planejamento urbano, do arbítrio imposto pela ausência de controle da discricionariedade administrativa. Contudo, se a previsão legal dessa gestão em nível federal criou condições para a aplicação da gestão urbana democrática participativa proposta pela Constituição de 1988 e regulada pelo Estatuto da Cidade, a sua regulação pelos planos diretores ainda não é efetiva. É o que demonstra a análise das leis que instruíram planos diretores das cidades históricas mineiras. Esse artigo analisa, a partir do princípio do discurso de Habermas e da democracia contestatória de Pettit, em que medida avançamos na regulação da gestão democrática participativa das cidades brasileiras após 20 anos de vigência da Constituição Cidadã de 1988. PALAVRAS-CHAVE: Princípio da Subsidiariedade; Federalismo de Cooperação; Estatuto da Cidade; Planos Diretores; Gestão Urbana Participativa.
1. A QUESTÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA O Brasil, desde a sua descoberta, sempre recebeu influência europeia quando se trata de cultura política e jurídica. Neste sentido, foram diversas as leis portuguesas que por aqui vigoraram antes da Declaração da Independência em 1822 e da Proclamação da República em 1891. Como exemplo, podemos falar das Ordenações Afonsinas (de 1446 ou 1447 até 1511), Ordenações Manuelinas (editadas em 1521) e Ordenações Filipinas (1613), as quais vigoraram até a edição das primeiras leis brasileiras como o Código Criminal do Império de 1830 e o Código de Processo Criminal de 1832 (DI PIETRO, 2006a). A Constituição Republicana de 1891 recebeu forte inspiração Francesa com os ideais da Revolução de 1789 e é considerada Liberal, uma vez que antes da promulgação da Constituição já havia um movimento político no sentido de derrubar o Regime Imperial, como por exemplo o Manifesto Republicano de 1870, sendo que a insatisfação maior era em relação ao Poder Moderador, que foi extinto com a Primeira Constituição Republicana (BONAVIDES e ANDRADE, 1991). Já a Constituição de 1934 recebeu influência do chamado Estado Social, através da inclusão no bojo constitucional de diversos direitos sociais, como a garantia de saúde, educação, salário-mínimo, limitação da jornada de trabalho, entre outros, recepcionados e melhor desenvolvidos nos artigos 5º e 7º da Constituição de 1988. Com isso, notamos que as noções paradigmáticas tanto do Estado Liberal como do Estado Social se fizeram presentes em nossos textos constitucionais desde a Proclamação da República. Todavia, destacamos que a simples previsão legal de determinas garantias ou a proteção de direitos individuais não os efetivam de plano.
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É preciso mais. É imperioso que além da previsão no ordenamento jurídico se tenha vontade política para implementação de uma série de direitos fundamentais. A concentração de renda no Brasil não é uma novidade. Sempre haverá um jornal ou uma pesquisa que demonstre o fosso social que se criou entre uma minoria bem provida de recursos e a grande maioria da população que vive com dificuldade, com recursos escassos e serviços públicos muito aquém do necessário. Acreditamos que isso é consequência de uma cultura oligárquica que domina a estrutura política do país e que faz a nossa realidade tão distante daquilo posto em nossos textos constitucionais. A Constituição Federal promulgada em 1988 inovou em diversos aspectos e um deles é justamente a previsão de políticas urbanas, como já mencionado no início. Mais importante do que isso é a forma com que essas políticas vão acontecer. Mantendo-se um regime democrático estabelecido pela vontade da maioria certamente as forças oligárquicas que todos sabemos presentes em nosso país, com certeza farão do texto constitucional apenas um legado histórico, mas não um instrumento de mudança. HABERMAS (2007), embora partindo de uma realidade diferente da que vivenciamos aqui, ressalta de maneira peculiar as diferenças que modelos democráticos, seja de orientação liberal ou de orientação republicana podem fazer surgir no bojo social. Na concepção liberal, a política congrega e impõe interesses sociais em particulares. Na concepção republicana, a política possibilita o surgimento da solidariedade como fonte de integração social. A opinião pública política e sociedade civil sustentam a concepção republicana. O citado autor sustenta ainda um modelo de democracia que visa um distanciamento da força que o poder econômico exerce nas sociedades atuais. As economias de mercado tendem ao afastamento da política, considerando que esta engessa a mobilidade do capital. Mas a política levada ao extremo pode resultar o estabelecimento de uma ditadura. A democracia para Habermas gira em torno da ideia de igualdade, liberdade e da autonomia do povo. Determinemos, pois, que para a coesão do discurso habermasiano a igualdade não pode ser entendida como formal, garantida apenas pelo texto legal e que privilegia determinado grupo de pessoas baseando essa exclusão em fundamentos ligados a argumentos não jurídicos, e que por vezes, tornam-se, por exemplo, a igualdade do Estado Liberal em que assegurava-se o direito ao voto à universalidade desde que a universalidade comportasse os parâmetros burgueses ditados. A liberdade também não pode ser mera formalidade deve ser entendida como liberdade material.
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E autonomia do povo? Entendida no melhor sentido de autolegislação deve ser uma autonomia caracterizada pela vontade do povo que é capaz de enxergar-se como autor e destinatários das leis estatais. Tal vontade popular representa na Democracia o agir coletivo e a supressão das vontades individuais em prol da sociedade. A formação de opinião e vontade pública só é possível através de um processo que é o meio da efetividade da soberania popular. E esse processo de construção da opinião e vontade popular se evidencia desde que a sociedade civil organize-se, por meio de associações livremente agrupadas, e sejam abertas ao discurso com o Estado, dentro do ‘espaço público’. Do ‘poder’ comunicativo do povo surge a legitimação da tomada de decisão, com base na maioria, tomada pelo Estado. O modelo de Democracia de Habermas baseia-se nas condições de comunicação sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se de modo deliberativo. Pelo modelo discursivo do autor, o procedimento democrático cria uma coesão interna na tomada de decisão por baseála em discursos que visam as negociações e o auto-entendimento entre a sociedade civil e o Estado. Numa outra linha, a construção da democracia para PETTIT (2003) faz-se a partir do poder contestatório do povo. Mas o que seria poder contestatório? Para o autor é ele a forma como o povo se expressa contra o poder arbitrário expresso nas decisões executivas e legislativas que levam em conta apenas interesses particulares, sejam eles individuais ou de determinado grupo. O consentimento para PETTIT (2003) contrário à ideia habermasiana está associado ao abuso de poder e à imposição de vontade seja ela do Estado ou de um grupo social dominante. A democracia para Pettit é, assim como em Habermas, propiciada pelos movimentos sociais e pelo associativismo, mas ao contrário de Habermas que busca uma tomada de decisão baseada no consenso entre os atores sociais nos canais deliberativos, Pettit acredita que por esses canais as associações civis devem exercer seu poder contestatório na construção de uma decisão que espelhe seus interesses (decisões políticas contestatórias). A forma de contestação é balizada por um processo discursivo, assim como em Habermas, em que se colocam meios que apóiem as deliberações baseadas na contestação das decisões tomadas unicamente pelo Estado. Outro ponto chave na construção da Democracia Participativa a determinação do que vem a ser interesse público. Para ÁVILA (2001) no Estado Democrático de Direito, interesse público não significa interesse do Estado. O autor defende ainda
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que a supremacia desse sobre o interesse privado defendido pelos liberais, não mais se sustenta. Neste sentido, sua noção de democracia é baseada na equiparação entre o interesse público e o privado principalmente porque o direito público, e com isso o interesse público, no Estado Democrático comporta elementos privados (necessidades das comunidades políticas), já que até mesmo a Constituição da República elege como estruturante do interesse público caracteres privados (ÁVILA, 2001) A construção da democracia para ÁVILA (2001) é baseada na concepção e definição de interesse público, que deve ser aquele que conjuga reciprocidade e unidade com o interesse privado. Elemento esse que identificamos em Habermas quando ele trata da equiprimordialidade do interesse público sobre o privado. De qualquer forma, a Administração Pública deve privilegiar a participação popular no planejamento e gestão do interesse público como forma de garantia da legitimidade das políticas públicas e consequentemente da concretização de direitos fundamentais sociais. Um instrumento importante de participação da sociedade civil são os conselhos gestores, formados por diversos segmentos sociais. No entanto, a doutrina administrativista sequer trata da participação democrática na gestão da Administração Pública e não existe classificação acerca desses órgãos de cunho popular como componentes da estrutura administrativa. Esses órgãos forma introduzidos na legislação que regula políticas públicas como Sistemas de Habitação de Interesse Popular, Gestão de Recursos Hídricos, Estatuto da Cidade, mas são esquecidos pelos tradicionais manuais de direito administrativo, enraizados na tendência do Liberalismo político do século XIX. 2. RAZÕES PARA QUE O ESTATUTO DA CIDADE DETERMINASSE PLANOS DIRETORES PARTICIPATIVOS O Estatuto da cidade é um instrumento de diretrizes do planejamento urbano que foi pensado para regulamentar os preceitos constitucionais que dizem respeito à política urbana (artigos 182 e 183 da CF/88) e que se pretende legítimo por associar às decisões estatais, no âmbito de planejamento da cidade, a participação popular seja por instrumentos diretos como o plebiscito ou referendo seja através das associações civis, conselhos, fóruns ou outros instrumentos que privilegiem a gestão democrática com a participação da comunidade. O Estatuto ainda prevê como instrumento para consecução de política urbana os Planos Diretores que visam o planejamento urbano municipal, esses planos devem ser elaborados pelo município. A competência dos municípios em elaborar os planos
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diretores advém do modelo de federalismo adotado pela Constituição Federal de 1988, o Federalismo de Cooperação, art. 23. Pelo Federalismo de Cooperação temos repartição de competências comuns entre os entes federados, possibilitando a integração entre Estados-membros e a União para implementar as políticas públicas, quando da redação de normas para consecução dessas políticas. Percebemos, pois, a busca por uma maior autonomia municipal, já que no momento em que há delegação do processo decisório para o ente local, principalmente no que se refere à política urbana, já que as necessidades e as demandas nessa área surgem do local para o global, já que os municípios estão mais pertos do cidadão. Tal autonomia mostra a constante perseguição pela descentralização do poder entre os entes, o que permite a colaboração de entidades civis para a realização dos objetivos públicos. Mas essa descentralização e distribuição de competências só têm sentido graças ao princípio da subsidiariedade. Por esse princípio pressupõe-se que a sociedade tem condições de resolver ela própria por seus membros e por organizações não políticas, um número enorme de problemas sociais de forma eficiente, deixando a resolução por parte do Estado só quando a iniciativa privada não for suficiente. A subsidiariedade estabelece ainda, que todas as demandas que puderem ser atendidas por um poder político local, como o município, não deve ser atendido pelas entidades políticas superiores, o Estado. Dessa forma no federalismo de cooperação as proposições do princípio da subsidiariedade implicam o fortalecimento do município, vemos pela junção desses dois princípios um papel de maior destaque do cidadão, que é o núcleo deste ente político, o que propicia uma participação mais ampla e fiscalização efetiva das políticas públicas. Essa preleção do município atende não só aos princípios em tela como concretiza o Estado Democrático de Direito adotado pela Constituição de 1988. Os Planos Diretores são essenciais às políticas urbanas que pretendem se adequar ao disposto nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Estão previstos no artigo 40 do Estatuto das Cidades e são essencialmente participativos na sua execução, conforme interpretação sistemática dos artigos 39 até 43 da Lei Federal 10.257/01 (Estatuto das Cidades), além das diretrizes de gestão democrática também previstas na citada Lei. No entanto, não é uma novidade no Brasil que existe uma distância real entre a Lei e sua aplicação efetiva. O Estatuto das Cidades previa originalmente no artigo 50 o prazo de 05 anos para que os Municípios se adequassem. Ocorre que por várias razões, seja de cunho político ou incapacidade administrativa, o prazo não foi cumprido e a Lei 11.673/2008 prorrogou o prazo para 30 de junho de 2008, retroagindo seus efeitos ao ano de 2006. Este fato mostra que existe uma profunda distância a Lei e sua aplicação, uma vez que o monitoramento de Planos Diretores não é respeitado e os prazos não são observados.
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Percebemos também que o não cumprimento dos prazos de elaboração dos Planos Diretores revela o baixo nível de comprometimento administrativo dos municípios e seus gestores. A importância da gestão participativa é inegável no contexto do Estado Democrático. Neste sentido, as propostas feitas por HABERMAS (2007) e PETTIT (2003) são importantes porque refletem a necessidade da criação de mecanismos de participação popular no processo de tomada de decisões por parte da Administração Pública. A gestão democrática é importante ainda sob o ponto de vista do controle social que é exercido sobre os gestores públicos, pois se esta cultura participativa estivesse enraizada na sociedade brasileira, certamente o descumprimento do prazo do Estatuto das Cidades não chegaria ao ponto que chegou. Por tais razões, acreditamos que a Gestão Democrática das Cidades é um ponto de relevância a ser considerado pela doutrina administrativista. Com a edição do Estatuto das Cidades ficou impossível desconsiderar os instrumentos de participação popular no governo dos Municípios Brasileiros. Seja com a participação da sociedade civil e o procedimento racional-discursivo proposto por HABERMAS ou através dos mecanismos de contestação das decisões públicas conforme pretendido por PETTIT, certo é que a evolução do modelo representativo de democracia para o modelo participativo tornou-se uma necessidade premente. E para cumprirmos o objetivo do trabalho, qual seja: analisar em que medida avançamos na regulação da gestão democrática participativa das cidades brasileiras após 20 anos de vigência da Constituição de 1988, resta-nos a análise das leis que instituíram planos diretores das cidades históricas mineiras. Desta forma, selecionamos as nove cidades que compõem a “Estrada Real”, sendo elas: Brumadinho, Congonhas, Diamantina, Santa Bárbara, São João Del Rei, Serro, Nova Lima, Ouro Preto e Ponte Nova. A partir dos dados obtidos junto ao Núcleo Jurídico de Políticas Públicas (NUJUP/OPUR) – PUC Minas – desenvolvemos três gráficos que retraíam a análise dos Planos Diretores destes Municípios destacados. O primeiro trata da quantidade de instrumentos de gestão democrática previstos, o segundo trata da existência desses instrumentos nos respectivos Planos Diretores e o terceiro gráfico demonstra a composição dos Conselhos das Cidades ou órgão equivalente de cada um dos Municípios pesquisados. No primeiro gráfico2 constatamos que dos 09 Municípios pesquisados, 04 prevêem a existência de Conselho das Cidades ou equivalente; 03 prevêem o orçamento participativo e as consultas públicas; 06 prevêem as Conferências das Cidades e Audiências Públicas e 07 prevêem os Conselhos Gestores. 2
Os dados reproduzidos nos gráficos 1, 2 e 3 representam a análise das informações junto ao Núcleo Jurídico de Políticas Públicas (NUJUP/OPUR) da PUC Minas.
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Gráfico 1 Instrumentos de Gestão Democrática – Municípios pesquisados
Quantidade de Municípios com previsão dos instrumentos
Municípios pesquisados: 09
8 6 4 2 0 Conselho das Orçamento Cidades ou Participativo equivalente
Consultas Públicas
Conferências Audiências das Cidades Públicas
Conselhos Gestores
Tipos de Instrumentos de Gestão
Fonte: Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR, 2008.
No segundo gráfico constatamos que o Conselho das Cidades ou equivalente está previsto para as cidades de Brumadinho, Congonhas, Diamantina e Santa Bárbara. O orçamento participativo e as Consultas Públicas são previstos para Brumadinho, Nova Lima e Santa Bárbara. As Conferências das Cidades estão previstas para Brumadinho, Diamantina, Serro, Nova Lima, Ponte Nova e Santa Bárbara. As Audiências Públicas estão previstas para Brumadinho, Congonhas, Diamantina, Serro, Nova Lima e Santa Bárbara. Já os Conselhos Gestores estão previstos para Brumadinho, Congonhas, Diamantina, Serro, Ouro Preto, Ponte Nova e Santa Bárbara.
Sim
SANTA BÁRBARA
OURO PRETO
SERRO
DIAMANTINA
Não BRUMADINHO
Existência de instrumento de participação
Gráfico 2 Instrumentos de Gestão Participativa
Municípios pesquisados
Fonte: Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR, 2008.
Conselho das Cidades ou equivalente Orçamento Participativo Consultas Públicas Conferência das Cidades Audiências Públicas
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O terceiro gráfico revela a composição dos Conselhos das Cidades, sendo que os únicos Municípios que contêm previsão desta composição são Brumadinho, Diamantina e Santa Bárbara. Em Brumadinho, das vagas destinadas ao Conselho das Cidades, o Poder Público Federal tem 19,72%, Poder Público Estadual 8,45%, Poder Público Municipal 14,08%, Movimentos Populares 26,76%, ONG’s 4,23%, Entidades de Trabalhadores 9,86%, Profissionais e Acadêmicos 7,04% e Entidades Empresariais 9,86%. Em Diamantina, das vagas destinadas ao Conselho das Cidades, o Poder Público Federal e Estadual têm 11,11% das vagas cada, o Poder Público Municipal e os Movimentos Populares têm 33,33% das vagas cada e as entidades empresariais têm 11,11% das vagas, ONG’s, Entidades de Trabalhadores, Profissionais e Acadêmicos não têm destinação de vagas expressamente. Em Santa Bárbara, o Poder Público Municipal tem 40% das vagas, Movimentos Populares, ONG’s e Entidades Empresariais têm 20% cada.
Gráfico 3 Composição do Conselho das Cidades
CONGONHAS
45% 40% 35% 30% 25% 20% 15% 10% 5% 0%
DIAMANTINA SANTA BÁRBARA
Segmentos Representados
Entidades Empresariais
Profissionais e Acadêmicos
Entidades de Trabalhadores
ONG’s
Movimentos Populares
Poder Público Municipal
Poder Público Estadual
SÃO JOÃO DEL REI Poder Público Federal
Porcentagem da Participação
BRUMADINHO
SERRO NOVA LIMA OURO PRETO PONTE NOVA
Fonte: Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR, 2008.
CONCLUSÃO Diante das considerações feitas durante o trabalho, concluímos que embora exista a previsão constitucional, no âmbito Federal, relativa à gestão participativa e que o Estatuto da Cidade foi responsável pela regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, a gestão democrática e participativa dos centros urbanos não é efetiva nos planos diretores analisados.
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Apenas 02 das 09 cidades analisadas (Brumadinho e Santa Bárbara) possuem a previsão nos seus planos diretores de todos os instrumentos de gestão participativa3. Ademais, São João Del Rei não possui qualquer menção aos instrumentos de gestão. É claro que nesses 20 anos de vigência da Constituição de 1988 avançamos muito em relação aos regimes constitucionais anteriores, principalmente em termos de direitos e garantias fundamentais. Não obstante, é preciso que avancemos na gestão participativa das políticas públicas porque somente com o modelo dialógico de Administração Pública é que a concretização dos direitos fundamentais poderá tornarse mais efetiva, consequentemente melhorando a qualidade de vida dos brasileiros. As teorias de Habermas e Pettit demonstram a necessidade de criação de procedimentos e mecanismos de participação e controle da gestão pública por parte da sociedade civil. Conforme nos diz Ávila, não há que se falar em universalização da supremacia do interesse público sobre o privado, mas podemos falar na convergência e na reciprocidade de interesses entre o público e o privado, tal como Habermas coloca a equiprimordialidade e co-originalidade entre a autonomia pública e privada. Acreditamos numa “Administração Pública Dialógica”, modelo que deve ser considerado como a evolução daquele tradicional descrito pela maioria da doutrina clássica do Direito Administrativo. Devemos evoluir para que a escolha racional de prioridades segundo interesses reconhecidos pelo direito seja feita a partir dos mecanismos de participação da sociedade civil em interação com o Poder Público. A Constituição de 1988 em seus aspectos de participação popular ainda não é totalmente efetiva, mas estamos evoluindo bem e alguns planos diretores, apesar de poucos, evidenciam este fato. A própria evolução do Direito Urbanístico no país passa pela efetivação da gestão democrática nas cidades e esperamos comemorar este fato em breve, tal como comemoramos nos 20 anos da Constituição as conquistas democráticas de 1988. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÁVILA, Humberto. Repensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização. Jurídica, v. I, nº 7, outubro, 2001. Disponível em:<http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 29 de agosto de 2008. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 18. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Dl PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 500 anos de Direito Administrativo Brasileiro. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador, Instituto de 3
De acordo com o Gráfico 02.
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Direito Público da Bahia, nº 05, Janeiro/Fevereiro/Março, 2006. Disponível em: <http:// www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 29 de agosto de 2008. FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de direito administrativo positivo. 5. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. HABERMAS, Júrgen A inclusão do outro: Estudos de teoria política. Trad. George Sperbe e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2007. MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno: de acordo com a EC 19/98. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 23 ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional São Paulo: Malheiros, 2007. PETTIT, Philip. Democracia e Contestabilidade IN: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz. Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003.
Governança Participativa de Áreas Públicas: em que Avançamos da Constituição de 1988 ao Estatuto da Cidade1 MARINELLA MACHADO ARAÚJO Professora Doutora do Programa de PósGraduação e Graduação em Direito da PUC Minas. Coordenadora do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas.
GABRIELA MANSUR SOARES Mestranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela PUC Minas. Pesquisadora do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR (NUJUP).
THAÍS LOUZADA
DE
SOUSA
Graduanda em Direito pela PUC Minas. Pesquisadora Bolsista pelo PROBIC – Programa de bolsa de iniciação científica com o trabalho desenvolvido juntamente com o Graduando em Direito pela PUC Minas Luiz Márcio Siqueira Júnior, ambos vinculados ao NUJUP– Núcleo Jurídico de Políticas Públicas.
RESUMO: Ao comemorar 20 anos de vigência, o texto constitucional de 1988 atinge a maturidade necessária para a crítica de sua efetividade. Se avançamos no que se refere à tutela jurídico-legal de direitos fundamentais sociais, a sua concretização ainda permanece um desafio como sustentam Konrad Hesse e
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Esse artigo resulta das discussões desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho Administração Pública Dialógica do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas, coordenado pela professora doutora Marinella Machado Araújo. As ideias aqui apresentadas representam ainda reflexões preliminares desenvolvidas pelos co-autores a partir seus respectivos projetos de pesquisa desenvolvidos no Programa de Pós-Graduação da PUC Minas.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 Fridrich Müller. Nesse contexto, o princípio do discurso de Habermas apresentase como fundamento para a defesa da “governança participativa”, sustentada pelo Estatuto da Cidade, como um modelo de gestão administrativa fundado na institucionalização do diálogo, na articulação política entre poder público e sociedade civil e accountability. Nesse contexto, o texto sustenta ser a universalização da participação da sociedade, por meio de associações civis, representa uma forma eficiente de inclusão de grupos historicamente marginalizados e de formação de sujeitos de direito co-responsáveis pela formulação e implementação de políticas públicas. E, ao fazê-lo, apresenta o plano de coleta de lixo seletiva realizada pela Prefeitura do Município de Belo Horizonte como um modelo efetivo e eficiente de Administração Pública dialógica. E, ao fazê-lo, demonstra como a concretização de dois direitos fundamentais, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à cidade sustentável, pode ser realizada pela gestão democrática de espaços urbanos. PALAVRAS-CHAVE: Administração Pública Dialógica, Associativismo, Políticas Públicas.
1. INTRODUÇÃO O objetivo do presente artigo é comprovar que a universalização da participação da sociedade, por meio de associações civis, representa uma forma eficiente de gestão local, tornando os cidadãos co-responsáveis pela formulação e implementação de políticas públicas. O estudo dessa participação é feito à luz da teoria do discurso de Habermas e da teoria concretista de Müller, sendo a primeira utilizada para constatar o canal de comunicação entre a iniciativa privada e o Poder Público e, a segunda, utilizada para legitimar as normas administrativas. Evidenciamos tal abertura para a ‘governança participativa’ na Administração Pública desde a Constituição quando essa elenca o poder estatal como emanação do povo, no parágrafo único do artigo 1º, até o instrumento mais recente da administração das cidades, o Estatuto da Cidade quando esse propõe que o desenvolvimento sustentável de uma cidade será promovido com a participação do povo, através das associações civis, que participando das decisões administrativas serão co-responsáveis pela gestão democrática das cidades. Arrimado em uma abordagem ilustrativa o texto, parte de uma análise indutiva, que nasce da parceria entre a Prefeitura de Belo Horizonte – Minas Gerais e a Associação Civil dos catadores de lixo que criaram uma instituição destinada à coleta seletiva do lixo, denominada Asmare. Tal projeto intenta conscientizar e a valorizar as ações populares que fortificam as leis e o sistema da Administração Pública.
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Pretendemos demonstrar como a concretização de dois direitos fundamentais – ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à cidade sustentável – pode ser realizada pela gestão democrática de espaços urbanos. 2. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA Iniciemos a proposição analisando o que é República. República é uma forma de governo que nasce como uma contraposição à Monarquia e possui um sentido muito próximo ao da Democracia, uma vez que prevê a participação social no governo. Ela surge no final do século XVIII com as seguintes características: Eletividade – o governante é eleito pelo povo; Temporalidade – o governante recebe um mandato por período certo e Responsabilidade – o governante é politicamente responsável e deve prestar contas ao povo. Nesse sentido se apresenta a República adotada pelo texto constitucional, uma República Democrática, na qual o poder soberano do povo é exercido não só diretamente através do voto direto, secreto e universal, bem como através de canais decisórios junto a administração pública que propiciam o diálogo entre o Estado e o povo, esse que é um meio, a nosso ver, eficaz de concretização da prescrição normativa, posta pela Constituição, no que diz respeito às normas que instituem direitos fundamentais. É a partir do exercício de cidadania que o indivíduo contribuirá para a formação do Estado Democrático de Direito. O ideal de liberdade política que extingue o absolutismo e surge com o republicanismo intenta a soberania popular, a limitação de faculdades dos governantes e da garantia de direitos individuais. A consolidação da soberania popular depende da transição do sistema de governo democrático representativo para o participativo, de tal maneira que seja resguardado a liberdade e a legitimidade do povo. Com o intuito de construir o conceito de cidadania moderna Cristina Seixas Vilani (2002) faz uma explanação cronológica dos sistemas políticos. A explicação se inicia com um conceito de cidadania nascido na Antiguidade que se resume àquele que pertence a uma comunidade cívica, perpassa por uma disposição Moderna que ressalta o processo de criação e ampliação de direitos até adquirir uma dimensão universal. A estudiosa decorre por uma visão republicana – socialista que define o cidadão como um homem que pensa em liberdade como autodeterminação do povo; que possui um ideal de bem-estar coletivo. Finalmente estabelece o conceito de cidadão liberal como aquele que luta intensamente pela tutela dos direitos individuais. Vilani tece que o cidadão moderno advém desse desenvolvimento histórico dos direitos civis aos políticos; dos direitos de primeira a terceira geração também
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chamado de metaindividuais. É quanto à classificação desses últimos direitos que a autora ressalta a evolução desse conceito, uma vez que o indivíduo passa a se preocupar com a humanidade e apesar de se agrupar em categorias específicas (idosos, estudantes, religiosos etc.) ele percebe a necessidade do engajamento global. A proteção de direitos difusos é fundamental na legitimação do Estado Democrático de Direito; o fortalecimento do sistema jurídico é derivado da execução do pluralismo, da valorização das diferenças, da igualdade de oportunidades e da prática cívica. A participação social é o que oferece o dinamismo à norma. A própria Constituição ao estabelecer no parágrafo único do art. 1º que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (grifo nosso) dá margem a uma interpretação no que tange ao efetivo exercício da soberania popular, precisamente, por meio da participação democrática. O povo é o único detentor legítimo do Poder, e isso se justifica no sentido de que a Constituição é oriunda do Poder Constituinte Originário, promulgada por uma Assembleia Nacional Constituinte, fundamento esse que justifica o sistema democrático participativo para, além de outras coisas, se adequar ao paradigma de Estado Democrático de Direito. Percebemos a priorização desse sistema democrático participativo, na recente reforma administrativa realizada no País, reforma esta que priorizou, dentre outros fatores, uma participação acentuada do particular na discussão, gestão e execução do serviço público para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito e consequentemente da legitimação da Administração Pública Dialógica. A Administração Pública Dialógica é uma forma de gestão muito pouca difundida entre a população apesar de sua previsão ter nascido juntamente com a Constituição de 1988 ao prever a existência das Ações Civis Públicas e as Ações Populares. O conceito desse tipo de Administração Popular é tão pouco divulgado e aplicado que visualiza-se escassez de jurisprudência nesse sentido. Não há entre as decisões jurídicas na explicito quanto à importância da participação popular nas decisões administrativas. 3. A LIMPEZA URBANA 3.1. Uma função da Administração Pública A Administração Pública como determina o tópico anterior surge da concessão do poder do povo aos representantes que deverão dar prioridade aos direitos difusos em todas as suas decisões políticas. Esta concessão é feita principalmente pela Carta Magna que norteia claramente a vontade da Administração. Uma dessas funções é objeto de estudo da presente pesquisa e está disposta a seguir:
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A Constituição da República no Título VII – DA ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA dispõe no seguinte art. 182 do Capítulo II – Da política urbana: A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. (grifo nosso)
Há também a seguinte previsão no art. 225 do Capítulo VI – DO MEIO AMBIENTE: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (grifo nosso)
O texto constitucional incumbe a Administração Pública como a detentora do bem estar social, consequentemente a que possui competência no âmbito municipal de legislar sobre saneamento básico e meio ambiente. Nesse mesmo sentido dispõe o Estatuto da Cidade: Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social; IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente.
A Lei Orgânica de Belo Horizonte prevê no art. 150 e 151 Capítulo III – Do Saneamento Básico: Art. 150 – Compete ao Poder Público formular e executar a política e os planos plurianuais de saneamento básico, assegurando: II – a coleta e a disposição dos esgotos sanitários e dos resíduos sólidos e a drenagem das águas pluviais, de forma a preservar o equilíbrio ecológico e prevenir as ações danosas à saúde; (grifo nosso)
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 Art. 151 – O Município manterá sistema de limpeza urbana, coleta, tratamento e destinação final do lixo, observado o seguinte. (grifo nosso)
Após a leitura da legislação percebe-se que a vontade da Administração Pública é submissa à lei e que a previsão normativa não é suficiente para que o governo atenda as necessidades sociais. Logo que vivemos em uma realidade totalmente carente de iniciativas estatais principalmente quanto à limpeza urbana e todo o complexo que a envolve; como os funcionários que trabalham na coleta de lixo e a destinação desses resíduos. Konrad Hesse (1991) dispõe de forma mais clara o que era previsto por Kant. Ao examinar e ponderar a tese de Ferdinad Lassalle sobre o dever da Constituição representar questões políticas, ele destaca que a simples formalidade da lei não garante a proteção dos direitos do homem, pois as relações de poder têm que ser aplicadas na realidade. Contudo, o afastamento total da previsão escrita gera insegurança e incerteza, não menosprezando, portanto, o valor do texto na evolução do Direito. Hesse concebe que o texto somente se transforma em realidade com a atuação do intérprete, o texto não é imutável, mas não poderá ser estático. Aqui se enquadra a concepção de norma jurídica de Muller, o autor analisa a própria concepção da norma metódica estruturante a partir dos métodos de interpretação. De acordo com Muller, ao contrário do que dispõe as teorias positivistas (as normas e os institutos como um ato de vontade do Estado e que precisam ser obedecidas independentemente dos dados históricos e da própria sociedade), a norma concretiza-se a partir da aplicação da prescrição normativa ao fato real, o teor legal representará o limite dessas soluções, deve-se procurar no caso real o elemento normativo que não pode ser eliminado sem que a situação sofra substancial transformação. A norma para Müller é, portanto, a junção do âmbito da norma (prescrição legal) e sua aplicação. Sem a aplicação das normas analisadas acima não há que se falar em norma jurídica e, portanto, em concretização de normas que dizem respeito à política urbana. Esta colocação confirma-se a partir do exposto acima; a Constituição da República, o Estatuto da Cidade e a Lei Orgânica determinam que são funções do Estado preservar o meio ambiente e buscar uma finalidade certa ao lixo produzido nas cidades; todavia, o que observamos, em Belo Horizonte especificamente, é uma enorme quantidade de resíduos descartados no espaço público. Percebemos, ainda, não haver por parte do Estado uma conscientização eficiente da população como determina a lei. Grande parte do lixo recolhido é remetida a um aterro sem que haja a reciclagem, como expõe a legislação. A destinação do lixo é
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uma realidade muito problemática não só para Belo Horizonte como para todo o país, para se ter uma ideia da gravidade do problema, segundo o Manual do Instrutor (2006) do total de lixo coletado 55% é jogado em áreas alagadas e lixões a céu aberto; 35% são enterrados em aterros adequados e apenas 10% vai para usinas de reciclagem e compostagem. Nesse sentido é essencial a contribuição das associações civis nas soluções desses problemas, pois além de representarem um poder fiscalizador local estes grupos passam a ser a própria gestão administrativa do lugar. Um dos instrumentos da gestão administrativa é o corporativismo surge2 com a precípua função de amenizar a realidade presenciada por indivíduos que não possuem amparo estatal, e, portanto, são incapazes de viver dignamente. O movimento aconteceu no Brasil data de 1847 quando foi fundada a primeira cooperativa no Paraná denominada Colônia Tereza Cristina. Em Belo Horizonte. Fatigados os moradores de rua e catadores de lixo, fatigados do cenário de exclusão em que viviam, e possuindo apenas, como meio de sobrevivência a coleta de lixo resolveram se associar para serem reconhecidos como uma categoria. Esta seria a única de solucionar seus problemas. A ASMARE – Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável de Belo Horizonte é uma associação organizada por estes cidadãos marginalizados que até o presente momento tem bom êxito. Hoje os integrantes da ASMARE adquiriram novamente respeito social e são vistos como cidadãos, principalmente por estarem contribuindo para a formação do Direito. A iniciativa da ASMARE inseriu esses indivíduos em um sistema claro de Administração Dialógica, pois esse grupo pode participar de uma decisão resolutiva para um problema que os afetava diretamente. Nesse ponto é que verificamos a aplicação do disposto pela Teoria Discursiva de Habermas (2004) e que propõe a abertura de canais deliberativos aos vários atores sociais frente ao Estado. O autor fundamenta o valor da participação popular e do diálogo sociedade – Estado para a legitimação normativa. Habermas entende que deve existir em um Estado Democrático de Direito o agir comunicativo, ou seja, o entendimento entre falantes e ouvintes decorrente de um consenso sobre algo em comum no universo que os envolve. Ainda Ressalta Habermas que o corpo político se constitui de pessoas que se identificam mutuamente como portadoras de direito recíprocos, o reconhecimento 2
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de todos esses direitos pelos cidadãos fundam-se em leis, estas para serem legítimas têm de garantir o acesso de todos aos mesmos níveis de liberdade, inclusive os de participação e resolução dos problemas sociais por eles enfrentados. O referido autor prossegue afirmando que a soberania do povo, somente tem espaço no processo democrático. Dessa forma, atinge a consolidação jurídica de seus pressupostos comunicacionais, se esta soberania popular tiver por fim precípuo a validação do poder criado através da comunicação. A democracia participativa, analisada sob o viés da teoria do discurso, assentase na garantia de acesso a qualquer indivíduo em pleno gozo de seus direitos políticos. Direito esse de exercer, em todos os graus, a liberdade de participação nas discussões e resoluções de problemas atinentes à sociedade no qual esses indivíduos estão inseridos. Com efeito, a democracia participativa demanda para a sua efetiva concretude, a ação da soberania popular pelo instrumento dialógico. A manifestação de diversificadas ideias num ambiente público propício à discussão das questões sociais favorece, inicialmente, a canalização das opiniões para um ponto comum. O consenso entre os debatedores resulta, dessa forma, em soluções racionais plausíveis para os problemas sociais enfrentados. A Democracia Participativa representa a concretização da soberania popular ao conferir ao cidadão o direito de participação nos canais deliberação onde expondo suas ideias e ouvindo a de outros é capaz de construir um consenso na tomada de decisões. A parceria da Prefeitura de Belo Horizonte e da ASMARE é um modelo eficaz de Administração Pública Dialógica, pois redes solidárias, como esta, são construídas em um contexto de muitos embates, principalmente com o poder público, mas o resultado desse processo de organização é sem dúvida altamente benéfica a vários ramos da sociedade. Percebe-se que a criação da ASMARE, a partir de um canal de comunicação sociedade-Estado, proporcionou empregos de qualidade a milhares de brasileiros ociosos e muitas vezes marginalizados. Ademais a reciclagem do lixo feita por esse grupo atribui renda a um produto que não possuía o menor valor de mercado direto de gestão por parte do indivíduo e proporciona a este autonomia na solução de problemas por ele vivenciado como a questão do desenvolvimento da sociedade sustentável, além disso, a ASMARE representa um meio que antes não era aproveitável hoje produz capital que é investido na própria sociedade. Felizmente os cidadãos parecem se conscientizar da importância da criação dessas associações e cooperativas na concretização do Estado Democrático de Direito, pois a iniciativa dessa junção torna esses cidadãos mais poderosos frente ao
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Estado. O agrupamento em busca de uma meta comum implica em debate e contestação meios fundamentais para a verificação da validade e concretização de uma norma. 4. CONCLUSÃO A partir da identificação do funcionamento local de um canal de comunicação entre Estado-sociedade, especificamente a ASMARE, o presente artigo buscou demonstrar a possibilidade da criação de uma relação dialógica entre o Poder Público e a iniciativa privada realmente eficaz, e como a efetivação da soberania popular posta constitucionalmente avançou pelos instrumentos concebidos pelo Estatuto da Cidade. O estudo embasado na análise da concretização de dois direitos fundamentais, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à cidade sustentável, evidenciou a realização da gestão democrática de espaços urbanos. Foi possível identificar um grau satisfatório de concretização do princípio da eficiência da Administração Pública. A partir da análise das políticas públicas de limpeza urbana implementadas pela prefeitura de Belo Horizonte e pela ASMARE. Concluímos que as teorias concretista de Muller, e discursiva de Habermas contribuem para a fundamentação teórica desse movimento de efetivação da democracia participativa. Da mesma forma, constatou-se a importância da proposição de ações ou projetos que visem à difusão do desempenho da Administração Pública. A necessidade da descentralização gestora, e de repasse aos grupos sociais organizados da gestão dos programas sociais. Ao passo que à Administração Pública caberia apenas a fiscalização dessas atividades. Essa situação acarreta, certamente, a concretização das funções e das normas que regem o Poder Público. Em que pese a abertura para o canal de comunicação público-privado, é necessário que a iniciativa deva partir tanto do Estado quanto da sociedade, havendo uma reciprocidade de interesses entre as partes envolvidas na deliberação das questões sociais. O Estado precisa estimular os cidadãos a se agruparem ou associarem para facilitar a organização da entidade civil, ao passo que os cidadãos cientes do exercício pleno da cidadania, precisam participar das deliberações públicas. Portanto, uma das soluções apontadas para a edificação de um novo paradigma de Administração Pública eficiente e eficaz, é sem dúvida instituir mecanismos capazes de fortalecer a democracia participativa em que o povo seja o verdadeiro detentor do poder, o que nada mais representa do que a ‘governança participativa’.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável. Cartilha. Belo Horizonte: Minas Gerais, 2004. BELO HORIZONTE. Lei Orgânica de Belo Horizonte. Disponível em: <http://www.cmbh.mg.gov.br/ images/stories/divcon/Lei%20Organica%20atualizada.d oc>. Acesso em: 15/8/2008. BRASIL. Constituição da República Federativa do. Org. Yussef Said Cahali. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. (Legislação Brasileira). Compromisso Empresarial Para Reciclagem – CEMPRE. Manual do Instrutor, Cooperar Reciclando Reciclar Cooperando. Belo Horizonte, Minas Gerais, 2006, p. 12. HABERMAS, Júrgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução George Speeder. Edições Loyola, 2002. HABERMAS, Júrgen. Três modelos normativos de democracia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 289. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991. MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2. ed. revista, apresentação de Paulo Bonavides. Editora Parma LTDA. São Paulo, 2005. PETIT, Philip. Democracia e contestabilidade. In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy editora, 2003, p. 371. VILANI, Maria Cristina Seixas. Cidadania moderna: fundamentos doutrinários e desdobramentos históricos. Caderno de Ciências Sociais, Belo Horizonte, 2002, p. 47-64.
A Educação Jurídica Popular Como Instrumento do Direito à Gestão Democrática da Cidade: a Prática Extensionista na Busca por uma Participação Popular Efetiva LÍVIA GIMENES DIAS
DA
FONSECA
Graduada na Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo. Assessora Técnica da Comissão de Anistia/Ministério da Justiça.
MARCO AURÉLIO PURINI BELÉM E STACY NATALIE TORRES DA SILVA Graduandos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo. Membros do Grupo de Regularização Fundiária em Paraisópolis. Projeto Aprender com Cultura e Extensão da USP.
RESUMO: Neste artigo, o Grupo de Regularização Fundiária em Paraisópolis compartilha as dificuldades enfrentadas na efetivação da participação popular em diversas instâncias (Conselho Gestor da ZEIS e Associação Projeto Moradia) do processo de urbanização e regularização fundiária nessa comunidade; bem como, reflete acerca das possibilidades e limites da Educação Jurídica Popular como instrumento de capacitação para exercício do direito à gestão democrática da cidade. O presente trabalho avalia em que medida o uso da educação de caráter emancipatório conjugada com a litigância em ações coletivas de “usucapião” pode contribuir para que a população participe de maneira efetiva e não simplesmente legitime um modelo de planejamento desigual e acabe por implementar políticas que reproduzam a segregação e a exclusão nas cidades. A experiência existencial dos indivíduos que vivem nas cidades se constitui dentro das fronteiras do anti-diálogo, na relação estrutural, rígida e vertical de centro e periferia, em que os que compõem os estratos mais baixos são considerados inferiores. Esse contexto de opressão gera um modelo de produção do território e do conhecimento que tem no homem e na mulher da periferia a descrença, a subestimação de sua capacidade de assumir o papel de sujeito, tudo isso fomenta nesses indivíduos uma postura paciente e dócil, enquanto o ato de conhecer e
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 participar do planejamento urbano deveria supor uma postura exatamente oposta. Em tal acepção, as atividades de extensão possuem um papel na diminuição dessa opressão ao aproximar o conhecimento produzido nas Universidades com o conhecimento popular de maneira não hierarquizada, empoderando a população para que exerça seus direitos enquanto legítimos sujeitos políticos.
INTRODUÇÃO AOS INSTRUMENTOS DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES Uma nova ordem jurídico-urbanística foi inaugurada em nosso país com a Constituição Federal de 1988. A criação de um Capítulo denominado “Da Política Urbana”, em seus artigos 182 e 183, marcou a constitucionalização do Direito Urbanístico, dando um claro alcance de Direito Público para normas que regulam o uso, a ocupação, o parcelamento e a gestão do solo urbano, antes tratadas unicamente pelo viés civilista. Esses capítulos só foram regulamentados anos mais tarde, com a edição do Estatuto da Cidade – Lei Federal nº 10.257/01. É importante frisar que tanto o Capítulo da Constituição quanto sua lei regulamentadora só foram normatizados devido à pressão e articulação, principalmente, de movimentos sociais e ONGs junto ao Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU). Por ser fruto de um processo de construção com atores comumente negligenciados dos processos de elaboração de políticas urbanas, o Estatuto da Cidade foi explícito e enfático na necessidade de construção da política urbana por meios de processos públicos e participativos – e não meramente estatais, transformando esta questão em um dos princípios mais caros ao Direito Urbanístico, o da “Gestão Democrática das Cidades”, expresso no artigo 2º, II da Lei Federal 10.257/01 quando da “formulação, execução e implementação de planos, programas projetos de desenvolvimento urbano.” Dessa forma, o Plano Diretor, que é “o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”, obrigatório para municípios com mais de vinte mil habitantes (Constituição Federal, art. 182, § 1º), foi, com a edição do Estatuto da Cidade, transformado, necessariamente, em Plano Diretor Participativo, pois é obrigatória a realização de audiências públicas quando da elaboração da lei municipal, conforme dispõe, expressamente o art. 40, § 4º, III, do Estatuto da Cidade. O Plano Diretor Estratégico (PDE) do município de São Paulo – Lei Municipal 13.430/02 – também foi construído a partir dos mesmos princípios do Estatuto da Cidade, inclusive o da “gestão democrática”. Prova disso é seu art. 7º, XII, que define, entre os seus princípios, a “participação da população nos processos de decisão, planejamento e gestão”.
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A Lei Municipal definiu também as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), “porções do território destinadas, prioritariamente, à recuperação urbanística, à regularização fundiária e produção de Habitações de Interesse Social – HIS ou do Mercado Popular – HMP”, (art. 171, caput, da Lei Municipal). Continua a Lei Municipal, em seu art. 175, VI, esclarecendo que cada ZEIS deverá estabelecer um Plano de Urbanização, por Decreto Municipal, que deverá prever formas “de participação da população na implementação e gestão das intervenções previstas” e continua, no § 1º: “Deverão ser constituídos em todas as ZEIS, Conselhos Gestores compostos por representantes dos atuais ou futuros moradores do Executivo, que deverão participar de todas as etapas de elaboração do Plano de Urbanização e de sua implementação”. 1. O GRUPO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE PARAISÓPOLIS A partir destes pressupostos foi firmado em 2003 um convênio entre a Prefeitura Municipal de São Paulo e o Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da USP, dando origem ao “Grupo de Regularização Fundiária de Paraisópolis” – um projetopiloto de extensão universitária com o objetivo de promover regularização fundiária em uma área (quadra) da Comunidade de Paraisópolis, localizada na zona Sul do município de São Paulo. Devido aos princípios do direito urbanístico, as normas municipais e federais sobre o assunto e convicções políticas dos membros do grupo foi decidido realizar a regularização fundiária na comunidade a partir de ações de Usucapião Coletivo – instrumento previsto no Art. 10 do Estatuto da Cidade. Decidiu-se também, juntamente com os moradores, fundar uma associação de moradores com os autores das ações – a Associação Projeto Moradia – que atuaria como substituta processual nas ações de usucapião coletivo. A partir da Associação Projeto Moradia e das ações de usucapião coletivo fazemos reuniões mensais com os moradores e as moradoras de Paraisópolis, discutindo os problemas da área e sua possível solução, num processo de incentivo à gestão coletiva do espaço. Além disso, incentivamos a participação dos associados e associadas nas reuniões do Conselho Gestor de Paraisópolis, por ser um espaço de discussão da urbanização de toda a coletividade residente naquela área e de participação do poder público, sendo, portanto, um espaço de pressão da comunidade para a efetiva implementação de políticas públicas urbanas. 2. RECONHECENDO AS DESIGUALDADES E OPRESSÕES NA PRODUÇÃO DA CIDADE A experiência existencial dos indivíduos que vivem nas cidades se constitui dentro das fronteiras do anti-diálogo, na relação estrutural, rígida e vertical de centro e periferia composta pela própria geografia, em que os que compõem os estratos
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mais baixos da sociedade são considerados inferiores. Esse contexto de opressão em que essas pessoas se encontram se reflete num modelo de produção de conhecimento e de produção da cidade. No homem e na mulher da periferia há a descrença, a subestimação da sua capacidade de refletir, de sua capacidade de assumir o papel de sujeito de procura do saber, o que faz com que seja exigida destes indivíduos, por muitas vezes, uma postura paciente e dócil, quando o ato de conhecer supõe uma postura exatamente oposta. Desta maneira, a produção de conhecimento na sociedade moderna adota um modelo da “não-existência”, ou de outra forma, da “monocultura do saber” em que, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, há a “transformação da ciência moderna e da alta cultura em critérios únicos de verdade e de qualidade estética, respectivamente (...) Tudo que o cânone não legitima ou reconhece é declarado inexistente”1. Nesta direção, há uma separação absoluta entre conhecimento cientifico e outras formas de conhecimento do senso comum ou estudos humanísticos2, tendo na ciência catedrática a única forma de produção de conhecimento considerado válido. Em contraposição a este modelo, Boaventura propõe o exercício de uma sociologia das ausências que implique na identificação das experiências produzidas como ausentes de forma que se tornem presentes como “alternativas as experiências hegemônicas”, que possam ter a sua credibilidade discutida e argumentada e possam ser objeto de disputa política3. Nesta mesma direção, se propõe também a substituição da “monocultura” pela “ecologia de saberes” em que se considera que “toda a ignorância é ignorante de um certo saber e todo o saber é a superação de uma ignorância particular”4, que não há epistemologias neutras e que estas devem ser produzidas no exercício prático do conhecimento observando seus impactos em outras práticas socais5. 3. A EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA As atividades de educação jurídica popular (extensão universitária) possuem um papel essencial no rompimento com a forma hegemônica de produção do
1
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez Editora, 2006, p. 102-103.
2
Idem, p. 25.
3
Idem, p. 104
4
Idem, p. 106.
5
Idem, p. 154.
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conhecimento científico ao colocar em contato o conhecimento produzido nos bancos das Universidades com o conhecimento popular. Desse modo, os dados da realidade fática, que a extensão emancipatória realizada nas Faculdades de Direito proporciona conhecer quando estimula nos(as) universitários(as) a busca de soluções aos problemas e conflitos sociais postos, alimenta a investigação sobre os possíveis significados e representações da realidade dentro de um campo teórico e os produtos dessa investigação são aproveitados para a transmissão de um conhecimento dinâmico que se atualiza e, em lugar de permanecer apegado aos seus roteiros conhecidos, abre-se para novas formas de interpelar e conhecer seu objeto de estudo6. No aprendizado do Direito em questão, trata-se da quebra de uma visão hegemônica normativista sobre o direito e sobre a sociedade que serve para ocultar a realidade humana contraditória, conflitiva e injusta que acaba por impedir a percepção do direito como instrumento de superação de uma realidade injusta e de exclusão social. Dessa forma, a concepção da educação como atividade supostamente neutra instrumentalizada para a reiteração de um ideal de Direito em forma de lei e desprendido da construção social e das implicações históricas transforma as pessoas em objetos despolitizados das decisões do Estado. A construção de um saber jurídico emancipatório só pode ser feita de forma coerente com uma educação que também esteja a serviço da emancipação de homens e mulheres. Assim, a experiência do projeto de “Regularização Fundiária” da comunidade de Paraisópolis, apesar da preocupação inicial do grupo ser a viabilização litigiosa da regularização das moradias do bairro, na relação com os(as) moradores(as) da região, percebeu-se que direitos fundamentais, tais como o direito à moradia, tratados através de uma ação judicial coletiva, comportam estratégias que devem superar a mera litigância judicial. Isto em razão do fato de que aqueles e aquelas que vivem em habitações consideradas “irregulares” sentem-se como indivíduos “ilegais”, ou seja, como relata Boaventura, vêem como perigoso trazer a situação ilegal da comunidade à atenção dos serviços do Estado, pois isto poderia levá-lo a lhes “jogar na cadeia”. O autor demonstra que pessoas que vivem nessas condições não buscam a polícia e/ou Poder Judiciário para a resolução de seus conflitos internos o que acarreta na criação de 6
A Constituição Federal de 1988 legitima o status da extensão como “indispensável” para o processo de aprendizagem e produção científica nas Universidades quando concede à extensão um caráter indissociável do ensino e da pesquisa: “Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.
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uma situação de pluralismo jurídico7. Nesta direção, o mero tratamento litigioso da questão, distanciado dos(as) moradores(as) da quadra, poderia levar a dar um uso ao Direito que reduziria os indivíduos à condição de “coisas”, roubando-lhes o direito de serem sujeitos de seu próprio discurso e destino. Assim, o projeto passou a compor em sua atuação junto à comunidade oficinas de Educação Jurídica Popular. Entretanto, uma grande dificuldade em realizar uma verdadeira “práxis” é encontrada por muitos(as) estudantes na sua prática educativa. Para Lyra Filho, “o grau de conscientização, a sua própria coerência e persistência dependem sempre do nosso engajamento numa práxis, numa participação ativa consequente”8. A ação educativa para uma visão crítica do direito deve sempre estar aliada aos estudos das possibilidades dos seus discursos e de sua própria prática para que essa seja repensada constantemente. Uma educação para os Direitos Humanos, na perspectiva da justiça, deve se pretender “dialógica”, ou seja, deve buscar na relação dos indivíduos com o mundo a sua existência à comunicação, o que é a essência do “ser da consciência”9 (a intencionalidade), e serve à sua libertação da condição de “seres para o outro” que passa a ser a condição de “seres para si” significando a sua “autonomização”10 e empoderamento na perspectiva de se descobrirem dotados de um saber próprio indispensável para a transformação de uma normativa a que eles se encontram submetidos enquanto cidadãos, mas que não reflete as suas realidades. Nessa direção, os direitos formulados através da ação comunicativa da participação democrática devem deixar a critério dos sujeitos jurídicos se querem e como querem fazer uso de tais direitos11. Desse modo, as Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs) surgem como uma reação à redução do direito como norma e a uma forma de reflexão acerca da “problemática da democracia, da cidadania e do papel das instituições (em especial o Estado) em relação ao poder”12, tendo, assim, como concepção de que o Direito deva ser formulado através de uma prática dialógica, o que “pressupõe a recriação da 7
SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada, In: Sociologia e Direito. São Paulo: Pioneira, 1999, p. 03.
8
LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? São Paulo: Brasiliense, 2005 (col. Primeiros passos; 62) 12. reimpr. da 17. ed., 1995, p. 22.
9
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 77.
10
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p.39.
11
Idem, p. 94.
12
AGUIRRE, Claudia Freitas. Senso comum teórico dos juristas e saber crítico: uma leitura do pensamento de Luis Alberto Warat. Dissertação (Monografia), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 49.
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noção de Justiça e a ampliação do conceito de Direito, que não se reduzem à ordem estabelecida, mas apontam para a indisponibilidade do direito popular de autoexercício de participação como sujeito determinante, ativo e soberano, da direção de seu próprio destino”13. Portanto, a experiência da Regularização Fundiária de Paraisópolis é na verdade uma “experiência de conhecimento” que busca nos conflitos e diálogos diferentes formas de saber. A tradução dessas diferentes formas de conhecimento, postas em contato através do diálogo, “visa transformar a incomensurabilidade em diferença”14 e servem para a verificação da inadequação ou incompletude dos conceitos teóricos do Direito que devem estar a serviço da emancipação social. A partir desses pressupostos pretende-se contribuir com uma preocupação metodológica para trabalhar as questões de desigualdade e desmistificação da técnica, a fim de conferir uma verdadeira legitimidade popular à prática urbanística. 4. A ANÁLISE DA GESTÃO DEMOCRÁTICA EM PARAISÓPOLIS Analisando especificamente a experiência de participação popular no processo de urbanização e regularização fundiária no Paraisópolis, nota-se uma mera formalidade na gestão democrática, pelo espaço extremamente limitado de participação nas decisões. Nossa ponderação tem início com a investigação da participação dos moradores no processo de elaboração do Plano Diretor Participativo do Município de São Paulo. Sendo o Plano Diretor peça chave da regulação urbanística das cidades, a ausência de representantes dessa comunidade no seu processo de elaboração já macula as bases que serviram para tomada de decisão em torno dos objetivos e prioridades do Plano em relação a essa comunidade. A leitura da realidade através do olhar dos moradores é fundamental para seleção de temas e objetivos a serem trabalhados pelo Plano. A ótica da cidade pelo olhar da população não dispensa, contudo, a necessidade de que uma visão técnica e das leis seja apresentada a esses cidadãos, de modo que possam participar verdadeiramente, sendo essencial o conhecimento dos instrumentos urbanísticos para que os objetivos do Plano possam ser cumpridos. Pelo caráter permanente de participação que caracteriza a gestão democrática, exige-se uma distribuição democrática do poder, uma liberdade ativa, um espaço público de palavra e de ação para o controle das atividades do poder público por parte dos indivíduos. 13
SOUSA Jr. José Geraldo (org.). Introdução crítica ao direito. Direito achado na rua, edição 4, vol. 1, p. 130.
14
SANTOS, Boaventura de Sousa, ob. Cit, 2006, p. 104.
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Em Paraisópolis não houve uma construção do que iria ou não entrar na Lei do Plano Diretor, nem na fase inicial da elaboração do projeto de lei, nem na de deliberação do texto final, embora fosse necessária a discussão pública e participativa. Para isto, seria necessário uma qualificação para a discussão, a capacitação desse grupo para o debate avançado em torno do texto e das prioridades a constarem no projeto. Sendo essa comunidade uma Zona Especial de Interesse Social, deveria ser estabelecido um Plano de Urbanização, que previsse formas “de participação da população na implementação e gestão das intervenções previstas” e que deveriam ser constituídos em todas as ZEIS, Conselhos Gestores. De acordo com a lei esses devem ser compostos “por representantes dos atuais ou futuros moradores, (...), que deverão participar de todas as etapas de elaboração do Plano de Urbanização e de sua implementação”. A qualificação/capacitação dos moradores, não foi priorizada nessa fase de elaboração do Plano de Urbanização e de Composição do Conselho Gestor da ZEIS. Deste modo, a hipossuficiência técnica dos moradores foi legitimadora de um Plano de Urbanização excludente, fruto de um planejamento tradicional, que não permitiu que os moradores e moradoras participassem das decisões ou interviessem na promoção da integração da comunidade com o bairro que a circunda – é importante ressaltar que Paraisópolis é uma favela localizada no centro de um bairro de altíssima renda em São Paulo. Além disso, o Plano de Urbanização não levou em conta as desigualdades de género, os direitos dos idosos, perdendo uma excelente oportunidade de melhorar a condição de vida dos oprimidos da comunidade, ao não promover uma política urbana afirmativa. Para exemplificarmos o que poderia ser uma política que diminuísse a opressão sobre as mulheres destacamos a previsão de equipamentos sociais de apoio às tarefas domésticas, como lavanderias e restaurantes comunitários e espaços para creches. E quanto aos idosos, seria, por exemplo, a previsão de construção de moradias com adaptações as dificuldades cotidianas. Assim, estaríamos avançando na democratização da cidade, na medida em que seria contemplado um olhar atento as dificuldades reais dos excluídos. O que aconteceu foi que a participação dos moradores nesse processo legitimou um modelo de planejamento desigual e acabou por implementar políticas que reproduziram a segregação e exclusão. Foram aprovadas no Conselho remoções sem o devido atendimento habitacional, à revelia de um direito já conquistado por aqueles(as) que já ocupam a região à tempo e com requisitos suficientes para usucapir a área. Sem a devida instrução sobre seus direitos, muitos saíram do Paraisópolis sem o devido atendimento habitacional. Na composição do Conselho Gestor da ZEISs temos uma peculiaridade perversa. Conforme dito anteriormente, Paraisópolis tem em seu entorno um bairro rico, o que faz com que interesses imobiliários e do poder econômico ditem as regras
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da composição do Conselho. Isso ocorreu de tal forma que metade dos conselheiros é do Poder Público, e metade é da sociedade civil, porém a sociedade civil possui 30 representantes, divididos da seguinte maneira: 3 são de ONGs, 2 proprietários de terrenos, 2 moradores do bairro de alta renda (Morumbi) e 23 moradores da favela. Tal configuração tem feito com que ao longo dos últimos anos (nos quais a Prefeitura defendeu uma política pró-proprietários) os moradores não tenham conseguido vencer votações contra o interesse dos moradores do Morumbi. Os moradores acabam dependendo da gestão que está no governo nos momentos em que seus interesses ficam contrapostos aos interesses dos moradores do Morumbi. Para exemplificar, algumas dessas derrotas, em meio a um momento conturbado de remoções e de início de grandes obras na comunidade, os moradores atingidos começaram a se fazer presentes nas reuniões do Conselho; e as Secretarias (que raramente estão presentes) apareceram em peso para aprovar duas resoluções: ouvintes só terão direito a 1 minuto de fala e diminuiu para a metade da periodicidade das reuniões do Conselho, o que aumentou a pauta e a complexidade da reunião. Ambas as resoluções tiveram rejeição plena pelos moradores da comunidade, mas foram aprovadas pelas ONGs, pelos proprietários e pelo poder público. Defende-se neste trabalho que os Conselhos Gestores de ZEIS são espaços para audição e defesa dos interesses daqueles que vão ser atingidos pelas intervenções urbanísticas e que por servirem de instrumento no avanço da democratização das cidades, de maneira coerente com seu ideal, deveriam atentar em sua composição e funcionamento para questões de acessibilidade de localização e de horários; levar em consideração a paridade de gênero; garantir o apoio às mães (com lugares para os filhos brincarem enquanto elas participam), além da necessária capacitação e tempo suficiente para expressão dos moradores. No entanto, parece demasiado distante essa realidade, na medida em que estamos lutando ainda pela não subordinação dos indivíduos, e por um sim ao diálogo15. CONCLUSÃO O trabalho dos estudantes do grupo de regularização fundiária de Paraisópolis privilegia a experiência coletiva, numa prática não hierarquizada, dialógica e multidisciplinar; se baseia em um projeto pedagógico ético de luta por humanização num contexto de diálogo e troca e na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Por estarem comprometidos com o desafio de um direito igualitário, que garanta direitos e não simplesmente se contente com a proclamação desses,
15
ARENDT, Hannah. The recovery of the Public World. New York: St. Martin Press, 1979, pp. 186.
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reconhecem através de sua prática que os direitos positivado quanto à governabilidade democrática das Cidades não são exercidos pelos excluídos. Na prática, no município de São Paulo, não há ainda um espaço público ensejador de participação na coisa pública, com um diálogo plural que permite a palavra viva e a ação vivida, numa unidade criativa e criadora16. Por fim, se pretendemos fazer cidades mais justas e igualitárias, precisamos empoderar a população para que exerçam seus direitos enquanto legítimos sujeitos políticos, para que esses possam formular políticas que colaborem para diminuir essa correlação desigual de conhecimento, de gênero, de poder. Dentre os marcos institucionais que constituem a nova ordem jus-urbanística, a participação popular é o principal instrumento capaz de verdadeiramente avançar na democratização da cidade. A luta pela implementação da gestão democrática, com uma efetiva participação popular, é essencial para impedir que esse instrumento tão fundamental para concatenação do objetivo de um ambiente urbano mais justo e sustentável, se torne mera liberalidade, ou letra morta no nosso ordenamento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIRRE, Claudia Freitas. Senso comum teórico dos juristas e saber crítico: uma leitura do pensamento de Luis Alberto Warat. Dissertação (Monografia), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. ______. Pedagogia do Oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. GOUVEIA, Taciana (Org.). FERREIRA, Simone (colab.). Ser, fazer e acontecer: mulheres e o direito à cidade. Recife: SOS CORPO – Instituto Feminista para a democracia, 2008. HABERMAS, Júrgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. ARENDT, HANNAH. On revolution. New York: Viking Press, 1965. ______. The recovery of the Public World. New York: St. Martin Press, 1979. ______. The life of the mind, vol II. New York: Harcourt, Brace, Janovich, 1978. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? São Paulo: Brasiliense, 2005 (col. primeiros passos; 62) 12. reimpr. da 17. ed. de 1995. SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez Editora, 2006.
16
ARENDT, Hannah. On revolution. New York: Viking Press, 1965. pp. 217-285. ______. The life of the mind, vol II. New York: Harcourt, Brace, Janovich, 1978. pp. 199-200.
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______. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada, In: Sociologia e Direito. São Paulo: Pioneira, 1999. SAULE Jr., Nelson. A relevância do direito à cidade na construção de cidades justas, democráticas e sustentáveis. In: SAULE Jr., Nelson (org.). Direito urbanístico: vias jurídicas das políticas urbanas. 1. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2007. SOUSA Jr. José Geraldo (org.). Introdução crítica ao direito. Direito achado na rua, edição 4, vol. 1.
4 PROTEÇÃO DO DIREITO À CIDADE, A ORDEM URBANÍSTICA E A SUA JUDICIABILIDADE
A Difícil Implementação dos Instrumentos Urbanísticos quando da Revisão da Legislação do Uso e Ocupação do Solo Urbano TATIANA MONTEIRO COSTA E SILVA1 Mestre pela Universidade Estadual do Amazonas – UEA.
MAREEI ALEXANDRE LOPES2 Advogado.
RESUMO: Com a introdução da Lei Federal n. 10.257 de 2001 fez com que grande parte dos municípios brasileiros se adequasse aos novos parâmetros estabelecidos na referida norma, na revisão e/ou elaboração por meio dos planos diretores. Dos vários instrumentos contemplados, ainda existe alguns limites a serem ultrapassados quando da implementação destes pelos municípios: primeiro pela falta de estrutura e articulação entre os órgãos de gerenciamento urbano e os órgãos de planejamento, segundo pela dificuldade em delimitar os lotes urbanos onde se incidirão determinados instrumentos, com a própria questão do zoneamento. A delimitação físico-espacial do lote urbano por meio de legislação específica na prática é de difícil implementação, seja pela ausência de alguns instrumentos fundamentais: o levantamento aerofotogrométrico do município, o sistema integrado de informação – SIG, e os dados do perfil socioeconômicos da cidade. O presente artigo pretende demonstrar a importância de instrumentos prévios para complementar o estudo e análise de outros instrumentos quando da revisão da lei de uso e ocupação do solo: zoneamento, o direito de preempção e do IPTU progressivo no tempo, etc. PALAVRAS-CHAVE: Plano Diretor, Delimitação, Legislação Específica, Aerofotogrometria, SIG, Perfil Socioeconômico. 1
Professora do UNIVAG – Centro Universitário, Professora do Centro Universitário – UNIRONDON, Diretora de Plano Diretor do Instituto de Planejamento e Desenvolvimento Urbano de Cuiabá.
2
Pós-Graduado em Direito Agroambiental pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso, Coordenador do Núcleo de Prática Jurídicas do UNIVAG – Centro Universitário.
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INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo mostrar a dificuldade de implementação dos instrumentos urbanísticos previstos pelo Estatuto da Cidade, norma federal que determina que toda propriedade urbana deve cumprir com sua função social, especialmente por força de seu caráter sancionatório. Contudo é sabido que a ausência de planejamento nos centros urbanos ocasiona o colapso da qualidade de vida. Os instrumentos urbanísticos, quando implementados, objetivam proporcionar aos cidadãos o direito de ir e vir, a acessibilidade, a mobilidade, a moradia, o lazer e a cultura, enfim, o planejar a cidade para o amanhã. Grande parte dos municípios brasileiros está passando por um processo de implementação dos planos diretores, que devem compatibilizar com as normas de uso e ocupação do solo. Eis a grande dificuldade encontrada pelos técnicos e gestores municipais, dada a falta de estrutura e articulação entre os órgãos de gerenciamento urbano e os órgãos de planejamento, como também pela ausência de alguns instrumentos fundamentais prévios: o levantamento aerofotogramétrico do município, o sistema integrado de informação – SIG, e os dados do perfil socioeconômicos da cidade. Daí a necessidade de observância das diretrizes destinadas a regular o planejamento urbano, mesmo que referidas regras não se mostrem populares ou de fácil aplicabilidade, por não atenderem interesses particulares. 1. ESTATUTO DA CIDADE E PLANO DIRETOR A política urbana, para alguns doutrinadores, pode ser definida como ramo do conhecimento que discute e avalia, dentre outros temas, propostas de crescimento e desenvolvimento das cidades, políticas de regularização fundiária, políticas habitacionais, desenvolvimento sustentável, especialmente para o poder público municipal, objetivando compreender as relações entre direito, política e desenvolvimento urbano. O carro chefe de toda a política urbana idealizada pelo Ministério das Cidades está voltada para o Plano Diretor Participativo, que deve contemplar as várias realidades e vocações de cada município brasileiro, no âmbito do território municipal, não mais apenas no urbano. Com isso o Plano Diretor se revela um instrumento preventivo da política urbana, tendo como atribuição prever a ocupação adequada da propriedade urbana, garantindo assim o cumprimento de sua função social. Esse processo democrático é um componente essencial para o pleno desenvolvimento dos centros urbanos, notadamente para aqueles com mais de 20.000
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habitantes, já que implica também articulação de diversos sujeitos e interesses, fazendo com que a participação tenha reflexos na melhoria da qualidade de vida e no bem estar dos cidadãos, conforme estabelece a Lei Federal nº 10.257, de 2001 – Estatuto da Cidade. Conforme Fiorillo, o plano diretor obedece a dois pressupostos constitucionais: “1) tem que ser aprovado pela câmara municipal, e 2) é obrigatório para cidades com mais de 20.000 habitantes.”3 O Plano Diretor propicia o combate às desigualdades e à exclusão social, promovendo a qualidade de vida e do ambiente. Pensar e planejar as cidades que compõem a região metropolitana como um todo, para aproximar a urbanidade, valorizar a riqueza, a diversidade cultural e ambiental, dando continuidade funcional e espacial a essas cidades. Para potencializar os planos diretores participativos, impõe-se mais do que nunca, a articulação entre o setor privado e o público, para encontrar o nível de concentração econômica e solidariedade social, promovendo desta feita, a sustentabilidade urbana ambiental. A prioridade visa a atender as necessidades essenciais da população marginalizada e excluída, que também possui um papel importante nesse processo democrático-participativo. Durante o processo de revisão e elaboração de alguns planos diretores, a falta de articulação e comunicação entre os órgãos de gerenciamento urbano com os de planejamento, prejudicou e muito o resultado final, dada a ausência de informações técnicas e operacionais de demandas específicas do setor, quanto a alguns posicionamentos: quais são as áreas mais adensadas da cidade? Ou, quais são as áreas estratégicas para cidade do ponto de vista do setor imobiliário? Ou, ainda, quais as dificuldades encontradas quando da aprovação dos projetos urbanísticos (potencial construtivo, gabarito) etc. A falta de articulação fez com que alguns municípios, simplesmente instituíssem as mesmas diretrizes já contempladas no Estatuto da Cidade em seus planos diretores, não inovando, ou adotando procedimentos específicos para implementação dos instrumentos urbanísticos, notadamente aqueles que exigem a delimitação das áreas por meio de legislação específica. A leitura técnica arquitetada aliada à leitura popular solucionaria dilemas enfrentados pelos Municípios, principalmente os de ordem operacional e regulamentador. 3
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Estatuto da Cidade comentado. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2005.
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De qualquer forma, o Plano Diretor deve contextualizar a leitura popular e a leitura técnica, fixando premissas a serem executadas pelo Poder Público, visando a ordenar o pleno desenvolvimento das cidades, objetivando a segurança, o bem-estar e o equilíbrio ambiental, conforme diretrizes do Estatuto da Cidade. 1.1. Função social da propriedade urbana A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, de modo a evitar a utilização inadequada dos imóveis; a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; o parcelamento do solo, edificação ou o uso excessivo ou inadequado em relação à infra-estrutura urbana; a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente; a retenção especulativa de imóvel urbano que resulte na sua subutilização ou não utilização, a deterioração das áreas urbanizadas, e por fim a poluição e a degradação ambiental. A função social da cidade tem como meta evitar a utilização inadequada, que afeta toda a coletividade, por isso o Poder Público municipal deve redirecionar os recursos e a riqueza de forma mais justa, solidária e equitativa, combatendo as desigualdades e a exclusão social. A função social da propriedade urbana veio consagrada nos artigos 182 e 183 do Texto Constitucional de 1988, tendo como ente principal ou realizador dessa política de inclusão o Poder Público municipal. O direito urbanístico, e consequentemente a função social da propriedade, sujeita-se aos mandamentos constitucionais, como assegura Figueiredo: A disciplina urbanística da propriedade há de se sujeitar inteiramente aos princípios constitucionais consagradores da propriedade individual com suas limitações, no que tange ao interesse social e à função social da propriedade.4
Assim sendo, alguns instrumentos de planejamento urbanístico surgiram justamente para corrigir o descompasso da má utilização do solo urbano, é o exemplo do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, o IPTU progressivo no tempo, a desapropriação com pagamento em títulos, direito de preempção etc. Tais instrumentos devem compatibilizar-se com as normas de uso e ocupação do solo. No caso de afronta devem se adequar aos parâmetros e diretrizes estabelecidos no Estatuto da Cidade.
4
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 24.
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2. INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO URBANÍSTICO QUE PRECISAM DE DELIMITAÇÃO PARA A SUA INCIDÊNCIA Para a incidência de alguns instrumentos contemplados no Estatuto da Cidade, há a necessidade de sua delimitação, baseada no plano diretor, bem como fixação de prazos de vigência, prazos para implementação da obrigação, condições etc., o que revela a dificuldade inicial, já que demanda informação e conhecimento. A essa dificuldade inicial associa-se o insuficiente aparato institucional, como bem observa Negreiros e Santos: As dificuldades de aplicabilidade estão associados ao insuficiente aparato institucional de gestão urbana. De modo geral, o poder público local conta com uma incipiente organização técnica para efetivar as regras urbanísticas estabelecidas, o que resulta na dificuldade de entendimento dos objetivos do conjunto das normas urbanísticas, na dificuldade de monitoramento do crescimento urbano de acordo com essas normas e na debilidade em fiscalizar sua aplicação. Essa conjuntura de fatores, a outros mais perversos, provoca a existência de uma cidade irregular ou ilegal, tornando a norma urbanística inócua a despeito de sua função de orientar a organização dos espaços urbanos.5
Eis o grande desafio do planejamento e da implementação dos instrumentos instituídos no artigo 4º do Estatuto da Cidade, qual seja, a dificuldade de entendimento dos objetivos do conjunto das normas urbanísticas existentes, aliado a ausência de informações das reais demandas e necessidades da cidade, o que dificulta a organização técnica de definir as regras urbanísticas para o presente e futuro. Desse modo, o primeiro instrumento a ser destacado é o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, previsto no art. 5º da Lei nº 10.257 de 2001, na qual lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá determinar o parcelamento, edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para implementação da referida obrigação. O Poder Público Municipal não pode simplesmente instituir o instrumento, precisa especificar sua incidência (lote, lotes, áreas, vias etc.). Sobre o assunto assegura Fiorillo: O proprietário que não atender ao regramento do meio ambiente artificial em face de seu território é notificado pelo Poder Executivo municipal, na forma e prazos definidos pelos § 2º, 3º e 4º do art. 5º da Lei 10.257/2001, visando cumprir a obrigação, sob pena de sofrer aplicação do imposto sobre sua propriedade na forma do art. 7º do Estatuto da Cidade (IPTU progressivo no tempo) e, num segundo momento, conforme observa o art. 8º da lei que comentamos, ser legitimado passivo em decorrência da desapropriação. 5
NEGREIROS, Rovena; SANTOS, Sarah Maria M. Dificuldade da gestão pública do uso do solo. In: Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 132.
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Caso haja o descumprimento do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, a sanção é o “IPTU progressivo no tempo”, outro instrumento previsto no Estatuto. Como se vê, a efetividade da norma demanda de outros fatores, e assim como ficam os municípios que elaboraram seus planos diretores, mas não especificaram as áreas de incidência do instrumento do parcelamento, ou então que as incluíram, mas deixaram de prever o IPTU progressivo? O segundo instrumento é justamente o IPTU progressivo no tempo. Conforme a CF, o IPTU é o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, de competência privativa dos Municípios e do Distrito Federal (Constituição, art. 156, I, c/c. art. 147, in fine), excepcionalmente utilizado pela União, quanto aos imóveis situados em Território Federal não dividido em Municípios. As hipóteses de incidências são definidas pelo Código Tributário Nacional, que condiciona a possibilidade de sua cobrança à existência de no mínimo dois melhoramentos urbanos como meio-fio ou calçamento com canalização de águas pluviais; abastecimento de água; sistema de esgoto sanitário; rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de três quilômetros do imóvel considerado. Nas palavras de Fiorillo, trata-se de um tributo ambiental, “destinado à viabilização real das funções sociais da cidade em consonância com as necessidades vitais que asseguram a dignidade da pessoa humana (...), e não, pura e simplesmente, ao Estado.”6 Para Carrazza, seu caráter é nitidamente sancionatório, sendo um “mecanismo que a Constituição colocou à disposição dos Municípios, para que imponham aos munícipes a observância de regras urbanísticas, contidas nas leis locais.”7 O uso de referida ferramenta é uma faculdade conferida aos municípios, que a adotarão ou não, em função de seus interesses e conveniência, mediante legislação própria, em áreas específicas definidas no plano diretor. Mais uma vez vem a dúvida: se o município não especificou, no momento da elaboração do Plano Diretor, a área específica conforme exige o Estatuto, outra lei
6
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Estatuto da cidade Comentado: Lei 10.257/2001: Lei do Meio Ambiente Artificial. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 77.
7
Elizabeth Nazer Carrazza, apud Celso Antônio Pacheco Fiorillo. Estatuto da cidade Comentado: Lei 10.257/ 2001: Lei do Meio Ambiente Artificial. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 78.
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poderia fazê-lo? Em tal situação, a norma federal que estabeleceu as regras gerais (Estatuto da Cidade) não estaria sendo afrontada. Outro instrumento a ser analisado é o direito de preempção. Também necessita da delimitação das áreas em que irá incidir, e em linhas gerais é o direito do Poder Público municipal adquirir com preferência imóvel urbano objeto de alienação onerosa entre particulares. O instrumento refere-se apenas à alienação onerosa, abrangendo, assim, tão somente as transferências dominiais ajustadas por meio de contratos de compra e venda. Negócios como a dação em pagamento, a permuta, a doação, herança e legado restaram excluídos da incidência do direito. Nos termos do artigo 26 do Estatuto da Cidade, não resta dúvida que a finalidade do direito de preempção é social, econômico, ambiental e cultural e será exercido sempre que o município necessitar de áreas urbanas para: regularização fundiária; execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; constituição de reserva fundiária; ordenamento e direcionamento da expansão urbana; implantação de equipamentos urbanos e comunitários; criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes; criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; proteção de áreas de interesse histórico, cultural e paisagístico. Neste caso, como fica o Município que não procedeu ao levantamento das propriedades quando da elaboração do Plano Diretor? A outorga onerosa do direito de construir é outro instrumento a ser analisado, que também exige delimitação das áreas de incidência, via do Plano Diretor. Em síntese, significa que o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida do beneficiário. O Plano Diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único para toda a zona urbana, ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana, definindo limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento. Nestes casos o que se questiona é como ficam os Municípios que elaboraram seus planos diretores, mas não definiram os critérios legais de incidência da outorga onerosa do direito de construir? Por fim, resta a análise das operações urbanas consorciadas, baseada no Plano Diretor. Fiorillo por meio das palavras da urbanística Raquel Rolink, nos ensina sobre o referido instituto:
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 são definições específicas para uma certa área da cidade que se quer transformar, que prevêem um uso e uma ocupação distintos das regras gerais que incidem sobre a cidade e que podem ser implantadas com a participação dos proprietários, moradores, usuários e investidores privados. O Estatuto da Cidade admite a possibilidade de que estas operações ocorram; entretanto, exige que cada lei municipal que aprovar uma operação como esta deva ser incluído obrigatoriamente o programa e projetos bascos para a área, programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação e o estudo de impacto de vizinhança.”8
É instrumento pouco utilizado pelos municípios, já que estes se preocupam de modo imediatista com áreas urbanas já consolidadas, com o intuito de reverter a cidade informal para a cidade formal. Assim, o grande questionamento refere-se às alusões feitas ao plano diretor, no sentido do dever de delimitar as áreas, ou simplesmente por meio de diretrizes e princípios indicar quais são os critérios de incidência dos referidos instrumentos. Algumas cidades brasileiras já revisaram ou elaboraram os seus planos diretores, mas em momento algum, dispuserem sobre as delimitações de tais áreas para a incidência dos instrumentos, sobra a esperança da lei específica para dirimir esses conflitos, com base nas diretrizes estabelecidas no Plano Diretor. Além desses questionamentos, neste momento vários municípios passam por um processo de revisão ou adequação de suas normas de uso e ocupação do solo. Como conciliar a legislação específica com as leis de uso e ocupação do solo, sem afrontar o Estatuto da Cidade? Experiências e vivências de municípios que já legislaram e aplicaram os instrumentos urbanísticos são fundamentais para a correta e precisa aplicação da lei de uso e ocupação do solo e do próprio Plano Diretor, evitando, desta forma, a incorreta utilização da norma. De qualquer forma, de todos os instrumentos levantados que precisam ser delimitados para a sua incidência, convêm analisar a real necessidade do instrumento para a cidade, dada a inviabilidade espacial e temporal. Para auxiliar e dar suporte a essa árdua tarefa aos municípios existem os instrumentos prévios a elaboração do plano diretor e outras normas específicas, tais como: o levantamento aerofotogramétrico, o sistema integrado de informação e o perfil socioeconômico do município.
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FIORILLO, Celso Antônio. Estatuto da Cidade Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, apud ROLINK, Raquel.
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3. INSTRUMENTOS PRÉVIOS: LEVANTAMENTO AEROFOTOGROMÉTRICO, SISTEMA INTEGRADO DE INFORMAÇÃO E PERFIL SOCIOECONÔMICO DO MUNICÍPIO Em todos os casos tratados anteriormente, o poder público precisa delimitar via do Plano Diretor, as áreas em que referidos instrumentos devem incidir. Para tanto, é necessário a realização de procedimentos técnicos e administrativos prévios, que objetivam a correta e eficaz escolha dos locais de incidência. O primeiro destes procedimentos é a criação e manutenção do Sistema Integrado de Informação Municipal, composto por um conjunto de dados, métodos e usuários integrados, possibilitando o desenvolvimento de uma aplicação precisa e capaz de coletar, armazenar e processar todas as informações relativas das diversas esferas e secretarias existentes na municipalidade. Assim, como base de dados única, permanente, multifinalitária, deve ser alimentada com informações culturais, sociais, econômicas, financeiras, tributárias, judiciais, educacionais, imobiliárias, patrimoniais, administrativas, geográficas, cartográficas, ambientais e outras de relevante interesse para o município, inclusive sobre planos, programas e projetos. Só com base nesses dados o município é capaz de identificar, com efetividade, as áreas que demandam intervenção. A municipalidade que não detêm essa importante ferramenta está em prejuízo, já que não detém dados imprescindíveis para o levantamento do plano diretor e sua efetiva implementação. Além do mais, a informação também deve ser disponibilizada à sociedade de modo geral, já que é um dos “elementos essenciais no rumo a uma democracia participativa efetiva,” como bem assegura Prestes. Continua a autora: “os municípios, sendo o ente federado que interage com a população, na medida em que o povo vive e se relaciona nos mesmos, têm maiores condições de fazer deste princípio práxis.”9 Outro instrumento prévio fundamental é o perfil socioeconômico da municipalidade, dada a sua natureza informativa sobre dados relevantes do perfil da sociedade que integra o território do município. Serve como instrumento de pesquisa, planejamento e para a elaboração de planos, programas e projetos a serem realizados, tanto na esfera privada ou pública.
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PRESTES, Vânesca Buzelato. Instrumentos legais e normativos de competência municipal em matéria ambiental. In: Temas de Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 236.
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Os dados do perfil socioeconômico compreendem aspectos históricos, caracterização do território, aspectos demográficos, aspectos econômicos, aspectos urbanos, aspectos sociais, infra-estrutura e serviços, administradores municipais etc. Informações que garantem a identificação das regiões que mais crescem na cidade e demandam maior cautela em termos de planejamento, bem como dados relativos a expedição de habite-se, alvarás, e outras situações. Com esses dados, e com base na infra-estrutura existente da localidade, o município pode analisar o aumento de potencial e melhor delimitar as áreas de incidência dos instrumentos sancionatórios. Por fim, o levantamento aerofotogramétrico, ferramenta recente e precisa que mapeia a cidade por meio de fotos em alta escala e com a digitalização dos dados levantados. Consiste no mapeamento da cidade, com base em fotografias áreas do território do município. É uma ferramenta que torna eficaz o processo de gestão do município, incluindo a área urbana e rural. Atualiza também o cadastro multifinalitário e o geoprocessamento, fazendo o reconhecimento do monitoramento e controle territorial, permitindo o avanço em todas as áreas do município, principalmente para o planejamento urbano. Por meio do levantamento, podem ser “identificados os mananciais, as áreas de preservação da mata atlântica, planejar a elaboração de novas linhas de ônibus, ampliação de escolas, recolhimento de lixo, e afins.”10 CONCLUSÃO O Plano Diretor não é uma regra que simplesmente pode ser copiada, já que demanda certas particularidades, para quais nem todos os Municípios brasileiros estão preparados. A informação, com se vê, é elemento essencial, e deve ser obtida pelos nominados instrumentos prévios, atividade que demanda não apenas tempo e recursos. Sem profissionais devidamente preparados, com visão abrangente da real necessidade e utilidade de cada um dos instrumentos contemplados no Estatuto da Cidade, o Plano Diretor pode acabar se transformando em uma verdadeira arapuca, capaz de comprometer o desenvolvimento e a qualidade de vida de determinada população. Os dados técnicos e as demandas reais do município é que colocarão as diretrizes dos instrumentos urbanísticos auxiliados pelas ferramentas prévias, determinando as 10
http://www.jornalmetas.com.br/hp/index.asp?p_codmnu=1&p_codedo=70&p_codnot=3508
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áreas de incidência dos instrumentos tratados, sem afrontar as diretrizes do Estatuto das Cidades, compatibilizando-as com as da lei de uso e ocupação do solo. A constante revisão das normas urbanísticas são imprescindíveis para a gestão das cidades e o pleno ordenamento do solo urbano, dada a dinâmica e peculiaridade de cada Município. REFERÊNCIAS CARRAZA, Elizabeth Nazer apud Celso Antônio Pacheco Fiorillo. Estatuto da cidade Comentado: Lei 10.257/2001: Lei do Meio Ambiene Artificail. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 78. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Estatuto da cidade Comentado : Lei 10.257/2001: Lei do Meio Ambiene Artificail. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 77 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 24. NEGREIROS, Rovena; SANTOS, Sarah Maria M. Dificuldade da gestão pública do uso do solo. In: Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 132. PRESTES, Vânesca Buzelato. Instrumentos legais e normativos de competência municipal em matéria ambiental. In: Temas de Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 236. http://www.jornalmetas.com.br/hp/index.asp?p_codmnu=1&p_codedo=70&p_codnot=3508.
Política Habitacional no Rio de Janeiro: Dez Anos de Morar Sem Risco (1994 a 2004) ROBERTO JANSEN
DAS
MERCÊS
O artigo trata especificamente de um momento na história da política habitacional no município do Rio de Janeiro, o Programa Morar Sem Risco desenvolvido no período de 1994 a 2004 – desde sua criação até o referido ano; sendo extinto em 2006 – pela Secretaria Municipal de Habitação (atual Secretaria do Habitat a partir de 2006), órgão da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. É importante ressaltar que o Programa, inserido dentro da política municipal de moradia, volta-se para a população de baixa renda, cujo alcance da remuneração mensal, em sua maioria, não ultrapassa aos três salários mínimos. Podemos aqui observar a única preocupação de maior importância dentro deste universo que a cidade conheceu durante o período assinalado. Inicialmente as manifestações da crise da moradia são percebidas nas primeiras décadas do século XIX – habitação popular assunto atual e problema muito antigo – na paisagem das cidades brasileiras, mais do que do déficit habitacional e a inadequação de domicílios, dão evidência que expressam a permanência da questão, mesmo com o esforço da prefeitura aquém da efetiva dimensão do problema. A questão habitacional atinge de forma aguda as camadas de baixa renda e é ainda incipiente em enfrentar a base de sua explicação de natureza profundamente injusta, a desigualdade da formação social brasileira, a mais conhecida e reconhecida é a da renda, que mantém um contingente da população excluída, além de padrões mínimos de cidadania e com pouco alcance no resgate social. A cidade tem graves problemas para enfrentar no campo da habitação e da infra-estrutura urbana, a partir da ocupação pela população pobre das áreas ainda disponíveis, encostas, margens de rios, em cima de túneis, embaixo de pontes e viadutos, estabelecendo-se desde o início, relações de interdependência econômica, política e social. Nos dez anos do período de estudo do presente artigo, a administração municipal enfrentou o desafio de reverter o quadro de degradação dos espaços públicos
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da cidade. No que diz respeito às questões de moradia e habitação, o problema já vinha sendo observado mais detalhadamente desde a década de vinte, quando o Plano Agache foi desenvolvido, apesar das realizações não terem sido tão eficientes na solução do problema. A questão da habitação, no contexto social brasileiro, vem apresentando uma série de políticas setorizadas, com a finalidade de “sanar” essa problemática. As primeiras tentativas de resolução iniciaram-se no governo populista de Vargas e tiveram prosseguimento, mas sem êxito. Em, 1964, durante a ditadura militar, surge o Banco Nacional de Habitação – BNH – “criado com a competência de orientar, disciplinar e controlar o Sistema Financeiro da Habitação e promover a construção e a aquisição da casa própria, especialmente pelas classes de menor renda” (COVRE, 1995:48). Esse propósito não foi efetivamente consolidado durante a sua execução, mas é considerado um marco histórico na trajetória das políticas habitacionais brasileiras. Outro problema relacionado ao “morar”, foi o surgimento e desenvolvimento de áreas favelizadas ocasionadas pelo êxodo rural e gerando um inchaço urbano (a partir da década de 30) como um problema social. E, no Rio de Janeiro, houve a criação de uma série de programas destinados a modificar esse quadro social; foram criados os parques proletários, conjuntos habitacionais e órgãos como a Cehab, a Companhia de Desenvolvimento de Comunidade – o Codesco –, o Chisam, além de programas como Promorar, Cada família um lote, entre outros. Inicialmente foram articuladas políticas de remoção das favelas (a partir da década de 60), mas como essa atuação gerou animosidades, conflitos e reivindicações dos próprios moradores, o poder público reformulou seu objetivo e adotou então a política de urbanização das favelas (a partir da metade da década de setenta até nossos dias), cujo destaque refere-se ao Programa Favela-Bairro. O quadro habitacional também possui outra nuance: a partir de meados de noventa, com a consolidação das políticas neoliberais, a ausência de políticas públicas e o corte nos gastos sociais, observa-se um contexto de acirramento da pobreza e conseqüente agudização do quadro de exclusão social, que atinge as grandes metrópoles. Logo, verifica-se que “dentre a população de mais baixa renda do município, inclui-se uma parcela que (sobre) vive em condições de extrema pobreza, para a qual até mesmo o morar autoconstruído, do mercado informal, se torna inacessível. Restam então as calçadas, praças e viadutos, espaços da rua que vão sendo cada vez mais ocupados por aqueles que não têm onde morar” (RELATÓRIO IPLANRIO, 1988). Essa é a população-alvo do programa Morar Sem Risco, além daqueles que se encontra em favelas situadas em área de risco, sendo a proposta principal a melhoria da qualidade de vida.
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INTEGRAÇÃO URBANA As várias ações governamentais, no Rio de Janeiro, voltadas para a melhoria de vida das populações de baixa renda como ponto de partida mais recente o final dos anos setenta. A partir desta década, inúmeras famílias em processo acelerado de pauperização começaram a ocupar as encostas dos morros da cidade fugindo dos altos aluguéis e em busca de novas modalidades de moradia. Nos anos seguintes, a especulação imobiliária chega às favelas impedindo a muitos esta alternativa, levandoas a moradias em áreas altamente degradadas e de risco como viadutos, beiras de rios, encostas com risco iminente de desabamento e logradouros públicos. Ainda hoje, existem no município milhares de famílias ocupando estas áreas. As ocupações em áreas de risco caracterizam-se por condições de vida abaixo dos padrões mínimos. Fatores sócio-econômicos e culturais empurram as populações pobres para espaços totalmente degradados, sem qualquer infra-estrutura, onde a precariedade das moradias e a agressão ao meio ambiente formam um quadro dramático de miséria absoluta. Fruto de vários fatores, mas principalmente do acirramento da pobreza, o número de favelas saltou de 372, em 1983, para 623, uma década depois, num crescimento seis vezes maior que o da população do município do Rio de Janeiro. Foi neste contingente, que o número de famílias em áreas de risco, foi estimado em sete mil, sobrevivendo em 324 áreas em situação de risco, incluindo dezesseis viadutos. Diante da inviabilidade de soluções cabíveis para a permanência das moradias nos locais citados acima e a falta de recursos próprios da população envolvida, criou-se o Programa Morar Sem Risco que visa atender a estas populações, reassentando-as em locais seguros, preferencialmente próximos aos já ocupados, a partir de uma ação conjunta entre prefeitura e moradores. Vale lembrar como amadureceu este processo de oferecer a população alternativa para a solução de seu problema habitacional em função da situação de risco em que se encontra, proporcionando condições mais seguras de habitação, buscando assim a melhoria da qualidade de vida. DESENVOLVIMENTO SOCIAL A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) foi criada, em 1979, com o objetivo de atuar na promoção do bem-estar social “com vistas a eliminar ou reduzir os desequilíbrios sociais existentes” (Lei Municipal nº 110, de 23/08/ 1979). Para operacionalização de suas atividades, a SMDS foi dotada de uma estrutura interna formada por órgãos de direção superior, órgãos de apoio administrativo e três coordenações – Desenvolvimento Comunitário, Bem-Estar Social – que deram origem ao Programa de Educação Comunitária e ao Projeto Mutirão Remunerado, respectivamente – e Regiões Administrativas.
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A criação da SMDS ocorreu numa época em que tomava impulso o processo de redemocratização da sociedade brasileira. Diversos setores sociais, particularmente nas grandes cidades como o Rio de Janeiro, voltaram a se organizar e reivindicar maior participação nos frutos do desenvolvimento econômico. Pode-se concluir que a criação daquela secretária surge do processo de redemocratização e da necessidade do poder público carioca de fazer face ao crescimento das reivindicações dos setores mais desfavorecidos da sociedade. Também durante este período, o acumulo dos mais variados programas e projetos em áreas distintas – educação, saúde, saneamento básico, geração de renda, reflorestamento, entre outras – gerou críticas feitas às ações da secretaria. Ela estaria servindo para consolidar uma situação de injustiça social, na medida em que implicavam um tratamento discriminado às populações de baixa renda. Esta crítica quanto à qualidade dos serviços que presta e ao seu papel na administração pública municipal. Era tida como uma Secretaria dos Pobres que incorporava várias minissecretarias para atender a população desfavorecida naquelas diversas áreas. A crítica faz sentido quando se leva em consideração que o modelo econômico adotado no Brasil foi altamente concentrador de rendas e que a prestação de serviços públicos em geral atingiu apenas parcelas reduzidas da população. Apesar deste quadro ela representou um primeiro esforço no sentido de levar os serviços públicos a essa parte da população, o que por si só já representava uma mudança na orientação da administração pública. Caso houvesse a opção de não criar um órgão como a SMDS, muito provavelmente a carência de serviços públicos por parte das comunidades de baixa renda do Rio de Janeiro teria se agravado, e não teria ocorrido a inegável melhora que se verificou. E sem dúvida este tipo de trabalho continuará sendo necessário enquanto perdurarem as enormes disparidades sociais econômicas que se verificam no país. A maior prova disto foi à iniciativa desta Secretaria gerar o desdobramento de duas outras Secretarias: a do Meio Ambiente e a da Habitação. A que era uma virou três. Estas iniciativas ganharam impulso com o Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, de 1992, instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana e que estabeleceu parâmetro que fundamentam a ação do Poder Público. BASES DA POLÍTICA HABITACIONAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO A política habitacional do município do Rio de Janeiro se estrutura na compreensão que a moradia é um direito do cidadão; a habitação não é só a casa, mas integração à estrutura urbana. Compatibilizar o direito individual com as possibilidades coletiva, na construção de uma cidade melhor. O Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro, cuja elaboração é fruto de um amplo debate que extrapola os órgãos da administração municipal, mobilizando diversos setores da sociedade, torna-se a partir de 1992, ano de sua promulgação. A recomendação central é o reconhecimento
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da favela e a busca de integração desses aglomerados aos bairros cariocas, com a participação de seus moradores no processo de urbanização. A política habitacional tem seus objetivos estabelecidos no Plano Diretor Decenal da Cidade (cap. II – art. 138): I. utilização racional do espaço através do controle institucional do solo urbano, reprimindo a ação especulativa sobre a terra e simplificando as exigências urbanísticas para garantir à população o acesso à moradia com infra-estrutura sanitária, transporte e equipamento de educação, saúde e lazer; II. relocalização prioritária das populações assentadas em áreas de risco, com sua recuperação e utilização imediata e adequada; III. urbanização/regularização fundiária:favelas/loteamentos de baixa renda; IV. implantação de lotes urbanizados e moradias populares; V. geração de recursos para o financiamento dos programas definidos no artigo 146, dirigidos à redução do déficit habitacional em melhorias da infra-estrutura urbana, com prioridades para a população de baixa renda. Para alcançar esses objetivos, serão observados alguns procedimentos básicos tais como: os investimentos públicos devem direcionar-se àquelas ações próprias da coletividade (infra-estrutura e ambiência urbana); bem como em unidade habitacionais devem se dar quando necessários à melhora da ambiência urbana e para enfrentar situações de risco; e oferecimento de condições para construir em terra infraestruturada. Como a questão habitacional, no Rio de Janeiro, é de expressão metropolitana, sugere políticas municipais coordenadas. A implementação foi da seguinte forma através dos programas abaixo relacionados: – Regularização Fundiária: regularização e saneamento – Favela Bairro: urbanização e integração – Novas Alternativas: vazios, fraldas e recomposição do tecido – Morar Carioca: legislação e estimulo – Morar Sem Risco: recompor e reassentar MORAR SEM RISCO A eleição de Cesar Maia para a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, em 1993, pelo Partido da Frente Liberal – PFL (atual Democráticos – DEM), marcou uma inflexão em um longo período de domínio da centroesquerda e da esquerda na
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cidade e no Estado. A marca da passagem de Brizola pelo Rio de Janeiro é tão forte que os principais políticos em ação no estado e na cidade são egressos do seu partido (Cesar Maia também é das fileiras do PDT), como os ex-governadores Marcelo Alencar, hoje no PSDB, e Anthony Garotinho, hoje, no PMDB. O prefeito Cesar Maia se elegeu com um discurso que acionava elementos do “lacerdismo”, com fortes ecos nas camadas médias da cidade. No seu programa de governo, ele enfatiza o discurso sobre a ordem urbana. Cabe lembrar que o prefeito conseguiu eleger o seu sucessor, o ex-secretário de Urbanismo, arquiteto Luiz Paulo Conde. O prefeito Conde manteve, em linhas gerais, a mesma política elaborada pelo seu antecessor, dando continuidade às suas iniciativas. Depois em disputa entre os dois, Cesar Maia como oposição é vitorioso para o segundo mandato, totalizando o período que é objeto do presente estudo. Para desenvolver e pôr em prática as medidas sugeridas pelo Plano Diretor foi criado, em 1993, o Grupo Executivo de Assentamentos Populares – GEAP, composto por titulares dos órgãos municipais envolvidos de algum modo com a questão da moradia. O Grupo concebeu os vários programas que estruturam a política habitacional aprovada pelo prefeito em dezembro de 1993. Em março de 1994, foi criada a Secretaria Extraordinária de Habitação e, em dezembro de 1994, a Secretaria Municipal de Habitação (SMH). O quadro técnico foi composto por funcionários e técnicos da SMDS, que lidavam com favelas, por uma parte dos quadros da Secretaria de Urbanismo (SMU) – ligados com loteamento –, da Rio Urbe, entre outros técnicos. O novo governo soube aproveitar-se da capacidade técnica e administrativa acumulada em anos de intervenção sobre as favelas e sobre os loteamentos populares, aumentando as possibilidades de maior efetividade das ações. A partir daí, a prefeitura definiu um plano de ação em tudo diverso da timidez com que o Poder Público, até então, tratara os problemas habitacionais da Cidade nas décadas anteriores. Realizaram, simultaneamente, vários programas abrangentes voltados para diferentes aspectos da questão habitacional. Como linhas de atuação foram criados os programas Favela-Bairro (que acrescentaria Bairrinho e Grandes Favelas), Morar Carioca, Regularização de Loteamentos, Novas Alternativas e Morar Sem Risco (eliminar o risco de desabamento e/ou inundações; reassentar as populações que moram em áreas de risco, isso quando não for economicamente viável a eliminação dos riscos; recuperação de espaços públicos comprometidos com ocupações irregulares (viadutos, calçadas), reassentando também os ocupantes destas áreas, através de uma política de reassentamento). Para o reassentamento das famílias, a Prefeitura como opção, na maioria dos casos, utiliza as chamadas casas “evolutivas” – que dão condições de espaço para que os moradores, com o tempo possam ampliá-las, acrescentando mais um quarto ou uma área aberta. Outras possibilidades são o oferecimento de “kit material de
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construção” ou o “lote infra-estruturado mais kit” (opções em vias de revisão de atuação) e, em alguns casos, o auxílio habitacional – uma ajuda de custo para a aquisição de uma nova moradia em outro local – e as famílias que aguardam o reassentamento, o auxílio aluguel. Os reassentamentos são feitos preferencialmente em locais já dotados de água, luz e rede de esgoto, pertencentes, em sua maior parte, à própria Prefeitura, ou em terrenos resultantes de desapropriação. Estes locais são, geralmente, próximos das antigas residências, para que, desse modo, seja atenuado o impacto inerente às mudanças no cotidiano das famílias. Com o mesmo intuito, a distribuição das novas casas mantém as antigas relações de vizinhança. O envolvimento da população é fundamental em todas as etapas do trabalho, pois é ela que ajuda a encontrar as soluções que minimizam os inevitáveis conflitos que surgem com a transferência das moradias. IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA A primeira intervenção do Programa nasceu de uma parceria entre as Secretarias Municipais de Habitação e de Governo (SMG). Foi à conjugação de necessidade das duas Secretarias, em atuar nas áreas de risco, localizadas por toda cidade; e por parte da SMG superar impasse quanto a situações de risco e insalubridade de diversas favelas situadas na Área de Planejamento 1 (AP1), principalmente na 1a Região Administrativa, assim como trabalhar no sentido de intensificar e promover o uso residencial do bairro do Caju, nessa Área de Planejamento, catalisando o processo de reestruturação urbana. A favela localizada naquela Região Administrativa, chamada de Parque Conquista, se encontrava espremida entre um vazadouro de entulho (área de propriedade da Companhia de Limpeza Urbana – COMLURB), os muros do terreno da Viação 1001, um canal e alguns containeres. Esta comunidade que em 1985 contava com setenta barracos de madeira, sofreu intensa expansão e em 1993 apresentava o dobro de moradias. Inicialmente ocupando uma área de quatro mil quadrados, espraiava-se por mais do que o dobro da ocupação inicial, subindo pelo monte de entulho, e ocupando parte da pista por onde um dia circularam os caminhões que ali derramavam os entulhos. Foi constatado que a Comlurb detinha uma extensa área no bairro do Caju que por motivos diversos não atendia aos objetivos da Companhia. A disponibilidade desta área veio de encontro às necessidades dos dois programas do poder municipal. Para a Companhia foi apresentada uma proposta que contemplava assentamentos, que atenderia às famílias da favela Parque Conquista, além das populações de favelas instaladas em todos os viadutos situados na AP1,
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Francisco Bicalho e Praça da Bandeira, e os moradores da Rede de Linhas Férrea Federal, ramal de Arará no Caju. Ante esta primeira implementação, o Programa tem como função principal recompor as áreas consideradas de risco – vias públicas (praças e viadutos); encostas com problemas geológicos; margens de rios, canais e lagoas; áreas de proteção ambiental e florestal; emboque de túneis; faixas de proteção de via férrea e de linha de transmissão de energia – e reassentar famílias, liberando o espaço comprometido pela ocupação irregular. Atua ainda numa interface com a Defesa Civil – COSIDEC – e a Fundação Instituto GEO-RIO, sempre precedido de um levantamento sócioeconômico – cadastramento – das famílias ocupantes de área de risco. Enfim, visa atender uma população que sobrevive em condições de estabilidade duvidosa, cuja perda do seu referencial social, econômico e cultural, do qual precisa recuperar a sua cidadania para que consiga se administrar e, conseqüentemente, administrar sua habitação. É necessário, então, trabalho de promoção humana e social, buscando a integração destas famílias na sociedade. O programa Morar Sem Risco objetiva parceiros para esta função junto à Sociedade Civil, Entidades Filantrópicas, Igreja, Organizações Não Governamentais e Comitês contra a Fome, entre outras. ATUAÇÕES DO PROGRAMA EM VIAS PÚBLICAS, TÚNEIS E VIADUTOS A retirada de mais 1.634 famílias, que viviam sob dez grandes viadutos da cidade e seu reassentamento, é uma marca expressiva da ação do Programa Morar Sem Risco. Os viadutos Figueira de Melo, em São Cristóvão, Ana Nery, em Triagem, Noel Rosa, em Vila Isabel, Viaduto de Bonsucesso (Vila Verde), e Santo Cristo, foram desocupados em 1996. As famílias foram reassentadas. Viaduto de Coelho Neto e local conhecido como Viaduto Malvinas – ocupação sob a linha do metrô e calçada de via pública – (Maria da Graça/Jacarezinho), em que as famílias também viviam em situação de risco, foram desocupados em setembro de 1995 e no seguinte ano, sendo reassentados nos Empreendimentos Habitacionais. As famílias que moravam sob os viadutos Francisco Bicalho, na Praça da Bandeira e da via férrea (ramal ferroviário de Arará), foram transferidas para os empreendimentos Parque Conquista e Parque Boa Esperança, respectivamente, ambos no bairro do Caju. O emboque do túnel Rebouças que foi ocupado por construções irregulares, o programa fez a desocupação da área, em agosto de 1995, reassentando as duzentas e cinqüenta famílias também no Empreendimento Habitacional Portus. Na saída do túnel Zuzu Angel (na época Dois Irmãos), em direção ao bairro da Rocinha, junção com São Conrado, foram retiradas famílias que viviam sobre aquele túnel. Elas receberam auxílio habitacional para a compra de casa.
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QUESTÃO FUNDIÁRIA: ÁREAS DE ESPECIAL INTERESSE SOCIAL Conforme a elaboração dos projetos nos empreendimentos habitacionais nas áreas de especial interesse social dos reassentamentos incluídos no programa Morar sem Risco, onde a titularidade da terra é municipal, foi considerada a necessidade de se estabelecer procedimentos específicos para a simplificação da aprovação e legalização dos projetos de parcelamento do solo e habite-se das unidades habitacionais em áreas declaradas em lei como área de especial interesse social (AEIS). Com a implementação do programa de Regularização e Titulação da SMH, instituído pelo Decreto nº 20.312, de 31 de julho de 2001, e com a atuação da administração municipal na urbanização e regularização urbanística e fundiária dos reassentamentos populares do Rio de Janeiro. A Coordenação de Regularização Fundiária trata da averbação das certidões e respectivos memoriais descritivos aos cartórios de registros de imóveis. As normas de uso e ocupação do solo cabem a Coordenadoria de Programação, bem como a elaboração, apresentação, análise e atendimento as exigências técnicas de projeto solicitadas pelo setor de aprovação. Obtém ainda a licença de obra de urbanização e/ou edificações na unidade da Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) que atende a área onde está localizado o projeto. Com base neste procedimento o município pretende imprimir um ritmo de regularização fundiária que dê atenção às demandas da população de baixa renda. Entretanto diversos motivos são apresentados na questão fundiária – assunto complexo –, onde aproveitamos para discorrer sobre o tema através de análise da arquiteta urbanista Clarissa Moreira para os terrenos no bairro do Centro da cidade do Rio de Janeiro, relativo ao programa Novas Alternativas, cujos rumos são bastante pertinentes ao Morar sem Risco. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA O redirecionamento do desenvolvimento das cidades brasileiras para a busca de modos de proporcionar melhor uso da estrutura urbana construída ao longo dos anos, através da reabilitação urbana, é uma alternativa possível e desejável. Principalmente, frente à incessante e desregulada expansão e construção nova nos moldes cada vez menos qualificados da construção civil brasileira, em termos de qualidade de espaço urbano e arquitetônico. No entanto, esta nova forma de desenvolvimento urbano implica rever instrumentos de regulamentação urbanística, fundiária, de formas de financiamento, de procedimentos administrativos e mesmo, de atuação dos governos e da sociedade civil. Trata-se de uma grande transformação no modo de fazer e de gerir a cidade. O processo de reabilitação urbana implica dotar a cidade de condições favoráveis à realização e ao desenvolvimento de usos e atividades, e ainda, estimular sua implantação. Uma das condições fundamentais,
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neste contexto, é a solução de pendências em relação à propriedade do parque imobiliário consolidado, através da regularização fundiária. E é ela um dos principais impedimentos ao processo de retomada das áreas – aqui se pode abrir um paralelo – ao Programa Morar Sem Risco quanto à implantação de novos usos e, sobretudo, do uso habitacional, uma vez que irregularidades de propriedade e pendências jurídicas dificultam, senão impossibilitam transações imobiliárias. Estas pendências geram obstáculos, uma vez que as exigências para financiamento e outros tipos de transação financeira normalmente compreendem a total regularidade do imóvel, ou seja, a propriedade deve estar registrada, livre de dívidas, hipotecas ou quaisquer pendências sejam em nome do proprietário ou do imóvel. Numa breve análise da questão fundiária como impedimento à realização de empreendimentos habitacionais no Rio de Janeiro foi verificado no contexto da promoção de empreendimentos habitacionais no Centro da cidade, a partir da reabilitação de imóveis. Os seguintes exemplos de impedimentos fundiários estão entre os mais comuns: – Imóveis sem registro. Diversas ordens religiosas ou mesmo órgãos públicos, ao lado de proprietários privados, não registraram seus imóveis ou as pesquisas fundiárias não os localizaram, o que demanda uma organização específica neste sentido, do ponto de vista cartorial; Estes tipos de impedimentos legais normalmente só podem ser solucionados através de desapropriação. Seria aconselhável rever a lei em função do Novo Código Civil Brasileiro, que determina a apropriação ao patrimônio municipal de imóveis com dívidas de IPTU, em estado de abandono. – A especulação imobiliária embora não seja uma questão de regularidade fundiária, diz respeito a um dos maiores obstáculos à disponibilidade de imóveis para empreendimentos. Neste sentido, a questão da especulação imobiliária e da dimensão “intocável” da propriedade privada precisa ser abordada pela legislação urbana, considerando a questão da função social da propriedade, prevista pelo Estatuto da Cidade. Prioridade junto à gestão de patrimônio imobiliário público (compreendendo órgão federais, municipais e estaduais) para projetos habitacionais para baixa renda e média baixa, sobretudo em áreas centrais ou circunvizinhas. Utilização de medidas como IPTU progressivo e outras (taxação da valorização imobiliária, etc.), a fim de desencorajar a especulação imobiliária. O objetivo da presente análise não é sintetizar o tema da regularização fundiária em áreas centrais, mas reiterar a necessidade de realização de um diagnóstico aprofundado da questão fundiária e dos temas diretamente relacionados, a fim de possibilitar a construção de uma política adequada para a implementação de operações de reabilitação urbana. O enfrentamento da questão fundiária e dos aspectos a ela relacionados, como os citados anteriormente, é uma
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pré-condição para uma política de reabilitação urbana na escala necessária à constituição de uma ação com a amplitude capaz de possibilitar a melhoria da qualidade de vida da população e o melhor aproveitamento do patrimônio urbano construído. CONSIDERAÇÕES GERAIS O atual desafio para os gestores públicos é estruturar programas com o objetivo de minimizarem os efeitos do processo da desigualdade social, que gera uma massa crescente de pessoas destituídas dos direitos humanos básicos, como o direito à saúde, educação, trabalho, segurança, moradia, etc. Sempre lembrando que a habitação é um direito básico da cidadania. O respaldo está no debate internacional, desde a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, até a declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos, de 1996, que reafirmou o compromisso dos governos nacionais com a “completa e progressiva realização do direito à moradia adequada” e estabeleceu como um objetivo universal que se assegure abrigo adequado para todos e que se façam os assentamentos humanos mais seguros, mais saudáveis e mais agradáveis, eqüitativos, sustentáveis e produtivos”. Este processo deve ser reduzido a partir da constituição de dispositivos de inclusão social, onde a assistência não seja sinônimo de assistencialismo, mas sim possibilidade de emancipação social. Neste contexto, investir em programas de moradias é um passo fundamental para o resgate dos direito sociais subtraídos, assim como para a reconstrução de um novo lugar para o indivíduo no mundo. O novo lugar é compreendido como a possibilidade de afirmação da singularidade deste contingente de pessoas “sem voz”, “sem direitos”, a partir da ruptura com as relações de tutela (com as instituições, com o Estado, com o mundo) a reconstrução da autonomia e das redes de suporte social. É importante também, ao pensarmos na moradia, definir este conceito. Pensar a questão do morar implica em redefinir sobre a relação que os indivíduos estabelecem com o espaço em que vivem, que sentidos atribuem a ele e de que forma dele se apropriam. Entendemos existir diferenças entre estar em espaços de moradia e habitá-los. Esse processo que caracteriza a experiência do morar. E apesar das tendências – intervenções de urbanização e regularização fundiária nas favelas – terem sido ampliados, na medida em que se tornaram mais escassos os recursos financeiros disponíveis para aplicação em projetos habitacionais destinados às famílias de baixa renda, ficando mais restritas as condições operacionais e institucionais dos tradicionais agentes promotores habitacionais. Mesmo sendo legítima e necessária a permanência dessa linha programática, que promove a urbanização e a regularização, não devem ser excluídas alternativas de ação na promoção de moradia. E estas alternativas e programas como Morar sem Risco, assim
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como em todos os países que conseguiram, ao longo dos anos, combater a falta de moradias para a população de baixa renda, o fizeram através da concessão explícita de subsídios à aquisição das unidades. Inclusive em países mais desenvolvidos, cujas populações têm maior capacidade de pagamento, há a destinação de recursos a fundos perdidos para modelos com o mesmo objetivo. Por fim, o município do Rio de Janeiro só se beneficiará em termos de ganhos ambientais, sociais e urbanos, através de uma implementação efetiva do Plano Diretor e o Estatuto da Cidade, com sua missão de encontrar saídas no tocante à concepção e à forma de implantação de empreendimentos habitacionais, principalmente, voltados tanto para as comunidades de baixa renda como para os demais segmentos sociais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Sérgio de. Desafios da Habitação Popular no Brasil: políticas recentes e tendências. 25 p. CARDOSO, Adauto Lúcio. Programa Favela-Bairro – Uma Avaliação. p. 37-50. In: Anais Seminário de Avaliação de Projetos IPT:Habitação e Meio Ambiente: Assentamentos Urbanos Precários. São Paulo: Coleção Habitare, IPT, 2002. ______. Política Municipal de Habitação. In: Cadernos do Programa Habitar Brasil/BID. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ-FASE, 2001. v. 1, 118 p. ______. Política Habitacional no Brasil: balanço e perspectivas. 11 p. ______. Desigualdades urbanas e políticas habitacionais. 6 p. FARIAS, Joyce Guedes de. Reassentamento de 41 famílias no bairro de Bangu. 2002. 51 f. Trabalho de graduação de final de curso (arquitetura) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Instituto Metodista Bennett. Rio de Janeiro, 2002. LEME, Maria Cristina da Silva, coord. (1999). Urbanismo no Brasil. São Paulo: FUPAM/Studio Nobel. Apresentação; A formação do pensamento urbanístico no Brasil, 1895-1965, p. 16-38. MOREIRA, Clarissa da Costa. 2003, 6 p. A importância da regularização fundiária na reabilitação de áreas centrais. Rio de Janeiro, 2003. OLIVEIRA, Maria Cristina Bley da S. Política de habitação popular no Brasil: passado e presente. 2000. 300 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento e Uso do Solo Urbano) – IPPUR. UFRJ, Rio de Janeiro, 2000.
Acesso à Justiça e Segurança da Posse da Terra: Obstáculos Judiciais à Regularização Fundiária Plena VERA LÚCIA
DE
ORANGE LINS DA FONSECA
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SILVA1
Advogada do CENDHEC; Pós-Graduanda em Política e Gestão Ambiental.
JULIANA ACCIOLY MARTINS Advogada do CENDHEC.
DO ACESSO À JUSTIÇA Kazuo Watanabe afirma que a garantia do acesso à justiça se traduz em “acesso à ordem jurídica justa”. Nesse sentido, ordem jurídica justa é aquela onde todos os titulares de um direito possam ter prestada a tutela jurisdicional de forma eficaz. Tal entendimento já era defendido pelo Movimento de Acesso à Justiça, encabeçado por Mauro Cappelletti, onde se prega, em resumo, a efetivação dos direitos fundamentais da pessoa humana. Em 1978, Mauro Cappelletti e Bryant Garth, seguindo a tendência mundial de adequar o procedimento à realidade, propõe ao mundo jurídico, ao publicarem a obra Access to Justice: The Worldwide Movement to Make Rights Effective2, uma nova concepção de fazer justiça: a Justiça de Resultados. Tratava-se de uma evolução proposta pelo conceito de acesso a justiça, admitindo como tarefa básica dos modernos juristas a busca do acesso real e efetivo à
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CO-AUTORES: Mercia Alves (Assistente Social e Coordenadora do Programa Direito à Cidade); Flávia Gomes (Assistente Social); Keila Ferreira (Assistente Social); Adriana Mendonça (Arquiteta e Urbanista); Alexandre Pacheco (Estagiário de Direito); Flora Pimentel (Estagiária de Serviço Social), Mônica Néri (Estagiária de Arquitetura e Urbanismo).
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No Brasil, a obra foi traduzida com o título Acesso à Justiça pela Sérgio Antônio Fabris Editor.
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prestação jurisdicional, ligando o conceito de acesso à justiça ao binômio possibilidade e viabilidade de acessar o sistema jurídico em igualdade de condições. A obra de Cappeletti e Garth elenca soluções práticas para o problema do acesso à justiça, classificando-as como ondas. São, na verdade, formas de suprimir os obstáculos existentes que impedem a prestação jurisdicional plenamente justa. Conforme estes autores3, o movimento do acesso à justiça centra sua atenção no “conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimento utilizados para processar e mesmo prevenir disputas na sociedade moderna”. Assim, essa “demanda latente por métodos que tornem os novos direitos efetivos forçou uma nova meditação sobre o sistema de suprimento: o sistema judiciário”. Em conformidade com o movimento preconizado por Cappelletti e Garth, o Poder Constituinte, ao promulgar a Constituição da República Federativa do Brasil, restabelecendo o Estado Democrático de Direito, reflete a preocupação em garantir o acesso à justiça em vários dispositivos da Carta Magna.4 Cappelletti5 analisa a dimensão social do processo, revolucionando a concepção de acesso à justiça para uma visão tridimensional do direito. Explica o autor que o direito deve ser visto do ponto de vista do jurisdicionado, e não dos seus produdores. São os usuários dos serviços processuais que passam a ter importância fundamental no conceito de acesso à justiça. Sob esta visão, a partir do jurisdicionado, o jurista fica obrigado a pensar na necessidade de resposta jurídica, ou seja, da prestação jurisdicional, e do impacto que esta exerce sobre aquele. O movimento de Acesso a Justiça, tendo como foco de reflexão o sistema judiciário brasileiro da atualidade, possibilita a identificação da responsabilidade do Poder Judiciário na criação e manutenção das desigualdades sociais, bem como sua função de agente modificador da realidade. Seguindo o clamor social para a concretização de direitos fundamentais, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como princípio fundamental a Dignidade da Pessoa Humana. Esse princípio visa garantir ao indivíduo uma existência plena, com a devida efetivação de seus direitos e garantias fundamentais. Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 consagrou o direito à moradia e a função social da propriedade urbana e da cidade – princípios formadores do Estatuto 3
Mauro CAPPELLETTI, Bryant GARTH, ob. Cit, p. 70.
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A Constituição Federal de 1988 contém dispositivos que revelam a preocupação do Poder Constituinte em garantir o acesso à justiça. Dentre eles, podemos citar os artigos 3º, I; 5º e 98, incisos I e II.
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Mauro CAPPELLETTI, Bryant GARTH, ob. Cit, p. 90.
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da Cidade – de forma a garantir o acesso ao solo urbano e à moradia digna. Todavia, percebe-se um grande distanciamento entre a garantia formal e à realidade. DIREITO À MORADIA COMO DIREITO HUMANO O Direito a Moradia é um dos direitos sociais assegurado constitucionalmente no art. 6º, no entanto, contraditoriamente temos hoje no Brasil cerca de 6,5 milhões de brasileiros sem acesso a moradia digna. Esta realidade de exclusão social e segregação territorial da maioria da população se deu, por conta do modelo de urbanização desordenada que tivemos longo dos anos, que privilegiou a população que tinha condições de atender aos critérios do mercado imobiliário privando assim, a população de menor renda ao Direito à Cidade. Diante deste quadro, onde mais de 80% da população das cidades são urbanas, e dessas mais de 40,5% auferem renda a baixo de 5 (cinco) salários mínimos, segundo o censo demográfico, são raros os municípios que não tem grande parte de sua população vivendo em assentamentos precários sem a mínima condições de habitabilidade necessitando portanto, de investimentos públicos para melhorias urbanas e segurança da posse. Para que se consiga minimizar o problema seria necessário hoje a construção de 6 (seis) milhões de novas moradias e introduzir melhorias urbanísticas e habitacionais em pelo menos 10,2 milhões de domicílios. Observa-se portanto que, no Brasil os investimentos públicos em habitação sempre foram escasso e atendia, na verdade apenas, aqueles que tinham condições de se enquadra aos critérios do mercado imobiliário. O Sistema Financeiro de Habitação (SFH) é um bom exemplo disto, pois ajudou o avanço da construção civil nos anos 70, gerando a edificações de grande números de habitações, porém apenas para as classes médias e alta, ficando de fora os que ganhavam até 5 (cinco) salários mínimos. Salienta-se o fato de que, a Constituição do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos, como encontra-se disposto no art. 4º, II, também prevê o direito social à moradia no seu art. 6º, o que significa dizer que, o Estado tem a obrigação de executar políticas públicas que de fato promova e proteja o direito à moradia adequada sob pena de responsabilização pela não cumprimento das obrigações pactuadas. Portanto, impedir programas e ações de exclusão de parcela da população com menor renda do acesso à Moradia Adequada, adotar políticas públicas de habitação que de fato assegurem a efetivação do direito à moradia, enfrentar os problemas urbanos com políticas integradas que possa de fato contribuir com a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades e a justiça social é dever do Estado.
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Com este entendimento, de que é necessário criar políticas que promovam e protejam a efetivação deste direito, é que ficou evidenciado a necessidade de construção de uma política urbana que garanta a inclusão à cidade da população de baixa renda. Neste espírito a Constituição Federal dedicou os artigos 182 e 183, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade, e 10 (dez) anos depois o Estatuto da Cidade chega para regulamentar e consolidar os princípios e diretrizes que deve orientar o desenvolvimento e a ocupação urbana, munindo principalmente, os municípios de instrumentos capaz de enfrentar as desigualdesdes socioterritorial nas cidades. O ESTATUTO DA CIDADE E O AVANÇO DO ACESSO AO SOLO URBANO NO BRASIL A construção do Estado brasileiro sempre foi marcado por grandes distorções. A história noticia a adoção de políticas públicas segregadoras e distantes da realidade da população. Diante desse contexto histórico, o crescimento das cidades brasileiras refletiu a desigualdade existente entre os indivíduos. Após a década de 30, a industrialização e o crescimento das grandes cidades fez com que esses espaços passassem a ser refúgio daqueles que necessitavam de trabalho e não o encontravam em áreas distantes dos pólos industriais. Como consequência da ausência de espaço destinado à moradia, e a grande demanda populacional, tem-se o alto preço das áreas urbanizadas, inacessível para a maioria da população, que precisa encontrar alternativas de moradia em ocupações urbanas ilegais, irregulares e clandestinas. Assim áreas desprovidas de infaestrutura básica necessária , tornam-se locais de moradia para a população de baixa renda, afirmando a segregação socioespacial. A partir dessa realidade, na tentativa de minimizar os efeitos da desigualdade na ocupação do solo urbano, várias normas urbanísticas, ambientais e fundiárias foram editadas ao longo dos anos, tendo como marco histórico o Estatuto da Cidade, que vem a regular a política urbana prevista na Constituição Federal. Ocorre que, conforme Edesio Fernandes6, a Regularização Fundiária não deve ser entendida apenas como forma de legalização da posse da terra consolidada, a fim de garantir a segurança da posse da terra.
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Fernandes, Edesio. Regularização de assentamentos informais: o grande desafio dos governos e da sociedade. In CARVALHO, Celso Santos (coord). Acesso à terra urbanizada: implementação de planos diretores e regularização fundiária plena. Florianópolis: UFSC; Brasília: Ministério das Cidades, 2008. 366 p.
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Na verdade, a regularização fundiária compreende uma série de ações que promovam, além da regularização jurídica, a regularização urbanística, ambiental e social, com a integração socioespacial dessas áreas. Nesse contexto, a segurança da posse abarca uma série de conceitos que vão além da proteção contra despejos forçados: ações de acesso a crédito formal, produção de assentamentos sustentáveis, reconhecimento de direito de cidadania, fortalecimento de organizações sociais, reconhecimento dos direitos das mulheres, etc.7 Com a promulgação do Estatuto da Cidade, busca-se garantir o desenvolvimento sustentável das cidades e seus habitantes, ampliando o conceito de função social da propriedade para função social da cidade, através da utilização de vários instrumentos urbanísticos, jurídicos e de gestão participativa. No entanto, após 20 anos da promulgação da Carta Magna e mais de 10 anos do Estatuto da Cidade, ainda não se conseguiu efetivar essas garantias para os moradores de baixa renda de assentamentos espontâneos. DA EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA: O CENDHEC E A SEGURANÇA DA POSSE DA TERRA O Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social, CENDHEC é uma entidade da sociedade civil, sem fins lucrativos fundada em 2 de novembro de 1989. O CENDHEC define como missão defender e promover os Direitos Humanos, especialmente de crianças e adolescentes, moradores e moradoras de assentamentos populares e grupos socialmente excluídos, contribuindo para a transformação social, rumo a uma sociedade democrática, equitativa e sem violência. O CENDHEC, enquanto entidade inserida nas relações sociais, volta sua ação para a prestação de serviços sociais visando garantir direitos a grupos sociais cujas causas específicas são concernentes a crianças e adolescentes que tiveram ou têm seus direitos violados, além de moradoras e moradores de comunidades em situação de vulnerabilidade social na cidade do Recife. A instituição conta, em suas origens, com as ações sociais desenvolvidas pela Arquidiocese de Olinda e Recife tendo a frente Dom Helder Câmara, até então arcebispo daquela comarca. D. Helder Câmara, maior representante da ala progressista da Igreja Católica, destaca-se por suas iniciativas de denuncia as torturas cometidas pelo Estado contra ativistas políticos e quaisquer indivíduos contrários ao regime Militar vigente no Brasil sendo, por isso, reconhecido como um fiel defensor dos
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Ibid.
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direitos humanos. Ele estimulou a organização popular, abriu os espaços da igreja para defesa dos direitos humanos e para formação política dos populares criando assim a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife. Tinha uma profunda consciência dos problemas da humanidade, sempre na perspectiva da ação de Deus entre os homens e suas intermediações. Devido a sua marcante atuação política e sua forte influência nos grupos populares D. Helder Câmara foi fortemente perseguido pelas forças militares e o seu afastamento (supostamente, por aposentadoria) do cargo institucional causou impactos nas ações desenvolvidas pela Igreja o que leva a desintegração do grupo que compunha setor jurídico da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife, que defendia famílias moradoras de assentamentos de baixa renda. Tal fato responde ao surgimento do Centro D. Helder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC. A atuação do CENDHEC se dá, prioritariamente, em âmbito local (na cidade do Recife) e sua região metropolitana, alcançando dimensões a níveis estadual e nacional a partir de sua articulação política com outras Organizações da sociedade e movimentos em Redes com repercussão extra local a fim de contribuir e fortalecer no controle social das políticas públicas. Daí, decorre sua articulação com os movimentos sociais, com a Associação brasileira de ONG – ABONG, Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH, Fórum Estadual de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes de Pernambuco; Fórum Estadual de Reforma Urbana, Rede Estadual de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil, Fórum de PREZEIS, Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano, Fórum Nacional de Participação Popular, dentre outros. No tocante ao Programa Direito à Cidade, o Cendhec atua na defesa da legalização da posse da terra em nome dos seus reais moradores como um instrumento de garantia do direito à terra e à moradia para a população pobre moradora das Zonas Especiais de Interesse Social – Zeis do Recife. O Cendhec, através deste Programa, vem contribuindo efetivamente com a defesa da posse da terra impedindo, concretamente, a expulsão de centenas de famílias de suas moradias por especuladores de terra urbana e pelo mercado imobiliário, sobretudo, junto as comunidades da Mustardinha, Mangueira, Entra Apulso, Sitio Grande, Torrões, Campo do Vila, Três Carneiros, onde são desenvolvidas ações no âmbito da Defesa da Segurança da Posse da Terra. Por conseguinte atua no campo da: Promoção de ações de usucapião individual e coletiva e defesa de moradores(as) em ações de reintegração de posse; Mobilização das comunidades em torno do direito à moradia; Participação nos espaços institucionais de formulação e controle das políticas públicas, e de articulação da sociedade civil,
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referentes ao tema da reforma urbana e democratização do acesso ao solo; Elaboração de subsídios teóricos metodológicos; Ações de publicização da temática; Formação na temática da cidadania e política urbana. Dessa forma, o Programa Direito à Cidade tem por objetivo contribuir com a garantia da segurança da posse da terra dos(as) moradores(as) das Zeis para que tenham assegurada uma moradia digna e qualidade de vida, estando em condições de produzir soluções para seus problemas como cidadãos e cidadãs participantes da vida pública na comunidade. Esse objetivo é orientador para as ações desenvolvidas no âmbito dos projetos da Promoção, Defesa, Formação e Controle Social do Programa Direito à Cidade, no qual buscam consolidar os princípios e diretrizes que norteiam a luta no campo da Reforma Urbana, tendo como marco o Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/2001. O CENDHEC, portanto, atua na defesa da segurança da posse da terra através, primordialmente, de ação judiciais, com o objetivo de garantir aos reais ocupantes o acesso à terra. Ocorre que a concretização desse direito não é alcançada tendo em vista os obstáculos encontrados na estrutura institucional do Poder Judiciário e órgãos essências à justiça. DO PODER JUDICIÁRIO: EMPECILHOS E PROPOSTAS À EFETIVAÇÃO DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA PLENA Dentro da perspectiva do trabalho realizado pelo CENDHEC, pretende-se analisar os obstáculos resultantes da atuação do Poder Judiciário na regularização fundiária de áreas Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social) da cidade do Recife, bem como formas de minimizar os efeitos desses problemas de efetivação de direitos fundamentais da pessoa humana. Apesar da legislação brasileira consagrar como princípio fundamental o direito à moradia e a função social da propriedade, o Poder Judiciário, no exercício de sua função hermenêutica e concretizadora de direitos fundamentais, não aplica, na prática, esses princípios basilares. Tal postura resulta, primordialmente, da utilização do paradigma individualista do Código Civil de 1916,8 onde se afirma o direito à propriedade privada absoluta.
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FERNANDES, Edesio. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidades: algumas notas sobre a trajetória do direito urbanístico no Brasil. In MATTOS, Liana Portilho (org). Estatuto da Cidade Comentado: Lei 10.257, de 10 de Julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 480 p.
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Dessa forma, apesar da Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidadã garantirem, em termos abstratos, o acesso à moradia digna e a função social da propriedade, o Poder Judiciário, através de seus juízes, não acompanham essa mudança de paradigma legal, e reafirmam, em suas decisões, os princípios que regiam o Código Civil de 1916, com resistência à nova concepção trazida pela Constituição Federal e o Estatuto da Cidade. Assim, percebe-se um distanciamento entre a realidade das comunidades e o Poder Judiciário, que não faz uma avaliação acerca do seu papel na criação e manutenção da segregação socioespacial do espaço urbano. Contudo, qual a dificuldade que existe para essa necessária mudança de paradigma, de forma a garantir a aplicação do princípio da função social da propriedade e da cidade através dos órgãos legitimados para tanto, como o Poder Judiciário? Há no Poder Judiciário Brasileiro um descaso acerca do tema do direito à moradia digna, que se reflete no desconhecimento por parte dos operadores do direito acerca dos instrumentos legais de direito urbanístico e ambiental que garante a inclusão socioespacial dos habitantes de assentamentos espontâneos, isto pode ser percebido no número de ações acompanhadas pelo CENDHEC em tramite na Justiça Estadual a mais de 10(dez) anos, e que muitas vezes esperam anos por um despacho, e quando há, é para fazer exigências descabidas, como é o caso, da comprovação através de certidão dos cartórios de imóveis de que o autor da ação de usucapião urbano não é proprietário de outro imóvel. A formação desses operadores, notadamente exegética, denota uma procedimento apegado à formas, sem incluir no processo judicial a expressão teleológica defendida pelo movimento do Acesso à Justiça. No campo dos direitos humanos, especialmente o direito à moradia de comunidades de baixa renda, o processo judicial tem a função de apaziguar a desigualdade reinante e servir como instrumento de transformação social. Ainda acerca das instituições do Estado, o Ministério Público, órgão cuja competência constitucional inclui a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, é ausente no controle da ocupação do solo urbano, bem como na defesa das garantias constitucionais das comunidades que ocupam determinadas áreas, desprovidas de qualquer infra-estrutura e impróprias à habitação humana. Ademais, tendo em vista as consequências que as ocupações irregulares, ilegais e clandestinas representam no crescimento da cidade e nos seus habitantes, é necessário que o Ministério Público intervenha de forma mais planejada e eficiente.
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Em Pernambuco, O Ministério Público conta com a Promotoria de Habitação, composta por uma promotora, cujo objetivo é de promover ações públicas para fins de garantir, com atuação limitada à habitação. A despeito da promotoria especializada, os promotores, que atuam nas ações judiciais para fins de regularização fundiária nas varas cíveis, estão distantes da realidade social dos moradores das comunidades de baixa renda e não utilizam a ferramenta processual para fins de minimizar a segregação socioespacial. Isso porque, interpretam a legislação urbanística de forma exegética, sem atribuir a função social que a ela foi destinada pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade. Dessa forma, faz-se urgente que se crie um Promotoria especializada na Regularização Fundiária Plena, com condições de atuar na promoção da cidadania dos moradores das comunidades de baixa renda. No que tange à defesa dos moradores de áreas Zeis da cidade do Recife, temse a total insuficiência da Defensoria Pública do Estado de Pernambuco para lidar com as questões do acesso ao solo urbano e o direito à moradia. Seja pelo desconhecimento do tema, seja pela demanda de atendimentos e o limitado número de defensores públicos. Diante desse contexto, a Defensoria Pública se torna incapaz de atuar na defesa da cidade e na garantia do direito à moradia dos cidadãos, enquanto sujeitos coletivos de direitos. Assim, faz-se necessário seja implementado o Núcleo Especializado em Regularização Fundiária Plena e Prevenção de Despejos Forçados na Defensoria Pública, com atuação integrada às políticas públicas destinadas à efetivação do direito à moradia adequada. Outro grande desafio à efetivação do direito a moradia são as recorrentes dificuldades nos Cartórios de Registro Imobiliário. Entre elas, podemos elencar os altos custos do registro; a quantidade de documentos exigidos para fins de requerimento de certidões; a ausência de procedimentos uniformes para todos os cartórios; bem como a ausência de comunicação entre os cartórios e o poder público, dificultando a obtenção de informações ou criando contradições nas bases de dados de cada órgão.9 Ainda acerca do Direito Registrai, tem-se que os Cartórios de Registro Imobiliários também desconhecem os instrumentos trazidos pela nova ordem constitucional e urbanística e vigor e afirmam, cotidianamente, o paradigma do Código
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AFONSIM, Betânia; FERNANDES, Edesio. Regularização Fundiária: princípios e conceitos básicos.
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Civil de 1916, a propriedade individual absoluta, resistindo à concepção da função social da propriedade do solo urbano. Ademais, os Cartórios de Registro Imobiliário não se enxergam enquanto parceiros na Regularização Fundiária Plena para a população de baixa renda e estão ausentes dos espaços de discussão de políticas públicas relacionadas ao tema.10 Necessário que haja, portanto, uma comunicação entre o Direito Urbanístico e o Direito Registrai, de forma a incorporar ao segundo os princípios de direito público que regem à propriedade, atribuindo função social aos registros imobiliários, de forma a adequar o Direito Registral aos novos parâmetros definidos pela Constituição Federal e o Estatuto da Cidade.11 Em conclusão, é evidente que o Poder Judiciário e seus órgãos essenciais têm fundamental papel na efetivação da Regularização Fundiária dos assentamentos de baixa renda. Todavia, para sua efetivação, necessário que as novas diretrizes traçadas pela Constituição Federal e o Estatuto da Cidade sejam incorporadas no cotidiano dos Juízes, de forma que os mesmos percebam a sua responsabilidade na criação e manutenção da segregação socioespacial, bem como parte integrante de um modelo individualista que está sendo perpetuado através de decisões judiciais. É preciso, ainda, que o direito à propriedade individual absoluta, primado do Código Civil de 1916 não mais sirva como instrumento de resistência para a concretização da função social da propriedade urbana e da cidade. Como já esclareceu o professor e jurista Edesio Fernandes12, o Poder Judiciário deve refletir, de forma crítica, sobre o processo de produção da ilegalidade e irregularidade urbana, avaliando a criação das leis urbanísticas, as condições e os obstáculos ao cumprimento das referidas leis, estabelecendo uma relação com a sua responsabilidade na produção e manutenção dessa ilegalidade urbana. A CAMPANHA DO CENDHEC PELO ACESSO À JUSTIÇA A partir do entendimento de que o Poder Judiciário precisa se perceber enquanto agente transformador da realidade social vigente e diante do total descaso e
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Ibid.
11
Ibid.
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FERNANDES, Edesio. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidades: algumas notas sobre a trajetória do direito urbanístico no Brasil. In MATTOS, Liana Portilho (org). Estatuto da Cidade Comentado: Lei 10.257, de 10 de Julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 480 p.
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desconhecimento dos intrumentos de regularização fundiária por parte dos operadores do direito, o CENDHEC identificou a necessidade de promover uma série de ações visando a conscientização da população em geral acerca do tema do acesso à justiça enquanto efetivação de direitos fundamentais do indivíduo. Dentro desse contexto, ao longo da atuação do CENDHEC nesses 19(dezenove) anos de existência, diversas ações foram executadas com o intuito de sensibilizar os gestores públicos e operadores do direito acerca da importância da concretização do direito à moradia digna. Dessa forma, o CENDHEC promoveu vários círculos de debates com agentes de diversos seguimentos públicos, denunciou às omissões e cobrou a execução de políticas públicas destinadas a defesa de direitos humanos, entre eles o direito à moradia. O CENDHEC percebeu a necessidade de iniciar uma discussão mais abrangentes, englobando todas as parcelas da sociedade população, sociedade civil, administração pública e poder judiciário para tratar do acesso à justiça enquanto direito humano e enfrentar a questão do desconhecimento acerca dos instrumentos concretizadores dos direitos fundamentais, notadamente os direitos da criança e do adolescente e dos moradores dos assentamentos informais. Todavia, percebeu-se a insuficiência dessas ações na efetivação do acesso à justiça, posto que a sociedade, de uma forma geral, estava afastada das discussões acerca dos empecilhos decorrentes da atuação dos poderes públicos, notadamente o Poder Judiciário. Assim, em julho de 2008, o CENDHEC iniciou uma campanha pelo acesso à justiça, através do lançamento de uma publicação intitulada Acesso à Justiça é um Direito Humano,13 que foi encartado através de jornal impresso de grande circulação do Estado de Pernambuco. O objetivo da campanha é o de ampliar a discussão acerca do acesso à justiça para a coletividade, de forma a incluir a sociedade pernambucana no debate sobre a necessidade de encontrar soluções para a efetivação dos direitos da pessoa humana, em especial os das crianças e dos adolescentes e dos moradores dos assentamentos informais. Essa publicação é o início de uma campanha que pretende, a princípio, sensibilizar a população para que ela exija do Poder Público a concretização desses direitos. Como etapa complementar, com relação à efetivação do direito à moradia adequada, pretende-se promover um ciclo de debates e seminários com o Poder 13
JORNAL DO COMMERCIO, 11 de julho de 2008.
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Judiciário, de forma a incluir os operadores de direito, notadamente os juízes, membros do ministério público e defensores públicos, na discussão acerca da regularização fundiária plena, enfatizando as consequências da segregação socioespacial no desenvolvimento das cidades e o seu papel na transformação dessa realidade. Ainda, pensando na luta pela inclusão social e pela efetivação destes direitos, os movimentos de reforma urbana devem fazer uma agenda que incorporem ações de sensibilização dos operadores do direito (Magistrados, promotores, defensores públicos, notoriais, etc.), com vista a conseguir a implementação da regularização fundiária plena, bem como, refletir e investir na formação desses operadores, na academia. CONSIDERAÇÕES FINAIS A informalidade dos assentamentos urbanos é um problema que acarreta diversas consequências para a cidade e seus habitantes que tem origem na segregação socioespacial dos espaços urbanos e nas políticas públicas. Dessa forma, é preciso que os juristas se atentem para a dimensão jurídicosocial do processo de desenvolvimento urbano, de forma a garantir o direito coletivo ao planejamento e a gestão participativa das cidades. Isso porque o processo judicial, enquanto acepção teleológica, possibilita a inclusão social pelo direito, minimizando as desigualdades sociais e incluindo setores sociais abandonados pelo Estado. O Direito à Moradia é reconhecido como Direito Humano em diversas declarações e tratados internacionais da qual o Brasil é signatário, além de ser um direito social reconhecido constitucionalmente, o que vale dizer que o Estado necessita de ações positivas, por meio da execução de políticas públicas assegurem a efetividade deste direito, O estado brasileiro tem a obrigação de adotar políticas públicas de inclusão social e territorial da população tendo como meta integrar os assentamentos informais a malha urbana da cidade dotando-as de infra-estrutura básica, urbanização e regularização fundiária. BIBLIOGRAFIA AFONSIM, Betânia; FERNANDES, Edesio. Regularização Fundiária: princípios e conceitos básicos. Belo Horizonte: PUC [www.virtual.pucminas.br] ALVES, Mércia. Direito humano à moradia adequada: cenários controversos da realidade brasileira. In Daniel Rech e outros (coord). Direitos Humanos no Brasil 2: diagnóstico e perspectivas. Coletânea Ceris, ano 2, n.2. Rio de Janeiro: CERIS/Mauad X, 2007. 585 p. CAPPELLETTI Mauro; GARTH Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. 168 p.
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FERNANDES, Fernandes. Direito Urbanístico: entre a “cidade legal” e a “cidade legal”. In FERNANDES, Edésio (org). Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. ______. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidades: algumas notas sobre a trajetória do direito urbanístico no Brasil. In MATTOS, Liana Portilho (org). Estatuto da Cidade Comentado: Lei 10.257, de 10 de Julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 480 p. ______. Regularização de assentamentos informais: o grande desafio dos governos e da sociedade. In CARVALHO, Celso Santos (coord). Acesso à terra urbanizada: implementação de planos diretores e regularização fundiária plena. Florianópolis: UFSC; Brasília: Ministério das Cidades, 2008. 366 p. ______. Questões anteriores ao Direito Urbanístico. Belo Horizonte: PUC, 2006. [www.virtual. pucminas.br] ROMEIRO, Paulo Somlanyi. A Regularização fundiária de interesse social em áreas privadas – política pública e exigibilidade. Belo Horizonte: PUC, 2006 [www.virtual.pucminas.br] SAULE JR. Nelson; OSÓRIO, Letícia Marques. Direito Humano à Moradia Adequada e à Terra Urbana. In LIMA JR., Jaime Bevenuto (coord). Relatório brasileiro sobre direitos humanos e econômicos, sociais e culturais: meio ambiente, saúde, moradia adequada e à terra urbana, educação, trabalho, alimentação, água e terra rural. Recife: GAJOP, 2003. 476 p.
5 PROTEÇÃO DO DIREITO À MORADIA NOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS
Conflitos Fundiários Urbanos: o Dilema do Direito à Moradia em Áreas de Preservação Ambiental ANA MARIA FILGUEIRA RAMALHO Arquiteta e Urbanista. Doutoranda em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco.
VERA LÚCIA DE ORANGE LINS DA FONSECA
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SILVA
Advogada do Centro Dom Helder Câmara e PósGraduanda em Gestão Ambiental.
INTRODUÇÃO Este trabalho busca fazer uma reflexão sobre a regularização fundiária de assentamentos urbanos em Áreas de Preservação Permanente – APPs, considerado aqui, como um tipo de conflito fundiário. Toma-se como referência, a cidade do Recife, por apresentar um alto índice de assentamentos consolidados em APPs. Pois, com poucas áreas urbanas disponíveis e de solo urbano escasso e caro, os assentamentos espontâneos existentes foram se expandindo em áreas de mata, mangue e nas margens dos rios. O que era para ser preservado, ao longo dos anos foi se transformando em locais de moradia, de uma população excluída socialmente, que encontram nesses locais uma facilidade de ocupação, gerando dessa forma o conflito entre o direito à moradia e o direito a um ambiente saudável. Direitos esses, garantidos pela Constituição de 1988. Sendo assim, esse trabalho busca fazer uma reflexão sobre as seguintes questões: Quais os critérios que devem ser utilizados para ações de regularização fundiária em APPs? É possível fazer regularização fundiária sustentável em APPs? A experiência de regularização fundiária sustentável do Recife em APPs tem sido bem sucedida? Este trabalho foi estruturado em quatro partes: a primeira parte apresenta as características urbanas e ambientais da cidade do Recife; na segunda parte, mostra como ocorreu o processo de reconhecimento dos assentamentos consolidados nas Áreas de Preservação Ambiental; na terceira parte, faz uma discussão sobre os desafios da Regularização Fundiária Sustentável em Áreas de Preservação Permanente; e na quarta e última parte, apresenta as considerações finais.
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1. A CIDADE DO RECIFE: CARACTERÍSTICAS URBANAS E AMBIENTAIS A cidade do Recife ocupa uma área de 220 Km2, distribuída em 6 (seis) Regiões Político-administrativas. Tem como características físico-ambientais o espaço distribuído em 66, 83% de pequena elevação, 23,56% de planície aluvionar e 9,61% de ambiente aquático. Rica em beleza natural, de reconhecido patrimônio artístico e histórico, de grande potencial de turismo e de serviços, é marcada por profundos contrastes físicos-sociais que vem se acumulando ao longo de décadas. Recife possui uma população urbana de aproximadamente 1,5 milhões de habitantes, de acordo com o Censo Demográfico de 2000 (IBGE), dos quais 50% dessa população vivem aproximadamente em 500 assentamentos informais, de forma precária e sem condições de habitabilidade. A cidade é marcada por acentuadas desigualdades sociais, consequência de altos níveis de pobreza e de uma profunda concentração de renda, resultado de longos anos de ausência de uma política pública de interesse social nas diversas esferas de governo. Como consequência, a cidade se dualiza entre uma população com maior poder aquisitivo e que pode adquirir o solo urbano em áreas planas e de fácil urbanização e aquela população que ocupa o solo de forma desordenada em áreas de complexas soluções urbanísticas e de regularização fundiária. Segundo dados da Prefeitura do Recife, durante o ano 2000, moravam cerca de 550 mil pessoas ao longo dos rios que cruzam a cidade e aproximadamente 50 mil famílias nas margens dos diversos canais, e cerca de 144 assentamentos informais em áreas de morros. O que representa que, em uma região com poucas áreas urbanas disponíveis e de solo urbano escasso e caro, o adensamento populacional cresce em direção às Áreas de Preservação Permanente – APPs, isto é, aos poucos, os assentamentos espontâneos existentes vão se expandindo nas áreas da mata e principalmente nas margens dos rios. O que era pra ser preservado vai se transformando em locais de moradia, mesmo que em parte inapropriadas, por uma população excluída socialmente, mas que encontram nesses locais uma facilidade de ocupação, gerando dessa forma o conflito entre o direito a moradia e o direito a um ambiente saudável. Para responder as demandas dos movimentos populares em busca de uma cidade socialmente mais justa e equilibrada, foi criado na década de 80, no contexto da redemocratização, o Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social – PREZEIS, constituindo-se como um marco na renovação nos moldes de gestão de políticas urbanas no Recife, e que serviu posteriormente como referência nacional na implantação de políticas públicas em assentamentos espontâneos no Brasil. A partir do reconhecimento desses assentamentos como “Zonas Especiais” da cidade, o passo seguinte foi a viabilização do Poder Público Municipal em promover ações de urbanização e de regularização fundiária. Porém, nesse momento não foi aprofundado a viabilidade da regularização fundiária naqueles assentamentos espontâneos
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localizados em APPs, mesmo quando transformados em ZEIS. O contexto sóciopolítico em que a cidade vivia, marcada por um período de tensão muito forte em relação à posse da terra e a garantia do direito a moradia, especificamente nas áreas de propriedade particular e naquelas de maior interesse especulativo da cidade, terminou em não priorizar essa discussão, o que não impediu, ao longo dos anos, a ocupação das APPs por aqueles que tinham a necessidade de moradia. Com uma atuação frágil do Pode Público Municipal no exercício do controle urbano, as ocupações nas margens dos rios, mangues e morros foram aos poucos acontecendo, se expandindo e se consolidando, caracterizando-se assim, como um novo tipo de conflito fundiário urbano, na medida em que, evidenciou-se a dificuldade de adquirir a posse da terra, e retirar as famílias que ali residem da condição de ilegalidade e da situação de constante insegurança. Porém, a discussão, bem como, as alternativas para intervenção de regularização fundiária em áreas ambientais foram postergadas para décadas seguintes. 2. O RECONHECIMENTO DOS ASSENTAMENTOS CONSOLIDADOS NAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE NA CIDADE DO RECIFE Em 2002, a partir de uma determinação do Ministério Público do Estado de Pernambuco quanto a aplicação do Código Florestal na cidade do Recife, começa-se a discussão sobre o destino das APPs em áreas urbanas. O cerne da questão referia-se a exigência do Ministério Público para que o município pusesse em prática a determinação dos limites das APPs previstos no Código Florestal, ao invés, de como vinha sendo feito, da utilização dos limites de preservação bem inferior, previsto na Lei de Uso e Ocupação do Solo Urbano da cidade. Como já dito, Recife é uma cidade cortada por uma grande quantidade de rios, lagos e mangues e essa medida afetaria diretamente a utilização do solo urbano. A gestão municipal criou um grupo de estudo para compatibilizar essa questão fundamental para o desenvolvimento da cidade, e como consequência, gerou uma normatização específica, a Lei nº 16.930/2003, construída pela Prefeitura do Recife com a participação do Conselho Municipal de Meio Ambiente, altera alguns dos artigos do Código do Meio Ambiente e do Equilíbrio Ecológico do Recife (1996) e define os critérios para estabelecimento das APPs. Nesta nova lei foram consideradas de preservação permanente todas as formas de vegetação existentes ao longo dos corpos e cursos d’água, das áreas de manguezais, do topo de colinas e suas encostas, ao redor de nascentes, olhos d’água, lagos e lagoas, reservatórios de água naturais ou artificiais, alterando os parâmetros antes previstos no Código Florestal para a supressão total ou parcial da vegetação, tornando-as assim, mais compatíveis com a realidade da cidade. Contudo, o grande avanço que se pode obter com essa nova lei foi viabilizar a execução de projetos de “utilidade pública” ou “interesse social”, possibilitando assim,
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a regularização fundiária em APPs quando destinadas à habitação de interesse social, desde que haja a prévia anuência dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Urbano. O que indicou a preocupação do legislador em integrar as políticas urbanas e ambientais. Paralelamente, em âmbito nacional, essa discussão também foi iniciada no Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA, que gerou a Resolução 369 de 2006 onde possibilita a regularização fundiária de área urbana nas APPs. No entanto, essa resolução trouxe muita discussão e divergências de opiniões entre ambientalistas e urbanistas. Para os ambientalistas o Código Florestal era muito restritivo, pois, a nova resolução torna a questão de “utilidade pública” e de “interesse social” interpretações muito abrangentes. Enquanto que urbanistas, viram nessa resolução, a possibilidade de resolver os conflitos fundiários urbanos. 3. OS DESAFIOS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA SUSTENTÁVEL EM ÁREAS DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL Segundo Mukai (2002), o urbanismo não se ocupa apenas de arranjos físicos territoriais das cidades, mais abrange o meio urbano e o rural, e considera que é por isso que esta disciplina tem que cuidar também dos aspectos do meio ambiente. Com isso, o autor, utiliza da afirmação do jurista Louis Jacquignon que o direito urbanístico como disciplina visa também à proteção do meio ambiente: O direito urbanístico é a arte de arranjar as cidades sobre o aspecto demográfico, econômicos, estéticos e culturais, tendo em vista o bem do ser humano e a proteção do meio ambiente (Mukai apud Jacquignon, 2002).
Sendo assim, o direito urbanístico e o direito ambiental não podem estar dissociados, visto que fazem parte do ramo do direito público e tem o mesmo marco conceituai que é a Constituição Federal de 1988. Porém, quando se trata do direito à moradia adequada, muitas questões ainda são postas em debate. Especialmente quando se trata da regularização fundiária em APPs, que ainda é tema pouco discutido e enfrentado pelas gestões municipais. Se por um lado é possível afirmar que não há mais um conflito do ponto de vista das legislações ambientais e urbanas, por outro lado, criam-se incertezas da forma como os novos parâmetros devem ser aplicados nas cidades, e como, deve ser conciliado o direito dos ocupantes e a preservação ambiental. De acordo com Pádua (2006) ao se flexibilizar os parâmetros em APPs fica afrouxada em todo o Brasil, a prioridade de proteção aos mangues, nascentes, encostas, margens de rio, dunas, restingas, escarpas, brejos, topos de morro e outras áreas consideradas estratégicas para a manutenção do equilíbrio dos ecossistemas e dos
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serviços ambientais essenciais para a sociedade. A autora, apesar de opinar que o Código Florestal de 1965 era extremamente restritivo e que o Brasil da época era outro país, na sua opinião, no momento em que cada Município adaptar a lei à sua realidade, as APPs perderão valor, e teme por essa “adaptação”, pois ficará vulnerável de acordo com a vontade do gestor, principalmente quando se trata de municípios que ainda não dispõem de Planos Diretores. Assim, crítica dizendo: “Foi uma enorme infelicidade. O Conama ficou com medo de enfrentar outras áreas, cedeu a muitos interesses e violentou as APPs”. Para Fernandes (2007) o problema dos assentamentos espontâneos em APPs é uma expressão de um velho conflito entre os defensores da chamada “agenda verde” do meio ambiente e os defensores da chamada “agenda marrom” das cidades. Ou seja, não existe um conflito entre preservação ambiental e moradia. Pois, ambos são valores e direitos sociais constitucionalmente protegidos, tendo a mesma raiz conceituai, qual seja o princípio da função socioambiental da propriedade. E o desafio é compatibilizar esses valores e direitos. (...) é crucial que governos e a população reconheçam que a promoção da regularização dos assentamentos informais é um direito coletivo, condição de enfrentamento do enorme passivo socioambiental criado ao longo de décadas no país. Para tanto, é preciso que se adote um conceito antropocêntrico de natureza, bem como, que se tomem todas as medidas necessárias para a total reversão do atual modelo de crescimento urbano segregador e poluidor, de tal forma que as cidades brasileiras possam se tornar cidades ecológicas e sustentáveis do ponto de vista socioambiental. (FERNANDES, 2007).
Diante desse contexto, o debate deverá responder a questão do como fazer ações de regularização fundiária em APPs. Portanto, quais os critérios que devem ser utilizados para ações de regularização fundiária em APPs? É possível fazer regularização fundiária sustentável em nessas áreas? A experiência de regularização fundiária sustentável do Recife em APPs tem sido bem sucedida? Para a regularização fundiária em APPs será necessário levar em consideração a consolidação dos assentamentos espontâneos, predominantemente residenciais e o grau de interação sócio-cultural dos moradores com o local em que estão instalados, ou seja, a relação de pertencimento destes com o local de moradia, considerando que esse local proporcionará condições de habitabilidade e salubridade. No entanto, nos casos em que essas condições não estejam efetivadas, será necessária a relocação da população para um local próximo, prevalecendo o direito à moradia. A Regularização Fundiária Sustentável em APPs compreende as dimensões jurídica, através da titulação da posse da terra; urbanística, dotando a área de infraestrutura e equipamentos urbanos; socioambiental, através de programas de educação ambiental e mobilização da comunidade para um melhor convívio com o meio
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ambiente; e a econômica, através da geração de emprego e renda. Necessita para a sua efetivação, um plano de regularização fundiária, além da autorização do Poder Público e da anuência do órgão ambiental responsável. Pensar em Regularização Fundiária Sustentável é pensar em regularização que incorpore essas dimensões, sob pena de não se cumprir a diretriz do Estatuto da Cidade que é “garantir o direito a cidade sustentável, entendido como direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e serviços urbanos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”, como dispõe o Art. 2º, inciso I. Portanto, do ponto de vista normativo podemos dizer que é possível fazer regularização fundiária sustentável em APPs. Porém, a capacidade dos municípios em conduzir políticas públicas integradas tem sido um dos principais entraves para a solução desse conflito. No caso do Recife, a experiência da regularização fundiária sustentável em APPs não tem sido exitosa, apesar da Lei 16.930/2003, que torna possível a regularização dos assentamentos espontâneos consolidados nessas áreas. Um dos fatores que contribui para isso é a falta de articulação entre os diversos setores da esfera governamental envolvidos na temática urbana e ambiental, o que confirma a dificuldade de conciliação dessas agendas. Cabe ressaltar, que a referida Lei determina que projetos ou programas que tenham como meta a regularização fundiária em APPs, devem ser discutidos entre os Conselhos de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Urbano, o que poderia facilitar o diálogo entre essas duas temáticas. Em consulta feita a Prefeitura do Recife foi constatado que não existem dados mais aprofundados que informem quais são e quantos são os assentamentos consolidados em APPs. Também não se sabe ao certo, qual a população estimada que demanda a regularização no local e qual a população que deverá sofrer remoções. Como também, não se tem diretrizes específicas para a regularização fundiária nessas áreas. Além do que, na sua maioria as ações de regularização fundiária são executadas de forma fragmentada, ou seja, não conseguem contemplar todas as dimensões necessárias. A exemplo do PREZEIS, que visa promover a regularização jurídica e urbanística das ZEIS, mostra dificuldades de promover uma regularização sustentável, o que se observa é que este programa tem contemplado ações pontuais, ou de titulação do imóvel ou de urbanização, em detrimento de um planejamento urbano integrado, o que dificulta a inserção das ZEIS à cidade formal. Nesse sentido, pode-se afirmar que não existe uma experiência bem sucedida de regularização fundiária sustentável no Recife, apesar de dispor de um arcabouço legal favorável a tal procedimento. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar de avanços do ponto de vista das legislações existentes, ainda falta nos programas de regularização fundiária em APPs, dialogar com as políticas públicas, principalmente, as de natureza urbanas e ambientais.
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Observa-se também, que o programa de regularização fundiária do Recife não tem contemplado todas as dimensões necessárias a sua sustentabilidade. Principalmente, ao que se refere às ações de caráter ambiental, quando existem, apresenta uma função secundária, o que tornam os programas vulneráveis quanto à preservação ambiental. No entanto, também se faz necessário políticas preventivas de controle urbano, com o objetivo de coibir novas ocupações em APPs sob pena de comprometermos o também garantido direito constitucional, das presentes e futuras gerações a um ambiente ecologicamente equilibrado. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Constituição Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988. BRASIL. Estatuto da Cidade. Guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília, 2001. FERNANDES, Edésio. Regularização Fundiária de Assentamentos Informais em Áreas Urbanas. 2007. Disponível em: http://www.pucminas.br/virtual/2009 01/eursos/curso.php.curso. Acessado em 10 de setembro de 2008. MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002. PÁDUA, Maria Tereza. Áreas de Preservação Permanente. 2006. Disponível em: http://www.oeco.com.br/ index.php/busca/MARIA%20TEREZA%20PADUA.searchphras. Acessado em 10 de setembro de 2008. RECIFE. Lei Nº 16.930, de 13 de setembro de 2006. Código do Meio Ambiente e do Equilíbrio Ecológico do Recife.
Vila Itororó: Direito à Cultura Como Ameaça ao Direito à Moradia? ALINE VIOTTO, BIANCA TAVOLARI, JONNAS VASCONCELOS E YASMIN PESTANA1 Graduandos em Direito.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Contextualização do Problema; 3 O Projeto de Revitalização da Vila Itororó; 4 Aspectos Econômicos e Urbanísticos do Projeto; 5 A Realidade dos Moradores da Vila Itororó; 6 Outras Perspectivas; 7 Conclusão. RESUMO: Este artigo busca analisar a possibilidade de coexistência entre moradia e cultura na Vila Itororó, tendo como referência o trabalho de educação jurídica popular do SAJU-USP2 em conjunto com os moradores locais. Partindo de uma breve exposição sobre a comunidade da Vila Itororó no contexto histórico da cidade de São Paulo e sobre o projeto de revitalização do espaço pela Prefeitura Municipal, identificamos uma tensão entre direito à cultura e direito à moradia, uma vez que a iniciativa elaborada pelo poder público visa à desapropriação da área em questão e ao despejo dos moradores, a fim de construir um pólo cultural com bares e restaurantes. A partir deste estudo busca-se contribuir com o debate acerca da atual ação de desapropriação proposta pela Prefeitura, levantando questões sobre concepções de cultura, à luz de outras experiências semelhantes à da Vila. PALAVRAS-CHAVE: Direito à Moradia, Cultura, Educação Jurídica Popular, Vila Itororó, SAJU-USP.
1. INTRODUÇÃO De início, contextualizamos a história e a importância da Vila Itororó. Seus moradores convivem atualmente com a ameaça de despejo motivada pela formulação 1
Os autores são estudantes do segundo ano da graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membros do SAJU-USP, grupo de extensão sob orientação do Professor Doutor Celso Fernandes Campilongo, do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito.
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Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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de um projeto de revitalização, realizado pela Prefeitura de São Paulo. O projeto de recuperação da Vila visa à construção de um centro cultural e, por esse motivo, apresentamos criticamente o paradigma de reforma urbanística adotado pela Prefeitura. Em seguida, buscamos expor os processos de revitalização e de desapropriação do espaço da Vila Itororó dentro de um contexto de transformações econômicas e urbanísticas que superam a esfera da localidade. Partimos então à análise de diferentes conceitos de cultura que permeiam, de um lado, o projeto proposto e, de outro, a realidade dos moradores da Vila. Finalmente afirmamos a possibilidade de convivência entre cultura e moradia no mesmo espaço, a partir de exemplos já realizados em outros lugares semelhantes à Vila na cidade de São Paulo. 2. CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA A Vila Itororó está localizada num dos bairros mais centrais da cidade de São Paulo, a Bela Vista, sendo caracterizada por vezes como a primeira vila urbana da cidade3. As edificações foram construídas entre 1916 e 1922 pelo mestre de obras português Francisco de Castro e seu nome – Vila Itororó – deve-se à proximidade da nascente do riacho do vale do Itororó. A Vila apresenta estilo arquitetônico único, materializado pela técnica de colagem: peças do antigo Teatro São José foram incorporadas na estrutura das casas e do palacete. Em meados da década de 50, com a morte do seu fundador, a Vila foi leiloada. Posteriormente, a propriedade do imóvel foi doada à Instituição Beneficente Augusto Oliveira de Camargo. Esta fundação possui um hospital filantrópico em Indaiatuba, que, por muito tempo, teve seus gastos custeados pela arrecadação dos aluguéis das casas locadas na Vila Itororó4. A partir de 1997, a instituição abandonou o local, deixando de cobrar os aluguéis e de prover serviços como os de manutenção elétrica e sanitária. A região continua ocupada por cerca de 70 famílias, que há mais de 10 anos zelam sozinhas pelo espaço, apesar das dificuldades inerentes à condição de baixa renda e do descaso do Poder Público em efetivar políticas públicas voltadas à moradia no local. Em razão da degradação da região central, contemporânea ao movimento histórico da saída da elite paulistana para áreas mais ao sul da cidade, foram desenvolvidos projetos de “revitalização” desses espaços, como acontece com a Vila. De forma simplificada, essas reformas consistem em retirar a população de baixa renda do centro, reformar e restaurar os imóveis históricos e, por fim, viabilizar a 3
Disponível em: http://www.prefeitura, sp.gov. br/portal/a_cidade/noticias/index.php?p=7275, acesso em 15 Set. 2008.
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Disponível em: http://www.haoc.org.br/m_fundacao.html, acesso em 15 Set. 2008
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oferta de lazer e de serviços. A autorização da Prefeitura do processo de desapropriação contra a Fundação proprietária da Vila5 se insere nesse contexto. Em contrapartida, nós, do SAJU-USP, juntamente com os moradores da Vila, participamos da elaboração de pedido declaratório da Usucapião Especial Plúrimo6 Pelo periculum in mora evidente, em razão da ação de desapropriação, pedimos tutela antecipada, que foi negada. Recorremos com um Agravo de Instrumento no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo7, que ainda aguarda julgamento. A aproximação do SAJU com os moradores da Vila teve início através de contatos no Fórum Centro Vivo, uma organização que congrega movimentos sociais e também outros setores da sociedade que discutem as políticas públicas para o Centro de São Paulo. Desde então, o SAJU realiza atividades de educação popular com a comunidade da Vila Itororó. Por reconhecermos o papel pedagógico – logo, político8 – que desempenhamos, o grupo almeja, através de suas práticas, não atuar pelos moradores, mas com eles. Com isso, dentro dos pressupostos de uma Pedagogia do Oprimido, vemos os moradores como sujeitos e não como objetos nesse processo de luta por justiça. Enfrentamos inúmeras dificuldades, acentuadas em razão de, ainda que inconscientemente, reproduzirmos práticas opressoras. Tendo isso em vista, repensamos sempre nossas ações e realizamos oficinas e debates com os moradores de forma horizontal, que possa permitir uma verdadeira troca de saberes. Nestes encontros, discutimos muitos temas, como a eficácia dos instrumentos processuais e os mecanismos político-jurídicos necessários para a efetivação dos direitos sociais, como também as atuações em coletivo para a manutenção do espaço da Vila. Através desse trabalho de educação, pretendemos afastar a visão de que os moradores seriam meros ocupantes a serem despejados. Neste aspecto, o trabalho pedagógico pelo despertar da consciência coletiva dos moradores é essencial para o fortalecimento da luta pela moradia. A intenção maior é incluir os moradores como sujeitos nas discussões sobre a reforma urbana, e não expectadores à espera passiva do despejo para a periferia da capital. 5
Nº 583.53.2007.134155-9, distribuída na 1ª Vara da Fazenda Pública.
6
Nº 583.00.2008.136490-1, distribuída na 2ª Vara de Registros Públicos da Comarca da Capital SP.
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Nº 2008.708530-7(05)
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O pedagogo Paulo Freire, em toda a sua vida e obra, sustentou coerentemente a necessidade de reconhecer o caráter político da educação, para que se possibilite uma prática crítica e emancipadora. Como ele revela, “O mito da neutralidade da educação, que leva à negação da natureza política do processo educativo e a torná-lo como um que fazer puro, em que nos engajamos a serviço da humanidade entendida como uma abstração, é o ponto de partida para compreendermos as diferenças fundamentais entre uma prática ingênua, uma prática astuta e outra crítica.” (FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se complementam. São Paulo: Cortez, 2006. p. 23).
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Os moradores possuem grande interesse em continuar residindo naquele espaço. Além grande disponibilidade de transportes públicos e da intensa zona de comércio e de serviços localizados no Centro, os moradores ainda contam com, por exemplo, quatro escolas públicas, três hospitais, um hospital infantil, três creches comunitárias, o Centro Cultural Vergueiro, a sede do PROCON, o Poupatempo, a Defensoria Pública e outros serviços públicos nas redondezas. Motivos mais fortes para permanecer no local são os laços pessoais construídos ao longo de anos de convivência e relação com o bairro e com outros moradores da Bela Vista. Há, ainda, no Centro de São Paulo, um grande déficit habitacional, causado tanto pela pouca quantidade de imóveis destinados à moradia, como também pela subutilização e inutilização de prédios habitacionais e de casas na região. A proposta de uso da Vila Itororó pra outro fim que não o da moradia vem aumentar esse déficit, além de reafirmar um paradigma adotado pela Prefeitura de São Paulo em relação à questão da moradia. 3. O PROJETO DE REVITALIZAÇÃO DA VILA ITORORÓ Como define Souza Filho, o patrimônio ambiental, natural e cultural, assim, é elemento fundamental da civilização e da cultura dos povos, e a ameaça de seu desaparecimento é assustadora, porque ameaça de desaparecimento a própria sociedade.9
Esta, portanto, passou a perceber, ao longo dos anos, a importância da preservação do seu patrimônio. Para tanto, o Direito se torna instrumento imprescindível, ao estabelecer as normas e ações reguladoras e protetoras do patrimônio. A Constituição de 1988 interpreta como bem cultural “aquele bem jurídico que, além de ser objeto de direito, está protegido por ser representativo, evocativo ou identificador de uma expressão cultural relevante”10. Isto significa que todos os bens culturais possuem um interesse público especial, que altera sua essência. A autoridade competente deve reconhecer o valor do bem e realizar a sua proteção por meio de ato administrativo denominado tombamento, o qual proíbe a sua mutilação, destruição e/ou demolição, mas permite obras de restauração, reparação e pintura. Ao longo da história da humanidade, nunca se estabeleceram critérios comuns e permanentes na classificação do que deveria ser protegido. A preservação tinha
9
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. Curitiba: Juruá, 2008, p. 16
10
Idem. p. 36.
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como objeto apenas o que parecia ser “importante”, ou seja, daquilo que estaria ligado às elites. Em geral, guardaram-se os objetos e as construções ricas da classe poderosa. Guardaram-se os artefatos de exceção e perderam-se para todo o sempre os bens culturais e corriqueiros do povo. Esses bens diferenciados preservados sempre podem levar a uma visão distorcida da memória coletiva, pois justamente por serem excepcionais não têm representatividade.11
O caso da Vila Itororó ilustra bem a descrição acima. O conjunto residencial da Vila foi construído por um português pertencente à elite paulistana e manteve sua preservação ao longo do tempo por ser uma construção de grande valor arquitetônico e histórico. Essa preservação ocorreu através de seu tombamento, realizado pelo CONPRESP12 e pelo CONDEPHAAT13, o qual visava criar condições para a preservação dessa área em face às modificações de caráter imobiliário que vinham crescendo nesse período no Bairro da Bela Vista. O “Projeto de Recuperação Urbana da Vila Itororó”14 foi elaborado em 1976 pela Prefeitura. Posteriormente, em 2006, o prefeito José Serra sancionou o Decreto nº 46.926, que declara de utilidade pública os imóveis particulares situados na Vila, os quais deverão ser desapropriados para a execução desse plano de urbanização. Para a concretização desse projeto, a Prefeitura prevê a implantação e a operação de obras e serviços de “recuperação”, realizadas pelos órgãos públicos a fim de que, posteriormente, iniciativas privadas interessadas em explorar economicamente o local possam se estabelecer. Os objetivos previstos são, além de recuperar e valorizar o conjunto arquitetônico urbanístico, valorizar a micro-região da Bela Vista e tornar o projeto auto-sustentável a partir do desenvolvimento de atividades culturais, artísticas, educacionais, comunitárias e turísticas. Para isso, estão previstos espaços para oficinas, teatros, cinemas, livrarias, galerias de arte, restaurantes, bares, estacionamentos e instalações hoteleiras. O seguinte conceito de lazer foi utilizado no projeto: [lazer] é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária, ou sua livre capacidade criadora.15 11
LEMOS, Carlos A. C. O que é Patrimônio Histórico. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 22.
12
Resoluções 01/93 e 22/02.
13
Resolução SC 09/05.
14
Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em 18 Set. 2008.
15
DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e Cultura Popular. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 34, apud Projeto de Recuperação Urbana da Vila Itororó.
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A prefeitura diz ainda respeitar, no projeto, os princípios consagrados internacionalmente na Carta de Veneza, da qual o Brasil é signatário. O trecho do tratado citado no próprio projeto diz: A noção de monumento compreende não só criação arquitetônica isolada, como também o ambiente no qual ela se insere. O monumento é inseparável do meio no qual ela se situa e da história do qual é o testemunho. Reconhece-se então tanto o valor monumental dos grandes conjuntos arquitetônicos, quanto o de das obras modestas que com o tempo adquiriram uma significação cultural e humana.16
No entanto, se analisarmos com maior atenção essa proposta, podemos levantar uma série de questões quanto à sua elaboração e função. Conforme a própria Carta de Veneza estabelece, o monumento histórico não pode ser separado do ambiente no qual ele está inserido, mas tal distinção ocorre nesse projeto. Em nenhum momento a prefeitura prevê a interação dos moradores da Vila Itororó com o desenvolvimento do pólo cultural nessa região. Desse modo, além de não propor um projeto em relação à moradia, a Prefeitura acredita que a questão cultural e a questão da moradia são incompatíveis no caso da Vila Itororó. A ideia de cultura inserida nesse projeto é a de uma cultura voltada exclusivamente para uma lógica mercadológica, que se torna evidente quando o projeto estabelece como um dos seus objetivos a auto-sustentabilidade e, até mais, que ele seja rentável economicamente. Isso significa que a cultura produzida nesse espaço deverá atender aos interesses do mercado, pois só assim ela será consumida e trará lucros aos seus investidores. Essa concepção de cultura enquanto “produto trocável por dinheiro e que deve ser consumido como se consome qualquer coisa”17 pode ser denominada “cultura de massas”, cujas origens históricas remontam à Revolução Industrial e o surgimento de uma economia de mercado. O Poder Público, dessa forma, impõe à comunidade da Vila Itororó uma específica ideia de cultura, que não se relaciona com os moradores. É a “afirmação de um padrão cultural único e tido como o melhor para todos os membros da sociedade”18. Assim, os moradores locais são duplamente privados pela Prefeitura: o direito à sua própria cultura lhes é, pois se perderá com a desapropriação. Também lhes é negado o acesso a essa cultura “de consumo”, já que os moradores dificilmente poderão pagar quantias elevadas para usufruírem das atividades desenvolvidas nesse pólo cultural. Assim, notamos como a ideia inicialmente proposta do “indivíduo poder 16
Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em 18 Set. 2008.
17
COELHO, Texeira. O que é Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 11.
18
CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2007. p. 50.
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se entregar de livre vontade” ao lazer nesse local é restrita e não contempla as próprias pessoas residentes na Vila Itororó. A Vila, porém, não é um caso isolado: está relacionada a uma lógica econômica e urbanística mais ampla. 4. ASPECTOS ECONÔMICOS E URBANÍSTICOS DO PROJETO O projeto de revitalização da Vila Itororó, proposto pela Prefeitura de São Paulo, revela não só um conceito de cultura adotado, mas também um modelo urbanístico. Na apresentação do projeto, a seguinte passagem se mostra relevante a fim de compreender o enfoque estatal: A iniciativa da Prefeitura, através da Secretaria Municipal de Cultura, com a participação integrada das Secretarias de Planejamento e da Habitação e Desenvolvimento Urbano, e da EMURB – Empresa Municipal de Urbanização, prevê, a implantação e operação das obras e serviços de recuperação com participação da iniciativa privada. Ou seja, não se cogita para a Vila a criação de um novo Centro Cultural ou de um Museu ao ar livre, mas sim um conjunto dinâmico de atividades que incorporem e ultrapassem esses programas e apresentem condições de auto-sustentabilidade após as intervenções que necessariamente deverão ser feitas pela Prefeitura.19 (grifo nosso)
Essa caracterização é representativa do projeto como um todo e faz-se necessário avaliar alguns de seus pontos. A Prefeitura é bastante clara ao dizer que a “recuperação” da Vila Itororó se dará por meio de participação da iniciativa privada, após intervenções feitas pelos órgãos públicos citados. O modelo aqui pretendido, portanto, é essencialmente privado: precisa apresentar condições de auto-sustentabilidade, que, em outras palavras, quer dizer autonomia econômica traduzida na forma de lucro. Ou seja, os bares, restaurantes, galerias e até uma rede hoteleira terão as condições necessárias a desenvolverem suas atividades comerciais. A lógica aqui apresentada insere-se no contexto de reestruturação global do sistema econômico, evidenciada no Brasil a partir da década de 1990, através de medidas de flexibilização do mercado de trabalho e ajustes estruturais que limitaram os gastos públicos. Essas mudanças transformaram a geografia da pobreza urbana e da vulnerabilidade social, com impactos profundos na dinâmica de agregação societária do território popular e nas relações reais ou simbólicas que este estabelece com o restante da cidade.”20
Ainda sobre as transformações econômicas, a urbanista Mariana Fix analisa brevemente: 19
Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em 18 Set. 2008.
20
ROLNIK, Raquel. A Lógica da Desordem. Le Monde Diplomatique, Brasil, ano 2, n. 13, 2008. p. 10.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 A liberalização e a desregulamentação financeira inseriram novamente o Brasil nos fluxos internacionais de capital, interrompidos com a crise da dívida e a derrocada do desenvolvimentismo, no contexto da crise da ordem de Bretton Woods. Contudo, ao contrário do ciclo desenvolvimentista, a liberalização foi responsável por atrair montantes elevados de capital, financeiro especulativo, os mesmos que invadiram as periferias asiática e latinoamericana, em um contexto de aumento da mobilidade do capital e de busca por rentabilidade também fora dos países centrais.21
Assim, essas transformações deram início à consolidação de um modelo urbanístico concentrador e excludente, estruturando as cidades brasileiras: O território popular se densificou, sobre uma base urbanística frágil e tosca, fruto de intervenções fragmentadas, desconectadas e descontínuas, definidas e executadas na temporalidade “da política”.
A Vila Itororó é representativa dessa forma de urbanização, que hoje, no caso específico do qual tratamos, é objeto de iniciativas de reforma e de “revitalização”. Para “revitalizar” pressupõe-se que não haja mais vida e é exatamente essa a visão da Prefeitura: os moradores e suas histórias não são em momento algum citados no plano de reforma, apenas menciona-se que alguns dos espaços serão desapropriados. “Revitalizar”, do modo proposto (ou imposto, uma vez que não houve participação dos moradores e de demais cidadãos na elaboração do planejamento), e “o chamado planejamento estratégico, as operações urbanas e as parcerias público-privadas”23 compõem o núcleo em torno do qual se forma o “pensamento único das cidades”24. Tal pensamento substitui a ideia de desenvolvimentismo por um modelo de cidades competitivas, atraentes e funcionais. Assim, a ideia de alcançar um padrão de vida dos países ricos por meio da industrialização e desenvolvimento internos foi abandonada. Tal mito foi substituído pelo das “cidades globais” (global cities), cidades que são competitivas internacionalmente, cidades que têm “vocação para dar certo”. O próprio projeto da Prefeitura descreve a Vila com um grande potencial: A Vila Itororó apresenta uma configuração espacial especialíssima, com grande potencial cenográfico, que a torna única para a possibilidade de acomodar atividades de caráter cultural, educacional e de lazer, com repercussão no campo do turismo, que ultrapassa de muito o
21
FIX, Mariana. São Paulo Cidade Global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 166.
22
ROLNIK, Raquel. A Lógica da Desordem. Le Monde Diplomatique, Brasil, ano 2, n. 13, 2008. p. 10.
23
FIX, Mariana. São Paulo Cidade Global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 163.
24
ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do Pensamento Único. São Paulo: Vozes, 2000.
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âmbito local, possibilitando uma referência de caráter metropolitano e estadual, pelo menos. É esta referência que orientou também a definição do vulto das atividades previstas para instalação na Vila.25 (grifo nosso).
Torna-se, portanto, muito clara a intenção de repercussão da reforma e dos efeitos atrativos para além do bairro, além da Bela Vista e até da própria cidade de São Paulo. Reformas como as propostas têm reconhecida visibilidade internacional e turística, como nos casos do Pelourinho em Salvador e de Puerto Madero, em Buenos Aires. Ambos os lugares são exemplos de espaços ditos degradados, em parte abandonados, que foram revitalizados e são hoje centros de comércio e visitação. Aqui, no caso da Vila Itororó, instrumentaliza-se o conceito de cultura a fim de criar esses espaços atraentes, que tornam a cidade mais bonita, com mais visibilidade e mais excludente. Reformar, por si só, não é uma ação necessariamente negativa. A questão aqui gira em torno de uma lógica privatista, que visa à expulsão de moradores de suas casas a fim de criar mais um espaço de consumo na cidade de São Paulo. Se a cidade é um espaço de interação, de encontros, de construção e de consolidação de relacionamentos, a efetivação do projeto da Prefeitura seleciona somente algumas pessoas que possam dele participar. A limitação é essencialmente econômica, uma vez os atuais moradores da Vila Itororó, por exemplo, não teriam recursos financeiros e nem disponibilidade de tempo para aproveitar restaurantes, bares e galerias, muito menos hotéis. A iniciativa da Prefeitura, se concretizada, cria mais um lugar de anti-cidade em São Paulo, por impossibilitar a interação espontânea entre pessoas, por impossibilitar a sensação narrada por Júlio Cortázar, em um de seus contos: Cuando abra la puerta y me asome a la escalera, sabre que abajo empieza la calle; no el molde ya aceptado, no Ias casas ya sabidas, no el hotel de enfrente; la calle, la viva floresta donde cada instante puede arrojarse sobre mi como una magnolia, donde Ias caras van a nacer cuando Ias mire, cuando avance un poço más(...)26
Cabe, nesse momento, expor e analisar a perspectiva dos moradores. 5. A REALIDADE DOS MORADORES DA VILA ITORORÓ Realizamos, em conjunto com os moradores, uma dinâmica sobre os vários conceitos de cultura, no primeiro semestre de 2008. Organizamo-nos em três grupos e foi pedido a cada pessoa que trouxesse de sua casa um objeto que representasse o 25
Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em 18 Set. 2008.
26
CORTÁZAR, Mio. Cuentos Completos 1. Madri: Alfaguara, 2007, p. 406.
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que ela entendia por cultura. Dessa forma, moradores e moradoras voltaram às casas e trouxeram pro pátio da Vila toda sorte de objetos: figuras de santos, crucifixos, CDs com músicas de sua terra, quadros, fotos, ornamentos, peças de vestuário. Cada um teve sua vez de explicar o porquê do objeto escolhido e sua significação. Uma moradora levou uma flor. Explicou que a flor representava pra ela a necessidade de preservação, tanto do meio ambiente quanto das pessoas e que isso simbolizava o que ela entende por cultura. Um outro morador, que materializou sua concepção de cultura num crucifixo, ressaltou a importância de respeitar a religião e a crença dos outros, assim como as culturas diferentes, como foi apontado por alguns moradores, migrantes do nordeste do país. Um menino, filho de uma moradora e também ele morador da Vila, sintetizou as opiniões levantadas: “As pessoas só vêem o lado de fora da Vila. Esquecem que a aqui tem gente. Esses objetos representam isso, sem eles, sem cultura, a gente fica seco por dentro.”27. Entendemos que a construção cultural se dá nas relações do homem com seu espaço e as produções culturais não necessitam estar em lugares ditos qualificados para que tenham valor, como galerias e museus. Assim, a cultura, no amplo conceito antropológico, é o elemento identificador das sociedades humanas e engloba tanto a língua na qual o povo se comunica, conta suas histórias e faz seus poemas, como a forma como prepara seus alimentos, o modo como se veste e as edificações que lhe servem de teto, como suas crenças, sua religião, o saber e o saber fazer as coisas, seu direito.28
Por esses motivos, não entendemos que possa haver uma hierarquia entre culturas, uma cultura melhor ou superior que as demais. A Vila Itororó, dessa forma, já é um pólo cultural. Seu espaço contém histórias de vida, revela como os moradores convivem e se relacionam, produz lembrança e memória, sem as quais resta apenas um “grupo [de pessoas] sem norte, sem capacidade de escrever sua própria história e, portanto, sem condições de traçar o rumo de seu destino.”29 A partir dessa linha de pensamento, cultura e moradia não são excludentes. Elas podem conviver no mesmo espaço e isso é claramente demonstrado no projeto habitacional realizado pelo grupo EMAU-Mosaico30. Essa proposta de extensão universitária “objetiva-se a atender as demandas sociais organizadas que se encontram à margem da produção do mercado imobiliário e, muitas vezes, das ações do poder
27
Relato anotado e representado de forma livre, porém sem mudança de conteúdo.
28
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e sua proteção jurídica. Curitiba: Juruá, 2008, p. 15
29
Idem. p. 16.
30
Escritório Modelo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie.
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público, com trabalhos essencialmente participativos.”31 Assim, em trabalho conjunto com os moradores e moradoras, foi construído um estudo sobre a área, visando à constituição do direito de morar no centro da cidade. O projeto prevê três praças de uso comum, sendo uma delas destinada às crianças da Vila, bem como a existência de 70 unidades habitacionais que abarquem as famílias que hoje lá vivem. A reforma dos prédios e casas é um pressuposto, porém a função de moradia pode ser mantida, como exemplificado: Dessa maneira, foi contemplada a perspectiva do palacete passar a ser de uso público – e aqui entende-se uso público como o relativo a serviços de acesso universal e não restaurantes e cafés, por exemplo – podendo ser oferecido a alguma Secretaria Municipal ou Estadual, com atendimento à população, ou mesmo ao Serviço Social do Comércio, considerando-se o trabalho social desenvolvido pelos SESCs e a possibilidade de recuperação da primeira piscina coletiva para um uso efetivo da população. As demais edificações da Vila poderiam ser recuperadas para seu uso original – o de habitação – compondo estratégias de importantes programas públicos de apoio à moradia em área central.32
Analisamos, a seguir, experiências na cidade de São Paulo que conjugam a moradia e a cultura. 6. OUTRAS PERSPECTIVAS Defendemos, portanto, que cultura e moradia podem conviver em um mesmo espaço, assim como o posposto pelo projeto do grupo EMAU-Mosaico, em que as áreas de cultura e lazer construídos não excluem os moradores, que podem permanecer na Vila contribuindo para formação cultural do espaço. Avaliamos que a cultura pode ser mais do que entretenimento, pode contribuir para história do local, para o fortalecimento da comunidade e o desenvolvimento dos que lá vivem. O Projeto de Recuperação da Vila Itororó apresentado pela Prefeitura, já anteriormente citado, não observa que a sobrevivência da Vila Itororó se deve à presença resistente dos moradores, que se mantiveram no local como mantenedores e preservadores do patrimônio histórico da Vila. Deslocar os moradores e moradoras da Vila, portanto, seria afastá-los do próprio núcleo cultural que eles próprios construíram. É não permitir o reencontro dessa população com a sua própria história. Isso seria o mesmo que contar a história do Bairro da Bela Vista sem mencionar seus próprios personagens.
31
Disponível em: http://www.mosaicomakenzie.org/index.html, acesso em 10 Out. 2008.
32
Projeto habitacional para a Vila Itororó 2008. Mosaico/Vida Associada – FAU Mackenzie, p. 3.
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Dentro desse contexto, surge a questão: seria possível preservar moradia, patrimônio histórico e cultura? Utilizamos o caso da Vila Operária Maria Zélia, situada no bairro de Belenzinho, Zona Leste de São Paulo, para demonstrar a possibilidade de uma relação integrada e sustentável desses três vértices presentes tanto na discussão da Vila Itororó, como na Vila Maria Zélia. A Vila Operária Maria Zélia, construída em 1917, abriga aproximadamente 180 casas e 600 famílias que formam a Sociedade Amigos da Vila Maria Zélia, fundada no dia 10 de julho de 1981. A Vila Maria Zélia foi tombada pelo CONDEPHAAT33 em 1992, e os próprios moradores estão organizados para promover a revitalização dos prédios históricos, que pertencem ao INSS34. A Sociedade dos Amigos busca efetivar melhorias nos prédios e armazéns, que se encontram em condições precárias. Na Vila Maria Zélia, a peça A residência do Grupo XIX35 de teatro trouxe uma forma de revitalização que procura trabalhar com os espaços, atendendo às necessidades dos moradores. O projeto do Grupo XIX foi contemplado pela Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, em janeiro de 2004, momento em que teve início o “trabalho sócio-cultural de residência” nessa vila. Agora, o grupo retorna à Maria Zélia com o projeto Casa Aberta, motivado por outra Lei de Fomento, dando continuidade para a residência artística. O projeto do grupo procura trabalhar sem hierarquias, em um processo colaborativo de criação, em que dramaturgo, diretor de arte, diretor, atores e atrizes e o próprio público participam da construção artística da peça. Ressalta-se a iniciativa do grupo teatral de afirmar o vínculo do teatro com a cidade, a aproximação e a apropriação da arquitetura e dos valores sociais e antropológicos guardados nas edificações e nos patrimônios históricos. Na construção das peças, o grupo realiza uma pesquisa temática pautada na história do Brasil em conjunto com um processo investigativo, que busca a construção da realidade social de determinada época a partir da história oral, de registros em periódicos e outros meios que aproximem do cotidiano a ser interpretado. Nesse sentido, a residência artística, buscando um contato com a antropologia do local, pode ser um meio de (re)viver a história por parte do moradores, que podem contribuir com relatos, documentos históricos, fotografias e cartas. Por outro lado, o projeto do Grupo XIX, incentiva a integração dos habitantes de outras áreas de São Paulo com a história da Vila Maria Zélia, não com um olhar de 33
Processo: 24268/85 – Tomb.: Res. SC 43 de 18/12/92 – D.O.: 19/12/92. Livro do Tombo Histórico: Inscrição nº 305, p. 77, 28/5/1983.
34
Disponível em: http://www.vilamariazelia.com.br/vilahoje.html, acesso em 5 Out. 2008.
35
O Grupo XIX teve início no Centro de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP).
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um museu estático, mais em uma perspectiva que possibilita interação do teatro, dos prédios históricos e o cotidiano dinâmico dos moradores que lá residem. É a possibilidade de somar a cultura preocupada com sua função social e aspectos vivos da formação histórica da cidade. Embora não se trate especificamente de moradia, a manutenção de valores antropológicos e de uma cultura dinâmica também é exemplificada por um terreiro de candomblé de nação Ketu, localizado na Vila Facchini, em São Paulo. O Axé Ilê Obá36 também foi tombado pelo CONDEPHAAT. Com a morte do proprietário do espaço, esse seria dividido entre os herdeiros, mas a sobrevivência do terreiro dependia das instalações já construídas e assim, o tombamento foi a saída vislumbrada. Muitos especialistas hesitaram em considerar o Axé Ilê Obá como patrimônio cultural, alegando “não ter tradição”. O argumento, porém, foi superado, uma vez que o entendimento do conceito de patrimônio cultural deixou de se orientar por uma “cultura em conserva” de uma tradição estática, fria e repetitiva. Os dois exemplos mostram a preservação de uma cultura em constante construção e não desmembrada do círculo social em que vive, é nesse sentido que pensamos a Vila Itororó. Para esta, que já foi palco de uma Festa Junina em 200737 organizada pelos moradores, desejamos que seja palco de outras intervenções culturais realizada pela comunidade e que possa desfrutar de outras produções de cultura que sejam construídas na Vila. 7. CONCLUSÃO Buscamos, com esse artigo, contribuir com o debate sobre projetos de desapropriação em áreas tombadas, sempre tendo como ponto de partida o papel dos moradores enquanto sujeitos, que, organizados, conseguem mostrar a possibilidade de convivência da moradia e da cultura. 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A Cidade do Pensamento Único. São Paulo, Vozes, 2000. CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2007. COELHO, Texeira. O que é Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 2004.
36
Disponível em: http://www.aguaforte.com/antropologia/osurbanitas/revista/tombasp.htm, acesso em 11 Out. 2008.
37
Disponível em: http://vilaitororo.blosspot.com/2007/07/ii-festa-junina-da-vila-itoror-junho07.html, acesso em 05 out. 2008
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CORTÁZAR, Júlio. Cuentos Completos 1. Madri: Alfaguara, 2007. DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e Cultura Popular. São Paulo: Perspectiva, 2000. FIX, Mariana. São Paulo Cidade Global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo, 2007. FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se complementam. São Paulo: Cortez, 2006. ______. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. LEMOS, Carlos A. C. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 2004. ROLNIK, Raquel. A lógica da desordem. Le Monde Diplomatique, Brasil, ano 2, n. 13, 2008. SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e sua Proteção Jurídica. Curitiba: Juruá, 2008.
9. SÍTIOS ELETRÔNICOS http://www.aguaforte.com/antropologia/osurbanitas/revista/tombasp.htm http://www.haoc.org.br/m_fundação.html http://www.mosaicomakenzie.org/index.html http://www.prefeitura.sp.gov.br/portal/a cidade/noticias/index.php?p=7275 http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arguivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf http://www.vilamariazelia.com.br/vilahoje.html http://vilaitororo.blogspot.com/2007/07/ii-festa-junina-da-vila-itoror-junho07.html
A Experiência do SAJU-USP na Vila Itororó: Assistência e Assessoria Podem Caminhar Juntas? CAIO SANTIAGO, PAULO L. MARTINS, RAFAELA OLIVEIRA E VIVIAN BARBOUR1 Graduandos em Direito.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Marcos Teóricos; 3. Experiências Brasileiras – A formação das AJUPs e da Renaju; 4. O Modelo de Atuação do SAJU-USP na Vila Itororó; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO O presente artigo pretende promover uma releitura dos conceitos de Assistência e Assessoria no atual contexto de luta pelo direito à moradia, para então responder à pergunta principal deste trabalho: de que forma deve se dar a intervenção das Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs) nos conflitos fundiários urbanos a fim de contribuir para a garantia do direito à moradia de comunidades de baixa renda? Para isso, iniciaremos com uma abordagem dos referenciais teóricos dos serviços legais inovadores. Posteriormente, enfocaremos as primeiras experiências destes na década de 1980 e as atuais práticas de assessoria jurídica universitária, a partir do modelo predominante na Rede Nacional de Assessorias Jurídicas Universitárias (RENAJU). Por fim, apresentaremos um contraponto a esse modelo, com base na atuação do SAJU-USP na comunidade da Vila do Itororó, no centro de São Paulo. 1
Os autores são estudantes de graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membros do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da USP (SAJU-USP), grupo de extensão sob orientação do Professor Associado Celso Fernandes Campilongo, do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito.
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2. MARCOS TEÓRICOS No período das décadas de 1980 e 1990, no contexto da retomada das mobilizações populares na América Latina e do processo de redemocratização política, formaram-se novas correntes críticas na teoria do Direito. Em conjunto com o Pluralismo Jurídico e com o Direito Alternativo, surgem novas práticas jurídicas em diversos países da região, ligadas ao pensamento marxista, que visavam romper com a tradicional lógica formalista e tecnicista do direito. Diretamente ligadas às lutas sociais do período, essas novas práticas de atuação jurídica colocaram-se ao lado dos nascentes movimentos sociais, contribuindo para sua organização e prestando apoio jurídico. Nesse sentido, traziam a luta dos movimentos para o mundo jurídico, dentro das possibilidades criadas pelos novos marcos legislativos da época, conquistados pelas mobilizações populares, como, por exemplo, a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu garantias para diversos direitos sociais e previu novos instrumentos processuais para atender às demandas coletivas. Essa nova linha de atuação teve seu primeiro estudo empírico específico com Fernando Rojas2, em 1988. A partir de uma análise em quatro países da América Latina (Chile, Colômbia, Equador e Peru), o autor buscou características identificadoras do que chamou de “serviços legais alternativos”, quais sejam: a) Ideia de mudança social a partir de uma visão de igualdade que transcende seu aspecto formal e de um valor de justiça baseado na solidariedade; b) Crítica e combate ao sistema capitalista, com a ideia de que os serviços legais alternativos atuam como metas transitórias na concretização de avanços sociais; e c) Ações de organização comunitária e de conquista do poder político pelas minorias excluídas. Esses serviços pesquisados, segundo Rojas, não só se formaram fora do âmbito do Estado, na forma de organizações não-governamentais, como também eram, muitas vezes, críticos a este. Sua atuação se dava justamente aliada aos novos movimentos sociais em expansão, ligados aos grupos sociais oprimidos, como trabalhadores rurais, mulheres e índios, assim como à população pobre das cidades. Além disso, Rojas observou que, por serem oriundos de escolas de referência social, os militantes desses serviços possuíam alta formação técnica. 2
ROJAS, Fernando. Comparación entre las tendências de los servidos legales en Norteamérica, Europa y América Latina (primera e segunda parte) – El otro decrecho. Bogotá, pp. 5-57, agosto, 1988.
3
Para um estudo sobre a obra de Rojas, conferir LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil: Paradigmas, Formação Histórica e Perspectivas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, pp. 48-59.
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No Brasil, o principal marco teórico sobre esses novos serviços legais é o estudo realizado por Celso Fernandes Campilongo4, no início da década de 1990. Nele, o autor elaborou, a partir da literatura então existente sobre o tema, como o trabalho de Rojas, uma tipologia ideal da dicotomia entre os serviços legais tradicionais, de um lado, e os serviços legais inovadores, de outro. Em um segundo momento, o autor realizou, utilizando como instrumento de análise essa construção teórica, uma pesquisa empírica sobre os serviços legais em São Bernardo do Campo. O trabalho apresentou como critérios basilares dessa dicotomia, o interesse tutelado, o vínculo ético, a natureza do serviço, a relação cliente/advogado, o conhecimento e o acesso à justiça. Nessa linha, os serviços legais inovadores tratariam de demandas coletivas, fundados numa macroética com vistas à conscientização do grupo atendido sobre seus direitos e à necessária organização para a concretização destes. Esse modelo concebe o acesso à justiça para além do Poder Judiciário, numa relação horizontal entre os clientes e advogados, com base na desmistificação do conhecimento jurídico. Os serviços legais inovadores, no Brasil, são comumente denominados de assessorias jurídicas, enquanto que os serviços tradicionais, de assistência. Embora não seja nossa intenção promover uma discussão conceituai, uma análise mais apurada das ideias deduzidas por Campilongo revela que houve uma assimilação equivocada dos conceitos forjados em seu trabalho – a contraposição entre tradicional e inovador não corresponde necessariamente ao par assistência-assessoria5. Conforme veremos, essa diferenciação entre assessoria e assistência marcou profundamente o surgimento de grupos universitários e da Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária. 3. EXPERIÊNCIAS BRASILEIRAS – A FORMAÇÃO DAS AJUPS E DA RENAJU As experiências brasileiras dos serviços legais inovadores, conforme seu campo de atuação, podem ser distinguidas em Advocacia Militante e Assessoria Universitária, segundo Vladimir de Carvalho Luz6 Para o autor, a primeira consiste na atuação de entidades não-governamentais, sem vínculos acadêmicos e universitários, enquanto
4
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência jurídica e advocacia popular: serviços legais em São Bernardo do Campo. In: O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, pp. 15-52.
5
Campilongo baseou sua tipologia de serviços legais em diferentes modelos de assistência jurídica, diferenciandoos entre tradicionais e inovadores, não em assistência e assessoria. De fato, todos os modelos analisados pelo autor realizavam trabalho de assistência jurídica, diferenciando-se quanto ao modelo utilizado.
6
LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil: Paradigmas, Formação Histórica e Perspectivas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, pp. 124-154.
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a segunda é realizada por estudantes de direito, em ambiente de universidades, com uma organização autônoma em relação à administração destas. Enquanto paradigmas de grupos de Assessoria Universitária, objeto deste artigo, cabe destacar os Serviços de Apoio Jurídico (SAJU’s) das Universidades Federais da Bahia e do Rio Grande do Sul. O autor afirma que, apesar de formadas em épocas e ambientes distintos, tais grupos estudantis possuíam as seguintes características comuns: a) Diferenciação entre os conceitos e as práticas de assistência jurídica, entendida como apoio jurídico individual, e de assessoria jurídica, entendida como apoio jurídico coletivo; b) Autonomia decisória em relação à administração das universidades, sendo formadas e geridas por iniciativa exclusiva dos estudantes; c) Desenvolvimento de projetos de extensão e/ou pesquisa, em atividades permanentes ou sazonais; d) Ampliação das práticas jurídicas para além do âmbito forense; e e) Interação institucional com a universidade a partir da ocupação de seus espaços públicos, ao tempo que promovem atividades de caráter social. O SAJU-UFRGS foi fundado em 1950, sendo que, até a década de 1980, a entidade seguiu um modelo de atuação jurídica marcadamente assistencialista, limitando-se ao aspecto processual das demandas, em geral de caráter individual, dentro do paradigma de serviço legal tradicional. Posteriormente, com a formação de grupos temáticos sobre regularização fundiária e gênero, aproximou-se de um modelo mais inovador, passando a atender também demandas de caráter coletivo de grupos sociais oprimidos. Em 1990 e 91, a entidade consolidou-se enquanto prestadora de assessoria jurídica na região metropolitana de Porto Alegre. Apesar de enfrentar algumas dificuldades em relação a conflitos internos, à continuidade dos programas e à formação teórica de seus membros, o SAJU-UFRGS realizou importantes atividades de impacto na sua região, como o ajuizamento de ações coletivas, promoção de projetos de pesquisa e elaboração de cartilhas, jornais e revistas próprias. Estas constituem importante material de pesquisa sobre o grupo, essencial para o registro de suas atividades e de seu pioneirismo enquanto assessoria jurídica. Em semelhança à entidade gaúcha, o SAJU/UFBA iniciou, na década de 1960, um modelo de atuação jurídica essencialmente assistencialista, sendo uma espécie de laboratório de prática forense do curso de Direito. Apenas em 1996, o grupo, a partir
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de um contato com o modelo de assessoria jurídica, passou também a atender demandas coletivas, dentro de um padrão mais próximo da assessoria. Na década de noventa, surge a Rede Nacional de Assessorias Jurídicas Universitárias (Renaju), como forma de aglutinar os projetos que se difundiram entre as faculdades de direito de todo o país. Hoje, a Rede conta com vinte e três projetos de todas as regiões, sendo mais presente no Sul e no Nordeste brasileiros. Entre esses projetos, são poucos os que compreendem a assessoria como uma prática que envolva a atuação judicial. Com poucas exceções, a Rede tem adotado o entendimento de que a assessoria jurídica universitária prescinde da prática judicial (assistência). Nesse sentido, a maioria dos projetos ligados à rede possuem práticas de educação popular que exploram interfaces do direito com outras áreas do conhecimento, como a pedagogia, a comunicação e a economia, mas abrem mão das vias judiciais como forma possível de solução de conflitos. Essa ideia extrajudicial de atuação tem como fundamentação a construção de um novo direito, mais próximo dos anseios e necessidades das classes oprimidas, considerando o direito como um ideal ético de justiça. 4. O MODELO DE ATUAÇÃO DO SAJU-USP NA VILA ITORORÓ A fim de contribuir com a presente discussão, apresentaremos, a seguir, o modelo de atuação que o SAJU-USP desenvolveu na comunidade da Vila Itororó. Não queremos com isso propor um modelo abstraio e aplicável em qualquer localidade, sob quaisquer condições, mas demonstrar a possibilidade de conciliação entre dois modelos de atuação jurídica supostamente excludentes, assistência e assessoria. A concepção que o SAJU-USP desenvolveu sobre o que seria o modelo ideal de uma assessoria jurídica universitária sempre contemplou, em primeiro plano, o trabalho de educação jurídica popular, muitas vezes confundido, aliás, com a própria ideia de assessoria. De fato, nunca fomos contrários a uma prática que envolvesse a assistência jurídica, até porque um de nossos mais antigos Grupos de Trabalho, desde sua fundação, sempre atuou com a judicialização de conflitos fundiários urbanos7. Por outro lado, fortemente influenciados pelos escritos de Paulo Freire, acreditávamos na possibilidade de uma atuação extensionista que se restringisse à área da educação e da comunicação. Nossa inserção na comunidade da Vila Itororó, no entanto, nos fez rever alguns conceitos já cristalizados pela prática. Tivemos um primeiro contato com o caso por meio das reuniões do Fórum Centro Vivo, articulação entre movimentos sociais, 7
O atual Grupo de Regularização Fundiária da Paraisópolis constituiu-se dentro do SAJU-USP em 2003, a partir de um convênio com a Procuradoria Geral do Município de São Paulo e o Centro Acadêmico XI de Agosto, com o objetivo de promover a regularização fundiária em uma quadra da favela de Paraisópolis.
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entidades da sociedade civil e grupos universitários que possuem algum tipo de atuação no centro da cidade de São Paulo. A comunidade, localizada no centro da cidade de São Paulo, sempre chamou a atenção do Poder Público por sua composição arquitetônica. Dessa peculiaridade resultou, aliás, o tombamento do conjunto pelos órgãos de defesa do patrimônio histórico e cultural do município e do estado de São Paulo, Conpresp e Condephaat, respectivamente. A Prefeitura de São Paulo possui projetos antigos de “revitalização” da área, que incluem a transformação da Vila em um pólo cultural dotado de restaurantes, teatros, bares e livrarias8. Em 2006, a Vila foi declarada como área de utilidade pública, sendo, atualmente, objeto de ação de desapropriação. Desde este primeiro momento, portanto, ficou claro para nós que a judicialização do conflito por que passava a Vila era a possibilidade mais plausível para solucionar a situação de instabilidade jurídica que se instaurara na comunidade desde 2006. O primeiro contato que tivemos com a comunidade, intermediado pelo Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, que cuidava do caso até então, foi marcado por um forte apelo assistencialista, em que assumíamos um papel passivo de estagiários de direito. Apesar de insatisfeitos com nossa atuação, nos submetemos temporariamente a ela por considerarmos importante preparar, em pouco tempo, a petição inicial do processo de usucapião que buscaria defender os interesses dos moradores. Como a comunidade não possuía histórico anterior de mobilizações, os primeiros meses de trabalho foram marcados por dificuldades de comunicação e pelos baixos quóruns das reuniões. Além disso, os requisitos formais de instrução da peça inicial comprometiam quase que a totalidade do tempo de nossos encontros com a coleta de documentos e conversas individuais sobre a situação de cada morador. Tal processo, apesar de burocrático, possibilitou um contato mais próximo entre nós, grupo de assessoria jurídica, e a comunidade, atraindo a atenção de moradores que, inicialmente, se demonstravam apáticos e desinteressados. Ajuizada no início de 2008, a Ação de Usucapião Especial Urbana em litisconsórcio ativo facultativo possui fundamentos na Lei 10.257/2001, o Estatuto da Cidade. Inicialmente, aderiram à ação quarenta das setenta famílias que ocupam os imóveis da Vila Itororó. Além desta ação, também assessoramos a comunidade na Ação de Desapropriação movida pela Fazenda Pública do Estado contra o proprietário de direito da Vila Itororó – a Fundação Leonor de Barros Camargo. Com a situação mais tranquila, nos organizamos para iniciar um projeto de educação jurídica popular que complementaria o trabalho de assistência jurídica como 8
Conferir TOZZI, Décio; TOLEDO, Benedito Lima de. Vila Itororó – Projeto de Recuperação Urbana. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 2006.
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fator politizante de nossa atuação. Durante um ano, aperfeiçoamos nosso modelo, fortemente influenciados pelos interesses e ansiedades da comunidade. Desde já, é oportuno ressaltar que, em todo o processo de educação popular que desenvolvemos na Vila Itororó, o pano de fundo fundamental que possibilitou a aglutinação da comunidade em torno de uma pauta de interesse comum tem sido, certamente, a garantia do Direito à Moradia, cumprindo papel fundamental a judicialização da referida Ação de Usucapião. Detalhamos, a seguir, as etapas de desenvolvimento do nosso projeto de educação popular, levantando os principais pontos de convergência entre os modelos de serviço legal discutidos neste artigo. – A leitura da realidade A formulação de um projeto de educação que contemple as questões que permeiam o dia-a-dia da comunidade deve, por óbvio, ser capaz de compreender quais são tais questões. Assim, a primeira e fundamental etapa é o levantamento temático. Inicialmente, as questões levantadas pela comunidade parecem desconexas e pouco inovadoras. De fato, esta fase inicia-se quase que espontaneamente nos primeiros contatos, individuais ou coletivos, que se fazem com a comunidade. Questões muito frequentemente levantadas são aquelas relacionadas com a convivência entre vizinhos – lixo, barulho, cachorros etc. Desacostumados com uma dinâmica participativa e horizontal, não é raro que os moradores levantem tais questões por meio de discussões pouco dialógicas, na forma de reclamações, numa “lavação de roupa suja” coletiva. Havendo vários métodos viáveis para o levantamento temático (entrevistas individuais, questionários etc.), acreditamos que o mais eficaz é sua realização em um encontro com todos os moradores interessados. Este método, ao possibilitar aos moradores que enxerguem no outro os mesmos problemas que os afligem pessoalmente, inicia um processo de construção ou fortalecimento de uma identidade comunitária. Nessa etapa, a clareza na definição do pano de fundo sobre o qual se erguerá o projeto de educação é fundamental para não dispersar o espaço coletivo em construção e para apontar focos de discussão. Assim, a garantia do Direito à Moradia por meio da judicialização do conflito fundiário em que se insere a comunidade pode representar um interessante ponto de partida para a aglutinação dos moradores em torno de uma pauta comum. – A problematização da realidade Depois de levantados os temas pela comunidade, segue-se a etapa de problematização. O principal objetivo desta fase é tentar identificar limites, possibilidades,
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insuficiências e até ingenuidades inerentes às questões sugeridas para discussão, possibilitando novas abordagens para temas recorrentes. Além disso, deve-se atentar para a aglutinação de temas que possuam aspectos comuns. Nesta fase, cada um dos temas levantados pelos moradores será debatido profundamente pelo grupo de assessoria jurídica antes de levado novamente para a comunidade, com uma nova roupagem. Deve-se atentar para o estudo das possibilidades, judiciais ou extrajudiciais, de solução da questão em debate. Cada tema será, em seguida, debatido pelos moradores que, depois de o problematizarem, apontarão a solução mais adequada para o problema. – A modificação da realidade É importante que haja uma ação prática para cada tema debatido. Esse apego à prática é de grande importância para que a comunidade sinta, em curto prazo, os reflexos de sua própria organização e trabalho conjunto. Isso porque, apesar da importante simbologia da ação judicializada, a demora típica da Justiça tende a pesar negativamente, provocando desânimo na comunidade e uma consequente desagregação do espaço coletivo construído. Assim, depois de cada discussão, são debatidas propostas de intervenção na realidade. Nessa fase, são ideias recorrentes, por exemplo, a organização de mutirões (limpeza da comunidade, reformas pontuais em espaços comuns etc.), ou a busca de instituições do direito formal para indicar alternativas para o problema (orientações jurídicas, fundação de associação de moradores etc.). Também aqui é de grande importância uma composição entre a educação e a assistência jurídica. Da comunidade, podem surgir demandas de intervenção que passem necessariamente pela judicialização de conflitos internos, ou pelo acionamento de mecanismos administrativos do Poder Executivo em favor da comunidade. 5. CONCLUSÃO Como procuramos demonstrar, o apelo jurídico da assistência (instrumentos processuais) tem muito a contribuir para a construção de um espaço coletivo e, consequentemente, para criar ou fortalecer uma identidade comunitária. Os anseios da comunidade por uma segurança formal que garantirá o respeito aos seus direitos são consolidados na judicialização do conflito fundiário que a aflige. Assim, a representação simbólica do processo judicial é capaz de aglutinar os moradores em torno de uma pauta comum, neste caso, a garantia do Direito à Moradia. Apesar do disseminado sentimento de descrédito direcionado ao Sistema de Justiça Brasileiro, a aura de formalidade e de poder que reveste o Judiciário atrai
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determinantemente a atenção dos moradores quando são confrontados com conflitos frente aos quais se sentem impotentes. Ao entenderem que os problemas que os aflige pessoalmente são comuns a todo um universo de pessoas que constituem a comunidade em que se inserem, os moradores tendem a buscar alternativas coletivas para solução de tais problemas. A possibilidade de judicialização de uma ação de natureza coletiva contribui, nesse sentido, para a aglutinação comunitária. Esta aglutinação é fundamental para dar foco à atuação dos moradores na defesa de seus direitos. A partir dela, originada de um apelo supostamente assistencialista, é completamente viável que se estabeleça um processo de politização e emancipação. Deve-se, por outro lado, cuidar para que a judicialização do conflito não pareça a solução para os conflitos que se apresentam na comunidade, contribuindo para dissolver o espaço coletivo ainda em construção, mas que, pelo contrário, represente parte da possível solução. Além disso, se a judicialização do conflito favorece a organização e mobilização dos moradores, esta contribui, num movimento inverso, para o melhor andamento daquela. Ou seja, a construção de um espaço que reúna e articule os sujeitos envolvidos no processo, de caráter coletivo, possibilita a melhor evolução do mesmo, em virtude de suas numerosas e complexas exigências em seu decorrer, como a documentação de todos os moradores, descrição histórica do local, desenho da divisão e arranjo das casas, entre outras. Assim, a assistência jurídica possui um papel fundamental na intervenção da Assessoria Jurídica Universitária Popular nos conflitos fundiários urbanos atuais, a fim de garantir o direito à moradia da população de baixa renda. Isso porque não só atua judicialmente dentro das possibilidades criadas pelos novos marcos legislativos, como também contribui para avanços na organização dos moradores e para sua identidade comunitária. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência jurídica e advocacia popular: serviços legais em São Bernardo do Campo. In: O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000. LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil: Paradigmas, Formação Histórica e Perspectivas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. ROJAS, Fernando. Comparación entre Ias tendências de los servidos legales en Norteamérica, Europa y América Latina (primera e segunda parte) – El otro derecho. Bogotá, pp. 5-57, agosto, 1988. TOZZI, Décio; TOLEDO, Benedito Lima de. Vila Itororó – Projeto de Recuperação Urbana. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 2006.
Pluralismo Jurídico e o Direito à Moradia em Fortaleza FRANCISCO FILOMENO
DE
ABREU NETO
Mestrando em Desenvolvimento Urbano na Universidade Federal de Pernambuco.
INTRODUÇÃO O presente trabalho faz parte de uma dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco. A pesquisa abordou alguns aspectos da relação entre o pluralismo jurídico e a informalidade urbana. Neste trabalho entende-se por informalidade urbana o fenômeno resultante do desenvolvimento desordenado das cidades, regrado pelo mercado imobiliário excludente, provocando o surgimento de assentamentos informais como favelas, loteamentos irregulares e clandestinos, cortiços e conjuntos habitacionais irregulares. O pluralismo jurídico é, por sua vez, concebido como a existência de diferentes formas de Direito, de um Direito que não se origina do Estado, mas sim de necessidades humanas não atendidas, não providas, pela máquina estatal. Buscou-se neste trabalho abordar o direito à moradia dentro de diferentes escalas, desde a escala internacional até a local, considerando na escala local assentamentos urbanos que vivem atualmente tanto processos de regularização fundiária como de conflitos fundiários. Faz-se uma análise do arcabouço institucional relacionado ao direito à moradia e a práxis local dentro dos assentamentos irregulares. 1. O PLURALISMO JURÍDICO E A CARTOGRAFIA SIMBÓLICA DO DIREITO Ao se falar de pluralismo jurídico temos que tratar do Estado como produto das relações sociais. Os diferentes segmentos da sociedade vivem se relacionando, muitas vezes em relações de opressão de uns sobre os outros. As diferentes relações sociais, as diferentes relações de poder determinam a configuração das instituições estatais.
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Como o Estado é produto de uma relação, ele não pode ser visto simplesmente como instrumento de uma classe, como marionetes da classe burguesa, pois nem mesmo existe uma unidade na classe burguesa. O Estado, sua política, sua forma, suas estruturas, traduzem, portanto, os interesses da classe dominante não de modo mecânico, mas através de uma relação de forças que faz dele uma expressão condensada da luta de classes em desenvolvimento (POULANTZAS, 1980). Os diferentes atores da sociedade convivem dentro do Estado em contradição, em relação de força. Muitas vezes cada estrutura, cada camada do Estado, é ocupada por uma classe ou fração de classe. No entanto, da mesma maneira que o Estado não é o simples instrumento de uma classe, ele também não é simplesmente um produto desconexo das relações. O Estado tem uma unidade que se traduz por sua política global e maciça em favor da classe ou fração hegemónica. Assim como o Estado, o Direito vai incorporar as lutas de classes. Como afirma Arruda Jr. (1992, p. 96), “o Direito é um fenômeno histórico, que expressa o avanço ou não de uma luta política entre classes sociais. Assim como o Estado expressa a condensação de forças sociais (mesmo que assimetricamente), também o direito acompanha o desenvolvimento de relações concretas (das relações de produção, das forças produtivas), embora reconheçamos que o sistema jurídico, enquanto arcabouço técnico, não se subordina, de forma imediata e mecânica, aos movimentos de infraestrutura, não estando, contudo, imune ao mesmo.” Acrescentando, Wolkmer (2003, p. 155) coloca que “toda estrutura jurídica reproduz o jogo de forças sociais e políticas, bem como os valores morais e culturais de uma dada organização social”. Como os autores colocam, o Direito é uma instituição que está sendo moldada pelas lutas de classes, pelas relações de forças. Dentro do Estado, vários segmentos lutam pelos seus direitos e influenciam nas instituições formadas, cada segmento influencia na lei criada, assim, o direito estatal vai ser fruto das relações das forças capitalistas, incorporando as reivindicações que tiverem mais força para se firmar. O Direito Estatal não é neutro como alguns juristas insistem em afirmar. O Direito é um reflexo das relações de força, as leis tendem a cristalizar concepções e ideologias. As necessidades humanas são uns dos fatores que levam as pessoas a se organizar e reivindicar por direitos. Muitas vezes a organização popular em torno das necessidades humanas não consegue força suficiente para se transformar em direitos e, mesmo se transformado em direitos, estes não são efetivados. O não atendimento das necessidades humanas provoca o surgimento de formas paralelas de direito, surge o pluralismo jurídico. Joaquim Falcão Neto (1984, p. 80-81) coloca que existem duas concepções de direito: uma monista, para quem só existe o direito positivo estatal, e outra dualista,
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que admite a existência de vários direitos, “quer quando se comparam sociedades diversas, quer mesmo no âmbito interno de uma única sociedade”. O cerne do pluralismo jurídico está na negação do Estado como centro único do poder político e a fonte exclusiva de toda a produção do direito. O Estado incorpora em suas instituições vários direitos oriundos de vários segmentos da sociedade, porém, esta incorporação, oriunda das relações de força, limitam-se ao mínimo necessário para que os conflitos sejam dispersados. O Direito, ou a necessidade, não incorporado no âmbito das correlações de força, torna-se um Direito marginal, alheio ao Estado e por ele não reconhecido. Na verdade, como Wolkmer coloca, temos no pluralismo jurídico uma perspectiva descentralizadora e antidogmática que estabelece a supremacia de elemento ético-político-sociológicos sobre critérios tecnoformais positivistas. Daniela Madruga (2004, p. 186) coloca o Pluralismo Jurídico como “fruto da coexistência de várias ordens jurídicas no mesmo espaço geopolítico e surgiu da necessidade de uma abordagem crítica, inovadora, em relação a um direito que não atende mais, como deveria, a uma tão complexa demanda social, é um novo referencial teórico que busca, através de práticas plurais, atender às necessidades sociais”. Wolkmer (2001) na mesma obra designa pluralismo jurídico como a multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço sócio-político, integrados por conflitos e consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais. Na perspectiva urbana temos a necessidade de moradia não atendida que leva a população a buscar outras formas de moradia. Os assentamentos irregulares surgem como uma forma plúrima de direito que aos poucos está sendo admitida no direito estatal. Ao debate do pluralismo jurídico, Boaventura de Sousa Santos (2005) acresce o uso da cartografia como ferramenta de análise, definindo um paralelo com a geografia e estabelecendo uma relação entre a cartografia e o direito. O autor coloca que os mapas são representações imperfeitas da realidade. Estas distorções da realidade trazidas pelos mapas são controladas por aquele que quer representar o espaço, o autor disciplina que há uma similaridade desta técnica com a do direito, quando este representa a realidade. Segundo ele “as relações das diferentes juridicidades com a realidade social são muito semelhantes às que existem entre os mapas e a realidade espacial” (SANTOS, 2005, p. 199). A este procedimento o autor denominou ‘Cartografia Simbólica do Direito’. Dentro da Cartografia Simbólica do Direito é trabalhada a questão da escala. A escala é o principal instrumento da cartografia. Seria a “relação entre a distância no
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mapa e a correspondente distância no terreno”. Temos as grandes escalas, que representam um espaço menor, e as pequenas escalas, que representam um espaço maior. A escolha da escala é relacionada com o fenômeno que se quer retratar ou potencializar. Na grande escala identificamos a representação como característica mais forte, sendo “rica em detalhes, descreve pormenorizada e vivamente os comportamentos e atitudes, contextualiza-os no meio envolvente e sensível às distinções e relações complexas entre familiar e estranho, superior e inferior, justo e injusto”. A pequena escala privilegia a orientação, ela é “pobre em detalhes e reduz os comportamentos e as atitudes a tipos gerais e abstratos de ação”. (SANTOS, 2005, p. 210) As diferenças entre pequena e grande escala são claras em duas pesquisas realizadas pelo autor: “Quando, em 1970, estudei o direito interno e não oficial das favelas do Rio de Janeiro, tive ocasião de observar que este direito local, um direito de grande escala, representava adequadamente a realidade sócio-jurídica da marginalidade urbana e contribuía significativamente para manter o status quo das posições dos habitantes das favelas enquanto moradores precários de barracas e casas em terrenos invadidos (SANTOS, 1977). Quando, dez anos mais tarde, estudei as lutas sociais e jurídicas dos moradores das favelas do Recife com o objetivo de legalizarem a ocupação das terras por meio de expropriação, compra ou arrendamento, verifiquei que a forma de direito a que recorriam privilegiadamente era o direito oficial, estatal, um direito de menor escala, que só muito seletiva e abstratamente representava a posição sócio-jurídica dos moradores, mas definia muito claramente a relatividade das suas posições face ao Estado e aos proprietários fundiários urbanos, um direito que, nas condições sociais e políticas da época, oferecia o atalho mais curto para o movimento de uma situação precária para uma posição segura (SANTOS, 1982b; 1983)” (SANTOS, 2005, p. 210). O presente estudo se utiliza da cartografia simbólica do direito de Boaventura para análise da relação entre o nosso ordenamento jurídico brasileiro e a informalidade urbana, traçando a existência do pluralismo jurídico. Nos próximos itens serão trabalhados quatro espaços jurídicos, quatro escalas. Serão utilizadas as três escalas que Boaventura disciplinou (internacional, nacional e local) e se acrescerá uma escala, a Municipal. No Brasil o pacto federativo e o modo em que se dispõe a legislação urbana torna imperativo a consideração de um âmbito municipal descolado do nacional, pois as normas federais poderão ser ou não regulamentadas no municipal, de acordo com as relações de força em cada Município. As diferentes escalas têm diferentes direitos que se formam das diferentes relações sociais entre os diferentes atores. O nível de conscientização de conhecimento dos diferentes atores vai influenciar nas relações de poder e nas institucionalidades
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formadas. Notamos aí o fenômeno do pluralismo jurídico, onde diversas formas de direito se manifestam nos diferentes espaços jurídicos, nas diferentes escalas. O direito à moradia vai ter um nível de efetividade diferente em cada escala, de acordo com as relações de força. O direito à moradia é trazido por diversas normatizações, mas o atores que as formam não são os atores diretos envolvidos nos conflitos fundiários oriundos da falta de moradia. A garantia da segurança jurídica da posse está nas normas internacionais e nas federais, mas a sua efetividade foi contida ao se delegar ao plano diretor a competência para se traçar a função social da propriedade, o conflito fundiário é dispersado para o âmbito municipal. No Município podemos ter um plano diretor que encampe os princípios do Estatuto da Cidade e realmente operacionalize a função social da propriedade ou somente ter um plano de fachada que traga os princípios, mas não os aplique. Já no campo social local muitas vezes nenhuma das legislações dos outros campos irão despontar, sendo ineficazes diante dos conflitos concretos de propriedade. 2. O DIREITO À MORADIA NAS ESCALAS INTERNACIONAL E NACIONAL O direito à moradia foi retratado nas diferentes escalas. Neste artigo serão trabalhados superficialmente às escalas internacional e nacional, amplamente trabalhadas pela doutrina, e será dada maior atenção às escalas municipal e local. No âmbito internacional temos várias normas internacionais que retraíam o direito à moradia. A Declaração Universal dos Direitos Humanos traz em seu art. XXV que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, direito a segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora do seu controle. O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais detalhou vários dos direitos trazidos pelo art. XXV da Declaração Universal. Apesar das convenções e pactos internacionais trazerem o direito à moradia, as normas não detalhavam os contornos deste direito. Em 1991, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais produziu o Comentário Geral nº 4 sobre o Direito à moradia adequada, trazido pelo art. 11, do Pacto Internacional pelos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O Comentário Geral traz como elementos do direito à moradia a segurança jurídica da posse, a habitabilidade, a capacidade de suportar os custos ligados à moradia, a disponibilidade de infra-estrutura e serviços básicos, a boa localização e o próprio acesso à moradia, além da adequação cultural desta moradia. Outro Comentário que merece ser ressaltado é o Comentário Geral nº 7 sobre o Direito à Moradia Adequada que trata dos despejos forçados. A segurança na posse
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deve ser garantida de maneira a impedir os despejos forçados que desrespeitam vários direitos humanos. Neste sentido, o Comentário Geral busca trazer a proteção dos direitos humanos àqueles que estão ameaçados ou foram despejados, explicitando a necessidade remédios legais para a sua proteção. Na escala nacional temos o direito à moradia retratado expressamente no art. 6º da Constituição Federal. Além deste dispositivo, vários são os momentos em que a Constituição traz o direito à moradia, como quando trata da usucapião, do salário mínimo, das competências, dentre outros. Apesar de não se tratar diretamente de direito à moradia, as normas jurídicas nacionais que tratam do planejamento urbano são essenciais no que se refere ao direito à moradia. A Constituição Federal traz que a propriedade deverá cumprir a sua função social e o plano diretor como o instrumento básico que irá regular a política urbana, sendo o plano diretor a lei que irá definir quando a propriedade urbana está ou não respeitando a função social da propriedade. A lei federal 10.257/01, o Estatuto da Cidade, traz vários princípios e instrumentos jurídicos que irão auxiliar no planejamento urbano, sendo regulamentados e aplicados dentro do plano diretor. Pode-se dizer que tanto a legislação internacional como a nacional avançam muito no que tange ao direito à moradia e ao desenvolvimento urbano, mas estas terão sua aplicabilidade condicionada aos planos diretores que serão elaborados nos diferentes municípios no país. Quanto aos assentamentos irregulares, temos uma avançada regulamentação no que tange a situações consolidadas, através da usucapião e concessões, mas temos uma regulamentação insuficiente no que se refere à assentamentos em conflito fundiário. 3. ESCALA MUNICIPAL E LOCAL Quanto à habitação temos disciplinado na Lei Orgânica do Município – LOM de Fortaleza que a política habitacional do Município deverá priorizar programas destinados à população de baixa renda e se constituirá primordialmente de urbanização e regularização fundiária de assentamentos irregulares, sem exclusão dos projetos de provisão habitacional, atividades contínuas e permanentes a integrar o planejamento urbano do Município. Ainda traz a LOM que o Poder Público só construirá conjuntos habitacionais para abrigar a população carente ocupante de assentamentos irregulares, quando por questões técnicas ou de estratégia de uso do solo não for possível a urbanização dos eventos.
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Outra lei municipal que traz normas referentes à moradia é o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental, lei nº 7.061 de 16 de janeiro de 1992, principalmente no tratamento dos assentamentos espontâneos, regulamentados na seção de uso e ocupação diferenciados, nos arts. 73, 74 e 75. O artigo 73 considera assentamentos espontâneos, podendo ser objeto de regularização fundiária, as áreas ocupadas por população de baixa renda, favela ou assentamentos assemelhados, destituídos da legitimidade do domínio dos terrenos, cuja forma se dá em alta densidade e em desacordo com os padrões urbanísticos regularmente instituídos. Apesar de reconhecer a existência dos assentamentos irregulares em Fortaleza, não temos a instituição de Zonas Especiais de Interesse Social ou instrumento similar que proporcione ações como de flexibilização das normas de uso e ocupação do solo e proteção das comunidades contra o avanço da “expulsão branca”. Não há também normas referentes aos conflitos fundiários e o papel do Poder Público. Passamos à análise da escala local como campo onde incide o pluralismo jurídico. A primeira questão a colocar é a da existência da própria informalidade urbana, só em Fortaleza, por exemplo, existem mais de 600 favelas. A informalidade urbana existe em tamanha proporção que a política pública de regularização fundiária se mostra tímida frente a quantidade de assentamentos informais. Mostramos aqui dois tipos de assentamentos, uns que estão sendo atendidos pela política pública de regularização fundiária, seja pelo Município, seja pela sociedade civil organizada, e aqueles que estão à margem de uma política e estão sendo palco de conflitos que podem resultar a qualquer momento em um despejo violento. Temos como assentamentos que não têm conflito fundiário nem ação judicial os antigos conjuntos habitacionais construídos em regime de mutirão pelo Município de Fortaleza. Como assentamentos que tem conflito fundiário, mas não tem ação judicial o Pirambu. Temos como assentamento que não tem conflito fundiário, mas tem ação judicial a Terra Prometida. E por último, temos como assentamentos que tem ação judicial e conflito fundiário o Morada da Paz, o Bom Sucesso e o Parque Santana. A primeira demonstração de que existe pluralismo jurídico é que, com exceção do Pirambu, estes assentamentos surgiram depois da Constituição Federal de 1988. Apesar de termos um grande avanço legal não temos uma imediata incorporação destas medidas nas diferentes legislações municipais. Todas estas famílias ocupantes destes imóveis, com exceção dos conjuntos habitacionais, foram em busca de um imóvel para utilizar para suas moradias, famílias que necessitavam de uma terra para morar, a grande massa de excluídos que formou o Pirambu, os moradores da Terra Prometida movidos pela necessidade e pela fé
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ocupam um terreno vazio, os moradores de rua do centro da cidade procuram abrigo no prédio abandonado no centro, os moradores do Bom Sucesso, depois de ludibriados por uma liderança clientelista, ocupam um terreno que seria destinado à moradia, por fim as pessoas sem teto ocupam terreno não utilizado no Parque Santana. A necessidade por moradia faz com que as famílias busquem, através de meios não legais, um espaço na cidade para constituir a suas moradias. Temos sim aqui pluralismo jurídico, temos o acesso à terra urbana, acesso à moradia, não pelo mercado, nem por políticas habitacionais, mas através da ocupação urbana organizada. Mesmo com o avanço da legislação ainda temos este modo de aquisição de moradia muito presente em Fortaleza, vê-se que mesmo com todo o avanço institucional não temos ainda um acesso amplo à terra urbanizada por parte da população de baixa renda. Quanto aos casos estudados temos a demonstração de alguns casos de, mesmo com a legislação, não houve o pleno acesso à moradia; e temos outros que mesmo com a legislação contra os moradores, o acesso a moradia se mostra como uma possibilidade no futuro. Temos inicialmente encontrado em alguns casos que, mesmo com o avanço da legislação, verificamos o impedimento ao acesso à moradia. Temos como primeiro caso o da Terra Prometida onde temos a usucapião amplamente regulamentada no âmbito nacional, mas uma discordância doutrinária faz com que o direito não seja reconhecido pelo judiciário. O Estatuto da Cidade regulamenta que não é possível a transferência inter vivos no caso da usucapião individual e o Código Civil diz que é possível. Esta discordância é levantada pelo Ministério Público e faz com que ele se oponha à usucapião dos moradores da Terra Prometida, negando-lhes o acesso à segurança na posse e por decorrência à moradia. Outro caso é a falta de documentação por parte dos ocupantes das terras públicas. Tanto os beneficiários do Pirambu como os dos Conjuntos Habitacionais não tem os seus RGs e CPFs o que inviabiliza a emissão de títulos de Concessão de Direito Real de Uso e inviabiliza a Regularização Fundiária. A falta de uma formalidade que é o documento, acaba inviabilizando uma outra formalidade que é o título do imóvel no nome dos respectivos beneficiários. Outra questão que chama a atenção é a falta de regulamentação das Zonas Especiais de Interesse Social e a discordância entre as secretarias municipais. Tanto no caso do Pirambu como no caso dos Conjuntos Habitacionais temos a inviabilidade do registro dos imóveis devido à irregularidade no parcelamento do solo. E mesmo que tivesse as ZEIS, ou mesmo que o parcelamento estivesse regulamentar, a falta de cooperação e estrutura entre a Secretaria de Infra-estrutura e a Fundação de
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Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR inviabiliza o trâmite dos imóveis que estão de acordo com a lei de ordenamento do solo urbano. Mesmo com o reconhecimento do direito à moradia a nível internacional, do reconhecimento do direito à moradia daqueles que moram em assentamentos informais a nível nacional, mesmo com a flexibilização das normas para habitação de interesse social feita pela Lei Federal de Parcelamento do Solo Urbano, mesmo com o Estatuto da Cidade, as normas municipais não permitem a regularização de ocupações espontâneas como o Pirambu e de assentamentos produzidos pelo próprio Poder Público Municipal. Mesmo com todo o avanço legal, as diferentes escalas de direito tem avanços diferentes quanto à efetividade do direito à moradia, enquanto a escala local também não tiver este avanço, podemos falar que nestes casos temos formas de direito paralelas ao direito oficial, temos um pluralismo jurídico. Com relação a estes três primeiros casos (Pirambu, Conjuntos Habitacionais e Terra Prometida) faz-se interessante colocar que a necessidade pela segurança jurídica da posse, de um título jurídico que possa servir de garantia para aqueles moradores, não foi sempre uma necessidade ou desejo dos moradores destes locais. Por um lado este interesse veio do Poder Público, tanto como na hora de promover a regularização fundiária, no caso dos conjuntos habitacionais, ou como ameaça, no caso do Projeto Costa-oeste para o Pirambu e Terra Prometida. Apesar de termos avanços legais nas escalas nacional e internacional quanto à moradia e à titularidade jurídica, não podemos dizer que existia um empoderamento deste discurso no âmbito local. Podemos perceber aqui um pluralismo jurídico, pois aqueles que promoveram o debate e as lutas a nível nacional não são os mesmos que lutam a nível local, o nível diferente de consciência das necessidades faz com que o direito nas diferentes escalas seja diferente, seja efetivado a nível nacional, e não seja nem percebido como necessidade a nível local. Quanto aos casos que tem conflito fundiário e ação judicial temos alguns fatores que se tornam comuns nos três casos. A primeira questão é que mesmo não havendo posse por parte dos proprietários em nenhum dos casos a ação judicial, que foi utilizada nos três casos, foi a reintegração de posse. Apesar de o instrumento cabível ser a ação reinvidicatória, que discute a propriedade, resolveram entrar com uma ação que discute a posse, mesmo sem ela existir. Sendo, inclusive, um dos argumentos que os ocupantes usam para se legitimar a questão que os imóveis estavam vazios e sendo usados para o cometimento de ilícitos e eles pegaram o imóvel e deram uma função social, a moradia. As ações de reintegração foram impetradas, aproximadamente, na mesma época e tiveram três fins diferentes: uma foi extinta por se reconhecer que não há posse, outra foi dada uma liminar de reintegração de posse e até hoje está sendo prorrogada sem nenhuma solução na Vara Cível e a outra, também, vem sendo adiada, mas foi para a Vara da Fazenda Pública.
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Todos os três casos tiveram como argumento da defesa a questão de que o conflito fundiário não é meramente uma causa particular, uma causa cível, mas sim uma questão social, uma questão de falta de moradia. Este argumento passou desapercebido pelo Juiz do caso Morada da Paz. No Parque Santana, ainda, temos um mandado de liminar de reintegração de posse em voga, mas o juiz, por motivos cristãos, não executa este mandado, despacho este que foi criticado em agravo por não se fundamentar em causas jurídicas, no direito formal. No caso do Bom Sucesso foi o único em que se percebeu a real conotação social dos conflitos e da necessidade de uma intervenção mais ampla dos executivos dos Poderes Públicos para a busca de uma solução. Então, temos que o reconhecimento da ocupação como necessidade por moradia só se deu em um caso dos três em que houve conflito e ação judicial, mas mesmo neste caso a ação ainda continua correndo na 26ª Vara Cível e este argumento não é utilizado para de dar o fim da ação com julgamento do mérito. Outro fato que chama a atenção é a da chamada do Poder Público para a solução dos conflitos em voga. O Juiz que julga o caso do Morada da Paz entende que neste caso não é pertinente a chamada do Poder Público, por uma questão de formalidade coloca que o interesse do Poder Público só pode ser averiguado por uma Vara da Fazenda Pública, sendo que dessa maneira uma ação de reintegração de posse nunca chegaria à Vara da Fazenda e nunca se teria a intervenção do Poder Público. No caso do Parque Santana, na esfera cível a HABITAFOR demonstra interesse na causa, o que faz com que o processo seja enviado para a vara da Fazenda Pública. A intervenção da HABITAFOR não tem por fim, até aí, solucionar o conflito, mas sim ganhar tempo, conseguindo a prorrogação por dois anos. Já no caso do Bom Sucesso, o Juiz entende que o caso deve sim ser alvo da chamada dos entes públicos que devem fazer parte da solução do problema. Passa-se aqui a defender a existência de uma vara especial para conflitos fundiários e esta deve trabalhar conjuntamente com a União, Estado e Município para a solução dos conflitos. Percebemos que o envolvimento ou não do Poder Público nos conflitos em questão, também, transparece a percepção de que o conflito fundiário não é uma questão de simples lide pela propriedade, mas sim uma demanda social que vem da necessidade humana por moradia. Quanto às soluções para os conflitos fundiários em questão, podemos notar que não há uma solução conclusiva para nenhum deles. Na verdade os conflitos até agora tem sido dispersados através dos anos de discussão judicial, mesmo no caso do Parque Santana que tem uma liminar de reintegração de posse ativa, não verificamos medidas efetivas para o seu cumprimento.
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No caso do Parque Santana temos a utilização do direito oficial de forma desvirtuada e de maneira a possibilitar o reconhecimento da moradia de maneira diferente. No caso do Parque Santana nem se nega o direito à moradia das famílias lá residentes nem se nega o direito de propriedade dos autores da ação, através de negociação com a HABITAFOR buscou-se uma outra alternativa que foge ao direito oficial. O proprietário doará as terras ocupadas como áreas verdes, institucional e fundo de terras para o poder público de maneira que este faça a regularização fundiária das terras que serão públicas, as terras restantes ocupadas serão desapropriadas. No Morada da Paz temos uma decisão extinguindo a ação de reintegração da posse por motivos técnico-formais, não sendo verificada a posse destes. Com o fim da ação de reintegração da posse surgem uma ação reinvidicatória e uma ação de usucapião. Mas a solução do conflito pode vir por uma dispersão deste por meio da violência. A Prefeitura Municipal de Fortaleza, que no caso do Parque Santana proporcionou o acesso à moradia, nesse caso o nega, promovendo uma ação demolitória do prédio que é utilizado para moradia destas famílias. Em resposta a essa ação da Prefeitura, os próprios moradores estão demolindo e reformando o prédio em questão para que desapareça o novo argumento utilizado pelos proprietários. No caso do Bom Sucesso temos uma real dispersão do conflito, pois este permanece sem solução. O judiciário se pronunciou informalmente que eles não sairiam de lá, mas a ação ainda corre normalmente, temos aqui um caso em que nem se nega a propriedade nem se garante o direito à moradia destas famílias. Temos nos casos encontrado resultados que: – O direito à moradia é reconhecido e a ocupação urbana como resultado da necessidade por moradia; – O direito à propriedade é garantido, não sendo repudiado em nenhum momento; – Que o judiciário não decidiu em nenhum momento nem a favor do direito à propriedade nem a favor do direito à moradia. Podemos notar que, com relação ao diálogo entre as quatro escalas, não temos aqui uma real inter-relação entre estas. Temos o direito à moradia amplamente regulamentado na escala internacional, temos na escala nacional a informalidade urbana reconhecida e o desenvolvimento urbano regulamentado. Quando chegamos na escala municipal não vamos ter os direitos das escalas internacional e nacional suficientemente regulamentados. Colocamos que o judiciário e a política pública de regularização são os dois espaços em que as diferentes escalas se tocam. Quanto à primeira, temos que o direito de propriedade e o direito à moradia são ao mesmo tempo reconhecidos e negados,
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não havendo um pronunciamento definitivo. O Judiciário aceita o direito de propriedade trazido pelo âmbito nacional, mas ao mesmo tempo legitima a ocupação urbana, como uma forma de direito a não promover de logo as reintegrações de posse. Nas políticas de regularização fundiária temos o reconhecimento da legislação nacional de que o direito à moradia deve ser efetivado e deve ser garantida a segurança na posse, mas esta esbarra na legislação municipal que não regulamenta as ZEIS e na questão local da falta de documentação dos pretensos beneficiários da regularização fundiária. É claro aqui que temos práticas jurídicas diferentes nos quatro espaços: internacional, nacional, municipal e local. Que nestas práticas verificamos consensos (solução no Parque Santana) e conflitos (no caso Morada da Paz), sendo as soluções, quando existentes, dadas aos casos com base em direitos oficiais (reconhecimento da propriedade) ou não oficiais (ocupação urbana como modo de acesso à moradia), mas temos que em todos a razão de ser, a necessidade existencial, material e cultural por moradia. Concluímos que mesmo com o avanço da legislação no reconhecimento do direito à moradia, ainda podemos falar na existência de pluralismo jurídico na informalidade urbana, originado pela necessidade por moradia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Direito alternativo – notas sobre as condições de possibilidade. In: ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Lições de Direito Alternativo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1992. FALCÃO, Joaquim de Arruda. Justiça social e justiça legal: conflitos de propriedade em Recife. In FALCÃO, Joaquim de Arruda. Conflito de direito de propriedade: invasões urbanas. Rio de Janeiro: Forense, 1984. POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2005. ______. O Estado, o direito e a questão urbana, in FALCÃO, Joaquim de Arruda. Conflito de direito de propriedade: invasões urbanas. Rio de Janeiro: Forense, 1984. SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004. WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. ______. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2001. ______. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. 3. ed. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 2001.
Direito à Moradia: os Planos Diretores da RMBH Aplicam o Estatuto da Cidade e a Constituição Federal de 1988?1 NAIANE LOUREIRO
DOS
SANTOS2
Mestre em Ciências Sociais pela PUC Minas.
CIRCLAINE
DA
CRUZ SANTOS FARIA3
Assistente Social.
MARINELLA MACHADO ARAÚJO4 Doutora em Direito.
RESUMO: Esse artigo objetiva (i) discutir se os planos diretores da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) aplicam os instrumentos de política urbana, regulados pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. E, em caso afirmativo, (i.a) se essa previsão pode ser considerada legítima segundo os fundamentos da democracia contestatória de Philip Pettit, a soberania popular como procedimento de Júrgen Habermas e o modelo de Estado Democrático de Direito brasileiro, (ii) Objetiva ainda divulgar os resultados da pesquisa intitulada Direito à moradia: Mapeamento das políticas públicas e das experiências alternativas de habitação popular da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), financiada em 2007 pelo Fundo de Fomento à Pesquisa da PUC Minas. A partir dos instrumentos de política urbana que concretizam direito à moradia, essa pesquisa apresenta
1
Este artigo resulta da pesquisa trabalhos realizados pelo Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR (NUJUP) do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas, em parceria com o Observatório de Políticas Urbanas/ PROEX – PUC Minas, ambos integrantes da Rede Nacional Observatório das Metrópoles.
2
Pesquisadora e extensionista do Observatório de Políticas Urbanas da PROEX/PUC Minas, que integra a Rede Nacional Observatório das Metrópoles/IPPUR. Pesquisadora do NUJUP.
3
Pesquisadora e extensionista do Observatório de Políticas Urbanas da PROEX/PUC Minas, que integra a Rede Nacional Observatório das Metrópoles/IPPUR. Pesquisadora do NUJUP.
4
Professora do Programa de Pós-graduação em Direito e da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas. Coordenadora do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas (NUJUP). Pesquisadora da Rede Nacional Observatório das Metrópoles/IPPUR.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 análise crítica da gestão da política habitacional nos 34 municípios que integram a RMBH. Os resultados apontam os avanços detectados e as tendências das políticas públicas habitacionais nesses municípios. Considerado direito fundamental social somente a partir da publicação da Emenda Constitucional n. 26, de 2000, a concretização do direito à moradia ainda permanece um desafio para o Poder Público municipal. Nesse contexto, a análise enfatiza o processo democrático participativo de formulação das políticas habitacionais locais. PALAVRAS-CHAVE: Direito à Moradia, Plano Diretor Participativo, Democracia Participativa, Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).
1. A RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO URBANO, INSTRUMENTOS DE POLÍTICAS URBANA E PLANO DIRETOR As políticas públicas são ações que o Estado promove no exercício de sua função executiva para alcançar os interesses públicos que concretizam os direitos garantidos pela ordem constitucional. No Brasil, a Constituição de 1988, ao regular a política de desenvolvimento urbano, determinou tratar-se de competência concorrente entre União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios5. Contudo, adotou o princípio federativo da subsidiariedade6 ao atribuir aos municípios função normativa principal. Assim, de acordo com o artigo 182 da Constituição de 1988, cabe aos municípios a elaboração de planos diretores, leis municipais que funcionam como instrumentos básicos da política de desenvolvimento urbano (§ 1º), pois estabelecem as diretrizes gerais (i) de ordenação do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade e (ii) da garantia do bem-estar dos habitantes da cidade (caput). Apesar de assumirem diversos objetivos, diferentes características e formatos institucionais, as políticas públicas apresentam características gerais. Azevedo (2003) identifica duas características gerais das políticas públicas: (i) a busca do consenso em torno do que se pretende fazer e deixar de fazer e (ii) a definição de normas e o processamento de conflitos. Assim, (i) quanto maior o consenso, melhores condições de aprovação e implementação das políticas propostas. Por outro lado, (ii) as políticas públicas, tanto podem estabelecer normas de ação, definidoras de diretrizes e
5
Esse entendimento é resultado da interpretação dos artigos 24 e 30 do texto constitucional e já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.
6
Por esse princípio, unidades políticas de uma federação devem atuar de forma subsidiária dentro de suas competências constitucionais. Assim, as unidades federativas mais próximas do interesse público têm prioridade na solução dos conflitos de interesse, sendo que, apenas na ausência das condições necessárias para a sua resolução, atuariam as unidades de competência mais abrangente (União e Estados-membros).
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instrumentos para a atuação do Estado, como os instrumentos de política urbana, previstos no Estatuto da Cidade, quanto normas-sanção para a resolução dos eventuais conflitos entre os diversos indivíduos e agentes sociais, como a tipificação de condutas criminais e a incidência de multas administrativas. Em democracias participativas, como a instituída pela Constituição de 1988, espera-se que os processos políticos de tomada de decisões governamentais e participativas possam ser objeto de controle social. O modelo representativo que caracteriza o Estado liberal tem se mostrado insuficiente para garantir pluralidade de direitos e respeito a diferenças como sustenta Habermas em a Inclusão do Outro (2004). A existência de leis cujo descumprimento sujeita seus infratores a alguma espécie de punição por órgãos institucionalizados pelo Estado, como proposto por Kelsen em Teoria Geral do Direito e do Estado (1996), tende a tornar-se mais efetiva e eficiente se a elaboração e a execução das leis que regulam direitos e deveres é realizada de forma participativa. Habermas (2006) demonstra que a participação popular reforça a legitimidade do processo legislativo e, assim, torna mais efetiva a sua aplicação. Esse é o princípio democrático (participativo) que fundamenta a obrigatoriedade do planejamento e gestão urbanos participativos, que prevê o Estatuto da Cidade (arts. 39, § 4º, e 43 a 45). Pettit (2007) sustenta que um Estado de direito, democrático e republicano, fundado na liberdade, deve conter em seu ordenamento jurídico instrumentos de controle discursivo7 das funções públicas, ou seja, meios colocados à disposição do cidadão para que possa questionar as decisões tomadas no âmbito de atuação dos três Poderes do Estado que visam efetivar o interesse comum8. Não basta que possamos eleger nossos representantes (dimensão autoral da democracia). É preciso que possamos controlá-los. Esse modelo democrático Pettit (2007) denomina democracia contestatória. Dois fatores devem ser considerados para que as pessoas desfrutem da liberdade como controle discursivo: (i) capacidade raciocinativa para participar, e (ii) capacidade relacional. 2. POLÍTICAS PÚBLICAS PARTICIPATIVAS E A PROPOSTA DE PLANEJAMENTO URBANO DO ESTATUTO DA CIDADE Nos últimos anos, sobretudo a partir da década de 1990, o debate sobre a questão democrática no Brasil voltou-se, em grande parte, para a discussão sobre a aplicação dos instrumentos democráticos instituídos pela Constituição de 1988. Parte dessa discussão estabeleceu-se entorno dos mecanismos institucionais de participação 7
Pettit indica três formas de contestação ou de controle discursivo: o procedimental, o consultivo e o recursal.
8
Pettit considera interesse comum todo interesse que possa ser sustentado publicamente.
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popular na definição e no controle de políticas públicas por meio de canais de participação do tipo: conselhos municipais, orçamento participativo, elaboração do plano diretor participativo, consórcios públicos. Contudo, a cultura política brasileira e a falta de maturidade democrática do povo brasileiro têm representado obstáculos à efetividade do planejamento e gestão participativos regulados pelo Estatuto da Cidade. Legitimidade da ação participativa envolve mais do que a existência de canais institucionalizados de participação. Envolve também o enfretamento de questões como: (i) assimetria de conhecimento entre atores sociais, (ii) paridade entre a cultura política vigente no poder público e a vigente na sociedade civil, (iii) educação, capacitação e sensibilização de atores sociais. Nesse sentido, muitos são os desafios decorrentes das práticas que envolvem a formulação e a execução de políticas públicas participativas. Talvez o maior deles seja justamente como garantir a apropriação legítima do poder político de participação tanto pela sociedade civil, como pelo poder público. O enfrentamento dessa questão implica, por um lado, (i) na autocrítica da forma como o poder público e sociedade civil concebem o interesse público e, por outro, (ii) no fortalecimento dos canais de participação por parte da sociedade. A experiência tem demonstrado que os canais de participação popular, que envolvem planejamento e gestão de políticas públicas, são na prática ainda pouco deliberativos no que ser refere à participação da sociedade9. O processo de implantação da democracia participativa é lento. E o exercício da democracia é um processo contínuo e dialógico, como sustenta Habermas (2006). Se por um lado, a democracia brasileira avançou na medida em que produziu leis, como o Estatuto da Cidade, que reconhecem o direito à participação e institucionalizam canais de interlocução entre sociedade civil e poder público com o 9
O OPUR em parceria com o NUJUP e outras organizações não governamentais promove anualmente o Programa Interdisciplinar de Políticas Públicas e Gestão Local: curso de capacitação para conselheiros municipais e agentes sociais, com intuito de instrumentalizar os atores sociais, fornecendo um conjunto de conceitos, teorias, métodos e técnicas que reforçam a qualificação em esferas públicas de participação popular. A partir dessa experiência, que já possui 5 edições no âmbito da Região Metropolitana de Belo Horizonte, foram identificados obstáculos à participação a partir do relato da atuação desses atores nos processos de tomadas de decisão de conselhos municipais, movimentos sociais, fóruns, ONGs, associações comunitárias dos quais participam. Muitos desses relatos demonstram que a realidade da gestão participativa não é uniforme: ora acontece de forma consultiva, ora deliberativa, independentemente da natureza da deliberação. Esses atores sociais chegam para o curso com muitas dúvidas, vontade política e também com muitas experiências de lutas. Exemplos não faltam para mostrar como os processos de decisão, em suas instituições de atuação como atores sociais, são difíceis e conflituosos, sobretudo, entre poder público e sociedade civil. O mesmo foi observado na pesquisa Perfil dos Conselhos e Conselheiros Municipais da RMBH, em 2002, atualizada parcialmente em 2005, pelo OPUR – PROEX/PUC Minas em parceria com a Rede Nacional Observatório das Metrópoles. De acordo com os dados coletados, vários conselhos mencionaram em suas experiências a seleção dos conteúdos que deveriam ser decididos ou votados por todos os membros do conselho e os que deveriam ser apenas consultados à sociedade civil. Para a maioria dos entrevistados não existe um equilíbrio de forças no interior dos conselhos.
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objetivo de viabilizar o exercício cooperado das funções do Estado. Por outro, a legitimidade da atuação desses canais de participação, que é diretamente proporcional à sua apropriação pela sociedade civil, ainda representa um desafio. 2.1. A garantia do direito à moradia como principal função social da cidade Desde a teoria funcionalista de Le Corbusier consagrada pela Carta de Atenas de 1933, a habitação figura entre as funções-chave da cidade. Em que pese as teorias sobre planejamento urbano adotado variável social, no sentido de reconhecer a importância do habitante da cidade para a eficiência do planejamento urbano, a habitação ainda é uma das funções-chave da cidade. Tanto assim que, ao regular a política de desenvolvimento urbano, a Constituição de 1988 estabelece que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende as diretrizes fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (art. 182, § 2º). Igualmente, toda a concepção das diretrizes gerais e dos instrumentos da política de desenvolvimento urbano regulada pelo Estatuto da Cidade foi concebida tendo por referência o direito de acesso à terra urbanizada. Isso é observado tanto pela natureza das diretrizes previstas no artigo 2º, como pelos fins atribuídos aos instrumentos de política urbana. O direito à moradia somente foi alçado à condição de direito fundamental social pela Emenda Constitucional n. 26, de 2000. E, desde então, sua garantia paulatinamente vem sendo incorporada à jurisprudência da Corte Constitucional brasileira. Nesse sentido é a proferida na ADIn 2990/04 em que o STF reconheceu a constitucionalidade da lei do Distrito Federal que previa possibilidade de alienação de imóveis, localizados em área de proteção ambiental, após a realização de programa de regularização fundiária sem licitação de imóveis. 3. PLANOS DIRETORES PARTICIPATIVOS DA RMBH Ao final do ano de 2006, o Ministério das Cidades10 em parceria com CONFEA (Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia), como desdobramento da Campanha Nacional Cidade para Todos11, realizou pesquisa como o objetivo de
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O Ministério das Cidades foi criado em 2003 com o objetivo de atuar na universalização do acesso aos direitos fundamentais vinculados à política de desenvolvimento urbano por meio do fomento a ações democráticas descentralizadas e participativas de ordenação do espaço urbano. Nesse sentido, busca-se refletir os limites que perpassam a discussão sobre políticas públicas participativas, detendo-se, principalmente, a legitimidade da participação popular.
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A campanha Cidades para Todos teve por objetivo sensibilizar e capacitar os atores sociais do poder público e da sociedade civil para a elaboração dos Planos Diretores Participativos e foi realizada no período de 2005/ 2006.
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identificar, naquele momento, qual era o estágio do processo de elaboração dos planos diretores participativos nos municípios que se encontravam dentro dos critérios de obrigatoriedade estabelecidos pelo Estatuto da Cidade: cidades com mais de 20 mil habitantes e inseridas em regiões metropolitanas, nos termos da Resolução n. 25, de 18 de março de 2005, do CONCIDADES (Conselho das Cidades). A pesquisa foi realizada em âmbito nacional e contou com a participação dos CREAs (Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia) para a sua operacionalização. No caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais, a pesquisa foi realizada por meio da parceria entre o Observatório de Políticas Urbanas/PROEXPUC Minas e o CREA-MG. Os instrumentos de coleta de dados utilizados na pesquisa basearam-se em três tipos de questionários para serem aplicados: (a) ao coordenador político do Plano Diretor Participativo no município; (b) ao coordenador técnico e (c) ao representante da sociedade civil gerando, assim, três tipos de banco de dados12, com os quais se trabalhou na pesquisa Direito à moradia: Mapeamento das políticas públicas e das experiências alternativas de habitação popular da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), financiada em 2007 pelo Fundo de Fomento à Pesquisa da PUC Minas. A pesquisa mostrou que num universo de 31 municípios válidos, em 26 houve respostas do coordenador político (83,87%), em 18 do coordenador técnico (58,06%) e em 19 houve respostas do representante da sociedade civil (61,29%). Com base nesses resultados, considerou-se que o coordenador político teve uma maior participação no processo de elaboração dos planos diretores participativos seguido da sociedade civil e o coordenador técnico. No que se refere aos instrumentos urbanísticos adotados pelos municípios em seus planos diretores, estiveram mais presentes: a Zona de Especial Interesse Social (ZEIS), a Transferência do Direito de Construir, a Outorga Onerosa do Direito de Construir, o IPTU Progressivo no Tempo, Operação Urbana Consorciada, Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios e Contribuição de Melhoria. Chamou atenção o fato de que apesar de alguns municípios terem informado a previsão de ZEIS em seus planos diretores, nenhum dos atores pesquisados considerou a existência da Regularização Fundiária como instrumento de política urbana. De um modo geral, a pesquisa mostrou que em mais de 50% dos municípios da RMBH houve participação da sociedade civil no processo de elaboração dos planos 12
Cabe ressaltar que: as informações obtidas são percepções dos entrevistados e que não houve análise documental. Assim, pode-se observar a existência de algumas divergências entre as respostas dos entrevistados e dos 34 (trinta e quatro) municípios pesquisados, sendo que 03 (três) não constam nos bancos de dados, 02 (dois) porque não enviaram suas respostas e 01 (um) porque foi invalidado.
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diretores participativos. Entre os instrumentos de gestão democrática, previstos pelo Estatuto da Cidade no artigo 45, os mais utilizados foram os conselhos gestores, as comissões e as audiências públicas, e os menos utilizados foram os fóruns, as oficinas e palestras. Entretanto, ao analisar as respostas sobre a utilização ou não dos instrumentos urbanísticos regulados pelo Estatuto da Cidade nos planos direitos, observou-se existir divergência entre o informado pelo coordenador político, o informado pelo representante técnico e o informado pelo representante da sociedade civil. Essa divergência levou à formulação da seguinte hipótese: A participação popular informada não teria sido efetiva em razão da ausência de informação e de transparência no processo de elaboração dos planos diretores desses municípios. 4. DIREITO À MORADIA: MAPEAMENTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DAS EXPERIÊNCIAS ALTERNATIVAS DE HABITAÇÃO POPULAR DA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE (RMBH) Essa pesquisa teve por objetivo traçar o panorama geral da situação da política habitacional de interesse social nos municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, no que diz respeito à execução desta política e a efetivação da participação popular nos processos participativos de tomada de decisão dos municípios. Pretendeu também, realizar uma análise comparativa mediante dados de uma pesquisa13 realizada em 2002 sobre a mesma temática. Nesses quatro anos foram identificados alguns avanços. O número de instrumentos urbanísticos aumentou em todos os municípios, segundo a informação fornecida pelos responsáveis da área. A tabela a seguir ilustra esta percepção. Nota-se que de um modo geral a evolução quanto ao alcance dos instrumentos urbanísticos na RMBH foi positiva, uma vez que a maioria dos instrumentos aqui listados se difundiram consideravelmente dentro da região citada no período apresentado. Os instrumentos que apresentaram queda quanto a seu uso foram poucos de 2002 a 2006. São eles: Consórcio Imobiliário, Usucapião Urbano e Desapropriação o que denota o pouco interesse dos municípios em relação a estes instrumentos. No ano de 2006 nenhum coordenador técnico alegou a existência dos instrumentos
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Realizou-se em 2002, financiada pelo FINEP, denominada Rede de Avaliação e Disseminação de Experiências Alternativas em Habitação Popular, sob coordenação nacional do Observatório das Metrópoles sediado no IPPUR/UFRJ. Para a realização desta campanha foram criados Núcleos Mobilizadores Estaduais que congregavam várias instituições do poder público e sociedade civil. O OPUR/PROEX e o CREA-MG faziam parte do Núcleo Mobilizador de Minas Gerais.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 Tabela 1 – Instrumentos Urbanísticos
Instrumentos Urbanísticos Consórcio imobiliário Usucapião urbano Desapropriação Concessão especial de uso para fins de moradia Concessão de direito real de uso Estudo prévio de impacto ambiental (EIA) Contribuição de melhoria Direito de superfície IPTU progressivo no tempo Outorga onerosa do direito de construir Transferência do direito de construir ZEIS/AEIS Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios Operação consorciada Direito de preempção
2002 0 0,00% 1 3,23% 5 16,13%
Atores do Plano Diretor (2006) Sociedade Civil Coordenador Técnico Coordenador Total Sim (%) Total Sim (%) Total Sim 19 2 10,53% 18 0 0,00% 26 0 19 2 10,53% 18 0 0,00% 26 0 19 2 10,53% 18 0 0,00% 26 0
Político (%) 0,00% 0,00% 0,00%
2
6,45%
19
2
10,53%
18
1
5,56%
26
1
3,85%
2
6,45%
19
5
26,32%
18
2
11,11%
26
6
23,08%
5 16,13%
19
3
15,79%
18
4
22,22%
26
1
3,85%
4 12,90%
19
10
52,63%
18
10
55,56%
26
22
84,62%
1
3,23%
19
15
78,95%
18
11
61,11%
26
20
76,92%
0
0,00%
19
14
73,68%
18
13
72,22%
26
23
88,46%
3
9,68%
19
12
63,16%
18
14
77,78%
26
21
80,77%
3
9,68%
19
11
57,89%
18
14
77,78%
26
17
65,38%
6 19,35%
19
15
78,95%
18
15
83,33%
26
24
92,31%
1
3,23%
19
14
73,68%
18
15
83,33%
26
22
84,62%
3
9,68%
19
13
68,42%
18
16
88,89%
26
20
76,92%
5 16,13%
19
16
84,21%
18
16
88,89%
26
21
80,77%
Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles/Núcleo Minas Gerais – PROEX/PUCMINAS –Fase (2002) e Pesquisa Observatório das Metrópoles/Núcleo Minas Gerais PROEX/PUCMINAS – Plano Diretor (2006) Nota: Os municípios de Baldim e Matozinhos não devolveram os questionários da pesquisa sobre o Plano Diretor (2006). Nova União foi desconsiderada na pesquisa uma vez que os questionários retornados foram considerados inválidos, graças a tais fatos os três anteriores não entraram na composição da tabela.
urbanísticos citados anteriormente. Essa informação foi conflitante com os representantes da sociedade civil consultados sobre a mesma questão, 10,53% destes alegaram a existência do Consórcio Imobiliário, Usucapião Urbano e Desapropriação, ratificando a divergência. O instrumento Estudo Prévio de Impacto ambiental (EIA) decresceu sua participação no universo dos municípios consultados, passou de 5, em 2002, para 4, em 2006, os municípios que assumem tal instrumento. Do ponto de vista ambiental isso pode significar uma deterioração quanto à qualidade do ambiente. Todos os demais instrumentos apresentaram forte crescimento quanto à sua adoção por parte dos municípios da RMBH. Destacam-se: IPTU Progressivo no Tempo, Direito de Superfície e Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios,
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231
que em 2002 eram os menos adotados e em 2006 aparecem entre aqueles mais mencionados. O instrumento Direito de Superfície, dentre os 31 municípios, aparecia em apenas 3,23%. Em 2006, dos 31 municípios apenas 19 tiveram os questionários validados para coordenador técnico, destes 61,11% afirmaram possuir o instrumento. O mesmo aconteceu com o Parcelamento, Edificação ou Utilização compulsórios. Já o IPTU Progressivo no Tempo teve ampliação ainda maior no que se refere à sua difusão dentro da RMBH. Em 2002, era nula sua adoção. Em 2006, dos 18 questionários validados para esse recorte espacial, esteve presente em 72,22% dos municípios, segundo os coordenadores técnicos do Plano Diretor. Os dados de representantes da sociedade civil e também dos coordenadores políticos reforçam essa informação. Outorga Onerosa do Direito de Construir, Transferência do Direito de Construir e Operação Consorciada, representavam 3,23% do total de municípios no ano de 2002. Em 2006, a Construir e Operação Consorciada constava em 51,61 municípios, enquanto a Transferência do Direito de Construir em 45,16% No ano de 2006 a grande maioria dos instrumentos os atores convergem para uma direção na maioria dos casos. Em apenas três casos, Consórcio imobiliário, Usucapião Urbano e Desapropriação, houve divergência significativa entre os atores do Plano Diretor. A pesquisa tinha também o objetivo de analisar a natureza das políticas públicas municipais em matéria de habitação executadas na Região Metropolitana de Belo Horizonte – RMBH; e identificar as experiências alternativas de habitação popular existentes na RMBH a fim de avaliar a natureza deliberativa dessas políticas, bem como a efetividade do direito fundamental à moradia previsto no artigo 6º da Constituição Republicana de 1988. Em razão da grande recusa, por parte dos entrevistados, em responder o questionário formulado incorporando esse análise, o segundo objetivo não foi cumprido. Esse obstáculo ocasionou uma mudança de trajetória no objeto da pesquisa que, então, passou a avaliar a efetividade dos processos participativos de tomada de decisão. 5. CONCLUSÃO (i) Apesar de considerados participativos, o grau de divergência entre os atores pesquisados sobre a existência nos planos diretores de seus municípios de instrumentos de política urbana, previstos no Estatuto da Cidade, demonstra que a compreensão desses instrumentos não para parece ter sido apreendida, tanto pelo poder público, quanto pela sociedade civil local. Várias razões podem justificar esse resultado, entre elas, a ausência do que Pettit (2007) denomina de capacidade raciocinativa de participar e que Habermas (2006) denomina condições ideais de fala. Em outras
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008
palavras, os atores não compreenderam o significado desses instrumentos no processo de elaboração dos planos diretores. O que poderá comprometer a efetividade e a eficiência de seus resultados. Em síntese, a utilização dos instrumentos de política urbana, se existente, parece ter sido apenas nominal. (ii) Nesse sentido, a legitimidade dos planos diretores elaborados por esses municípios parece ter sido apenas formal, uma vez que seus atores não foram capazes de sustentá-la de forma coerente. Por outro lado, se consideramos, a democracia como processo, como sustenta Habermas (2006), um grande passo foi dado em direção à concretização do planejamento urbano participativo. (iii) Por fim, no que se refere ao direito à moradia, pode-se dizer que evoluímos em direção à concretização do direito à cidade sustentável. Ao menos, sob o aspecto quantitativo, uma vez que boa parte dos planos diretores incorporaram instrumentos de política urbana diretamente vinculados ao direito de propriedade. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Sérgio de. Políticas Públicas: discutindo modelos e alguns problemas de implementação. In: Santos Júnior, Orlando Alves dos...[et alli], (organizadores). Políticas Públicas e Gestão Local: Programa interdisciplinar de capacitação de conselheiros municipais. Rio de Janeiro: FASE, 2003. BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. 11. ed. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. CIVIL. Código (2002) Código Civil. 12. ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 2006. GODINHO, Maria Helena de Lacerda & MENDONÇA, Jupira Gomes de (Orgs). (2003) População, Espaço e Gestão ma Metrópole: Novas Configurações, Velhas Desigualdades. Belo Horizonte: PUC MINAS, 2003. GODINHO, Maria Helena de Lacerda & NAVARRO, Renato Godinho.(2002) Movimentos Sociais (Populares), Conselho Municipal e Órgão Gestor na Definição e Implementação da Política Habitacional em Belo Horizonte – Década de 1990. IN: Cadernos Metrópole: Desigualdade e Governança. São Paulo: EDUC/Pronex/CNPq, Nº 7. GODINHO, Maria Helena de Lacerda & NAVARRO, Renato Godinho. (2005) Orçamento Participativo da Habitação e Democratização na Gestão da Política Habitacional em Belo Horizonte. IN: AZEVEDO, Sérgio de & FERNANDES, Rodrigo Barroso (Orgs). Orçamento Participativo: Construindo a Democracia. Rio de Janeiro: Renavan, 2005. HABERMAS, Júrgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. Tradução George Sperber, Paulo Astor Soethe, e Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. HESSE. Konrad. A força normativa da constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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6 FORMAS E INSTRUMENTOS DE REGULAÇÃO DO MERCADO DE TERRAS
Dinâmica Urbana e a Legalização da Produção do Espaço (I)Legal KÊNIA
DE
SOUZA BARBOSA
Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Minas Gerais e Mestranda do Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais.
RESUMO: Este trabalho busca refletir sobre a produção da (i)legalidade e da legalidade do espaço urbano e o impacto dos programas governamentais de regularização de (i)legalidades na dinâmica urbana e no mercado do solo formal. Ao longo das últimas duas décadas a questão da (i)legalidade da propriedade do solo urbano vem ganhando destaque nas discussões das cidades no Brasil e, mais intensamente nos últimos anos, diversas cidades têm procurado formular e implantar políticas de regularização fundiária desses assentamentos ilegais, como é o caso das favelas brasileiras, visando a promover a urbanização das áreas e reconhecer os direitos dos moradores.
1. INTRODUÇÃO O rápido processo de urbanização das cidades brasileiras, associado ao surgimento de graves problemas urbanos, torna muito complexa a prática do planejamento e da gestão do solo. O padrão de urbanização brasileiro criou cidades segregadas, onde de um lado tem-se a cidade formal, que concentra os investimentos públicos e de outro lado a cidade informal, que cresce exponencialmente na ilegalidade urbana, sem atributos de urbanidade, exacerbando as diferenças socioambientais. Este trabalho busca refletir sobre a produção da (i)legalidade1 e da legalidade do espaço urbano e o impacto dos programas governamentais de regularização de (i)legalidades na dinâmica urbana e no mercado do solo formal. 1
Como considerar ilegalidade a situação de uma grande parcela das famílias moradoras dos territórios urbanos brasileiros, que mora em favelas em áreas públicas, favelas em áreas privadas, cortiços, loteamentos clandestinos e irregulares, conjuntos habitacionais ocupados e sob ameaça de despejo e casas sem habite-se? Que legalidade é essa, se grande parte da cidade é ilegal? Por isso, estou utilizando o “i” entre parênteses.
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238
Ao longo das últimas duas décadas a questão da (i)legalidade da propriedade do solo urbano vem ganhando destaque nas discussões das cidades no Brasil e, mais intensamente nos últimos anos, diversas cidades têm procurado formular e implantar políticas de regularização fundiária desses assentamentos ilegais, como é o caso das favelas brasileiras, visando a promover a urbanização das áreas e reconhecer os direitos dos moradores. 2. LEGALIDADES E (I)LEGALIDADES DO ESPAÇO URBANO O crescimento das cidades brasileiras intensificou-se a partir da década de 30, do século XX. Em 1950 o índice de urbanização do país era de 36%; em 1970, 56%; em 1990, mais de 77%; atualmente o índice supera os 80%. Ou seja, dos mais de 176 milhões de habitantes, mais de 140 milhões habitam as cidades brasileiras. 180.000.000 160.000.000
População
140.000.000 120.000.000 100.000.000
Total Urbana
80.000.000 60.000.000 40.000.000 20.000.000 0
1940
1950
1960
1970
1980
1991
2000
Anos
Gráfico 1 – Brasil, População Total e População Urbana de 1940 a 2000. Fonte: Santos. M. A Urbanização Brasileira, ed. Hucitec 1994 e IBGE, 2002. 90 Percentual de urbanização
80 70 60 50
Índice de urbanização
40 30 20 10 0
1940
1950
1960
1970
1980
1991
2000
Anos
Gráfico 2 – Brasil – Índice de Urbanização de 1940 a 2000. Fonte: Santos, M. A urbanização brasileira, ed. Hucitec, 1994 e IBGE, 2002.
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O intenso crescimento urbano nas grandes cidades brasileiras foi acompanhado da deterioração das condições de vida da maior parte da população. Uma parcela significativa da população é excluída do acesso à terra urbana e da moradia. O déficit habitacional estimado em 2005 foi de 7.902.699 moradias no país, o que significa 14,9% do total do estoque de domicílios. Em números absolutos, o déficit habitacional está predominantemente concentrado nas áreas urbanas (6.414.143 domicílios), dos quais 34,7%, ou 2.226.730, nas regiões metropolitanas.2 As ocupações irregulares de terrenos urbanos para moradia da população de baixa renda se repetem na maioria das cidades. Associado às ocupações irregulares, há ainda a inadequação das moradias existentes, em virtude da precariedade, da insalubridade, da ilegalidade e da falta de infra-estrutura urbana. O acesso (i)legal/ informal e inadequado ao solo e à moradia acaba se tornando mais regra do que exceção. A grande maioria das cidades brasileiras convive, cotidianamente, com limitações e dificuldades institucionais no controle do solo urbano. Essas limitações vão desde o reduzido número de fiscais, com pouca qualificação e baixa remuneração, escassez no quadro técnico efetivo, cadastro imobiliário desatualizado/subutilizado, passando pelo desconhecimento por parte do cidadão das legislações urbanísticas, uma arraigada relação de clientelismo entre o poder público e os cidadãos, até chegar a um grande número de situações de ilegalidades urbanas (obras sem alvará, ocupação irregular dos passeios, invasões e ocupações de áreas públicas e privadas e loteamentos irregulares, públicos e privados). Predominam nas cidades as construções fora das exigências legais. De acordo com MARICATO (2000): “(...) a maior parte das nossas cidades se constitui de imóveis ilegais, tanto quanto ao uso ilegal do solo e a ilegalidade das edificações, se observado a Lei do Parcelamento do Solo, o Código de Obras e a Lei do Zoneamento” e “mesmo em relação à cidade formal, as administrações municipais são ineficazes em virtude da fragmentação de competências”.
As normas de edificações procuram estabelecer parâmetros detalhados sobre todos os aspectos das construções, incluindo tanto a relação da edificação com seu entorno (recuos, número de pavimentos, altura máxima) quanto a sua configuração interior (insolação, ventilação, dimensão de cômodos). A virtual impossibilidade de dar conta do excessivo nível de detalhe acaba por jogar na (i)legalidade a maior parte das edificações.
2
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2006.
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A persistência da informalidade, conforme mencionado por BIDERMAM (2008), em cidades da América Latina não pode ser totalmente explicada pelas taxas de pobreza, e pelo insuficiente investimento público em habitação social, infra-estrutura urbana e serviços. Há uma maior conscientização de que o mercado de terra urbana e as normas e regulamentos são também fatores contribuintes para a informalidade. Assim, inadequados regulamentos de uso do solo e códigos de obras reforçam outros fatores que já contribuem para a informal e irregular ocupação dos solos urbanos. Conforme explicitado por MARICATO (2000), “esta gigantesca ilegalidade não é fruto da ação de lideranças subversivas que querem confrontar a lei. Ela é resultado de um processo de urbanização que segrega e exclui”. A (i)legalidade em relação à posse da terra, além de fator de exclusão social da população de menor renda, é o principal agente do padrão de segregação espacial que caracteriza as cidades brasileiras. Esta dinâmica de urbanização e ocupação do território valoriza significativamente os terrenos situados nas áreas nobres, o que, ao mesmo tempo, exclui a população carente de acesso à terra e moradia através do mercado formal. 3. REGULARIZAÇÃO DE (I)LEGALIDADES Diante do caos urbano das nossas cidades, que refletem a situação subumana vivenciada por milhares de pessoas, não é surpreendente que os movimentos populares vêm reivindicando ações dos governos. “Foi somente nas últimas décadas que, com as mudanças no quadro político maior do país – causadas inicialmente, dentre outros fatores, pelo fortalecimento dos movimentos populares –, algumas administrações locais começaram a reconhecer os direitos dos favelados de terem acesso ao solo urbano e à moradia. Vários programas de regularização de favelas já foram formulados com vistas a promover tanto a urbanização quanto à legalização das favelas existentes.”3.
Nesse sentido, tornou-se necessária uma legislação que avançasse nas questões do direito à cidade para todos e também do direito à moradia digna. Neste contexto, dois arcabouços legais são importantes: a inserção na Carta Magna, em seu artigo 6º, do direito à moradia; e a criação do “Estatuto da Cidade”4. Em decorrência, principalmente, das obrigações assumidas perante a comunidade 3
SAULE JÚNIOR (1999).
4
Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.
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internacional, o Brasil inseriu no texto legal, através da Emenda Constitucional nº 26/2000, o direito à moradia como um direito fundamental dos cidadãos brasileiros. O texto legal assim descreve: “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Já o Estatuto da Cidade, desde sua aprovação pelo Congresso Federal, em julho de 2001, tem sido celebrado como um marco decisivo na legislação urbana, oportunizando a possibilidade da prática do planejamento e da defesa e preservação do ambiente urbano. Em 2003 criou-se no Brasil um órgão governamental superior dedicado exclusivamente às questões urbanas – o Ministério das Cidades –, através do qual vem sendo propostas ações e programas, visando a regularização fundiária de assentamentos (i)legais, promovendo a urbanização das áreas e reconhecendo os direitos dos moradores. Dentre as ações e programas federais executados nos últimos anos, conforme dados do Ministério das Cidades, destacam-se: 1) Apoio à Melhoria das Condições de Habitabilidade de Assentamentos Precários – programa voltado principalmente ao apoio a estados, Distrito Federal e municípios para melhorar as condições de habitabilidade de populações residentes em assentamentos humanos precários, reduzir riscos mediante sua urbanização, integrando-os ao tecido urbano da cidade; 2) Programa Habitar Brasil BID – HBB – programa que destina recursos para o fortalecimento institucional dos municípios e para a execução de obras e serviços de infra-estrutura urbana e de ações de intervenção social e ambiental, por meio, respectivamente, do Subprograma de Desenvolvimento Institucional (DI) e do Subprograma de Urbanização de Assentamentos Subnormais (UAS). A promoção de regularização fundiária é hoje vista por instituições financeiras internacionais (incluindo o Banco Mundial) como sendo a condição essencial para ampliação do mercado nas cidades e para a reativação da economia urbana. De fato, o Banco Mundial tem imposto a outorga de títulos de propriedade como condição para liberação de recursos, inclusive em vários países da América Latina, com base no argumento de que, entre outros efeitos, a segurança da posse e consequente acesso ao crédito formal farão com que os moradores invistam em seus lotes e casas, assim reativando a economia urbana como um todo.5 5
FERNANDES (2001).
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Compartilho com FERNANDES (2006) do receio em relação à justificativa econômica para a regularização da titulação nesses assentamentos (i)legais, principalmente na modalidade da outorga de títulos de propriedade individual plena, ao invés de recorrer aos tradicionais argumentos humanitários, religiosos e sóciopolíticos. Diante desse contexto, o cenário pode representar um retrocesso para as políticas públicas de regularização, conforme acrescentou FERNANDES: “(...) a mera atribuição de títulos individuais de propriedade pode até garantir a segurança individual da posse, mas com frequência acaba fazendo com que os moradores vendam suas novas propriedades e sejam “expulsos” para as periferias precárias, em muitos casos invadindo novas áreas – onde o mesmo processo de ilegalidade começa novamente.”
Nessa perspectiva, conforme dito por FERNANDES (2006), “não são os grupos pobres, mas sim os (velhos e novos) grupos econômicos privados ligados ao desenvolvimento da terra urbana que mais uma vez se beneficiariam do investimento público na urbanização dessas áreas, geralmente bem localizadas e atraentes”. 4. NOVOS IMÓVEIS PARA O MERCADO DO SOLO FORMAL O processo de regularização fundiária desses assentamentos, ao promover a urbanização das áreas e atribuir títulos de propriedade, acaba incorporando esses locais ao mercado do solo formal das cidades. Se considerarmos os estudos e constatações abaixo, sobre a renda da terra urbana, urbanização e mercado informal, veremos que esse “novo” produto do mercado imobiliário já é em si contraditório, reflexo do processo de produção do espaço urbano capitalista, do mercado imobiliário e da atuação do Estado. Algumas constatações que seguem demonstram exatamente a complexidade desse “novo” produto que surge ao mercado formal. 1. “(...) A terra e um bem não produzido que, portanto, não tem valor, mas adquire preço. Ora, um bem não produzido não pode ter seu preço regulado pela lei da oferta, pois não há lei regulando a sua oferta. É a procura que suscita o preço da terra e não o encontro do mercado de produtores e compradores de solo.”6 2. “A produção de espaço urbano se dá, em geral, pela incorporação à cidade de glebas que antes tinham uso agrícola.”7
Os “novos” imóveis provenientes do processo de regulação fundiária e que são incorporados ao mercado formal não surgiram pela procura dos consumidores e 6
RIBEIRO (1997).
7
SINGER (1979).
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também não eram glebas rurais. No entanto, os “novos” imóveis se tornarão um novo produto do mercado imobiliário. 3. “A propriedade privada da terra urbana coloca-se como obstáculo ao investimento no setor (habitacional). (...) a cada processo produtivo o capital encontra diante de si o proprietário fundiário que exige dela uma renda para permitir o uso do solo.”8 4. “(...) Cada processo produtivo é necessário um novo solo. Isto faz com que a propriedade privada da terra urbana se apresente como um obstáculo maior para o capital investido neste ramo (produção de moradias)...”9
É necessário avaliar se os processos de regularização fundiária, principalmente na modalidade da outorga de títulos de propriedade individual plena, não estariam contribuindo para dificultar o acesso à moradia as famílias de baixa renda. 5. “(...) A utilidade da moradia enquanto unidade central de consumo não é apenas definida pelas suas características internas enquanto ambiente construído. Seu valor de uso é também determinado pela sua articulação com o sistema espacial de objetos imobiliários que compõem o valor de uso complexo representado pelo espaço urbano.”10 6. “O gradiente de preços do mercado fundiário e imobiliário informal nas favelas não acompanha o gradiente de preços dos bairros legalizados contíguos as favelas. Esse resultado empírico é de grande importância, pois tanto o senso comum, como os modelos da economia urbana neoclássica atribuem a formação de preços nas áreas de favela um caráter reflexo do mercado formal. Isto é, os preços nas favelas seriam determinados pelos preços dos bairros onde elas se localizam com uma taxa de desconto em função de algumas características internas, tais como grau de violência e estágio da urbanização. O resultado empírico da nossa pesquisa sobre a cidade do Rio de Janeiro permite concluir que há uma lógica interna aos mercados informais que determinam os seus preços; uma lógica endógena na formação dos preços e que deve ser identificada a partir de variáveis e características do território da(s) favela(s).”11
A dinâmica urbana, em especial a questão imobiliária e a produção da (i)legalidade do espaço urbano, que poderá surgir com a implantação dessa política de regularização fundiária nacional merece reflexões e estudos. Esses novos imóveis, ao entrarem no mercado formal, poderão acabar elevando o preço da moradia, se consideramos, por exemplo, que esses imóveis tornariam os “piores” imóveis formais e assim teriam os preços dos “piores” imóveis antes deles entrarem no mercado formal. Nesse caminho, os grupos econômicos privados – sobretudo, ligados ao de-
8
RIBEIRO (1979).
9
RIBEIRO (1997).
10
RIBEIRO (1997).
11
ABRAMO (2005).
244
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senvolvimento da terra urbana – é que mais uma vez se beneficiariam do investimento público na urbanização dessas áreas. Dessa forma, numa visão muito pessimista, a regularização fundiária estaria consolidando a dinâmica da máquina de produzir favelas e as políticas públicas correndo sempre atrás do prejuízo. Outra possibilidade é surgir um novo mercado imobiliário que não seguirá os mecanismo do mercado formal e nem do mercado informal, se considerarmos, por exemplo, que esses “novos” imóveis não foram produzidos em função da incorporação à cidade de glebas que antes tinham uso agrícola e que também não foram regulados pela “lei” da procura da terra. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os assentamentos informais em áreas urbanas decorrem, principalmente, da carência de políticas adequadas de moradia – inacessíveis e insuficientes, ressalta-se –, mercados especulativos formais e informais, sistemas políticos clientelistas, legislação e planejamento urbano elitistas e tecnocráticos. Vários são os impactos e implicações causados pela produção desse espaço (i)legal. Na questão social, geram a exclusão e marginalidade; na questão jurídica, a falta de segurança da posse. Na prática política, produz a vulnerabilidade e o clientelismo. Na questão econômica, reproduz cidades caras para os pobres. Na questão ambiental, geram as ocupações de áreas de preservação, áreas de risco e diversas outras formas de poluição. É visível, na atualidade, a flexibilização da legislação brasileira na promoção do acesso à moradia, através do incremento de normas mais brandas, quer seja pela criação de novos institutos (posse-trabalho, usucapião coletiva) ou pela revitalização de instrumentos existentes (usucapião ordinária, direito de uso), além de haver uma contínua legalização de situações (i)legais, visando assim facilitar o acesso à moradia e a melhoria das condições das moradias nas favelas, assentamentos e ocupações ilegais ou irregulares em condições subumanas. O Estado vem legalizando assentamentos e ocupações (i)legais, bem como, urbanizando-os, dotando-os de melhor infraestrutura com instalação de escolas, praças, áreas de lazer, saneamento básico, luz e água. É importante que todo esse esforço nessas políticas públicas consiga ao mesmo tempo legalizar o (i)legal, promovendo a urbanização das áreas e reconhecendo os direitos dos moradores, e, principalmente, assegurar a permanência das comunidades nas áreas onde têm vivido. É importante que as políticas de regularização fundiária busquem assegurar a regularização jurídica, urbanística, espacial e social. Só a regularização jurídica não basta. São necessários instrumentos e ações que garantam a permanência da população beneficiada e que dificultam as ações pervessas do mercado imobiliário.
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É fundamental evitar o surgimento de novos assentamentos irregulares em outras áreas da cidade pelo deslocamento de famílias previamente atendidas por programas de regularização fundiária e urbanização. É imprescindível que todas essas ações não se traduzam no desperdício do dinheiro público e na necessidade de novos empenhos para essa (mesma) população excluída. Por fim, as políticas de regularização só serão efetivas se aplicadas em conjunto com outras políticas que evitem a ilegalidade urbana, pois, do contrário essas políticas de regularização de terras serão funcionais à enorme indústria de produção urbana (i)legal e legal. 6. REFERÊNCIAS ABRAMO, Pedro. O mercado de solo informal em favelas e a mobilidade residencial dos pobres nas grandes metrópoles: notas para delimitar um objeto de estudo para a América Latina. IPPUR, Rio de Janeiro. 2005. (paper) ______. Uma teoria econômica da favela: quatro notas preliminares sobre teoria econômica da favela: localização residencial e mercado imobiliário. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, ano 16, n.2. 2002. ARANTES, Otilia B. F.; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos B. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. 192 p. BIDERMAN, Ciro; SMOLKA, Martim; SANTANNA, Anna. Urban Housing Informality: Does Building and Land Use Regulation Matter?. Land Lines. Lincoln Institute of Land Policy. USA, v.20, n. 3, p. 14-19, julho.2008. BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (Org). As cidades da cidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. 197p. (Coleção IEAT). BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 estabelece as diretrizes gerais da política urbana e dá outra providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 de julho de 2001. ______. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 06, de outubro de 1988. FERNANDES, Edésio (org). Direito Urbanístico e Política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia(Orgs). A lei e a ilegalidade na produção do espaço urbano. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 485 p. FERNANDES, Edésio. Legalizando o ilegal. In: BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (Org). As cidades da cidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. p. 141-143. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO; BRASIL. Déficit habitacional no Brasil 2005. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estatística e Informações, 2006. 120 p. MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In: ARANTES, Otilia, MARICATO, Ermínia & VAINER, Carlos. A cidade do pensamento único. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. p. 121-192.
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7 A REVISÃO DA LEGISLAÇÃO DO PARCELAMENTO DO SOLO URBANO – BALANÇO E NOVAS PERSPECTIVAS
O Direito à Cidade e a Revisão da Lei de Parcelamento do Solo Urbano NELSON SAULE JÚNIOR
A lei federal do parcelamento do solo urbano esta sendo objeto de revisão no Congresso Nacional através do projeto de lei 3057-2000. O presente trabalho visa analisar as proposições referentes aos requisitos urbanísticos e ambientais para os novos parcelamentos do solo urbano, o tratamento dos condomínios urbanísticos e loteamentos fechados, e o tratamento sobre a regularização fundiária de interesse social e de interesse específico. O objetivo do trabalho é promover uma análise crítica a apresentar propostas sobre estes tópicos de modo que a revisão desta lei seja voltada a assegurar o desenvolvimento do direito á cidade nos termos do Estatuto da Cidade. 1. A EVOLUÇÃO DAS LEGISLAÇÃO DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO 1.1 A finalidade da Lei de Parcelamento do Solo Urbano As periferias dos grandes centros urbanos são ilustrativas do processo de implantação de loteamentos urbanos sem infra-estrutura urbana ou sem autorização do Poder Público, o que resultou numa ocupação sem padrões mínimos de qualidade ambiental de grande parte do território destas cidades. Na cidade de São Paulo, por exemplo na década de 20 do século XX, a Lei Municipal nº 2.611/23 definiu regras para a abertura de loteamentos, o que significava a associação da atividade de arruar com o uso e ocupação do lote. Esta lei municipal determinou-se à apresentação de um plano de loteamento após a obtenção de diretrizes. O plano deveria ser apresentado com curvas de nível de metro em metro, definindo o arruamento e os espaços livres, o nivelamento das vias e o sistema de escoamento das águas pluviais. Exigia-se a doação de áreas para o Poder Público: 20% para as vias e 5,7% ou 10% para espaços livres. O lote mínimo deveria ser de 300 metros quadrados, com frente mínima de 10 metros.
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Esta lei estabelecia que se o armador não observasse os critérios para abertura de rua, com a colocação da parte que lhe competia em infra-estrutura, poderiam ser abertas ruas particulares, que não seriam consideradas, no entanto, como ruas oficiais. Logradouros particulares foram se multiplicando na cidade, sobretudo na periferia, sem nenhum critério de articulação com as vias já existentes; sem nenhum cuidado especial quanto à declividade (na maioria das vezes muito acentuada) e sem nenhuma preocupação com os espaços públicos. No final da década de 30 do Século XX o parcelamento do solo urbano passou a ser disciplinado por meio de legislação federal. O Decreto Lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937 e o Decreto nº 3.079, de 15 de setembro de 1938, passaram a exigir dos loteadores obrigações referente a infra-estrutura e projeto de parcelamento do solo, dispor de regras contratuais sobre a compra de terrenos mediante pagamentos em prestações – não tiveram eficácia para conter a proliferação de loteamentos populares sem condições de habitação adequadas. A proibição de construção de habitações coletivas para população de baixa renda na região central da cidade de São Paulo por exemplo, foi determinante para a proliferação de loteamentos populares na periferia sem autorização do Poder Público e sem atender as exigências da legislação de parcelamento do solo.1 Com o objetivo de reverter esta situação de deterioração das áreas urbanas, foi instituída a Lei 6.766/79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano contendo como normas gerais normas gerais definições sobre Modalidades de Parcelamento – Loteamento ou Desmembramento, Lote e Infra-estrutura básica de Parcelamento, Áreas passíveis de Parcelamento para Fins Urbanos. A Lei de Parcelamento do Solo Urbano disciplina as seguinte matérias: a) Modalidades de parcelamento: A lei define Loteamento como a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias 1
Sobre os efeitos da legislação urbanística na proliferação dos loteamentos irregulares na cidade de São Paulo, Marta Dora Grostein, em sua tese sobre “A cidade clandestina: os ritos e mitos”, ilustra com muita clareza esta situação: “No decorrer das quatro primeiras décadas, foram criadas as condições para que a clandestinidade e a irregularidade se estabelecessem como prática de parcelamento do solo para fins urbanos. A sua reprodução até a década de 50 deve-se, entre outras causas, aos aspectos relacionados com os instrumentos normativos e administrativos. Quanto aos normativos, podemos destacar que as ‘ruas particulares’ eram permitidas por lei; era possível construir-se com planta aprovada (isto é, com o reconhecimento oficial) mesmo nas ruas particulares do município (que, como vimos, confundem-se com as clandestinas); era possível incorporar à cidade oficialmente constituída os arruamentos e loteamentos abertos e executados em desacordo com a lei; a legislação contemplava um único tipo de loteamento urbano, independente das classes sociais a que se destinassem e, finalmente, não havia apoio legal para punir o loteador clandestino, uma vez que prevalecia uma posição ambígua do Estado, na qual a intervenção na propriedade privada era vista como indevida, ainda que interferindo nos aspectos coletivos da vida urbana. (GROSTEIN, Marta Dora, A cidade clandestina: os ritos e os mitos, Tese de Doutoramento, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, FAU-USP, São Paulo, 1987, p. 541.)
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existentes. A lei define como desmembramento é a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes. A lei define parcelamentos de interesse público como aqueles vinculados a planos ou programas habitacionais de iniciativa das Prefeituras, ou entidades públicas, bem como os destinados a regularização de parcelamento de assentamentos. b) Requisitos Urbanísticos para Loteamento: a lei define como lote o terreno servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situa. A infraestrutura básica dos parcelamentos é constituída pelos equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação. Nos parcelamentos situados nas zonas habitacionais declaradas por lei de interesse social a iluminação pública, energia elétrica pública e pavimentação deixam de ser parte da infra-estrutura básica. A lei determina que o parcelamento do solo urbano é admitido nas zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização especifica assim definidas no plano diretor ou aprovadas por lei municipal. A lei não contém uma definição sobre o que são zonas urbanas ou de expansão urbana. A lei define as áreas que não podem ter parcelamento do solo urbano tais como terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, terrenos em que tenham sido aterrados com material nocivo a saúde pública, áreas de preservação ecológica. A lei estabelece como requisitos urbanísticos para loteamento a necessidade de áreas destinadas a sistemas de circulação, implantação de equipamento urbano e comunitário, espaços livres de uso público (praças). Os lotes devem ter área mínima de 125 m2 e frente mínima de 5 metros. Quando se tratar de loteamento em áreas de urbanização específica ou para edificação de conjuntos de habitação de interesse social o lote poderá ser menor através de legislação estadual ou municipal. c) Responsabilidades do Loteador e do Poder Público; d) Elementos do Projeto do Loteamento e Desmembramento; e) Aprovação e Registro do Parcelamento do Solo; f) Define as competências do Município e do Estado para o parcelamento do solo urbano. Cabe ao Estado disciplinar por decreto a aprovação pelos Municípios de loteamentos e desmembramentos localizados em áreas de proteção especial como de mananciais, patrimônio cultural ou histórico,em mais de um Município,em regiões metropolitanas quando abranger área superior a 1 milhão de m2.
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g) Relações Contratuais – Loteador e Adquirentes de Lotes. A lei disciplina as relações contratuais entre loteadores e compradores de lotes urbanos definindo quais são os componentes dos compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão que valem como título para o registro da propriedade do lote adquirido. A lei admite nos parcelamentos populares a cessão de posse em que estiverem provisoriamente imitidas a União, Estados e Municípios, que tem caráter de escritura pública. A lei estabelece medidas de proteção ao adquirente de lote urbano. No caso de loteamento que não foi registrado ou regularmente executado de acordo com o projeto aprovado na Prefeitura, o adquirente do lote pode suspender o pagamento das prestações restantes e notificar o loteador a cumprir com as suas obrigações. h) O Papel do Poder Público na Regularização de Parcelamento Irregular; i) Critérios Específicos para a Regularização de Parcelamentos de Interesse Social promovidos pelo Poder Público. A lei estabelece a competência para a Prefeitura Municipal regularizar loteamento ou desmembramento implantado de forma irregular pelo loteador. Esta competência não exclui a responsabilidade do loteador pela implantação de loteamento irregular. j) Infrações e Crimes de Parcelamento do Solo. Alei tipifica os crimes contra a Administração Pública referente ao parcelamento do solo urbano. Exemplo são crimes dar início ou efetuar loteamento sem autorização da Prefeitura, ou sem cumprir com as exigências do Poder Público determinadas na licença que aprovou a implantação do loteamento. k) Requisitos para a modificação de área rural para área urbana para fins de implantação de parcelamento urbano. Esta alteração depende de prévia anuência do INCRA, do órgão metropolitano se houver, onde se localiza o Município, e da aprovação da Prefeitura Municipal. A lei de parcelamento do solo estabelece os padrões urbanísticos mínimos para implantação de loteamento urbano, tais como, sistema viário, equipamentos urbanos e comunitários, áreas públicas; bem como as responsabilidades dos agentes privados (proprietários, loteadores, empreendedores) e do Poder Público; e tipifica os crimes urbanísticos. A Lei nº 6.766 substituiu o Decreto-lei nº 58/37 para o parcelamento do solo urbano. O Decreto-lei, que vigeu até 19 de dezembro de 1979, teve mais a intenção de proteger os compradores de lotes, por meio de pagamento parcelado do preço total, do que uma preocupação urbanística. Desta forma, previamente, o parcelador deveria basicamente apresentar o plano de loteamento firmado pelo profissional habilitado e o modelo de contrato irretratável de compromisso de venda e compra
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perante o Cartório de Registro de Imóveis competente e fazer registrar o primeiro. A partir do registro, poderia comercializar os lotes. A planta do parcelamento registrado deveria ser previamente aprovada pela Prefeitura Municipal, apenas para os parcelamentos urbanos (art. 1º, § 1º). Todavia, não eram dados critérios urbanísticos para esta aprovação. A Lei nº 6.766/79 fixa os índices urbanísticos para a aprovação de parcelamentos urbanos em todo o território nacional. O parcelador deverá primeiramente aprovar a planta de parcelamento na Prefeitura Municipal (arts. 12/17) para posteriormente registrá-lo (arts. 18/24). O depósito do modelo de contrato, no Cartório de Registro de Imóveis, continuou obrigatório (arts. 25/36). A venda de lotes de parcelamento não registrado restou proibida (art. 37) e a conduta criminalizada (arts. 50/51). Vale observar que, na hipótese de parcelamento de solo dentro de área metropolitana, região de mananciais, ou se a gleba a ser parcelada perfizer mais de 10 milhões de metros quadrados, antes do registro, o loteamento deverá ser aprovado pela instância designada em lei estadual (art. 13). O grande benefício trazido pela lei do parcelamento do solo urbano, foi reconhecer a competência dos Municípios para regularizarem os parcelamentos feitos ilegalmente dentro de seus territórios (arts. 40/41). E, ainda, trouxe a possibilidade de parcelamentos especiais para a população de baixa renda (art. 4º, II, in fine). A admissão de tamanhos de lotes diferenciados para loteamentos de interesse social aprovados, mesmo não tendo alterado o regime jurídico para a produção de moradias de interesse social, representou um avanço, na medida em que possibilitou a regularização, pelo Município, de casas populares construídas em parcelamentos informais. 1.2. A competência do Município na Lei do Parcelamento do Solo Urbano A irregularidade do loteamento ocorre quando o loteador obtém a aprovação do projeto de loteamento pelos órgãos competentes do Município, efetua o registro do loteamento no Cartório de Registro de Imóveis, porém, não executa as obras de infra-estrutura necessárias que constam do projeto de loteamento aprovado. Outra situação que caracteriza o loteamento irregular ocorre quando o loteador apresentou o projeto de loteamento para a aprovação do órgão público municipal competente, sem atender às outras etapas necessárias para a sua implantação, nos termos da lei 6.766/79, como a execução das vias de circulação do loteamento, ou a demarcação dos logradouros públicos. O loteamento é irregular em razão das irregularidades físicas ou urbanísticas, quais sejam, as que tocam à questão de ausência de infra-estrutura e de áreas públicas, e as irregularidades jurídicas, concernentes aos obstáculos existentes para o registro
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do loteamento, consistentes, principalmente, na incorreção do título de propriedade da gleba. Os loteamentos irregulares são parcelamentos do solo urbano que obtiveram aprovação do Poder Público municipal, mas que não foram executados conforme o ato administrativo da aprovação. Os loteamentos clandestinos são aqueles que não obtiveram nenhuma aprovação por parte do Poder Público municipal e surgem diante da inércia da Administração Pública em fiscalizá-los. Uma situação de irregularidade muito comum ocorre quando as ocupações de áreas, que foram objeto de parcelamento do solo com a aprovação do projeto de loteamento no Poder Público, não atendem o traçado oficial do loteamento. Geralmente, são ocupadas as áreas destinadas para as vias de circulação, áreas verdes e equipamentos comunitários. Muitas vezes, as casas são construídas em desacordo com a divisão dos lotes. Os conjuntos habitacionais promovidos por órgãos e instituições do Poder Público responsáveis pela execução de programas habitacionais, muitas vezes são construídos sem atender às exigências da lei de parcelamento do solo e da legislação municipal de uso e ocupação do solo. Situação comum é a falta de infra-estrutura ou do registro público do empreendimento no Cartório de Registro de Imóveis competente. O estabelecimento de normas e procedimentos para o parcelamento do solo urbano é de competência do Município. Segundo a Constituição Federal, nos termos dos incisos I e VIM do artigo 30, é competência do Município legislar sobre assuntos de interesse local; e promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Se o Município tem a atribuição constitucional para condicionar o exercício do direito da propriedade urbana aos objetivos, diretrizes e metas da política urbana municipal decorrente desta atribuição, cabe ao Município, no próprio Plano Diretor em que este for obrigatório, por exemplo, dispor dos critérios, instrumentos e procedimentos para efetuar a regularização dos loteamentos irregulares existentes em seu território. Neste sentido, Paulo José Villela Lomar, Toshio Mukai e Alaor Caffé Alves têm o mesmo entendimento sobre a competência do Município para dispor sobre a aprovação do parcelamento do solo urbano: “Apesar de fixar normas urbanísticas genéricas, padrões mínimos válidos para todo o território nacional, o ato de aprovação do parcelamento do solo urbano continua sendo de exclusiva competência do município (ou do Distrito Federal), em atenção ao peculiar interesse local
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na matéria (art. 15,11, da CF), salvo nas hipóteses exaradas no art.13, em que esse ato de aprovação implicará, na sua formação, a anuência prévia do Estado.”2
A competência exclusiva do Município não se refere apenas à edição de normas para aprovação do loteamento urbano, mas também às regras para regularizá-lo, porque se trata de um assunto de predominante interesse local. A aprovação, a disciplina e a regularização do parcelamento do solo urbano são de competência municipal, sendo inválida qualquer exigência feita por parte de outros entes políticos, inclusive com relação às regras condicionadoras do registro imobiliário, criadas pelos órgãos do judiciário, responsáveis pelas corregedorias dos cartórios; os quais devem promover o necessário para que as normas que editam, a respeito da regularização de loteamentos, não interfiram na autonomia do Município. Os Municípios, por meio do Plano Diretor ou lei municipal específica (se o Plano Diretor não for obrigatório), devem estabelecer a política de regularização de loteamentos irregulares, que pode incluir as seguintes medidas3: – Delimitação das áreas com grande concentração de loteamentos irregulares, ou de loteamento irregular com elevada densidade populacional, como as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS. – Exigir do Poder Público, para os loteamentos irregulares delimitados como Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS, um plano de urbanização contendo normas especiais de parcelamento, uso e ocupação do solo e de edificações compatíveis com a realidade da ocupação existente, como principal instrumento de regularização do loteamento irregular. A delimitação dos loteamentos irregulares como Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS – no Plano Diretor, para o estabelecimento de um plano de urbanização com normas de urbanização específicas, atende à exigência do artigo 3º da lei nº 6.766, pelo qual somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos, em zonas urbanas de expansão urbana, ou de urbanização específica, assim definidas pelo Plano Diretor ou aprovadas por lei municipal. A delimitação das Zonas Especiais de Interesse Social em áreas com grande concentração de loteamentos irregulares, ou com loteamentos populares com elevada densidade populacional, caracteriza uma zona urbana de urbanização específica, possibilitando o estabelecimento de normas de parcelamento, uso e ocupação do solo 2
MUKAI, Toshio; ALVES, Alaôr Caffé e LOMAR, Paulo José Villela, Loteamentos e Desmembramentos Urbanos. Sugestões Literárias, São Paulo, 1980, p. 59.
3
Sobre as possibilidades legais de regularização dos loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares, ver o Manual: Regularização da Terra e Moradia – O Que é e Como Implementar, p 50-67.
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e de edificação específicas, no plano de urbanização, para fins de regularização de loteamentos irregulares. A atribuição preponderante do Município, na regularização de loteamentos e conjuntos habitacionais, não significa reduzir a importância das demais instituições públicas. No Poder Judiciário, a Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça tem um papel relevante para a instituição de provimento, simplificando os procedimentos de registro de loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares. As Varas Especializadas de Registros Públicos, também, mediante portarias internas, podem simplificar os critérios e procedimentos administrativos e judiciais para fins de regularização fundiária4. 1.3. As possibilidades de regularização fundiária na Lei de Parcelamento do Solo com base nas modificações da Lei nº 9.785 de 29/01/1999 Através da Lei nº 9.785 de 29 de janeiro de 1999, as alterações feitas na Lei nº 6.766/79, atenderam o objetivo de constituir instrumentos voltados à proteção do direito à moradia, mediante a proteção da segurança da posse da população moradora de assentamentos urbanos informais (conjuntos habitacionais e loteamentos populares destinados à população de baixa renda).5 Cacilda Lopes, em sua dissertação sobre as legislações de parcelamento do solo urbano, tem o seguinte entendimento sobre as modificações feitas na Lei nº 6.766/79 pela Lei nº 9.785/99; “...Constatamos que as alterações introduzidas pela Lei n. 9.785/99 na Lei n. 6.766/79, no tocante à flexibilização das normas quando o Estado promover empreendimentos imobiliários, tiveram como intuito minimizar a ausência, por longos anos, de investimentos em programas habitacionais. Isso em um quadro de profundas mudanças econômicas, que ocasiona o aumento de pessoas que não conseguem obter, mesmo com o trabalho, a garantia de habitação digna. O Estado, ao perceber que o modelo de acesso à terra no Brasil privilegia apenas
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No Estado do Rio Grande do Sul, o Provimento nº 77/99 – CGJ da Corregedoria Geral da Justiça instituiu o Projeto “More Legal II” que dispõe sobre os critérios e procedimentos para a regularização e registro de loteamento, desmembramento ou fracionamento de imóveis urbanos ou urbanizados. Por meio deste provimento, é valorizado o papel do município como o ente responsável pela regularização. Por exemplo, o parágrafo 5 do artigo 2 estabelece o seguinte: Nas regularizações coletivas, poderá ser determinada apresentação de memorial descritivo elaborado pela Prefeitura Municipal, ou por ela aprovado abrangendo a divisão da totalidade da área ou a subdivisão de apenas uma ou mais quadras. No Estado do Rio de Janeiro, o Provimento nº 108/85 da Corregedoria Geral de Justiça, simplifica o procedimento de depósito das prestações, aceitando simples recibos para a realização dos depósitos.
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Sobre a legislação de parcelamento do solo urbano recomendamos a seguintes leituras: Ministério Público do Estado de São Paulo/CAOHURB e Procuradoria Geral de Justiça – Temas de Direito Urbanístico – co-edição, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 1999. Ministério Público do Estado de São Paulo/CAOHURB e Procuradoria Geral de Justiça – Temas de Direito Urbanístico 3 – co-edição, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2001.
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determinadas classes sociais, o que não conseguiu atender a uma classe numerosa de miseráveis, promove alterações na legislação, instituindo um modelo dual de acesso a lotes: um para os pobres e outro para a classe média, já reproduzido em outros momentos da História. Uma legislação de parcelamento do solo que exclui determinadas classes sociais do acesso legal à terra causa grande impacto na produção dos espaços urbanos. A parcela da sociedade que não consegue obter habitação pelo modo tradicional de aquisição de lotes fica sujeita a outras formas de apropriação do espaço urbano. Dessa forma, são criados os espaços das favelas, dos cortiços, dos loteamentos clandestinos e irregulares e espaços mais privilegiados, como os loteamentos regulares, sem falar daqueles que não têm acesso a nenhuma dessas formas de moradia, vivendo em ruas, praças, marquises e viadutos.”6
Além da lei nº 6.766/79, também foram alteradas a lei de registros públicos e a lei sobre desapropriações de interesse público. Um dos principais benefícios trazido pelas alterações feitas a lei de parcelamento do solo urbano foi respeitar a competência constitucional atribuída aos Municípios para regularizarem os parcelamentos do solo feitos ilegalmente dentro de seus territórios. E, ainda, trouxe a possibilidade de parcelamentos especiais para a população de baixa renda. Esta alteração na lei de parcelamento de parcelamento do solo urbano representa um avanço, na medida em que não estabelece restrições e impedimentos à regularização, pelo Município, de casas populares construídas em parcelamentos informais. De acordo com as modificações feitas a regularização somente será permitida para parcelamentos em zona urbana ou de expansão urbana, ressalvados os índices urbanísticos estabelecidos pela legislação municipal para a zona. Portanto, a localização do parcelamento em zona urbana ou de expansão urbana deve ser entendida como um primeiro critério para a aprovação de novo loteamento ou para a regularização daqueles implantados irregularmente. Na alteração feita pelo artigo 3º, acrescenta o § 6º no artigo 2º, institui as Zonas Habitacionais de Interesse Social (ZHIS) como instrumento de regularização fundiária. Estas zonas devem ser declaradas por lei municipal. Outro instrumento estabelecido é a zona de urbanização específica para fins de parcelamento do solo urbano. Esta zona deve ser definida pelo Plano Diretor ou por lei municipal. AS ZHIS ou as zonas de urbanização específicas podem ser instituídas também como Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS. Outra medida importante é o reconhecimento das regularizações de parcelamento e de assentamentos como de interesse público. De acordo com o artigo 53, são considerados de interesse público os parcelamentos vinculados a planos e 6
LOPES, Cacilda, As Influências das Legislações de Parcelamento do Solo na Produção dos Espaços Urbanos. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2001, p. 94-95.
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programas habitacionais de iniciativa das Prefeituras Municipais e do Distrito Federal, ou de entidades autorizadas por lei; em especial as regularizações de parcelamentos e de assentamentos. Por meio desta norma, os conjuntos habitacionais executados pelo Poder Público que apresentem irregularidades com relação ao parcelamento, uso e ocupação do solo são considerados passíveis de regularização fundiária, tanto no aspecto urbanístico, como no aspecto jurídico; englobando a regularização do empreendimento no Cartório de Registro de Imóveis. Para as ações e intervenções destinadas à regularização dos loteamentos, não será exigível documentação que não seja a mínima necessária e indispensável aos registros nos cartórios competentes, vedadas as exigências e as sanções pertinentes aos particulares; especialmente, aquelas que visem a garantir a realização de obras e serviço, ou que visem a prevenir questões de domínio de glebas, que se presumirão asseguradas pelo Poder público responsável nos termos do parágrafo único do artigo 53-A. De maneira alguma, esta norma isenta o Poder público de implantar a infraestrutura e os equipamentos urbanos no conjunto habitacional. Esta obrigação tem fundamento tanto no direito da população beneficiária como consumidores, em função do contrato celebrado com o Poder Público, como no respeito ao direito à moradia. Esses fundamentos devem ser observados nos processos de regularização, de modo que a população atendida tenha uma moradia adequada; uma vez que a urbanização, visando à melhoria das condições habitacionais, é um dos componentes da regularização fundiária. 2. ESTATUTO DA CIDADE E O DIREITO À CIDADE – PRECEITOS NORTEADORES DA REVISÃO DA LEI DO PARCELAMENTO DO SOLO O Estatuto da Cidade é a lei federal de desenvolvimento urbano que dispõe sobre os princípios e as diretrizes fundamentais da política de desenvolvimento urbano com base na competência concorrente da União em legislar sobre direito urbanístico, as diretrizes previstas no artigo 2º do Estatuto da Cidade se configuram como as normas gerais de direito urbanístico. Considerando que as normas de parcelamento do solo urbano fazem parte das normas do regime do direito urbanístico, estas normas devem observar as diretrizes da política de desenvolvimento urbano prevista no Estatuto da Cidade. Neste sentido a revisão da lei do parcelamento do solo deve ser promovida em consonância com os princípios e diretrizes da política de desenvolvimento urbano nos termos das normas constitucionais da política urbana (em especial o artigo 182 e 183 da Constituição Federal) e das normas previstas no Estatuto da Cidade.
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A lei de parcelamento do solo urbana deve conter normas de ordem pública e interesse social que direcionem o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental, de modo que sejam respeitados os princípios das função social da propriedade e das funções sociais da cidade. Para o atendimento do princípio das funções sociais da cidade a lei do parcelamento do solo deve conter normas que sejam voltadas ao pleno desenvolvimento do direito à cidades sustentáveis nos termos previstos no Estatuto da Cidade. Com o Estatuto da Cidade ocorre um profundo impacto no direito à cidade, que deixa de ser um direito reconhecido somente no campo da política e passa a ser um direito reconhecido no campo jurídico. O direito à cidade adotado pelo direito brasileiro o coloca no mesmo patamar dos demais direitos de defesa dos interesses coletivos e difusos, como por exemplo, o direito do consumidor, do meio ambiente, do patrimônio histórico e cultural, da criança e do adolescente, da economia popular. O Estatuto da Cidade define o direito à cidades sustentáveis, como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações, e a gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. Esta definição jurídica do direito à cidade, contém uma característica semelhante a do direito ao meio ambiente, por estabelecer que os seus componentes como à moradia devem ser assegurados para as presentes e futuras gerações. Esta definição retraía que o direito à cidade é um direito coletivo ou difuso dos habitantes da cidade. Por exemplo uma comunidade tradicional existente numa cidade que esteja ameaçada de perder sua memória ou identidade, qualquer habitante desta cidade poderá demandar a proteção dos direitos desta comunidade com base no direito à cidade definido no Estatuto da Cidade. Devido a esta definição jurídica são sujeitos que tem proteção jurídica com base no direito à cidade por exemplo: – os grupos de habitantes e as comunidades que tenham formado a identidade e memória histórica e cultural da cidade, – os grupos sociais e comunidades que vivem em assentamentos urbanos informais consolidados que podem demandar do Poder Público, ações e projetos de urbanização e regularização fundiária de interesse social. O direito à cidade é o paradigma para a observância das funções sociais da cidade, que estarão sendo respeitadas quando as políticas públicas forem voltadas
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para assegurar, às pessoas que vivem nas cidades, o acesso à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras gerações. As funções sociais da cidade, como princípio constitucional dirigente da política urbana, foram introduzidas na Constituição Brasileira pelo caput do artigo 182 de forma vinculada com a garantia do bem-estar de seus habitantes Com esta vinculação dos objetivos, o interesse em que as funções sociais da cidade sejam plenamente desenvolvidas é dos habitantes da cidade, o que abrange qualquer pessoa, qualquer grupo social. Com isso, não há o estabelecimento de categorias entre os cidadãos pelo fator econômico, abrangendo todos os habitantes como cidadãos, independente da origem social, condição econômica, raça, cor, sexo, ou idade. O desenvolvimento das funções sociais da cidade, por ser interesse de todos os habitantes da cidade, se enquadra na categoria dos interesses difusos, pois todos os habitantes são afetados pelas atividades e funções desempenhadas nas cidades: proprietários, moradores, trabalhadores, comerciantes e migrantes têm como contingência habitar e usar um mesmo espaço territorial. Logo, a relação que se estabelece entre os sujeitos é com a cidade, que é um bem de vida difuso. O reconhecimento institucional e jurídico do direito à cidade como preceito que deve balizar a política urbana à luz do desenvolvimento sustentável aponta para a construção de uma nova ética urbana, em que os valores da paz, da justiça social, da solidariedade, da cidadania, dos direitos humanos predominem no desempenho das atividades e funções da cidade, de modo que estas sejam destinadas à construção de uma cidade mais justa e humana. O respeito ao direito à cidade é o principal indicador para verificar o estágio das cidades brasileiras estarem desenvolvendo as suas funções sociais. Quanto maior for o estágio de igualdade, de justiça social, de paz, de democracia, de harmonia com o meio ambiente, de solidariedade entre os habitantes das cidades, maior será o grau de proteção e implementação do direito à cidade. Com relação ao princípio da função social da propriedade, devem ser consideradas como diretrizes da lei de parcelamento do solo urbano as seguintes diretrizes da política de desenvolvimento urbano previstas nos seguintes incisos do artigo 2º do Estatuto da Cidade: III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social; IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;
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V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais; VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos; b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana; d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente; e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização; f) a deterioração das áreas urbanizadas; g) a poluição e a degradação ambiental; VII – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência; VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência; IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; X – adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais; XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos; XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população; XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais; XV – simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais;
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 XVI – isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social.
A revisão da lei de parcelamento do solo deve incorporar estas diretrizes como normas gerais de parcelamento do solo urbano de modo que esta lei seja adequada a nova ordem jurídica urbana. 2.1 Matérias da revisão da Lei de Parcelamento do Solo Urbano No ano de 2007 o Projeto de Lei 3.057/2000 que altera a lei de parcelamento do solo urbano, foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados cujo relator foi o Deputado Renato Amary (PSDB-SP), e necessita ser aprovado no plenário da Câmara dos Deputados. Este projeto de lei ainda precisa ser apreciado pelo Senado Federal. O Projeto de Lei 3.057/2000 tem como objetivo estabelecer as normas gerais disciplinadoras de parcelamento do solo urbano e de regularização fundiária sustentável de áreas urbanas lei e visa ter como denominação lei de responsabilidade territorial. O Projeto de Lei 3.057/2000 inicialmente trata das definições jurídicas dos seguintes temas: – área urbana e área urbana consolidada; – das modalidades de parcelamento do solo urbano: loteamento, desmembramento, condomínio urbanístico; – infra-estrutura básica e complementar; – licença urbanística e ambiental integrada; – gestão plena do Município em parcelamento do solo; – zonas especiais de interesse social e assentamentos informais; – empreendedor de parcelamento do solo urbano; – regularização fundiária sustentável em área urbana; – regularização fundiária de interesse social; – regularização fundiária de interesse específico; – demarcação urbanística e legitimação de posse. O Projeto de Lei disciplina as seguintes matérias sobre o parcelamento do solo urbano:
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– os requisitos urbanísticos e ambientais do parcelamento do solo urbano; – as responsabilidades do empreendedor e do Poder Público na implantação e manutenção do parcelamento do solo; – os requisitos e critérios sobre o conteúdo e para fins de aprovação do projeto do parcelamento do solo; – as competências do Município e do Estado sobre licenciamento para parcelamento do solo as exigências para a adoção da licença urbanística e ambiental integrada, bem como para a entrega das obras e da licença final integrada; – critérios para o registro do parcelamentos do solo; – regras para os contratos, relações de consumo e direito do consumidor em parcelamento do solo; – regularização fundiária sustentável em área urbana, regularização fundiária de interesse social e de interesse específico, demarcação urbanística e legitimação de posse, registro da regularização fundiária de interesse social; – infrações penais, administrativas e civis sobre parcelamento do solo; – requisitos e critérios para implantação e regularização do loteamento com controle de acesso; – critérios sobre o custo do registro dos títulos inerentes ao parcelamento e regularização fundiária de interesse social. 3. TEMAS ESTRATÉGICOS DO DIREITO À CIDADE E DA REFORMA URBANA NO PROJETO DE LEI Nº 3.057/2000 – REVISÃO DA LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO 3.1. Adoção dos princípios e diretrizes da Política de Desenvolvimento Urbano Conforme aludido acima as normas de parcelamento do solo urbano devem estar subordinadas aos princípios e as diretrizes da política urbana estabelecidas na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade. Neste sentido a lei do parcelamento do solo deve adotar em especial os princípios da função social da propriedade urbana e da cidade; a garantia do direito à cidades sustentáveis e do direito à moradia e em especial as seguintes diretrizes: – prevalência do interesse público sobre o interesse privado; – ocupação prioritária dos vazios urbanos, respeitados os espaços territoriais especialmente protegidos;
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– oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais; – adoção de padrões de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência; – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos; – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais. 3.2. Infra-estrutura básica adequada ao direito à moradia e o direito à cidade Nos termos do art. 2º, inciso XVIII do Projeto de Lei a infra-estrutura básica é definida como: os equipamentos de abastecimento de água potável, disposição adequada de esgoto sanitário, distribuição de energia elétrica e sistema de manejo de águas pluviais. Para atender o direito à moradia e o direito à cidade é necessário ser incluída na infra-estrutura básica a iluminação pública e a pavimentação. A pavimentação entendida de forma genérica visando garantir a acessibilidade e mobilidade das pessoas nos loteamentos e conjuntos habitacionais. 3.3 Obrigatoriedade de percentual de reserva de terra para HIS nos parcelamentos de solo e/ou empreendimentos A criação de percentuais de obrigatoriedade de reserva do território para Habitação de Interesse Social é outro instrumento importante que deve ser utilizado para garantir a oferta de terra para HIS nos municípios brasileiros. Para tanto, é extremamente importante que este tema seja incluído como obrigatoriedade na revisão da lei de parcelamento de solo. Atualmente a lei brasileira de parcelamento do solo 6766/79 determina que 20% da gleba seja destinada ao sistema viário, 10% para uso institucional e 5% para áreas verdes, sendo omissa para o tema da terra para habitação. Caso seja adotado no Brasil, o percentual deveria ser determinado pelo plano municipal de acordo com as necessidades do município.
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Como contrapartida aos benefícios individuais que serão gerados ao proprietário e empreendedor do parcelamento do solo urbano devido a atividade econômica do empreendimento imobiliário, cabe ao Poder Público exigir do proprietário e o empreendedor uma contrapartida que resulte um benefício social para toda a coletividade .A destinação de um percentual da área objeto do parcelamento do solo, visa atender as necessidades de moradia social nas cidades brasileiras, que é um dos componentes essenciais dos princípios norteadores da política urbana que são os princípios da função social da propriedade urbana e das funções sociais da cidade.
Contribuições urbanísticas obrigatórias são também adotadas na Espanha, Holanda, Canadá e diversos países europeus. Assim, através destes instrumentos de percentuais de obrigatoriedades, todos empreendimentos destinados à alta e média renda devem obrigatoriamente destinar um percentual da gleba para a produção de Habitação de Interesse Social. De acordo com o art. 10. do projeto de lei sem prejuízo de outras obrigações previstas nesta Lei, a legislação municipal pode exigir do empreendedor: I – (...) II – doação de área para implantação de programas habitacionais de interesse social ou de recursos para fundo municipal de habitação.
Esta proposta vai ter pouco impacto para a produção do HIS. Necessário defender a seguinte emenda no artigo 10: § 4º Os parcelamentos do solo para fins urbanos deverão ter no mínimo 10 % da área parcelada destinadas a parcelamentos de interesse social. § 5º Fica facultado ao empreendedor destinar as áreas para implantação de parcelamento de interesse social em áreas demarcadas pelo Município como zonas especiais de interesse social para a produção de habitação de interesse social.
3.4 Inclusão da modalidade de parcelamento de interesse social Esta modalidade não esta prevista sendo importante a sua inclusão para um tratamento diferenciado com relação a financiamentos, prestação dos serviços de fornecimentos de água, energia elétrica, responsabilidades de manutenção da infraestutura. O projeto de lei admite uma modalidade mais branda de parcelamento, que é o de pequeno porte, mas não regulamenta a produção de parcelamentos para fins de HIS. No aspecto dos assentamentos informais de baixa renda, o PL só regulamenta as ações curativas de regularização fundiária, deixando a descoberto as atividades vinculadas à produção de lotes e unidades habitacionais de interesse social.
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Propostas de emenda no artigo 2º: Novo inciso – Parcelamento de Interesse Social: são parcelamentos do solo executados por meio de empreendimentos habitacionais de interesse social com base em planos e programas habitacionais vinculados a política habitacional de interesse social estabelecida pelo Município pelo plano diretor ou lei municipal específica. Proposta de emenda no artigo 3º: – Admite-se o parcelamento do solo de interesse social nas modalidades loteamento, desmembramento, conjuntos habitacionais unifamiliares e multifamiliares ou condomínio urbanístico localizados preferencialmente em ZEIS, bem como por suas variantes definidas nesta Lei. 3.5. Plano de expansão urbana como condição de extensão do perímetro urbano Deve constar da revisão da Lei federal 6766/79 que os planos de expansão tornem-se obrigatórios na abertura de qualquer novo loteamento que se encontre em uma zona de expansão urbana. Sendo que neste planos de expansão deve-se determinar, ainda uma obrigatoriedade de percentual de doação de terra para implementação de HIS. Necessidade de definição de zona de expansão urbana no PL e da inclusão da obrigatoriedade do plano de expansão urbana no artigo 7º. O marco regulatório do parcelamento do solo – nacional como local – com sua visão privatista (gleba a gleba) e rentista (percentuais fixos, sem relação com os diferentes sítios urbanos e situações municipais quanto à necessidades de infraestrutura e equipamentos) tem incidido de forma negativa, tanto no processo de expansão das cidades de forma adequada, quanto na disponibilização de terras para moradia. Na experiência internacional do planejamento urbano, raros são os países desenvolvidos que prescindem de um planejamento da expansão urbana, predefinido, aonde já se definem os sistemas viários e de mobilidade básicos, assim como o dimensionamento e localização de equipamentos, áreas verdes e áreas de lazer. 3.6. Integração entre a legislação ambiental e urbanística A revisão da Lei 6.766/1979 precisa considerar a integração entre as legislações ambientais e urbanísticas nos aspectos que dizem respeito a produção de novos parcelamentos e regularização de parcelamentos existentes, integrando, inclusive os licenciamentos de forma a agilizar os processos de aprovação das habitações que atualmente são muito complicados e demorados.
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Outro elemento com grande impacto na relação entre a produção habitacional e o desenvolvimento urbano, de forma mais geral, é a fragmentação da regulação do território em dimensões que não dialogam, é o caso da gestão ambiental versus gestão urbanística. As gestões ambientais e urbanísticas que incidem sobre os mesmos territórios, numa superposição de fatores, muitas vezes são contraditórios. Há também regras que não dialogam, agravadas pela existência de esferas de controle e fiscalização verticalizadas, correspondentes a cada um destes setores. Tais esferas de controle e verticalização exercem, por meio de suas gerências e superintendências regionais, poderes e propriedades sobre o espaço urbano muitas vezes conflitantes. A ausência de instrumentos modernos de gestão urbana que incorporem a dimensão ambiental em sentido amplo é sentida largamente no território. A inexistência de um marco regulatório único, que trate a questão ambiental e a questão urbana de forma integrada, e a fragmentação da regulação do território em dimensões que não dialogam, acaba provocando ações perversas para o desenvolvimento urbano e a preservação ambiental Em grande parte do território brasileiro verifica-se a incapacidade de romper os ciclos de expansão periférica e de ocupação das áreas ambientalmente frágeis. Uma das características do mercado formal de habitação do Brasil é sua pouca abrangência. A maior parte da população de baixa renda não consegue ter acesso a esta produção de mercado. Consequentemente, a maior parte da produção habitacional do país se faz à margem da lei nas áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário privado. Mas a reflexão sobre a legislação ambiental, que persiste até os dias atuais, ainda é muito pontual e fragmentada. São leis com visões setorialistas, que visam apenas a conservação – marcada por um viés anti-urbano – e não refletem sobre a necessidade de construção de um modelo de cidade ambientalmente sustentável. Com a legislação existente, não é possível conciliar no ambiente urbano a reflexão sobre exclusão social e necessidade de saneamento com a discussão da preservação ambiental. É preciso pensar em um novo marco regulatório urbanístico e ambiental único que trabalhe com toda a diversidade do território brasileiro, e reflita sobre modelos de ocupação urbana do território que dialoguem com esta diversidade. 3.7. Dos condomínios urbanísticos e loteamentos com controle de acesso É necessário impor limites de tamanho para esta modalidade de parcelamento. Deve ser incluído o seguinte inciso no Art. 2º: XII – condomínio urbanístico: a divisão de imóvel com área total não superior a 50.000 m2 em unidades autônomas destinadas à edificação, às quais correspondem frações ideais das áreas de uso comum dos condôminos, sendo admitida a abertura de vias de domínio privado e vedada a de logradouros públicos internamente ao perímetro do condomínio;
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 XV – condomínio urbanístico integrado à edificação: a modalidade de condomínio em imóvel com área total não superior a 50.000 m2 em que a construção das edificações é feita pelo empreendedor, concomitantemente à implantação das obras de urbanização;
Com relação ao Loteamento com Controle de Acesso (Loteamento Fechado), pelo artigo 124 do projeto de lei está prevista a modalidade do loteamento, bem como dos loteamentos fechados existente serem regularizados sem nenhuma compensação.Deve ser previsto para os loteamentos fechados existentes que a regularização seja condicionada a compensações urbanas tais como:produção de HIS, regularização fundiária de HIS, implantação de infra-estrutura, equipamentos públicos, ciclovias, implantação de áreas verdes, praças e parques. Sobre novos loteamentos fechados a lei não deve admitir esta modalidade. 3.8. A competência preponderante do Município para legislar sobre regularização fundiária O projeto de lei deve dispor de forma clara que a competência para o estabelecimento das normas de parcelamento, uso e ocupação do solo urbano e edificação para fins de regularização fundiária é do Município, que deverão ser respeitadas pelos agentes e órgãos públicos dos demais entes federativos . O Município é o principal ente federativo para tratar da política urbana de acordo com o pacto federativo estabelecido na Constituição Federal (Artigos 30, VIII, e 182). O Estatuto da Cidade atribui ao plano diretor que é uma lei municipal tratar da política e dos instrumentos de regularização fundiária, com base nas diretrizes estabelecidas nos incisos XIV e XV do artigo 2º. A atual lei do parcelamento do solo através do artigo 40 atribui a Prefeitura Municipal ou Distrito Federal, a competência para regularizar loteamento ou desmembramento não autorizado ou executado sem atender as determinações do licenciamento do Poder Público. 3.9. Tratamento diferenciado para novos parcelamentos e regularização fundiária A lei precisa conter um tratamento diferenciado entre as normas que tratam dos critérios, exigências, do processo e procedimento, dos instrumentos para a promoção de novos parcelamentos do solo urbano e as normas que tratam da regularização fundiária de interesse social de assentamentos urbanos que se caracterizam como parcelamentos informais, irregulares ou clandestinos. A lei para ter eficácia não pode estabelecer os mesmos critérios e exigências para a implantação de um novo parcelamento do solo, e para a regularização fundiária de interesse social de parcelamentos do solo consolidados, como por exemplo exigir o mesmo tamanho de lote mínimo, o mesmo percentual de área destinadas a uso
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público ou de uso comum como os equipamentos públicos e comunitários, o mesmo percentual para as vias públicas. 3.10. Adoção de Regimes Especiais de Zoneamento de Assentamentos Urbanos de Interesse Social A lei deve adotar como diretriz da regularização fundiária de interesse social a constituição pelos Municípios de regimes normativos especiais de zoneamento de assentamentos urbanos de interesse social, através da aplicação do instrumento da zona especial de interesse social, para as situações no qual a localização e característica do assentamento urbano de interesse social objeto da regularização fundiária, apresente sobreposições ou conflitos entre legislações urbanas, ou entre a legislação urbana e a legislação ambiental. A lei federal de parcelamento do solo urbano deve prever que as normas urbanísticas e ambientais, estabelecidas nestes regimes especiais de zoneamento de interesse social, devem prevalecer sobre as demais legislações urbanas e ambientais como forma de eliminar os entraves e obstáculos existentes, em especial para o licenciamento urbanístico e ambiental integrado para fins da regularização fundiária dos assentamentos urbanos de interesse social. Através destes regimes especiais de zoneamento que podem ser formalizados pelos Municípios, com a instituição legal do instrumento das zonas especiais de interesse social e quando for o caso dos planos de regularização fundiária de interesse social, serão estabelecidas normas especiais urbanísticas e ambientais de parcelamento, uso e ocupação do solo urbano compatíveis com o assentamento urbano consolidado que viabilizem a regularização necessária para o reconhecimento do direito à cidade e da moradia do grupo social que vive neste assentamento. A lei federal de parcelamento do solo deve estabelecer os conteúdos básicos destes regimes especiais de zoneamentos de assentamentos urbanos de interesse social, que devem ser observados para o licenciamento urbanístico e ambiental em especial: – os parâmetros urbanísticos e ambientais específicos para fins de regularização do parcelamento; – os padrões de habitação e edificação; – os percentuais e critérios específicos para a regularização das vias de circulação, das áreas destinadas a uso público ou de uso comum, e dos equipamentos urbanos e comunitários. Esta medida é necessária para eliminar um dos principais obstáculos e entraves dos processos de regularização fundiária de interesse social que é a existência de
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diversas legislações urbanas e ambientais da União, do Estado e do Município que estabelecem normas de uso e ocupação do solo contraditórias e conflituosas para uma mesma área urbana onde esteja localizado um assentamento urbano de interesse social. Estas legislações ou normas conflituosas, praticamente impedem o licenciamento urbanístico e ambiental destes assentamentos para fins de regularização fundiária. O caso mais comum é o conflito existente entre a legislação ambiental que considerada áreas urbanas consolidadas ocupadas por favelas, ou outros tipos de assentamentos de população de baixa renda ou tradicional, como área de preservação permanente. Em alguns casos os Municípios reconhecem na legislação urbana como por exemplo através do plano diretor que estas áreas se consolidaram como um assento urbano de interesse social, mediante a demarcação destas áreas como áreas ou zonas de interesse social, ou áreas ou zonas especiais de urbanização ou regularização específica. Considerando que a lei federal de parcelamento do solo deve dispor de normas gerais de parcelamento do solo é fundamental que seja prevista como norma geral a prevalência das normas urbanísticas e ambientais de parcelamento uso, ocupação, e edificação, constituídas pelos regimes especiais de zoneamento de assentamentos urbanos de interesse social instituídos pelos Municípios, para solucionar as sobreposições e conflitos existentes nas legislações urbanas e ambientais, em especial para viabilizar o licenciamento urbanístico e ambiental destes assentamentos. 3.11. Da obrigação da iniciativa do Poder Público promover a regularização fundiária de interesse social A lei deve prever as situações no qual o Poder Público tem a obrigação de ter a iniciativa de promover a regularização fundiária de assentamentos urbanos de interesse social. Esta obrigatoriedade deve ser estabelecida para os parcelamentos relacionados a planos ou programas habitacionais de iniciativa de órgãos da Administração Direta ou Indireta vinculados aos Municípios, Estados, Distrito Federal e União, que se caracterizem como irregulares, tais como conjuntos habitacionais, loteamentos populares. A obrigatoriedade de iniciativa deve ser estabelecida para a regularização fundiária de assentamentos urbanos de interesse social, localizados em áreas públicas de domínio da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, considerados como consolidados, que tenham direitos reais constituídos, como por exemplo o direito a concessão de uso especial para fins de moradia, ou definidas como zonas especiais de interesse social pelo plano diretor ou lei municipal para fins de regularização fundiária de interesse social.
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No caso da regularização fundiária de assentamento urbano de interesse social localizado em áreas particulares como as favelas, nas quais os posseiros tenham direitos reais constituídos através do usucapião urbano ou ordinário, a lei deve prever que o Poder Público tem a obrigação de prestar ou viabilizar, os serviços de assistência técnica e jurídica e social para a população de baixa renda. Existe um elevado número de conjuntos habitacionais e de loteamentos populares promovidos por órgãos, instituições e empresas habitacionais vinculados a Municípios, Estados e União que foram implantados de forma irregular sem atender a atual lei do parcelamento do solo urbano. A atual lei do parcelamento do solo com base nesta realidade considerou como de interesse público os parcelamentos vinculados a planos ou programas habitacionais de iniciativa das Prefeituras Municipais e do Distrito Federal, ou entidades autorizadas por lei, em especial as regularizações de parcelamentos e de assentamentos nos termos do artigo 53-A. Através deste artigo é previsto um tratamento especial para viabilizar o registro do assentamento objeto da regularização. Para reverter este quadro de irregularidade de um elevado número de empreendimentos habitacionais de interesse social promovidos pelo Poder Público nas cidades brasileiras, a lei do parcelamento do solo deve prever a obrigação do Poder Público promover a regularização fundiária dos assentamentos urbanos que estejam nesta situação. Esta obrigação deve ser estendida para as áreas públicas ocupadas por população de baixa renda ou tradicionais, que tenham constituído direitos reais de posse ou moradia para os possuidores destas áreas por provisão constitucional ou legal, como o direito a concessão de uso especial para fins de moradia. Esta medida é necessária para assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana pública, e do direito fundamental à moradia estabelecido na Constituição federal, bem como do direito à cidade previsto no Estatuto da Cidade. 3.12. Da iniciativa de entidades civis para promovera regularização fundiária de interesse social A lei deve prever o direito de iniciativa de solicitar, exigir ou quando for o caso de promover a regularização fundiária de interesse social as pessoas ou suas organizações criadas legalmente que tenham direitos reais constituídos nos assentamentos urbanos de interesse social, seja em razão de atenderem os requisitos legais de posse de área urbana, para fins de reconhecimento do direito à moradia ou da propriedade (no caso de área urbana particular), ou por terem adquirido lotes urbanos ou unidades habitacionais.
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A lei dever prever o direito de iniciativa para os beneficiários da regularização fundiária de forma individual ou coletiva.Este direito deve ser reconhecido as associações de moradores da comunidade ou de cooperativas habitacionais, regularmente constituídas, com personalidade jurídica,com autorização expressa de seus representados, bem como para associações civis sem fins lucrativos que tenham como atribuição estatutária prestar serviços e promover medidas administrativas, jurídicas e judiciais para fins de regularização fundiária de assentamentos urbanos de interesse social. A Constituição Federal através dos incisos XVII e XVIII do artigo 5º, assegura que é plena a liberdade de associação para fins lícitos, bem como que a criação de associações e na forma da lei a de cooperativas independem de autorização. Esta medida é voltada ao fortalecimento da cidadania da população de baixa renda ou tradicional que vivem em assentamentos urbanos de terem o direito de reivindicar a proteção e o reconhecimento de seus direitos constituídos legalmente de posse, propriedade ou moradia através da promoção da regularização fundiária destes assentamentos perante o Poder Público (poder executivo, legislativo, judiciário). 3.13. Das contrapartidas da regularização fundiária de assentamentos urbanos de média e alta renda A lei do parcelamento do solo urbano deve tratar da regularização fundiária de assentamentos urbanos de média e alta renda como por exemplo os loteamentos fechados, condomínios civis verticais e horizontais, clubes de campo e chácaras transformadas em loteamentos urbanos. Como diretriz para a regularização fundiária destes assentamentos urbanos, deve ser estabelecida a obrigatoriedade desta regularização ser onerosa. A regularização fundiária onerosa pode ocorrer através de contrapartidas urbanas. O Estatuto da Cidade estabelece como diretrizes da política urbana nos termos dos inciso IX e XI do artigo 4º respectivamente: a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; a recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos. A lei do parcelamento do solo deve determinar que a regularização fundiária de assentamentos urbanos de média e alta renda deve ser feita de forma onerosa aos beneficiários da regularização, de modo a atender estas diretrizes da política urbana, bem como o princípio da igualdade mediante um tratamento diferenciado entre as populações de baixa renda e alta renda nesta matéria. O Estatuto da Cidade já prevê o instituto da outorga onerosa de alteração de uso do solo urbano, que pode ser aplicado para a regularização dos loteamentos urbanos
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implantados em zonas de expansão urbana ou mesmo em zonas rurais, como uma das formas de contrapartida proporcional aos impactos que estes empreendimentos geram no sistema viário, trânsito e na demanda de infra-estrutura, equipamentos e serviços públicos da cidade. O estabelecimento de contrapartidas urbanas para fins de regularização fundiária de assentamentos urbanos de interesse social, ou para a produção de habitação de interesse social é plenamente justificável para atender o princípio das funções sociais da cidade de modo a contribuir com a política urbana e habitacional do Município. A legislação federal que versa sobre os imóveis da União dispõe que os instituto do aforamento, da concessão de direito real de uso, ou da cessão de imóveis objeto de regularização fundiária de assentamentos de média e alta renda localizados em imóveis da União deverão ser outorgados de forma onerosa para os beneficiários da regularização (ver a lei federal nº 9.636/98 e a lei federal nº 11.481/2007). Além de prever a aplicação da outorga onerosa de alteração do uso do solo prevista no Estatuto da Cidade para fins de regularização fundiária destes assentamentos, a lei deve prever como contrapartidas urbanas: – a destinação de recursos financeiros para a regularização fundiária de assentamentos urbanos de interesse social; – a destinação de áreas urbanas para projetos de habitação de interesse social com base no plano diretor do Municípios; – a promoção de projetos de habitação de interesse social. 3.14. Da simplificação do registro da regularização fundiária A lei do parcelamento do solo deve estabelecer normas voltadas a simplificar as exigências e os procedimentos para o registro público de imóveis públicos ou privados objeto de processos de regularização fundiária de assentamentos urbanos de interesse social. A adoção dos institutos da demarcação urbanística prevista na legislação federal, que versa sobre a regularização fundiária de imóveis da União (Artigo 6º da lei federal nº 11.481/2007) e da legitimação de posse atendem este objetivo. A lei deve eliminar os entraves para a abertura da matrícula da área urbana objeto da regularização, como por exemplo aceitar fotos aéreas para a identificação da situação fática da forma de ocupação da área urbana, de reduzir e simplificar a documentação exigida para instruir o processo do registro do imóvel, A lei também deve simplificar o registro dos títulos jurídicos objeto da regularização fundiária em especial da sentença judicial do usucapião urbano individual ou coletiva, dos termos administrativos de concessão de direito real de uso, e da concessão de uso especial
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para fins de moradia individual ou coletiva, bem como do contrato do direito de superfície. Com relação ao custo do registro dos imóveis objeto da regularização fundiária de interesse social, o pagamento de taxas e emolumentos tem sido o principal entrave para viabilizar, o registro dos direitos reais constituídos legalmente em favor das populações de baixa renda ou tradicional. Neste sentido a lei deve assegurar a gratuidade dos registros de regularização fundiária de interesse social, assim como da lavratura da escritura pública e do primeiro registro de direito real constituído em favor do beneficiário da regularização fundiária de interesse social. O Estatuto da Cidade estabelece como uma das diretrizes da política urbana no termos do inciso XV do artigo 2º, a simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta de lotes e unidades habitacionais. Esta diretriz deve ser aplicada no tratamento da regularização fundiária de interesse social, de modo a reduzir os custos dos processos desta modalidade de regularização fundiária, bem como para viabilizar a regularização plena com o registro dos parcelamentos do solo e dos títulos dos direitos reais nos Cartórios de Registros de Imóveis. A gratuidade do registro da regularização fundiária já esta prevista na lei federal nº 10.932 de 3 de agosto de 2004, bem como no artigo 12 da lei federal sobre a regularização fundiária dos imóveis da União (lei federal nº 11.481/2007), que alterou o artigo 290-A, da lei de registros públicos (Lei federal nº 6.015/73) nos seguintes termos: Devem ser realizados independentemente do recolhimento de custas e emolumentos: I – o primeiro registro de direito real constituído em favor de beneficiário de regularização fundiária de interesse social em áreas urbanas e em áreas rurais de agricultura familiar; II – a primeira averbação de construção residencial de até 70 m2 (setenta metros quadrados) de edificação em áreas urbanas objeto de regularização fundiária de interesse social. § 1º O registro e a averbação de que tratam os incisos I e II do caput deste artigo independem da comprovação do pagamento de quaisquer tributos, inclusive previdenciários. § 2º Considera-se regularização fundiária de interesse social para os efeitos deste artigo aquela destinada a atender famílias com renda mensal de até 5 (cinco) salários mínimos, promovida no âmbito de programas de interesse social sob gestão de órgãos ou entidades da administração pública, em área urbana ou rural.
O PL está retirando a gratuidade através do artigo 136 e dos incisos II e III do artigo 138. Proposta de Emenda: Suprimir o artigo 136 e os incisos II e III do artigo 138.
Revisão da Lei de Parcelamento do Solo e Ampliação da Oferta de Terras para Habitação de Interesse Social: Aprendizados de Fortaleza/CE ANTÔNIO JEOVAH DE ANDRADE MEIRELES HENRIQUE BOTELHO FROTA
INTRODUÇÃO Com o avanço, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei nº 3.057/2000, que visa à revisão da legislação de parcelamento do solo urbano (Lei nº 6.766/79), muitos debates têm sido fomentados pelo movimento social, organizações nãogovernamentais e administração pública nas diversas esferas (federal, estadual e municipal). Dentre as críticas e proposições do Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU) ao PL 3.057/2000, encontra-se a tentativa de ampliar o acesso à terra urbanizada para a implantação de habitação de interesse social. Nesse sentido, o FNRU propõe que o art. 10 do PL seja alterado para exigir que 10% (dez por cento) da área dos parcelamentos urbanos sejam obrigatoriamente destinados a esse tipo de habitação (FÓRUM NACIONAL DA REFORMA URBANA, 2008). O presente artigo tem por escopo contribuir com o debate a partir da análise do caso do Município de Fortaleza, cuja Lei Municipal nº 6.541/89 institui um Fundo de Terras destinado à implantação de programas habitacionais de interesse social. Um dos componentes do mencionado fundo é o percentual de 5% (cinco por cento) de área exigido quando da aprovação de projetos de parcelamento do solo. Como aporte para a análise, propõe-se a utilização do paradigma da Justiça Ambiental, ainda pouco difundido entre os pesquisadores. Ao final, o que se espera é demonstrar que esse conceito pode ser um importante aliado na superação da dicotomia entre moradia e meio ambiente.
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1 A JUSTIÇA AMBIENTAL NO CONTEXTO DO MARCO JURÍDICOURBANÍSTICO BRASILEIRO O conceito de Justiça Ambiental surgiu a partir de lutas pelo reconhecimento e ampliação de direitos civis articuladas com reivindicações acerca da qualidade ambiental de comunidades negras dos Estados Unidos da América. Embora tenha havido, desde o final da década de 1960, tentativas de conjugação entre o movimento negro ou de trabalhadores com as questões ambientais, o marco amplamente apontado como o início do movimento pela Justiça Ambiental é o ano de 1982. No referido ano, a comunidade de Afton, no condado de Warren, estado americano da Carolina do Norte, foi palco de inúmeros protestos que levaram a mais de 500 prisões. O foco das reivindicações foi a resistência da comunidade, em sua maioria, formada por população afro-americana, à implantação de um aterro químico destinado a depositar bifenil policlorado. Em 1983, por força da grande repercussão que ganhou o caso de Afton, o U.S. General Accounting Office realizou um estudo intitulado Siting of Hazardous Waste Landfills and Their Correlataion with Racial and Economic Status of Surrounding Communities. Surpreendentemente, os estudos revelaram que, apesar das comunidades negras da Região 4 (que compreende oito estados do sudeste dos EUA) corresponderem a apenas 20% (vinte por cento) da população total da área, grande parte dos aterros comerciais de resíduos perigosos estavam instalados nas suas imediações. Segundo Acselrad (2004), foi a partir das lutas de base similares àquela enfrentada em Afton que a Justiça Ambiental passou a ser considerada como uma problemática central nas lutas do movimento por direitos civis nos EUA. Essa efervescência em torno dos protestos contra as iniquidades ambientais fez com que a United Church of Christ, por meio de sua Comissão de Justiça Racial, em 1987, divulgasse um estudo contendo importantes constatações sobre as relações entre deposição de rejeitos tóxicos e comunidades negras nos EUA. A pesquisa revelou que as localizações de depósitos de resíduos perigosos naquele país apresentavam um padrão cujo principal fator influenciador era a composição racial das comunidades afetadas. Embora, existisse também uma forte relação com o fator renda, em muitos casos, comunidades pobres compostas majoritariamente por pessoas brancas não eram afetadas pelo problema, o que demonstrou que a cor da pele possuía mais peso do que a renda no momento da escolha sobre a localização dos aterros. Essa constatação fez com que o reverendo Benjamin Chavez cunhasse a expressão “racismo ambiental” para designar “a imposição desproporcional – intencional ou não – de rejeitos perigosos às comunidades de cor” (PINDERHUGHES apud ACSELRAD, 2004, p. 26). Em 1991, como resultado da I Cúpula Nacional de Lideranças Ambientalistas de Povos de Cor, realizada em Washington, foi lançado o documento “17 princípios
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da Justiça Ambiental”. Durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, o documento foi amplamente divulgado de forma que o movimento ganhou eco em diversas partes do mundo. Para Acselad, Herculano e Pádua (2004), no Brasil, a Justiça Ambiental tem ganhado novas interpretações, indo muito além do debate acerca da contaminação química e da questão racial. As gigantescas injustiças sociais brasileiras encobrem e naturalizam um conjunto de situações caracterizadas pela desigual distribuição de poder sobre a base material da vida social e do desenvolvimento. A injustiça e a discriminação, portanto, aparecem na apropriação elitista do território e dos recursos naturais, na concentração dos benefícios usufruídos do meio ambiente e na exposição desigual da população à poluição e aos custos ambientais do desenvolvimento (ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA, 2004, p. 10).
A partir de 2001, como resultado do I Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental, Trabalho e Cidadania, realizado no campus da Universidade Federal Fluminense em Niterói, foi criada a Rede Brasileira da Justiça Ambiental (RBJA). De acordo com essa rede, constituída por pesquisadores, sindicatos, movimentos ambientalistas, organizações não-governamentais e movimentos populares, compreendese por Justiça Ambiental: O conjunto de princípios e práticas que: a – asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas; b – asseguram acesso justo e equitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país; c – asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que lhes dizem respeito; d – favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso. (REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL, 2001)
Depreende-se que a justiça ambiental está calcada em quatro pilares básicos, que podem ser assim resumidos: 1) distribuição igualitária das consequências ambientais negativas decorrentes das atividades humanas; 2) equidade no acesso aos recursos naturais; 3) democracia participativa e direito à informação; 4) sustentabilidade.
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Cabe salientar, por oportuno, que tais valores não estão restritos exclusivamente ao âmbito das mobilizações sociais, encontrando paralelos importantes no ordenamento jurídico pátrio. Por todo o texto constitucional percebe-se uma sucessão de princípios e garantias que dão suporte jurídico a um novo paradigma socioambiental que deve informar as políticas públicas e as ações dos particulares. O princípio da isonomia, consagrado no caput do art. 5º é um exemplo concreto disso. Ainda tratando do art. 5º, dentre tantos direitos e garantias fundamentais, destaca-se a liberdade de associação (XVII), a função social da propriedade (XXIII), o direito de informação (XXXIII), o direito de petição (XXXIV, “a”) e a Ação Popular (LXXIII) como instrumentos que contribuem para o exercício da cidadania. Saltando para o capítulo relativo ao meio ambiente, o art. 225 da Carta Magna estabelece que a ele todos têm direito, reconhecendo-o como essencial para a sadia qualidade vida das presentes e futuras gerações. Ao consagrar a solidariedade intergeracional, a Constituição não apenas impõe que sejam respeitados os direitos daqueles que ainda não nasceram, mas também solidifica o princípio da não-discriminação entre a atual geração. Isso porque, seria impossível defender o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para uma parcela da população, uma vez que tal direito apresenta-se como difuso e indivisível. Cabe salientar que a concepção de meio ambiente não fica restrita à “natureza intocada”, mas incorpora o patrimônio histórico-cultural, o meio ambiente do trabalho e o meio ambiente construído. Especificamente no que concerne à proteção ambiental nas cidades é relevante destacar que a Constituição de 1988, influenciada pelas reivindicações do Movimento Nacional de Reforma Urbana, inaugurou novos paradigmas jurídico-urbanísticos no tratamento da propriedade urbana no país. Calcado fundamentalmente no princípio da função social da propriedade, o ordenamento jurídico brasileiro rompeu com a clássica e ultrapassada concepção individualista de propriedade privada, que justificava poderes absolutos aos proprietários. Nos dizeres de Silva (2006), [...] a função social manifesta-se na própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos bens. Por isso é que se conclui que o direito de propriedade não mais pode ser tido como um direito individual. A inserção do princípio da função social, sem impedir a existência da instituição, modifica sua natureza.
Há, portanto, uma consciente opção do legislador constituinte em limitar os poderes inerentes à propriedade, condicionando-os ao benefício da coletividade. No caso, de acordo com o art. 182, § 2º, da Constituição de 1988, compete ao Plano Diretor Municipal estabelecer as condições que determinam o cumprimento da função social da propriedade. Apesar da liberdade conferida ao legislador municipal para
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que estabeleça o conteúdo da função social da propriedade urbana no Plano Diretor, é evidente que a interpretação do dispositivo constitucional não se pode dar isoladamente, mas sim de forma sistemática, tomando-se como elementares os demais princípios estabelecidos na própria Constituição e na legislação infraconstitucional em vigor. Com a promulgação, em 2001, da Lei Federal nº 10.257, conhecida como Estatuto da Cidade, o Capítulo da Política Urbana da Constituição Federal foi regulamentado e a função social da propriedade urbana ganhou delineamento mais preciso, conforme artigo 2º da referida Lei: Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; (...) IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; (...) IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;
Nota-se que o Estatuto da Cidade positivou valores que submetem a propriedade urbana não apenas a uma função social, mas a uma função socioambiental. Sobre a cidade sustentável, Carrera (2005, p. 33-34) compreende que ela “nada mais é do que uma cidade onde se pratica, efetivamente o desenvolvimento sustentável, com o objetivo constitucional e primordial de se garantir o sustento das gerações presentes e futuras”. Para alguns setores ambientalistas, um dos mais perigosos vilões contra o desenvolvimento sustentável nas cidades é a população ocupante de áreas ambientalmente frágeis que ali estabelece seu local de moradia. Contudo, tratando da integração do que chama de agendas verde e marrom, Fernandes (2006) questiona se, de fato, há um conflito entre direito à moradia e meio ambiente nas cidades brasileiras. Para o autor, “trata-se de uma falsa questão: os dois são valores e direitos
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sociais constitucionalmente protegidos, tendo a mesma raiz conceituai, qual seja, o princípio da função socioambiental da propriedade” (FERNANDES, 2006, p. 357). A criminalização das áreas de risco deveria, portanto, reverter-se em uma análise mais crítica sobre a possibilidade de acesso à terra urbana e a efetivação do direito à moradia pela população mais pobre. Ajusta distribuição dos benefícios e ônus oriundos da urbanização, em geral, é entendida como sendo a possibilidade de recuperação dos investimentos do poder público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos. Entretanto, sem abandonar essa concepção, é necessário interpretar esse princípio com um outro sentido complementar ao primeiro. A justa distribuição dos benefícios e ônus da urbanização impõe não apenas que toda a coletividade seja responsável pelo custeio das obras públicas e que colha de forma igualitária a valorização econômica decorrente dessas obras. Nem todos os benefícios revertem-se em valorização dos imóveis privados, havendo também ganhos para a qualidade de vida em função da preservação ambiental. É importante, assim, que toda a população possa ter acesso a áreas saudáveis e dotadas de infra-estrutura para estabelecer seu local de moradia, realizar seu lazer ou desenvolver suas atividades de trabalho. A Justiça Ambiental, como movimento e princípio, insere-se, diante do exposto também na realidade jurídica brasileira, em especial no que tange à problemática urbana. Em função disso, o planejamento urbano e a apropriação do solo nas cidades pode ser analisada com base nos eixos centrais que compõem o conceito de Justiça Ambiental, demonstrando que não deve existir dissociação entre o direito à moradia digna e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 2 ACESSO A TERRA URBANA E O PARCELAMENTO DO SOLO EM FORTALEZA/CE Fortaleza teve, ao longo de sua história, um forte processo de exclusão socioterritorial, cujos reflexos são hoje inegáveis. De um lado, a cidade possui bairros integralmente dotados de infra-estrutura e serviços urbanos, mas, de outro, milhares de habitantes convivem com a falta de serviços e com a precariedade da moradia. Segundo Rodrigues (2003), um elemento de destaque que conduz à cisão das cidades é o fato serem socialmente produzidas, mas a renda do solo é individualmente apropriada. Nesse sentido, os investimentos públicos valorizam o solo urbano, contribuindo para o aumento de seu preço e beneficiando, por conseguinte, os proprietários. O preço da terra varia em função da apropriação privada (escassez), da procura, da localização e da infra-estrutura existente. Quanto maior for a procura por imóveis
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em dada região, ou quanto melhor forem as condições de vida naquela área, ou ainda quanto maiores forem os benefícios decorrentes da localização do imóvel, maior será seu preço. Como o acesso à terra se dá, em geral, por meio de compra e venda, “os que mais precisam usufruir de uma ‘cidade com serviços e equipamentos públicos’ – aqueles que têm baixos salários – compram lotes/casas em áreas distantes, onde o preço é mais baixo” (RODRIGUES, 2003, p. 22). Impedida de ter acesso a bons imóveis pelas vias do mercado, uma parcela considerável da população busca alternativas na irregularidade através de ocupações de terra, compra de lotes em parcelamentos clandestinos e autoconstrução de suas moradias sem observância das normas de uso, ocupação e edificação do solo. Nesse sentido, diversas áreas de preservação permanente ao longo de rios, riachos, lagos e lagoas, em dunas e manguezais sofrem processos de ocupação inadequada, dando origem às chamadas áreas de risco. Hoje, Fortaleza possui 103 áreas de risco e 632 favelas. Para se ter uma ideia da dimensão econômica da exclusão socioambiental, o Senso 2000 do IBGE indica que o município possui 54.690 domicílios sem banheiro, dos quais 84,29% concentram-se na faixa de renda familiar de até 3 salários mínimos. Fortaleza conta com um déficit habitacional de 77.615 moradias e a Região Metropolitana apresenta uma carência de 122.988 habitações (IBGE, 2000). Essa carência por moradia possui uma forte marca no que diz respeito à renda, atingindo intensamente os mais pobres. Sabe-se que mais de 80% do déficit habitacional está concentrado no grupo de famílias que possuem uma renda mensal de 0 a 3 salários mínimos. Considerando uma faixa de renda de 0 a 5 salários mínimos esse percentual chega a 90% do total. Um dos aspectos cruciais na política pública de moradia é o debate sobre o papel do poder público e da iniciativa privada na produção de habitação de interesse social. Historicamente, o mercado imobiliário esteve preocupado em construir habitações para as classes mais abastadas, só voltando sua atenção para a habitação popular quando contratado pelo poder público para tal. Como consequência, um grande contingente excluído dos mecanismos formais de acesso à moradia busca alternativas nas ocupações irregulares, favelas e loteamentos clandestinos. Diante da baixa qualidade de vida dessa população, o poder público é pressionado a construir habitações de interesse social para suprir a falta de oferta do mercado imobiliário para os níveis de renda mais baixos. O desafio imposto aos governos municipais, portanto, é ter a capacidade de desenvolver uma política de acesso democrático à terra urbana, possibilitando que a população de baixa renda possa morar em áreas dotadas de boas condições de infra-estrutura, serviços urbanos e qualidade ambiental. Visando à ampliação da oferta de áreas para habitação de interesse social, a Lei Orgânica do Município de Fortaleza, em seu art. 152, institui o Fundo de Terras.
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Conforme a Lei Municipal nº 6.541/89, o Fundo é composto por: 1) terras do patrimônio municipal, ressalvados os terrenos institucionais; 2) áreas objeto de transferência de domínio do patrimônio da União ou Estado para o município; 3) áreas decorrentes de permuta do Poder Público Municipal, dos direitos de construção, para as zonas dotadas de infra-estrutura urbana e equipamentos sociais; 4) áreas objeto de doações ou transferências para fins de implantação de programas habitacionais de interesse social; 5) áreas desapropriadas pelo Poder Público Municipal para integrarem programas habitacionais; 6) o percentual de área exigido quando da aprovação de projetos de parcelamento (a Lei Municipal nº 6.543/89 em seu artigo 3º, III, determina a necessidade de destinação de no mínimo 5% da área total objeto do parcelamento do solo, para implantação de programas habitacionais de interesse social). Os imóveis que integram o Fundo de Terras devem ser destinados à implantação de programas habitacionais de interesse social. A determinação do percentual obrigatório de 5% (cinco por cento) do total da área de cada loteamento estabelecido pela Lei Municipal nº 6.543/89 em seu artigo 3º, inciso III, é fundamental para se ter uma política urbana mais justa, ampliando a atuação do poder público no enfrentamento das demandas por moradia popular, e efetivando a função socioambiental da propriedade, sem encargos para o erário e sem demandas judiciais. A legislação municipal permite a opção de oferta de outra área estranha aos loteamentos em geral, em qualquer outra zona da cidade, desde que ocorra a prévia aprovação do Poder Público e seja mantida a equivalência dos seus preços de mercado. No entanto, o controle e a gestão dessa permuta deveriam, segundo a Lei Orgânica do Município de Fortaleza, ser fiscalizado e gestionado pelo Conselho Municipal de Habitação Popular (CONHAP) e, portanto, somente aceito mediante deliberação desse Conselho. Percebe-se um avanço importante no sentido de estabelecer um controle social do Fundo de Terras municipal garantindo participação popular em seu planejamento e gerenciamento. Considerando a proposta de inclusão, no PL 3.057/2000, de mecanismo semelhante ao já aplicado em Fortaleza há quase dez anos, qual seja, um percentual dos parcelamentos que deve ser destinado a habitação de interesse social, é importante avaliar quais os aprendizados que a experiência municipal tem a oferecer. Um primeiro problema na execução da política municipal de parcelamento do solo diz respeito ao controle social e à participação popular. O Conselho de Habitação Popular, criado por meio da Lei Municipal nº 8.214/98, encontrava-se totalmente desarticulado e inoperante até o ano de 2007. A referida lei nomeou expressamente quais as entidades que deveriam integrar o CONHAP, não havendo nenhuma previsão de processo democrático para escolha desses representantes. Em razão disso, passados
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quase dez anos após sua criação, algumas das entidades da sociedade civil indicadas na lei já não mais existiam. Da mesma forma, diversas secretarias municipais foram extintas e outras surgiram, não havendo previsão de sua participação. Para se ter uma ideia, a Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (HABITAFOR), entidade de administração indireta responsável pela política habitacional do município, criada em dezembro de 2003, não tinha assento no Conselho. Tal situação fez com que o CONHAP se transformasse em uma estrutura defasada e sem capacidade de exercer suas atribuições. Com a inoperância do Conselho, o parcelamento do solo urbano em Fortaleza passa a ser conduzido exclusivamente pelo corpo técnico sem nenhum tipo de controle social. Assim, as permutas de imóveis previstas na lei municipal para suprir a exigência de destinação de 5% dos parcelamentos para habitação de interesse social passaram a ser objeto de deliberação da Secretaria de Infra-Estrutura sem a participação do CONHAP. No ano de 2005, inicio de uma nova gestão municipal, a HABITAFOR ganha mais destaque graças ao preocupante déficit habitacional. Há, assim, mais investimentos na área habitacional e Fortaleza começa a desenvolver uma política mais consistente. Nesse contexto, ao se planejar a construção de novos conjuntos habitacionais, os imóveis constantes do Fundo de Terras tomaria um papel estratégico. Contudo, a ausência de controle social no parcelamento do solo, fez com que inúmeras permutas de imóveis fossem aprovadas, transformando o que deveria ser excepcional em regra. Boa parte das terras provenientes de doação dos loteadores não integravam seus loteamentos, localizando-se, em geral, em áreas distantes, com dificuldade de acesso, infra-estrutura precária e condições ambientais impróprias. O gerenciamento das permutas por parte do corpo técnico do município não foi capaz fiscalizar adequadamente os imóveis doados. Não apenas pela quase inexistência de fiscais na prefeitura, mas também em virtude de uma visão de urbanização segregadora, as gestões municipais anteriores haviam colaborado fortemente para a cisão da cidade. Não havia e ainda não há, em Fortaleza, um plano municipal de habitação, o que dificulta a execução articulada das diversas ações nessa área. Da mesma forma, o crescimento da cidade não é planejado por meio de um plano de expansão urbana, ficando a critério do mercado definir onde e quando deverão ocorrer os novos parcelamentos. A previsão de destinação obrigatória de 5% da área dos loteamentos para habitação de interesse social, embora represente uma medida considerada avançada, não proporcionou mudanças na configuração excludente do crescimento urbano de Fortaleza. A maior parte da população continua residindo em condições de
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irregularidade, pois não consegue ter acesso à terra pelas vias formais do mercado. A ação direta do município na construção de habitações também não se revela capaz de integrar a população mais pobre à cidade formal, já que as terras que dispõe estão localizadas nas bordas da cidade ou em regiões com infra-estrutura precária. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ACESSO A TERRA E (IN)JUSTIÇA AMBIENTAL Em razão da segregação sócio-espacial verificada nas cidades, e com mais veemência nas grandes metrópoles, a população mais pobre fica desprovida não somente dos serviços básicos de infra-estrutura e equipamento urbanos. Sofre também com a ausência de condições dignas de moradia, encontrando, em muitas situações, uma única alternativa: ocupar irregularmente áreas insalubres. Tais áreas são associadas à vulnerabilidade da população às condições ambientais, posto que, em geral, são localizadas em margens de rios e lagoas, encostas de morros, áreas de mangue ou formações de dunas. Diante dessa constatação, Guerra e Cunha (2005, p. 27) concluem que “os problemas ambientais (ecológicos e sociais) não atingem igualmente todo o espaço urbano. Atingem muito mais os espaços físicos de ocupação das classes sociais menos favorecidas do que os das classes mais elevadas”. No caso de Fortaleza, as 103 áreas de risco evidenciam tal realidade. Resgatando os quatro eixos que integram o conceito de Justiça Ambiental, percebe-se que o crescimento urbano no caso em estudo conduz a uma cidade injusta que submete uma parcela da população a condições ambientais degradantes de maneira desproporcional. Com efeito, de forma alguma há equidade no acesso da população aos recursos ambientais, às áreas de lazer, aos espaços públicos ou à terra urbanizada. No que diz respeito à democracia participativa e ao acesso à informação, a experiência do CONHAP demonstra que as gestões municipais não apresentavam nenhum esforço em manter o controle social. Recentemente, o Conselho foi reestruturado, Conferências da Cidade foram realizadas em consonância com as Conferências Nacionais e tem havido uma maior abertura para o diálogo com os movimentos sociais. Os avanços, contudo, são recentes se comparados aos anos em que a cidade foi esteve desprovida de um planejamento democrático. Seus efeitos são ainda tímidos no que diz respeito à ampliação da oferta de terra urbana para as camadas de mais baixa renda da população. Por fim, a sustentabilidade urbana, considerada pelo Estatuto da Cidade como sendo o acesso “à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”, está longe de ser alcançada.
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O intento do presente artigo foi trazer contribuições para o debate da revisão da legislação federal de parcelamento do solo, especificamente no que diz respeito à exigência de destinação de percentual obrigatório dos parcelamentos para habitação de interesse social. A visão aqui apresentada não deve ser compreendida como uma crítica a tal mecanismo, mas um alerta sobre como os municípios devem implementar essa medida. A participação popular é, assim, um componente central que deve ser fortalecido para que haja democratização do acesso à terra. Uma segunda contribuição foi a tentativa integrar a concepção de Justiça Ambiental na análise do crescimento urbano. O intuito é de demonstrar que as agendas da moradia e do meio ambiente não são conflitantes, mas complementares. REFERENCIAS ACSELRAD, Henri. Justiça Ambiental: ação coletiva e estratégias argumentativas. In: ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto (org.). Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Ford, 2004. ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto. A Justiça Ambiental e a Dinâmica das Lutas Socioambientais no Brasil: uma introdução. In: HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto (org.). Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Ford, 2004. CARRERA, Francisco. Cidade Sustentável: utopia ou realidade? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (org.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. FERNANDES, Edésio. Preservação Ambiental ou Moradia? Um falso conflito. In: ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (org.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. FÓRUM NACIONAL DA REFORMA URBANA. Boletim do FNRU Sobre a Revisão da Lei de Parcelamento do Solo. 2008. Disponível em: <http://www.forumreformaurbana.org.br/_reforma/ pagina.php?id=2149>. Acesso em: 15.09.2008. GUERRA, Antônio José Teixeira; CUNHA, Sandra Baptista da. Impactos ambientais urbanos no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico: Brasil, 2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2000. PINDERHUGHES, Rachel. The Impact of Race on Environmental Quality: an empirical and theoretical discussion. In: Sociological Perspectives, v. 39, n. 2, 1996. REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL. Manifesto de Lançamento da RBJA. 2001. Disponível em: <http://www.justicaambiental.org.br/Justicaambiental/pagina.php?id=229>. Acesso em: 18.06.2008. RODRIGUES, Aríete Moysés. Moradia nas Cidades Brasileiras. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2003. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
8 PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO E INSTRUMENTOS DE POLÍTICA URBANA
A Outorga Onerosa do Direito de Criar Solo: a Experiência da Cidade de Porto Alegre ANDREA TEICHMANN VIZZOTTO1 Procuradora do Município de Porto Alegre.
1. NOÇÕES PRELIMINARES A acelerada ocupação desordenada do solo urbano com o desequilíbrio à infraestrutura urbana foi um dos fatores responsáveis pelo surgimento na Europa, na década de 70, do denominado “solo criado” como instrumento de planejamento e gestão urbanística, oriundo da ideia da separação do direito de construir do direito de propriedade (GRAU, 1976; ALOCCHIO, 2005; SILVA 2006). O pressuposto era o de que o direito de construir pertenceria à coletividade, não podendo ser individualizado, senão por meio de ato administrativo de concessão ou autorização do Poder Público (GRAU, 1976; COLLADO, 1979). Para o interessado em construir acima do limite único de construção fixado seria prevista a possibilidade, mediante uma contraprestação ao poder público, de assim o fazer. Essa contraprestação visava a compensar os efeitos do adensamento decorrentes da construção acima do coeficiente único de aproveitamento previsto nos planos diretores. A proposta teórica pretendia, também, solucionar os problemas decorrentes da supervalorização de determinadas áreas da cidade em razão das possibilidades de construção e adensamento. Construir além do limite legal mediante contrapartida significava ir além do coeficiente único de aproveitamento. Significava o pagamento pela criação do solo novo: o “solo criado”, ou melhor dizendo, a outorga onerosa de criar solo2.
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Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Especialista em Direito Municipal pela Escola Superior de Direito Municipal e Faculdade Ritter dos Reis. Especialista em Revitalização de Patrimônio Histórico em Centros Urbanos pela Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Professora de Direito Administrativo da Faculdade de Direito de Osório – FACOS. Co-Autora das obras: Temas de Direito UrbanoAmbiental e Direito Municipal em Debate.
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Ver a respeito da diferenciação entre o direito de construir e o direito de criar solo a preciosa lição do Ministro Eros Roberto Grau na relatoria do recurso extraordinário nº 387047-5, de 02-5-2008, do Supremo Tribunal Federal. In www.stf.gov.br. Acesso em 05-5-2008.
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Seria possível, então, o controle do uso e ocupação do solo, como medida restritiva ou incentivadora do desenvolvimento de áreas da cidade. Ademais, o “solo criado” visava também a corrigir distorções quanto à apropriação desigual do solo urbano, assim como a incidir sobre a distribuição dos benefícios gerados pela ação da administração pública, bem como sobre a repartição dos encargos gerados pelo uso do solo e a classificação uniforme dos efeitos decorrentes da valorização dos imóveis (GRAU, 1977, p. 32). Além de ser classificado como mecanismo de planejamento e gestão, pela incidência mais rápida e mais direta sobre o território da cidade, “o solo criado” é classificado, também, como um instrumento jurídico. Isso porque regula o exercício do direito de propriedade, autorizando a compra de solo do poder público acima do limite básico previsto em lei. Em um rapidíssimo relato histórico, nos limites deste trabalho, no mês de dezembro de 1976 foi editada a “Carta do Embu” que, inspirada na legislação francesa, introduziu o “solo criado” no Brasil, adotando a tese de estar o direito de construir inserido no de propriedade, no limite do coeficiente único de aproveitamento3. A partir daí, o solo excedente deveria ser adquirido do Poder Público, como titular do direito de edificar. Além disso, nos termos das bases teóricas a exploração e a valorização da propriedade dependeria da infra-estrutura pública oriunda dos recursos advindos de toda a coletividade, sem a qual a atividade aplicada à propriedade individual não poderia se perfectibilizar. A rentabilidade do solo urbano não decorreria de ação exclusiva do proprietário, mas de um conjunto de ações do setor público e privado. Dever se considerado também que, se por um lado os investimentos públicos e privados incrementam o uso individual da propriedade, também é verdade que há um valor econômico inerente à propriedade em si. Assim, partia-se da premissa de haver um padrão correspondente a esse valor econômico, impedindo que alguns proprietários se privilegiassem em detrimento de outros (GRAU, 1976, p. 25). A tradução desse padrão, em termos urbanísticos, seria o coeficiente de aproveitamento, logicamente único. Nada mais justo, então, que o proprietário interessado em criar solo acima do permitido compensasse o Poder Público pelo acréscimo de demanda de infra-estrutura e serviços urbanos. Necessário, assim, que o Poder Público assegurasse a proporção entre solos públicos e privados, com uma equação equilibrada entre atividades privadas e as áreas de circulação e de equipamentos públicos e comunitários. Portanto, a outorga 3
Diferentemente da ideia inicial de coeficiente único para todo o território urbano, o artigo 28 da Lei Federal nº 10.257, de 20-7-01, Estatuto da Cidade, prevê a possibilidade de índices diferenciados para as diversas áreas da cidade. A experiência de Porto Alegre na utilização do solo criado com índices diferenciados ilustra os efeitos da aplicação dessa política destoante das ideias teóricas do instrumento jurídico-urbanístico.
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onerosa de criação de solo é pautada pela equidade no exercício do direito de propriedade, garantido o coeficiente único de aproveitamento a todos os proprietários de terrenos. Além disso, parte-se do princípio de que, havendo construção acima desse limite, necessário compensar, mediante contrapartida, a outorga deferida. Os recursos arrecadados com a outorga do direito de criar solo devem estar diretamente vinculados à execução de obras e serviços que redundem em melhoria das condições de vida urbana, na questão da infra-estrutura e na da habitação popular. Essa necessária vinculação dos recursos justifica-se como medida de compensação pelo adensamento do solo e da infra-estrutura da cidade. 2. A OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CRIAR SOLO E A LEGISLAÇÃO DA CIDADE DE PORTO ALEGRE Em Porto Alegre, o 1º Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, instituído pela Lei Complementar nº 43, de 21-7-79, já previa, ainda que de forma tímida, a alienação ou permuta de “índices de aproveitamento”, denominados “índices construtivos”, que correspondiam à mobilidade da capacidade de construir4-5, utilizados como instrumento de gestão e controle da ocupação e do uso do solo urbano6. A Lei Municipal nº 159, de 22-7-877 instituiu o Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano, de “natureza contábil especial, cujos recursos se destinam a apoiar 4
Artigo 170 – As áreas vinculadas a recuos viários projetados, aberturas de vias constantes do esquema viário estabelecido pelo traçado do Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e a instalação de equipamentos urbanos, referidos no parágrafo único, inciso II do artigo 139, constituem a reserva de índice construtivo da respectiva Unidade Territorial, destinada à aquisição, parcial ou total, pelo Município, dos imóveis atingidos por essa vinculação, nos termos seguintes: I – permuta pela faculdade de construir, em qualquer gleba ou lote localizado na mesma Unidade Territorial de Planejamento, ressalvado o parágrafo único deste artigo, área correspondente ao índice de aproveitamento incidente na mesma Unidade Territorial, acrescido de área que o proprietário poderia construir em seu imóvel na parte atingida pela vinculação da qual se trata; (...) Parágrafo único – Quando se tratar da preservação de prédio identificado de interesse sócio-cultural na forma da Lei, fica ressalvada a hipótese de aplicação da reserva de índice construtivo em outras Unidades Territoriais, além daquela a que se refere o inciso I deste artigo, a critério do Sistema Municipal de Planejamento e Coordenação do Desenvolvimento Urbano, tendo por base: I – a identificação das Unidades Territoriais, cuja densidade esteja saturada e daquelas passíveis de acréscimo em seu adensamento, de acordo com os padrões do Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano; II – a manutenção de um equilíbrio entre os valores do terreno permutado e do terreno no qual seja aplicada a reserva de índice construtivo, de acordo com avaliação dos órgãos técnicos municipais competentes.
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A reserva de índices construtivos era utilizada para a permuta de área pelo direito de construir em áreas vinculadas a recuos viários projetados, aberturas de ruas e instalação de equipamentos. Essa hipótese correspondia ao que atualmente a Lei Complementar nº 434 – Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental, no artigo 51 e seguintes, denomina de Transferência de Potencial Construtivo.
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Como em outras cidades brasileiras, Porto Alegre adotou o solo criado como instrumento jurídico urbanístico, bem antes da sua adoção pela Lei Federal nº 10.257, de 10-7-2001, Estatuto da Cidade.
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Essa lei foi regulamentada pelo Decreto Municipal nº 9.001, de 08-10-87, alterado pelo Decreto nº 9581, de 1º12-89. Esse foi alterado pelo Decreto nº 10.749, de 28-9-93 e 11.098, de 16-9-94.
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em caráter supletivo os programas e projetos relacionados com o desenvolvimento urbano, implantados ou coordenados pela Secretaria de Planejamento Municipal”8, formado por receitas provindas de dotações orçamentárias específicas do Município e, entre outras, das receitas resultantes da alienação de reserva de índices construtivos, vinculados diretamente à implantação do traçado do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e à melhoria da infra-estrutura urbana já existente. Logo após, no ano de 1988, surgiu a Constituição Federal como um marco importante, ao dedicar capítulo específico à política urbana, atribuindo aos municípios a competência para a ordenação territorial.9 A seguir, no ano de 1989, foi editada a Lei Orgânica do Município de Porto Alegre como a lei de maior hierarquia no sistema jurídico municipal. Isso significa dizer que as diretrizes e normas gerais para o Município de Porto Alegre foram delineadas pela Lei Orgânica10. Nessa cronologia legislativa, em janeiro de 1994, foi editada a Lei Complementar nº 315, que regulamentou o artigo 21311 da Lei Orgânica de Porto Alegre, constituindo-se em marco significativo na adoção do solo criado na cidade de Porto Alegre. Pelo artigo 1º da Lei Complementar o solo criado foi caracterizado como instrumento urbanístico com os objetivos de incentivar a construção civil, através da utilização plena da capacidade construtiva, permitindo uma densificação populacional em regiões da cidade melhor atendidas com redes de serviço, saneamento e equipamentos públicos; evitar o adensamento populacional em regiões com estrutura urbana precária, através do aumento do potencial construtivo das regiões passíveis de densificação populacional; obter, pelos recursos auferidos, o retorno dos investimentos públicos, buscando o desenvolvimento harmônico da cidade, particularmente através da compra de áreas urbanas incorporadas ao Banco da Terra, visando a políticas habitacionais para a população de baixa renda e regularização fundiária; 8
Artigo 1 º da Lei Complementar nº 159.
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Artigo 30, II e VIII e artigo 182 e seguintes.
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Art. 202 – São instrumentos do desenvolvimento urbano, a serem definidos em lei: (...) VII – o solo criado; (...) Art. 204 – Para os fins previstos no artigo anterior o Município usará, entre outros, os seguintes instrumentos: (...) II – jurídicos: (...) I) solo criado;
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Art. 213 – Incorpora-se à legislação urbanística municipal o conceito de solo criado, entendido como excedente do índice de aproveitamento dos terrenos urbanos com relação a um nível preestabelecido em lei.
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propiciar, por meio dos recursos auferidos, investimentos em urbanização e equipamentos públicos nas regiões carentes da cidade e a complementação da infra-estrutura urbana das regiões melhor estruturadas, bem como a implantação do traçado do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, favorecendo, assim, o pleno aproveitamento do potencial construtivo destas regiões e auxiliar e incentivar supletivamente, por meio dos recursos auferidos, outras políticas públicas, preferencialmente, nas áreas de proteção ao menor, à cultura e ao patrimônio histórico. Por meio da outorga onerosa todo o proprietário teria o direito de construir até o coeficiente de aproveitamento correspondente a uma vez a área do terreno. Isso significava que até o coeficiente de aproveitamento 1,0, o proprietário do imóvel necessitaria apenas do projeto arquitetônico aprovado e licenciado pelo poder público para edificar. Além desse limite, o interessado deveria obter, mediante outorga, os índices de aproveitamento correspondentes à metragem de criação de solo.12 A Lei, no artigo 2º, criou uma exceção a esse coeficiente de aproveitamento básico, garantindo a manutenção dos critérios de definição da capacidade de construir dos terrenos estabelecida pelo anterior Plano Diretor, sem o ônus do “solo criado”. Com isso, somente os incrementos propostos para além dos coeficientes de aproveitamento já existentes na matriz apresentada pelo Plano Diretor da época corresponderiam ao “solo criado”13. Não obstante essa exceção de manutenção dos coeficientes de aproveitamento diferenciados previstos pela legislação anterior, fator determinante ao afastamento da legislação da capital gaúcha das linhas conceituais teóricas da “Carta do Embu”, foi mantida a ideia de criação de solo em contraposição à compensação decorrente do adensamento. Também foram agregadas outras formas de utilização dos recursos advindos da venda de solo criado, citando-se, por exemplo, o auxílio e incentivo, de forma a suplementar outras políticas públicas.14 Verifica-se então que, além do 12
Sobre a diferenciação desses dois tipos distintos de atos administrativos ver capítulo anterior a respeito da natureza jurídica da outorga onerosa do direito de construir.
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Artigo 2º [...] § 1º – Ficam isentadas do ônus do Solo Criado: I – as edificações já existentes, cuja capacidade construtiva esteja em conformidade com a legislação urbanística vigorante na época da construção; II – a capacidade construtiva dos terrenos expressa nos atuais índices do PDDU. § 2º – Não haverá ônus de Solo Criado para as edificações que vierem a ser construídas dentro dos limites impostos pelos índices 1,0 ou da capacidade construtiva permitida pelos atuais índices do PDDU. § 3º – Qualquer aumento do potencial construtivo da cidade, seja por incorporação de novas áreas à área urbana de Ocupação Intensiva ou por aumento da capacidade de edificação nas atuais UTPs, ou em outras áreas adensáveis do PDDU, dar-se-á na forma de Solo Criado, observado o disposto no “caput” deste artigo e em seu § 1º, nos termos desta Lei Complementar.
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Artigo 1º, inciso V da Lei Complementar nº 315.
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alargamento das hipóteses de utilização dos recursos do Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano, a exceção passou a regra geral. O pagamento em dinheiro pela criação de solo passou a ser a regra. Se no Plano Diretor de 1979, ainda sob a influência da “Carta do Embu”, os fins da operação de venda de solo eram atinentes à compensação da infra-estrutura urbana, mediante monitoramento específico, tais propósitos foram bastante alargados. A vinculação das receitas arrecadadas visava a uma finalidade específica, com o uso exclusivo na compensação decorrente do adensamento específico ou no custeio de política habitacional. Tanto em uma como em outra hipótese haveria a compensação originada pela criação de solo.15 Inegável que o gasto dos recursos vinculados ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano em políticas públicas de proteção da cultura e do menor, por exemplo, não obstante a sua importância, enfraqueceram a natureza eminentemente urbanística do instituto do solo criado.16 A Lei Complementar nº 315 foi regulamentada pela Lei Municipal nº 7.592, de 12-01-95, que instituiu o Fundo Municipal de Desenvolvimento, como fundo contábil especial para financiar a política habitacional do Município de Porto Alegre. Note-se que a regulamentação da Lei Complementar nº 315 tratou da política habitacional do Município de Porto Alegre, inserido o uso do “solo criado”. Ou seja, a regulamentação não se ateve aos objetivos previstos, mas regulou aspectos de política habitacional, em um alargamento juridicamente impróprio, quer do ponto de vista formal-legislativo, quer do ponto de vista material. Se por um lado houve o incremento de recursos arrecadados pelo Fundo de Desenvolvimento, formado a partir do disposto no artigo 2º da Lei Municipal nº 7.59217, por outro lado houve uma pulverização de finalidades públicas. A própria 15
O gasto dos recursos com o financiamento de outras políticas públicas deu azo a entendimentos doutrinários relativos à natureza arrecadatória da outorga onerosa (ALOCCHIO, 2006, p. 57).
16
A natureza jurídica da outorga onerosa do direito de construir foi examinada em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, cuja relatoria coube ao eminente Ministro Eros Roberto Grau, já anteriormente referida.
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Os recursos do FMD provirão: I – da taxa de licenciamento de construção, calculada com fundamento no custo unitário básico da construção ou em outro índice que venha a substituí-lo; II – dos recursos auferidos com a aplicação do instituto do solo criado e da alienação da reserva de índices; III – de recursos orçamentários do Município; IV – de contribuições, transferências, subvenções, auxílios ou doações dos setores público e privado, bem como de organismos nacionais ou internacionais; V – dos recursos auferidos com as contribuições mensais obrigatórias decorrentes da aplicação das Leis Complementares 242/90 e 251/91. VI – de recursos provenientes de Fundos Estaduais ou Nacionais; VII – de recursos auferidos com a aplicação do previsto no parágrafo único da Lei Complementar nº 312/93; VIII – de rendas provenientes da aplicação de seus recursos, bem como de outras receitas que lhe vierem a ser destinadas.
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origem das receitas integrantes do Fundo de Desenvolvimento ratifica a ideia de ser política urbano-habitacional muito mais ampla do que a mera operação matemática decorrente da compensação da infra-estrutura em razão do adensamento, como dispunha o comando da Lei Complementar nº 315. Com a combinação do disposto pelo inciso II do artigo 1º com o artigo 4º da Lei Municipal nº 7.592 os recursos da venda de solo criado passaram a ser utilizados na remoção de moradias em área de risco e reassentamento, despesas cartorárias e registrarias decorrentes dos processos de regularização e de desapropriação. Além disso, os recursos passaram a financiar a construção de albergues para crianças e adolescentes para fins de enfrentamento de situações decorrentes de problemas habitacionais, programas de recuperação de cortiços, em especial daqueles cuja arquitetura fosse significativa para o patrimônio histórico e cultural da cidade. Nas hipóteses elencadas não há uma sequer que refira a utilização dos valores arrecadados para compensação direta e específica à infraestrutura em decorrência da venda de solo e adensamento. Portanto, o alargamento das hipóteses de utilização dos recursos advindos do Fundo a situações relativas à política sócio-habitacional, desvirtuaram a ideia original de aplicação do mecanismo urbanístico do solo criado na cidade de Porto Alegre. Pode-se afirmar, assim, ter havido uma priorização à manutenção da situação urbanística anterior. Embora uma das diretrizes do novo Plano tenha sido a da articulação do novo ao pré-existente, o espaço privado ao público, bem como as interfaces críticas da cidade (MARASQUIN, 1998, p. 45), pode-se deduzir também ter havido a perpetuação do modelo pré-existente como justificador das novas regras. O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto Alegre, Lei Complementar nº 434, de 10-12-99, buscou alterar a política de planejamento da cidade. A natureza reguladora da ocupação e do uso do solo urbano dos planos anteriores deu lugar a um plano de cunho estratégico, estruturado por meio de princípios, objetivos e metas. A venda de solo foi prevista pelo atual Plano Diretor18, sempre orientada pelas estratégias e pela interpretação sistemática, permanecendo em vigor a Lei Complementar nº 315 e suas respectivas regulamentações. 18
Artigo 53. O Solo Criado é a permissão onerosa do Poder Público ao empreendedor para fins de edificação em Área de Ocupação Intensiva, utilizando-se de estoques construtivos públicos, e rege-se pelo disposto na Lei Complementam” 315, de 6 de janeiro de 1994. § 1º As vendas de estoques construtivos serão imediatamente suspensas mediante decreto do Poder Executivo, em caso de se constatar impacto negativo na infra-estrutura decorrente da aplicação do Solo Criado, ou mesmo quando se verifique a inviabilidade de sua aplicação em face dos limites estabelecidos para as Unidades de Estruturação Urbana ou quarteirão, nos termos do art. 67. [...] Artigo 110 – O Solo Criado e a Transferência de Potencial Construtivo serão aplicados em toda a Área de Ocupação Intensiva, devendo atender aos limites máximos previstos no Anexo 6, considerando nesses limites o
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O Plano Diretor de 1999 previu o monitoramento da densificação, por meio de patamares máximos de densidade por Unidades de Estruturação Urbana. Esse monitoramento permanente pretendia a observação da evolução da densidade urbana, com a avaliação permanente da capacidade dos equipamentos urbanos e comunitários, segundo parâmetros e critérios de qualidade quanto ao dimensionamento, carências e tipologias.19Aliado nesse processo de planejamento e gestão, o monitoramento constante e permanente funciona como peça-chave na ordenação da cidade, no controle da ocupação e do uso do solo urbano e na medida concretização do modelo especial traçado pelo Plano Diretor. A gestão dinâmica, contínua e flexível conjugada com o sistema de informações previsto pelo artigo 46 e seguintes do Plano Diretor são imprescindíveis ao monitoramento constante das condições da ocupação e do uso do solo urbano. No caso específico da outorga onerosa, o monitoramento subsidia as informações sobre o adensamento de determinada área da cidade, permitindo que se mantenha o equilíbrio com a infra-estrutura existente. Além disso, o monitoramento da densificação permite a identificação dos eixos e padrões de crescimento da cidade a fim de que sejam mantidas ou revisadas as metas e estratégias para determinadas áreas, conforme o resultado desse acompanhamento constante. Em Porto Alegre, há também, o controle numérico da metragem do estoque de criação de solo posto à disposição de uma determinada Macrozona20-21. Esses controles
somatório dos índices privados e públicos. Artigo 111-O Solo Criado, estoques construtivos públicos alienáveis, é constituído por: I – índices alienáveis adensáveis; II – áreas construídas não-adensáveis; III – índices de ajuste. § 1º Índices alienáveis adensáveis correspondem às áreas de construção computáveis e às áreas construídas não-adensáveis, nos termos do § 1º do art. 107. § 2º Áreas construídas não-adensáveis são as áreas definidas no art. 107, nos termos do § 4º do mesmo artigo. § 3º Índices de ajuste correspondem à aplicação de Solo Criado para ajuste de projeto, desde que não ultrapasse a 10% (dez por cento) do índice de Aproveitamento do terreno, até o máximo de 100m2 (cem metros quadrados); ou acima destes limites, a critério do SMGP (Sistema Municipal de Gestão do Planejamento), desde que comprovadamente não resulte em densificação. (NR) § 4º O Solo Criado constituído de áreas construídas não-adensáveis e de índices de ajuste terão estoques ilimitados. 19
Artigo 71 do PDDUA.
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A Macrozona constitui unidade de divisão territorial da cidade prevista pelo artigo 29 da Lei Complementar nº 434.
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Em Porto Alegre o outorgado terá o prazo de cinco anos a contar da outorga para o uso dos índices de aproveitamento adquiridos. Ultrapassado o prazo legal sem o uso, os índices de aproveitamento correspondentes ao solo não criado retornam aos estoques públicos disponíveis, procedimento inerente à gestão.
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são imprescindíveis à gestão da ocupação e do uso do solo da cidade. Afora isso, há o controle contábil dos recursos advindos das operações de outorga onerosa e o controle documental pela formalização jurídica adequada das operações de outorga onerosa. Esses controles também se traduzem em monitoramento não apenas para manter a dinâmica do processo de gestão, mas para dar transparência e clareza aos atos urbanísticos praticados. 3. AS OPERAÇÕES DE OUTORGA ONEROSA EM PORTO ALEGRE: O CASO DO BAIRRO MENINO DEUS A rápida transformação de certas áreas da cidade, aliada à expectativa de perda de qualidade de vida e bem estar dos moradores, geraram a mobilização das comunidades por meio de grupos organizados22 que imputaram à verticalização a causa principal desse fenômeno de crescimento. Há também a questão do impacto visual causado pelas construções em altura. Esse impacto se traduz na dimensão das recentes edificações em relação às demais construções do bairro caracterizado pelo predomínio de residências de 1 ou 2 pavimentos, alterando a paisagem e ambiência do bairro. A construção em altura não possui relação direta com o aumento de densidade, na medida em que, se mantida a infra-estrutura adequada densificação não haverá. Todavia, a acelerada transformação de partes da cidade, como a do bairro Menino Deus, demandou investigação do papel do “solo criado” nesse processo. No ano de 2003 o setor imobiliário realizou pesquisa em que foi constatado ser o bairro Menino Deus um dos mais atrativos no que se refere à oferta de imóveis.23 Ainda, os dados coletados pela Secretaria de Planejamento de Porto Alegre, no ano de 2004, que mostraram ser o bairro um dos quatro mais adensados e verticalizados da cidade. Examinadas, por amostragem, edificações construídas após o ano 2000, o que se constatou foi que a peculiaridade da legislação da cidade marcou o modelo espacial de forma indelével. A conclusão primeira foi a de que os coeficientes de aproveitamento diferenciados são elevados o suficiente para atender a demanda imobiliária, na medida em que duplicaram ou até triplicaram a capacidade construtiva dos imóveis.
22
Na cidade de Porto Alegre podem ser citados os movimentos “Petrópolis Vive”, “Moinhos Vive” e “Menino Deus Vive”. Todos esses movimentos comunitários têm por objetivo principal manter as características dos bairros, evitando a verticalização acelerada ocorrida nos últimos cinco anos.
23
Disponível em: <www.urbansystems.com>. Acessado em: 20-7-07.
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Outra conclusão foi a da alta concentração de índices de aproveitamento em poucas edificações, acarretando não apenas a verticalização, mas o exercício diferenciado do direito de propriedade dos demais proprietários de imóveis nesses locais. Não obstante os coeficientes previstos, se analisada a densidade, tanto populacional como habitacional, não haveria qualquer outra possibilidade de edificação, prejudicando os demais proprietários que desejassem construir em altura nesses quarteirões. Ou seja, aquele proprietário que ainda possui coeficiente de aproveitamento para ser utilizado não poderia sequer exercer o seu direito de propriedade, haja vista os patamares máximos de densificação encontrarem-se esgotados. Por fim convém referir que não se encontrou em quaisquer das edificações examinadas qualquer operação efetuada na forma de permuta por área. As operações realizadas foram, na totalidade, “compensadas” em espécie. Essa forma de contrapartida, prevista em lei, inicialmente como modo excepcional de contrapartida ao adensamento, tornou-se prática cotidiana. O pagamento em dinheiro, não obstante a previsão legal, com vinculação dos recursos ao Fundo Municipal, é outro fator que dificulta o controle do equilíbrio da densidade e infra-estrutura. Afora o fato de ter sido constatado que os recursos ingressam no caixa-comum, a permuta por área seria uma forma mais direta e eficaz de controle, justamente em razão da natureza dessa transação. 4. CONCLUSÕES As exceções previstas na legislação de Porto Alegre desvirtuaram, por completo, a aplicação do instrumento urbanístico na cidade de Porto Alegre de modo que o coeficiente único de aproveitamento correspondente a 1,0 nunca foi aplicado. Isso porque foram mantidos os critérios de capacidade de construir dos terrenos fixada pelas legislações anteriores. O afastamento das ideias conceituais contidos na “Carta do Embu” só se justificou como forma de privilégio a outros interesses, que não urbanísticos, nem jurídicos e nem coletivos. Esse afastamento, representado pela manutenção dos critérios de definição da capacidade construtiva dos imóveis, tal como previstos na legislação anterior prejudicou, pela impressão indelével, a aplicação do solo criado em Porto Alegre. Ao serem mantidos os coeficientes de aproveitamento diferenciados, sob a equivocada escusa de evitar uma hipotética discussão sobre direito adquirido, incabível em sede de normatização jurídico-urbanística, ocorreu a priorização dos interesses da construção civil em detrimento do uso dos instrumentos urbanísticos, entre eles o solo criado. O novo modelo de cidade e de desenvolvimento urbano trazido pelo Plano Diretor de 1999, não obstante a visão estratégica distinta do enfoque normativo
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anterior, foi inevitavelmente marcado pela matriz preexistente de coeficientes de aproveitamento diferenciados. Ou seja, a opção de concepção do legislador de 1994, nos termos da Lei Complementar nº 315 e alterações posteriores, configurou-se como um “caminho sem volta”, já que a base conceituai da normatização do solo criado na cidade de Porto Alegre partiu de premissas diversas que, por evidência, geraram impactos também diversos no território da cidade. Ocorre que, também nesse aspecto o Plano Diretor atual, firmado por meio de estratégias como forma de mudar o planejamento e a gestão da cidade, imprimindo novas características ao modelo espacial da cidade, por exemplo, não saiu da esfera teórica. Quanto ao uso dos instrumentos urbanísticos, no planejamento e gestão da cidade, o descompasso entre a legislação e a realidade encontrada, tal como demonstraram os resultados obtidos no caso empírico, tornou o Plano Diretor atual muito semelhante ao anterior, tecnocrático, discricionário e defensor dos interesses privados, não dos coletivos. Por fim, de ratificar que, o “solo criado”, na forma como foi previsto pela legislação municipal, não se prestou ao fim primeiro de incentivo ou contenção do desenvolvimento de áreas da cidade, prejudicado que foi pelos coeficientes de aproveitamento diferenciados. Nesse contexto serviu apenas como complementação ou ajuste na capacidade produtiva, relegado a um lugar sem qualquer destaque no planejamento e gestão do solo urbano. O que era uma expectativa acabou tendo um papel secundário, servindo apenas como moeda de troca em caso de ajuste ou adensamento disfarçado. O instrumento da outorga de criação de solo é excelente instrumento de planejamento e gestão do solo urbano, desde que observados os requisitos teóricos básicos entre os quais a relação direta entre infra-estrutura e densidade urbana, atendido o coeficiente único de aproveitamento. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALOCCHIO, Luiz Henrique. Do Solo Criado. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005. ASPECTOS JURÍDICOS DO SOLO CRIADO, Embu/São Paulo. Anais. São Paulo: Fundação Prefeito Faria Lima, dez. 1976. BRASIL. Constituição (1988), de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Poder Constituinte, Brasília, DF, 05 de outubro de 1988. ______. Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da CF. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 de julho de 2001. COLLADO, Pedro Escribano. La propriedad privada urbana: encuadramiento y regimen. Madrid: Montecorvo, 1979.
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Sites consultados: www.stf.gov.br www.urbansystems.com
Uma Proposta Inovadora: Operação Urbana Consorciada Lomba do Pinheiro – Porto Alegre DENISE BONAT PEGORARO* CLÉIA B. HAUSCHILD DE OLIVEIRA* ANDRÉA OBERRATHER*** Arquitetas.
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) de Porto Alegre, L.C. 434/99, aprovado em 1999, depois de um amplo processo de discussão envolvendo os paradigmas da elaboração da Constituição de 1988, aponta novos conceitos que estão indicados através de um conjunto de princípios, estratégias, diretrizes e normas, capazes de propiciar um planejamento flexível com capacidade de adaptar o modelo de cidade desejada, à dinâmica de suas partes, não só nos aspectos físicos, mas sociais e econômicos. O Projeto Especial é um instrumento do PDDUA que tem como intenção principal fortalecer o papel do Poder Público municipal enquanto gestor do desenvolvimento urbano. Além de sua tradicional atribuição de produzir, aplicar e controlar a legislação urbanística, ganha a possibilidade de ser um agente social ativo, propositivo na tarefa de alcançar metas, propostas alternativas para solucionar problemas e buscar a melhoria das condições de ocupação de determinados espaços urbanos.
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Arquiteta pela Universidade Federal de Pelotas (UPEL), mestranda no PROPUR da FAU/UFRGS, Técnica da Secretaria do Planejamento Municipal (SPM) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre desde 1995, coordenadora do Projeto Lomba do Pinheiro a partir de 2007 até a presente data.
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Arquiteta pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAU/UFRGS), Especialização em Planejamento Urbano pelo Programa de Pós Graduação em Urbanismo – PROPUR da FAU/UFRGS, Especialização em Desenvolvimento Sustentável pelo Fórum Latino Americano de Ciências Ambientais – FLACAN, Argentina. Técnica da Secretaria do Planejamento Municipal (SPM) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre desde 1979, gerente do Programa Porto do Futuro e primeira coordenadora do Projeto Lomba do Pinheiro de 1998 a 2004.
*** Arquiteta pela FAU/UFRGS, Técnica da Secretaria do Planejamento Municipal (SPM) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre desde 2000, segunda coordenadora do Projeto Lomba do Pinheiro de 2004 a 2007, coordenadora do Plano Estratégico da Zona Sul.
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BASE LEGAL O PDDUA, através da aplicação do disposto no Art. 21, referente à Estratégia de Produção da Cidade, propicia que o Poder Público seja o agente promotor do desenvolvimento, como se verifica no seu enunciado, ou seja: “Estratégia de Produção da Cidade que tem como objetivo a capacitação do Município para a promoção do seu desenvolvimento através de um conjunto de ações políticas e instrumentos de gerenciamento do solo urbano, que envolvem a diversidade dos agentes produtores da cidade e incorporam as oportunidades empresariais aos interesses do desenvolvimento urbano como um todo.”
O parágrafo único do mesmo artigo destaca que a Estratégia de Produção da Cidade efetivar-se-á através de: I – da promoção, por parte do Município, de oportunidades empresariais para o desenvolvimento urbano; II – do estímulo e gerenciamento de propostas negociadas com vistas à consolidação do desenvolvimento urbano; III – da implementação de uma política de habitação social que integre e regule as forças econômicas informais de acesso à terra e capacite o Município para a produção pública de Habitação de Interesse Social (HIS) IV – da implementação de uma política habitacional para as populações de baixa e média renda, com incentivos e estímulos à produção de habitação.
Já o artigo 23 estabelece os programas que compõem esta estratégia: I – Programa de Projetos Especiais, que busca promover intervenções que, pela multiplicidade de agentes envolvidos no seu processo de produção ou por suas especificidades ou localização, necessitam critérios especiais e passam por acordos programáticos estabelecidos com o Poder Público, tendo como referência os padrões definidos no Plano Regulador; II – Programa de Habitação de Interesse Social, que propõe a implementação de ações, projetos e procedimentos que incidam no processo de ocupação informal do solo urbano,através da regulamentação, da manutenção e da produção da Habitação de Interesse Social, viabilizando o acesso dos setores sociais de baixa renda ao solo legalizado, adequadamente localizado, considerando, entre outros aspectos, áreas de risco, compatibilização com o meio ambiente, posição relativa aos locais estruturados da cidade, em especial os locais de trabalho, e dotado dos serviços essenciais; III – Programa de Gerenciamento dos Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano, que busca gerenciar os instrumentos de planejamento, monitorando o desenvolvimento urbano, potencializar a aplicação dos instrumentos captadores e redistributivos da renda urbana, bem como sistematizar procedimentos para a elaboração de projetos que viabilizem a captação de recursos;
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IV – Programa de Incentivos à Habitação para baixa e média renda que, através de parcerias entre o poder público e a iniciativa privada, com a adoção de incentivos fiscais, financiamentos especiais e oferta de Solo Criado, dentre outros, busque a criação de procedimentos simplificados no exame e aprovação de projetos de edificação e parcelamento do solo direcionados à população de baixa e média renda.
Dentro deste contexto está inserido o Projeto Integrado da Lomba do Pinheiro a partir do momento em que, através de uma experiência piloto, busca o desenvolvimento de uma metodologia de trabalho projetual, como instrumento de promoção de um planejamento mais gerencial e participativo, dentro de uma visão mais estratégica e menos normativa. Propomos novos parâmetros de gestão e desenvolvimento na lei que denominamos de “Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro”, sendo a região da Lomba do Pinheiro uma das constantes no gráfico indicativo para desenvolver Projeto Especial que faz parte da Estratégia de Produção da Cidade, definida no Capítulo VI (PDDUA, figura 7, p 29). Também no Plano Diretor de Porto Alegre – L.C.434/99 verificamos que nos artigos 55 a 65 estão estabelecidas as regras a serem aplicadas nas áreas objeto de Projetos Especiais. No parágrafo 2º do artigo 55 está o conceito de Operação Concertada, que apresenta estreita relação com o conceito de Operação Urbana Consorciada, como podemos observar a seguir: “Operação Concertada é o processo pelo qual se estabelecem as condições e compromissos necessários, firmados em Termos de Ajustamento, para a implementação de empreendimento compreendendo edificação e parcelamento do solo com características especiais, ou para o desenvolvimento de áreas da cidade, que necessitem acordos programáticos adequados às diretrizes gerais e estratégias definidas pelo plano diretor.”
Ao observar o enunciado do artigo 62 da L.C. 434/99, parte reproduzido abaixo, verificamos uma estreita relação entre o que estabelece a estratégia da Cidade, constante do PDDUA e o processo de planejamento implementado na região nos últimos anos, o que possibilitou não somente conhecer as peculiaridades do local, mas especialmente, tomar decisões compatíveis com aquela realidade, envolvendo os agentes, ou seja: “entende-se por Empreendimento de Impacto Urbano de Segundo Nível o Projeto Especial para setor da cidade que, no seu processo de produção, e pelas suas peculiaridades, envolve múltiplos agentes, com possibilidade de representar novas formas de ocupação do solo.”
O projeto de lei em questão propõe um conjunto de regras que tem como base, não só o Plano Diretor de Porto Alegre, mas também o Estatuto da Cidade, Lei Federal
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nº 10.257, de 2001. Nesta lei, encontra-se o conceito de Operação Urbana Consorciada, na Seção X, art. 32 § 1º, que transcrevemos a seguir: “Considera-se Operação Urbana Consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental”.
Também no Art. 33 do Estatuto da Cidade encontramos respaldo legal, pois o mesmo determina que o Poder Público coordene intervenções e medidas a serem implementadas na área delimitada pela Operação Urbana e remete à lei municipal específica, baseada no Plano Diretor, a delimitação da área e a definição de um plano de operação urbana consorciada. Este deve conter, entre outras exigências: 1. Programa básico de ocupação; 2. Programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação; 3. Estudo prévio de impacto de vizinhança; 4. Contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados em função da utilização das medidas decorrentes das modificações das normas edilícias e urbanísticas ou da regularização de imóveis; 5. Representação da sociedade civil no controle compartilhado da operação.
Assim, a proposta de Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro tem um amplo amparo jurídico no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental e no Estatuto da Cidade, os quais foram resultado de longos anos de discussão e amadurecimento de novos paradigmas de como aliar a produção urbana com justiça social. PROJETO INTEGRADO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA LOMBA DO PINHEIRO Com base neste suporte legal e com o objetivo de aplicar novos conceitos de planejamento urbano, a partir de 1998, foi realizada uma capacitação interna na Prefeitura de Porto Alegre para desenvolver em três áreas distintas da cidade, os chamados “Projetos Integrados”, na perspectiva de capacitar o Município na viabilização de soluções diferenciadas para cada região que, por suas peculiaridades, exigem uma análise aprofundada e propostas compatibilizadas. O Projeto Integrado denominado “Desenvolvimento Sustentável da Lomba do Pinheiro” abrange toda a Macrozona 6 definida no Plano Diretor ora vigente e parte
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da Macrozona 8, região caracterizada pela sua localização na periferia, com significativa concentração de bens naturais e ocupações espontâneas e irregulares de baixa e média renda. O Projeto teve como objetivo geral identificar oportunidades de desenvolvimento que resolvessem os conflitos de urbanização, compatibilizando-os com a preservação dos bens naturais, além de garantir o atendimento da demanda habitacional reprimida e a criação de postos de trabalho e de programas de geração de renda. Um amplo caminho foi percorrido, podendo ser dividido em três fases: 1) Trabalho interno de capacitação técnica e conhecimento da região, realização de várias reuniões com os atores locais na área de estudo, para a construção dos objetivos a serem desenvolvidos pelo projeto. 2) Elaboração do diagnóstico do meio natural e construído envolvendo Universidade Federal, órgãos estaduais e municipais, além de forte participação dos moradores na elaboração do Diagnóstico Rápido Participativo através da criação do Grupo de Planejamento Local. 3) Elaboração da lei de Operação Urbana Consorciada Lomba do Pinheiro. Paralelamente foram realizadas ações que contribuíram para alimentar o diagnóstico do meio construído, tais como: estudos de criação do Parque Linear Arroio Taquara, desenvolvimento do EVU – Estudo de Viabilidade Urbanística – na Vila Recreio da Divisa (Experiência Habitacional) com definição de AEIS I em 2002, programas para o desenvolvimento econômico local da Lomba do Pinheiro e a instituição do Grupo de Planejamento Local (GPL). Este grupo criado em 2002, foi composto por representantes da comunidade, da saúde, de escolas, da igreja, do Orçamento Participativo (OP), da Região de Gestão do Planejamento 7 (RGP 7), bem como por representantes de departamentos e secretarias municipais, assim como da METROPLAN e EMATER, representando o Governo Estadual. Por meio deste grupo, foi possível elaborar o Diagnóstico Rápido Participativo (DRP) da região com a intenção de conhecer sua realidade, através de uma leitura não só quantitativa, mas principalmente qualitativa. Este grupo teve um papel fundamental na construção desta lei, pois não só apresentou um olhar bastante particular do território, como complementou a análise técnica, além de acompanhar todo o Diagnóstico Integrado, incorporando nesta avaliação as necessidades em relação às melhorias físicas, sociais e econômicas a serem implementadas no futuro. O estudo aprofundado permitiu a identificação de áreas aptas e não aptas para a ocupação. Encontrou-se no instrumento da Operação Urbana Consorciada, disponibilizada pelo Estatuto da Cidade (LF 10.257/01), a forma de atender ao desenvolvimento da Lomba do Pinheiro de forma equilibrada.
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OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA LOMBA DO PINHEIRO Os eixos de transformação urbana foram definidos, por um lado, através de estímulos à ocupação e uso do solo de acordo com um zoneamento que resultou do Diagnóstico Integrado, inclusive definindo setores prioritários de atuação, descritos no corpo da lei. Foram identificadas Áreas Aptas à Ocupação e para cada uma delas foi avaliado o grau de adensamento máximo, tendo em vista projetar a população futura e os respectivos equipamentos urbanos e comunitários. Porém a ideia não é simplesmente mudar o Regime Urbanístico possibilitando maior potencial construtivo nas áreas aptas. A partir do estudo de experiências em diversas cidades do mundo, verificou-se a possibilidade de proceder esta alteração de regime através de uma Operação Urbana, ou seja, uma lei que autorize a mudança de Regime Urbanístico, desde que sejam realizadas melhorias urbanas como forma de contrapartidas, calculadas em função de parte da recuperação obtida a partir da valorização decorrente desta mudança no uso do solo, e seja dada prioridade para viabilizar projetos de Interesse Social. O estudo realizado possibilitou uma referência, para que se estabeleçam metas de transformações urbanísticas necessárias a serem obtidas no tempo, no que tange a suprir as carências quanto ao traçado viário estruturador, composto por vias arteriais e coletoras, assim como prover os atuais e futuros moradores de equipamentos urbanos e comunitários bem como efetuar a regularização urbanística e fundiária e a produção de novos lotes a serem oferecidos às faixas de renda mais necessitadas, porém, com baixo custo. A partir do Diagnóstico Integrado da Lomba do Pinheiro, foram elaborados parâmetros que propiciem as transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental. Este diagnóstico indica as áreas mais carentes de equipamentos urbanos e comunitários e propõe incentivos para ocupação das áreas aptas, que recebem Regime Urbanístico adequado às condições de uso e ocupação do solo, bem como os equipamentos necessários para a densificação proposta. Trata, portanto de um conjunto de regras que serão implementadas na região, alterando em especial a divisão territorial, o zoneamento de uso do solo, os códigos e padrões de edificação e parcelamento do solo. Estas novas regras foram aplicadas na região em estudo, a qual foi divida em 4 partes, sendo estas áreas compostas predominantemente por residências, sobre as quais está previsto um sistema de Áreas Especiais – de Interesse Social, Institucional e Natural – bem como, as Centralidades e áreas incentivadas para produção primária, chamadas de Produtivas I e II. Para o cumprimento dos objetivos desta lei, estão propostos dois regimes urbanísticos diferenciados, que correspondem ao Regime Urbanístico Básico, sendo este mais de acordo com a situação existente, e o Regime Urbanístico Máximo, que considera o adensamento proposto e projeta as melhorias urbanas necessárias para o
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desenvolvimento da região. O Regime Urbanístico Máximo só poderá ser utilizado mediante a prestação de contrapartidas, por parte dos empreendedores, que serão calculadas de acordo com a valorização imobiliária, decorrente da oferta deste regime urbanístico. Após a aprovação do empreendimento ou atividade será assinado um Termo de Compromisso que expressará o ato administrativo decorrente da adesão a Operação Urbana Consorciada Lomba do Pinheiro. O projeto de lei de Operação Urbana Consorciada, não se restringe às normas de Uso e Ocupação do Solo (Regime Urbanístico), mas também define o Plano de Melhorias Urbanas, estabelece um Termo de Compromisso que regrará as obrigações do empreendedor e cria o Comitê de Desenvolvimento1 da Lomba do Pinheiro, com a finalidade de acompanhar sua implementação, bem como a utilização simultânea de outros instrumentos complementares, como por exemplo, planos setoriais, programas, recursos disponíveis no Município, tais como, Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano, através de sua capacidade de financiar a política habitacional nos termos do Capítulo IV, Título V da Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, o Banco de Terras, quando este destina terras para atender os programas e projetos habitacionais e de equipamentos de caráter social, e outros, como Concessão do Direito Real de Uso, IPTU, Reserva de índice Construtivo e Solo Criado. Cabe aqui salientar que a proposta de instituir uma Operação Urbana Consorciada na Lomba do Pinheiro é justamente para fortalecer o papel do poder público na gestão das diversas iniciativas de desenvolvimento urbano, na promoção das parcerias público-privadas, além de prover a região de um Plano de Melhorias Urbanas. Estas representam as contrapartidas sugeridas aos investidores, visando minimizar as carências de infra-estrutura e equipamentos urbanos e comunitários, bem como, recuperar o ambiente bastante degradado e ameaçado constantemente de extinção, em especial os ecossistemas naturais de importância não só para a região, mas para a cidade como um todo, incluindo a promoção da geração de renda cujos benefícios deverão estar voltados à região da Lomba do Pinheiro. Trata-se assim, de uma legislação atual, capaz de não só estabelecer novas regras, mas de promover as ações necessárias para alavancar o desenvolvimento da região e implementar progressivamente seus princípios e finalidades, abaixo relacionadas: I – A promoção da sustentabilidade urbano-ambiental na região da Lomba do Pinheiro e na cidade de Porto Alegre;
1
Proposto com formação paritária entre governo municipal, sociedade civil e moradores locais.
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II – Produção de Habitação de Interesse Social (HIS), para atendimento da demanda habitacional reprimida; III – A promoção da justa distribuição de ônus e benefícios do processo de urbanização; IV – A recuperação da valorização imobiliária decorrente dos investimentos públicos e das alterações da normativa urbanística; V – A supremacia do interesse coletivo sobre os interesses particulares; VI – O estímulo a uso do solo miscigenado e a democratização do acesso a terra na região da Lomba do Pinheiro; VII – A regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de uso, parcelamento do solo, edificação, com gravame de AEIS I ou II; VIII – A parceria público – privada na promoção de empreendimentos e na urbanização da região, desde que atendido o interesse público; IX – Incentivo ao desenvolvimento econômico local da região; X – A participação da população moradora, dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados no processo de discussão, aprovação e implementação da Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro; PLANO DE MELHORIAS URBANAS Este plano está em fase de detalhamento e corresponde a todas as propostas de obras de infraestrutura urbana, de equipamentos comunitários identificados no Diagnóstico Integrado necessários para a região. Para tanto, estão sendo dimensionadas as redes de infra-estrutura e as vagas destinadas à educação, a melhoria do atendimento à saúde e todas as iniciativas de geração de renda. Para tentar minimizar as carências da região foi estabelecido um conjunto de intervenções físico-ambientais e socioeconômicas que comporão as contrapartidas, cujo detalhamento será objeto de estudo e deverá ser aprovado pelo Comitê de Desenvolvimento. O programa de atendimento físico-ambiental compreende obras de saneamento, de implantação de vias arteriais e coletoras, de implantação equipamentos destinados ao lazer, à cultura, à educação e à saúde, à recuperação de arroios, à arborização de ruas dentre outros. O programa de atendimento sócio-econômico visa a implantação de loteamentos de Interesse Social, através do gravame de AEIS III com a promoção de lotes regulares, à regularização urbanística e fundiária, à promoção de
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reassentamento de famílias localizadas em áreas de inadequadas à ocupação, além de incentivo à agricultura urbana dentre outros. Para a aplicação dos programas propostos, serão utilizados os instrumentos de regulação do solo, no qual se destaca as normas de uso e ocupação do solo, tributação e incentivos, Projetos Especiais, monitoramento da densificação e Áreas Especiais como as de Interesse Social identificadas em áreas ocupadas e vazias, as Áreas Especiais de Interesse Ambiental, que correspondem a Proteção do Ambiente Natural e Interesse Cultural, que deverão ser identificadas nos regimes urbanísticos da Operação, de acordo com sua função existente e proposta. Pretende-se, também, a estruturação viária da região através de um sistema de vias, projetado ou existente, de forma hierarquizada com funções e perfis definidos. Este sistema foi estudado e projetado para atender as necessidades atuais e o crescimento urbano futuro. CONTRAPARTIDAS Quando for utilizado o Regime Urbanístico Máximo serão definidas contrapartidas, que são calculadas sobre a diferença entre os Regimes Máximo e Básico. Parte desta diferença será revertida em melhorias urbanas para a região e a outra parte ficará com o empreendedor. As contrapartidas serão aplicadas exclusivamente na área da Operação Urbana Consorciada e poderão ser financeiras, quando o valor for pequeno e não der para efetivar uma melhoria urbana, mas preferencialmente, deverão ser em melhorias urbanas como segue abaixo: I – Em obras públicas vinculadas às Finalidades e aos Programas da Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro; II – Em Habitação de Interesse Social (HIS) e oferta de lotes de preço compatível com a renda da Demanda Habitacional Prioritária. III – Gleba e lotes urbanizados para reassentar famílias em áreas de risco ou áreas inadequadas à ocupação; IV – Em bens imóveis situados dentro da Operação Urbana Consorciada Lomba do Pinheiro; V – Financeira, integrada à conta vinculada à Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro. ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA A proposta de empreendimento vinculada a Operação Urbana Consorciada Lomba do Pinheiro será analisada, mediante Projeto Especial de Empreendimento
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Pontual2 ou de Primeiro Nível3, cuja avaliação dos impactos positivos e negativos será discriminada em Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), considerando os seguintes conteúdos: I – Estrutura e paisagem urbana quanto à: a) Estruturação e mobilidade urbana, no que se refere à configuração dos quarteirões, às condições de acessibilidade e segurança, à geração de tráfego e demanda por transportes; b) Equipamentos públicos comunitários, no que diz respeito à demanda gerada pelo incremento populacional; c) Uso e ocupação do solo considerando a relação com o entorno preexistente ou a renovar, níveis de polarização e soluções de caráter urbanístico; d) Patrimônio natural e cultural, no que se refere à sua manutenção e valorização. II – Infra-estrutura urbana, quanto a equipamentos e redes de água, esgoto, drenagem, energia, entre outras. III – Estrutura sócio-econômica, quanto à produção, ao consumo e a renda da população; IV – Valorização imobiliária. O Projeto Especial proveniente desta Operação Urbana será analisado através de Estudo de Viabilidade Urbanística – EVU, o qual irá determinar o Termo de Referência para a elaboração dos estudos necessários que irão subsidiar a definição de diretrizes para o empreendimento, através dos estudos de caso a caso. A elaboração do EIV não substitui a elaboração e aprovação do Estudo de Impacto Ambiental quando este se fizer necessário, de acordo com análise do órgão ambiental competente, uma vez que a Lomba do Pinheiro, por possuir uma parte de seu território ainda com grandes áreas de preservação natural, precisará de estudos prévios de impacto visando avaliar precisamente as intervenções futuras. FORMA DE CONTROLE A lei cria o Comitê de Desenvolvimento da Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro, coordenado pela Secretaria do Planejamento Municipal contando
2
Classificação de acordo com a Lei 434/99 – PDDUA, artigos 57 e 58.
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Classificação de acordo com a Lei 434/99 – PDDUA, artigo 61.
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com a participação de órgãos municipais, proprietários, moradores, usuários permanentes e sociedade civil organizada. Caberá a ele o controle geral da Operação Urbana Consorciada Lomba do Pinheiro, bem como formular e acompanhar os planos e projetos urbanísticos que venham a se beneficiar desta lei, aplicar o Plano de Melhorias Urbanas, propor a revisão da presente lei no prazo de cinco anos a partir de sua vigência, além de outras competências. A composição será de forma paritária e tripartite, com a participação de órgãos municipais, entidades da região e moradores locais, estes dois últimos eleitos na comunidade. Sempre que houver a necessidade da participação de qualquer outro representante da PMPA para subsidiar o caso específico, este será convidado pelo Comitê. A intenção é de praticar um modelo de gestão propositivo e articulador diante da realidade de necessidades da região, dando ênfase à atuação integrada dos diversos atores da construção deste ambiente urbano regional. O Comitê Gestor da Lomba do Pinheiro tem como finalidade o controle compartilhado da Operação para acompanhar a implementação da lei, bem como a utilização simultânea de vários instrumentos complementares como planos setoriais, programas, recursos disponíveis no Município. CONCLUSÃO Com a elaboração e aprovação do PDDUA, que contempla estratégias e os Projetos Especiais, criou-se um ambiente favorável para o desenvolvimento projetual, que prospecta soluções locais aliadas ao amadurecimento do processo de gestão democrática em que se consolidam acordos entre os diferentes. A mudança de paradigma conceituai proposto pelo Estatuto da Cidade foi o balizador para o projeto de lei de Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro, o qual é uma das alternativas encontradas para amenizar as carências da região, através de recuperação da valorização imobiliária obtida pela oferta de Regime Urbanístico. Com isto pretende-se obter avanços no processo de desenvolvimento urbano, através do qual os interesses individuais dos proprietários de imóveis co-existam com os interesses sociais, culturais e ambientais da cidade. A cidade tem um grande espectro de temas a enfrentar e em especial a região da Lomba do Pinheiro que tem muito ainda por fazer e está em processo de construção de sua urbanidade, onde se impõe mais do que nunca a articulação entre o setor privado e o público. A síntese aqui apresentada resgata os eixos jurídicos contemplados no Plano Diretor e no Estatuto da Cidade, que deram a base legal para uma ação política na Lomba do Pinheiro, de iniciativa do Poder Público. A Operação Urbana Consorciada
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é uma nova alternativa que permite avançar em termos de planejamento urbano, no sentido de se obter respostas concretas às carências da cidade com a redistribuição da renda urbana. A aplicação deste importante instrumento, através de uma atuação integrada e propositiva, impulsiona o desenvolvimento local, na busca da qualidade de vida e garantindo a função social da cidade e da propriedade urbana. A lei de Operação Urbana Consorciada é resultado de um amplo debate em torno dos conflitos existentes, seja de caráter físico, social ou econômico, e busca soluções compatibilizadas com os diversos interesses, estabelecendo os acordos programáticos, firmados em “Termo de Compromisso”. Este procedimento, nada mais é do que estabelecer as condições de uso e ocupação do solo possível, desde que atendida as necessidades urbanísticas, sociais e econômicas para qual finalidade a área se destinar. Nestes casos, ficam definidas as características de excepcionalidade, que serão analisadas caso a caso através de Projeto Especial, de acordo com regulamentação específica. Esta proposta de lei, a primeira desta natureza em Porto Alegre, representa no seu conjunto, a definição de um território para atuação diferenciada, onde o poder público toma iniciativa e viabiliza em parceria as transformações urbanísticas necessárias para impulsionar o desenvolvimento urbano e ambiental.
Planejando o Território Regionalmente: Planos Diretores para Além dos Limites Municipais LUIZ ALBERTO SOUZA Professor da Universidade Regional de Blumenau – FURB. Doutor em Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ. Arquiteto da Associação dos Municípios do Médio Vale do Itajaí – AMMVI.
RESUMO: O recente processo de elaboração de Planos Diretores em diversos municípios brasileiros reacendeu interessante debate em torno de um velho dilema relacionado à práxis do planejamento urbano: como planejar suas ações para além dos limites administrativos do município? O presente trabalho procura tecer algumas considerações sobre essa questão utilizando-se do texto da Nova Carta de Atenas e, ao mesmo tempo, questionar o processo de planejamento que se limita institucionalmente a expressar uma visão restrita do território municipal de forma a rever velhas práticas institucionalizadas e permitir novos referenciais para a construção de um urbanismo mais pragmático e socialmente inclusivo. PALAVRAS-CHAVE: Plano Diretor; Planejamento Urbano; Planejamento Regional.
INTRODUÇÃO A Lei Federal nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) abriu novas perspectivas na gestão do espaço urbano das cidades brasileiras cujos resultados ainda devem demorar aparecer. Por outro lado, uma das fragilidades do Estatuto da Cidade está na ausência da abordagem das questões relativas ao planejamento regional de cidades e na questão metropolitana. O ressurgimento da figura do Plano Urbano como elemento articulador e legitimador das ações públicas no município, reacende uma nova e desafiadora possibilidade para o urbanismo. Como enfrentar o desafio do planejamento regional de cidades tendo como desenho institucional o Plano Diretor Regional com
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a dimensão explícita de operacionalizar as possíveis transformações do espaço urbanoregional. A criação do Ministério das Cidades (2003) impulsionou o processo de elaboração de Planos Diretores Participativos nos municípios com mais de vinte mil habitantes e àqueles pertencentes a Regiões Metropolitanas exigindo ações em diversos níveis e esferas governamentais. Para se ter noção de números, segundo dados do Ministério das Cidades (2007), de um total de 1678 municípios brasileiros estavam obrigados a elaborar seus Planos Diretores para atender às exigências do Estatuo da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), 86 % deles, de uma forma ou outra, cumpriram com essa exigência legal. Vale ressaltar que a grande maioria dos municípios brasileiros é composta por municípios de pequeno porte (Tabela 1) não obrigados por lei, a elaborar seus planos diretores. Tabela 1 – Quadro Populacional dos Municípios Brasileiros Nº de municípios
População (nº de habitantes)
4.074
Menores de 20.000
964
20.001 até 50.000
301
50.001 até 100.00
194
100.001 até 500.000
31
Acima de 500.000
Fonte: IBGE (2000).
Cerca de 30% da população brasileira, o que significa mais de 51 milhões de pessoas, morando em apenas nove das maiores regiões metropolitanas do Brasil. Esse fato representa um dos grandes desafios que deve ser enfrentado pelo planejamento na escala regional. Passado mais de duas décadas da promulgação da Constituição Brasileira de 1988 e no alvorecer do século XXI, a retomada na discussão sobre a importância do planejamento urbano e, de novas formas de gestão do espaço urbano, se configura num debate que com certeza, deverá permear os meios políticos e acadêmicos cada vez mais intensamente. Os atuais e tradicionais instrumentos utilizados no planejamento urbano, como por exemplo, o zoneamento e os planos meramente normativos, não têm encontrado respostas e muito menos se mostrado eficazes como ferramentas na organização do espaço urbano e na garantia do desenvolvimento das chamadas funções sociais de nossas cidades. Por outro lado, a simples existência de um conjunto de códigos e normas jurídicas que convencionalmente compõe os atuais Planos Diretores são, na
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maioria das vezes, incapazes de articular as relações sociais entre os diversos produtores do espaço urbano, projetando apenas um imaginário de cidade muito aquém das reais necessidades da população. O senso comum nos leva a acreditar que a lei pode e deve ser um instrumento para o aperfeiçoamento na gestão das cidades, imprescindível para a conservação do meio ambiente e fundamental na contribuição da melhoria no nível de qualidade de vida de seus habitantes. Porém, para que isso aconteça faz-se necessário uma revisão teórica e conceituai para mudanças na concepção dos atuais “modelos” de políticas urbanas. As políticas de desenvolvimento urbano atualmente em prática, priorizam a questão do crescimento econômico em detrimento das demais funções sociais da cidade, e que é em particular, muito mais perversa para os países em desenvolvimento onde se deveria prever até que ponto a implementação dessas políticas podem perdurar sem um desequilíbrio sócio-ambiental mais grave e de consequências incontroláveis para sua população. A CONTINUIDADE DE UM PENSAMENTO HEGEMÔNICO ATRAVÉS DA NOVA CARTA DE ATENAS As propostas contidas na denominada “Nova Carta de Atenas” possui ainda pouca penetração em nosso meio científico e acadêmico, mas tem sido motivo de novas e acirradas controversas entre as mais variadas correntes do urbanismo europeu. Através do presente artigo propomos debater o processo brasileiro de elaboração massiva de Planos Diretores, a partir do novo marco jurídico criado pelo Estatuto da Cidade e pela criação do Ministério das Cidades e, da análise de experiências realizadas em diversas esferas governamentais. Num segundo momento, trataremos de apresentar uma visão do conteúdo da Nova Carta de Atenas, abordando seus princípios e conceitos, de forma a produzir uma breve interpretação dessa “nova” proposta urbanística que se intitula como sendo “A Visão do Conselho Europeu de Urbanistas sobre as Cidades do Século XXI”. Seu texto, pretensiosamente propõe uma correção histórica de rumo em sua visão de urbanismo. A partir de agora, defende textualmente que suas propostas estão voltadas diretamente para os “sujeitos” da cidade e, adaptadas as necessidades geradas pelas constantes mudanças ocorridas na sociedade no último século e, não mais centradas em seu próprio objeto, como a Carta de Atenas de 1933, produzida durante o IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. Apesar de afirmar explicitamente não se tratar de uma “nova utopia”, a Nova Carta sustenta a tese da necessidade da construção das denominadas “cidades coerentes” que, longe do idealismo anterior vivido na década de 1930, as cidades do futuro precisam estar preparadas para os novos desafios e ao realismo inerente ao Século XXI, em função
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das mudanças sociais e tecnológicas (KANASHIRO, 2003). É fato que, ao analisarmos a trajetória do urbanismo contemporâneo, podemos constatar que ele conseguiu produzir nesses últimos cem anos, efeitos e resultados contraditórios na produção do espaço material das cidades. Desde a publicação da Carta de Atenas de 1933, o mundo ocidental vivenciou diversas experiências urbanísticas, quase todas sustentadas pelo mesmo discurso: a busca incessante por um “modelo” universal de urbanismo capaz de produzir a “cidade ideal”. Decorridos mais de setenta anos dos ideais urbanísticos divulgados pela “antiga” Carta de Atenas, o Conselho Europeu de Urbanistas – CEU reacendeu o debate sobre a necessidade de se (re)pensar as cidades para o Século XXI, segundo eles, através de “um novo enfoque teórico e instrumental do planejamento urbano”. Uma das ideias chaves da “Nova Carta de Atenas” é promover a “integração plena através de uma ampla e contínua rede de cidades”. Entre as condições necessárias para sua implementação, afirma textualmente que as cidades do Século XXI devem contar com os “necessários compromissos dos urbanistas para porem prática esta visão”. O documento foi elaborado entre os anos de 1995 e 1998 por uma delegação de arquitetos e urbanistas das Associações Nacionais e dos Institutos de Urbanistas de onze países da União Europeia (Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Grécia, França, Irlanda, Itália, Holanda, Espanha, Portugal e Grã-Bretanha). Ao mesmo tempo, a edição da Nova Carta de Atenas aponta para a desafiadora questão da sustentabilidade urbana onde enaltece essa figura recente nas agendas das cidades: “[...] planejamento estratégico do território e o urbanismo são indispensáveis para garantir um desenvolvimento sustentável, hoje entendido como a gestão prudente do espaço comum, que é um recurso crítico, de oferta limitada e com procura crescente nos locais onde se concentra a civilização”.
Neste pequeno ensaio, pretendemos utilizar esse referencial teórico como contraponto à recente experiência brasileira de elaboração de Planos Diretores Participativos, em atendimento às exigências do Estatuto da Cidade. Ainda como forma de contribuir para esse debate no âmbito das cidades brasileiras apresentamos ao longo do texto, algumas reflexões sobre essa “práxis” que julgamos ter tido pouco espaço de tempo para um efetivo exercício crítico mais reflexivo. Dessa forma, a Nova Carta de Atenas possui o mérito de reacender a polêmica da discussão sobre a construção de um novo paradigma urbanístico, através da revisão da nossa usual práxis do planejamento urbano. Dentre as teses preconizadas pela Nova Carta estão que as cidades devem ser concebidas e planejadas de forma a produzir a sua: “coerência social, a coerência econômica, coerência no tempo e a coerência ambiental”, que aparecem como
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princípios imprescindíveis às cidades do século XXI. Os diversos instrumentos utilizados pelos urbanistas em seus planos foi justamente o mecanismo do zoneamento que demonstrou ser o mais “eficaz”, onde alguns autores (VILLAÇA, 1999; NERY JR., 2002) alertam que, tanto para o bem quanto para o mal. No Brasil, podemos afirmar que pela experiência verificada pelas grandes cidades e principalmente nas metrópoles, o zoneamento foi, e continua sendo o mais forte mecanismo de regulação e de ordenamento do território dessas cidades. Dirigida e pensada particularmente a partir da realidade das cidades europeias, a Nova Carta de Atenas defende a plena integração da comunidade europeia no decorrer do século XXI, onde essa grande rede urbana de cidades deve seguir as seguintes diretrizes: – Conservar a sua riqueza cultural e a sua diversidade, resultantes da sua longa história; – Ficar ligadas entre si por uma multitude de redes, plenas de conteúdos e de funções úteis; – Permanecer criativas e competitivas, mas procurarão simultaneamente a complementaridade e a cooperação; – Contribuir de maneira decisiva para o bem-estar dos seus habitantes e, num sentido mais lato, de todos os que as utilizam.
O CEU defende ainda na sua parte introdutória a adoção de novas práticas urbanas necessárias para atingir os objetivos ali propostos, entre eles, o fortalecimento da conectividade entre as cidades. A Nova Carta de Atenas dirige-se, sobretudo aos urbanistas profissionais que trabalham na Europa e a todos os que se interessam por este tipo de trabalho, a fim de orientá-los nas suas ações, de modo a assegurar maior coerência na construção de uma rede de cidades com pleno significado e a transformar as cidades europeias em cidades coerentes, em todos os níveis e em todos os domínios. Mais adiante a Nova Carta de Atenas defende abertamente a utilização do planejamento estratégico do território e do urbanismo como sendo instrumentos “indispensáveis para garantir um desenvolvimento sustentável”. A tese sustentada pelos urbanistas europeus se baseia na necessidade da gestão do espaço comum, em face de escassez dos recursos naturais e da crescente migração interna em direção às grandes cidades europeias. Apesar de se proclamar que não se trata de uma “nova utopia”, o documento sustenta a tese da necessidade da construção de uma “cidade coerente” que, longe do idealismo anteriormente proposto pelo IV CIAM em 1933, as cidades do século XXI precisam estar preparadas para os novos desafios que se apresentam. A Nova Carta defende que: Esta visão centra-se na Cidade Coerente. É essencialmente um instantâneo sobre aquilo que gostaríamos que as nossas cidades fossem agora e para o futuro. Esta visão é a expressão do
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A cidade coerente integra um conjunto variado de mecanismos de coerência e de interligação que atuam a diferentes escalas; incluem tanto elementos de coerência visual e material das construções, como os mecanismos de coerência entre as diversas funções urbanas, as redes de infra-estruturas e a utilização das novas tecnologias de informação e de comunicação. “O conceito de cidade coerente decorre da necessidade de se reconstruir a coesão social nos espaços urbanos, superando-se problemas de exclusão social, racismo e conflitos civis. Para se construí-la, é preciso que o planejamento urbano e, por consequência, o direito urbanístico, como seu instrumento, considerem as diferenças e as desvantagens de certos grupos sociais em relação a outros dentro de cada cidade. O planejamento deve transformar a cidade em um espaço igualitário para seus habitantes e em um ambiente apto a integrar, social e culturalmente, novos cidadãos – uma cidade para todos” (MARRARA, 2007).
Dentre os requisitos estabelecidos a Nova Carta apresenta quatro conceitos ditos fundamentais: “coerência no tempo, coerência social, coerência econômica e coerência ambiental”. A conquista dessas dimensões aparece como imprescindível às cidades europeias do século XXI. Ainda segundo o CEU, essas cidades devem se distinguir dos demais aglomerados urbanos de grande parte do mundo, face às particularidades dos processos históricos e sociais que se desenvolveram ao longo do tempo. Em contrapartida, as transformações sociais, econômicas e políticas dos últimos anos, tornaram as cidades europeias cada vez mais específicas e ao mesmo tempo, semelhantes, num processo de “globalização” cultural, social e econômico avassalador. Um novo fenômeno surge a partir da formação de uma grande rede de cidades que começa a se formar em inúmeras regiões da Europa, onde em muitos casos, não mais se distingue o espaço urbano, do espaço rural. Processo semelhante também começa a ocorrer em território brasileiro. A conturbação contínua começa a surgir ao longo dos quatrocentos quilômetros do eixo da Via Dutra entre a cidade do Rio de Janeiro e São Paulo. Na Região do ABCD Paulista (KLINK, 2001) a expansão urbana é vertiginosa, não respeitando em nada os limites administrativos municipais. Outro eixo de urbanização começa a surgir na região sul do Brasil, ao longo da BR-101, mas precisamente entre o norte do Estado de Santa Catarina, a partir de Joinville, até o extremo sul do Estado, na cidade de Criciúma, numa extensão de mais de 300 quilômetros de uma urbanização quase que contínua. Sobre o crescimento dessas novas redes de cidades o texto da Nova Carta de Atenas assim se expressa:
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Lenta, mas inexoravelmente, novas redes complexas ligam pequenas e grandes cidades entre si, criando contínuos urbanos já perceptíveis em inúmeras partes da Europa, onde as cidades clássicas se transformam em simples componentes de novas redes informais. Os efeitos prejudiciais dessa tal tendência devem ser inevitavelmente abordados numa visão de futuro para as cidades.
A suposta ausência de “coerência” das cidades ainda segundo o CEU, não consiste somente em termos materiais, mas e principalmente, pela falta de “coerência” na continuidade da sua evolução no tempo, que passa a afetar as “estruturas sociais e as diferenças culturais”. De certa forma, a crítica dos urbanistas europeus está baseada na perda crescente da própria identidade cultural das populações submetidas a esse processo. No que se refere à “coerência social”, a proposta da nova Carta de Atenas se preocupa em propor que as cidades estabeleçam condições para um chamado equilíbrio social, através da redução progressiva das desigualdades econômicas, sociais e culturais. Trata-se de importante objetivo para a cidade, que, na sua essência, necessita respeitar os interesses da sociedade como um todo, tendo em conta a necessidade de conciliar os direitos e os deveres dos diversos atores sociais sem, contudo ferir os interesses individualmente dos cidadãos. Alguns dos mais recorrentes “problemas” comuns aos brasileiros como, o desemprego, a pobreza, exclusão social, criminalidade e violência, emergem como questões emblemáticas a serem enfrentadas pelas cidades do século XXI. A Nova Carta de Atenas alerta para o perigo da “ruptura do tecido econômico e social” caso as cidades do século XXI não sejam capazes de apontar soluções para esses “problemas” principalmente no plano social e político. Ainda que estes nobres objetivos ultrapassem a esfera do mandato do urbanista, a cidade coerente do séc. XXI deverá procurar também a maior diversidade de oportunidades, de escolhas econômicas e de emprego para todos os que nela habitam e trabalham, e deverá assegurar um melhor acesso à educação, à saúde e ao maior número de equipamentos possível. Enfim, novas formas de estruturas sociais e econômicas virão corrigir as grandes disparidades sociais, causas da exclusão, da pobreza, do desemprego e criminalidade e proporcionar o novo quadro de vida necessário à correção daqueles desequilíbrios. No plano econômico, como não poderia deixar de ser, a preocupação dos urbanistas europeus se concentram na necessidade de uma maior e melhor distribuição da riqueza entre as cidades. A coesão econômica deve ser buscada a partir da diversidade produtiva e da exploração das “vantagens competitivas” de cada cidade. A cidade como uma possível mercadoria passível de ser vendida para investidores, aparece como uma das preocupações centrais aos governantes em balizar seus planos de governo. Nesse sentido, alguns autores vêm alertando para o perigo da difusão dessa ideologia no âmbito das cidades brasileiras (VAINER, 1996; SANCHES, 2003).
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Segundo o CEU as cidades europeias do séc. XXI tendem a continuar a ser fortemente interdependentes do nível de atividade econômica. Com isso, elas devem procurar pertencer a “redes econômicas densas e de malha fina, conjugando eficácia e produtividade, mantendo altos níveis de emprego e procurando assegurar uma margem de desenvolvimento competitivo no quadro da economia global, adaptandose continuamente às mudanças internas e externas”. Como não poderia deixar de ser, a “coerência ambiental” assume posição relevante na Nova Carta de Atenas. Publicada para ser politicamente correta, ela enfatiza a necessidade da preservação do meio ambiente como sendo uma condição “sine qua non”, onde as preocupações com a conservação do solo, do ar e da água, devam assumir de agora em diante, um caráter prioritário no planejamento urbano. As cidades do novo milênio irão gerir permanentemente o balanço “input-output” dos recursos consumidos, com prudência e economia, adaptando-o às necessidades reais, utilizando tecnologias inovadoras, minimizando o seu consumo pela reutilização e reciclagem a níveis tão altos quanto possíveis.
Percebe-se que as diretrizes estabelecidas pelo CEU no âmbito do contexto urbano europeu reconhecem que a busca pelo desenvolvimento sustentável, deve vir acompanhado de medidas e ações concretas que tornem as cidades mais justas e democráticas. Esse é, sem dúvida nenhuma, o grande desafio. A valorização do planejamento urbano e do urbanismo como ferramentas indispensáveis na construção desses objetivos, ressurgem ante a deterioração crescente das condições físicas de nossas cidades: O planejamento do território e o urbanismo continuarão a ser as ferramentas eficazes para conseguir a proteção destes elementos do patrimônio natural e cultural, bem como o veículo para a criação de novos espaços livres que darão coerência aos tecidos urbanos.
De forma análoga à anterior, a Nova Carta de Atenas também apresenta recomendações para o desenho urbano, mantendo a antiga crença que através do mesmo, as cidades podem propiciar uma melhor qualidade de vida para seus habitantes. Concordamos parcialmente com essa questão. A nova receita do CEU enfatiza os seguintes princípios como elementos necessários: 1. O relançamento do desenho urbano e da composição urbana para proteger e melhorar as ruas, as praças, os caminhos de pedestres e outros percursos, como instrumentos da coesão social e de continuidade do tecido urbano; 2. Reabilitação das formas urbanas não humanizadas e degradadas; 3. Medidas necessárias para facilitar os contatos entre as pessoas e para multiplicar os locais de descanso e de lazer;
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4. Medidas para melhorar o sentimento individual e coletivo de segurança, que é um elemento essencial da liberdade e bem-estar individuais; 5. Esforços para criar ambientes urbanos simbólicos provenientes do espírito próprio de cada lugar, valorizando assim a diversidade de caráter de cada cidade; 6. Manutenção e exigência de um alto nível de excelência estética em todos os locais da cidade; 7. Proteção sistemática dos elementos do patrimônio natural e cultural, assim como a proteção e extensão das redes de espaços abertos urbanos.
Compreender ou mesmo aceitar cada um desses objetivos, só é possível considerando-se a inserção e o contexto da rede urbana europeia. O respeito às suas particularidades e aos processos históricos de formação das suas cidades pode explicar, até certo ponto, o conteúdo formal da Nova Carta, mas, acreditamos que não o bastante para produzir ou desencadear mudanças efetivas na forma de planejamento e de gestão das cidades nesse novo milênio. Diversos e novos desafios se multiplicam a cada dia, o que torna complexo aceitar novamente um receituário para a salvação das cidades. Um dos grandes dilemas ainda não pacífico na práxis urbana brasileira trata da questão do direito de propriedade e do polêmico debate em torno de sua função social, tema que há muito tempo encontrase plenamente resolvido na grande maioria dos países europeus, por exemplo. Algumas exceções situadas principalmente em países do leste europeu ainda se ressentem da instituição de um marco regulatório que vise disciplinar essa questão, retardados pelo modelo político adotado durante os anos que viveram sob a égide de regimes totalitários e que de certa forma ainda vivem momentos de incerteza em relação à segurança jurídica da terra. A construção da sustentabilidade possível (nas dimensões econômica, social, espacial, cultural e ecológica) das cidades (SACHS, 1993), é sem dúvida nenhuma, um dos maiores desafio de alcance mundial neste Século XXI. No caso brasileiro, a luta travada pela aprovação e pela implementação dos instrumentos jurídicos e urbanísticos previstos na Lei Federal nº 10.257/2001 (FERNANDES, 2001) se reveste desta ambiciosa tarefa social. Ao mesmo tempo, se têm a compreensão de que o Estatuto da Cidade não pode ser um instrumento suficiente per si, capaz de provocar mudanças paradigmáticas desse nível. Em diversas passagens deste trabalho, apontamos às limitações que esse instrumento se apresenta no contexto do planejamento urbano brasileiro, em especial, por não abordar concretamente questões referentes a processos de inclusão social e também, questões relativas aos “problemas” que afetam diretamente as regiões
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metropolitanas brasileiras e que dependem da criação de uma “esfera de decisão” neste nível (RIBEIRO & CARDOSO, 2003). CONSIDERAÇÕES FINAIS Pensar e planejar nossas cidades para além de seus limites administrativos pressupõe a necessidade de uma nova práxis de atuação dos planejadores. O universo do território e seu alcance regional devem ser à base de futuros planos articulados entre a escala urbana e a escala da região de influência da cidade pólo. A intenção dos urbanistas europeus na busca da consolidação do paradigma da sustentabilidade para as cidades europeias do século XXI demonstra que ainda se encontra ativa a proposta ideológica de um possível planejamento urbano “universalizado”. Trata-se, como vimos de um debate ainda incipiente no âmbito científico brasileiro, sobretudo pelo momento vivido em grande parte das cidades brasileiras. Julgamos oportuno lembrar que essa nova avalanche de Planos Diretores produzidos sem um maior controle social do seu conteúdo, ainda não produziu seus efeitos: tanto para bem como para o mal. De certa forma percebemos que muitos municípios têm procurado inovar seus processos de planejamento, através da prática do planejamento participativo e da adoção de mecanismos e instrumentos jurídicos e urbanísticos que podem a médio e, em longo prazo, melhorar parcialmente a qualidade de vida e o urbanismo nessas cidades. O fato é que algo precisa ser feito para romper com a inércia política que ainda contamina grande parte do meio técnico responsável pela formulação das políticas de planejamento em nosso país e que se encontram enraizadas em diversos níveis tanto da esfera pública, como no setor privado. Os dilemas e impasses que vivenciamos no âmbito da nossa práxis urbana encontram-se permanentemente em processo de transmutação. A conclusão mais óbvia que podemos apurar dessa situação é que não existe uma única resposta para a mesma. Poderíamos falar inclusive, que vivemos historicamente numa espécie constante de metamorfose do urbanismo, movimento este que reproduz dialeticamente a mesma coisa, mas com um discurso que busca na diferença, se apresentar como o novo. Nesse sentido, a Nova Carta de Atenas apenas cumpre com sua função instrumental de reproduzir o papel central do urbanismo como elemento histórico de suporte físico para a sustentabilidade das cidades, definindo a cidade como “[...] o estabelecimento humano com certo grau de coerência e coesão. Não se considera somente a cidade convencional e compacta, mas também as cidades região e as redes de cidades”. Para Villaça (1999), a exteriorização formal dessa “crise” urbana necessita permanentemente de processos sociais que possam de certa forma, manter acesso o debate sobre as relações entre o espaço, sociedade e o meio ambiente. Nesse sentido,
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as cidades devem ser vistas cada vez mais como espaços de fluxos e não mais como espaço de lugar (LIMONADI, 2007). Ainda segundo Villaça (1999), a ideologia do planejamento urbano se apoiou historicamente em conceitos e práticas que somente contribuíram para manter o “status quo” social e econômico. Por fim, verificamos a emergência de novas práticas urbanísticas sendo difundidas como soluções “alternativas” para o planejamento urbano de nossas cidades. Também o planejamento estratégico de cidades (BORJA & FORN, 1996) com larga aceitação desde a proposta levada a efeito pela cidade de Barcelona para os Jogos Olímpicos de 1992, bem como na tese do urbanismo realizado através da implantação de grandes projetos urbanos (INGALLINA, 2001), que avança silenciosamente com a promessa de cura a todos os problemas atuais e futuros existentes em nossas cidades, tendo Bilbao e seu Museu Guggenheim como exemplo paradigmático. Outras propostas ainda surgem como estratégias de mudar a visão do planejamento como, por exemplo, a implantação do urbanismo de resultados (ASCHER, 2001), que visa administrar pontualmente os problemas urbanos e que privilegia as funções de comunicação, mediação e negociação a partir do planejamento urbano, sem falar no planejamento estratégico. Acreditamos que esse debate, que chega de certa forma tardio, pode colaborar para ampliar os limites e possibilidades da adoção de uma nova prática urbanística para as cidades brasileiras. Essa questão deve ser amplamente debatida pela academia e também no âmbito do poder público, principalmente nesse momento onde “novos” Planos Diretores surgem no cenário de grande parte dos municípios brasileiros forjados única e exclusivamente por uma exigência legal e não pela vontade ou reconhecimento da necessidade do instrumento do planejamento de nossas cidades. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASCHER, François. (2001). Les Nouveaux Príncipes de Urbanisme. Éditions de l’aubé, Paris. BORJA, Jordi & FORN, Manuel de (1996). “Políticas da Europa e dos Estados para as cidades”. Revista Espaço e Debates, Ano XVI, n. 39, São Paulo. BRASIL (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Ed. Senado, Brasília. ______. (2001). Estatuto da Cidade. Lei Federal nº 10.257/2001. Ed. Senado, Brasília. INGALLINA, Patrizia (2001). Le Projet Urbain. PUF, Paris. FERNANDES, Edésio (2001). Perspectivas para a renovação das políticas de legalização das favelas no Brasil. Rio de Janeiro: Cadernos IPPUR, Ano XV, nº 1. KANASHIRO, Milena (2004). Da antiga à nova Carta de Atenas – em busca de um paradigma espacial de sustentabilidade. Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 9, p. 33-37, jan./jun. Editora UFPR, Curitiba.
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Outorga Onerosa do Direito de Construir: a Experiência de Belém HELENA LÚCIA ZAGURY TOURINHO1 Arquiteta e Urbanista
RESUMO: O artigo faz uma análise da aplicação do conceito da Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) em Belém, este que foi um dos instrumentos de política urbana regulamentados pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/ 2001). O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira apresenta uma breve revisão histórica e conceituai do instrumento, na segunda discute a experiência de aplicação do conceito da OODC em Belém, no período 1988-2008. Conclui sugerindo que as dificuldades e distorções ocorridas na aplicação do conceito da OODC em Belém, no período analisado, resultaram da luta entre interesses, vencida por grupos do capital imobiliário e dos proprietários fundiários, que têm demonstrado ser a força política dominante no Legislativo Municipal. PALAVRAS-CHAVE: Política Urbana, Estatuto da Cidade, Outorga Onerosa do Direito de Construir, Planejamento Urbano em Belém
INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo analisar a aplicação do conceito da Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) na legislação urbana de Belém, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e da sua regulamentação pelo Estatuto da Cidade. O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira apresenta uma breve revisão histórica e conceituai do instrumento, na segunda discute a experiência de aplicação do conceito da OODC em Belém, no período 1988-2008.
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M. Sc. em Planejamento do Desenvolvimento, Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade da Amazônia – UNAMA e Doutoranda em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE/MDU. E-mail: helenazt@uol.com.br.
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1. A OODC COMO INSTRUMENTO DA POLÍTICA URBANA: BREVE HISTÓRICO A OODC é um instrumento de política urbana que consiste na concessão do direito de edificar acima do coeficiente de aproveitamento básico2 estabelecido por lei, mediante uma contrapartida do beneficiado ao poder público. Tal contrapartida justifica-se por diversas razões, dentre as quais estão as necessidades de: 1) equalização do direito de construir a todos os proprietários do solo, igualdade essa que é quebrada no processo de planejamento urbano quando, com fins de racionalizar o uso das infra-estruturas mediante o adensamento de alguns espaços urbanos, são estabelecidos índices de aproveitamento máximo diferenciados entre as partes da cidade; 2) recuperação, pelo poder público, da valorização fundiária provocada pelo estabelecimento de índices de aproveitamento diferenciados nas leis de uso e ocupação do solo; 3) distribuição de forma equânime dos benefícios e custos dos investimentos públicos na cidade; 4) geração de recursos para financiar, compensatoriamente, programas de habitação e urbanização de áreas populares3. Inicialmente, o instituto da OODC foi denominado de “solo criado” e fundamentado na possibilidade da criação de área construída artificial além da área do terreno sob ou sobre o solo natural. Depois, a concepção do “solo criado” foi vinculada à ideia da construção praticada acima de um coeficiente único, válido para todos os terrenos localizados em um município, região ou país (GRAU, 1983). Originada em Roma, quando especialistas concluíram pela necessidade de separar o direito de construir do direito de propriedade, a OODC foi aplicada na França desde 1975, na Itália desde 1977 e no Brasil vem sendo discutida desde a década de 1970. Em 1976, na carta de Embu, urbanistas e juristas brasileiros defenderam sua inserção na legislação municipal com a denominação de “solo criado”. A partir daí, alguns municípios brasileiros passaram a instituí-la em suas legislações (DORNELAS, 2007). A Constituição Federal de 1988, em seu capítulo II, estabeleceu que a política urbana tem o objetivo ordenar o desenvolvimento da função social da cidade e remeteu aos planos diretores urbanos a definição desta função. Além disso, separou o direito de superfície do direito de construir e enunciou alguns instrumentos como o
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Conforme § 1º do Art. 28 do Estatuto da Cidade, coeficiente de aproveitamento é “a relação entre a área edificável e a área do terreno” (BRASIL, 2001). O índice ou coeficiente de aproveitamento básico determina quantas vezes a área do terreno pode ser construída, sem que seja necessário o beneficiário pagar ao poder público pela outorga do direito de construir.
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De acordo com a avaliação da aplicação da OODC em doze cidades brasileiras, realizada por Furtado et al. (2006), esta foi a justificativa predominante para o uso desse instrumento.
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parcelamento e a edificação compulsórios, o IPTU progressivo do tempo e a usucapião. Não obstante, a Carta Magna não fez qualquer referência à OODC, no que foi seguida pela Constituição Estadual do Pará. A inserção da OODC no ordenamento jurídico nacional só veio a ser efetivada treze após a aprovação da Constituição Federal, através da Lei Federal 10.257/2001, conhecida pela denominação de Estatuto da Cidade. O Estatuto da Cidade regulamentou o Capítulo da Política Urbana da Constituição Brasileira e os instrumentos de política urbana, e dentre esses, a OODC, prevista como instrumento jurídico, tanto com o fim de ampliar o direito de construir, como para alterar o uso do solo. A partir da aprovação do Estatuto da cidade, coube ao Plano Diretor, conforme os Artigos 28 e 29 (BRASIL, 2001): a) fixar o coeficiente básico de aproveitamento e determinar as áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima dele, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário. O coeficiente básico poderá ser único para toda a zona urbana ou diferenciado por áreas. b) estabelecer os limites máximos possíveis a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento em cada área da cidade, considerando a proporcionalidade entre a infra-estrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área; c) definir as áreas nas quais poderá ser permitida alteração de uso do solo, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário; e, d) estabelecer as condições a serem observadas para a OODC e de alteração de uso, determinando a fórmula de cálculo para a cobrança, os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga e a contrapartida do beneficiário. Vale ressaltar que o Estatuto da Cidade, ao instituir a possibilidade de uso de coeficientes básicos diferenciados, já se afastou da ideia original do solo criado, flexibilizando o princípio da equidade do direito de construir e criando a possibilidade de reprodução das desigualdades e da especulação fundiária em áreas periféricas. O Estatuto da Cidade, no Artigo 31, previu ainda que os recursos auferidos pela OODC e de alteração de uso deverão ser utilizados para as finalidades previstas nos incisos I a IX do artigo 26 do Estatuto, que são: regularização fundiária; execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; constituição de reserva fundiária; ordenamento e direcionamento da expansão urbana; implementação de equipamentos urbanos e comunitários; criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes; criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas verdes; criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; e, proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico (BRASIL, 2001).
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2. A EXPERIÊNCIA DE BELÉM No caso de Belém, a OODC apareceu, pela primeira vez em 1990, no Art. 118 do Capítulo de Política Urbana, da Lei Orgânica do Município (BELÉM, 1990). Com a denominação de “solo criado”, referido instituto foi citado como um dos instrumentos tributários e financeiros destinado a assegurar as funções sociais da cidade e da propriedade. A Lei Orgânica, contudo, não estabeleceu as condições para aplicação dessa taxação, o que só viria a acontecer após a aprovação do Plano Diretor em 1993. Desde então, a OODC, foi regulamentada por três grandes legislações urbanísticas: O Plano Diretor Municipal de 1993, a Lei Complementar de Controle Urbanístico de 1999 e o Plano Diretor de 2008. 2.1. O Plano Diretor Municipal de Belém de 1993 A decisão de elaboração do Plano Diretor Urbano do Município de Belém, o primeiro após Constituição Federal de 1988, partiu de uma pressão no Poder Legislativo Municipal, através do requerimento de um vereador que cobrou do Prefeito a sua realização, fundamentado no Art. 250 da Lei Orgânica do Município de Belém. Construído em um momento de transição – entre a promulgação das Constituições Federal e Estadual e a Regulamentação do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/ 2001) – o Plano Diretor do Município de Belém (Lei 7.603, de 13 de janeiro de 1993) não pode contar com a regulamentação federal da OODC. Neste Plano Diretor, esse instituto apareceu: no Artigo 31, como instrumento destinado a “perseguir a justa distribuição dos ônus decorrentes das obras e serviços públicos implantados, com a recuperação, pela coletividade, da valorização imobiliária decorrente da ação do poder público”; no Artigo 34 como um dos instrumentos voltados para “regular o mercado imobiliário”; no Art. 137 como um dos instrumentos tributários e financeiros destinados à execução da política de desenvolvimento municipal; e, no Art. 155 como um dos instrumentos de atuação urbanística (BELÉM, 1993). O plano previu, no seu Art. 37, a instituição de dois zoneamentos para fins de outorga onerosa: um para estabelecer o estoque de potencial construtivo a ser outorgado onerosamente; e outro que destinado a estabelecer o próprio estoque. No Artigo 162 as zonas foram classificadas em zonas de adensamento até o coeficiente básico (ZACB) e zonas adensáveis acima do coeficiente básico potencial (ZAOO). A classificação das áreas da cidade em uma ou outra zona era vista como transitória e mutável, podendo se alterar desde que houvesse saturação da capacidade de infra-estrutura ou a ampliação da mesma (Artigo 164). O dimensionamento da oferta do potencial construtivo, para fins de OODC, deveria ser em função da capacidade infra-estrutural, sobretudo daquela referente ao
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sistema de circulação4, este composto pelos sistemas viário básico e de transportes (Art. 37). No que concerne ao cálculo do valor pago pelo direito de construir, o plano estabeleceu pelo metro quadrado outorgado o mesmo valor do metro quadro constante na planta de valores do município, mais um acréscimo correspondente à correção monetária referente ao período compreendido entre a data de definição do valor venal e a data de pagamento da outorga onerosa ao poder público (Artigo 185). Para isso, previu a correção anual da planta de valores e a revisão quadrienal do valor de mercado dos imóveis e instituiu o prazo para o pagamento de até cinco meses, contados a partir da aprovação do projeto (Artigo 190). A destinação do valor recebido da outorga deveria ser: o Fundo de Desenvolvimento Urbano, no caso das áreas em que houvesse infra-estrutura já instalada; e a própria zona onde foi outorgado o direito de construir, quando nela houvesse carência de infra-estrutura para absorver a ampliação da área construída outorgada onerosamente (Artigo 185). O executivo municipal foi autorizado a receber imóveis para pagamento da OODC e, também, a conceder para a iniciativa privada e os demais agentes promotores a redução total ou parcial do pagamento pelo direito de construir acima do coeficiente básico, no caso de projetos de habitação de interesse social, desde que o plano fosse aprovado em Lei Municipal e que houvesse parecer favorável do Conselho de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Artigo 185). No caso das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) o pagamento da OODC poderia ser reduzido até zero, dependendo da capacidade da infra-estrutura existente, do custo das moradias e do poder aquisitivo dos usuários finais do espaço urbanizado (Artigo 167). Nessas zonas o plano previu, também, a possibilidade de alteração no cálculo da outorga onerosa, desde que justificada por estudos específicos (Artigo 182). O coeficiente de aproveitamento básico para todos os lotes urbanos contidos no município foi estabelecido em 1,4 (um vírgula quatro), excetuados aqueles localizados em zonas especiais (Artigo 182). Os coeficientes máximos de aproveitamento das zonas, por seu turno, ficaram para ser instituídos em uma posterior Lei de Controle Urbanístico (Artigo 186), que deveria fazê-lo de forma diferenciada por uso (residencial e não-residencial), e conforme a capacidade de suporte infraestrutural já referenciada anteriormente (Artigo 187). Vale ressaltar que o
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No Artigo 163, Parágrafo 1º, o Plano estabeleceu que os cálculos dos potenciais construtivos deveriam ser realizados através de procedimentos técnicos utilizando metodologia apropriada e explicitada para o conhecimento público. No caso do sistema de circulação, instituiu o uso de metodologia baseada em modelos de simulação entre uso do solo e transportes, a partir de pesquisa de origem e destino, o que tornava dispendiosa e complexa sua realização (BELÉM, 1993).
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dimensionamento do estoque edificável consideraria a zona como um todo e não o lote individual (Artigo 188). Enquanto a Lei Complementar de Controle Urbanístico não fosse aprovada, a outorga onerosa deveria ser aplicada considerando o coeficiente máximo estabelecido na legislação urbanística em vigor. Contudo, não foi isso o que ocorreu na prática. A atualização da Lei de Controle Urbanístico não foi providenciada de imediato e vários problemas foram evocados para evitar a cobrança da outorga onerosa, tais como a ausência de planta de valores e de cadastro técnico atualizados, a não-implementação do Fundo de Desenvolvimento Urbano, as indefinições quanto ao estoque construtivo, a ausência de mecanismos de gestão dos estoques edificáveis, etc. Tão logo começaram as tentativas de cobrança da OODC esse instrumento começou a ser enfraquecido pelo legislativo municipal. Através da Lei 7.683 de 11 de janeiro de 1994, a Câmara de Vereadores autorizou o Prefeito a aplicar um redutor de 75% no valor da OODC e aumentou para 1,8 o coeficiente básico aplicado a lotes com área inferior a 150 m2 A vigência dessa Lei foi prorrogada até 31 de dezembro de 1995 pela Lei 7.744 de 28 de dezembro de 1994 e, até 31 de dezembro de 1996 pela Lei 7.782 de 27 de dezembro de 1995. Mais tarde, a Lei 7.877, de 6 de abril de 1998, alterou os Artigos 182 e 340, bem como acrescentou parágrafos aos artigos 190 e 191 da Lei do Plano Diretor. As principais mudanças foram: a) a alteração do coeficiente básico de 1,4 para 4,0 aplicada a todos os lotes urbanos do município, mantendo a exceção aos lotes das zonas espaciais (Art. 182); b) o estabelecimento do coeficiente máximo igual a 6,0 (Art. 340); c) a isenção do pagamento da outorga onerosa nos casos de habitação popular desde que comprovado o baixo poder aquisitivo dos usuários finais e o padrão da moradia a ser produzido (acréscimo no Art. 190); e, d) o parcelamento em 12 prestações do pagamento da outorga onerosa (Art. 190). É evidente que essas mudanças na legislação resultaram de pressões empreendidas por segmentos do setor imobiliário sobre os seus representantes na Câmara de Vereadores. Como consequência, foi praticamente inviabilizada a aplicação do instrumento da OODC, até porque, como referenciou Rodrigues (2005 in BELÉM, 2005), na época, não interessava para o mercado imobiliário atingir índices maiores do que o novo índice básico (igual a 4,0). Segundo Belém (2001), antes da aprovação da Lei Complementar de Controle Urbanístico, a cobrança da OODC foi feita com muitas concessões e dificuldades operacionais.
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2.2. A Lei Complementar de Controle Urbanístico de 1999 Entre a aprovação do Plano Diretor de 1993 e a aprovação da Lei Complementar de Controle Urbanístico (LCCU) transcorreram seis anos. O Projeto da LCCU foi elaborado por dois técnicos da Prefeitura Municipal a partir de discussões com agentes do mercado imobiliário e dos movimentos sociais, sobretudo com os primeiros, foi instituído pela Lei Complementar 02 em 19 de julho de 1999. É, portanto, anterior ao Estatuto da Cidade. A LCCU tratou dos espaços continentais do município de Belém. Em seu Art. 64, classificou a parte continental em Zonas Adensáveis até o Coeficiente de Aproveitamento Básico (ZACB) e em Zonas Adensáveis Acima do Coeficiente Básico (ZAOO). É de se destacar que, na LCCU, o conceito do instituto da OODC foi totalmente alterado. O coeficiente básico deixou de ser idêntico para toda a cidade. Na ZACB o coeficiente de aproveitamento foi estabelecido em 2,0 (dois), e na ZAOO, os coeficientes variaram conforme os modelos urbanísticos. A outorga onerosa em vez de incidir sobre o diferencial entre as áreas construídas resultantes dos coeficientes de aproveitamento máximo e básico passou a ser aplicada sobre a área construída que excedia o cálculo do coeficiente máximo estabelecido nos quadros de modelos urbanísticos aplicados a cada zona. Como determinava o Art. 73 (BELÉM, 1999): Art. 73. A outorga onerosa do direito de construir, definida nos artigos 189 a 191 da Lei nº 7.603, de 13 de janeiro de 1993, será aplicada nas ZAOO conforme a seguir: I – nas ZUM 4, ZUM 5 e ZUM 6 – até 10% (dez por cento) acima do coeficiente de aproveitamento do modelo utilizado; II – nas ZH 4, ZH 5, ZUM 7 e ZUM 8 – até 20% (vinte por cento) acima do coeficiente de aproveitamento do modelo utilizado.
Dito de outra forma, a LCCU, nas áreas sujeitas à cobrança da outorga onerosa igualou conceitualmente “coeficiente básico de aproveitamento” com o que antes era o “coeficiente de aproveitamento máximo de cada zona” e passou a fazer incidir a OODC apenas sobre o que excedia ao coeficiente de aproveitamento de cada lote, que era definido conforme o zoneamento ordinário do uso pretendido e as dimensões do lote. Essa estratégia de igualar o coeficiente básico ao coeficiente de aproveitamento máximo, usada em outras cidades brasileiras (Curitiba, Porto Alegre, Salvador, por exemplo), “admite que o município vá arcar com a infra-estrutura necessária para adequar a cidade ao máximo permitido pelo zoneamento anterior e só irá recuperar os investimentos ou financiar o que for dali excedente” (FURTADO et al., 2006). No
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caso de Belém, contudo, tal estratégia se deu associada ao estabelecimento de índices urbanísticos, sem que os mesmos tenham sido fundamentados em estudos técnicos consistentes de avaliação da capacidade de suporte infra-estrutural. Além de restringir a concessão da outorga onerosa a lotes cujas testadas fossem superiores a determinadas dimensões (15 metros no caso do modelo M4; 12 metros no caso dos M10, M12 e M14) a LCCU, também reduziu, sobremaneira, as áreas computáveis para fins de cálculo do coeficiente de aproveitamento máximo. Art. 70. Consideram-se não computáveis para fins de cálculo do coeficiente de aproveitamento, as seguintes áreas: I – nas edificações destinadas à habitação unifamiliar: a) jardins abertos ou não; b) sacadas e terraços, desde que abertos; c) varandas, dentro do limite de 5 % (cinco por cento) da área da edificação; d) estacionamento ou garagem. II – nas edificações destinadas à habitação coletiva: a) as destinadas aos serviços gerais, tais como: 1. máquinas e elevadores; 2. bombas d’água; 3. transformadores; 4. centrais de ar condicionado; 5. aquecimento de água; 6. instalação de gás; 7. contadores e medidores; 8. instalações para coleta e depósito de resíduos sólidos; b) as que constituem dependências de uso comum: 1. vestíbulos; 2. circulação horizontal e vertical; 3. recreação e jardins abertos ou não;
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4. salões de recepções; 5. guarita; c) sacadas e terraços, desde que abertos, ainda que constituam dependências de utilização exclusiva da unidade autônoma; d) varandas, desde que não ultrapassem a 5% (cinco por cento) da área de utilização exclusiva da unidade autônoma de até 120,00 m2 (cento e vinte metros quadrados) de área, ou 10% (dez por cento) da área de utilização exclusiva da unidade autônoma por habitação com área superior a 120,00 m2 (cento e vinte metros quadrados), e de até 180 m2 (cento e oitenta metros quadrados) ou 15% (quinze por cento) da área de utilização exclusiva da unidade autônoma por habitação com área superior a 180,00 m2 (cento e oitenta metros quadrados); e) estacionamento ou garagem; f) residência de zelador, quando igual ou inferior a 50,00 m2 (cinquenta metros quadrados); g) pavimento em pilotis quando livre e sem qualquer vedação, excluídas as áreas previstas nos incisos anteriores. III – nas edificações destinadas a atividades não residenciais: a) aquelas discriminadas no inciso II, alínea “a”, deste artigo; b) as destinadas à circulação horizontal e vertical, de uso comum; c) as destinadas à guarita; d) as referidas no inciso II, alíneas “c”, “e” e “f, deste artigo.
Como se pode constatar sobrou muito pouca área construída para a aplicação da outorga onerosa, e a que sobrou ainda teve sua forma de pagamento facilitada pelo Artigo 74 (50% do valor no licenciamento da obra e o restante em cinco parcelas mensais, iguais e sucessivas corrigidas monetariamente). A definição das zonas com estoques de potencial construtivo para outorga onerosa deveria, segundo a LCCU ser feita com base na capacidade de infra-estrutura, das vias de circulação e das conveniências de qualificação ambiental. O estoque deveria ser dividido em estoque para fins residenciais e estoque para fins não-residenciais (Artigo 87), cabendo ao poder executivo divulgar as quantidades desses estoques e suas localizações. Ainda segundo o Artigo 162, o estoque de área edificável disponível deveria ser calculado pelo Poder Executivo Municipal e encaminhado à Câmara Municipal de Belém no prazo máximo de um ano, a partir de 19 de julho de 1999. De acordo com Belém (2005) tais estoques não chegaram a ser dimensionados.
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2.3. O Plano Diretor do Município de Belém de 2008 A revisão do Plano Diretor de Belém foi feita sob a égide do Estatuto da Cidade, num processo compartilhado entre governo e sociedade, conforme estabelecido pelo Art. 40 do Estatuto da Cidade, sendo formulado em duas etapas básicas. A primeira consistiu na elaboração de estudos e diagnósticos e foi procedida através da contratação de trabalhos técnicos de consultores e do levantamento e sistematização de informações junto aos órgãos da administração municipal realizada pelos membros da equipe técnica coordenada pela SEGEP. A segunda etapa consistiu no processo de discussão com diversos segmentos sociais, por meio de seminários e audiências públicas, de onde saíram contribuições para o texto final. A Lei que institui o Plano Diretor do Município de Belém (Lei 8.655 de 30 de julho de 2008) situa a OODC dentre os instrumentos jurídicos e urbanísticos. Seu Art. 131 restabeleceu os conceitos de coeficientes de aproveitamento: básico (a ser adotado nos processos de aprovação de projetos que não contemplem a outorga onerosa ou a transferência de direito de construir); mínimo (a ser usado como parâmetro de medição da subutilização do lote e, portanto, da condição de aplicação do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, do IPTU progressivo no tempo, e da desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública); e, máximo (a ser usado nos processos de aprovação de projetos, que contemplem a outorga onerosa ou a transferência do direito de construir). A OODC voltou a incidir sobre a área resultante da subtração entre as áreas obtidas através da aplicação dos coeficientes de aproveitamento máximo e básico. As áreas sujeitas a OODC foram novamente ampliadas, sendo compostas, de acordo com o Art. 158, pelo Setor I da ZAU 3, pela ZAU 6 e pelo Setor II da ZAU 7. Embora a Lei do Plano Diretor tenha estabelecido os coeficientes de aproveitamento mínimos (variando de 0,05 a 0,15), remeteu a regulamentação da definição do coeficiente básico e das condições de aplicação para uma posterior Lei da Outorga Onerosa do Direito de Construir. Enquanto a Lei da OODC e a Lei de Uso do Solo não forem formuladas e aprovadas, o Plano previu, em suas disposições transitórias, algumas alterações na LCCU/1999, tais como, mudanças nos limites do zoneamento e no quadro de modelos urbanísticos. Permaneceu, contudo, a sistemática de incidência da OODC apenas na área construída que excede aquela calculada com base nos coeficientes máximos permitidos no quadro de modelos, este sim alterado. Manteve, também, o art. 70 da LCCU, citado anteriormente, que isenta uma grande variedade de espaços do cômputo total da área construída para fins de cálculo do coeficiente de aproveitamento.
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Foram revogadas, dentre outras, a Lei 7.603/1993, que instituiu o primeiro Plano Diretor de Belém pós-Constituição Federal de 1988, e a Lei 7.877/1998, que estabeleceu o coeficiente básico e o coeficiente máximo iguais a, respectivamente, quatro e seis. 3. CONCLUSÕES A análise da legislação mostrou a imprescindibilidade e o papel fundamental do Plano Diretor e da legislação municipal no estabelecimento de coeficiente(s) básico(s) e máximos de aproveitamento e das condições de aplicação da OODC. Ao atribuir ao município o estabelecimento do coeficiente básico e a definição das condições de aplicação do instituto da OODC, o Estatuto da Cidade deslocou, para essa esfera, o debate e o embate político sobre tais condições. Considerando-se que o Estado é um campo de forças, no qual agentes com interesses diferenciados, lutam pela apropriação dos benefícios da urbanização, somente em situações de equilíbrio de forças políticas pode haver a possibilidade de implementações progressistas e democráticas dos instrumentos urbanísticos. Caso contrário, a tendência é de que ou o instrumento não seja instituído, ou que seja capturado/deturpado para atender interesses de grupos dominantes, como o que ocorreu em Belém ao se instituir a aplicação da OODC acima do coeficiente máximo de aproveitamento e ao se desvirtuar o próprio conceito de índice de aproveitamento, excluindo do seu cálculo uma quantidade enorme de ambientes construídos. No caso da OODC, dentre os grupos desinteressados na aplicação desse instrumento estão os proprietários fundiários e o capital imobiliário, pois estes deixarão de apropriar, de forma privada, benefícios socialmente criados. Num quadro de mercado operando com os valores máximos possíveis de comercialização, tais segmentos poderão ter dificuldades de realização de suas margens de lucro/renda fundiária. O adiamento das decisões referentes à OODC no Plano Diretor do Município de Belém aprovado em 2008 evidencia a dificuldade histórica de pactuar esse instrumento com os setores compostos pelos proprietários fundiários e do capital imobiliário. Por outro lado, as dificuldades de gerenciamento técnico do instrumento e de monitoramento da dinâmica imobiliária e os baixos valores arrecadados são alguns dos fatores que ajudam a entender o pouco interesse que o instrumento desperta no executivo municipal. A julgar pelo que tem ocorrido até o presente, é grande o risco de se tornar a OODC um instrumento sem eficácia e credibilidade.
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Estudo de Impacto de Vizinhança: a Legislação do EIV em Porto Alegre GLADIS WEISSHEIMER1 MARIA TEREZA FORTINI ALBANO2 Arquitetas e Urbanistas.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS A discussão realizada em Porto Alegre sobre o Estudo de Impacto de Vizinhança – EIV tem seu marco na 1ª Conferência de Avaliação do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental – PDDUA, Lei Complementar 434/99 realizada em 2003, quando ficou estabelecido como pauta a necessidade de compatibilização deste instrumento com o Estatuto da Cidade – EC. Nesta ocasião se evidenciou de maneira bastante forte a insatisfação de parcelas da população com os resultados espaciais decorrentes das propostas do plano. O tema da paisagem urbana que durante o processo de elaboração do PDDUA desde meados dos anos 90 tinha sido aspecto de pouca relevância, passar a ser, durante e após a 1ª Conferência de Avaliação, questão essencial, voltada principalmente para a temática das alturas das edificações e das Áreas Especiais de Interesse Cultural da cidade, com ênfase na delimitação e definição de regimes urbanísticos para uma adequada valorização do patrimônio cultural. Assim se iniciou uma ampla mobilização para que o EIV fosse exigido para um número bastante grande de situações envolvendo até mesmo projetos de prédios com mais de 500m2 que estivessem em processo de aprovação junto ao setor competente da Secretaria de Obras do Município. É possível afirmar que a discussão do EIV em Porto Alegre se confundiu muitas vezes com a da revisão do plano diretor. Através desta discussão a população 1
Arquiteta e Urbanista graduada pela UFRGS em 1989. Técnica da SPM da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Coordenadora da elaboração da Lei do EIV em Porto Alegre.
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Arquiteta e Urbanista graduada pela UFRGS em 1976. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR – UFRGS 2000. Técnica SPM desde 1979. Integra grupo da elaboração da Lei do EIV em Porto Alegre, Coordenou em 2003 o tema Projetos Especiais de Impacto Urbano e EIV na revisão do PDDUA.
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vislumbrou neste instrumento uma oportunidade de resolver situações de conflito geradas pelos regimes urbanísticos propostos pela legislação de 1999, que em desacordo com a realidade da cidade preexistente nos bairros, passou a propor usos e volumetrias bastante superiores das identificadas nos diversos locais. Através de um estímulo de renovação em quase todos os bairros da cidade passaram a surgir espigões isolados, em zonas com predominância de residências unifamiliares ou de prédios com um número reduzido de pavimentos. Se por um lado, setores da comunidade consideraram o EIV como um instrumento capaz de propiciar uma luta pela manutenção das ambiências dos bairros tradicionais da cidade, por outro lado, representantes do setor imobiliário o perceberam apenas como mais um ato burocrático e fator de aumento de despesas no desenvolvimento dos projetos com necessidade de aprovação pela Prefeitura Municipal. Desde então se estabeleceu um debate sobre os limites de abrangência do EIV bem como sobre as possibilidades e os desafios para a construção de uma proposta de consenso para a cidade de Porto Alegre. O que se buscava era um acordo possível que fosse capaz de garantir as condições de implementação do instrumento, atendendo às expectativas dos diferentes atores sociais quer como produtores da cidade, moradores dos diversos bairros, usuários do comércio e serviços, gestores públicos e todos aqueles que de alguma maneira são responsáveis pelo funcionamento do sistema urbano. Na sua essência, desde o início das discussões o EIV vem sendo tratado como um instrumento de gestão democrática, materializado em um documento que reúne as informações necessárias para subsidiar a avaliação prévia dos impactos sobre o ambiente sempre que a magnitude do empreendimento ou atividade assim o exigir e sempre que a ênfase predominante for de caráter urbanístico. De maneira mais e menos intensa estes e outros aspectos já foram abordados em outros dois trabalhos enviados ao III e IV Congressos do IBDU. Neste sentido, no presente momento, se pretende trazer para o V Congresso os resultados do processo vivido desde 2003 que culmina na elaboração de um projeto de lei e na realização de um seminário público com o objetivo subsidiar a tomada de decisão dos conselheiros do CMDUA – Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental com relação à proposta de lei elaborada. Portanto, a minuta de projeto de lei ainda em discussão junto ao CMDUA, tem por objetivo atender ao disposto nos artigos 36, 37 e 38 da Lei Federal 10.257 de 10 de julho de 2001 e adequar a utilização de outros instrumentos de avaliação de impacto já utilizados desde longa data em Porto Alegre aos conteúdos do Estatuto da Cidade sobre o EIV.
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A CONSTRUÇÃO DA PROPOSTA DO EIV: REFERENCIAIS GERAIS A análise de impactos não é uma novidade em Porto Alegre. Desta forma o caminho para a definição de empreendimentos e atividades passíveis de EIV bem como dos demais aspectos relacionados pelo EC passa pelo reconhecimento de que: – todos os empreendimentos e atividades são causadores de impacto; – os impactos podem ser controlados por normas, critérios, estudos ou por avaliações pós-ocupação; – as avaliações de impacto pós-ocupação só são objeto de EIV quando um determinado empreendimento ou atividade deseja expandir-se de forma significativa3. Da mesma forma, há de se reconhecer que na contemporaneidade a sociedade passa a se preocupar com novas pautas até então inexistentes. Considerando apenas aspectos da questão ambiental, a escassez e o esgotamento dos recursos naturais, temáticas fundamentais da atualidade que remetem à preocupação com o direito das futuras gerações4. Não é por acaso que os planos diretores estritamente normativos, mais especificamente desde os anos 70 do século XX, vem recebendo um enorme número de críticas. Neste contexto de críticas surgem novas abordagens e as avaliações de impacto introduzem uma perspectiva de adoção de um modelo “previne-corrige” como uma alternativa ou um complemento para o modelo modernista do “comando-controle”. E os planos diretores tradicionalmente concebidos como instrumentos de regulação que se reduziam a um conjunto de definições de regimes urbanísticos como representações físico-territoriais expressas através de padrões quantitativos passam a incorporar ideias de flexibilização que devem expressar os princípios de uma política de desenvolvimento urbano-ambiental pensada como um projeto global das cidades. Na nova lógica não se propõe o abandono dos regimes urbanísticos, mas um destaque a possibilidade de consideração de outros aspectos que podem ser responsáveis pela definição da configuração sócio-espacial de setores urbanos. Portanto o regime urbanístico é um dos elementos, e não o único, que comparece na definição do que é qualidade de vida para uma cidade ou uma população. A partir do conceito de função social da propriedade, tão bem expresso no novo marco legal 3
Foi rejeitada proposição de considerar como passíveis de EIV as análises das repercussões pós-ocupação de empreendimentos e atividades, pois no próprio Estatuto da Cidade o EIV é um estudo prévio de impacto.
4
Ideias apresentadas por Vanesca B. Prestes no Seminário Estudo de Impacto de Vizinhança – A legislação do EIV em Porto Alegre, realizado em 28 e 29 de agosto de 2008 em Porto Alegre.
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pós Constituição Federal de 1988, o regime urbanístico passa a ser uma referência indicativa de como poderá se dar a ocupação do solo, mas sua utilização plena não é garantida nem obrigatória, devendo entrar em consideração as demais avaliações que demonstrem concretamente a real adequação de uma determinada proposição a um determinado ambiente. Nesta nova ótica, que consolida as avaliações de impactos como instrumentos do planejamento das cidades, se pretende buscar a qualidade de vida através de procedimentos objetivos, transparentes e menos abstratos do que o utilizado pelo planejamento mais tradicional. ESTRUTURA DO PROJETO DE LEI A opção por uma lei independente do plano diretor se estrutura a partir dos seguintes conteúdos básicos que integram o texto legal: instituição do instrumento; conceituação; definição de responsabilidade sobre a coordenação; instituição da Taxa de aprovação do EVU; objetivos do instrumento; estrutura básica; conteúdo mínimo; lista de atividades e empreendimentos passíveis de EIV; situações de dispensa; questões relacionadas ao Termo de Referência; aprovação de EVU e Termos de Compromisso; responsabilidade sobre despesas e custos; aspectos da gestão democrática e prazos. A forma final construída pela assessoria jurídica é fruto de muitas idas e vindas de um debate que se deu a partir da 1ª Conferência de Avaliação do Plano Diretor, mas que se consubstancia num trabalho técnico dentro da PMPA, onde estiveram presentes a Secretaria do Planejamento Municipal – SPM como coordenadora do processo, a de Meio Ambiente – SMAM, a de Mobilidade Urbana – SMU, a de Cultura – SMC e a Procuradoria Geral do Município – PGM. UM EVENTO EXCLUSIVO PARA DISCUTIR O EIV Enviado ao CMDUA para discussão em março de 2008 o trabalho recebeu considerações antagônicas, ora voltados para a rejeição pura e simples do tema, ora aprofundando questionamentos sobre muitos outros aspectos, entre os quais provavelmente o mais relevante é o da forma de discussão com a sociedade. Considerando um histórico recente da cidade de Porto Alegre de encaminhar ao Ministério Público pendências não resolvidas entre as partes interessadas ainda no processo de discussão que antecede o encaminhamento de matérias legais ao Poder Legislativo, por orientação do secretário do Planejamento Municipal se realizou um seminário público de discussões com vistas a subsidiar a decisão do CMDUA.
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Numa organização compartilhada entre representantes do CMDUA, Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e Prefeitura Municipal, coordenada pela equipe da SPM, o evento contou com inúmeros palestrantes representantes de diferentes visões sobre o tema5 e se estruturou ainda com a colaboração da Escola Superior de Direito Municipal para discutir em diversos painéis os seguintes temas básicos: histórico que envolve a formulação do instrumento, conteúdos propostos por Porto Alegre para a legislação do EIV, análise de legislações sobre o EIV, apresentação de experiências de cidades brasileiras com estudos de impacto; desafios para a gestão democrática do instrumento, visão empresarial sobre os estudos de impacto e EVUs e aspectos conceituais e metodológicos. DISCUSSÃO SOBRE OS PRINCIPAIS CONTEÚDOS O MÉRITO DO INSTRUMENTO A tradição da cidade em temas relativos à avaliação de impacto urbanístico e a gestão democrática são elementos fundamentais para afirmar que o que está em discussão em Porto Alegre não é o mérito do instrumento EIV, mas sua implementação e regulamentação. A inclusão do instrumento EIV no EC representa o reconhecimento de situações de conflito que têm ocorrido, especialmente em centros urbanos ou metrópoles, que necessitam receber soluções urbanísticas mais adequadas, visando a melhoria da qualidade de vida dos moradores das cidades e adotando os aspectos urbanísticos como fio condutor transversal das análises dos diversos temas. Em Porto Alegre a implementação deste instrumento foi encarada como uma oportunidade de promover a qualificação e o aprimoramento das análises de impacto urbanístico já experimentadas por outros instrumentos, adotando o aspecto urbanístico como fio condutor transversal das análises dos diversos temas e consolidando o gerenciamento destas avaliações através de métodos preestabelecidos, estudos tecnicamente reconhecidos, transparência e participação dos envolvidos, sob a coordenação da Secretária de Planejamento Municipal. É preciso registrar que ao longo do processo de discussão da proposta, existiram posições antagônicas, de grupos que são absolutamente favoráveis ao mérito do instrumento e de grupos bastante resistentes ao mesmo, neste caso, sempre associadas a questões burocráticas ou a custos para o empreendedor. Tais questões foram 5
Antônio Cláudio Moreira Lima e Moreira, Benny Schasberg, Cibele Rumei, Gladis Weissheimer, Luciano Joel Fedozzi, Magda Cobalchini, Magda Satt Arioli, Maria Tereza Fortini Albano, Miguel Satler Rogério Rocco e Vanesca Buselato Prestes.
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consideradas legítimas devendo ser equacionadas, não devendo constituir empecilho à implementação do EIV. É importante salientar o que foi considerado uma das principais premissas deste trabalho: o EIV é instrumento de avaliação para o permitido pela norma – quer seja rígida ou dotada de flexibilização com análise mediante Projeto Especial. Da mesma forma que demais instrumentos de avaliação de impacto, não é empecilho para a implementação de empreendimentos na cidade, também não é instrumento aplicável ao proibido em lei, estes casos devem ser precedidos de alteração da legislação através do legislativo. O regime urbanístico definido em lei, ou seja, permitido, não exclui a necessidade de demonstração de solução de impacto através de instrumento de avaliação, caso contrário, o instrumento não seria aplicável em nenhum caso da lista. O CONCEITO DE IMPACTO URBANO Da mesma forma que o EC, o conceito de impacto urbano não foi explicitado na proposta de lei, evitando polêmicas desnecessárias entorno do assunto e optandose por enfatizar seus objetivos. Para a estruturação da proposta foram considerados conceitos constantes em documentos que nortearam a proposição do Sistema de Avaliação de Impactos Urbanos – SADUR6 no PDDUA e outros autores reconhecidos por suas pesquisas sobre o tema, em consonância com as disposições do Estatuto da Cidade. Conteúdos do Estatuto da Cidade sobre impacto: ... contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades incluindo a análise, no mínimo, das seguintes questões...
Rômulo Krafta em texto para do SADUR: Assim, presume-se que os diversos elementos que compõem a cidade território, objetos, espaços e atividades estão interligados de maneira tal que, no limite, qualquer mudança, por menor que seja, em qualquer destes elementos provoca alterações gerais em todos os demais elementos, bem como nas relações que mantém entre si.
Antônio Cláudio Lima Moreira Lima em texto para disciplina Políticas públicas de proteção do ambiente urbano:
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Proposta de acompanhamento sistemático da realidade para subsidiar tomada de decisão de políticas urbanas, avaliações de impacto e monitorar o desenvolvimento urbano.
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O que caracteriza o impacto ambiental não é qualquer alteração nas propriedades do ambiente, mas as alterações que provoquem o desequilíbrio das relações constitutivas do ambiente tais como as alterações que excedam a capacidade de absorção do ambiente considerado.
A concepção adotada para a legislação de Porto Alegre passa pelo reconhecimento de que qualquer empreendimento gera impactos na cidade pré-existente e que a forma de avaliação e de definição de soluções sobre estes impactos pode ser dada através de um conjunto de opções de instrumentos, incluindo os já existentes, a serem aplicados de acordo com a complexidade da situação, como o Estudo de Viabilidade Urbanística – EVU, o Relatório de Impacto Ambiental – RIA e o Estudo de Impacto Ambiental – EIA, aos quais vem se adicionar o EIV. O CONCEITO DE VIZINHANÇA Para dar suporte à proposta, foram pesquisados conteúdos oriundos do Código Civil – Direito de Vizinhança, das propostas urbanísticas de Unidades de Vizinhança e da Área de Influência prevista pelos estudos ambientais. Avaliou-se que os objetivos do instrumento estão estreitamente relacionados com o que atualmente é utilizado nestes últimos, abstraindo-se a associação com a bacia hidrográfica, que em meios urbanos apresenta-se muitas vezes descaracterizada por diversas intervenções. Com base nestas informações, a proposta considerou como vizinhança o território sobre o qual incidem as repercussões positivas ou negativas de um determinado empreendimento considerando cidadãos, moradores permanentes, empregados, pessoas que transitam ou utilizam permanentemente este território, definido caso a caso, conforme a pré-existência e a complexidade dos principais impactos a serem considerados. A COMPATIBILIZAÇÃO DOS INSTRUMENTOS EXISTENTES A lógica adotada foi a de não desprezar reconhecidas conquistas já alcançadas nas avaliações de impacto realizadas na cidade de Porto Alegre. O trabalho estabeleceu como pressuposto que instrumentos tradicionais como a norma geral, que propicia aprovar projetos diretamente junto à Secretaria de Obras, e instrumentos ambientais mais complexos já existentes como o RIA/DS ou EIA/ RIMA, devem ter sua utilização valorizada e ratificada em seus respectivos campos de atuação. Um dos principais desafios reside justamente neste quesito, ou seja, em definir as escalas e campos de atuação de cada instrumento. Nesse sentido é que o foco de atuação do EIV deve estar em situações de maior impacto urbanístico, privilegiando
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análises ainda não contempladas plenamente nos estudos ambientais, mas essenciais do ponto de vista urbanístico de uma cidade, como o adensamento populacional, a valorização imobiliária e a paisagem urbana. Uma das questões cruciais do debate realizado é a compreensão sobre a distinção entre o instrumento preexistente, o EVU, e o EIV. Em Porto Alegre o instrumento denominado EVU é, essencialmente, um procedimento administrativo de aprovação de projetos, através do qual os interessados submetem suas proposições para análise pelo Poder Público. Conforme o grau de impacto das proposições, o EVU deverá receber o aporte de estudos específicos sobre áreas setoriais do conhecimento, como os de ambiente natural ou de tráfego, para citar exemplos mais recorrentes, ou estudos mais complexos como EIV, RIA ou EIA/ RIMA. O EIV é, antes de tudo, o documento que reúne os estudos e as informações sistematizadas de um determinado projeto, de natureza ou porte predefinidos em lei, propiciando a avaliação prévia dos impactos urbanísticos sobre a área de influência de um empreendimento proposto por um EVU. O CONTEÚDO E LIMITAÇÕES DE UMA LISTA A existência de listas fechadas definindo o que deve ser passível de EIV levanta uma situação que foi sempre muito questionada nos zoneamentos dos planos diretores, uma vez que a realidade é sempre muito mais dinâmica do que a capacidade de prever o que poderá surgir no futuro da vida de uma cidade. Apesar de tais limitações, reconheceu-se que esta opção além de atender às determinações do próprio Estatuto da Cidade, proporciona a segurança jurídica reivindicada pelos envolvidos, tanto aos empreendedores quanto a sociedade, que estarão previamente informados sobre exigências que incidem sobre as intenções de um projeto. O ENQUADRAMENTO DE CASOS NÃO PREVISTOS Como forma de contemplar situações imprevisíveis, sem abrir mão de uma lista objetiva dos empreendimentos e atividades passíveis de EIV, foi discutida a necessidade de inclusão de enquadramentos de situações que devido às suas características promovam impactos significativos ou o agravamento de situações preexistentes. Foram previstos os seguintes casos: – similaridade às situações previstas no que se refere aos possíveis impactos gerados
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– solicitação de aumento de porte para atividades ou empreendimentos préexistentes na cidade. O primeiro caso refere-se a atividades novas que constantemente surgem no cotidiano das cidades e o segundo refere-se a, por exemplo, um shopping center que solicita ampliação da sua capacidade de operação, estando naturalmente contribuindo para uma situação de agravamento de impacto, quer seja pelo aumento da polarização de veículos quer seja na densificação da quantidade de edificação em lugares já bastante edificados. PREOCUPAÇÃO COM A BANALIZAÇÃO DO INSTRUMENTO A exigência de EIV para um número muito grande de situações foi considerada desnecessária e indesejável em Porto Alegre, resultando possivelmente na banalização do instrumento. A proposta baseia-se na hierarquização de níveis de impactos, definindo como passíveis de EIV as situações que não podem ter seus impactos identificados e equacionados através de soluções propostas pela norma geral ou pela elaboração de análises setoriais específicas proporcionadas pelo EVU. Considerou-se imprescindível direcionar a aplicação do EIV para o aprimoramento de propostas de maior impacto no ambiente urbano, abrangendo situações de maior complexidade, com repercussões em áreas de influência maiores e causadores de maiores transformações urbanas. É importante salientar, no entanto, que o EIV não é um instrumento para controlar as inadequações do plano diretor, ou seja, se há incongruências ou inconformidades de determinados segmentos sociais quanto às proposições do plano, há de se promover um processo mais permanente de revisão de seu conteúdo, de forma a alterar o regime urbanístico de forma homogênea e não no caso a caso através da aplicação de um EIV. GESTÃO DEMOCRÁTICA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL Esta é uma das questões mais recorrentes neste debate. O Estatuto da Cidade gerou uma polêmica desnecessária por ter sido um tanto tímido no Parágrafo único de seu artigo 37, referindo-se apenas a “dar-se-á publicidade aos documentos constantes do EIV”. Entretanto, cabe salientar que esta questão é pressuposto de atuação definido no Capítulo I – Diretrizes Gerais e no Capítulo IV – Da Gestão Democrática da Cidade, como uma regra a ser seguida pelos capítulos anteriores.
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Cabe então, inicialmente um destaque à forma como a cidade de Porto Alegre organizou a proposta de gestão da participação social, aspecto previsto no PDDUA em sua Parte II, Sistema Municipal de Gestão do Planejamento – SMGP.7 Com vistas a propiciar a referida participação, a cidade foi dividida em oito Regiões de Gestão do Planejamento, cada uma delas com seu representante no CMDUA que é apoiado por um Fórum Regional de Planejamento – organismo que subsidia a atuação do conselheiro. A participação da população e a socialização das informações são viabilizadas na proposta de Porto Alegre através da realização de audiências públicas, reconhecendo, portanto, reivindicações históricas e a tradição do município em opinar em processos de consolidação de propostas de impactos significativos na configuração sócio-espacial de setores urbanos. A discussão no CMDUA recebeu considerações polarizadas, pendendo tanto para omissão como para excessos, com proposições tanto ao momento em que se dá a participação e quanto à forma de garantir seu acesso. Representantes do setor da construção civil questionaram a realização de audiências públicas, sugerindo restringir-se ao proposto pelo artigo 37 do EC, com a mera publicação de uma lista após a realização do EIV. O representante da Universidade Federal sugeriu a participação no momento da solicitação do instrumento, através de consulta direta aos moradores vizinhos. Já representantes de regiões de Planejamento reivindicaram viabilizar a participação antes mesmo da realização do EIV, além de considerar a audiência pública um formato ainda muito precário para garantir a participação, baseando-se em casos pregressos bastante desastrosos8. Relatos referidos por Rogério Rocco, com base em experiências de outras cidades, recomendaram que a realização de audiências possa ser opcional. A proposta foi ajustada permitindo a realização de consultas ou audiências públicas, possibilitando a simplificação em casos menos complexos e garantindo a legitimidade ao processo, a fim de evitar questionamentos futuros. Também foram incorporadas outras sugestões, como disponibilizar as informações via internet, enviar correspondência às associações de bairro integrantes da área de influência do empreendimento e instalar placa no endereço do empreendimento em local de fácil visualização.
7
A participação social no PDDUA está prevista através do disposto nos artigos 33 a 41 e prevista para acontecer em três níveis: global, regional e local.
8
Em 2007, a audiência pública promovida para a Revisão do PDDUA foi questionada juridicamente devido à presença maciça de trabalhadores da construção civil que se deixavam manipular pelos dirigentes sindicais e reprimiram a participação de outros setores da sociedade, especialmente as associações de moradores.
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PRAZOS JUSTOS E PROCEDIMENTOS Este item foi abordado baseado na experiência de implementação dos estudos ambientais em Porto Alegre, numa trajetória de quase duas décadas, avaliando os prós e os contras para os prazos que foram adotados. Considerou-se razoável estabelecer seis meses para o prazo de sua realização, já que para estudos ambientais o prazo é de um ano. Então, a proposta sugeriu que os EIVs sejam apresentados ao Poder Público Municipal no prazo máximo de seis meses após a expedição de seu Termo de Referência. Deve-se sempre ressaltar que os prazos são máximos, possibilitando que o empreendedor apresente o estudo em tempos menores, tendo em vista que a previsão de prazos máximos está diretamente vinculada à complexidade do estudo e à celeridade de sua apresentação. Houve críticas aos prazos propostos, sugerindo a redução do período destinado à elaboração e análise, e ampliação do prazo previsto para a apropriação do tema pela população. A proposta foi incorporada, passando para 4 meses para sua elaboração e para 30 dias o período em que deve estar disponível para consulta. RESPONSABILIDADE TÉCNICA Neste quesito a principal questão discutida é se a responsabilidade técnica pela elaboração do estudo deve se dar através da exigência de uma equipe multidisciplinar ou se é suficiente apenas um único responsável técnico. Além disso, foi sugerida a consulta a cadastros prévios a exemplo do que é realizado nos estudos ambientais. A opção apresentada é a do responsável único, que aciona equipes técnicas dependendo do tema e da complexidade da análise, sem necessitar de cadastros prévios já que esta exigência demonstrou-se ineficiente e concorrente com a competência das entidades de classe, portanto, desnecessária. A área do conhecimento que coordena o estudo também foi motivo de questionamentos, tendo sido reivindicada pelos arquitetos, especialmente os arquitetos urbanistas. Foi considerado desnecessário especificar a proposição na lei, entendendo-se que cada tema poderá exigir profissionais de campos distintos, devendo ser fiscalizado por entidades de classe. PRINCIPAIS DESAFIOS Considerando a abordagem até aqui realizada, passa-se a ressaltar alguns dos principais pontos que devem caracterizar a continuidade deste debate com vistas à implementação do instrumento, que envolvem aspectos tais como:
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– Qualificação da gestão urbano-ambiental, através do aprimoramento de metodologias de avaliação de impacto integradas e monitoramento; – Aporte e capacitação de recursos humanos e tecnológicos, oferecendo suporte às demandas oriundas da implementação do instrumento; Nesse sentido considera-se que o EIV, ao longo de sua implementação, deve conquistar a robustez necessária para se consolidar como o instrumento mais abrangente e adequado para tratar das questões urbanas em diferentes escalas, dentro do quadro desejável de sustentabilidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBANO, Maria Tereza Fortini; MANN, Elisabeth Maria; WEISSHEIMER, Gladis; BORGES, Synthia Ervis Kras. Desafios para implementação do Estudo de Impacto de Vizinhança em Porto Alegre: questões pendentes x controvérsias. Porto Alegre. 2006. Texto apresentado no IV Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico, realizado em São Paulo.dezembro de 2006. BRASIL. Lei 10.257: Estatuto da Cidade, de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os art. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece as diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, edição de 11 de julho de 2001. Disponível em: Senado Federal – Publicações, acesso em janeiro de 2007. CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Dispõe sobre critérios básicos e diretrizes gerais para o Relatório de Impacto Ambiental – RIMA. Resolução n. 001, de 23 de janeiro de 1986. Diário Oficial da União: Brasília, edição de 17 de fevereiro de 1986. LOLLO, J. A.; ROHM, S.A. Aspectos Negligenciados em Estudos de Impacto de Vizinhança. Revista Estudos Geográficos. Disponível em: http://www.rc.unesp.br/igce/grad/geografia/revista/ Sumario0302.htm, Ano 3, Número 2 – 2005, acesso em dezembro de 2006. PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal.PDDUA: Lei Complementar 434/99. Porto Alegre: Prefeitura Municipal, Secretaria do Planejamento Municipal, 2000. PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. Lei 8267. Regulamenta o licenciamento ambiental no Município de Porto Alegre, cria a Taxa de Licenciamento Ambiental. Secretaria do Municipal de Meio ambiente, 30 de dezembro de 1998. PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. Manual do Licenciamento Ambiental de Porto Alegre. Secretaria Municipal do Meio Ambiente, 2004. PRESTES, Vanêsca Buselato (Org.). Temas de Direito Urbano-Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2006. KRAFTA, Rômulo. Sistema de Avaliação de Impactos Urbanos: Termo de Referencia. 1997. MOREIRA, A C Lima Moreira. Conceitos de Ambiente e de Impacto Ambiental Aplicáveis ao Meio Urbano. Material didático da disciplina de pós-graduação AUP 5861 – Políticas públicas de proteção do ambiente urbano. São Paulo: 1999. CÓDIGO CIVIL – Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 Parte Especial – Livro III Do Direito das Coisas – Título III Da Propriedade Capítulo V – Dos Direitos de Vizinhança. Resolução CONAMA 001/86 art. 5º inc III.
9 A APLICAÇÃO DA ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA NAS CIDADES DA AMAZÔNIA
Balneabilidade na Praia da Ponta Negra, Direito à Cidade e ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado DANIELLE DE OURO MAMED, CYNTIA COSTA DE LIMA E JOELSON RODRIGUES CAVALCANTE1 Graduandos em Direito.
1. INTRODUÇÃO O tratamento da ciência do Direito em relação a seus objetos tem sofrido intensas modificações. A ciência tradicionalmente vinculada ao positivismo2 e à autonomia em relação às demais concede, paulatinamente, lugar a uma análise das demandas sociais de maneira mais aprofundada e completa, já que se permite uma maior integração aos outros “saberes”. Este fato representa uma considerável evolução, não apenas para a ciência do Direito, mas também para a sociedade, que se vê beneficiada por um tratamento jurídico mais voltado às suas necessidades. O processo de urbanização é definido por Ferrari (1979)3 como concentração de população em cidades e a consequente mudança sócio-cultural dessas populações além de que pode ser entendido também pelo aumento da população urbana em detrimento da rural. Fato é que o modelo de desenvolvimento consolidado pelo avanço da sociedade industrial é o principal causador deste fenômeno, já que o mesmo preconiza a necessidade de mão-de-obra trabalhando nas cidades. A Revolução Industrial Inglesa é considerada a desencadeadora dessa tendência já que previu a retirada massiva dos trabalhadores do campo para as grandes cidades em busca de trabalho nas indústrias e melhores condições de vida. Entretanto, é sabido que esse processo gerou inúmeros problemas, graças à falta de estrutura para absorver toda a população proveniente do 1
Discentes do curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas, cursando o 9º período.
2
Nesse sentido, consultar: AGUIAR, Roberto A. R. A crise da advocacia no Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1999.
3
FERRARI, C. Curso de planejamento municipal integrado. 2. ed. São Paulo: Livraria Pioneira, 1979, p. 631.
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campo, o que desencadeou problemas sociais de diversas ordens (desemprego, violência, falta de saneamento básico, problemas de saúde, dentre outros). Como fator que influencia tantos elementos, o processo de urbanização não pode ficar alheio ao Direito. As mudanças sócio-culturais dele advindas devem ser tuteladas juridicamente visando a garantia de princípios de ordem constitucional, como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à sadia qualidade de vida, à dignidade e ao lazer. A cidade de Manaus, especificamente, sofreu um processo de urbanização acelerada e, de forma análoga a muitas cidades do Brasil, sem condições estruturais para tanto. Este processo se deu de maneira mais pungente a partir da constituição da Zona Franca de Manaus, que atraiu um parque industrial de grande proporção para a capital, causando um inchaço populacional. Diante disso, houve-se a necessidade de solucionar, ou ao menos amenizar, as situações de desacordo das cidades com o ideal criado pela lei. O objetivo deste trabalho é relacionar a tão almejada qualidade de vida, objetivada através da observância do direito à cidade e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no contexto da utilização da Praia da Ponta Negra (Manaus) como balneário pela população local, que necessita, além de infra-estrutura básica, de espaços onde possa se desenvolver integralmente, contando com o acesso a uma sadia qualidade de vida, incluindo-se o lazer. 2. METODOLOGIA Para execução do presente trabalho, foi realizado levantamento bibliográfico básico sobre os direitos envolvidos na temática (lazer e meio ambiente ecologicamente equilibrado); aplicação de questionários por amostragem e análise dos dados coletados. Cumpre esclarecer que, para a aplicação do questionário, utilizou-se o método por amostragem no percentual de 25,31% em relação ao universo. Foram questionados 20 (vinte) banhistas, maiores de 15 anos, que se encontravam na praia no dia da saída a campo (08/06/07), sendo que no local havia um total de 79 banhistas, incluindo-se as crianças. 3. RESULTADOS 3.1. A Constituição Federal de 1988 e o meio ambiente A Constituição de 1988 trouxe de forma inédita para o Brasil dispositivos constitucionais que se referem à proteção ambiental. A referida regulação encontra-
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se consubstanciada no título VIII (Da Ordem Social), capítulo VI, no artigo 225. Nela, é possível observar o estabelecimento de um norte voltado à realidade do século XXI, voltado para as sociedades de consumo, caracterizadas por um crescimento por vezes desordenado e acelerado desenvolvimento tecnológico. Diante desse diagnóstico a Carta Política de 1988, adere a uma nova concepção de direitos, os chamados direitos difusos que, de acordo com Mancuso (2004)4 seriam aqueles cuja titularidade não se pode definir com exatidão. Pode-se afirmar que o referido artigo possui além da preocupação ambiental em si, um viés de natureza antropocêntrica cujo objeto é preservar a vida e a dignidade humana, ameaçadas diante das incontestáveis consequências negativas geradas pelo trato inadequado com o meio ambiente. O equilíbrio a que faz menção o artigo constitucional não deve significar a inalterabilidade da natureza e está concernida numa harmonia e proporcionalidade entre aqueles que formam a natureza e devem ser alcançadas na soma de forças entre Poder Público e coletividade. A previsão constitucional que assegura o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem por fim a garantia da sadia qualidade de vida, direito que sugere a ideia de meio ambiente não-poluído ou próprio para manutenção de uma vida digna. Ao dispor sobre qualidade de vida, o poder constituinte determina que compete ao Poder Público a proteção, preservação e melhoramento do meio ambiente que para serem efetivados necessitam de normas e políticas públicas, e para garantir esse direito, a Constituição dispõe sobre o dever que tanto a coletividade quanto o Poder Público possuem para tal. Cabe destacar que a atual Carta Magna avançou consideravelmente no sentido de incluir no próprio artigo 225, a noção de desenvolvimento sustentável ao estabelecer: “Art. 225: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
A importância de tal dispositivo deve-se à tendência internacional de preservação ambiental construída de maneira mais significativa a partir de 1987 com a publicação do Informe Brundtland, documento que plasmou a noção de desenvolvimento sustentável, preconizando o aproveitamento dos recursos naturais para as gerações presentes, sem comprometer o mesmo direito das gerações futuras.
4
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
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Cumpre-nos observar que a Carta Política de 1988 alçou a consideração do meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado como direito fundamental, ainda que não esteja expressamente instituído no rol dos direitos elencados no artigo 5º da Constituição. Como bem coloca José Afonso da Silva5: “O ambientalismo passou a ser tema de elevada importância nas Constituições mais recentes. Entre nelas deliberadamente como direito fundamental da pessoa humana, não como simples aspecto da atribuição de órgãos ou de entidades públicas, como ocorria em Constituições mais antigas”.
Segundo Freitas6, o aspecto mais importante quando se refere ao meio ambiente é a proteção à vida, lembrando que a expressão meio ambiente inclui ainda a relação entre os seres vivos, bem como o urbanismo, aspectos históricos, paisagísticos e outros tantos essenciais à sobrevivência sadia do homem na Terra. Assim, fica respaldada a visão de que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é pressuposto para salvaguarda do direito à vida em sua plenitude. Nota-se que é necessário o envolvimento de cada indivíduo na luta por um ambiente saudável, assim será possível o envolvimento e mudança de postura de toda sociedade neste aspecto. 3.2. Direito ao lazer como forma de efetivação do Direito à Cidade O direito à cidade vem se consolidando na doutrina internacional a partir da construção da chamada “Carta Mundial do Direito à Cidade” que teve como pontapé inicial a discussão decorrente do Fórum Social Mundial de 2001. As entidades da sociedade civil que compunham o Fórum constataram a necessidade do estabelecimento de um modelo sustentável de sociedade e vida urbana baseados na sustentabilidade. Um dos objetivos da Carta, conforme se pode observar no próprio preâmbulo, consiste no reconhecimento do direito à cidade como passível de proteção dentro do sistema internacional dos direitos humanos, já que é pressuposto para a existência de um padrão adequado de vida. Tal objetivo decorre do próprio conceito de direito à cidade, trazido no documento através do artigo I, parte 2, segundo o qual: “O direito à cidade se define como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios da sustentabilidade e da justiça social. Entendido como o direito coletivo dos habitantes das cidades em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que se conferem legitimidade
5
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros. 2004.
6
FREITAS, Vladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002. p. 17.
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de ação e de organização, baseado nos usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado”.
Além de definir a extensão do direito à cidade, a carta dispõe em seu artigo I que todas as pessoas devem ter o direito a uma cidade sem discriminação de gênero, idade, raça, etnia e orientação política e religiosa, preservando a memória e a identidade cultural, direitos, inequivocamente, inerentes ao ser humano. De acordo com Saule7 (2005), consistiu uma grande inovação ao tema o tratamento dado pela Carta ao direito à cidade como um direito coletivo, já que, tradicionalmente, nos sistemas legais, buscou-se a proteção de um direito à cidade no âmbito individual, garantindo-se desta maneira um tratamento mais adequado à extensão da problemática, que seguramente, transpassa a esfera individual. Um outro documento que deve ser citado é o Tratado sobre Questão Urbana, que se desenvolveu durante a Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, na cidade do Rio de Janeiro (ECO-92). Este Tratado determinou como princípio fundamental o direito à cidadania, que seria compreendido como a participação dos habitantes das cidades e povoados na construção de seus destinos. Isso incluiria, dentre outros direitos, o direito à terra, aos meios de subsistência, à moradia, à informação e ao lazer. Para a abordagem do presente trabalho, considerou-se o direito ao lazer como de primordial importância no que tange ao alcance de uma sadia qualidade de vida e ao desenvolvimento integral da pessoa humana. Devendo-se destacar que na Carta Magna brasileira esse direito encontra fulcro no artigo 6º, caput, que o define como direito social, dada a sua importância. Os habitantes das cidades devem encontrar condições de satisfação de tal direito no equipamento urbano que constitui seu meio. Nesse sentido há que se considerar que os objetivos da Carta incluem o comprometimento de seus signatários com a efetivação de seus princípios, não se podendo desconsiderar a necessidade de atender às demandas dos habitantes das áreas urbanas nessa matéria. Na cidade de Manaus o balneário da Praia da Ponta Negra, como veremos adiante, é um dos principais espaços na cidade destinados ao lazer da população e um dos mais buscados graças à facilidade de acesso e aos custos reduzidos para utilização, legitimando-se uma necessária preocupação quanto à sua utilização.
7
SAULE, Nelson Júnior. O Direito à Cidade como paradigma da governança urbana democrática. Disponível em: <http://www.polis.org.br>. Acesso em: 02 de Nov. 2008.
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3.3. Legislação Municipal e Direito Urbanístico – Praia da Ponta Negra O direito urbanístico possui como objeto de estudo o urbanismo, que segundo Guimarães8, além de um fato social constitui técnica de criação, desenvolvimento e reforma das cidades. Além das disposições constitucionais em relação ao direito ao lazer e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, pode-se encontrar na legislação do Município de Manaus textos que também visam garanti-los. A lei municipal de número 6059 de 2001 (Código Ambiental de Manaus), em seu artigo 1º, dispõe que tal lei, procura atender ao interesse local em favor da preservação, conservação, entre outras ações que visam à recuperação e controle do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ex vi do artigo: Art. 1º – Este Código, fundamentado no interesse local, regula a ação do Poder Público Municipal e sua relação com os cidadãos e instituições públicas e privadas, na preservação, conservação, defesa, melhoria, recuperação e controle do meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de natureza difusa e essencial à sadia qualidade de vida.
O referido diploma legal também dispõe de princípios que norteiam a atuação do município de Manaus no que tange à aplicação da Política Municipal de Meio Ambiente. Tal afirmação infere-se do conteúdo do art. 2º da lei: Art. 2º – A Política Municipal de Meio Ambiente é orientada pelos seguintes princípios gerais: I – o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a obrigação de defendêlo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações; II – a otimização e garantia da continuidade de utilização dos recursos naturais, qualitativa e quantitativamente, como pressuposto para o desenvolvimento sustentável; III – a promoção do desenvolvimento integral do ser humano;
A cidade de Manaus (Amazonas), não diferente de outras de seu porte, apresenta problemas urbanísticos de distintas naturezas. Neste trabalho, analisou-se um espaço da cidade bastante visado tanto do ponto de vista imobiliário pela parcela da população mais favorecida economicamente, quanto por sua vocação natural de fornecer à população em geral um espaço de lazer.
8
GUIMARÃES, Natália Arruda. O Direito Urbanístico e a Disciplina da Propriedade. Disponível em: <http:// www.fcaa.com.br>. Acesso em: 22 set. 2008 14:25:56.
9
MANAUS, Lei nº 605 de 2001. Câmara Legislativa de Manaus.
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A praia da Ponta Negra é comumente utilizada pelos frequentadores como balneário, ainda que suas condições de balneabilidade sejam questionadas pelo senso comum. O referido espaço deve ser visto como um instrumento de efetivação do direito ao lazer10, além de ter necessidade de proteção especial, já que constitui uma área de preservação permanente, sendo esta conceituada ainda na Lei 605, de 24 de julho de 2001: Art. 32 – São áreas de preservação permanente aquelas que abriguem: I. as florestas e demais formas de vegetação natural, definidas como de preservação permanente pela legislação em vigor; II. a cobertura vegetal que contribui para a estabilidade das encostas sujeitas a erosão e ao deslizamento; III. as nascentes, as matas ciliares e as faixas marginais de proteção das águas superficiais; IV. exemplares raros, ameaçados de extinção ou insuficientemente conhecidos da flora e da fauna, bem como aquelas que servem de pouso, abrigo ou reprodução de espécies migratórias; V. outros espaços declarados por lei.
Além disso, podemos ainda encontrar na Lei Orgânica do Município de Manaus a classificação da Ponta Negra como área de interesse ecológico: Art. 296 – Está facultado ao Município criar, por critério próprio, reservas ecológicas ou declarará áreas de relevante interesse ecológico. Parágrafo único – Além do dispositivo no artigo 231, da Constituição do Estado, são consideradas áreas de interesse ecológico da Ponta Negra, o Tarumã, a Ponte da Bolívia, a Praia do Tupé e a praia do Amarelinho, na orla do bairro do Educandos, e os igarapés localizados no Município de Manaus.
Por constituir-se um espaço de notável beleza cênica e que dispõe de uma estrutura que disponibiliza aos usuários entretenimento gratuito, possui grande importância dentro do contexto da cidade de Manaus. Assim, analisar-se-á a relação entre os frequentadores da praia, sua balneabilidade e o direito a disfrutar do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Periodicamente a Prefeitura Municipal de Manaus, realiza a análise da balneabilidade dos cursos de água da cidade como forma de informar à sociedade os 10
Art. 6º da Constituição Federal: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
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locais próprios, ou não, para utilização como meio de lazer. Segundo a Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina11, balneabilidade pode ser definida como a avaliação da qualidade da água para fins de recreação através de critérios objetivos. Tais critérios devem estar baseados em indicadores a serem monitorados e seus valores confrontados com padrões pré-estabelecidos, e para que se possa identificar as condições de balneabilidade em um determinado local; pode-se definir, inclusive, classes de balneabilidade para melhor orientação dos usuários. A Área de Proteção Ambiental (APA) do Tarumã-Ponta Negra, foi criada em 1995 como categoria prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), devido a sua importância ambiental. O artigo 15 da lei nº 9.985/2000 que versa sobre o SNUC, conceitua tal área da seguinte maneira: “uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais”.
Além deste dispositivo, a lei estabelece normas em relação às atividades de visita, e de pesquisa científica nas áreas, o que denota uma preocupação do Poder Público com o controle a ser exercido. Entretanto, analisando-se esta área em específico, observa-se que tais exigências possuem aplicabilidade questionável, já que a área de proteção ambiental Tarumã – Ponta Negra, com limites estabelecidos pela Prefeitura Municipal de Manaus, corresponde às áreas nos bairros Compensa, Nova Esperança, Lírio do Vale, Redenção, Santo Agostinho, Ponta Negra, Tarumã, Campos Sales, Parque São Pedro, Nova Vitória e Ismael Aziz. Frisando-se que tais bairros possuem acentuado desenvolvimento urbanístico, tanto para fins residenciais como para fins comerciais. A Praia da Ponta Negra, em si, é um dos principais cartões postais da cidade de Manaus, fazendo jus a seu enquadramento em tal categoria. Sua estrutura é especialmente voltada para o lazer da população visto que dispõe de calçadão para caminhadas, ciclovia, quiosques, anfiteatro para realização de apresentações artísticas além da praia, utilizada como balneário. Segundo o portal de informação da Prefeitura de Manaus, a balneabilidade da Praia da Ponta Negra, está estritamente associada ao regime do Rio Negro, que determina a concentração de poluição nos pontos utilizados pelos banhistas. Segundo
11
FUNDAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DE SANTA CATARINA. Disponível em <http://www.fatma.sc.gov.br>. Acesso em: 23 set. 2008.
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a secretária de Meio Ambiente, Luciana Valente12, a explicação para a questão é que “os resultados das análises não são definitivos, pois estão sujeitos à sazonalidade, ou seja, das circunstâncias climáticas de determinada época do ano como vazante e cheia”, o que justifica a assertiva. Em relação à Ponta Negra, este fato beneficia os poucos banhistas que frequentam o lugar na época das cheias, tendo em vista que em tal período, a faixa de praia restringe-se a um pequeno espaço, localizado no final da praia, antes do Hotel Tropical. Assim, pôde-se perceber que os banhistas utilizam esta pequena faixa e as escadarias para banhar-se. Já no período de vazante, a procura pela praia é bem maior, posto que a faixa de praia aumenta consideravelmente. Estando a maior concentração de banhistas durante o período da vazante, pode-se concluir que é neste período que os banhistas ficam mais vulneráveis às consequências da utilização de uma praia não balneável, já que neste período a poluição acaba concentrada. Durante a aplicação dos questionários, pôde-se perceber que os frequentadores da praia são atraídos ao lugar por dois motivos principais: 1. Afinidade com o local; 2. Fácil acesso. A justificativa do primeiro motivo, na maioria dos casos, constituiu-se no costume de visitar-se a praia, bem como na apreciação do lugar no tocante às suas belezas naturais. Já para justificar o segundo motivo, alegou-se que os demais balneários da cidade possuem difícil acessibilidade, pois localizam-se em ramais nas estradas que cortam o município (AM-010 ou BR-174) ou, ainda, balneários com acesso via fluvial, o que elevaria os custos do dia de lazer. Já a Ponte Negra localizase ainda no perímetro urbano, contando com serviços suficientes de transporte coletivo. Com o intuito de relacionar a balneabilidade da praia à percepção de seus frequentadores, foi indagado aos entrevistados se estes tinham conhecimento de que há estudos periódicos da Prefeitura Municipal de Manaus atestando a balneabilidade da praia. Do total dos 20 (vinte) entrevistados, 13 alegaram não ter conhecimento de tais estudos. Tal fato aponta para a falta de êxito das autoridades locais em informar dados tão relevantes à população. A informação, neste sentido, traria uma noção mais próxima da realidade aos usuários da praia, quanto ao seu ambiente de lazer. Um fato curioso, também observado, é que, das 13 (treze) pessoas que alegaram desconhecer os estudos de balneabilidade feitos na área, 10 (dez) reconheceram que
12
PREFEITURA MUNICIPAL DE MANAUS. Disponível em: <http://www.manaus.am.gov.br/noticias/qualidadeda-agua>. Acesso em 22 set. 2008.
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não deixariam de frequentá-la caso soubessem de sua impropriedade para banho. Demonstra-se, dessa forma, que os banhistas preferem assumir o risco de problemas de saúde pela contaminação por coliformes fecais a deixarem de exercer seu direito ao lazer naquela área, posto que o costume e as facilidades em fazê-lo, lhes fornecem subsídios para um dia agradável de lazer. A título de curiosidade, foi perguntado, também, se os banhistas consideravam que a conservação despendida à praia por parte da Prefeitura Municipal de Manaus, se dá de forma satisfatória. 12 (doze) pessoas responderam que a conservação vem sendo bem realizada, enquanto que 8 (oito) responderam que não. As 12 respostas positivas levaram em consideração a diminuição visível da quantidade de lixo na praia, tendo em vista o aumento de lixeiros espalhados pelo complexo, ressaltandose, também, a conscientização crescente dos usuários. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim, ao desenvolvimento do presente trabalho, foi possível verificar a necessidade de que o poder público deve fazer-se responsável pela efetivação de medidas que garantam à população de Manaus, e mais especificamente, aos frequentadores da praia da Ponta Negra, o livre usufruto desta área pública, respeitando-se os direitos ao lazer e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como maneira de efetivar-se o direito à vida em toda sua plenitude (entenda-se, com qualidade de vida). A praia objeto do estudo deve ser vista como de extrema importância urbanística dentro do município de Manaus e fator fundamental para o desenvolvimento humano da população que o desfruta. O Direito à cidade traz à abordagem o destaque de uma de suas facetas: o direito ao lazer, intimamente relacionado à vida e ao desenvolvimento integral do ser humano. Este direito, na cidade de Manaus, encontra na Praia da Ponta Negra um dos mais relevantes espaços de efetivação, sendo, portanto, de acentuado interesse público a viabilização do direito ao lazer e também à informação sobre as condições ambientais da área, visando à saúde da população usuária, haja visto que a maioria dos entrevistados desconhecia a existência de períodos impróprios para utilização da praia como balneário. Outro aspecto a considerar-se é que de nada vale o estabelecimento de áreas de proteção ambiental, se não há o compromisso de fiscalização e efetivação do que diz a lei em relação à gestão de tais áreas. Deste modo, há que se ter em mente a criação de institutos que visem à salvaguarda dos dispositivos legais em relação às áreas dessa natureza. A Carta Magna que atualmente norteia o ordenamento jurídico pátrio possui papel fundamental ao estabelecer direitos de cunho ambiental de maneira genérica,
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entretanto, para que se consiga realmente atingir as finalidades que propõe, há que haver um esforço conjunto tanto dos diversos âmbitos legislativos (entenda-se aqueles da União, os estaduais e os municipais) quanto dos órgãos gestores do meio ambiente brasileiro. Pôde-se perceber, ainda, que as leis que têm por objetivo regular as relações do homem com o meio ambiente urbano, devem respeitar outros direitos, sendo um esforço praticamente inválido aquele que estiver pautado em tratar o território urbano valendo-se apenas de conhecimentos jurídicos. Por este motivo o chamado direito à cidade possui elevada abrangência, tendo em vista a diversidade de direitos relacionados, como a dignidade da pessoa humana, sustentabilidade, informação, justiça social, habitabilidade, meio ambiente ecologicamente equilibrado e lazer. Assim, buscou-se demonstrar com o presente trabalho as questões do direito à cidade, equilíbrio do meio ambiente e direito à informação e ao lazer na relação entre a praia da Ponta Negra e aqueles que a utilizam como balneário. Importante ressaltar que as consequências advindas de uma má gestão desse território transpassam o contexto do Direito, envolvendo também profundos conhecimentos sociológicos, geográficos e históricos, por exemplo. Desta forma, poder-se-á construir um direito urbanístico pautado na observância de princípios básicos estabelecidos em 1988 na Constituição Federal, de forma democrática e atendendo aos interesses sociais. 5. REFERÊNCIAS AGUIAR, Roberto A. R. A crise da advocacia no Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1999. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Congresso Nacional, 1988. CARTA MUNDIAL DO DIREITO À CIDADE. Disponível em <http://www.conferencia.cidades. pr.gov.br>. Acesso em: 02 nov. 2008. FERRARI, C. Curso de planejamento municipal integrado. 2. ed. São Paulo: Livraria Pioneira, 1979. p. 631. FREITAS, Vladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002. GUIMARÃES, Natália Arruda. O Direito Urbanístico e a Disciplina da Propriedade. Disponível em: <http://www.fcaa.com.br>. Acesso em: 22 set. 2008. Manaus, Lei Orgânica do Município de Manaus. Manaus: Câmara Municipal, 1990. 158 p. MANAUS, Lei nº 605 de 24 de julho de 2001, Institui o Código Ambiental no Município de Manaus e dá outras providências. In: Diário Oficial do Município de Manaus, Manaus, v I, n. 318, 24 de julho de 2001. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
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SAULE Jr., Nelson. O Direito à Cidade como paradigma da governança urbana democrática. Polis, 2008. Disponível em: <http://www.polis.org.br>. Acesso em: 02 nov. 2008. SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros. 2004. PREFEITURA MUNICIPAL DE MANAUS. Notícias PMM. Disponível em: <http:// www.manaus.am.gov.br/noticias/qualidade-da-agua>. Acesso em 22 set. 2008. FUNDAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DE SANTA CATARINA. Disponível em: <http:// www.fatma.sc.gov.br>. Acesso em: 23 set. 2008.
Criação de Municípios Indígenas: Desafios ao Direito Brasileiro CAROLINE BARBOSA CONTENTE NOGUEIRA1 Graduanda em Direito
FERNANDO ANTÔNIO
DE
CARVALHO DANTAS2
Doutor.
RESUMO: O trabalho proposto é resultado da Pesquisa de Iniciação Científica (PAIC/UEA/FAPEAM)3, no qual objetivamos analisar a possibilidade da criação municípios indígenas ou instâncias políticas específicas e diferenciadas no Brasil, buscando diálogo entre as legislações constitucionais dos países-membros do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) que tratem sobre estas instâncias políticas peculiares, correlacionando-os as legislações brasileiras e a autonomia dos Indígenas Amazônicos, abrangendo seus contextos jurídicos, políticos e sociais. Trabalharemos este assunto a partir da garantia constitucional dada pelo texto do art. 231 e art. 232 da Constituição Federal Brasileira de 1988, que tratam do reconhecimento dos costumes, cultura e forma de organização social dos povos indígenas, correlato ao seu art. 1º, que traz a cláusula pétrea do Pacto Federativo, e ao art. 18, § 4º, que discorre sobre a criação de municípios. Observamos ainda o Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira, com interessante aspecto sobre sua forma de gestão administrativa equilibrando a organização territorial, a gestão e o uso das terras indígenas, possibilitando aos seus índios a administração de seu espaço, conforme sua cultura. Buscamos por dispositivos legais dos países membros do TCA e encontramos nas Constituições do Peru, Equador, Bolívia e Colômbia dispositivos que outorgam autonomia política, administrativa e jurídica aos seus indígenas, dentro de seus limites legais, possibilitando a organização e gestão suas terras conforme seus valores. Finalizando, afirmando que temos um grande desafio ao nosso Direito na
1
Bolsista do PAIC/FAPEAM/UEA. Graduanda em Direito pela Escola Superior de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Amazonas;
2
Orientador do bolsista PAIC/FAPEAM/UEA. Professor Coordenador do Programa de Pós-graduação Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas.
3
Programa de Apoio à Iniciação Científica financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Amazonas com convênio com a Universidade do Estado do Amazonas.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 caminhada para efetivação dos direitos dos povos indígenas, desde a outorga deste há 20 anos, quando da promulgação da CF/88, e para isso, é necessário que haja relativização dos dogmas jurídicos, pluralizando o Direito Brasileiro, com o respeito às diferenças étnicas, sociais e culturais. PALAVRAS-CHAVE: Direito; Índio; Constituição; Município; Autodeterminação.
INTRODUÇÃO Traremos ao debate acadêmico a problemática da criação de municípios indígenas ou entidades políticas diferenciadas, buscando, através dos dados bibliográficos colhidos nas legislações brasileira e dos países-membros do Tratado de Cooperação Amazônica, mostrar a possibilidade de implementação desta figura política, bem como sua configuração política e administrativa. Discutiremos esta necessidade/possibilidade de criação de município indígena no território amazônico ou entidade política semelhante, fundamentando-nos no texto constitucional do art. 231 da Carta Magna Brasileira de 1988, refletindo as garantias de reconhecimento da cultura, costumes, valores e organização social dos índios concomitantemente às redações dos arts. 1º e 18º, § 4º também da Lei Maior, que relacionam a cláusula pétrea do Pacto Federativo Brasileiro e a criação de municípios, correlacionando-os às propostas legais existentes nos países membros do Tratado de Cooperação Amazônica. No ensejo desta reflexão discutiremos as questões jurídicas, sociais e políticas da consolidação do texto constitucional e efetivação das garantias dadas aos povos indígenas brasileiros, observando as possibilidades legais da criação deste ente diverso dos previstos no sistema federativo brasileiro a fim de atender a realidade Amazônia Brasileira. Partindo do multiculturalismo, do pluralismo jurídico e da interdisciplinaridade faremos a leitura das necessidades abordadas pelos teóricos sobre implementação de políticas públicas adequadas às populações indígenas amazônicas, em especial as dos aglomerados populacionais que estudaremos localizados na região do Alto Rio Negro, formando verdadeiras cidades com ausência de planejamento urbano que atendam suas necessidades fundamentais de qualidade de vida. 1. UMA BREVE ABORDAGEM SOBRE A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA POPULAÇÃO INDÍGENA DO ALTO RIO NEGRO E UAUPÉS Historicamente temos um povo massacrado e subjugado pelos interesses mercantilistas de acúmulo de capital, quanto maior o contato das populações indígenas
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com a cultura trazida pelo colonizador europeu, maiores os desastres, os genocídios e a destruição dos territórios para transformá-lo em lucro. Traremos aqui, discussões apontadas por Andrello4, que tratam da leitura histórica da região do Alto Rio Negro e Uaupés, falando desde as primeiras explorações de Portugal até o início do século XX, e o objetivo presente em todas as épocas foi o de expandir ou consolidar as fronteiras e fixar os índios em núcleos de colonização, utilizando como recurso econômico a mão-de-obra destes, com enfoque para as “tropas de resgate”, muito utilizadas na colonização para conquista de escravos indígenas, citando passagens sobre clérigos carmelitas que fundaram os primeiros núcleos de povoamento a fim de atrair indígenas para catequizarem. É de relevância citarmos tanto Diretório Pombalino quanto o período posterior, com suas medidas drásticas para com os índios, utilizando a política de descimentos, proibindo o uso da língua dos nativos, promovendo a integração destes com brancos através da miscigenação, entre outras atrocidades do império. Entre estas constatações históricas, temos outras como os conflitos entre brancos e índios, epidemias de doenças trazidas pelos europeus, o emprego da mão-de-obra indígena escrava, as políticas que tiraram estes povos de suas terras e trouxeram-nos aos aldeamentos para centralizar o controle dos mesmos, contribuíram por massacrar e diminuir substancialmente o número demográfico-populacional desta região amazônica. Com a criação da Província do Amazonas, institucionaliza-se o programa de “civilização e catequese”, para atrair os chamados gentios às margens dos rios, afim de que fossem facilmente transferidos e engajados nos programas de serviço público da província. Porém, a nova Diretoria dos índios muda o percurso de transferência, em vez de estabelecerem-se ao longo do curso dos rios, iriam para as cabeceiras dos principais, Rio Uaupés e Içana. Um exemplo das transformações nos dados populacionais das etnias é citado pelo referido autor, que nos mensiona listas de escravos feitos pelos descimentos, dentre eles os mais vistos, e os que abrangeriam um quarto do total eram os Boapé, Macu, Baniwa e Ariquema. Há listas de estudiosos da época que apresentavam os povos das regiões dos rios Negro e Uaupés, no primeiro foram citadas 33 etnias: Manao, Paraviana, Uaranacocena, Carahiahi, Baré, Passe, Cocuana, Aroaqui, Tacu, Cubeuana, Coeuana, Duanáis, Jurí, Japíuna, Jaruna, Juma, Mendó, Maquiritare, Puiteno, Pexuna, Termairarí, Yurimarí, Uauuana, Xamá e Xapuena, algumas décadas mais tarde só se encontrariam 22 destas 33 etnias citadas, em vista de descimentos de aldeamentos, seja pela extinção ou assimilação dos remanescentes de uma na outra. 4
ANDRELLO, Geraldo. Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauretê. São Paulo: UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006.
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Atualmente são cinco empregadas ao longo do rio Negro e seus afluentes: Baré, Baniwa, Maku, Warekena e Cubeo(Ana). A configuração do Uaupés foi diferente, para o qual apontavam 25 etnônimos e hoje temos: Tariano, Tukano, Arapasso, Dessana, Pira-Tapuia, Wanao, Tuyuka, Miriti-Tapuia, Carapanã, Cubeo, Maku, Sussuarana, Tatu-Mira, Jurupari-Mira, Arara e Arara-Tapuia. Andrello, ao longo de sua pesquisa histórica, aponta a hipótese sobre o surgimento de aldeamentos ao longo do alto Rio Negro e no baixo Uaupés, para estabelecer o diálogo entre a história vivida por estas populações e a atual configuração geográfica em que se encontram, e assim mostrar-nos que a realidade na qual vivem hoje os indígenas desta região vem sendo construída desde as primeiras políticas colonizadoras, e que estes povos passam até então pelas dificuldades acerca de condições urbanísticas dos adeamentos. 2. COMENTÁRIOS SOBRE A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E DIREITO INDÍGENA Após longo período de disputas e guerras que extinguiram muitos destes povos, temos o período de negação, onde os indígenas eram excluídos do Estado e desconsiderados como pessoas de direito. Mais tarde, tentando reverter a exclusão, tenta-se a política integracionista, que diz respeitar os povos indígenas, mas os deixa em sua coletividade, apenas para oportunizá-los a serem indivíduos e cidadãos da sociedade tutelada pelo Estado. Durante séculos, aos índios foi negado o seu reconhecimento como povo diferenciado, principalmente no que diz respeito à vida civil brasileira, pois as leis civilistas não continham nenhum instituto que pudesse comungar com as necessidades indígenas. O Estatuto do índio (Lei 6.001/73) nasce em meio à ditadura militar, e nos traz uma forma regulamentar da tutela já prevista no Código Civil vigente, não acrescentando grandes contribuições à realidade dos povos indígenas, visto que apenas ratificou a lei civil que coloca os assuntos citados sob tutela do direito público. Outro ponto negativo deste estatuto foi sobre a questão das terras indígenas, pois ao reformular a emancipação do índio de sua cultura, também possibilita a devolução de suas terras à União5. Com a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, os direitos do índio foram consolidados e positivados e seus territórios foram reconhecidos. Segundo
5
SOUZA FILHO, Carlos F. Marés. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá Editora, 2006. p. 103.
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Souza Filho6, a Constituição “reconheceu aos índios o direito de ser índio e de manterse como índio”, extraindo do art. 231 a garantia de organizar-se socialmente, de manter seus costumes, línguas, crenças, tradições e o direito originário a terra. Já nas décadas seguinte o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 34/93, que sancionou o texto da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) –agência da Organização das Nações Unidas (ONU) – sobre os povos indígenas e tribais em países independentes, foi aprovado em 19/06/2002, e estabeleceu em nosso país as diretrizes do primeiro documento internacional que tratou de temas relevantes às populações tradicionais. Entre estes direitos temos o direito dos povos indígenas à terra e aos recursos naturais, à não-discriminação e a viverem e se desenvolverem de maneira diferenciada, segundo seus costumes. 3. A REALIDADE NAS CIDADES DE ÍNDIOS É encontrada uma grande barreira na falta de políticas públicas que estruturassem o crescimento de suas populações, criando verdadeira cidades de índios na região Amazônica, sem projetos estruturais urbanos de infraestrurura, saneamento básico, água, saúde e educação em condições satisfatórias para o bom desenvolvimento destes povos, gerando insegurança aos seus direitos outrora afirmados pela Carta Magna. Nestas terras indígenas os números populacionais chegam a quatro mil habitantes, como os povos Tikuna, dois mil habitantes como na região do Alto Rio Negro, com população multiétnica, e mais duas cidades crescem em Raposa Serra do Sol, em Roraima, na fronteira com Venezuela e Guianas. A urbanização atinge-os com grandes problemas estruturais já citados, e, apesar disto, ainda vivem de forma tradicional, em coletividade e com poucos bens de consumo. Sem perspectivas imediatas de que a legislação brasileira trata soluções como forma de administração e organização destas cidades que nascem à margem da sociedade Estatal. Temos exemplo na América Latina de reconhecimento dos direitos indígenas mais como direito de povos, como a Bolívia, que trouxe em sua Constituição de 1995, a garantia de que as autoridades étnicas de suas comunidades possam gerir e aplicar suas próprias normas junto ao seu povo7.
6
SOUZA FILHO, Carlos F Marés. op. cit. p. 107.
7
SOUZA FILHO, Carlos F Marés. Multiculturalismo e direitos coletivos in SANTOS, Boaventura de S. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 102.
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4. ANALISANDO AS CONSTITUIÇÕES DOS PAÍSES-MEMBROS DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 Retomando objetivo inicial de nosso trabalho, no qual nos propusemos a identificar nas Constituições dos Países do Tratado de Cooperação Amazônica a previsão de Municípios Indígenas, correlacionando-os à autonomia das culturas indígenas amazônicas e as normas constitucionais, nos contextos jurídicos, políticos e sociais, traremos ao debate a análise de parte das legislações e da bibliografia referente ao assunto. Assim vemos nas citações das Constituições Políticas a seguir relacionadas, que tratam seus povos indígenas de forma diferenciada, dando possibilidades de se organizarem conforme as necessidades de gerir suas terras: Constitución Política de República del Bolívia, 1995: Articulo 1º. Clase de Estado y Forma de Gobierno I. Bolívia, libre, independiente, soberana, multiétnica y pluricultural, constituída em República unitária, adopta para su gobierno la forma democrática representativa, fundada en la unión y la solidaridad de todos los bolivianos. Articulo 171º. Reconocimiento de derechos de pueblos indígenas II. El Estado reconoce la personalidad jurídica de Ias comunidades indígenas y campesinas y de Ias asociaciones y sindicatos campesinos. III. Las autoridades naturales de las comunidades indígenas y campesinas podrán ejercer funciones de administración y aplicación de normas propias como solución alternativa de conflictos, en conformidad a sus costumbres y procedimientos, siempre que no sean contrarias a esta Constitución y las leyes. La ley compatibilizará estas funciones con las atribuciones de los Poderes del Estado. Constitución Política del Colômbia Articulo 246. Las autoridades de los pueblos indígenas podrán ejercer funciones jurisdiccionales dentro de su âmbito territorial, de conformidad con sus propias normas y procedimientos, siempre que no sean contrários a la Constitución y leyes de la República. La ley establecerá las formas de coordinación de esta jurisdicción especial con el sistema judicial nacional. Articulo 286. Son entidades territoriales los departamentos, los distritos, los municípios y los territórios indígenas. Articulo 287. Las entidades territoriales gozan de autonomia para la gestión de sus intereses, y dentro de los limites de la Constitución y la ley. En tal virtud tendrán los siguientes derechos: Gobernarse por autoridades propias. Ejercerlas competencias que les correspondan.
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Administrar los recursos y establecer los tributos necesarios para el cumplimiento de sus funciones. Participar en las rentas nacionales. Constitución Política del Ecuador, 1998 Articulo 83. Los pueblos indígenas, que se autodefinen como nacionalidades de raíces ancestrales, y los pueblos negros o afroecuatorianos, forman parte del Estado ecuatoriano, único e indivisible. De los gobiernos seccionales autônomos Art. 228. Los gobiernos seccionales autónomos serán ejercidos por los consejos provinciales, los concejos municipales, las juntas parroquiales y los organismos que determine la ley para la administración de las circunscripciones territoriales indígenas y afroecuatorianas. Art. 241. La organización, competencias y facultades de los órganos de administración de las circunscripciones territoriales indígenas y afroecuatorianas, serán reguladas por la ley. Constitución Política del Peru Artículo 48º. Son idiomas oficiales el castellano y, en las zonas donde predominen, también lo son el quechua, el aimara y las demás lenguas aborígenes, según la ley. Artículo 89º. Las Comunidades Campesinas y las Nativas tienen existência legal y son personas jurídicas. Son autónomas en su organización, en el trabajo comunal y en el uso y la libre disposición de sus tierras, así como en lo económico y administrativo, dentro dei marco que la ley establece. La propiedad de sus tierras es imprescriptible, salvo en el caso de abandono previsto en el artículo anterior. El Estado respeta la identidad cultural de las Comunidades Campesinas y Nativas. Artículo 149º. Las autoridades de las Comunidades Campesinas y Nativas, con el apoyo de las Rondas Campesinas, pueden ejercer las funciones jurisdiccionales dentro de su âmbito territorial de conformidad con el derecho consuetudinario, siempre que no violen los derechos fundamentales de la persona. La ley establece las formas de coordinación de dicha jurisdicción especial con los Juzgados de Paz y con las demás instancias del Poder Judicial. Artículo 191º. Los gobiernos regionales tienen autonomia política, económica y administrativa en los asuntos de su competência. Coordinan con las municipalidades sin interferir sus funciones y atribuciones. La ley establece porcentajes mínimos para hacer accesible la representación de género, comunidades nativas y pueblos originários en los Consejos Regionales. Igual tratamiento se aplica para los Concejos Municipales.
Nas constituições citadas acima, encontramos questões sobre soberania, territórios indígenas, municipalidades, descentralização, e preservação do pluralismo
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cultural e a diversidade étnica de cada região, dando importância aos povos indígenas e reconhecendo suas formas de organização e administração territorial, bem como suas autoridades e respectivas funções nas comunidades. Da análise da Constituição Política Brasileira de 1988, citamos o seguinte artigo: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição. § 4º. A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei. Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos.
Observamos assim que falta-nos no Brasil legislação que possa suprir estas lacunas do Estado perante seus povos diferenciados, por isso a necessidade de iniciar esta discussão, a fim de elencar e analisar os mecanismos legais utilizados pelos países membros do Tratado de Cooperação Amazônica, no tratamento dado aos seus povos indígenas, no que diz respeito ao reconhecimento de auto-organização e autogestão destes em seus territórios, e assim trabalharmos analiticamente as propostas de criação de município, ou ente político diferenciado, ou políticas públicas diferenciadas, que possam respeitar os valores étnicos indígenas. Sabemos também que há pensamentos fortemente conservadores nesta questão no Brasil, pois levanta-se a bandeira da segurança jurídica da soberania nacional, em detrimento da consolidação dos direitos dos índios. Contudo, essa insegurança jurídica é falsa, pois não é o objetivo das populações nativas tornarem-se um Estado independente, e sim ver materializar-se o respeito e o reconhecimento de sua terra, sua cultura, seu conhecimento, enfim todos os seus direitos abraçados pela Constituição de 1988. 5. DA CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS, ENTES POLÍTICOS DIFERENCIADOS OU POLÍTICAS PÚBLICAS ADEQUADAS ÀS CIDADES INDÍGENAS Iniciando uma reflexão acerca da solução para o problema abordado, temos algumas opções que trataremos neste trabalho, dentre elas a criação de um município,
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com população indígena e que se adequasse às realidades destes povos em relação à gestão, administração e funções políticas e jurídicas, ou um ente político diferenciado, trazendo em sua essência peculiaridades que atendam à complexidade social que são os povos tradicionais, ou ainda políticas públicas dentro dos contextos políticos em que já se encontram estas cidades de índios já citadas, porém modificando os pontos necessários para conformidade com as reais necessidades observadas nestes locais. Em relação à criação de Municípios temos, portanto, no art. 18, § 4º, os requisitos para a criação de deste ente federativo. Porém, neste ponto há mais uma questão em debate, a lacuna perante a regulamentação legal para o dispositivo previsto no parágrafo 4º do referido artigo, visto que, após 20 anos da promulgação da Carta Magna, não há ainda a Lei Complementar Federal estipulando o período para elaboração de Lei Estadual que traga em seu escopo a criação de um novo município e ainda os Estudos de Viabilidade Municipal não possuem os parâmetros definidos. Contudo, há na Câmara dos Deputados, Projeto de Lei Complementar que trata da regularização do referido artigo, o PLP 293/2008, iniciado em maio de 2008, e enviado para apreciação no Senado Federal. Quanto à entes políticos diferenciados, temos uma barreira maior que se trata do Princípio Federativo previsto no artigo 1º da Carta Magna, e portanto devendo ter maiores estudos acerca deste ente a fim de não ferir tal princípio tido como Cláusula Pétrea do Estado Brasileiro. Em relação às políticas públicas diferenciadas temos uma possibilidade maior de consolidarmos alguns dos temas abordados neste artigo. Como exemplo de políticas públicas urbanísticas que já estão em execução, temos o Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira, do qual citaremos o terceiro dispositivo: Art. 3º. São princípios do Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira: I. Respeito aos direitos culturais e territoriais das comunidades indígenas e tradicionais; II. Cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade; III. Democratização do planejamento e gestão territorial. Parágrafo 1º. Os usos, costumes e tradições das comunidades indígenas e tradicionais que vivem em São Gabriel da Cachoeira devem ser respeitados em virtude da importância da diversidade dos grupos étnicos que formam a sociedade local, cada qual com seus próprios valores culturais, relações socioambientais, territorialidades e formas de organização coletiva.
Vemos neste ponto, a forma diferenciada de análise de gestão territorial, administrativa e política de um município, possibilitando a realização de políticas específicas e o atendimento das realidades vividas por estes conglomerados indígenas.
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Porém, há necessidade de que a Constituição Brasileira traga maiores especificações e aprofundamento, no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos dos índios, de seus costumes, valores sociais, identidade cultural, etc., como foi visto nas Constituições dos Paises-membros do Tratado de Cooperação Amazônica estudados neste trabalho, o reconhecimento e respeito das culturas tradicionais indígenas, inclusive de suas formas de gestão e lideranças políticas e jurídicas. CONCLUSÃO Temos um grande desafio ao Direito Brasileiro na caminhada de efetivação dos direitos dos povos indígenas. Já passamos por longo período de negação até o real reconhecimento na Constituição de 1988, hoje precisamos trazer ao cenário acadêmico as reflexões elencadas neste artigo, bem como as demais considerações feitas por teóricos, para assim ratificarmos e efetivarmos os direitos reconhecidos aos índios na Lei Maior. Com a relativização dos dogmas jurídicos, encontraremos o pluralismo em nosso Direito, respeitando as diferenças e minorias, nos educando a conviver com as diversidades étnicas e culturais. REFERÊNCIAS ANDRELLO, Geraldo. Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauretê. São Paulo: UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006. DANTAS, Fernando Antônio de Carvalho. A Cidadania Ativa como novo conceito para reger as relações dialógicas entre as Sociedades Indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro. Hiléia, Revista de Direito Ambiental da Amazônia, n. 2, Manaus, 2004. SOUZA FILHO, Carlos F. Marés. Multiculturalismo e direitos coletivos in SANTOS, Boaventura de S. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. SOUZA FILHO, Carlos F Marés. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá Editora, 2006. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura do Direito. São Paulo: Alfa Omega, 1994.
Municipalização da Licença Ambiental em Manaus: Compatibilização Entre Licença Ambiental e Urbanística EDSON R. SALEME1 Doutor em Direito do Estado pela USP.
1. INTRODUÇÃO Estatuído no 15º Princípio da CNUMAD (ECO/92), o princípio da precaução refere-se à necessidade da tomada de cuidados específicos por parte das autoridades licenciadoras, em face de situações que não exista segurança quanto à extensão dos danos que possa causar determinada atividade ou empreendimento. Os danos ambientais e urbanísticos podem ser irreversíveis ou mesmo irreparáveis causando impacto local além daqueles previamente imaginados. Os princípios ambientais evitam não somente riscos ambientais que possam ser calculáveis, mas antecipar aqueles que se mostram mais prováveis de ocorrer. O caput do art. 225 é incisivo ao referir-se à necessidade de proteção e preservação do meio ambiente, pelos mecanismos criados para tal finalidade. Isso sem contar com a existência de normas que prevêem a compensação ambiental assim como aquelas que prevêem a necessidade de licença ambiental para determinados empreendimentos causadores de impacto ambiental. Contudo, o que se discute neste trabalho é a questão da emissão de licença ambiental pelos municípios, a conveniência ou não dessa possibilidade. Certamente será também abordada a possível aprovação do Projeto de Lei 3057/2000, do Dep. Fernando Chucre, que trata de nova regulamentação acerca do parcelamento do solo, regularização fundiária e lei de responsabilidade territorial urbana. Projeto polêmico que vem causando acirradas discussões, mormente pelo fato de cometer aos municípios procedimentos ambientais que antes eram desempenhados pelos estados de sua circunscrição. Seria tal medida adequada ou não?
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Professor do Curso de Mestrado em direito ambiental da Universidade do Estado do Amazonas e da UNISANTOS.
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Já existem municípios no País, a exemplo de Porto Alegre, que obtiveram, do Estado respectivo, poderes suficientes para emitir licença ambiental em seus territórios. Entretanto, são municípios dotados de equipe técnica especializada, capazes de formar uma opinião consistente em termos de impacto ambiental. Entretanto, essa não é a situação de grande parte das municipalidades deste País. As equipes de servidores municipais não contam com profissionais que possam pontuar danos eventualmente causados pelas atividades Os diversos atos normativos expedidos pelo CONAMA ou mesmo pelo CONCIDADES com vistas à regulamentação de normas ambientais buscam evitar atividades causadoras de poluição ambiental ou mesmo de impacto local. Previamente ao licenciamento, é necessária manifestação de técnicos especializados para apreciar os projetos de empreendimentos ou atividades por meio de relatórios técnicos pormenorizados . Ademais, há de ajustar-se o plano regional e local a fim de se lograr uma composição para todos os aspectos ali envolvidos. A sustentabilidade, como princípio máximo do direito ambiental, indica a necessidade de estudos técnicos aprofundados em prol da necessária manutenção de um meio ambiente adequado. Se por um lado existem dispositivos consagrando normas protetivas, relatórios de impacto local e de vizinhança, apreciação dos técnicos, audiências públicas, consultas populares; por outro, existem empresários ansiosos em desenvolver e ampliar seus negócios, deste lado também estão as autoridades locais preocupadas em manterse no poder e contentar a população local com maior numero de vagas e desenvolvimento das atividades na municipalidade; contudo, ambas as partes, por vezes, desconhecem o alcance, a médio e longo prazo, dos danos que a atividade pode causar. Nesse sentido, não somente pareceres técnicos devem embasar as decisões, mas também consultas populares com a participação de entidades que possam, de fato, auxiliar nessa pesquisa de impacto. Atualmente, o Município de Manaus possui trâmite bem equacionado nos empreendimentos potencialmente poluidores ou que possam causar impacto ambiental, por meio das leis locais. Qualquer atividade potencialmente poluidora que desejar ali se instalar deve buscar a zona industrial adequada, obter as licenças das autoridades estaduais a partir do EIA-RIMA, a fim de obter a licença de instalação. Caso haja impacto regional ou mesmo que possa ensejar a intervenção do IBAMA, este também deverá manifestar-se a partir desses e outros elementos que considerar relevantes. Caso sua pretensão dependa de manifestação das autoridades municipais para obtenção das licenças urbanísticas, essa somente será expedida após a emissão da licença ambiental. Esse é o procedimento, aliás, de grande parte das municipalidades de grande porte, a exemplo das grandes capitais. Desta forma, o trabalho se desenvolverá, em um primeiro momento, abordando a questão da licença ambiental e suas peculiaridades e a atuação dos órgãos do
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SISNAMA em sua emissão. A gestão dos estados na edição de licenças e como se realiza presentemente o licenciamento em termos de órgãos públicos. No desenvolvimento, será abordado o papel dos municípios e se, de fato, contam com aparato suficiente para atuarem como árbitro e juiz de um processo de licenciamento de interesse que ultrapassa seu território e interesse local. E, ao final, a conveniência ou não da aprovação do projeto 3.057/2000. 2. ATIVIDADE LICENCIADORA O art. 3º, III, da Lei implementadora da Política Nacional do Meio Ambiente determina ser obrigatória a licença ambiental para as atividades que venham a degradar, poluir ou promover alterações adversas ao meio ambiente. Caso haja duvidas quanto ao nível de poluição e sua inserção ou não na restrição referida, deve-se consultar a Resolução 237 do CONAMA, em seu anexo I, que consigna considerável rol de atividades e empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental. O tratamento é genérico e permite identificação facilitada da atividade. Mesmo não se encontrando nesse rol a atividade, deve-se consultar a autoridade licenciadora acerca da necessidade ou não de se proceder o estudo de impacto da atividade. Esta deverá, discricionariamente, observar se há ou não problemas ambientais naquela atividade. As licenças ambientais estão prescritas no Decreto 99274/90, o qual indicou rol exaustivo desses atos: licença prévia – LP; licença de instalação – LI e licença de operação – LO. A primeira apenas atesta a viabilidade do início do empreendimento e prescreve requisitos básicos a serem respeitados, a fim de se conceder as licenças posteriores necessárias à realização da atividade. A LI permite que o projeto seja implantado e a LO é outorgada quando todos os requisitos prescritos nas licenças anteriores foram devidamente observados e atendidos e isso não dispensa novas avaliações e requisições. O tramite procedimental das licenças obedecem a seguinte sequência: o primeiro passo é o pedido do empreendedor junto ao órgão competente, que deve emitir um termo de referência. Como segundo passo, o empreendedor deve iniciar os estudos a fim de se elaborar o estudo de impacto ambiental (EIA-RIMA); e o ato que conduz ao rumo final é a realização de audiências públicas, a fim de se obter a opinião popular acerca do empreendimento. Somente após a verificação de todos esses procedimentos é que o órgão licenciador lavra um parecer técnico submetendo-o ao Conselho do Meio Ambiente; a partir de então será deliberada a concessão ou não da Licença Prévia. Observe-se, outrossim, que a LP apenas atesta a viabilidade do projeto não a sua efetiva realização. O EIA, o qual deve embasar a decisão da autoridade ambiental, é essencial para o licenciamento de atividades efetivamente poluidoras. Referido estudo contempla todos os elementos indispensáveis para o desenvolvimento da atividade com o mínimo
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impacto, seja por meio de alternativas tecnológicas e de implantação; na fase operacional observa a área geográfica a ser atingida além de seu enquadramento entre os planos e programas governamentais e outros zoneamentos que possam contemplar a inserção da atividade na região. O RIMA (Relatório de Impacto Ambiental) é o resumo do EIA. Deve ser elaborado da forma mais coloquial possível de maneira a viabilizar um entendimento do seu conteúdo a quem quer que seja. O RIMA, portanto, observa os pontos de maior relevância no EIA e informa a população acerca dos riscos que a atividade pode gerar em termos ambientais. A obrigatoriedade da avaliação de impacto ambiental foi também prevista no texto constitucional vigente. Com efeito, estabelece o inciso IV do parágrafo primeiro do artigo 225 que, no âmbito das atribuições estatais e no caminho para a construção de um direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o Poder Público deve exigir, na forma da lei, o estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente. Instrumento esse a que se dará publicidade tendo em vista a possibilidade de realização de audiências públicas que objetivam expor aos interessados o conteúdo dos projetos apresentados ao Poder Público2. É neste sentido, que afirma Edis Milaré ser o “mecanismo que dá vida a dois princípios fundamentais de Direto Ambiental: o da publicidade e o da participação pública.”3 Sua função, ressalta Paulo Affonso Leme Machado4 ao citar Chambault, não é a de influenciar as decisões administrativas a favor das considerações ambientais em detrimento das vantagens econômicas e sociais suscetíveis de advirem de um projeto. O objetivo é o de fornecer suporte à Administração Pública de modo que seja possível sopesar os interesses em jogo no processo de tomada de decisão5. 3. LICENCIAMENTO MUNICIPAL A competência para editar normas gerais da União, no que se refere à competência concorrente, tem sido alvo de diversas discussões em sede jurisdicional. O exemplo típico foi a Lei 8.666/93 (Estatuto das Licitações e Contratos Administrati2
Resolução CONAMA n. 009/87.
3
Edis Milaré. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco, p. 358.
4
Direito ambiental brasileiro, p. 221.
5
Tomada de decisão inclusive com relação às atividades desenvolvidas pelo próprio Poder Público. A exemplo, o artigo 3º da Lei n. 8.666/93 (Lei das Licitações) prescreve que a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração. Por seu turno, o artigo 12 descreve que nos projetos básicos e projetos executivos de obras e serviços serão considerados dentre outros requisitos o impacto ambiental (inciso VII).
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vos), cujo conteúdo foi considerado inconstitucional, pelo simples fato de exorbitar o que se considerava “geral”. Contudo, o STF fez suas considerações e referida norma mantém-se sem alterações. Em matéria ambiental, o entendimento tem sido o de que quanto maior a proteção ao meio ambiente mais apropriada será a norma. Não devem existir mecanismos flexibilizadores nas demais unidades federativas. Estados e Municípios podem sim complementar as normas, exigindo e determinando a observância de fatores considerados relevantes, de acordo com suas peculiaridades, nos termos da legislação concorrente, do art. 24, I, VI, VII e VIII e os municípios com base no inciso II e VIII do artigo 30 da CF. A estrutura federativa do Estado brasileiro oferece o denominado federalismo de terceiro grau. Isso quer dizer que os municípios nacionais possuem autonomia política e administrativa; possuem órgãos legislativos e um considerável aparato administrativo. Os que possuem grande número de habitantes necessitam de grande agilidade, sobretudo no que se refere aos empreendedores que nele queiram desenvolver suas atividades. A estrutura atual permite que a esses entes o oferecimento de determinadas vantagens às empresas que nele querem se instalar. Certamente os municípios compreendidos em zonas industriais ou mesmo regiões demarcadas dentre de uma região metropolitana possuem maiores vantagens a oferecer. O Estado, por vezes, ingressa na proposta a fim de proporcionar um ambiente atrativo às empresas que aí queiram desenvolver suas atividades. A agilidade em se emitir licenças e outros atos capazes de proporcionar segurança ao empreendedor passou a ser considerado item relevante nas propostas recebidas pelos empresários. Por outro lado, como já referido, olvidam-se do aspecto ambiental. Os que se preocupam com esse aspecto, por vezes, utilizam-se de mecanismos legais ou mesmo subterfúgios para não atingirem espaços ambientalmente protegidos em centros urbanos. O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) proporciona meios viáveis para referida proteção: o solo criado e a transferência do direito de construir. Assim, atualmente há uma tendência, mormente nos grandes centros urbanos, em se vincular a licença urbanística ao cumprimento de normas ambientais, como é o caso da Municipalidade de Manaus. Essa tendência está plenamente de acordo com as competências constitucionais, ou seja, aquela insculpida no artigo 30, VIII da CF, além da orientação que deflui das decisões do STF, de que as municipalidades não podem diminuir as exigências propostas pelos demais entes federativos. Podem, de outra forma, aumentálas de forma a proteger a municipalidade no aspecto ambiental ou outros que o Plano Diretor tenha se inclinado. Diversos são os instrumentos de intervenção urbanística previstos no Estatuto da Cidade. Destaca-se, por exemplo, a exigência que decorre do texto constitucional para que as cidades com mais de 20 mil habitantes elaborem seus planos diretores.
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Como o planejamento urbano é um instrumento de transformação da realidade local, os planos diretores tornam-se instrumental básico para a política de desenvolvimento e expansão urbana (CF, art. 182, § 1º), pois “realizam uma radiografia do município no seu atual estado e identificam quais são os problemas que o município enfrenta e as suas necessidades para um futuro estimado em dez anos, possibilitando que os Prefeitos, Vereadores, comerciantes, industriários, investidores e munícipes de forma geral possam impedir o agravamento dos atuais problemas e planejar o desenvolvimento e crescimento do município”.6 Assim, não há como desvincular qualquer ato de licença da observância das normas federais e estaduais vigentes. Se algum município confere licença urbanística em discordância com tais legislações pode ser por fazer “vistas grossas” a determinados empreendimentos ou mesmo edificações em áreas protegidas. Como referido, a dúvida pela possível inserção de atividade como potencialmente poluidora está nas mãos da autoridade administrativa. Esta, de acordo com os princípios ambientais, deveria sempre tornar o projeto mais detalhado de maneira a assegurar a plena defesa ao ambiente. Isso também ocorre em decorrência de comumente se separar o urbanístico do ambiental, seja por parte dos juristas como das autoridades públicas em geral. Tanto o licenciamento (processo administrativo) como a licença ambiental (ato administrativo) estão contemplados no art. 1º da Resolução 237/97 do CONAMA. O primeiro é procedimento administrativo tendente a viabilizar a instalação de empreendimento determinado. Sua natureza jurídica é discutida na doutrina; LEME MACHADO (2000) indica ser ato administrativo discricionário; MILARÉ (2001) afirma ser licença administrativa com características próprias. A posição mais certeira é aquela que aponta uma natureza mista. Discricionária quanto à emissão da licença e vinculado após a primeira manifestação da autoridade, com traços característicos de autoridade administrativa capaz de romper o prazo da licença na hipótese de descumprimento das condições impostas ao empresário; além disso, há um prazo para cada licença, cujo término determina a busca por uma prorrogação que contempla novos mecanismos fiscalizadores. Enfim, sua característica jurídica impõe uma natureza mista, capaz de fornecer à autoridade administrativa poderes suficientes para determinar sua cassação ou não prorrogação. Esses atos devem cumprir com o princípio da finalidade, o qual determina seja o ato administrativo emitido de acordo com o interesse coletivo. A tendência a uma agilidade administrativa capaz de pôr em risco a atividade licenciadora, a ser observada em sede constitucional após a inserção do principio da eficiência no caput do art. 37 não deve macular o interesse público em preserva o meio ambiente. Destarte, a descentralização em matéria ambiental vem de maneira a 6
Alexandre Sturion de Paula. Estatuto da Cidade e o Plano Diretor Municipal, p. 17.
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integrar o município nessa gestão, pois é nessa esfera federativa que os indivíduos possuem maior integração e proximidade e as políticas públicas devem estar voltadas ao atendimento da comunidade local, sempre considerando o desenvolvimento sustentável. Ao cogitar-se da possibilidade da emissão das licenças por parte da importância de adequação das administrações municipais às necessidades dos munícipes, sobretudo diante das restrições ao uso da propriedade e as disposições constantes no Plano Diretor, fez com que se criassem mecanismos capazes de compatibilizar a licença ambiental e urbanística. No Município de Manaus essa possibilidade está sendo cogitada, sobretudo diante da construção da Ponte Manaus-Iranduba, que irá modificar o entorno da Região Metropolitana local, criada há pouco tempo. A sistemática de licença integrada foi satisfatoriamente efetivada no Município de Porto Alegre; considerável parcela de urbanistas opinam como sendo uma medida salutar, desde que o município tenha condições de aferir os requisitos legais a fim de se emitir a respectiva licença prévia, monitorando as atividades de forma mais próxima, principalmente com o intuito da renovação da mesma. Essa posição foi reiterada também pelos dos ministros que já ocuparam a pasta do Ministério das Cidades em sessões presenciadas por este acadêmico. A atividade urbanística, em sua atuação mais concreta e eficaz é exercida no plano Municipal. Os planos de desenvolvimento urbanos desenvolveram-se em forma de planos diretores que estabelecem regras para um desenvolvimento físico das cidades, ordenando a expansão dos núcleos urbanos do Município. A concepção de planejamento urbano deixou de concentrar-se apenas no entorno das cidades e evoluiu ainda em outro sentido, passou a contemplar o interior das cidades; destarte “passou a abranger todo o território municipal – cidade, campo, área rural, como elementos indissociáveis e integrativos da unidade constitucional primária que é o Município7”. Os Municípios com considerável número de habitantes sempre tiveram competência para elaborar planos urbanísticos; porém, poucos estabeleceram um processo de planejamento que atingisse de forma sustentável e permanente a localidade. Não somente a falta de recursos técnicos, mas também recursos financeiros para sustentá-los, até mesmo recursos humanos e o pior deles seja “o temor do Prefeito e da Câmara de que o processo de planejamento substitua sua capacidade de atuação política e de comando administrativo”8. 7
Hely Lopes Meirelles. Direito de Construir. Malheiros: São Paulo, 1976, p. 115.
8
José Afonso da Silva. Direito Urbanístico Brasileiro. Malheiros: São Paulo, p. 101.
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Outro fator que se observa na dificuldade de implementação de grande parte dos institutos urbanísticos é o temor do prefeito e da Câmara desagradar munícipes influentes e que se autodenominam “benfeitores” da localidade. Isso certamente traz grandes problemas para o bioma local que recebe o impacto com vistas a receber de bom grado investimentos para a municipalidade. A questão do planejamento integrado é algo recentemente implantado. Algumas tentativas exitosas já foram realizadas em municípios com equipe técnica especializada. Essas equipes buscam integrar o aspecto ambiental ao e urbano, com o fito de efetivar uma gestão urbana ágil e adequada aos padrões atuais. O aspecto econômico nos municípios é visto como elemento deficitário. Talvez a melhor articulação no âmbito territorial seria se o aspecto econômico fosse articulado pelos órgãos federais ou mesmo estaduais e o aspecto físico-territorial levado em consideração apenas no nível local. O planejamento urbanístico deveria ser mais bem articulado no aspecto nacional levando-se em consideração os aspectos econômicos e sociais; no município existiria apenas a distribuição desses elementos em ambiente físico-territorial. Isso não contrasta com a autonomia; ao contrario, acata a determinação da União elaborar os planos nacionais; os regionais, cometidos aos estados; os municípios, a partir dos estudos técnicos realizados pelas demais unidades federativas, poderia opinar no momento da elaboração genérica. Sua atuação, contudo, deveria ser ulterior às fases já mencionadas e importaria na distribuição do econômico e social já relevado nos planos anteriores. A sequência segue o plano constitucional e a estrutura federativa brasileira. É dessa forma que se pode afirma ser o planejamento urbanístico no Brasil ainda em fase de desenvolvimento; a articulação entre unidades federativas é incipiente; há longas discussões e normas a serem elaboradas com o intuito de se efetivar uma ação coordenada e propícia ao desenvolvimento de acordo com as características regionais. Sequer as funções urbanísticas essenciais contempladas na Carta de Atenas (habitar, trabalhar, recrear e circular) não se logra atingir; o intuito é alcançar o que preceitua o artigo 182 da Constituição Federal, ou seja, buscar o real sentido da “função social da cidade” e assim atingir a tão almejada função social da propriedade urbana e rural. 4. O PROJETO DE LEI 3.057/2000 E A CONVENIÊNCIA OU NÃO EM SUA APROVAÇÃO Este Projeto de Lei, que trata dos parcelamentos do solo e das regularizações fundiárias em área urbana, faz alterações substanciais em duas das mais importantes legislações ambientais brasileiras: a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e o
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Código Florestal. Referido projeto deveria ser objeto de exaustivos debates no Congresso Nacional, por meio de das comissões temáticas e da sociedade civil. Referido projeto refere-se aos parcelamentos do solo revogando a lei nº 6.766/ 79, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano. Trata também de regularizações fundiárias em área urbana, buscando a regularização de propriedades em situação irregular e em áreas de proteção ambiental. No que tange o Código Florestal, traz um equacionamento das áreas de Preservação Permanente – APPs, em zona urbana, pois permite utilização de APPs como áreas de lazer em parcelamentos e condomínios; há determinados dispositivos que permitem parcelamentos em locais atualmente protegidos pelo Código Florestal. Talvez o pior do projeto seja a proposta por uma municipalização do licenciamento ambiental, o que, como visto, traz riscos incomensuráveis ao meio ambiente como um todo, pois confere às prefeituras amplo espaço decisivo. Sublinhese que a maior parte delas, conforme já afirmado por parte das mais importantes ONGs brasileiras, estão desprovidas de recursos financeiros e humanos capazes de emitir opiniões acerca de matéria ambiental. A pior critica gira em torno da dispensa de licenciamento estadual para empreendimentos menores que 100 hectares e, aliado a esse aspecto, estimula a aprovação de projetos em etapas. Exclui a incidência do Código de Defesa do Consumidor nos loteamentos, causando riscos aos que adquirirem lotes. Empresários mal intencionados poderão lotear sem as atuais restrições legais. O licenciamento único gera ambiente mais propício para a desvinculação do loteamento em seus aspectos preservacionistas. 5. CONCLUSÕES É bastante comum nos municípios brasileiros que o urbano e o ambiental sejam tratados separadamente. Atualmente, o licenciamento fica a cargo dos Estados, que emitem a palavra final em termos decisivos acerca da conveniência ou não da empreitada e o seu respectivo aspecto ambiental. Quando há uma repercussão de maior amplitude regional, o IBAMA se manifesta para proteger o ambiente, de forma complementar. Não exclui ainda a possibilidade do município opinar em termos ambientais por intermédio de sua secretaria de meio ambiente. No Município de Manaus a licença urbanística segue essa tendência e só é emitida após a comprovação da licença ambiental. Os municípios com grande número de habitantes e considerável número de atividades desenvolvidas em seus territórios condicionam a expedição da licença urbanística à licença ambiental. Esta deve ser objeto de análise por meio dos estudos
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de impacto ambiental e exteriorizadas por meio de um relatório, este deve ser veiculado amplamente à população local com o objetivo de se discutir ou não a conveniência do desenvolvimento daquela atividade. Em que pese a necessidade de discussão popular, sua opinião ainda pode ser desconsiderada, se a municipalidade justificar interesse local na aprovação. Ainda que existam polêmicas acerca dos limites das normas gerais estabelecidas nos parágrafos do artigo 24, é majoritário o entendimento, inclusive com parecer do STF, no sentido de que as normas federais têm aplicabilidade abrangente e não podem ser objeto de flexibilização por parte dos estados e municípios. Estas unidades federativas devem complementá-las com maiores exigências, sempre com o fito de atender os princípios da precaução e da prevenção. Eventual conflito deve ser decidido com base na norma que tutele de forma mais abrangente o bem ambiental. Assim, o preenchimento dos requisitos necessários para a emissão da licença urbanística deve incluir a observância da legislação federal e estadual, sobretudo quando se tratar de áreas protegidas pelo Código Florestal. A propriedade urbana tem no direito de construir sua expressão econômica, o qual não é atribuído pelo Código Civil, mas sim pelo Plano Diretor, o qual contempla a lei de zoneamento, uso e ocupação do solo. O denominado direito subjetivo está plenamente condicionado ao atendimento dos requisitos impostos por referidos instrumentos. Ademais, esse direito deve submeter-se aos regramentos ambientais vigentes, que podem seriamente restringir o uso da propriedade, sobretudo com a designação de áreas de proteção permanente e outros institutos capazes de inviabilizar o uso da propriedade de maneira plena. O Projeto de Lei 3.057/2000 fragiliza o sistema de licenciamento ambiental. A prática atual empregada por alguns municípios brasileiros, mormente os de maior porte, de utilizar técnicas urbanísticas para proteger espaços ambientalmente protegidos nos centros urbanos, de acordo com o próprio plano diretor, além de se condicionar a emissão de licença urbanística à ambiental, atende plenamente as necessidades de desenvolvimento sustentável. O projeto é inconsequente. Comete às municipalidades a tarefa de licenciar projetos ambientais, sendo que a maciça maioria das prefeituras, mesmo com número considerável de habitantes, não tem condições de praticar tais avaliações ambientais. Além disso, outros interesses poderão concorrer afrontando o princípio do desenvolvimento sustentável e outros de cardeal importância previstos implicitamente na Constituição Federal. 5. BIBLIOGRAFIA FERNANDES, Edésio. Direito urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 16 ed., São Paulo: Malheiros, 2008.
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo Brasileiro. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. ______. Direito de construir. Malheiros: São Paulo, 1978. MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. 5 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. PAULA, Alexandre Sturion de. Estatuto da cidade e o plano diretor municipal: teoria e modelos de legislação. São Paulo: Lemos e Cruz, 2007. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995. ______. Direito urbanístico brasileiro. 5 ed., São Paulo: Malheiros, 2008.
O Licenciamento Urbanístico no Município de Manaus JUSSARA MARIA PORDEUS
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SILVA1
Mestre em Direito Ambiental.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As Limitações Urbanísticas. 2.1. Licenças Urbanísticas. 3. O Plano Diretor do Município de Manaus. 4. O Código de Obras e Edificações do Município de Manaus. 5. Revisão e Extinção das Licenças. 6. Taxa de Licenciamento. 7. Transmissibilidade da Licença. 8. Infrações e Legalidade Urbanística. 9. Controle e Sanções das Infrações Urbanísticas no Município de Manaus. 10 A Omissão do Poder Público Municipal e as consequências para a cidade e seus habitantes. 11. A Responsabilidade do Município e do Agente Público pela Omissão no Controle Urbanístico. 12. O Papel do Ministério Público e da Sociedade Organizada na defesa da Ordem Urbanística. 13. Conclusões. Referências bibliográficas. RESUMO: Este trabalho aborda o Licenciamento Urbanístico no Município de Manaus, partindo da análise de todo o procedimento de obtenção da licença para construir, desde o pedido, pressupostos para obtenção, inclusive das hipóteses de revisão que podem ensejar revogação, extinção e cassação, taxa de
1
Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado do Amazonas, Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas. Doutoranda da Universidade de Coimbra. Coordenadora do Núcleo de Direito à Cidade do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas, Professora de Direito Administrativo da Graduação da Universidade do Estado do Amazonas, Professora do Módulo Sistema de Controle Urbanístico do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Urbanístico da Faculdade Martha Falcão, Coordenadora do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico na Região Norte. Coordenadora da pesquisa qualitativa dos Planos Diretores nos municípios do Amazonas para a UFRJ/IPPUR.
2
Cf. Leonardo Valles Bento, Sociedade Civil é um conceito que já foi objeto de inúmeras interpretações, as quais contribuíram para que a expressão lograsse um potencial inesgotável de ressiginificação. O conceito surge com as doutrinas do jusnaturalismo contratualista, ou melhor, essas doutrinas inauguram a tradição teórica do conceito de sociedade civil, que chegou aos dias atuais. A sociedade civil é vista como instrumento de disseminação da ideologia socialista, cuja conquista é necessária a fim de se conquistar o Estado e transformar a ordem econômica. Em contraponto, expõe, ainda o referido autor o pensamento de Gramei que enxerga a sociedade civil muito mais como um obstáculo a ser enfrentado (de fato, ele define a sociedade civil burguesa como um conjunto de trincheiras e casamatas para a defesa do capitalismo), do que um espaço neutro ideologicamente onde a política e a liberdade encontram seu pleno sentido e realização (BENTO, 2003, p. 207216).
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 licenciamento, transmissibilidade, até as infrações urbanísticas e o correspondente direito urbanístico sancionador. Inclui, ainda, a omissão do Poder Público e suas consequências para a cidade e seus habitantes, a responsabilidade do Município e de seus agentes por omissão no controle urbanístico e o papel do Ministério Público e da Sociedade Civil2 Organizada na defesa da ordem urbanística. PALAVRAS-CHAVE: Direito de Propriedade; Função Social; Direito de Construir; Limitações Urbanísticas; Licenciamento Urbanístico; Infrações Urbanísticas; Direito Urbanístico Sancionador; Omissão do Poder Público; Responsabilidade do Município e de seus agentes; Defesa do Ordem Urbanística; Papel do Ministério Público e da Sociedade Civil Organizada.
1. INTRODUÇÃO À luz da Constituição Federal de 1988 – que condiciona o direito de propriedade ao cumprimento da função social, em seus arts. 5º, XXIII e 170, III – assim como do Estatuto da Cidade – que concebe a ordem urbanística como bem difuso3 a ser protegido – infere-se a necessidade de uma releitura do Direito de Construir, uma vez que a este direito se deu nova concepção, na medida que ficou subordinado, além das restrições relativas ao mau uso da propriedade de ordem privada, também às imposições legais de direito público, que visam o bem-estar social, advindas do Plano Diretor e das leis dele decorrentes. A socialização do domínio particular e a evolução da propriedade-direito para a propriedade-função passaram a ser matérias pertinentes tanto ao Direito de Construir quanto ao Direito de Propriedade, através da dicotomia imposta pelo interesse social sobre o particular. Como bem refere Di Pietro (1999, p. 24-25) essa concepção já é encontrada nas teorias de São Tomás de Aquino4 e na doutrina social da Igreja5. A liberdade de construir passa a ser limitada, não apenas pelo princípio da normalidade6 de seu exercício (que condena a concepção de mau uso, de abuso ou excesso na fruição) – que hipoteticamente prejudica a segurança, o sossego e a saúde dos que habitam nas vizinhanças – mas, também pela teoria da relatividade dos 3
Bem difuso, para efeito deste trabalho, significa bem de titularidade difusa.
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“O proprietário é um procurador da comunidade para a gestão de bens destinados a servir a todos, embora pertençam a um só” (São Tomás de Aquino, In: Ferreira Filho, 1975, p. 66).
5
Essa doutrina social da Igreja foi exposta na Ecíclica Mater et Magistra, do Papa João Paulo XXIII, de 1961, e na Populurum Progressio, do Papa João Paulo II, nas quais se associa a propriedade à ideia de uma função social, ou seja, à função de servir para a criação de bens necessários à subsistência de toda a humanidade.
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Segundo Meirelles (2000, p. 30), a teoria da normalidade foi sistematizada por Georges Ripert, em famosa tese apresentada em 1902, em Paris: De 1’Exercice du Droit de Propriété dans ses Rapports avec les Propriétés de Voisines.
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direitos7, universalmente aceita, e por leis e regulamentos que criam as denominadas limitações administrativas, que, por sua vez, buscam o bem-estar no convívio da coletividade nas urbes. Há, assim, íntimas relações entre o Direito de Construir e o Direito Urbanístico, pois o primeiro, que era anteriormente integrado ao Direito de Propriedade, portanto, restrito ao direito privado, em sua atual concepção encontra-se submetido às limitações administrativas, imposições de ordem pública, revestidas de poder de imperium, clausuladas de imprescritibilidade, irrenunciabilidade e intransacionalidade8 Portanto, o Direito de Construir passa a ser regido por regime misto, limitado por normas de direito público e privado, razão por que alguns de seus preceitos chegam a se interpenetrarem, o que ocorre também em relação ao Direito de Vizinhança, de ordem exclusivamente privada. As limitações urbanísticas9, segundo Toshio Mukai (1988, p. 75), compõem um largo campo de instrumentalização do Direito Urbanístico brasileiro por repousarem sobre a base filosófica da solidariedade entre os componentes do grupo social, onde todos estão sujeitos a suportar um sacrifício razoável e não indenizável, em favor da coletividade. Por essa razão, as características dessas limitações se fundam nos princípios da generalidade e da razoabilidade, pois, se o sacrifício não é geral, e, sim, particular, geraria direito à indenização para recompor o patrimônio lesado em face de sacrifício desigual de cargas públicas, o que estaria ferindo o princípio da igualdade. Portanto, as limitações urbanísticas objetivam regular o uso do solo urbano, suas construções e ainda o desenvolvimento de ações visando melhorar as condições de vida dos habitantes das áreas compreendidas nos espaços habitáveis, impondo normas de conforto, salubridade, estética, segurança e funcionalidade, normatizando 7
Meirelles (2000, p. 30) explica que Georges Ripert, para elaboração da teoria da normalidade, partiu da teoria da relatividade dos direitos As premissas fundamentais da teoria da relatividade repousam na concepção de aplicação dos postulados físicos à experiência jurídica, o que não significa a adoção de fórmulas matemáticas na resolução dos conflitos sociais. As concepções absolutistas se tornaram insustentáveis com o advento da teoria da relatividade. (Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto508>. Acesso em: 30 ago. 2004). Esta teoria permite, por exemplo, a flexibilização de direitos individuais em benefício de direitos coletivos e do bem-estar social.
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Intransacionalidade, nesse ponto, significa dizer que tais disposições legais – limitações administrativas – não podem ser negociadas ou deixar de ser exigidas pelo órgão fiscalizador da Municipalidade. Todavia é sabido ser comum, a partir da edição da Lei da Ação Civil Pública. Termos de Ajustamento de Conduta intermediados pelo Ministério Público e acordos homologados em juízo, nos quais a parte infratora se submete a obrigações de fazer, como por exemplo, dar outra área para uso comum do povo em troca, em face da teoria do “fato consumado” ou irreversibilidade ao status quo ante (ex.: construção em área non edificandi).
9
Limitações urbanísticas são ônus pessoais (positivos ou negativos) impostos por lei ao proprietário, de forma geral e, geralmente, inidenizáveis, visando ordenar o espaço urbano. (Vide item 5.1, do capítulo V).
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o trabalho urbano, as obras públicas e particulares, com a única finalidade de facilitar a vida de seus ocupantes. Celso Antônio Bandeira de Melo (1969, RDP nº 9, p. 57), ao referir-se ao assunto, acentuou: “a propriedade, assim como a liberdade, necessita ajustar-se aos interesses coletivos, e a atividade estatal condicionante desses fins é designada ‘poder de polícia’”10. Entretanto, observa-se claramente a existência de construções desenfreadas, sem qualquer planejamento urbanístico e ambiental, não obstante a maioria dos municípios brasileiros contar com Planos Diretores em consonância com o disposto no Estatuto da Cidade, leis de Parcelamento do Solo federal e local, leis de Zoneamento Urbano e Código de Obras e Edificações, o que faz a incoincidência entre a cidade legal e a cidade real11. E a gigantesca ocupação ilegal do solo urbano representa para alguns autores, a exemplo de Maricatto (2002, p. 122), a exclusão urbanística12. Para Rizzardo (1998, p. 204), a expansão desordenada dos povoamentos, carentes de condições mínimas de infraestrutura, notadamente quanto ao sistema de água, esgoto, vias públicas e áreas verdes, transformou as cidades em problema crônico para as municipalidades. Assim, o Poder Municipal, ao implantar os requisitos legais urbanísticos, sobretudo quanto às exigências sanitárias mínimas, passou a se ver obrigado a suportar pesados ônus, por conta da impune irresponsabilidade dos loteadores. E da feita que a maioria da população brasileira concentra-se na área urbana, a exemplo de Manaus (onde cerca de 70% dos habitantes do Estado do Amazonas vive nesta capital 13), um meio ambiente ecologicamente equilibrado depende do planejamento urbanístico das grandes cidades. A impunidade no descumprimento 10
Ao mesmo tempo que a CF e as leis concedem direitos, os condicionam ao bem-estar da coletividade, assim o poder que o Estado tem de limitar o uso, gozo, fruição e destruição de bens, direitos e atividades, em prol da coletividade e do bem estar social, se chama poder de polícia.
11
Rolnik (2003, p. 13) aborda o tema em relação à cidade de São Paulo, na sua obra A Cidade e A Lei: “[...] isto é poderosamente verdadeiro para a cidade de São Paulo e provavelmente para a maior parte das cidades latinoamericanas, ela determina apenas a menor parte do espaço construído, uma vez que o produto – cidade – não é fruto da aplicação inerte do próprio modelo contido na lei, mas da relação que esta estabelece com as formas concretas de produção imobiliária da cidade. Porém, ao estabelecer formas permitidas e proibidas, acaba por definir territórios dentro e fora da lei, ou seja, configura regiões de plena cidadania e regiões de cidadania limitada [...] quando a lei não opera no sentido de determinar a forma da cidade, como é o caso de nossas cidades de maiorias clandestinas, é aí onde ela é mais poderosa no sentido de relacionar diferenças culturais com sistemas hierárquicos.”
12
A autora tece uma crítica ao urbanismo brasileiro – entendido como planejamento e regulação urbanística – no sentido de não ter comprometimento com a respectiva realidade, na medida em que abrange apenas uma parte da cidade.
13
Dados do IBGE. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em 15 out. 2008.
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das normas urbanísticas e ambientais, portanto, deve ser combatida, buscando-se uma maior eficiência no seu controle, em vista dos ecossistemas e, consequentemente, da própria subsistência humana14, ainda que o sucesso desse controle não se dê por obediência espontânea das normas, mas através de imposição de terceiros, como do Poder Judiciário. No município de Manaus, não são raros os loteamentos que sequer atendam as exigências da lei federal do Parcelamento do Solo, legislação municipal e Código de Obras e Edificações, no que se refere à metragem dos lotes, aos espaços verdes, à área de circulação, de lazer e equipamentos sanitários, necessários ao atendimento das condições mínimas de saúde pública da população15. E como já foi anteriormente mencionado, como 70% (setenta por cento) da população de todo o Estado do Amazonas concentra-se na área urbana de sua capital, é de fundamental importância a intervenção da Administração Pública para regular o uso do solo, propiciando um desenvolvimento harmônico na cidade, através do planejamento urbano e de instrumentos como o licenciamento urbanístico. Não obstante todas as exigências legais, que são previstas em relação aos loteamentos urbanos, torna-se comum, após aprovação do projeto pelo órgão fiscalizador municipal, a existência de alterações posteriores por parte das construtoras, com o intuito de efetuar o máximo de ocupação do solo, visando lucro desmesurado, em detrimento das exigências urbanísticas e ambientais. Também não se pode descartar a omissão do órgão municipal fiscalizador com essas irregularidades, por ocasião da concessão da licença prévia e da definitiva (do “habite-se”)16. Desse modo, o planejamento e a legislação tornam-se ineficazes, se não houver meios efetivos de proteção da legalidade urbanística, ou seja, de fiscalização do cumprimento dessas normas. Em Manaus, observa-se, concretamente, abundante legislação e suficientes instrumentos de controle para se fazer cumprir as normas norteadoras dos loteamentos e edificações, todavia, a municipalidade carece de infraestrutura e de um ordenamento de ações. E, mesmo os meios de controle repressivos existentes e possíveis de serem utilizados pela própria Administração, como por 14
A Constituição Federal estabelece no art. 225 a preservação ambiental como forma de garantir a subsistência das presentes e futuras gerações.
15
Essa realidade está presente em Manaus não apenas em bairros habitados por pessoas de baixa renda – a exemplo da Nova Cidade, onde foi totalmente devastada a área verde – mas, também, em condomínios de classe média, nos quais os construtores, em busca de lucro desmensurado, desrespeitam a legislação urbanística, edificando além do permitido, suprimindo áreas públicas obrigatórias, como no Conjunto D. Pedro, onde a área verde foi negociada pela associação de moradores e hoje é ocupada por um estabelecimento de ensino. Outros casos serão apontados no corpo deste trabalho.
16
No empreendimento Manaus Parque, no bairro do Vieiralves, foi substituída a área destinada à circulação por garagens adicionais a serem negociadas pelas construtoras com os proprietários das unidades, além de terem sido construídos mais andares nos edifícios do que os aprovados no projeto aprovado.
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exemplo, a revisão de licenças, mediante anulação, revogação, cassação e declaração de caducidade, em sua maioria provocada através de denúncia de titularidade popular, raramente são usados. Ao se considerar, de um lado, a importância da cidade de Manaus, não apenas para a Amazônia ocidental, mas num contexto universal, e que essa realidade vem se contrapor, não apenas às questões urbanísticas estéticas e arquitetônicas, mas, sobretudo, frente à forte tendência mundial – a de conservar a personalidade histórica e cultural das cidades, assim como seu meio ambiente, por razões sociais, econômicas e até mesmo de sobrevivência humana – vê-se a necessidade da sistematização de um modelo jurídico que torne eficiente o controle urbanístico e seja capaz de conter o urbanismo político17 que “atropela” as leis. Na realidade, a ocupação desordenada dos espaços urbanos, gerada pela explosão demográfica e a ação predatória do homem, traz grandes problemas urbanísticos e ambientais para a cidade, como a poluição, a formação de bairros periféricos, sem infra-estrutura, a desordem urbana com a prática de funções sociais numa área em desacordo com o zoneamento, assim como aos princípios urbanísticos e dispositivos como, por exemplo, o art. 182 da Constituição Federal de 1988. Este trabalho propõe medidas e ações específicas a serem implementadas, no sentido de que a legislação urbanística de Manaus seja cumprida efetivamente pelas construtoras, especificamente em relação às limitações administrativas existentes na legislação pertinente – normas urbanísticas, normas ambientais, códigos de obras e de posturas – na medida em que “[...] as normas urbanísticas devem ser formuladas objetivando resguardar os interesses e direitos coletivos, evitando que a implantação do empreendimento traga impacto indesejável para a cidade como um todo” (SILVA, 1999, p. 27). Em Manaus, como é público e notório, a maioria dos bairros periféricos foi formada através de invasões. Historicamente, portanto, a atuação do urbanismo foi a de criar uma infra-estrutura após ocupações desordenadas18. Manaus pode ser considerada um exemplo da prática, também histórica, de infrações urbanísticas, assim como também de agressões aos Recursos Naturais, haja vista de um lado, o costume dos menos favorecidos de se instalarem às margens dos igarapés com a complacência do Poder Público19 e, de outro, a dragagem e a poluição dos límpidos igarapés de 17
Urbanismo político é aquele advindo de interesses políticos, sem qualquer embasamento técnico.
18
Zumbi, Novo Israel, Coroado, São José etc. são bairros formados através de invasões, que já foram urbanizados.
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Em algumas situações verifica-se que, apesar do Poder Público Municipal haver sido conivente com a ocupação das margens dos igarapés e, inclusive ter cobrado IPTU dos respectivos moradores, quando havia necessidade da desocupação do local em face de obra pública, alegava a Municipalidade que os moradores não tinham qualquer direito porque estavam ocupando área non edificandi.
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águas doces existentes outrora em Manaus, o que descaracterizou profundamente a cidade. Nesse contexto, configurou-se o seguinte problema: ante o visível desordenamento urbano da cidade de Manaus, que ações podem ser implementadas frente à falta de efetividade20 das formas e instrumentos de controle do licenciamento urbanístico? A partir dessa indagação, estabeleceu-se, como objetivo geral deste trabalho, sistematizar a doutrina, a legislação urbanística e as ações de controle, especificamente aplicáveis ao licenciamento urbanístico. 2. AS LIMITAÇÕES URBANÍSTICAS Sendo uma das sete formas de intervenção do Estado na propriedade21, a limitação administrativa22 é ônus geral, advindo de lei, em regra gratuito, imposto ao proprietário de modo positivo, negativo ou permissivo, que vem a limitar o uso, gozo e fruição de seu imóvel, visando sempre o bem-estar coletivo (GASPARINI, 2003, p. 616). Classificam-se as limitações administrativas em três espécies: as urbanísticas, as de higiene e de segurança, e as militares. O objeto de analise do presente estudo, entretanto, limita-se às limitações urbanísticas. As limitações urbanísticas, segundo Meirelles (2000, p. 103-104), são todas as imposições do Poder Público, destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar ao homem as melhores condições de vida na comunidade. Entenda-se por espaços habitáveis toda área em que o homem exerce coletivamente qualquer das seguintes funções sociais: habitação, trabalho, circulação, recreação.
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De acordo com Ferraz Júnior, “[...] a efetividade [...] tem antes o sentido de sucesso normativo, o qual pode ou não exigir obediência. Exigindo obediência, devem-se distinguir, presentes os requisitos fáticos, entre a observância espontânea e observância por imposição de terceiros [...]. Uma norma é, assim, socialmente ineficaz de modo pleno se não for observada nem de um modo nem de outro”.
21
As formas de intervenção na propriedade, segundo Gasparini (2003, p. 619), são: limitação administrativa, servidão administrativa, tombamento, ocupação temporária, requisição, desapropriação e parcelamento e edificação compulsórios.
22
Ressalta-se que Silva (2000, 386-387) sustenta posicionamento diferente tanto de MEIRELLES (2000, p. 8489) quanto de GASPARINI (2003, p. 629-621), denominado esse instituto de “restrição” administrativa, o que define como limitações impostas às faculdades de fruição, de modificação e de alienação da propriedade no interesse da ordenação do território, entendendo, ainda, que limita o caráter absoluto da propriedade e atinge a faculdade dominial.
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Essas limitações de ordenação do espaço urbano advêm do poder de polícia, ou seja, da “faculdade de que dispõe a Administração pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado” (MEIRELLES, 2000, p. 104) e são preceitos de ordem pública. São ônus pessoais e genéricos, oriundos, em regra, de leis, atingindo todas as propriedades que se encontrem naquela determinada situação e, portanto, recaindo no ônus geral da sociedade. Em outras palavras, pode-se dizer que são inegociáveis e inidenizáveis, assim como recaem sobre o proprietário e não sobre o imóvel, atingindo a todos, indistintamente. Sua finalidade é sempre o bem-estar social e se distinguem em três espécies: positiva (gera uma obrigação de fazer ao proprietário); negativa (induz uma obrigação de não fazer ao proprietário) e a permissiva (impõe ao proprietário uma obrigação de permitir ou suportar, ou seja, deixar fazer determinada ação do Poder Público em sua propriedade). Os superiores interesses da comunidade justificam as limitações urbanísticas de toda ordem, notadamente as imposições sobre área edificável, altura e estilo dos edifícios, volume e estrutura das construções; em nome do interesse público a Administração exige alinhamento, nivelamento, afastamento, áreas livres e espaços verdes; impõe determinados tipos de material de construção; fixa mínimos de insolação, iluminação, aeração e cubagem; estabelece zoneamento; prescreve sobre loteamento, arruamento, habitações coletivas e formação de novas povoações; regula o sistema viário e os serviços públicos e de utilidade pública; ordena, enfim, a cidade e todas as atividades das quais depende o bem-estar da coletividade (MEIRELLES, 2003, p. 498).
Quanto ao poder de polícia, em matéria urbanística, trata-se de uma questão bastante discutida pela doutrina. Para Gordillo (1975, T2/XII-1 e XII-2), esse poder é apenas uma parte das funções do poder estatal, que é uno: Por de pronto, es de recordar que el aditamento de “poder” es equivocado por cuanto el poder estatal es uno solo, y ya se vio que la Ilamada división de três “poderes” consiste, por um lado, em uma división de “funciones” (funciones legislativa, administrativa, jurisdicional), y por el outro em uma separación de órganos (órganos legislativo, administrativo y jurisdiccional). Em tal sentido el “poder de policia” no seria em absoluto um órgano del Estado, sino em cambio uma espécie de facultad o más bien uma parte de alguna de Ias funciones mencionadas.
Bandeira de Mello (1947, RDA 9:55) comunga, em parte, com esse posicionamento, todavia, vislumbra utilidade prática na noção de polícia, pois admite a distinção da chamada atividade de polícia em outras atividades, assim como, alerta, que não se deve confundir propriedade com direito de propriedade, na medida em que esta última expressão só é admitida em dado sistema jurídico, em face do contorno legal que lhe tenha sido dado.
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Manifestação bastante reverenciada a esse respeito é a de Renato Alessi23, através da qual, infere-se de que se excluem da definição de poder polícia as atividades proibidas de modo absoluto na norma, ou seja, aquelas em relação às quais não sobram nenhuma discricionariedade ou “faculdade de mérito” à Administração. Todavia, incluem-se as situações que, embora a lei proíba genericamente a atividade, deixa ao alvedrio do Poder Público derrogar a proibição, conforme a análise de cada caso concreto, a exemplo do que se dá com as autorizações (SANTOS, 2001, p. 77). Entretanto, não se pode excluir do conceito do poder fiscalizador e regulador da ordem urbanística as atividades vedadas de modo absoluto pela norma, ou seja, as infrações urbanísticas, justamente porque cabe a esse poder de polícia, não apenas envidar medidas preventivas de verificação da conformidade ou não com a lei, mas a aplicação das respectivas medidas de polícia repressivas, dentre elas, as penalidades, como, por exemplo, as que seriam cabíveis nas hipóteses de construções em áreas verdes ou em área non edificandi à beira de igarapés, fatos corriqueiros na cidade de Manaus. Sem olvidar do controle concomitante, que será abordado no decorrer desse estudo, é preciso que reste clarividente que todos são momentos de controle da legalidade urbanística, através do poder de polícia, com aplicação de medidas próprias a cada um deles. Bem a propósito, Di Pietro (1999, p. 31-34) classifica as medidas de polícia em: preventivas e repressivas. Dentre as preventivas, a autora insere a autorização, a licença, a aprovação e os atos de fiscalização em geral. Como repressivas cita a autora a anulação e a cassação de alvará, o embargo de obra, a demolição da obra ou sua interdição compulsória, além de sanções, como a multa. Dentro da competência urbanística, a autora destaca as medidas de polícia que dizem relação ao uso de bens de uso comum do povo, incumbindo ao Poder Público zelar para que não sejam outorgadas autorizações ou permissões contrárias ao interesse público ou que comprometam a sua principal destinação que é a circulação. Di Pietro (1999, p. 32), entende que, embora a aprovação das medidas preventivas seja um ato vinculado, como o é a licença, mesmo se o projeto não satisfizer a plenitude das exigências legais, não pode lhe ser negado o direito de adequação ou correção, o que passa a lhe ser conferido. Quanto a esse aspecto, não se vê divergência, como será verá mais à frente, quando se tratar do procedimento para aprovação de projeto no Município de Manaus (§ 1º do art. 25 do Código de Obras e Edificações).
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Esse posicionamento de Renato Alessi é citado por Celso Antônio Bandeira de Melo, Lúcia Valle Figueiredo e Márcia Walquíria Batista dos Santos em suas obras consultadas.
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Após a aprovação do projeto, tem-se um outro ato vinculado, que é a expedição do “alvará de licença”, considerando-se que o direito de construir, embora regido por regime misto, não deixou ser decorrente do direito de propriedade. Como exemplo, cita-se o artigo 1299 do novo Código Civil, de 10 de janeiro de 2002, que mantém a mesma redação do art. 572 do Código Civil de 1916 (Idem, ibidem): “O proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos”. 2.1 As licenças urbanísticas O direito de edificar no próprio solo é um direito reconhecido abstratamente. Contudo, na prática, se vê submetido a um regime especial no ordenamento urbanístico, que permite classificar a propriedade como de estatutária, na medida em que os proprietários se vêem obrigadas à obtenção de prévia licença. Um dos princípios tradicionais de Direito Urbanístico é a subsunção de que toda a atividade, que implique controle prévio do uso artificial do solo, tem a finalidade de assegurar a conformidade desses princípios às normas aplicáveis em cada caso. A licença urbanística é, pois, um instrumento de controle prévio da atividade edilícia, verificando se a obra projetada está conforme e compatível com a ordenação urbanística aplicável, permitindo que seu objeto básico obedeça ao conteúdo da própria licença, normalmente definido no projeto técnico apresentado. Esse meio de fiscalização preventiva é uma das formas de intervenção do Estado na propriedade e atividade de seus administrados, para comprovar que não estão sendo contrariados os interesses gerais. Concede-se o direito ao proprietário de usar e desfrutar de sua coisa, como realizar obras e construções, mas com as limitações estabelecidas em lei. Assim, as licenças urbanísticas não são consideradas como desenvolvimento de atividades de planejamento, mas de exteriorização da atuação de regulação urbanística, exercendo uma função de instrumento de polícia urbanística. E, se de um lado, as licenças de edificações são autênticos atos de execução dos preceitos da lei e dos planos urbanísticos, de outro lado, configuram-se em instrumento de controle de legalidade urbanística. Já superada a estéril polêmica que dividia a doutrina sobre a natureza jurídica das licenças urbanísticas – há os que sustentavam que fosse um ato declaratório de direito, a exemplo de Tomás-Ramon Fernández (2004, p. 208), em seu clássico Manual de Direito Urbanístico e os que defendem ser um ato constitutivo de direito, a exemplo de Estévez Goytre (2002, p. 457-458), em obra de título idêntico – pode-se afirmar que a licença, desde o momento que se limita a comprovar que o pedido está conforme o planejamento aplicável, é um ato meramente declarativo de direito.
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Isso parece claro ao se partir da premissa de que as licenças urbanísticas são atos administrativos de poder e autoridade pública, cujo objetivo é o de controlar previamente a atuação do administrado, determinando o conteúdo do direito urbanístico aplicável ao caso concreto, declarando e de nenhum modo constituindo, o direito de propriedade, submetido ao princípio da legalidade urbanística, outorgando, conforme as previsões da legislação de ordenamento do solo e do planejamento urbanístico, uma garantia de sua observância pelo proprietário, como assevera Lemus (1999, p. 203): “[...] en definitiva, la licencia municipal constituye um acto de control preventivo, meramente declarativo de um derecho preexistente dei solicitante, atribuído por el ordenamiento civil y urbanístico”. Entretanto, para Di Pietro (1999, p. 32), essa licença não pode ser revogada sem que o proprietário seja devidamente indenizado, pois implica reconhecimento do direito de construir. Parte da jurisprudência pátria tem reconhecido esse direito como um direito subjetivo, todavia, somente a partir do momento em que o proprietário dê início à construção24. A licença urbanística, de maneira geral, está condicionada ao cumprimento efetivo de todas as obrigações e cargas que se impõem ao proprietário, dentro dos prazos previstos na legislação. A doutrina brasileira, por sua vez, quando trata da natureza jurídica da licença se atém à questão de ser ato discricionário ou vinculado, não analisando o aspecto de ser ato declaratório ou constitutivo como o direito espanhol25. Quanto a esse ponto, não existe divergência, pois há unanimidade em se afirmar ser um ato vinculado ou regrado, pois só se outorga essa licença sobre as previsões da lei e dos planos urbanísticos aplicáveis. Cabe à Administração limitar-se a avaliar as circunstâncias objetivas do caso concreto, ou seja, se estão ou não compatíveis com a legislação que ordena o solo urbano, como refere Santos (2001, p. 109). Se as solicitações da Administração forem atendidas e tudo estiver em ordem e de acordo com a legislação edilícia, a licença deverá ser outorgada. Por esta razão é que a licença tem caráter vinculado, não podendo ser refutada, por exemplo, se existir decreto considerando o imóvel de utilidade pública para fins de desapropriação. Somente esta consumada autorizaria o Poder Público a indeferir o requerimento do interessado.
Meirelles (2000, p. 187) também classifica como ilegal a recusa de aprovação de projeto de construção ou mesmo de plano de loteamento, pelo fato de haver sido 24
Jurisprudência: STF, 2ª Turma, RE nº 85.002-SP, Rei. Min. Moreira Alves, j. 03.12.1976, DJU 11.03.1977.
25
Apenas Oswaldo Aranha Bandeira de Mello apud Renata Peixoto (Disponível em: <www.direito.ufba.net/ mensagem/renatapeixoto/da-licencaparaconstruir.doc>. Acesso em: 25 jul. 2004) classificava as licenças para edificar como ato administrativo constitutivo-formal, uma vez que entendia consistir em declaração recognitiva de direito, de asseguramento da situação jurídica e que ensejava o desfrute de situações preexistentes.
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editado decreto expropriatório da área, ou mesmo plano de obras públicas, que abranjam o terreno, pois, qualquer circunstância de futuro, não concretizada, não tem o condão de impedir a construção particular, sem que o proprietário seja indenizado. Quanto à extensão do dever de se obter prévia licença, em regra, alcança todos os atos de edificação e uso do solo, que signifiquem uma transformação material. Sua enumeração será tratada em tópico próprio, observando-se a legislação do município de Manaus. 2.1.1. Espécies de licenças urbanísticas São em número de quatro, as espécies de licença urbanística, na classificação adotada por Silva (2000, p. 421), ao considerar o seu objeto: (a) as licenças para edificar ou para construir; (b) as licenças para reformar; (c) as licenças para reconstrução; (d) e as licenças para demolições. O autor dá destaque para as licenças de edificação e demolição, por se constituírem como instrumentos de controle de aplicabilidade das normas de ordenação urbana. O levantamento estatístico das licenças expedidas no Município de Manaus, classificadas por casa espécie, encontra-se nos Anexos VI (ano de 2000), VII (ano de 2001), VIII (ano de 2002), IX (ano de 2003) e X (até maio de 2004). Para o autor supramencionado, a licença para edificar vai além da simples noção de “remoção de limites”, tão arraigada na doutrina estrangeira, principalmente na espanhola26, que a considera uma autorização de regime especial, questão já superada com a separação do direito de construir do direito de propriedade. E explica: A licença para edificar constitui mais que simples remoção de obstáculos; constitui técnica de intervenção nas faculdades de edificar, reconhecida pelas normas edilícias e urbanísticas, com o objetivo de controlar e condicionar o exercício daquelas faculdades ao cumprimento das determinações das mencionadas normas edilícias e urbanísticas, incluindo as determinações dos planos urbanísticos. Ela é, como nota G. Spadaccini, “um ato que não se exaure com a remoção de um limite, mas que constitui, além disso, novos limites para aquela atividade privada que deve ser exercida pelo sujeito”. Seu escopo – segundo esse mesmo Autor – é consentir que a concreta atividade construtiva (edificatória) do particular opere com pleno respeito das normas gerais postas pelos planos reguladores e pelos regulamentos edilícios comunais (grifo nosso). (SILVA, 2000, p. 422-423).
Outra classificação, utilizada pela doutrina espanhola, diz respeito ao momento e efeitos das licenças. São as referentes às obras provisórias, às licenças condicionadas 26
La licencia urbanística es un acto administrativo de autorización por cuya virtud se lleva a cabo un control prévio de la actuación proyectada por el administrado verificando si se ajusta o no a las exigências del interes público tal como han quedado plasmadas en la ordenación vigente: si es esta la que determina el contenido del derecho há de ejercitarse ‘dentro de los limites y con cumplimiento de los deberes’establecidos por el ordenamiento urbanístico (ESTÉVEZ GOYTRE, 2002, p. 456).
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e às definitivas (GONZÁLEZ, 2003, 215-219). No Brasil, para as obras provisórias ou precárias, como a instalação de alojamento de pessoal ou depósito de material, o alvará não será de licença e sim de autorização. Na Espanha, apesar da natureza das licenças urbanísticas ser de igual modo vinculada, tem-se admitido a possibilidade, no ato da concessão, de introduzir cláusulas que evitem sua denegação. Assim, pode-se estabelecer uma condição suspensiva para o início da edificação ou para sua finalização frente a um acontecimento futuro, contudo, em todo caso, o condicionamento não pode estender-se além do termo contratual (GOZÁLEZ, 2003, p. 226). Já no Brasil, a praxe é a concessão de prazo no procedimento para correção ou adequação, caso o projeto não atenda a todas as exigências, segundo Di Petro (1999, p. 32). Ressalta-se que a denegação do plano, sem que se dê oportunidade ao requerente de corrigir, complementar ou esclarecer dúvidas, é considerada por alguns autores, como Meirelles (2000, p. 187), uma ilegalidade. Aprovado o projeto, com o preenchimento de todos os requisitos pelo requerente legitimado, expede-se o alvará de licença. 2.1.2 Pressupostos para obtenção da licença para edificação A parte legítima para efetuar o pedido de licença para edificação, denominada de sujeito passivo, é o legítimo possuidor da terra, o proprietário, ou seja, é a pessoa física ou jurídica, privada ou pública, que precisa exercer o direito de edificar e, consequentemente, se submeter à outorga do Poder Público. Já o sujeito ativo é a entidade ou órgão emissor da licença (Prefeitura, Empresa de Urbanização etc.). Em Manaus, o órgão competente para expedir o alvará de licença para construir é o Instituto Municipal de Planejamento – IMPLURB, autarquia que teve sua criação por meio de lei específica (art. 133 do Plano Diretor). Os documentos a serem apresentados, em regra, são os seguintes: título de propriedade ou compromisso de compra e venda; memorial descritivo da obra; peças gráficas de acordo com o modelo adotado pelo respectivo órgão competente; levantamento topográfico para que sejam verificadas as dimensões, área e localização do imóvel. Entretanto, para cada tipo de construção (edificação, instalações, reconstruções, reformas, demolições, construção de muros e gradis no alinhamento da via pública etc.) a documentação requerida vai variar. A documentação exigida para licenciamento urbanístico no Município de Manaus está discriminada no Código de Obras e Edificações do Município de Manaus, Lei nº 673, de 4 de novembro de 2002, posteriormente alterada pelas Lei nº 715, de 11 de dezembro de 2003 e Lei nº 751, de 7 de janeiro de 2004.
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2.1.3. Procedimento para obtenção da licença para edificação e normas aplicáveis em Manaus No caso específico de Manaus, o Código de Obras e Edificações foi instituído pela Lei Municipal nº 673, de 4 de novembro de 2002, com as alterações através da Lei nº 715, de 11 de dezembro de 2003 e da Lei nº 751, de 7 de janeiro de 2004 e suas disposições aplicáveis a obras novas, reformas, ampliações, acréscimos, reconstruções e demolições. O procedimento para obtenção da licença para construir está previsto a partir do art. 5º ao 32º do Código de Obras e Edificações. E os projetos somente serão aceitos se estiverem assinados e sob a direção de profissionais registrados no Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Amazonas-CREA-AM. Serão intervenientes no processo: o Corpo de Bombeiros em relação à segurança contra incêndio; os órgãos federais e estaduais responsáveis pela proteção ao meio ambiente e patrimônio histórico-artístico estadual, assim como os competentes para implantação de projetos industriais; os concessionários de serviços públicos (abastecimento de água, esgotamento sanitário, fornecimento de energia elétrica e telefonia); as empresas fornecedoras de gás para abastecimento domiciliar ou industrial e o órgão responsável pela fiscalização do exercício profissional, no âmbito das matérias constantes do Código. Com caracteres bem visíveis, deve ser afixada, na obra, placa de modelo oficial, de no mínimo 1,20m X 0,60m em obras com testada de até 20m e de 2,00m X 1,00m em obras de testada igual ou superior a 20m, que deverá conter, além do número do alvará de construção, a indicação do nome, número de registro profissional e endereço dos profissionais responsáveis tanto pela elaboração dos projetos, como pela a execução das obras. Além do Código de Obras, é aplicável ao procedimento do licenciamento urbanístico a Lei de Uso e Ocupação do Solo, nº 672/2002, alterada pela Lei nº 752/ 2004, uma vez que estabelecem a taxa de ocupação, coeficiente de aproveitamento, recuo e gabaritos de acordo com cada unidade de estruturação urbana e corredores urbanos de Manaus. Como exemplo, cita-se a orla da Ponta Negra (Manaus), onde a taxa de ocupação máxima é de 60%; o coeficiente de aproveitamento do solo máximo é de 1,2; o gabarito máximo de edificação é 3 e os afastamentos mínimos são, 5,00m frontal e de fundos e 2,50m laterais. Quanto à construção à beira dos cursos d água, todavia, deve ser observado o disposto no Código Florestal aplicável no Município de Manaus quanto à área non edificandi, de preservação permanente, em face do § 1º do art. 25 da Lei de Uso e
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Parcelamento do Solo local (Lei nº 672/2002), que prevê a aplicação daquele diploma nacional. Ademais, o art. 108 da Lei nº 672/2002 prevê expressamente que, para os cursos d água localizados na área urbana e área de transição27, será adotada a faixa de proteção mínima de 30 metros, contados de cada margem de maior enchente. Assim, esses procedimentos podem ser resumidos em três fases, como segue: 2.1.3.1. Primeira Fase – do pedido O interessado deverá encaminhar requerimento, acompanhado dos documentos exigidos pelo mesmo diploma legal, devendo contar do pedido: o nome do titular da propriedade, da posse ou do domínio útil do imóvel, comprovado por documento hábil; a natureza e o destino da obra; o endereço da obra e Certidão de Informações Técnicas e/ou Certidão de Diretrizes de Projeto de Edificação. O art. 20, do Código Edilício de Manaus, prevê que os projetos deverão ser apresentados em três vias, assinados pelo proprietário e pelos responsáveis pelo projeto e pelo executor da obra. O parágrafo único exige a procuração passada ao promitentecomprador quando a área foi adquirida a prazo. Os documentos que devem acompanhar os projetos para outorga da licença, também descritos no Código de Obras e edificações são elencados no artigo 21. 2.1.3.2. Segunda Fase – da instrução Dispõe o art. 25 do Código de Obras e Edificações do Município de Manaus que o a Municipalidade terá trinta dias úteis para se pronunciar sobre os processos referentes à aprovação de projetos. Caso os projetos não estejam em conformidade com a legislação vigente, o parágrafo 1º do dispositivo citado concede o direito ao requerente de corrigi-los e reapresentá-los (no prazo de até trinta dias – parágrafo 2º), sob pena de arquivamento, fixando-se um novo prazo de tramitação não superior a trinta dias úteis. Essa oportunidade só poderá ocorrer por mais duas vezes, de acordo com o parágrafo Terceiro. 2.1.3.3. Terceira Fase – da decisão Prevê o Código de Obras do Município de Manaus, no seu art. 27, que, em sendo aprovado o projeto, o órgão municipal competente (IMPLURB) poderá emitir o alvará de licença para a obra nesse mesmo ato ou, em até cento e oitenta dias, a pedido do interessado. E, em consonância com o parágrafo 1º, será entregue ao 27
O art. 46 do Plano Diretor de Manaus, Lei nº 671/12002, as áreas urbana e de transição são delimitadas pela Lei Municipal de Perímetro Urbano, Lei nº 644/2002. A divisão da área urbana em Unidades de Estruturação UrbanaUES, por sua vez, é fixada a partir do art. 4º da Lei nº 672/2002, Lei de Uso e Ocupação do Solo do Município de Manaus, alterada pelo Anexo II da Lei nº 752/2004.
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requerente duas cópias do projeto aprovado, sendo que uma terceira via e o arquivo digital da planta de situação e locação, ficam arquivadas no IMPLURB. O parágrafo 2º do art. 27, com a alteração da Lei nº 751/2004, dispõe que o alvará de licença de construção conterá número de ordem, data, prazo de vigência, natureza da obra, nome do proprietário, do construtor e do responsável técnico e o visto do Poder Público Municipal, deixando ainda em aberto a qualquer outra informação que seja reputada como essencial. Em caso de haver modificações nas normas de edificação ou nas regras de ordenamento (uso e ocupação) ou parcelamento do solo urbano, que venham a incidir nos projetos já aprovados antes de iniciadas as obras, o art. 28 dá um prazo ao proprietário para realizá-las no máximo em doze meses. Findo esse prazo, o projeto deverá se adaptar à nova legislação de acordo com o parágrafo único desse mesmo dispositivo. Ressalte-se que início da obra, de acordo com o artigo 29, é qualquer serviço que modifique as condições da situação preexistente no imóvel. Em relação à alteração no projeto, depois de aprovado e expedido o alvará, o art. 30 estabelece que o interessado deverá requerer a modificação, acompanhado da documentação exigida pelo IMPLURB. Todavia, será dispensado novo alvará se as alterações não implicarem em modificações contempladas na legislação aplicável ou então não importem em acréscimo da área construída (§ 1º). Caso contrário, será expedido novo alvará de construção, mediante o pagamento das taxas concernentes à alteração (§ 2º). Mas o alvará de licença pode perder a validade de aprovação, nos molde do art. 31, se: (a) a obra não for iniciada no prazo de dois anos e não houver sido renovado; (b) os serviços de construção não forem concluídos no prazo de dois anos e não houver sido renovado. Essa renovação do alvará de licença deve ser requerida antes de vencido o prazo de validade, pagando novos emolumentos (§ 1º). Porém, quando houver interrupção nos serviços de construção, com licença aprovada, essa paralisação deve ser comunicada ao Poder Público para que o interessado possa ser beneficiado com o prazo restante no concedido para sua execução (§ 2º). A seguir, prevê o Código de Obras e Edificações de Manaus, no art. 32, a hipótese de revogação do alvará de licença, por ato do Prefeito Municipal, a qualquer tempo, com fundamento no poder de polícia, e motivado por razões de interesse público ou de segurança justificáveis. 3. O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE MANAUS O Plano Diretor do Município de Manaus, especificamente em relação ao Licenciamento Urbano, dispõe ser atribuição da Municipalidade licenciar, autorizar
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e fiscalizar o uso, ocupação e parcelamento do solo urbano, instituindo, como instrumentos complementares, os estudos Prévios de Impacto de Vizinhança e Ambiental (art. 71 e parágrafo único). O art. 72, do Plano Diretor de Manaus, determina ser necessário contemplar efeitos positivos e negativos de um empreendimento ou atividade sobre a qualidade de vida da população residente na área e em suas proximidades. Assim, o Poder executivo Municipal poderá exigir o prévio Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV). Por sua vez, o art. 73 remete às leis de parcelamento e de uso e ocupação do solo urbano definir quais empreendimentos e atividades que estariam sujeitas ao EIV para a aprovação do projeto, obtenção de licença ou autorização, seja de natureza pública ou privada. A competência para elaborar o EIV está prevista no parágrafo único do art. 73, que legitima o próprio empreendedor, seja público ou privado, sendo que esse resultado será objeto de análise e parecer pelo órgão de planejamento urbano. No art. 74 são delineados alguns objetivos que justificariam a feitura do EIV, dentre eles, assegurar o controle social da intervenção; analisar a capacidade de adensamento da área objeto da intervenção; fixar a demanda gerada com a intervenção por equipamentos urbanos e comunitários; prever a valorização imobiliária advinda de qualquer tipo de concessão; dimensionar a geração de tráfego e a demanda por transporte público; garantira a qualidade da ventilação e circulação e preservar a paisagem urbana e os patrimônios natural e cultural. O art. 75 deixa claro que o EIV não substitui a elaboração e aprovação do Estudo Prévio de Impacto Ambiental – EPIA, nos termos da legislação ambiental, assim como não isenta de avaliação urbanística especial, quando lei local assim o prever. 4. O CÓDIGO DE OBRAS E EDIFICAÇÕES DO MUNICÍPIO DE MANAUS O uso e ocupação do solo, que deve ser autorizado pelo Poder Público Municipal, deve ser formalizado através do documento denominado de Habite-se. Assim, terminada a obra, deve o proprietário requerer que seja realizada uma vistoria, anexando-se os documentos necessários. A lei de igual modo discrimina os documentos necessários à obtenção do Habite-se por obras que se prestem a outros usos. O Código de Obras também já estabelece que requisitos devem ser verificados como satisfeitos por ocasião da vistoria para que o Habite-se seja expedido, advertindo que nenhuma construção pode ser habitada sem que tenha havido autorização por parte do Poder Público Municipal.
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Todavia, há previsão expressa de concessão de habite-se parcial, quando a edificação tiver partes independentes, por exemplo, com parte para uso comercial e parte para uso residencial, desde que possam ser utilizadas separadamente, ou, ainda, quando existir mais de uma construção dentro do mesmo terreno. 5. REVISÃO E EXTINÇÃO DAS LICENÇAS Existem quatro formas de revisão das licenças, que são concedidas por meio de: anulação, revogação , cassação e declaração de caducidade, gerando efeitos diversos (José Afonso da Silva, 2000, p. 429-433; Márcia Walquíria Batista dos Santos, 2001, p. 126; Patrícia Ulson Pizarro Werner, 1998, p. 318-319; Renata Peixoto (Disponível em: <www.direito.ufba.net/ mensagem/renatapeixoto/dalicencaparaconstruir.doc>. Acesso em: 25 jul. 2004). A revisão por meio da anulação se dá quando se apresente ilegalidade no procedimento de licenciamento urbanístico, que tem caráter vinculado aos requisitos impostos pela legislação aplicável. Assim, viciado o processo por infringência às exigências normativas, que caracterizem vício de ilegalidade insanável, torna-se inválido o procedimento de outorga. Esse reconhecimento pode se dar de ofício ou por iniciativa de qualquer interessado, administrativa ou judicialmente. A revisão mediante revogação ocorre quando sobrevêm o interesse público e não se torna mais conveniente ou oportuno para a Administração Pública aquela edificação para a qual já foi expedida licença de construir. Aqui se trata de controle de mérito. Ressalta-se que existe uma previsão, expressa no art. 28 e seu parágrafo único do Código de Obras de Manaus, no sentido de que se houver mudança na legislação antes de iniciadas as obras, o interessado terá ainda um prazo de 1 ano para iniciar a obra segundo o projeto original, todavia, após este prazo o projeto deverá se adequar à nova legislação. Portanto, no município de Manaus, essa situação só será motivo de revogação da outorga, após um ano de inércia do proprietário, sem dar início à obra. A revisão em face de cassação se impõe quando a ilegalidade surge na execução da obra, em desobediência ao próprio projeto, à lei ou regulamento, que norteiam a execução da obra ou, ainda, em desobediência às próprias exigências constantes do alvará. Assim, as licenças podem ser extintas através das formas de revisão analisadas, a saber: anulação ou invalidação, revogação, cassação, caducidade e, ainda, em face de seu esgotamento. Os efeitos de cada uma das modalidades de revisão são diferentes.
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No caso de anulação, como se trata de ilegalidade, ainda que o proprietário não tenha contribuído para a prática do vício, seu efeito é ex tunc, não gera direitos, portanto, não é indenizável mesmo que tenha havido prejuízo. Há jurisprudência no sentido de que essa anulação se dá mesmo que já tenha sido registrada a incorporação de edifício em cartório de imóveis28. A cassação da licença de construir está prevista no inciso IV do art. 39 do Código de Obras de Manaus, como modalidade de sanção ao proprietário-infrator que infringe as disposições desse estatuto de edificações, tendo o interessado o direto ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Quanto à caducidade, esta advém do transcurso in albis de perempção. Seu efeito é automático, não precisa a Administração Pública baixar ato declaratório. No caso de Manaus, ocorre a caducidade da licença quando o proprietário não constrói no prazo de dois anos ou quando, após este prazo, não providencia a renovação da licença (art. 31, do Código de Obras). 6. TAXA DE LICENCIAMENTO A taxa, não obstante ser espécie de género tributário, diferencia-se dos demais por exigir uma contrapartida da Administração Pública diretamente ao contribuinte, seja através da prestação de um serviço público, seja através do poder de polícia. In casu, a taxa de licenciamento urbano é um tipo de taxa instituída pelo exercício do poder de polícia, embasada sempre em uma atuação de fiscalização do Poder Público. Nesse sentido, já se manifestou o Colendo Supremo Tribunal Federal, ao entender como ilegal a cobrança de taxa de licença de localização e funcionamento, sem que tenha havido o efetivo exercício do poder de polícia29. Entretanto, o pagamento da taxa é condição sine qua non para a obtenção da licença de edificação. Em Manaus, por exemplo, essa taxa foi instituída pelo art. 49, inciso IV do Código Tributário Local (Lei 1.697, de 20 de dezembro de 1983). O art. 54 e seu parágrafo único estabelecem o cancelamento da licença se a obra não for iniciada no prazo concedido no alvará. Entretanto, esse prazo pode ser prorrogada a pedido do contribuinte, se o tempo concedido for insuficiente para a execução do projeto. O art. 57 estabelece o momento de lançamento das taxas como sendo logo após a expedição dos atos que constituem seus atos imponíveis e, no art. 58, que elas serão lançadas de ofício. 28
Jurisprudência: STF, RE nº 86214, Rel. Min. Leitão de Abreu.
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Jurisprudência: STF, RE nº 69.957-ES, RTJ 59/799.
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A Taxa para obtenção do Alvará de Edificação está fixada atualmente no Município de Manaus, através do Decreto nº 6.435, de 26 de setembro de 2002 (Anexo II). Ressalte, ainda, que, em Manaus, há previsão legal de que o Poder Público Municipal poderá isentar dessas taxas e, ainda fornecer projeto, a pessoas de baixa renda e com área não superior a 50m2.30 7. TRANSMISSIBILIDADE DA LICENÇA A questão da transmissibilidade da licença é um tema pacífico tanto na doutrina estrangeira quanto nacional (GOYTRE, 2002, p. 488). Transmite-se automaticamente aos sucessores a alienação do imóvel, não sendo lícito ao órgão municipal opor-se à expedição ou à transferência do alvará ao novo proprietário ou compromissário comprador, segundo o entendimento de Meirelles (2000, p. 190-191). 8. INFRAÇÕES E LEGALIDADE URBANÍSTICA Constitui infração urbanística, em sentido amplo, qualquer vulneração da legalidade urbanística. Essa transgressão, por sua vez, constitui o pressuposto da eficácia sancionadora da norma e, qualquer que seja a modalidade da sanção, pode revestir-se de nulidade do ato viciado, perda de direitos patrimoniais, expropriação forçosa, multa pecuniária etc. A legislação urbanística seleciona, segundo uma técnica similar à da tipificação penal, determinadas condutas especialmente contrárias aos fins da ordenação e da ação urbanística dos entes públicos, conferindo à Administração Pública, responsável pelo controle e gestão do urbanismo, o poder de aplicação de sanções, dentre elas, a pecuniária. A interpretação da conduta pela Administração Pública, subsumindo-a ao tipo de ilícito urbanístico previsto na lei, assim como a aplicação da respectiva sanção, guardado o princípio da proporcionalidade, são questões que a lei pode deixar uma margem maior ou menor de discricionariedade ao agente competente, para efetivar o controle. Assim, num sentido mais restrito, são infrações urbanísticas as ações ou omissões que vulneram as prescrições contidas na legislação e planejamento urbanístico, tipificadas e sancionadas expressamente.
30
Art. 11 da Lei Municipal nº 673/2002.
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8.1. Classificação das infrações urbanísticas Quanto à qualidade e importância, classificam-se as infrações urbanísticas em graves e leves. Outorga-se a qualificação de graves, às infrações que constituam descumprimento das normas de parcelamento, uso do solo, altura, volume e situação das edificações e ocupação permitida na superfície das parcelas, ou seja, todas aquelas que incidam sobre os elementos determinantes do aproveitamento urbanístico dos terrenos. Em qualquer caso qualifica-se de graves o parcelamento urbanístico do solo não urbanizável e a realização de obras de urbanização sem a prévia aprovação do Plano e Projeto de Urbanização exigido. Atribui-se a qualificação de leves às infrações urbanísticas que infrinjam condições higiênico-sanitárias e estéticas ou coloquem em risco a normalidade do uso. 8.2. Infrações em matéria de uso do solo e de edificação Em matéria de Edificação, as infrações ocorrem quando são encontradas incompatibilidades com o regime urbanístico do direito de construir. Nesse caso, as infrações podem ser graves ou leves, pois no direito de construir estão incluídos, não apenas os regramentos padrões de construção, como altura, recuo etc., mas, também, a parte higiênico-sanitária e estética. Em Manaus, conforme entrevista com o Engenheiro Carlos Alexandre Rocha Lima as infrações urbanísticas mais comuns quanto a edificação e uso do solo ocorrem em relação ao afastamento e às construções de empreendimentos sem estacionamento. 31
8.3. Infrações em matéria de parcelamento No Município de Manaus, através de entrevista com a Engenheira Eloísa Alves Serrão da Silva32, foi possível detectar que as infrações urbanísticas mais frequentes, em matéria de parcelamento do solo, recaem sobre a comercialização dos lotes, antes de conclusão do processo de concessão da licença, da disponibilização da necessária infra-estrutura, que por vezes é até iniciada e não concluída ou, ainda, antes do registro imobiliário. 8.4. Infrações em matéria de planejamento Em Manaus, essas infrações são recorrentes, já que não existe meios efetivos de prevenir as invasões de espaços urbanos por parte daqueles que chegam à cidade 31
Responsável pela Seção de Uso do Solo – SUSOL, do Instituto de Planejamento Urbano de Manaus– IMPLURB.
32
Responsável pela Divisão de Parcelamento-DPS do Instituto de Planejamento Urbano de Manaus – IMPLURB.
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em busca de uma vida mais próspera, como não há política eficiente que dê condições de sobrevivência digna a essas pessoas no seu município de origem, ensejando um crescimento desordenado da capital do Amazonas33. Nos assentamentos desses imigrantes, a maioria das ocupações e das obras é irregular, além de não contar com infra-estrutura mínima. A mais, seus proprietários se furtam – nisso não se diferenciando das classes mais favorecidas –, até por falta de condições, a sua regularização perante o Poder Público. 9. CONTROLE E SANÇÕES DAS INFRAÇÕES URBANÍSTICAS NO MUNICÍPIO DE MANAUS O Código de Obras e Edificações do Município de Manaus destina os arts. 37 a 46 para o controle, sanções e procedimento de defesa das infrações urbanísticas. Inicialmente dispõe sobre um controle preventivo, ou seja, de orientação aos interessados sobre as normas urbanísticas e edilícias, se antecipando, desse modo, às transgressões. Depois, reconhece a legitimidade a qualquer pessoa para oferecer denúncias quanto a infrações urbanísticas, assim como para mover ações que visem à proteção do ordenamento urbanístico e edilício vigente. A seguir, prescreve as sanções aplicáveis aos que infrinjam as regras estabelecidas no Código de Obras e Edificações, dentre elas: o embargo (paralisação imediata), a multa, a apreensão de equipamentos e ferramentas, a cassação do alvará de licença, a interdição (proibição de uso de parte ou de toda a edificação) e a demolição administrativa (destruição de parte ou de toda a edificação). As sanções, sempre precedidas de notificação ao infrator, são pessoais, dirigidas ao proprietário, possuidor ou detentor do domínio útil do imóvel. A sanção de embargo da obra é aplicável: quando se tratar de edificação sem projeto e sem licença; quando ocorrer discrepância com o projeto aprovado e que, ao mesmo tempo, infrinja as regras contidas no Código de Obras; e, finalmente, quando impuser risco à segurança de pessoas, bens, instalações ou equipamentos. Já a apreensão de ferramentas ou equipamentos tem cabimento quando o proprietário ou o executor da obra se insurge contra o embargo da mesma: A cassação do alvará de edificação, por sua vez, é cabível quando a execução da obra não se der em harmonia com o ordenamento urbanístico e edilício. 33
Resultado de entrevistas com os arquitetos Claudemir José Andrade e Paulo Fiúza, responsáveis pela Divisão de Planejamento Urbano Integrado do Instituto de Planejamento urbano de Manaus-IMPLURB.
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A interdição já se aplica na hipótese da obra estar sendo utilizada sem o devido Habite-se, quando a obra colocar em risco a segurança de pessoas, bens instalações ou equipamentos e, finalmente, quando a obra for uma ameaça à saúde pública: Estão previstos, ainda: (a) a possibilidade de aplicação de mais de uma pena para o mesmo fato, na medida em que, adverte o Código de Obras, que a aplicação de uma pena não exclui a de qualquer outra; (b) as sanções de embargo e de interdição, que deverão ser devidamente comunicadas ao interessado, fixando-se prazo para enquadramento às exigências que, se satisfeitas, ensejará a revogação daquelas; (c) no caso de irreversibilidade das infrações, as medidas sancionadoras de embargo e interdição poderão culminar com o cancelamento do alvará de licença e, ainda, com a demolição parcial ou total da obra. Em relação à despesa com a demolição total e parcial, consigna o Estatuto de Obras de Manaus que correrá por conta dos responsáveis pela construção quando a obra for incompatível e insanável frente à legislação ou quando colocar em risco a segurança pública, caso em que essas medidas ocorrerão de imediato. O interessado será notificado no mínimo vinte e quatro horas antes da demolição administrativa; e a ação demolitória só será executada se for sem riscos à segurança pública, assim como ao funcionamento dos serviços públicos. Quanto à sanção administrativa pecuniária, esta será fixada independentemente das responsabilidades civis e criminais, sendo corrigida pelo índice oficial do Município, em vigor na ocasião do pagamento. Será imputada nas seguintes hipóteses: de haver sido apresentada documentação com indicação de falsidade; do início ou execução de obra sem licença autorizadora; da execução de obra em desacordo com o projeto aprovado; de infrações às disposições do Código de Obras e Edificações e de ocupação de área sem o devido Habite-se. Em caso de reincidência, as multas terão um acréscimo de 20% (vinte por cento) do valor original. Todavia, o pagamento da multa não implica impossibilidade de aplicação de outras sanções, previstas no Código de Obras. O Código de Obras e Edificações de Manaus trata, ainda, dos arts. 43 a 46, do processo administrativo instaurado contra o infrator e seu direito de defesa, que será instrumentalizado por meio de petição, no prazo de sete dias a partir da notificação. A multa terá uma redução de 20% caso haja renúncia à defesa ou ao recurso pelo infrator ou, ainda, seja a mesma satisfeita no prazo do recurso. O recurso tempestivo da decisão de primeira instância, porém, tem o condão de suspender a exigibilidade da multa. Transcorrido o tempo para defesa, os autos serão encaminhados de imediato à autoridade competente para julgamento. Antes de julgar, em restando questão duvidosa, poderá a autoridade condutora do feito determinar a realização de diligência complementar e requerer parecer da Procuradoria Geral do Município.
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Da decisão de primeira instância será dada ciência ao interessado através do Diário Oficial do Município de Manaus. 10. A OMISSÃO DO PODER PÚBLICO MUNICIPAL E AS CONSEQUÊNCIAS PARA A CIDADE E SEUS HABITANTES Uma reflexão que se impõe, antes de se analisar a questão específica da omissão do poder público no Município de Manaus, é a colocada por Osório (2002, p. 77), quando trata das Diretrizes Gerais da Lei nº 10.257/2001, acerca da não coincidência entre a cidade legal e a cidade real, questão também abordada por Rolnik (2003, p. 13), porém, em relação especificamente à cidade de São Paulo. Assim, Osório expressa claramente que: No contexto brasileiro de direitos não universais e de cidadania restrita, o abismo entre conteúdo da lei e sua aplicação é imenso. Nas cidades, o reflexo deste distanciamento teve um efeito devastador: nas áreas de ocupação ilegal, não amparadas pela legislação, há cada vez menos financiamentos; não há controle urbanístico ou investimentos públicos. Na cidade legal, consolidada e bem servida de infra-estrutura e serviços, concentram-se cada vez mais os investimentos imobiliários e públicos, sob um zoneamento restrito, elitista, excludente (OZÓRIO, 2002, p. 77).
Essa realidade não é diversa no Município de Manaus. Entretanto, observa-se, de maneira geral, que os instrumentos de controle urbanístico do Poder Público Municipal não estão sendo efetivados satisfatoriamente e no momento oportuno, pois é comum defrontar-se com obras sendo construídas ou habitadas, sem a devida licença, independentemente do fato de serem construídas em áreas consideradas nobres (ou habitadas pela classe de maior poder aquisitivo) ou periféricas (áreas habitadas pela população de baixo poder aquisitivo), como se poderá constatar no decorrer deste trabalho. Assim, apesar de a legislação ser abrangente e seus institutos eficazes, visível e notória é a falta de estrutura do Poder Público Municipal de Manaus para fiscalizar o crescimento desordenado da cidade, do que se pode concluir pela falta de efetividade do controle urbanístico prévio, via licenciamento urbano ou mesmo via Habite-se, já que também é comumente o manauara começar a usar e ocupar o solo construído sem antes obter a licença de uso e ocupação do solo. Verifica-se assim – ante a quantidade de loteamentos clandestinos34 e invasões apuradas, assim como a quantidade de empreendimentos iniciados sem dar início ao 34
Loteamentos clandestinos são aqueles oriundos das invasões, portanto de posse ilegal; enquanto que os loteamentos irregulares são aqueles advindos de domínio ou posse legal, mas que não atendem às exigências da legislação urbanística.
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devido processo legal do licenciamento – haver uma certa liberdade de se construir em Manaus. Infere-se, por conseguinte, que o Município não conta com uma infraestrutura ou aparelhamento necessários para prevenir e reprimir as ações urbanísticas ilegais. Desse modo, uma maior eficiência funcional-administrativa, com o aumento e treinamento dos servidores responsáveis pela fiscalização, aliada a uma simplificação do conjunto de regras legais que norteiam o procedimento, além de um controle interno mais rigoroso com sanções rígidas aos servidores que fossem omissos ou negligentes, levariam a expedição regular das licenças dentro do prazo estipulado. Considerando-se, então, que a proteção do meio ambiente, dentre eles o artificial ou construído35, não é exclusiva do Poder Público36. Como bem de uso comum do povo (art. 225 da CF/88), incide em toda a coletividade, e, na hipótese de restar evidenciada a falta de vontade política por parte do administrador municipal em resolver a questão na esfera política-administrativa, uma das vias possível seria a movimentação da maquina judiciária através da Ação Civil Pública para defesa da ordem urbanística. Esse instrumento processual teria o condão de obrigar o Poder Público Municipal a melhor se estruturar e se aparelhar para cumprir seu papel de controle da ordem urbanística, sob pena de gerar responsabilidade civil e improbidade administrativa para aqueles que estão sendo negligentes e omissos no seu papel fiscalizador. Portanto, em face da legitimidade de representação coletiva desse instrumento, defende-se a sua utilização pelas associações, sindicatos, partidos políticos e pelo Ministério Público. Nesse aspecto, destaca-se, como importante, o posicionamento de Clarice Duarte37 (no prelo), quando afirma que o grande desafio do Estado Social é o de conter os abusos causados pela inércia estatal no cumprimento do dever de realizar prestações positivas, de cumprir os objetivos e programas de ação governamental, constitucionalmente delineados. Noutro prisma, alerta Silva (2003, p. 128-130) não competir ao Poder Judiciário a formulação de políticas públicas, mas, deixa evidente que, por meio de ações 35
Para SILVA (2002, p. 21), meio ambiente artificial é o constituído pelo espaço urbano construído, consubstanciado no conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos equipamentos públicos (ruas, praças, áreas verdes, espaços livres em geral: espaço urbano aberto) enquanto que o meio ambiente natural é o constituído pelo solo, a água, o ar atmosférico, a flora; enfim, pela interação dos seres vivos e seu meio, onde se dá a correlação recíproca entre as espécies e as relações destas com o ambiente físico que ocupam.
36
“A Carta Magna não atribui com exclusividade ao Estado o dever de defender e de preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, mas impõe-no também à coletividade” (GOMES, 2003, p. 213).
37
A ser publicado na Revista São Paulo em perspectiva, da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – SEADE.
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judiciais, ele pode determinar aos governos que adotem medidas de preservação do meio ambiente. Adverte, outrossim, competir ao Judiciário determinar ao executivo que execute políticas públicas já contempladas na legislação, seja na Carta Política, seja em leis já editadas pelo próprio governo. 11. A RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO E DO AGENTE PÚBLICO PELA OMISSÃO NO CONTROLE URBANÍSTICO A omissão do Poder Público no exercício do poder de polícia tem como consequências, conforme Di Pietro (1999, p. 38), a responsabilidade civil da pessoa jurídica (art. 37, § 6º da CF/88) e ainda pode acarretar responsabilidade civil, administrativa e, eventualmente, até criminal, do agente público que deixou de adotar a medida cabível. A autora justifica essa assertiva em face do poder de polícia caracterizar-se um poder-dever irrenunciável pela autoridade, que é obrigada a exercêlo no interesse público. A autora ainda tipifica como ato de improbidade administrativa “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício” (inciso II, do art. 11 da Lei nº 8.429/92). Não é diferente o posicionamento de Freitas (2002, p. 345)38, quando afirma que o poder de polícia autoriza a aplicação de sanções como embargo de edificações não licenciadas e sua demolição, deixando bem evidente, outrossim, que a hipótese de eventual inércia da Administração Pública pode gerar tanto sua responsabilização em ação civil pública por omissão, quanto do agente ou servidor público por improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92, art. 11, II) e crime de prevaricação. Faz lembrar, ainda, o autor, que o servidor omisso poderá responder também administrativamente em face de sua inércia. Entretanto, o poder-dever de agir no controle urbanístico pelo agente público competente advém de outros princípios maiores, disciplinadores da ação estatal, que geram a ilegalidade da omissão e consequente responsabilidade, quais sejam, a indisponibilidade do bem ambiental difuso que é a cidade e a obrigatoriedade de intervenção estatal na ordem urbanística. No que concerne à responsabilização penal, Oliveira (2000, p. 299-310)39 discorre acerca da responsabilidade dos agentes da Administração Pública em Delitos Urbanísticos, desenvolvendo tese no sentido de inclusão dos funcionários públicos responsáveis pela fiscalização e administração da ordenação do solo, como autores
38
Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo de São Paulo-CAOHURB.
39
Promotor de Justiça Criminal de São Paulo.
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dos delitos urbanísticos e ambientais, a exemplo de crime praticado contra área verde, em face de delito em comissão por omissão (art. 13, § 2º do Código Penal) porque garante os bens jurídicos colocados sob sua guarda e proteção. 12. O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DA SOCIEDADE ORGANIZADA NA DEFESA DA ORDEM URBANÍSTICA Como já se referiu anteriormente, as infrações urbanísticas acontecem amiúde na cidade de Manaus, independentemente da vasta legislação que regula a matéria. Na capital amazonense, o comum é se construir para depois se tentar regularizar, situação encontrada não apenas em pequenos investimentos, uma vez que os grandes investidores também procuram fugir das taxas de licenciamento e de registro imobiliário. Inúmeros seriam, por exemplo, os casos de construções em áreas de preservação permanente, ou seja, a menos de 30m da maior enchente da margem dos cursos d água no Município de Manaus40 (art. 25, combinado com o art. 108, ambos da Lei nº 672/2000). Verificada também a carência de infra-estrutura estatal para exercer um controle efetivo das construções no município de Manaus, indaga-se: qual seria o papel do Ministério Público, na qualidade de fiscal da lei e defensor dos interesses da sociedade e qual a parcela de responsabilidade da sociedade organizada na luta pela efetividade da legislação urbanística? A omissão administrativa ilícita, violadora de interesses difusos e coletivos da sociedade, por transgredir a lei e os princípios de uma Administração Pública eficiente, além de caracterizar-se ato de improbidade administrativa, deve ser combatida pelo Ministério Público41 através de instrumentos extraprocessuais, como o inquérito civil público, a recomendação e o termo de ajustamento de conduta, como, também, caso restem insuficientes esses meios, através de instrumentos processuais como a ação civil pública, arrolada pelo Estatuto da Cidade. Sua legitimidade para agir nesse caso é patente ante seu papel de fiscal da lei e defensor dos direitos da sociedade, devendo zelar, in casu, pela ordem urbanística como bem difuso reconhecido pelo Estatuto da Cidade a ser tutelado via Ação Civil Pública.
40
Apenas para ilustrar esse exemplo, citam-se três grandes empreendimentos, todos implementados na cidade de Manaus: o Condomínio House Ville onde reside a autora deste trabalho, construído pela Engeco; o empreendimento Millenium, da construtora Unipar, que modificou o curso do Igarapé do Mindú para enquadrálo nos parâmetros legais; o Fiat Tropical, construído praticamente no leito do rio Negro, na Ponta Negra.
41
Art. 129, III, da Constituição Federal de 1988.
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Destaque-se que, em Manaus, foram criadas, desde 2001, duas Promotorias de Justiça Especializadas na Proteção e Defesa da Ordem urbanística do Ministério Público do Estado do Amazonas42, às quais compete, dentre outras atribuições, zelar pela observância dos Planos Diretores, Código de Obras e edificações do Município de Manaus, normas de gabarito e as demais normas edilícias de zoneamento urbanístico de posturas, assim como pelo Estatuto da Cidade, lei federal nº 10.257 e demais normas de uso do solo para fins urbanos, promovendo medidas judiciais, extrajudiciais e/ou administrativas cabíveis. Assim, essas atribuições, antes divididas entre a Promotoria de Justiça especializada junto à Vara de Fazenda Municipal, Registros Públicos e a Promotoria de Defesa de Consumidor, ganharam dois órgãos próprios e específicos para cuidar da matéria, a exemplo do que já existia em outros Estados, não apenas para os inquéritos civis e procedimentos investigatórios da área civil, mas, inclusive, com atribuição criminal para promover as devidas ações penais por crimes praticados contra a ordem urbanística. Antes de abordar a questão do papel da sociedade civil organizada no controle urbanístico da cidade, ante a comprovada omissão do Poder Público Municipal e consequente responsabilidade de seus agentes, impõe-se tratar primeiramente do género da qual é espécie, qual seja, a gestão democrática da cidade. Visando consolidar o Estado Democrático de Direito e assegurar a participação da comunidade na elaboração e implantação de plano de uso e ocupação do solo e transporte, assim como na gestão dos serviços públicos, a Emenda Popular de Reforma Urbana43 previa uma gestão democrática da cidade, ao criar instrumentos de participação popular. A Constituição incorporou vários instrumentos defendidos nessa emenda, a saber: as audiências públicas, a constituição de Conselhos, plebiscito, o referendo popular, a iniciativa popular e o veto popular. Ressalta-se, nesse aspecto, que o art. 29, inciso XII, determina como obrigatória a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal”, como requisito constitucional de sua validade. Observa Saule Júnior (2001, p. 29) que, primeiramente, a iniciativa popular foi prevista para leis de âmbito municipal, mediante subscrição de 0,5% do eleitorado. 42
Instaladas, aos 28 de dezembro de 2001, na cidade de Manaus, através do Ato PGJ nº 166/2002 da lavra de S.Exa. o Sr. Procurador-Geral de Justiça, Dr. Mauro Luiz Campbell Marques.
43
Proposta apresentada à assembleia constituinte, oriunda de entidades, associações de classe, organizações nãogovernamentais, associações civis, movimentos e grupos sociais, que apresentou um conjunto de princípios, regras e instrumentos sobre variados temas, como: direitos urbanos, propriedade imobiliária urbana, política habitacional, transporte e serviços públicos, assim como as diretrizes para uma gestão democrática da cidade.
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Quanto ao veto popular, este instrumento teria o objetivo de suspender a execução de lei através de 5% do eleitorado municipal, devendo ser submetida, automaticamente, a referendo popular. Em segundo lugar, lembra o autor, que na falta de lei, foi defendida a tese do mandado de injunção e da ação de inconstitucionalidade por omissão, referente à questão urbana, com o objetivo de dar eficácia às normas constitucionais, sendo que, ao Ministério Público ou qualquer interessado, caberia o intuito de ser determinada a aplicação direta da norma ou se fosse o caso, a sua regulamentação pelo Poder Legislativo. A decisão favorável do Judiciário, nesses casos, teria força de coisa julgada a partir de sua publicação. Todavia, sabe-se que esses instrumentos são praticamente letra morta no ordenamento jurídico brasileiro. No entender de alguns autores, a exemplo de Malaquias (2002, p. 316), como o constituinte não adotou numerus clausus para designar as formas de democracia participativa, podem ser estabelecidas outras formas de participação popular, compatíveis com o princípio constitucional da democracia participativa, como fez os art.s 43 e 45 do Estatuto da Cidade, não obstante tenha sido lamentavelmente vetado o inciso V de seu art. 43, que previa a realização de referendo popular e plebiscito. Segundo Matos (2002, p. 306), a técnica legislativa é inteligente, quando se refere aos instrumentos para a gestão democrática das cidades, previstos pelo Estatuto da Cidade, no seu art. 43, porque permite a participação popular através de outros canais, que não os institucionalizados, como, por exemplo, o Movimento dos Sem Terra – MST: A redação dada pelo legislador ao caput desse artigo é de técnica conhecida, no jargão hermenêutico, de numerus apertus, o que equivale a dizer que os instrumentos de gestão democrática arrolados nos incisos são meramente exemplificativos, permanecendo a possibilidade, pelos gestores públicos e pela sociedade civil, de outros instrumentos visando ao mesmo objetivo – a gestão democrática da cidade. A técnica legislativa adotada é inteligente, pois vai ao encontro das potencialidades criativas que se têm verificado no esforço de reconstrução democrática das cidades brasileiras, sobretudo no aspecto específico da ampliação participativa direta da população no exercício do poder político por outros canais que não os institucionalizados [...] Um exemplo de repercussão em todo o país é o do Movimento dos Sem Terra (MST), de inegáveis força social, capacidade de mobilização e organização, e que pode ser apontado como grande responsável pela ampliação da discussão da reforma agrária no Brasil”.
Muito embora o princípio participativo, na concepção Silva (2000, p. 145146) “caracterize-se pela participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo”, esse impasse participativo pode ser amenizado na medida em que o Ministério Público possa assegurar a participação popular, pelo menos de forma indireta, através da realização de audiências públicas, mas sempre com atenção e cuidado a respeito da manipulação e do direcionamento de massas.
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Todavia, concernente ao papel da sociedade civil organizada, cabe aqui ressaltar, ainda, a questão da governança44, ou seja, segundo Diniz (1996, p. 12), é a maneira de como os cidadãos poderiam colaborar com “a capacidade da ação estatal na implementação de políticas e na consecução de metas coletivas”. Bento (2003, p. 249), sobre o mesmo tema, assevera: Para que iniciativas de participação popular e de controle social na administração pública possam traduzir-se em democratização é mister que os cidadãos sejam chamados a participar como tais, isto é, como cidadãos e não como clientes ou como representantes de interesses corporativos.
Na visão de Bento (apud Santos, 1997, p. 12) essa participação “no conjunto de mecanismos e procedimentos para lidar com a dimensão participativa e plural da sociedade [...] implica expandir e aperfeiçoar os meios de interlocução e de administração do jogo de interesses”, todavia, não deve ser apenas consultiva, a exemplo de pesquisa de mercado, nem tampouco centrada em questões técnicas ou de gerenciamento, mas deve discutir e, mais ainda, deliberar, sobre questões políticas. Assim, conclui o autor, a participação deve atingir todos os níveis, que vão desde a formulação de estratégias mais globais até as setoriais e locais de implementação. In verbis: Nesse sentido, a participação deve se desenvolver em todos os níveis, desde a formulação das estratégias mais gerais de atuação do estado – compreendidas num projeto reflexivo de relações Estado-sociedade e de desenvolvimento econômico, social e humano – até as políticas setoriais e locais encarregadas de sua implementação (BENTO, 2003, p. 250).
Aplicando-se essa participação da sociedade civil organizada ao caso concreto do licenciamento urbanístico, como forma de controle das construções, ela partiria desde a formulação das políticas de planejamento e desenvolvimento urbano, até a execução do controle urbanístico, através do próprio procedimento formal da licença urbanística em si. A partir desses resultados, onde foram delineados os principais aspectos do licenciamento urbanístico da cidade de Manaus, proceder-se-á, sequencialmente, às conclusões deste trabalho.
44
Para Bento (2003, p. 85) Governança diz respeito aos pré-requisitos institucionais para a otimização do desempenho administrativo, isto é, é o conjunto dos instrumentos técnicos de gestão que assegure a eficiência e a democratização das políticas públicas. Já para Santos, Maria Helena de Castro (1997, p. 341), “trata-se, com efeito, do modus operandi das políticas governamentais, tendo em vista o contexto de complexidade e de pluralidade em que irão incidir, e de como torná-lo eficiente e efetivo”.
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13. CONCLUSÕES Com a sociabilização do direito de propriedade, a qual foi atribuída uma função social, o Direito de Construir se dissociou do direito privado, passando a ser regido pelo Direito Público, submetendo-se então às limitações administrativas com o fito de se alcançar o bem-estar social, em face da prevalência do interesse público e social sobre o domínio particular e a evolução da propriedade-direito para a propriedade-função. Assim, a liberdade de construir passou a ser limitada, não apenas pelo princípio da normalidade de seu exercício, que condena a concepção de mau uso, de abuso ou excesso na fruição – hipótese em que prejudica a segurança, o sossego e a saúde dos que habitam nas vizinhanças –, mas, concomitantemente, por leis e regulamentos que criam as denominadas limitações administrativas, que buscam o bem-estar no convívio da coletividade nas urbes. Não se pode olvidar, desse modo, as íntimas relações entre o Direito de Construir e o Direito Urbanístico, submetido, como são, as limitações urbanísticas. O princípio da Função Social da Propriedade caracteriza-se justamente por impor freio e contrapeso ao direito individual, determinando, por conseguinte, o dever de condicionar a necessidade de requerimento da licença urbanística, nas edificações, para o alcance do bem-estar coletivo. Este princípio se traduz no equilíbrio entre o interesse público e o privado, pois depende do uso que se faz de cada propriedade. Em outras palavras, o princípio da Função Social da Propriedade preconiza a realização plena do urbanismo e do equilíbrio das relações da cidade, que significa a supremacia do interesse público sobre o particular, inerente a qualquer sociedade e condição de sua existência. Desse modo, as restrições ao pleno e exclusivo gozo da propriedade não podem ser entendidas como agressões ao poder de dominus, pois a preservação do meio ambiente é considerada como um bem necessário à subsistência de toda a humanidade. O Licenciamento Urbanístico, como procedimento preventivo de controle da atividade urbanística, é norteado pelo princípio da legalidade, só podendo ser favorável ao requerente quando preenchidos todos os requisitos impostos pelo texto legal. Considerado como instrumento fiscalizador do ordenamento urbano, tem um papel primordial na ordenação das cidades. Um dos princípios tradicionais de Direito urbanístico é a subsunção de que toda atividade, que implique uso artificial do solo, deve ser submetida a um controle prévio, com a finalidade de assegurar a conformidade com as normas aplicáveis ao caso. Essa fiscalização preventiva é uma das formas de intervenção do Estado na propriedade e atividade de seus administrados, para comprovar que não estão sendo
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contrariados os interesses gerais. Portanto, concede-se o direito ao proprietário de usar e desfrutar de sua coisa, como realizar obras e construções, mas com as limitações estabelecidas em lei. As Licenças Urbanísticas, portanto, são instrumentos de controle prévio urbanístico, assim como técnica de intervenção do Estado na propriedade. São atos administrativos vinculados, estando submetidos ao regime jurídico de Direito Público. Impõem deveres e os condicionam. Todavia, não podem ser denegadas quando preenchidos todos os requisitos legais. O direito de edificar no próprio solo é direito reconhecido abstratamente, contudo, na prática, se vê submetido a um regime especial no ordenamento urbanístico, que permite classificar a propriedade de estatutária, na medida em que os proprietários se vêem obrigados à obtenção de prévia licença. E, como instrumento de controle prévio da atividade edilícia, essa licença verifica se a obra projetada está conforme e compatível com a ordenação urbanística aplicável, permitindo que seu objeto básico – a implantação da atividade de construção de uma obra – permaneça conforme o conteúdo da própria licença, normalmente definido no projeto técnico apresentado, ou seja, constata se a construção da obra se ajusta às exigências de interesse público, como preconiza o ordenamento urbanístico vigente. As licenças, todavia, não são consideradas atividades de planejamento, mas exteriorização da regulação urbanística, exercendo uma função de instrumento de polícia urbanística. De um lado, são autênticos atos de execução de preceitos da lei e dos planos urbanísticos; de outro, configuram-se como instrumentos de controle da legalidade urbanística. Nesse contexto, as Infrações Urbanísticas configuram-se como a vulneração ou a ofensa da legalidade urbanística, constituindo-se como pressupostos da eficácia sancionadora da norma, podendo revestir-se, qualquer que seja sua modalidade, em nulidade do ato viciado, perda de direitos patrimoniais, expropriação forçosa, multa pecuniária etc. Essas infrações podem ocorrer nas três áreas do ordenamento urbano: na fase do planejamento, na do parcelamento do solo (loteamentos e desmembramentos) e na de uso e ocupação do solo (atividade edilícia controlada via licenciamento urbanístico). Quanto às infrações urbanísticas que ferem o licenciamento urbanístico (praticadas em face do uso e ocupação do solo), podem ocorrer em três momentos: nas construções iniciadas sem a devida licença; nas modificações irregulares durante a execução da obra, quando já expedida a licença provisória; e na habitação sem a
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licença definitiva (Habite-se). Ressalta-se que no Município de Manaus são detectadas largamente essas três modalidades de infrações urbanísticas. Guardando técnica similar à da tipificação penal, essas ações ou omissões que vulneram as prescrições contidas na legislação e planejamento urbanístico, subsumemse ao tipo de ilícito urbanístico previsto em lei, assim como à aplicação da respectiva sanção, guardado o princípio da proporcionalidade, podendo a lei deixar margem de discricionariedade ao agente competente para análise subjetiva da adequação da sanção ao caso concreto. Em Manaus, foram constatadas várias ocorrências de infrações: em matéria de planejamento, principalmente por falta de controle migratório e pelas construções desordenadas e incompatíveis com os planos urbanísticos; em matéria de parcelamento do solo, pela comercialização de lotes antes da conclusão do processo de concessão de licença, antes da disponibilização de infra-estrutura e antes de providenciar o registro imobiliário; de uso e ocupação do solo (edificação), onde as irregularidades mais comuns ocorrem em relação ao afastamento, como também em empreendimentos sem estacionamento. Nesse campo, a omissão do órgão fiscalizador pode ocorrer: por falta de legislação; por falta de infra-estrutura para o controle (elemento estático); por falta de infra-estrutura para efetivação do controle (elemento dinâmico); ou, ainda, por inércia desidiosa do agente competente, trazendo sérias e graves consequências para a cidade e seus habitantes. Em Manaus, o costumeiro é construir-se primeiro para depois tentar regularizar, mesmo em relação a grandes empreendimentos, onde os responsáveis tentam se furtar ao pagamento de taxas do licenciamento e do registro imobiliário. Apesar da legislação ser abrangente e seus institutos eficazes, visível e notória é a falta de estrutura do Poder Público Municipal para fiscalizar o crescimento desordenado da cidade. Infere-se, portanto, que a ineficiência do controle urbanístico manauara ocorre através do fato de o Município não contar com infra-estrutura ou aparelhamento necessários para prevenir e reprimir as ações urbanísticas ilegais. Assim, ao ser constatada a omissão do Poder Público Municipal de Manaus, recomenda-se o aumento e treinamento dos servidores responsáveis pela fiscalização, aliada a uma simplificação do conjunto de regras legais que norteiam o procedimento, além de um controle interno mais rigoroso, com sanções rígidas aos servidores que não tenham sido ou não estejam sendo eficientes, buscando-se, com isso, a maior cobertura legal das construções na cidade de Manaus, com a expedição regular de licenças, dentro do prazo legal estipulado. Sustenta-se, portanto, que a responsabilidade do órgão e dos agentes responsáveis pela omissão administrativa ilícita está plenamente configurada, pois transgride
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a lei e os princípios de uma Administração Pública eficiente a inação ou ação insuficiente à demanda, além de caracterizar-se como improbidade administrativa, devendo ser combatida tanto pelo Ministério Público quanto pela sociedade. Essa responsabilidade pela inércia administrativa se dá tanto na esfera civil quanto na esfera criminal, na medida que o meio ambiente construído é um bem tutelado pela ordenação jurídica constitucional e legal brasileira. A delimitação da responsabilidade em matéria de fiscalização e controle da ocupação dos espaços urbanos é de fundamental importância para as cidades, porque os delitos urbanísticos, além de infringirem a lei, comprometem o bem-estar social, por vezes causando erosão, desmoronamentos, alagamentos e danos ambientais irreversíveis. Assim, tipificada a responsabilidade do Município e dos agentes competentes pela ausência de eficiência no controle urbanístico na cidade de Manaus, recomendase que sejam apuradas as responsabilidades pela omissão e desrespeito à ordem urbanística, independentemente da falta de infra-estrutura estática (conjunto de elementos necessários à implementação do controle, como a quantidade de servidores e sua qualificação) e dinâmica (elementos necessários ao exercício da efetiva fiscalização no caso concreto), assim como da ausência de uma sistematização de ordenamento e de ações. REFERÊNCIAS ALFONSIN, Betânia de Moraes. Dos Instrumentos da política urbana. In.: Estatuto da Cidade Comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. ANTENOR, Nilza Maria Toledo. Parcelamento e edificação compulsórios e desapropriação-sanção. Estatuto da Cidade coordenado por Mariana Moreira. São Paulo: Fundação Prefeito Faria Lima-CEPAM, 2001. ARIOLI, Creidy Satt; SCHIMITT, Nara Ione Medina. Licenciamento ambiental como instrumentos de gestão urbana. Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico, avaliando o Estatuto da Cidade, 2, 2002. Anais... Porto Alegre: Evangraf, 2002. BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 1998. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Apontamentos sobre poder de polícia. Revista de Direito Público, v. 9, 1969. ______. Natureza jurídica do zoneamento. RDA, v. 147, n. 25, 1982. ______. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. ______. Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. ______. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
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Planos Diretores, Participação Popular e a Questão Indígena: Reflexões sobre o Texto Constitucional e o Município de São Gabriel da Cachoeira (AM) MARIANA LEVY PIZA FONTES1 Advogada.
Após 20 anos da promulgação da Constituição de 1988, o presente artigo pretende estabelecer reflexões sobre uma questão específica, ainda não evidente quando da realização da Assembleia Nacional Constituinte: as conexões e desafios de se promover a participação popular na elaboração de planos diretores em Municípios, cuja maioria da população é indígena. A regulamentação do art. 182, a promulgação do Estatuto da Cidade e o estabelecimento de prazos e requisitos de participação popular pelo Estatuto da Cidade (art. 29, XII, CF c/c art. 40 e 53 da Lei 10.251/2001) conjugado ao recente incremento da urbanização na região amazônica observada na última década estabelecem novos desafios para a gestão democrática das cidades no Brasil. PLANEJAMENTO URBANO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 O planejamento urbano no Brasil sofre mudanças significativas a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/ 01). Este marco jurídico-urbanístico incorpora a crítica formulada ao modelo de planejamento urbano no Brasil, especialmente àquele implementado durante o regime militar. O planejamento urbano brasileiro alimentou-se da matriz modernista/funcionalista implementada ao longo do século XX, cujas raízes iluministas e positivistas
1
Mestranda em Direito Urbanístico Ambiental pela PUC/SP. Cientista social formada pela Universidade de São Paulo. Foi assessora técnica da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades e atualmente é Coordenadora Geral de Estudos e Pesquisas da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.
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baseavam-se na crença absoluta na ciência, técnica, racionalidade e neutralidade do planejamento. É durante o regime militar que essa concepção de planejamento urbano adquire força e importância. São criados dois órgãos federais de planejamento (SERFHAU e SAREM), uma quantidade inédita de Planos Diretores é produzida, órgãos municipais de planejamento e escolas de arquitetura proliferam-se. O planejamento é tomado como solução para o grande caos urbano. Tudo se resumiria a uma questão de eficiência e competência técnica. Paradoxalmente, é durante esse mesmo período que as cidades brasileiras mais crescem “fora da lei”, com aumento expressivo de favelas, cortiços, loteamentos irregulares e clandestinos em todo o país. Essas diretrizes e sistemas de planejamento vigoraram até a década de 80. Durante a Assembleia Nacional Constituinte, esta concepção de planejamento urbano burocrática e tecnocrática é colocada em cheque pela Emenda Popular da Reforma Urbana, apresentada por uma série de movimentos sociais urbanos, associações não governamentais (ONGs), entidades de classes, etc.2, e subscrita por 130.000 eleitores. A iniciativa popular propôs uma série de instrumentos para o cumprimento da função social da propriedade urbana, bem como uma proposta de gestão democrática das cidades, rejeitando a ideia de um plano-discurso, a ser elaborado unicamente pelo Estado. O texto original da emenda popular da reforma urbana não previa expressamente a expressão “plano diretor”, que acabou por ser incorporado na própria definição da função social da propriedade urbana. Conforme a explicação da urbanista Ermínia Maricato, indicada pelas entidades signatárias da emenda para defende-la no Plenário Constituinte: “A rejeição ao plano diretor significou a rejeição de seu caráter ideológico e dissimulador dos conflitos sociais urbanos. Além de ignorar a proposta de plano diretor, a iniciativa popular destacou a gestão democrática das cidades, revelando o desejo de ver ações que fosse além dos planos”3.
2
Dentre elas a Articulação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), Movimento de Defesa do Favelado (MDF), Federação Nacional dos Arquitetos (FNA), Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), Coordenação Nacional dos Mutuários e Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) (Nelson Saule Júnior, Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do plano diretor, p. 25.
3
Ermínia Maricato, As ideias fora o lugar e o lugar fora das ideias:planejamento urbano no Brasil. In Otília Arantes, Carlos Vainer, Ermínia Maricato, A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 2000, p. 175, apud, José Roberto Bassul, ob.cit., p. 82.
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Do embate constituinte, porém, nasce o capítulo “Da Política Urbana”, que consagra o Plano Diretor como o instrumento básico da política de desenvolvimento urbano, obrigatório aos Municípios com mais de 20.000 habitantes (art. 182, § 1º, CF). Mais do que isso, o Plano Diretor passa a definir o conteúdo concreto do princípio da função social da propriedade urbana (art. 182, § 2º, CF). Ressalte-se que o texto constitucional, pela primeira vez, vincula a definição da função social da propriedade ao processo de planejamento territorial municipal. De um lado, o planejamento territorial não é mais considerado como intervenção do Estado no domínio econômico propriamente dito, mas no domínio restrito do direito de propriedade, a respeito do qual a ordem constitucional permite a interferência imperativa do Poder Público por meio da atuação da atividade urbanística.4 Consequentemente, por tratar-se de dispositivo ligado diretamente à delimitação do próprio direito de propriedade5, não se aplicaria o art. 174 da Constituição Federal, que determina que o planejamento será meramente “indicativo para o setor privado”. O Plano Diretor é totalmente determinante para os proprietários privados, que a eles são obrigados a ajustar seus comportamentos6. De outro lado, o texto constitucional e, posteriormente, o Estatuto da Cidade acabam por substituir a concepção do planejamento urbano municipal como processo puramente técnico e neutro. A participação popular no processo de planejamento municipal e, especialmente na elaboração dos Planos Diretores, passa a ser exigida como condição obrigatória, sob pena de improbidade administrativa (art. 29, XII, CF c/c art. 40 e 53 do Estatuto da Cidade). Parte-se de um reconhecimento constitucional, de que embora tenha conteúdo técnico, o planejamento é um processo político. Não existe, pois, planejamento neutro. As ações de planejamento estão sempre voltadas para o futuro, voltadas para a transformação social. E essa transformação social se dá tanto ao longo do tempo como no espaço.7
4
José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 93.
5
Convém lembrar que a função social não deve ser confundida com limitação do direito de propriedade. Isto porque as limitações administrativas dizem respeito ao exercício do direito pelo proprietário. De maneira distinta, a função social interfere na estrutura do direito mesmo (José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 75)
6
Carlos Ari Sundfeld, O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais, in Adilson Dallari e Sérgio Ferraz (coord.), O Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001, p. 50.
7
Gilberto Bercovici, Constituição Econômica e desenvolvimento. Uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 31.
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Trata-se, portanto, de visão que incorpora o processo político ao planejamento urbano, garantindo a participação daqueles tradicionalmente excluídos da construção das cidades. O processo de elaboração do Plano Diretor visa garantir uma esfera política, democrática, capaz de construir consenso entre os mais diversos atores sobre o futuro das cidades. Este reconhecimento jurídico da necessidade de um processo político de planejamento urbano nas cidades brasileiras adquire uma nova em complexa amplitude no caso de Planos Diretores elaborados em Municípios situados na Amazônia, especialmente naqueles situados em terras indígenas – sejam elas demarcadas ou não. OS ÍNDIOS E O PROCESSO PARTICIPATIVO Dentre aqueles tradicionalmente excluídos do planejamento estatal no Brasil, está a população indígena. O constituinte de 88 houve por bem considerar os índios como sujeito de direitos, reconhecendo “ sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (art. 231, CF). Com efeito, o texto constitucional menciona também as populações indígenas (art. 22, inciso XIV) e a comunidade indígena (art. 232). Trata-se, pois do reconhecimento de um sujeito de direitos sui generís. De um lado, os direitos indígenas dizem respeito a uma comunidade cultural específica, ligada à raça (fator biológico) e a valores (crenças, costumes, língua, tradições). Nesse sentido, há uma proteção constitucional a cada uma das características peculiares das etnias presentes no território brasileiro. Por outro lado, cada índio em particular é considerado brasileiro e é dotado dos benefícios da nacionalidade e cidadania (arts. 1º, parágrafo único e art. 5º da Lei 6.001/73).8 O aumento dos processos de urbanização na região amazônica impõe a juristas e urbanista uma leitura conjunta desses direitos indígenas e do capítulo da Política Urbana. Com efeito, a presença de uma enorme diversidade étnica em um mesmo território e a necessidade de se garantir processos efetivamente democráticos na aprovação de Planos Diretores colocam novas questões para o Direito Urbanístico brasileiro. É o que se verá a partir da análise do Município de São Gabriel da Cachoeira.
8
Tercio Sampaio Ferraz Jr., Direito Constitucional. Liberdade defumar, Privacidade, Estado, Direitos Humanos e outros Temas, p. 503.
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O MUNICÍPIO DE SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA9 O Município de São Gabriel da Cachoeira localiza-se no noroeste do Estado do Amazonas em plena floresta amazônica, na fronteira entre Brasil, Venezuela e Colômbia. Sua extensão é de 109.108 km2. Trata-se de um dos maiores municípios brasileiros. Além disso, sua população é predominantemente indígena – 81,66% do território do Município de São Gabriel da Cachoeira são terras indígenas demarcadas10. O território municipal congrega mais de 23 povos indígenas distintos. São etnias residentes do Município de São Gabriel da Cachoeira: Arapaso, Baniwa, Barasana, Baré, Desana, Hupda, Karapauã, Kubeo, Kunipako, Makuna, Miriti-tapuya, Nadob, Piratabuya, Potigua, Guiano, Taiwano, Tariana, Tukano, Tuyuca, Wanana, Werekena, Yanomami. A diversidade étnica se expressa também na quantidade de línguas faladas por essas comunidades: são mais de 20 línguas distintas, provenientes de troncos linguísticos específicos, tais como o Tupi, o Tukano Oriental, o Maku, o Aruak e Yanomami. O Município de São Gabriel da Cachoeira co-oficializou, inclusive, as línguas Nhengatu, Tukano e Baniwa (Lei municipal nº 145/2002) ao lado do português, idioma brasileiro oficial (art. 13 da Constituição Federal). Nesse contexto étnico-cultural, São Gabriel da Cachoeira elaborou recentemente seu Plano Diretor, que foi aprovado pela Lei municipal nº 209/06. Não obstante o enorme leque de questões jurídicas importantes trazidas pelo Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira – conflitos fundiários, as terras indígenas e a questão federativa, o urbano e o rural na Amazônia11, sobreposição de unidades de conservação e terras indígenas, entre outros – a construção de um processo democrático em um imenso território com a presença de diferentes etnias já é, em si, um desafio. A elaboração de Planos Diretores participativos é condicionada a uma série de requisitos, tais como a coordenação compartilhada entre governo e sociedade civil12; a publicidade (art. 4º da Resolução 25 e art. 40, § 4º, II do Estatuto da Cidade), e a
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A análise do processo de elaboração do Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira foi elaborada com base nos relatórios elaborados pelo Instituto Polis (Instituto de Assessoria, Pesquisa e Formação em Políticas Públicas) e pelo ISA (Instituto Socioambiental).
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Este número pode chegar a 90% com a conclusão dos processos de demarcação das terras do Balaio e Marabitana Cué Cué.
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Sobre uma leitura jurídica mais ampla sobre o Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira, vide Nelson Saule Júnior e outros, Plano Diretor no Município de São Gabriel da Cachoeira. Aspectos Relevantes da Leitura Jurídica. In Direito Urbanístico Brasileiro: vias jurídicas da Política Urbana, pp. 235 a 284.
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(art. 3º, § 1º da Resolução 25 do Conselho Nacional das Cidades).
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diversidade do processo participativo, através da realização de debates por segmentos, por temas e por divisões territoriais (art. 5º, inciso I, da Resolução 25). Ora, como garantir um processo participativo em um território cujas etnias falam línguas distintas? Como se compartilhar um processo de elaboração de Planos Diretores quando a distância a ser percorrida entre a sede do Município, pode durar dias e com altos custos? Como se estabelecer divisões territoriais para os debates quando cada pedaço de terra possui um altíssimo valor simbólico, cultural, mítico? São questões que surgem a partir da realidade amazônica concreta e das recentes transformações no processo de urbanização brasileiro. O texto constitucional e o novo marco jurídico urbanístico brasileiro precisam, pois, ser analisados a partir desses novos desafios, articulando o planejamento territorial e os direitos indígenas, articulando não só capítulos do texto constitucional, mas o próprio Estatuto das Cidades e Estatuto do índio, de modo a garantir a construção de cidades mais justas e a preservação de culturas tão distintas. BIBLIOGRAFIA BASSUL, José Roberto. Estatuto da Cidade. Quem ganhou? Quem perdeu?, Brasília: Senado Federal, Subsecretária de Edições Técnicas, 2005. BERCOVICI, Gilberto, Constituição Econômica e desenvolvimento. Uma leitura a partir da Constituição de 1988, São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2005. FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio, A demarcação de terras indígenas e seu fundamento constitucional, in Direito Constitucional. Liberdade de fumar, Privacidade, Estado, Direitos Humanos e outros Temas, Editora Manole. SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do plano diretor. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997. ______. Plano Diretor do Município de São Gabriel da Cachoeira. Aspectos relevantes da Leitura Jurídica, in Direito Urbanístico. Vias Jurídicas das Políticas urbanas, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2007. SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro, 4 edição, São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2006. SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais, in Adilson Dallari e Sérgio Ferraz (coord.), O Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001, 2. ed., São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2006.
Proposta de Compensação Fiscal para Assentamento de Populações Carentes de Manaus/AM MIGUEL ANGELO FEITOSA MELO, SIMONE MINELLI DE LIMA TEXEIRA Alunos do Programa de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
RESUMO: É dever-poder dos Municípios promoverem políticas de desenvolvimento urbano, destinadas à realização das funções sociais da cidade e ao bem-estar de seus habitantes (art. 182, caput, CF). Entende-se ser a tributação, com finalidades extra fiscais, um dos instrumentos idôneos para a consecução desses objetivos. O exercício de atividades produtivas, no meio urbano, embora benéfico do ponto de vista estritamente econômico, gera externalidades negativas, como a formação de favelas, a ocorrência de invasões de áreas de proteção ambiental, trânsito congestionado etc. Não obstante, os detentores dos meios de produção não socializam seus ganhos econômicos, que, para serem auferidos, tiveram a colaboração da comunidade. Assim sendo, faz-se oportuna a intervenção do Ente Público Municipal para, servindo-se das competências tributárias que lhe são conferidas pela Constituição Federal, buscar induzir (indução positiva) os grandes agentes produtivos, segundo o modelo de gestão redistributiva, a promoverem projetos de cunho social que ensejem melhoria na qualidade de vida dos habitantes da cidade, oferecendo, como contrapartida a essas ações, isenções ou reduções de impostos, taxas e contribuições de melhoria municipais. Respeitados os princípios constitucionais tributários, reputa-se viável a instrumentalização de tributos para a efetivação de políticas de desenvolvimento urbano. Ademais, dar-se-ia aplicabilidade aos princípios jurídicos ambientais da prevenção, do poluidor/usuário-pagador, da cooperação, do desenvolvimento sustentável, dentre outros. Sob esta visão, é que se propõe, para o Município de Manaus-AM, detentor de inúmeros problemas de ordem urbanística, a instrumentação dos seus tributos para que a iniciativa privada seja incitada a viabilizar projetos de assentamento de populações carentes residentes em favelas e áreas de proteção ambiental, localizadas na Cidade. PALAVRAS-CHAVE: Municípios; Ocupações Irregulares; Política Urbana; Tributação Extra-Fiscal; Assentamentos; Princípios Ambientais e Tributários.
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Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008 SUMÁRIO: Introdução. 1. O crescimento urbano e a formação de favelas e ocupações irregulares; 2. O capítulo II (arts. 182 e 183), do Título VII, da Constituição Federal/88 e o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001); 3. A tributação extra-fiscal como instrumento de política urbana; 4. As “invasões” e demais ocupações irregulares na Cidade de Manaus-AM; 5. Proposta de compensação fiscal para assentamento de populações carentes de Manaus-AM. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO O presente artigo busca avaliar a possibilidade jurídica de se implementar políticas de crescimento urbano, utilizando-se de instrumentos tributários. Após se defender a viabilidade jurídica de programas dessa ordem, sendo expostas, ao mesmo tempo, as condições para a sua efetivação, tendo em vista, principalmente, as limitações constitucionais ao poder de tributar, representadas pelos princípios constitucionais tributários, aborda-se no texto o problema das favelas, invasões e demais ocupações irregulares na área urbana do Município de Manaus, para o que é suscitada e defendida proposta de compensação fiscal para assentamento de populações carentes de Manaus-AM. 1. O CRESCIMENTO URBANO E A FORMAÇÃO DE FAVELAS E OCUPAÇÕES IRREGULARES Sabe-se que, hodiernamente, são os centros urbanos o local em que se desenvolve a maior parte das atividades produtivas no Brasil. Essa realidade veio se construindo nos últimos quarenta anos e modificou a distribuição populacional brasileira, que, até a década de 1960, era fortemente concentrada no meio rural, conforme tabela abaixo: 1960
2000
População urbana
45%
80%
População rural
55%
30%
Fonte: IBGE, 2000.
Tal metamorfose que ensejou a concentração da população no meio urbano foi decorrente do crescimento dos setores secundário e terciário da economia brasileira, sentido a partir do início da década de 1970.
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Efetivamente, na medida em que as indústrias e o comércio brasileiros passaram a ter capacidade de produção expressiva, a oferta de mão de obra nos grandes centros foi majorada, o que fez com que grandes contingentes de pessoas que viviam nas zonas rurais se deslocassem para as Cidades grandes, em busca do emprego com carteira assinada, de melhores condições educação e saúde para a família, da previdência etc. Foi nesse contexto, portanto, que se formaram os principais centros urbanos brasileiros: pessoas da zona rural que emigraram para as Cidades, cuja indústria e serviços precisavam de mão-de-obra para se desenvolver. Ocorre que ao grande contingente populacional que se concentrou nas Cidades não foram oferecidas, ao longo do tempo, condições adequadas de infra-estrutura urbana, de acesso à terra urbana, à moradia (art. 6º, da Constituição Federal/88 – CF/ 88), ao transporte e a outras necessidades básicas. Ao invés disso, o operariado desses centros viu campear a poluição do ar, a degradação dos rios, o congestionamento do trânsito, a diminuição dos espaços de lazer, o aumento da criminalidade e a impossibilidade de acesso a um terreno urbano onde pudesse construir sua moradia, rodeada de serviços urbanos essenciais à qualidade de vida de sua família. Tal massa de trabalhadores, alijada das condições referidas, em especial do acesso à terra urbana, supervalorizada e especulada nas “áreas legais” da Cidade, estabeleceu-se muitas vezes em “invasões”, como áreas de proteção ambiental, onde cresceram favelas cujas condições, sob o ponto de vista urbanístico, é despiciendo delinear. 2. O CAPÍTULO II (ARTS. 182 E 183), DO TÍTULO VII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL/88 E O ESTATUTO DA CIDADE (LEI 10.257/2001) Atento a essa situação, o legislador constituinte reservou o capítulo II (arts. 182 e 183), do Título VII, da CF/88, à política urbana brasileira, prevendo, logo no caput do art. 182, caber aos Municípios promoverem políticas de desenvolvimento urbano, destinadas à realização das funções sociais da cidade e ao bem-estar de seus habitantes. Destarte, o Município é identificado como o ente federativo responsável pela promoção da política urbana, a qual deve ser estabelecida de forma a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, a garantir o bem estar de seus habitantes e a assegurar à propriedade urbana o cumprimento de sua função social. A legislação que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal é o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), que representa um importante passo para a concreção das citadas normas constitucionais, na busca de cidades comprometidas
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com a inclusão social, na medida em que reforça a supremacia do interesse coletivo sobre o individual. Com vistas ao cumprimento dos objetivos de desenvolvimento urbano (art. 182 da CF), o mencionado Estatuto prevê vários instrumentos de política urbana: parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; o direito de superfície e o direito de preempção; e a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso, bem como a transferência de potencial construtivo, concessão de uso especial para fins de moradia, concessão de uso especial coletiva para fins de moradia, usucapião urbana (individual ou coletiva). Além desses meios, o Estatuto da Cidade previu expressamente, em seu art. 4º, IV, a utilização de instrumentos tributários para a consecução de políticas de desenvolvimento urbano qualitativo. É exatamente acerca de tais instrumentos que o presente trabalho busca discorrer, de maneira a expor que são meios idôneos e legítimos, social e juridicamente, para se implementar políticas de melhoria do espaço urbano. 3. A TRIBUTAÇÃO EXTRA-FISCAL COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA URBANA Consoante descrito acima, a grande população dos principais centros urbanos e as consequências daí decorrentes, como favelas, poluição, grandes congestionamentos no trânsito de veículos, têm sua origem nas atividades das indústrias e demais empreendimentos situados na Cidade que demandam grandemente a mão-de-obra de operários. Em virtude do trabalho desses operários, a atividade econômica, de um modo geral, cresceu nas últimas décadas, gerando, para os agentes produtivos detentores do capital, grandes lucros e novos investimentos na escala de produção, ensejando riquezas que se majoraram geometricamente. Não obstante, os trabalhadores que, com seu labor, participam desse processo não tiveram e não têm acesso a esses ganhos econômicos, tampouco usufruíram de melhorias sociais, no que diz respeito a sua qualidade de vida, tendo em vista que passaram a viver em favelas, regiões, em regra, de alta criminalidade, de ocupação irregular e desprovida das mínimas condições de infra-estrutura urbana. Percebe-se, portanto, que os ganhos usufruídos pelos detentores do capital são privatizados, e não socializados, embora esses ganhos sejam obtidos de forma socializada, e não individualizada, na medida em que concorrem para ele não somente o capital investido, mas também o suor do referido operariado.
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Os multicitados efeitos da atividade econômica sobre o meio urbano e as populações de baixa renda (as classes média e alta são menos atingidas) são externalidades negativas1 do processo produtivo, as quais, todavia, não são absolvidas pelos detentores do capital, que deixam para a coletividade os efeitos nefastos de sua produção, cuja lucratividade é de todo privatizada. Assim sendo, faz-se necessária a intervenção do Estado no domínio econômico, com o objetivo de as referidas externalidades ser compensadas pelos que as geram e delas extraem riquezas. Nesta senda, a tributação com finalidades extra-fiscais mostra-se como meio eficiente para o Estado intervir na economia, incitando a prática de ações ambientalmente elogiáveis, no que se denomina de indução positiva2, e inibindo os modos de produção que, embora lícitos, são nefastos ao meio ambiente, ensejando uma indução negativa. A indução positiva, para ser alcançada, deve haver, por parte do Estado, um incentivo fiscal, sob a forma de isenção, redução de alíquota ou de base de cálculo, anistia, remissão etc. Efetivamente, se o ente tributante oferta ao agente produtor incentivos dessa ordem, em troca de ações em prol do meio-ambiente (no presente caso, urbano), decerto, atingirá a sua finalidade, tendo em vista o alto custo representado pelos tributos no orçamento da empresa, além do marketing que essa empresa poderá promover em virtude uma ação de interesse coletivo. Por outro lado, a indução negativa opera-se com a exasperação (aumento da alíquota ou da base de cálculo) da carga tributária sobre processos produtivos que não sejam recomendáveis do ponto de vista ambiental, embora não sejam considerados ilegais. Nessa hipótese, percebendo o produtor o aumento no custo de produção, no preço final do produto e, quiçá, uma diminuição das vendas, será compelido a abandonar os meios de produção indesejáveis para o bem da coletividade. Não é por outra razão que a agenda 21, na seção IV – Meios de Implementação (Capítulo 33 – recursos e mecanismos de financiamento) recomenda, dentre outros, o uso de incentivos e mecanismos econômicos e fiscais (item 33.16, letra “b”) como forma de promoção do desenvolvimento sustentável e de melhoria da qualidade de vida dos assentamentos urbanos. Também nesta vereda, o Estatuto da Cidade, ao regulamentar os arts. 182 e 183 da CF/88, no tocante à política de desenvolvimento urbano, não só conferiu aos 1
AMARAL, Paulo Henrique do. Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
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GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
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Municípios autonomia para definir a função social da propriedade urbana, como ressaltou a utilização de outros instrumentos legais motivadores do cumprimento dessa função social, dentre os quais os de natureza tributária (art. 4º, IV, da Lei 10.257/ 2001). Toshio Mukai3, em sua obra Direito Urbano-Ambiental brasileiro, enaltece o papel dos tributos extra-fiscais como regulatórios das atividades individuais dentro da sociedade, por meio do estímulo ou desestímulo de certas condutas, no interesse da coletividade, “[...] através das figuras das isenções tributárias, das reduções, das suspensões, ou mesmo, da tributação progressiva”. Nesse sentido, faz-se mister enaltecer os mecanismos previstos no Estatuto da Cidade, com vistas à tributação extra-fiscal: a) o art. 2, X, prevê “a adequação dos instrumentos de política, econômica e financeira [...] aos objetivos do desenvolvimento urbano”; b) o art. 4º preconiza a utilização do IPTU para a promoção do desenvolvimento urbano em benefício do interesse coletivo, indicando para tanto, no seu inciso IV, “instrumentos tributários e financeiros: a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU; b) contribuição de melhoria; c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros”. c) o art. T prevê a aplicação da progressividade do IPTU, no caso de descumprimento dos prazos fixados para edificação e utilização dos imóveis; d) o art. 47 estabelece que “os tributos sobre imóveis urbanos, assim como as tarifas relativas a serviços públicos urbanos, serão diferenciados em função do interesse social”;
Resta evidente, portanto, a possibilidade de utilização, pelos Municípios, de seus tributos para a promoção de políticas de desenvolvimento urbano. Prova disso é que o Supremo Tribunal Federal (STF)4 tem destacado o caráter extra-fiscal dos tributos para o cumprimento da função social da propriedade. Ressalte-se que o objetivo arrecadatório continuará a existir, mas ao tributo poderá ser adicionado o viés social direcionado a melhorias da qualidade de vida nas Cidades. Eis, portanto, a nobre finalidade extra-fiscal a que os tributos dos Municípios podem se prestar.
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MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002, p. 82.
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EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IPTU. PROGRESSIVIDADE EXTRAFISCAL. ARTIGO 182, § 4º, II, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A cobrança do IPTU progressivo para fins extrafiscais, hipótese prevista no artigo 182, § 4º, inciso II, da CB/88, somente se tornou possível a partir da edição da Lei n. 10.257/01 [Estatuto da Cidade]. Agravo regimental a que se nega provimento. REAgR 338589-ES, Min. EROS GRAU, Julgamento: 24/06/2008, Órgão Julgador: Segunda Turma.
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Expostos, de forma breve, os fundamentos da tributação com vistas à promoção de políticas de desenvolvimento urbano, traz-se à baila o problema de acesso à terra urbana e à moradia digna na Cidade de Manaus-AM. 4. AS “INVASÕES” E DEMAIS OCUPAÇÕES IRREGULARES NA CIDADE DE MANAUS-AM: NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL DE MORADIA (ART. 6º, DA CF/88) Esta urbe, por ser o principal centro industrial da Região Norte do país, atraiu para si pessoas provenientes de diversos Municípios da Amazônia, ou de outras regiões do Brasil, com expectativa de ter acesso ao trabalho e a outras condições que um centro econômico pode oferecer. Como resultado desse processo, Manaus, que, em 1970, possuía 300 mil habitantes, passou a ter, no ano de 2000, população de 1,5 milhões de pessoas5. Sucede que o Poder Público Municipal, embora tenha participado e incrementado apoio político para a criação (Decreto nº 288/1967) e a prorrogação (art. 40 da CF/88) da Zona Franca de Manaus, não preparou a Cidade com condições ideais para servir de palco para um relevante parque industrial e para uma grande massa de operários atraídos por oportunidades de trabalho oferecidas direta ou indiretamente pelo Pólo Industrial de Manaus-AM. Assim sendo, o que se viu em Manaus foi o surgimento de habitações precárias e irregulares em diversas partes da Cidade, o que ensejou seu atual déficit habitacional de 67%, segundo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Estado do Amazonas (CREA-AM). Ou seja, de cada 100 manauaras, 67 não possuem moradia ou a possuem sem condições adequadas de habitabilidade. Muitas dessas moradias irregulares estão concentradas em terras do patrimônio público federal, estadual ou municipal, em áreas de proteção ambiental, como os igarapés que cortam a Cidade, formando as várias invasões que existem na capital Amazonense. As invasões, é cediço, não oferecem aos seus ocupantes as mínimas condições de saneamento básico, segurança, educação, lazer, que o espaço público deve ofertar a sua população. São locais de ocupação irregular, áreas “fora da lei”, onde o Poder Público é ate mesmo impedido, por restrições legais, de promover investimentos em infra-estrutura urbana. Resta, portanto, aos Municípios realizar e executar projetos de assentamento de famílias de baixa renda, residentes nas citadas áreas. Tais famílias necessitam que 5
Fonte: Censo IBGE 1970/2000.
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o Poder Público e, em especial, o Município, desincumba-se do seu dever constitucional, e lhes efetive o direito à moradia (art. 6º da CF/88). Todavia, esse direito, de caráter fundamental, não se exaure na obtenção de uma construção com chão e teto, mas requer uma residência com cômodos adequados e todas as demais condições de habitabilidade, somadas à disponibilização de serviços e equipamentos urbanos, como escolas, unidades públicas de saúde, transportes, área de lazer, ensejando para o munícipe dignas condições de moradia e oportunidades de inclusão social. Ocorre que esses projetos, muitas vezes não são implementados com a devida eficiência pelos Municípios, não sendo raro o registro de desvio de dinheiro público e de obras de habitação popular inacabadas. 5. PROPOSTA DE COMPENSAÇÃO FISCAL PARA ASSENTAMENTO DE POPULAÇÕES CARENTES DE MANAUS-AM Nesse diapasão, mostra-se interessante a indução (positiva), por parte do Município, por meio dos instrumentos tributários, num modelo de gestão redistributiva, para que a iniciativa privada custeie e execute empreendimentos sociais dessa natureza, com o escopo de obter tratamento tributário privilegiado. Os impostos (IPTU, ISS e ITBI), as taxas e as contribuições de melhoria da competência tributária dos Municípios podem ser instrumentalizados para a consecução da proposta ora sugerida. Os impostos, pela ausência de retributividade e pelo alto custo que representa para o setor produtivo, são a espécie tributária mais apropriada para a tributação ambiental-urbana, podendo ser utilizado para gerar a já citada indução positiva, por meio da concessão de isenções ou reduções de alíquotas ou bases de cálculo. As isenções ou reduções nos valores das taxas e contribuições de melhoria também têm aptidão para induzir positivamente os detentores do capital à realização dos citados projetos de cunho social. Ademais, cabe notar que proposta dessa natureza, além de encontrar respaldo nos Estatutos jurídicos já referidos, fundamenta-se também na aplicabilidade dos princípios jurídicos ambientais da prevenção, do poluidor/usuário-pagador, da cooperação, do desenvolvimento sustentável, dentre outros. Não obstante, é necessário alertar que o estabelecimento de política urbana com tributação extra-fiscal deverá se submeter aos princípios constitucionais tributários, previstos no Título VI da CF/88, sob o título da tributação e do orçamento.
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Nesse sentido, a concessão de incentivos fiscais, conforme acima tratado, deve necessariamente se submeter ao princípio da legalidade (art. 150, I, § 6º, da CF, combinado com o art. 97, VI, do Código Tributário Nacional – CTN). Além disso, a Lei que concede o benefício fiscal, sob qualquer de suas formas, necessariamente terá que ser específica, ou seja, deverá regular exclusivamente o incentivo fiscal concedido ou o correspondente tributo que esteja sendo objeto da concessão do privilégio tributário, nos termos do § 6º, do art. 150, da CF, in verbis: § 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3. de 1993).
Essa norma visa a evitar que incentivos fiscais sejam previstos no bojo de projetos de leis referentes a assuntos de natureza distinta e acabem por passar despercebidos pelos parlamentares e pela sociedade brasileiros. Trata-se de exigência salutar, na medida em que tenta buscar o debate e participação de toda a coletividade na criação de um incentivo fiscal, o que vai ao encontro do Estatuto da Cidade, que prevê a gestão democrática das Cidades, “[...] por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano” (art. 2º, II, do Estatuto da Cidade). Outrossim, deverá ser observado o primado da vedação da concessão de isenções heterônomas (art. 150, § 6º, e art. 151, III, da CF/88), que veda que os entes tributantes concedam benefícios fiscais relativos a tributos da competência de outro ente federado. Ou seja, não poderá o Município de Manaus-AM deferir benefícios tributários referentes a tributos da competência dos Municípios que lhe são vizinhos, ainda que os assentamentos a ser realizados se localizem em áreas pertencentes ao território das Cidades contíguas à capital Amazonense. CONCLUSÃO Verifica-se, portanto, que, com a CF/88 e o Estatuto da Cidade, os Municípios passaram a dispor de instrumentos capazes de promover políticas públicas proficientes, ensejadoras de melhorias no meio ambiente urbano e na qualidade de vida dos habitantes das Cidades, bem como de inclusão social de populações marginalizadas. Dentre os instrumentos disponibilizados pelos citados repositórios, a tributação com finalidades extra-fiscais apresenta-se como meio idôneo e legítimo para a implementação de políticas de crescimento urbano.
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Idôneo, porque, na medida em que se intervém no domínio econômico aumentando ou diminuindo a carga tributária das atividades produtivas, as empresas são induzidas a perseguir os objetivos almejados pela Política Pública, pois, inexoravelmente, desejam fugir dos cautos da tributação. Entende-se que uma medida de governo, para ser eficiente em sua atuação junto aos agentes econômicos, deve utilizar instrumentos que gerem reflexos econômicos. É preciso “jogar com a mesma moeda”. Não é conveniente esperar da iniciativa uma conscientização social que, quiçá, nunca venha, salvo poucas exceções. E legítimo porque impõe aos agentes produtivos a absorção de parte das externalidades negativas que seus empreendimentos geram em prejuízo do meio urbano e das pessoas que nele vivem, além de ser uma forma de redistribuição de riquezas. Ademais, dar-se-ia aplicabilidade aos princípios jurídicos ambientais da prevenção, do poluidor/usuário-pagador, da cooperação, do desenvolvimento sustentável, dentre outros. Em vista do exposto, considerando a realidade social e econômica da Cidade de Manaus, entende-se ser pertinente, tanto sob a ótica social quanto jurídica, a proposta de compensação fiscal para assentamento de populações carentes dessa Cidade, a qual, não obstante, teria que obedecer todas as limitações constitucionais ao poder de tributar, conforme visto. REFERÊNCIAS AMARAL, Paulo Henrique do. Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. ANTUNES, Paulo de Bessa. Curso de Direito Ambiental. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. II. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. IBGE – Censo Demográfico. Características da população e dos domicílios. Rio de Janeiro, 2000. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros. 1998. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. MOTTA, Ronaldo Seroa da, OLIVEIRA, José Marcos Domingues de, MARGULIS, Sérgio. Proposta de Tributação Ambiental na Atual Reforma Tributária. IPEA: Rio de Janeiro, 2000. MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002. OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito Tributário e Meio Ambiente. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
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