MARIA CRISTINA VILLEFORT TEIXEIRA
ESPAÇO PROJETADO E ESPAÇO VIVIDO NA HABITAÇÃO SOCIAL:
os conjuntos Goiânia e Araguaia em Belo Horizonte
Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós -Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidad e Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Orientador: Profa. Dra. Tamara Tânia Cohen Egler Doutora em Ciências Sociais/USP
Rio de Janeiro 2004
MARIA CRISTINA VILLEFORT TEIXEIRA
ESPAÇO PROJETADO E ESPAÇO VIVIDO NA HABITAÇÃO SOCIAL : OS CONJUNTOS GOIÂNIA E ARAGUAIA EM BELO HORIZONTE /MG.
Tese apresentada ao corpo docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional.
___________________________________________ Profa. Dra. Ana Clara Torres Ribeiro
___________________________________________ Profa. Dra. Beatriz Alencar d’Araújo Couto
___________________________________________ Profa. Dra. Maria Cristina da Silva Leme
___________________________________________ Prof. Dr. Rainer Randolph
___________________________________________ Prof. Dra. Tamara Tânia Cohen Egler (orientadora)
A todos os que buscam uma cidade melhor, em especial o Professor RadamĂŠs Teixeira da Silva, meu mestre, meu pai.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todos que contribuíram, nas várias instâncias, para o desenvolvimento desta Tese. À CAPES, pelo apoio institucional através do programa PICDT/UFMG. Infelizmente, esse órgão vem reduzindo a abrangência dos seus programas de fomento à pesquisa e à qualificação de docentes, deixando de beneficiar muitos professores em processo de formação. Aos funcionários da URBEL e da Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, que se prontificaram a fornecer os dados para o andamento deste trabalho. À Professora Tamara Egler, que além de orientadora – firme no propósito de verificar o conteúdo e a evolução do trabalho – tornou-se parceira de uma sólida amizade. À Beatriz Couto e à Jupira Gomes de Mendonça, que me conduziram pela mão a caminho do IPPUR. Aos professores do IPPUR, pela oportunidade de aprendizado de novas áreas no meio urbano, que tanto contribuíram para o conhecimento, especialmente à Professora Ana Clara Torres Ribeiro, que me mostrou a arte de ensinar com sabedoria. À Ana Lúcia e à Maria Luíza (IPPUR/UFRJ) e a Vânia, Moema, Juliana, Lúcia, Neusa, Marco Antônio e Vantuil (Arquitetura/UFMG), pela prontidão em disponibilizar o material bibliográfico que subsidiou esta Tese. À Beatriz Marinho, pelo incansável trabalho de organização e diagramação desta Tese. À D. Amélia Martino, minha mãe nesta Cidade Maravilhosa, que me acolheu com o maior carinho.
Às amigas Carmen Silveira, Maria das Graças Ferreira e Mônica Meyer, que seguiram comigo ativamente o percurso dasvigilantes da tese. Ao André Perocco que, mesmo distante, sempre me apoiou com conselhos e m anifestações que me ajudaram a levar em frente este trabalho. Aos moradores dos conjuntos Goiânia e Araguaia e dos bairros Alvorada e Araguaia, que, através das suas vivências, me deram oportunidade de aprender e de conhecer os fenômenos que poderão melhorar as suas condições de vida e de muitos outros que vivem em situações semelhantes. Ao Aloysio Bello, amigo e companheiro, que suportou trancos e barrancos nesta jornada. Ao meu pai, pela oportunidade de discussão sobre os assuntos urbanos e pelo apoio fundamental para que eu terminasse este trabalho. Finalmente, agradeço aos meus filhos Branca, Cássia e Alexandre, que me apoiaram e incentivaram, na alegria e na aflição, pela compreensão da minha ausência, quando poderíamos nos curtir nos momentos livres. À Branca, minha filha arquiteta, um obrigado especial pela força na execução das tabelas e das plantas das casinhas dos conjuntos.
E a casa, sem o homem para habitá-la, não passa de paredes, telhados, janelas e portas sem forma, sem propósito e sem vida. A luz invade o espaço, mas não ilumina o homem. As casas abrigam estórias, mas cabe ao homem escrevê -las como lhe convém.
Daniel Gomes de Faria
RESUMO
Os projetos dos conjuntos habitacionais destinados à população de baixa renda se limitavam a oferecer mora dias, sem considerar as características sociais, culturais e econômicas dos moradores e suas respectivas relações com o meio urbano. Em conseqüência, as apropriações não atendiam integralmente as necessidades dos usuários. Essa situação se retrata nos exemplos dos conjuntos Goiânia e Araguaia, implantados pela Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – URBEL –, em meados dos anos 90 que, embora construídos em período posterior à nova legislação, ainda apresentavam essas características. A nova legislação instituiu a municipalização, considerando aspectos locais, impondo a participação das comunidades nas soluções, tornando-as específicas. O caminho das soluções se amplia com a imposição da sua gestão, que só se completa com a regularização fundiária. Essas mudanças demandam procedimentos que devem orientar novos processos da produção da habitação social a serem retratados, inclusive, nos projetos. Dentro da multidisciplinaridade e paridade dos conteúdos específicos que visam a atender os usuários, cabe, na presente tese, avaliar a importância de um deles, o projeto físico, que trata da ordenação espacial do lugar e da arquitetura da moradia, à vista dessa nova legislação. Os aspectos significativos que definem essa importância foram tratados sob dois cuidados: a constante atenção aos usuários e a relação com os demais fatores envolvidos na produção da habitação social.
ABSTRACT
Residence settlement projects aimed to low wage families just offered residences, without considering the inhabitants, the social, cultural and economic characteristics and their respective relation with the urban environment. As a consequence, the appropriations did not fully comply with the user’s needs. This situation can be spotted in the examples of Goiânia and Araguaia settlements, inserted by Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – URBEL –, in mid 90’s, and which although inserted in a period after the new legislation still presented these characteristics. The new legislation established the municipalization, considering local as pects, imposing the communities’ participation in the solutions, turning them into specific solutions. The solution’s path was getting extended with the imposition of its administration, which only gets completed with the soil regularization. These changes demand procedures that should guide new social residence production processes, to be shown, including, in the projects. Inside the multidisciplinary and pairing of the specific content which aims to attend the users, it is a purpose of the present work to evaluate the importance of one of them, the physical project, which deals with the site’s space organization and the residence’s architecture, under the light of this new legislation. The significant aspects that define this importance were dealt with two concerns: the constant attention to the users and the relation with other factors involved in the production of social residence.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1
Localização dos conjuntos habitacionais Goiânia e Araguaia no município de Belo Horizonte ........................................................................19
FIGURA 2
Localização do conjunto Goiânia no município de Belo Horizonte ........49
FIGURA 3
Situação do conjunto Goiânia em relação aos bairros adjacentes ........50
FIGURA 4
Planta do conjunto Goiânia ..........................................................................51
FIGURA 5
Plantas originais da casa do conjunto Goiânia - 1ª e 2ª fases ...............52
FIGURA 6
Situação do conjunto Goiânia em relação ao bairro Alvorada ...............53
FIGURA 7
Mapa do conjunto Goiânia e equipamentos do entorno..........................54
FIGURA 8
Localização do conjunto Araguaia no município de Belo Horizonte......55
FIGURA 9
Vista das ruas internas do conjunto Araguaia ...........................................56
FIGURA 10 Situação do conjunto Araguaia em relação ao bairro Araguaia .............56 FIGURA 11 Planta do conjunto Araguaia ........................................................................57 FIGURA 12 Plantas originais da casa do conjunto Araguaia - 1ª e 2ª fases.............58 FIGURA 13 Situação do conjunto Araguaia em relação aos bairros adjacentes......59 FIGURA 14 Mapa do conjunto Araguaia e equipamentos do entorno........................60 FIGURA 15 Vista parcial do conjunto Goiânia ................................................................64 FIGURA 16 Vista parcial do conjunto Araguaia..............................................................64 FIGURA 17 Vista das casas em frente ao conjunto Goiânia ........................................68 FIGURA 18 Vista dos lotes sem muros na época da implantação..............................69 FIGURA 19 Vista dos lotes com muros em 2003...........................................................69 FIGURA 20 Foto da construção por etapas de casa do conjunto Goiânia, mostrando situação na época da implantação..........................................70 FIGURA 21 Foto da construção por etapas de casa do conjunto Goiânia, mostrando situação em 2003.......................................................................70 FIGURA 22 Plantas modificadas das casas 1 e 2 do conjunto Goiânia.....................72 FIGURA 23 Planta modificada da casa 3 do conjunto Goiânia ...................................73
FIGURA 24 Planta modificada da casa 4 do conjunto Goiânia ...................................73 FIGURA 25 Planta modificada da casa 5 do conjunto Goiânia ...................................74 FIGURA 26 Plantas modificadas das casas 6 e 7 do conjunto Araguaia ..................74 FIGURA 27 Planta modificada da casa 8 do conjunto Araguaia .................................75 FIGURA 28 Vista das fachadas posteriores das casas, que se voltaram para as ruas principais ...........................................................................................76 FIGURA 29 Plantas modificadas das casas 9 e 12 do conjunto Araguaia ................77 FIGURA 30 Planta modificada da casa 10 do conjunto Araguaia ...............................77 FIGURA 31 Planta modificada da casa 11 do conjunto Araguaia ...............................78 FIGURA 32 Projeto do conjunto Goiânia idealizado pela arquiteta Ana Schmidt.....78 FIGURA 33 Vista do conjunto Goiânia na realidade......................................................79 FIGURA 34 Vista do ferro -velho do conjunto Goiânia .................................................142 FIGURA 35 Vista de espaço invadido no conjunto Goiânia .......................................142 FIGURA 36 Vista da Igreja Santa Mônica .....................................................................152 FIGURA 37 Vista da rua interna do conjunto Goiânia, em 1998 (esquerda) e em 2003 (direita) ..........................................................................................156 FIGURA 38 Vista da pracinha do rotor...........................................................................156 FIGURA 39 Vista da praça da Febem............................................................................158 FIGURA 40 Vista da praça do Minério ...........................................................................159 FIGURA 41 Vista do Cristo Redentor, de onde se vislumbra toda a região ............159 FIGURA 42 Vista das casas em frente ao conjunto Goiânia ......................................161 FIGURA 43 Indicação dos percentuais de consumidores em supermercados, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................176 FIGURA 44 Indicação dos percentuais de consumidores em padaria, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................177 FIGURA 45 Indicação dos percentuais de consumidores em sacolão, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................178 FIGURA 46 Indicação dos percentuais de consumidores em farmácia, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................179
FIGURA 4 7 Indicação dos percentuais de freqüentadores de escolas, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................180 FIGURA 48 Indicação dos percentuais de freqüentadores de templos, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................181 FIGURA 49 Indicação dos percentuais de praticantes de atividades de lazer, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada ...........................183 FIGURA 50 Indicação dos percentuais de consumidores em supermercados, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia .........................186 FIGURA 51 Indicação dos percentuais de consumidores em padaria, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia .........................187 FIGURA 52 Indicação dos percentuais de consumidores em sacolão, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia .........................189 FIGURA 53 Indicação dos percentuais de consumidores em farmácia, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia .........................190 FIGURA 54 Indicação dos percentuais de estudantes, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia ...................................................................191 FIGURA 55 Vista da Igreja Cristo Redentor..................................................................193 FIGURA 56 Indicação dos percentuais de fiéis, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia ...................................................................192 FIGURA 57 Indicação dos percentuais de praticantes de atividades de lazer, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia .........................194 FIGURA 58 Vista da esquina das ruas Amparo da Serra e Coronel Severiano no bairro Araguaia .......................................................................................218
LISTA DE TABELAS
TABELA 1
Problemas encontrados nas casas dos conjuntos Goiânia e Araguaia ..........................................................................................................65
TABELA 2
Discriminação dos problemas encontrados nas casas dos conjuntos.........................................................................................................65
TABELA 3
Modificações feitas nas casas dos conjuntos ...........................................68
TABELA 4
Modificações que os moradores gostariam de fazer nas casas dos conjuntos.........................................................................................................80
TABELA 5
Tempo de moradia dos habitantes nos bairros.......................................114
TABELA 6
Escolaridade dos moradores dos bairros.................................................116
TABELA 7
Renda familiar dos moradores dos bairros ..............................................117
TABELA 8
Ocupação dos moradores dos bairros .....................................................118
TABELA 9
Responsável pela renda familiar dos moradores dos bairros ..............118
TABELA 10 Faixa etária dos moradores dos conjuntos ..............................................120 TABELA 11 Escolaridade dos moradores dos conjuntos............................................120 TABELA 12 Renda familiar dos moradores dos conjuntos .........................................121 TABELA 13 Ocupação dos moradores dos conjuntos .................................................122 TABELA 14 Responsável pela renda familiar dos moradores dos conjuntos..........122 TABELA 15 Condições das casas anteriores dos moradores dos conjuntos (em %) ...........................................................................................................123 TABELA 16 Número de habitantes por moradia nos conjuntos.................................128 TABELA 17 Influências da implantação dos conjuntos segundo os moradores dos bairros.....................................................................................................133 TABELA 18 Fatores de melhoria da qualidade de vida dos moradores dos conjuntos.......................................................................................................135 TABELA 19 Fatores positivos dos conjuntos considerados por seus moradores...137 TABELA 20 Fatores negativos dos conjuntos considerados por seus moradores .....................................................................................................139 TABELA 21 Pontos de referência nos bairros segundo seus moradores ................152
TABELA 22 Pontos de referência nos bairros segundo os moradores dos conjuntos.......................................................................................................155 TABELA 23 Mudanças positivas ocorridas nos bairros segundo seus moradores .....................................................................................................163 TABELA 24 Mudanças negativas ocorridas nos bairros segundo seus moradores .....................................................................................................164 TABELA 25 Onde os moradores dos conjuntos se encontram..................................168 TABELA 26 Onde os moradores dos bairros se encontram.......................................171 TABELA 27 Deslocamento dos moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada .........................................................................................................174 TABELA 28 Deslocamento dos moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia ........................................................................................................185 TABELA 29 Relacionamento entre moradores dos conjuntos...................................207 TABELA 30 O que significa morar próximo a um conjunto habitacional ..................214 TABELA 31 Relacionamento entre moradores dos bairros e dos conjuntos...........220 TABELA 32 Relacionamento entre moradores dos conjuntos e dos bairros...........221 TABELA 33 Futuro dos conjuntos segundo seus moradores.....................................226
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1 Número de habitantes por moradia no bairro Araguaia ........................115 GRÁFICO 2 Número de habitantes por moradia no bairro Alvorada .........................116 GRÁFICO 3 Representação gráfica da propriedade dos imóveis do conjunto Goiânia...........................................................................................................126 GRÁFICO 4 Representação gráfica da propriedade dos imóveis do conjunto Araguaia ........................................................................................................127 GRÁFICO 5 Valores positivos e negativos das mudanças dos bairros indicados por seus moradores .....................................................................................165 GRÁFICO 6 Perspectiva futura dos bairros segundo seus moradores .....................223 GRÁFICO 7 Perspectiva futura dos bairros segundo moradores dos conjuntos.....224
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABC
Abastecimento a Baixo Custo
BHTrans
Empresa de Transporte de Trânsito de Belo Horizonte
BNH
Banco Nacional da Habitação
CEMIG
Companhia Energética de Minas Gerais
CIAMs
Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna
COHAB
Companhia da Habitação
COMAM
Comissão Municipal de Meio Ambiente
COPASA
Companhia de Saneamento de Minas Gerais
FCP
Fundação da Casa Popular
FEBEM
Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor
FGTS
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
IAP
Instituto de Aposentadoria e Pensões
IAPB
Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários
IAPC
Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários
IAPE
Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Economiários
IAPI
Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários
IAPM
Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos
IAPTEC
Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas
LUOS
Lei de Uso e Ocupação do Solo
OCB
Organização Comunitária de Base
ONG
Organização não-Governamental
OPH
Orçamento Participativo da Habitação
PAE
Plano de Atendimento Emergencial
PMBH
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte
PROAP
Programa de Habitação Popular
PRODABEL
Processamento de Dados do Município de Belo Horizonte
RIMA
Relatório de Impacto Ambiental
SERFHAU
Serviço Federal da Habitação e do Urbanismo
SFH
Sistema Financeiro da Habitação
URBEL
Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte
ZEIS
Zona Especial de Interesse Social
SUMÁRIO 1
INTRODUÇÃO .......................................................................................................19
2
A ARQUITETURA DA CAS A.............................................................................31
2.1
A arquitetura da URBEL ....................................................................................45
2.1.1
Os projetos dos conjuntos Goiânia e Araguaia................................................. 47
2.1.1.1 2.1.1.2
O projeto do conjunto Goiânia....................................................................................................................49 O projeto do conjunto Araguaia .................................................................................................................54
2.2
A arquitetura do morador .................................................................................61
2.2.1
O projeto do morador............................................................................................ 67
3
A MUNICIPALIZAÇÃO DA POLÍTICA HABITACIONAL ..............................83
3.1
A política da URBEL...........................................................................................88
3.2
A ação da URBEL................................................................................................91
3.3
Antecedentes históricos da política da municipalização ........................96
3.3.1
O direito à moradia ..............................................................................................105
4
A IDENTIDADE COM O LUGAR .....................................................................112
4.1
A origem dos moradores................................................................................113
4.1.1 4.1.2
Os estabelecidos : moradores dos bairros Alvorada e Araguaia...................113 Os outsiders : moradores dos conjuntos Goiânia e Araguaia........................119
4.1.2.1 4.1.2.2 4.1.2.3
O caminho para casa ................................................................................................................................. 123 “Eu não tenho onde morar” ...................................................................................................................... 124 A chegada à casa nova ............................................................................................................................. 125
4.2
As relações afetivas com o lugar .................................................................129
4.2.1
Identidade dos estabelecidos com suas moradias .........................................131
4.2.2
Identidade dos estabelecidos com os conjuntos............................................132
4.2.3
Identidade dos outsiders com suas moradias .................................................135
4.2.4
Identidade dos outsiders com os conjuntos....................................................137
5
A VIDA COTIDIANA E AS PRÁTICAS ESPACIAIS ....................................145
5.1
O cotidiano nas comunidades.......................................................................148
5.1.1
Os pontos de referência......................................................................................149
5.1.1.1 5.1.1.2
Os pontos de referência par a os estabelecidos................................................................................ 151 Os pontos de referência para os outsiders ......................................................................................... 154
5.1.2
As mudanças ocorridas nos bairros .................................................................162
5.2
As práticas espaciais nos conjuntos e nos bairros ................................166
5.2.1
Os encontros nos conjuntos e nos bairros ......................................................168
5.2.1.1
Os encontros dos moradores nos conjuntos...................................................................................... 168
5.2.1.2
Os encontros dos moradores nos bairros ........................................................................................... 170
5.2.2
Os deslocamentos nos conjuntos e nos bairros .............................................172
5.2.2.1
Os deslocamentos no conjunto Goiânia e no bairro Alvorada..................................................... 173
5.2.2.2
Os deslocamentos no conjunto e no bairro Araguaia..................................................................... 184
6
INTOLERÂNCIA ENTRE ESTABELECIDOS E OUTSIDERS ...................196
6.1
As práticas sociais entre grupos no espaço.............................................202
6.1.1
A intolerância entre os pobres...........................................................................204
6.2
As práticas sociais nos conjuntos...............................................................207
6.3
As práticas sociais conjunto -bairro .............................................................211
6.3.1
“Um estranho no ninho”.....................................................................................212
6.3.1.1 6.3.1.2
Relacionamento entre os dois grupos: o olhar dos estabelecidos............................................. 219 Relacionamento entre os dois grupos: o olhar dos outsiders ...................................................... 221
6.4
Olhares sobre o futuro ....................................................................................222
7
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................230
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................237 ANEXO A - Questionários ...............................................................................................242 ANEXO B - Maté rias de jornal........................................................................................248
19
1
INTRODUÇÃO
Este trabalho se propõe examinar a questão da habitação social, no que se refere às relações que se estabelecem entre o projeto da moradia e os modos de vida dos seus habitantes, com ênfase no projeto arquitetônico da casa e no macro urbanístico de infra-estrutura e entorno. O estudo tem por objetivo entender a importância da casa na vida urbana, observando o significado para aqueles que moram nos conjuntos habitacionais e que viveram momentos de luta para conquistar sua moradia. Muito mais do que um espaço feito de tijolo e cimento para abrigar e dar proteção às agressões da natureza e da sociedade, a casa é o lugar onde se realiza a vida, onde se produz a identidade, onde a transformação contínua da existência define e efetiva a ressignificação desses espaços. Para demonstrar empiricamente o que foi dito, é exemplar o trabalho que a Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – URBEL – desenvolveu em Belo Horizonte. Os conjuntos Goiânia e Araguaia, construídos em 1996, retratam bem essa situação. Esses conjuntos foram agregados a bairros consolidados – o Alvorada e o Araguaia, munidos de infra -estrutura, equipamentos urbanos e tendo seus moradores já estabelecido relações de vizinhança entre si.
FIGURA 1
Localização dos conjuntos habitacionais Goiânia e Araguaia no município de Belo Horizonte
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO HORIZONTE, 1996.
20
Nesse sentido, cabe destacar alguns fatos ocorridos no processo de inserção dos conjuntos Goiânia e Araguaia nos bairros Alvorada e Araguaia. Os moradores transferidos para os conjuntos já tinham estabelecido entre si relações de vizinhança durante o período em que, à espera do seu reassentamento, viveram reunidos em acampamentos organizados pela administração municipal. Com a conclusão das obras dos conjuntos habitacionais e a conseqüente instalação dessa população nas novas casas, surgiram divergências entre aqueles mesmos personagens e, em especial, deles com a comunidade já estabelecida nos bairros. Destaque-se que um fato particular despertou nossa atenção: desde a construção dos conjuntos, os antigos residentes dos bairros existentes se manifestaram contra a sua implantação, alegando que havia grande diferença econômica, social e cultural entre a comunidade já instalada e a que chegava. É que os moradores que vinham habitar esses conjuntos eram pobres, oriundos, na maioria, do interior do Estado e, antes de se mudarem para os conjuntos, viviam em condições precárias, pois suas antigas residências, localizadas em áreas de risc o, haviam sido parcial ou totalmente destruídas. Por outro lado, a população original dos referidos bairros se compunha, em grande parte, de famílias de classe média, com um perfil diferenciado do primeiro. Além disso, essas famílias habitavam o local há muito tempo e já haviam estabelecido fortes laços de vizinhança. Conforme noticiário local, ao serem instalados os novos moradores, essa relação entre os dois grupos extrapolou os limites dos respectivos sítios, estendendo-se ao entorno. A coexistência reforçou a diferença entre eles – os moradores dos bairros e os que vieram habitar os conjuntos, chegando até a agravar os conflitos nas suas relações cotidianas. Tal manifestação atingiu consideráveis níveis de intolerância, influenciando o comportamento e as relações sociais entre essas duas comunidades. Assim, pode-se perceber que o projeto para a habitação social sob os parâmetros da política habitacional municipalizada ainda requer cuidados para que os espaços nele propostos atinjam, na sua integridade, os aspectos físicos e soc iais desejados pelos moradores.
21
Na tentativa de interpretação desse fenômeno, recorre-se, nesta tese, às duas categorias de análise propostas por Elias e Scotson (2000, p. 7) – os estabelecidos e os outsiders – em estudo sobre um povoado inglês, em que os autores registram ocorrência de formas distintas de apropriação do espaço por parte dos dois grupos ali residentes. Ressalte -se logo, porém, que naquele estudo os grupos em conflito não apresentavam heterogeneidade social, econômica ou cultural, o que os diferencia
do
caso
dos
conjuntos
e
dos
bairros
–
Goiânia/Alvorada
e
Araguaia/Araguaia – selecionados para o estudo de caso realizado a seguir. Para a devida clareza dos argumentos aqui apresentados, é necessário, pois, explicitar que, no âmbito desta tese: estabelecidos são os moradores dos bairros Alvorada e Araguaia, aí residentes antes de 1996, quando foram construídos nossos dois conjuntos; outsiders são os moradores instalados no Goiânia e no Araguaia, conjuntos incrustados nos citados bairros. Nesse
sentido,
os
grupos
se
caracterizam
por
apresentarem
relações
interdependentes entre os seus membros e por estes membros compartilharem de uma ideologia que absorve um conjunto de valores, crenças e normas que regulam sua conduta mútua. Mesmo assim, o grupo se divide em determinados contextos, mas mantém sua identidade em outros (SILVA, 1987). Este conceito poderá se aplicar ao presente estudo, se considerado o processo de construção dos grupos dos moradores dos conjuntos e dos bairros. Com base nesse referencial, analisa-se, no corpo desta tese: •
como os fatos ocorridos nos conjuntos Goiânia e Araguaia constituem um alerta no sentido de buscar novos parâmetros que conduzam a resultados mais proveitosos na solução de problemas da habitação popular; analisar-se-á, então, como os conjuntos habitacionais, pensados, concebidos e construídos para abrigar uma camada da população que não tem acesso prévio à maioria dos bens produzidos pela cidade, são vivenciados na realidade por seus usuários;
•
como os projetos elaborados pela URBEL vêm associando crescentemente as relações entre a política, o projeto e o espaço vivido pelos seus moradores.
Como é sabido, a política habitacional pós-1988 está construída sobre uma estratégia de ação, cujas linhas gerais se identificam com o direito à cidade
22
sustentável e à propriedade urbana. Essa nova política formou-se lentamente, constituída de um ideário defendido por grupos que preconizavam a reforma urbana, mais condizente com os direitos humanos incluído aí, o direito à moradia. Em virtude desses conceitos, as diretrizes da política habitacional adotada até então, principalmente a do BNH, passaram por reformulações que pudessem humanizar o processo da produção da habitação social. Em Belo Horizonte, também, após a municipalização da política habitacional, a concepção da casa para a população de baixa renda passou a valorizar as questões de ordem local e a participação popular, permitindo, assim, maior interlocução entre os agentes, os atores, os produtores e os moradores da habitação, o que possibilita melhor atendimento das condições da moradia, para aqueles que foram contemplados pela política. Antes desse período, as soluções tentadas para solucionar o problema da habitação social haviam se efetuado com o BNH, distantes dos respectivos pontos de aplicação, centralizadas, sem considerar as diferenças de natureza física e social do território brasileiro. A URBEL, embora constituída sob os novos conceitos da municipalização, na prática, no seu período inicial, não se diferenciou daquela política nacional, cujos resultados se configuraram nos conjuntos Goiânia e Araguaia. A partir da análise desses dois conjuntos, evidenciou-se, ainda, a necessidade de mudança de atitude, imediatamente adotada, já de acordo com a nova legislação, à qual se agrega a regularização fundiária. Entretanto, perduram, nessa fase, os processos de transformação das casas pelos moradores, fato verificado naqueles projetos anteriores de habitação social no país. Acreditava -se que esses projetos
retratavam a padronização das unidades
habitacionais e atendiam às aspirações físicas e sociais de um morador indiferenciado, por considerarem o território nacional e sua população como fatores homogêneos. Dessas alterações, parte -se da hipótese de que os projetos de arquitetura dessas habitações estão descolados dos modos de vida dos moradores. Para que o desenvolvimento das soluções dentro das novas normas seja satisfatório, há necessidade de evitar as causas que levaram a resultados como
23
esse, considerando-se, ainda, que o problema envolve multidisciplinaridade. Devido a isso, tomamos a iniciativa de elaborar uma tese que demonstre a importância do projeto físico adequado, sem perder o reconhecimento de paridade dos aspectos que implicam a solução dos problemas em relação à habitação social. Esse fato nos remete a Carlos Nelson Ferreira dos Santos, quando afirma que [...] os resultados reais da atividade do cientista, do planejador, do administrador, do técnico, do político sobre as cidades começam quando toda essa gente sai de cena. Quando os seus projetos deixam de ser mapas, memoriais, orçamentos, leis, decretos ou planos financeiros e se transformam em uma linguagem física decodificável no dia -a-dia (SANTOS, 1985, p. 7).
É fato que a maneira como cada grupo se apropria da habitação, do conjunto e do bairro representa a vivência desses indivíduos no espaço. A casa sempre representou a relação inicial e instintiva que o ser humano estabelece com o abrigo e a proteção. E vários são os significados que, através de símbolos, do imaginário e do modo de vida das pessoas, se referem ao conceito de habitação. Para Heidegger, citado por Choay (1992, p. 347), a etimologia de habitar se origina de construir. Em suas palavras, o homem age e interage com o espaço em que vive: “a maneira como nós, homens, somos sobre a terra é o buan, a habitação”. Esse pensador alemão afirma que habitar é fundamento da condição humana, “pois ser homem quer dizer estar sobre a terra como mortal, quer dizer habitar”. 1 Bachelard (2000, p. 24-26) afirma que a casa é o nosso canto do mundo, o nosso primeiro universo. Sob o olhar fenomenológico, todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa e, além de abrigo e refúgio, a casa passa a idéia de que nos seus aposentos, impregnados de histórias, existem valores oníricos consoantes. Por esse motivo, a casa nos permite evocar, na seqüência de nossa obra, luzes fugidias de devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. Assim, a casa protege o sonhador e permite sonhar em paz.
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HEIDEGGER, M. Vorträge un Aufsaze. Pfullingen, 1954.
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As afirmações desses autores traduzem o amplo conceito de moradia, mostrando, pois, que certamente há uma relação de reciprocidade entre o indivíduo e o seu meio, expresso através da casa. É inegável que a habitação é o seu lugar físico, emocional, afetivo e cultural que permite interações mútuas. Portanto, ele a constrói física e afetivamente através de um processo coerente com a sua cultura e com a sua história de vida. Ela passa a ter também a função de preparar seus componentes para a sociabilidade, expressa através das representações sociais na escala interna da família. É o caso da habitação tratada como fator de relacionamento estrutural familiar, que Correia (1999, p. 1) considera não só como espaço sanitário provido de infra-estrutura básica que fortalece o convívio familiar, mas que, também, amplia a função da moradia como instrumento para alcançar o convívio urbano. Nesse sentido, a autora define a casa como um santuário, cujo ambiente é destinado à construção de um verdadeiro lar, com suas hierarquias e trocas afetivas. A habitação, todavia, não se resume à edificação. Habitar o espaço é mais que ocupar um lote e uma edificação como elementos isolados do conjunto da produção. A habitação é um sistema complexo de condições que pressupõe qualidade de vida e que engloba, dentre outras coisas, a existência de atividades econômicas, de sistemas de transportes e de comunicação, de abastecimento, de atividades culturais (EGLER, 1986, p. 219). Por outro lado, sob o ponto de vista econômico, a habitação é considerada uma mercadoria como as outras. Ela é definida, na abordagem capitalista, como o suporte de valorização do capital e deve ser administrada pelo proprietário como um bem capital (EGLER, 1986, p. 188). E, como tal, deve responder por um processo de realização de lucros e rendas. Dos altos custos de produção dessa particular mercadoria resultam formas desiguais de sua apropriação. A casa própria tem se caracterizado como uma das maiores aspirações da população brasileira, significando a principal evidência de sucesso e da conquista de uma posição social mais elevada, conforme afirmou Bolaffi (1982, p. 43). Além do mais, outros fatores justificam esse tipo de preferência, pois a aquisição da casa própria não só melhora as possibilidades de aces so ao crediário, como libera o orçamento familiar da obrigação mensal inexorável do aluguel. Esse mesmo ponto
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de vista é considerado por Maricato (1999, p. 50), que afirma que a casa própria chega a se constituir elemento destacado de discriminação social, pelo fato de ainda ser muito forte na sociedade brasileira a divisão entre proprietários e nãoproprietários. Azevedo e Andrade (1982, p. 43) corroboram essa idéia e acrescentam que a propriedade poderia se tornar fator de estabilidade política, pois, através da casa própria, o trabalhador alcançaria não só ascensão social, como também civilidade, o que geraria, no indivíduo, um senso de responsabilidade, levando-o a fazer todos os sacrifícios e empenhar o máximo de seus esforços para mantê-lo. Já outros autores, como Villaça (1986, p. 53) e Peluso (1999, p. 117), apresentam opiniões diferenciadas: o primeiro afirma que a casa própria é ideologia da classe dominante, pois oferece segurança econômica e social, face às incertezas do futuro, e a segunda aponta que a propriedade de uma casa é um elemento importante para territorializar o distanciamento desejado pelo sujeito que ascende em direção às classes superiores. De fato, os aspectos sociais da propriedade espelham um status diferenciado, indicando a realização do indivíduo que conseguiu se livrar do famigerado aluguel. Ao mesmo tempo, suas relações com o espaço valorizam aspectos subjetivos que retratam a adequação da casa ao seu modo de vida. É inegável que, sob esse ponto de vista, podem ser observadas a atração e a glamourização que o estilo de vida burguês exerce para aqueles que almejam o seu próprio lar, apresentado incessantemente pelos meios de comunicação. Considerando os processos de financiamento e o alto custo da moradia, o subsídio do Estado é indispensável para que se atenda ao déficit habitacional no país, que atualmente gira em torno de 6,6 milhões de moradias, enquanto que, apenas no município de Belo Horizonte, é da ordem de 60 mil unidades. A casa própria ainda não é acessível para grande parte da população, embora, perante a Constituição da República, todo cidadão tenha direito à moradia. A expectativa de sua materialização, contudo, pode apresentar melhores perspectivas após o processo de reforma urbana desencadeado pela Constituição de 1988 (BRASIL, 1989), visto que movimentos multissetorais, de abrangência nacional, têm pressionado para
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conseguir a efetivação dessa reforma, na qual a moradia constitui um importante elemento para que se cumpra a função social da cidade. Embora as políticas públicas urbanas tenham, ao longo do tempo, evoluído quanto ao enfoque social, proporcionando maior inclusão dos moradores de baixa renda, elas estão longe de atender às demandas tanto quantitativas como qualitativas. Como dito anteriormente, a moradia digna ainda é privilégio de poucos cidadãos, embora a Constituição Federal (BRASIL, 1989) reze no artigo 6º que ela constitui um direito social e de o Estatuto da Cidade2, aprovado em julho de 2001, reiterar no seu artigo 2º [...] a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e as futuras gerações (BRASIL, 2001).
A aprovação da referida Lei ainda é recente e não foi seguida de uma série de medidas indispensáveis que efetivassem esse propósito. Na metodologia a ser aplicada serão analisados, comparativamente, o projeto físico e o espaço vivido, que passam a constituir os fios condutores da argumentação a seguir apresentada. O projeto reflete as diretrizes da política adotada pela URBEL. Serão selecionados os projetos de arquitetura e urbanismo dos conjuntos e avaliados até que ponto aquelas diretrizes ali foram efetivadas. O espaço vivido é avaliado através da apropriação pelos moradores nesses espaços, observando-se a identidade que eles mantêm, respectivamente, com a casa, com o conjunto e com o bairro na vida cotidiana. O conceito de lugar é imprescindível para o entendimento das relações dos indivíduos com o meio que eles ocupam, pois ele passa a adquirir valores calcados nas experiências vividas,
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A Lei Federal 10257/2001, denominada Estatuto da Cidade, regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 e estabelece normas gerais da política urbana e “de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem- estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. As suas 16 diretrizes gerais que estabelecem os instrumentos da política urbana, o Plano Diretor e a gestão democrática da cidade reforçam a importância da participação popular nos projetos de desenvolvimento urbano e nas audiências públicas nos níveis nacional, estadual e principalmente municipal, para que sejam garantidos o controle das atividades e o pleno exercício da cidadania (BRASIL, 2001).
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identificadas tanto no espaço fechado, que estabelece relação de privacidade e intimidade, como naquele onde se realizam as atividades coletivas que necessitam de convívio entre indivíduos e grupos. Através da apropriação do espaço identifica-se o lugar como território palpável, que passa a ser o centro da vivência dos habitantes e, ao mesmo tempo, da observação do pesquisador. No momento em que os novos moradores ocupam os conjuntos habitacionais, eles se apropriam do espaço naturalmente, de acordo com os seus hábitos, os seus modos de vida e a sua cultura. A apropriação do novo espaço se dá tanto física como socialmente, à medida que se revela a identificação desse morador com o lugar. Do ponto de vista físico, essa apropriação se revela, inicialmente, em pequenas intervenções de caráter individual na casa ou no lote, de modo que se expresse a identidade do habitante com a sua moradia. Nesse sentido, as alterações sofridas por essas residências oferecidas pelo Estado ocorrem após a sua ocupação pelos habitantes, demonstrando a arquitetura do morador, cujos projetos buscam atender especificamente às suas necessidades. Aí se manifesta a vivência, que retrata, nas práticas espaciais desenvolvidas na vida cotidiana desses moradores, as relações afetivas que se estabelecem com o local, indicando os valores culturais e as necessidades específicas de cada indivíduo. Cabe observar que esses projetos ainda são passíveis de alterações para que atendam de forma adequada às necessidades dos usuários desses locais. Como os citados conjuntos foram implantados em setores da cidade que já eram ocupados por população de perfil econômico e social diferenciado daqueles que chegavam, faz -se necessário observar, além das manifestações individuais com o espaço, como se processaram as relações dos diferentes grupos no cotidiano. Para isso, são avaliados os hábitos de cada família com a casa, com o conjunto e com o bairro, ressaltando-se os valores atribuídos pelos habitantes a cada um deles na hierarquia espacial. A pesquisa indica que a idéia de pertencimento do indivíduo ao grupo se manifesta quando os hábitos resultantes da ação dos segmentos começam a mostrar uma resposta similar e aproximada, referente a cada um deles. Assim, as relações dos
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indivíduos com o espaço poderão indicar o que elas significam para a população dos lugares nos quais acontecem os seus deslocamentos do dia-a-dia, tais como supermercado, padaria, sacolão, escola, prática religiosa e lazer. As relações sociais entre dois grupos de diferentes classes sociais assumem papel importante quando eles passam a estabelecer relações de vizinhança. A apreciação da convivência entre os moradores dos conjuntos e os dos bairros demonstra, nas trocas no cotidiano, o entendimento do contato intra e extra-conjunto. Na maioria das vezes, essa convivência gera conflitos em virtude das diferenças sociais, econômicas e culturais entre eles. Além disso, para o entendimento dessas relações de convivência entre os moradores dos conjuntos e os dos bairros adjacentes, definiu-se uma mesma orientação metodológica para abordar os dois grupos, procurando-se, então, entender o perfil socioeconômico, a origem desses habitantes e sua inserção no mercado de trabalho, o modo como se dá a construção do espaço físico de suas moradias e como se desenvolvem as suas práticas cotidianas. Os procedimentos metodológicos a serem adotados deverão avançar no sentido de reconhecer os dois eixos analíticos expressos no processo pelo qual se realiza, por um lado, o projeto, e por outro, o espaço vivido. Os documentos levantados informam sobre as políticas habitacionais implantadas pela URBEL e sobre os princípios que direcionam os programas regidos pelo órgão para a elaboração do projeto arquitetônico dos conjuntos. Ao mesmo tempo, a análise dos termos de referência e dos memoriais dos projetos indica o processo da construção dos conjuntos estudados. As entrevistas com técnicos da URBEL e com os arquitetos autores dos projetos iluminam as intenções subjacentes às propostas apresentadas para os assentamentos em questão. O levantamento bibliográfico específico, juntamente com a análise dos dados colhidos no processo de assentamento das famílias, contribui para a identificação dos problemas conseqüentes da implantação de conjuntos dessa natureza. Essa identificação se constitui em subsídios para futuras correções dos problemas indicados. As pesquisas no local não identificaram lideranças atuantes que respondessem pelas comunidades. Por isso, fizeram-se necessárias entrevistas com proprietários
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dos estabelecimentos comerciais mais próximos, a fim de detectar como se verificavam, através de olhares distintos, as relações entre os dois grupos de moradores. A investigação se fundamentou, no universo entrevistado, em pesquisa qualitativa, através de questionários abertos, envolvendo moradores dos conjuntos Goiânia e Araguaia e dos bairros Alvorada e Araguaia. A pesquisa foi estruturada de modo a levantar a opinião de um representante de cada família dos dois conjuntos e uma amostra da população dos bairros. Esses entrevistados foram selecionados entre os habitantes com idade acima de 15 anos. No Conjunto Goiânia, foram entrevistados 39 representantes das 42 famílias ali assentadas, compreendendo 221 pessoas, ao passo que, no conjunto Araguaia, 29 representantes das 35 unidades existentes responderam os questionários, num universo de 176 pessoas. Foram pesquisados também 15 representantes do bairro Alvorada envolvendo um universo de 66 pessoas e 14 representantes dos habitantes do bairro Araguaia, num total de 53 moradores. Ainda que no caso desta última se trate de uma amostra pouco expressiva, ela é ilustrativa da percepção do grupo, visto que se registra número significativo de repetições nas respostas. Houve a intenção inicial da pesquisa, realizada em março de 2003, de cobrir a opinião de todo o universo de moradores fixados pelo projeto nesses conjuntos, mas manifestações de desconfiança constituíram o principal motivo para recusas às respostas dos questionários. Dentre as famílias que não responderam aos questionários, incluíram -se ausentes ou os que recusaram respondê-los. O primeiro capítulo da tese discute a influência da Arquitetura Moderna no proc esso da criação do espaço; considera a responsabilidade dos arquitetos na concepção do projeto e mostra como o morador, ao se apropriar da sua moradia, elabora o projeto dos arquitetos, produzindo a sua própria arquitetura, que reflete o seu modo de vida, as suas necessidades e as suas aspirações. No segundo capítulo, aborda-se a ação da URBEL na busca de soluções para os problemas habitacionais de Belo Horizonte, demonstrando-se como tal ação evoluiu através do tempo.
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No capítulo 3, diz-se das relações afetivas que os moradores estabelecidos e os outsiders mantêm com o lugar, retratando ali a sua identidade. Apresenta-se, ainda, o perfil socioeconômico desses moradores, retratando a sua origem e os caminhos percorridos pela população dos conjuntos até chegar aos assentamentos. Já o capítulo 4 apresenta as práticas espaciais no cotidiano das duas comunidades, onde se identificam os pontos de referência da região e quais as relações estabelecidas através dos encontros e dos deslocamentos das pessoas, nos conjuntos e nos bairros vizinhos. No capítulo 5, destaca-se não só a intolerância manifestada nas práticas sociais entre os membros dos conjuntos e dos bairros, mas também a avaliação desses moradores sobre o seu relacionamento, explicitando as diferenças que ocorrem no cotidiano. São também consideradas as perspectivas do futuro do local sob o ponto de vista das duas comunidades. Finalmente, as considerações finais tecem uma análise crítica sobre a política, o projeto e o espaço vivido na habitação social.
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2
A ARQUITETURA DA CASA
Os projetos empreendidos pela URBEL determinaram um padrão arquitetônico de residência que priorizava o atendimento à população de baixa renda, dentro de limites de uma viabilidade financeira. Essas residências, ao serem apropriadas pelos usuários, passaram por alterações e acréscimos, que configuraram a arquitetura produzida pelo morador. O presente capítulo busca verificar as causas dessas modificações, especialmente aquelas decorrentes da deficiência do atendimento do projeto às necessidades dos usuários. Para isso, a pesquisa de projetos elaborados pela URBEL apresenta exemplos característicos, considerando as contribuições de projetos arquitetônicos na história da produção da habitação social no país. A política habitacional vigente em período anterior à aprovação da Constituição de 1988 era de âmbito nacional e desconsiderava as diferenças geográficas. Os projetos dos conjuntos habitacionais também retratavam essa dissonância, principalmente quanto aos partidos arquitetônicos. Essa arq uitetura do Estado, retratada nas moradias, adotava tipologias padronizadas destinadas a composições familiares distintas e, além disso, a disposição e o dimensionamento dos cômodos apresentavam deficiências quanto a padrões de habitabilidade. Além do mais , esse olhar pragmático se submetia às imposições de custos e se justificava como artifício necessário à redução do déficit habitacional, atribuindo-lhe condição meramente quantitativa. No momento em que essas casas passavam a ser habitadas, seus moradores executavam modificações diversas, expressando ali a sua identificação com o lugar, atendendo, também, às suas necessidades. Após a municipalização das políticas habitacionais, no entanto, o espaço construído para a habitação social passou a ser tratado à base de uma nova proposta específica, que permitia os adequados dimensionamentos do problema por parte dos respectivos agentes locais envolvidos no processo da produção da moradia. A partir dos anos 90, quando a política passou a direcionar mais efetivamente ações nos âmbitos municipais, os novos conjuntos habitacionais passaram a apresentar configuração diferenciada daquela adotada até então. Os projetos, além de tentarem
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atender mais objetivamente às comunidades locais, passaram a considerar algumas transformações espaciais, buscando priorizar as áreas disponíveis menos distantes do centro das cidades ou aquelas mais próximas de setores de trabalho. Em obediência a uma tendência atual de evitar a periferização de moradores de baixa renda, tal ação beneficiaria essa camada da população. A URBEL, nesse sentido, tem sido inovadora, na medida em que adota uma política que vem atendendo a parte razoável da população necessitada, com projetos inseridos na malha urbana. Com a municipalização e a nova legislação urbanística, tornou-se indispensável o atendimento prévio a essas comunidades, em que se evidenciaram participações mais ativas da população envolvida. Manifesta-se, assim, a arquitetura do morador, que representa na sua casa o seu modo de vida, que busca dotá-la de meios e qualidade que atendam às suas demandas específicas, de acordo com a composição familiar e os seus desejos. Essas dissonâncias implicam em complementações que tendam a atenuá-las; por isso, a URBEL vem retomando a aproximação com as comunidades envolvidas nos programas. Para atender aos objetivos do trabalho, cabe avaliar os projetos elaborados por esse órgão, especialmente dos conjuntos Goiânia e Araguaia, cujas fases sucessivas incluem aspectos dos projetos desse órgão, e identificar a arquitetura do morador, a partir do momento em que ele passa a vivenciá-la. Para maior esclarecimento da idéia, foi necessário explicitar aspectos do problema da moradia, o que implicou em uma divisão do assunto em quatro pontos fundamentais, quais sejam: a arquitetura da URBEL, os projetos elaborados por ela, a arquitetura do morador e os projetos do morador. O projeto de arquitetura considera as relações espaciais funcionais através de aproximações sucessivas, representando a ordenação racional de setores e objetos, configurando um universo harmonicamente integrado. Em síntese, pode-se considerar esse conceito de projeto inserido no território urbano. Milton Santos (1997a, p. 111) afirma que os espaços urbanos são formados por dois componentes que interagem continuamente, que são a configuração territorial e a dinâmica social. A configuração territorial se dá pelo arranjo sobre o território dos elementos naturais e artificiais de uso social, ao passo que a dinâmica social diz respeito ao conjunto de variáveis econômicas, culturais e políticas, que a cada
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momento histórico dão uma significação e um valor específicos ao meio técnico criado pelo homem, isto é, à configuração territorial. Nesse sentido, eles são concebidos como a integração entre fixos e fluxos e tornam -se fundamentais para a compreensão das articulações entre as suas diversas frações. Esse importante geógrafo traduz de forma clara esses conceitos, quando anuncia a integração entre os fixos e os fluxos nas articulações do macro. No caso do projeto arquitetônico, motivo da presente tese, podemos aplicar as mesmas relações, visto que a edificação se contextualiza na escala urbana. A organização física da moradia se dá através da intervenção de arquitetos, planejadores e executores, de modo que se efetive a integração entre os espaços fixos e os fluxos na rede urbana, em obediência a normas das políticas urbana e habitacional. Para tanto, condicionantes tais como custo, preceitos legais, materiais a serem empregados na construção e técnicas construtivas são sintetizados na proposta final. O projeto, no âmbito deste trabalho, é entendido como aquele que apreende as condições estabelecidas por normas técnicas e construtivas e que proporciona no espaço a ser vivido salubridade, conforto e bem-estar para o usuário. Além disso, ele deverá atender aos costumes e às características culturais aproximadas dos indivíduos que venham ocupá-lo. O projeto para a moradia se constitui na solução que melhor atende às condições programáticas indicadas pelo morador, o proprietário, no que diz respeito às suas necessidades e às da sua família. No projeto, cabe ao arquiteto interpretar esses valores e desejos dos indivíduos que ali vão viver. Nesse sentido, Silva (1983, p . 37) considera o projeto arquitetônico uma proposta de solução para um particular problema de organização do entorno humano, em que se determina a forma construtível, através da descrição dessa forma e das prescrições para a sua execução, sem perder de vista as limitações de ordem econômico-financeira. A partic ipação do arquiteto com o seu projeto tem papel fundamental no apoio ao empreendimento, visto que ele deve coordenar a articulação entre o usuário e o programa por ele estabelecido, buscando técnicas e propostas construtivas que melhor se adaptem às condiç ões físicas do terreno. Nesse sentido, cabe lembrar
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Gropius (1977, p. 93), um dos fundadores da Bauhaus, que acredita que a característica fundamental inerente a esse profissional é a de coordenador, que deveria ser “um homem de visão e competência profissional, com a tarefa de solucionar harmonicamente os vários problemas sociais, técnicos, econômicos e artísticos que surgem em conexão com a construção”. Além disso, esse profissional deve respeitar as características culturais e os valores das pessoas que viverão nos lugares a serem construídos, o que, certamente, vai garantir não só qualidade nesse espaço, como também maior adaptação do local ao modo de vida do novo habitante. Mais ainda: no ato de projetar, o arquiteto deve ficar atento às transformações intensas por que vem passando a sociedade, para que novos conceitos possam ser assimilados nos futuros espaços a serem projetados. A qualidade desse novo espaço depende da atenção dada pelo técnico à maioria dos itens estabelecidos, tanto nas condições programáticas como nos condicionantes e determinantes do projeto. Já Graeff (1979, p. 81), estudioso da teoria da Arquitetura, avalia com o olhar parcial que favorece esses técnicos, que o projeto se constitui na construção imaginária, que é uma estrutura que só tem existência na mente do arquiteto, que são pessoas capazes de elaborar com proveito os desenhos, cálculos e outras peças que o representam. Nesse sentido, na maioria das vezes, as abstrações que o projeto apresenta só serão percebidas pelos indivíduos ao serem materializadas, pois é aí que as pessoas têm oportunidade de conferir se houve atendimento às suas aspirações. Bem lembra Egler (2000, p. 209) que projetar e construir um espaço físico é prever um conjunto de ações plasmadas em processos espaciais. Essa pesquisadora afirma, ainda, que “prever e projetar o espaço do encontro é perceber para além das funções imediatas do objeto, de natureza sociopolítica ou econômica”. Apesar disso, esses profissionais não estão isentos de críticas, como aquela apresentada por Léfèbvre (1969, p. 102), que afirma que esses técnicos elaboram seus projetos “não através das significações percebidas e vividas por aqueles que habitam, mas a partir do fato de habitar, por eles (arquitetos) interpretado”. Daí ocorre o proc esso de modificações, quer seja um projeto de natureza individual, quer seja em soluções projetuais coletivas.
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Ainda assim, um autor como Habermas (1987, p. 122) analisa criticamente a responsabilidade dos profissionais envolvidos com o projeto, dizendo que “o conceito ampliado de arquitetura encorajou a superação do pluralismo estilístico desligado da realidade cotidiana”, mas indicando que esse mesmo conceito, que serve de crítica à arquitetura moderna, “serviu também de padrinho quando os teóricos da Nova Construção quiseram ver estilos e formas de vida subordinados na totalidade aos ditames de sua tarefa de criadores”. E o autor acrescenta, apresentando as limitações dos técnicos: “mas as totalidades desta ordem escapam à intervenção do planejador”. Tais afirmações reforçam a opinião generalizada de que a moradia traduz a ditatorial predominância da vontade do autor sobre a do cliente. Outros profissionais contestam ainda o excesso de racionalidade na produção arquitetônica, no que se refere à habitação e às demais soluções, pela alegada falta do sentido social por parte desses profissionais. É o caso do arquiteto brasileiro Vilanova Artigas (1999, p. 84), que registra que essa intensa procura não tem fim, pois o desenho da casa deveria ser o ponto de partida para os outros desenhos, visto que eles retratam a predominância citada. Harvey (1998, p. 42-45), por sua vez, critica a crença nesse modernismo através do progresso linear, das verdades absolutas e do planejamento racional de ordens sociais ideais, im postas por planejadores, arquitetos, artistas e guardiães do gosto refinado. Essa característica da arquitetura ditatorial, considerada positivista, tecnocêntrica e racionalista, chegou até a ser admitida como imperialismo cultural. O retrato da Arquitetura Moderna, que tinha, entre outras prioridades, revitalizar cidades envelhecidas ou arrasadas pela guerra, desenvolvia, dentro desses moldes, projetos que refletiam imagens impecáveis de poder e de prestígio para corporações e governos que pretendiam difundir suas ações, mas que, ao mesmo tempo, necessitava de produção de larga escala para que fosse viabilizada. Dentro desses parâmetros, os projetos para a habitação popular tornaram-se símbolos de alienação e de desumanização. Também Niemeyer (1955), já nos anos 50, criticava a nossa arquitetura moderna e revelava que ela tem certamente, na falta de conteúdo humano, a principal razão das suas deficiências, refletindo o regime das contradições sociais em que vivemos
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e no qual ela se desenvolveu. Assim, lembra o famoso arquiteto que, se essa arquitetura tivesse surgido em país socialmente organizado e evoluído, onde pudesse atingir seu verdadeiro objetivo, que era servir à coletividade, o sentido humano e a unidade arquitetônica poderiam encontrar caminhos que contemplariam a cultura da sociedade. Por outro lado, Artigas (1999, p . 84), já em 1969, insiste na necessidade de que outros elementos participassem da construção da casa para uma nova sociedade, que despontava como conseqüência inevitável do conhecimento cada vez mais profundo que se tem do mundo e das relações entre os homens. Não deixa de ser também importante a afirmação de Harvey (1998, p. 45), de que “era hora de construir para as pessoas, e não para o Homem”. Infelizmente, esse olhar não foi respeitado nos projetos implantados, naquela época, para a habitação social. Entretanto, nos mais recentes exemplos do espaço projetado, ainda temos percebido
fortes
arquitetônicas.
As
influências mudanças
negativas
dessa
significativas
que
racionalidade ocorreram
nas na
soluções sociedade,
especialmente aquelas relativas aos direitos humanos, têm se refletido na construção do espaço e das imagens que compõem a paisagem urbana. Observe-se que tais mudanças ainda não foram completamente incorporadas pelos arquitetos em geral, embora um dos objetivos da arquitetura seja retratar, no espaço e no tempo, os movimentos da sociedade. E pode estar ocorrendo uma deficiência na transmissão do conhecimento e no debate dessas posições, seja nas Escolas, seja nas entidades representativas. Se tais projetos, por serem especificamente individuais, traduzem deficiências dessa natureza, pode-se imaginar o que ocorre com projetos coletivos. A relação do futuro morador com o projeto é mais intensa, quando se trata de atendimento mediante soluções individuais. A sua participação no processo da construção da moradia consegue introduzir os propósitos visados, pois retrata seus anseios imediatos, suas necessidades e seu modo de vida, o que permite resultados mais adequados para a especificidade do projeto da sua residência. No entanto, essas soluções não vêm se concretizando quando se trata de habitações de massa oferecidas pelo Estado, pois as limitações de ordem política e
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econômica passam a determinar prioridades para a execução do proje to, desde o custo até a gestão local. Além do mais, os resultados decorrentes dessa mesma política
ainda
mantêm
a
padronização
nas
tipologias
das
habitações,
desconsiderando as especificidades das famílias envolvidas nos programas. Conclui-se que há necess idade de soluções mais articuladas a essas características, visto que as experiências anteriores pouco contribuíram para que houvesse evolução no encaminhamento dos novos empreendimentos, mesmo que isso tivesse acontecido ao longo do tempo. Ainda assim, fo ram ocorrendo novas formas de concepção de projetos para a habitação social, principalmente para aquelas que vêm contando com a participação popular. Nesse sentido, os programas de autogestão são um bom exemplo. Durante o processo de criação e produção de habitações de interesse social, a ação do arquiteto nem sempre ocorre como se dá no projeto individual e particularizado. A sua participação nesse tipo de empreendimento implicaria em maior envolvimento e contribuição nas soluções arquitetônicas, para se tentar, antes de tudo, atender à multiplicidade de aspirações. Quanto à padronização das tipologias das soluções coletivas, buscou-se atender às condições mínimas de habitabilidade, dentro da racionalização construtiva e da eliminação do desperdício, que resultaram na redução do custo final da obra. Conforme lembra Gropius (1977, p. 200), não fugindo dos encaminhamentos da Arquitetura Moderna, as edificações habitacionais passíveis de estar ao alcance do homem comum devem ser erigidas com o mínimo gasto em material e tempo. Devem, também, corresponder às exigências materiais e psicológicas da vida e precisam ser decentes. Só que a racionalização dos trabalhos da construção deveria reunir os esforços de todos os diferentes setores para um plano conjunto e homogêneo e que pesquisas experimentais de melhoria e aperfeiçoamento se realizariam de maneira eficaz se todos os meios práticos e científicos se harmonizassem para o conjunto da construção. Apesar de esforços que pudessem atender conceitualmente a esses obje tivos, esse autor conclui que os atrasos no progresso da construção moderna decorreram, na maioria dos casos, de uma coordenação defeituosa. Na verdade, a gestão desses artifícios, uma tendência a ser coordenada pelo arquiteto, deveria ser trabalhada em ações conjuntas com profissionais de diversas áreas, pois o projeto arquitetônico se limita a tratar somente
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da ordenação física do espaço. Assim, a racionalização nem sempre permite obter a adequação das propostas dos espaços a serem concebidos e utilizados para a moradia social, tendo em vista a diversidade da população envolvida no processo da sua produção. Reforçam-se, dessa maneira, as afirmações de que os projetos de habitação social devem contar com a participação da sociedade desde a sua fase inicial. Além disso, por mais que se conheçam os aspectos sociais que são abrangidos em um projeto dessa natureza, a produção da moradia ainda é comprometida pelos interesses políticos e econômicos adotados por agentes promotores da política habitacional. Os primeiros programas destinados à habitação social já manifestavam sinais da Arquitetura Moderna nos projetos, marcadamente influenciados pelos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAMs. O 2º CIAM, realizado em Frankfurt, em 1929, por exemplo, teve como tema principal a habitação para os setores de renda mínima, que ditava o moderno conceito de viver, em que se buscavam novos meios de produzir o espaço destinado às populações carentes. Esse Congresso tornou-se
especialmente
importante
por
direcionar
a
internacionalização
sociocultural das questões emergentes sobre a habitação, ao estabelecer a crença na possibilidade de transformação social, da qual pudesse surgir uma sociedade mais justa, mais fraterna e mais igualitária. Esse, inclusive, foi um dos preceitos básicos da Arquitetura Moderna, que tinha como uma das intenções a fundação de um Instituto para a padronização da Construção, cujo plano-chave deveria abranger tudo o que pudesse contribuir para elevar o nível social, baixar os preços das moradias e assegurar uma correspondência entre a habitação e o flutuante mercado de trabalho (GROPIUS, 1977, p. 202). É claro que, nos anos 1920, época em que surgiu esse movimento, o novo espírito levaria a uma grande revolução, tanto no conceito, que traduzia um momento de ruptura com a sociedade anterior, como na prática, em que a produção industrial substituiria o trabalho artesanal. Note-se, conforme anunciava Le Corbusier (2002), que a arquitetura tem como primeiro dever, em uma época de renovação, operar a revisão dos valores e recompor os elementos constitutivos da casa.
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Ressalte-se que os projetos baseados nos princípios da Arquitetura Moderna produziram constantes transformações no meio urbano: esses espaços projetados por arquitetos e urbanistas parecem refletir um planejamento estruturado e ao mesmo tempo igualitário, cujos aspectos de ordem estética e técnica estão presentes não só nos edifícios, mas, também, nos traçados de bairros, vilas e cidades. Buscava -se traduzir objetivos essenciais em que os princípios levassem em conta as necessidades do homem padrão, consideradas universais, e agrupadas em quatro funções primordiais, segundo a Carta de Atenas de Le Corbusier (1964): “habitar, trabalhar, locomover-se e cultivar o corpo e o espírito”, em que a habitação oferecia espaço e conforto, refletindo, assim, o ideário da modernidade. As características tecnológicas desse fenômeno se refletiram também nos edifícios através da solução proposta nas plantas, da padronização dos elementos construtivos, do emprego racional dos materiais e da eliminação de decoração supérflua. Esses conceitos passam a ser avaliados por profissionais como Le Corbusier (1964, p. 105-106), que considera a casa em condições de habitabilidade mais favoráveis, ao mesmo tempo em que prevê a inserção da edificação no meio urbano e social: o núcleo inicial do urbanismo é uma célula de habitação (uma casa) e sua inserção no grupo que forma uma unidade de habitação de tamanho eficaz. Se a célula é o elemento biológico primordial, o lar, isto é, refúgio de uma família, constitui a célula social. A construção deste lar, submetida desde um século aos órgãos vitais da especulação, deve converter-se numa empresa humana. O lar é o núcleo inicial do urbanismo. Protege o crescimento do homem, abriga as alegrias e as dores de sua vida cotidiana. Deve conhecer em seu interior o sol e o ar puro e deve, também, ser prolongado para o exterior por diversas instalações comunicativas. Para que se torne mais fácil dotar as casas de serviços comuns, destinados à realização cômoda do abastecimento, da educação, da assistência médica ou à utilização das horas livres, será necessário agrupá-las em unidades de habitação de tamanho eficaz.
A introdução de aspectos sociais na solução do problema constitui fator favorável e inovador de conceitos, ao considerar a casa transformada em lar. Mas as aspirações da sociedade também se ampliaram, paralelamente ao desenvolvimento tecnológico, o que obrigava os projetos a sucessivas evoluções. Essas diretrizes, que levavam a uma nova visão integrada do espaço urbano, foram também o fio condutor do 1º Congresso de Habitação, acontecido em São Paulo, em
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1931, que propunha disposições regulamentares para efetivar o barateamento da construção da popular, dentre elas, a padronização e racionalização dos materiais, de modo a facilitar a produção em série. A produção arquitetônica, então, do ponto de vista moderno, deveria compatibilizar economia, prática, técnica e estética com o objetivo de viabilizar financeiramente o atendimento de trabalhadores de baixa renda e, ao mesmo tempo, garantir dignidade e qualidade na intervenção arquitetônica (BONDUKI, 1998, p. 134). Como conseqüência desse movimento mundial, começado nos CIAMs, aconteceu em São Paulo o Congresso Brasileiro de Arquitetura, em 1945, com proposta de um programa inovador de intervenção pública na habitação popular, na tentativa de estimular uma política nacional descentralizada. Conforme afirma Sachs (1999, p. 111), esse Congresso se manifestou a favor da construção de casas de aluguel para a população de baixa renda em terrenos desapropriados em bairros já ocupados, para que fosse evitada a periferização das habitações populares. Outro aspecto importante indicava a construção de prédios de apartamentos ao invés de casas isoladas, o que permitiria a redução dos custos e o desenvolvimento da indústria de materiais. De fato, esse Congresso apresentou idéias inovadoras, representando excelentes contribuições que estavam bem à frente dos conceitos predominantes na época, a ponto de só se materializarem nos tempos atuais, com a municipalização das políticas habitacionais. Entretanto, as proposições desse Congresso não deixaram de produzir resultados úteis nos períodos posteriores. Assim, os projetos arquitetônicos elaborados para a moradia popular nas principais fases da política habitacional brasileira, através dos Institutos de Aposentadoria e Pensões – IAPs, da Fundação da Casa Popular – FCP – e do Banco Nacional de Habitação – BNH, podem auxiliar na compreensão do processo da arquitetura do Poder Público para esse fim. No Brasil, alguns princípios ditados pela Arquitetura Moderna prevaleceram nas tipologias adotadas na implantação dos conjuntos dos IAPs, que tiveram sua ação mais evidente nos anos 1930 e 1940: solução racional da planta, estandardização dos elementos de construção, emprego racional dos materiais, eliminação de toda decoração supérflua. A adoção de algumas dessas diretrizes, que consideravam como primordial o fator econômico, resultou em assentamentos de conjuntos
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habitacionais isolados do traçado urbano existente, sem previsão de equipamentos que permitissem encontros da população nos momentos de lazer e pudessem atender às necessidades imediatas da população. No que diz respeito ao sistema construtivo utilizado nas edificações em si adotava -se a construção de blocos multifamiliares, que visavam a minimizar o custo, limitando-se a altura a três pavimentos, dispensando-se o uso de elevadores. Os conjuntos implantados no início desse período adotavam a casa unifamiliar no centro do lote, com ornamentação tradicional e complexidade construtiva imprópria à produção em série. Ao mesmo tempo, eram seguidos padrões residenciais que refletiam a influência dos higienistas contra “a promiscuidade do cortiço e a aglomeração apenas tolerada da casa geminada da vila” (BONDUKI, 1998, p. 163). A maioria dos projetos arquitetônicos inovadores dessa fase surgiu a partir da década de 1940 e fazia parte do projeto político-ideológico no qual as novas concepções formais e espaciais se adequavam à estratégia mais ampla do nacional desenvolvimentismo. Assim, as diretrizes para a habitação nesse período passaram a ter um novo olhar, conforme avalia Sachs (1999, p. 111), com a construção de grandes conjuntos de apartamentos e não mais casas in dividuais. Além disso, os melhores arquitetos foram chamados para essa tarefa. A autoria de grande parte dos projetos ainda era de arquitetos do Rio de Janeiro, antiga capital da Federação, sinal significativo da centralização do poder. A maioria dos conjuntos implantados nessa época tinha como característica a composição de blocos de apartamentos de três a cinco pavimentos, sem elevador e dispostos no terreno em composições geométricas variadas, obedecendo aos princípios estabelecidos pelos IAPs: implantação urbanística moderna, associação da moradia com equipamentos comunitários, renovação de relações entre espaço público e espaço privado. Exemplos típicos desse assentamento foram os conjuntos residenciais do Realengo, Del Castillo e Bangu, no Rio de Janeiro e o IAPI, em Belo Horizonte. Os apartamentos de área mínima nesses conjuntos se caracterizavam pela racionalização da planta e pelos exíguos espaços destinados à cozinha e ao
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banheiro. Tais soluções incluíam equipamentos para oferecer aos habitantes algum tipo de convívio com os vizinhos nos momentos de lazer. Todo espaço que não fosse ocupado pelas edificações era considerado público, uma excelente inovação na época. Aliás, em pesquisa sobre a ação dos IAPs, Bonduki (1998, p. 165-188) afirma que a valorização do espaço público era uma das principais marcas da produção habitacional desse período, pois mostrava a capacidade de a administração pública gerir adequadamente a cidade. Cabe observar que essa idéia precursora de áreas livres públicas trouxe contribuição fundamental para a compreensão de que esses espaços destinados ao uso comum no projeto deveriam ser dimensionados de forma a admitir equipamentos complementares àqueles. Para os projetos com mais de mil unidades, havia amplos programas de equipamentos, que incluíam escola, ambulatório ou serviço de saúde e quadras esportivas. Em alguns casos, eram implantados ginásios cobertos de esportes, cinemas, centros comerciais e serviços administrativos. Além do mais, segundo Bonduki (1998, p. 165-188), a manutenção da propriedade dos conjuntos pelos Institutos, com o aluguel das unidades para os associados, possibilitava o predomínio do conceito de habitação como um serviço público. A imagem paternalista do Estado atingia o seu ápice. O número de moradias por conjunto passou a ser ampliado, apesar de não ter sido expressivo o resultado final de tal política. Com a implantação da FCP, a partir dos anos 1940, os projetos elaborados mantinham características conservadoras, com opção pela casa própria e por unidades unifamiliares isoladas. Note-se, também nessa fase, a presença da Arquitetura Moderna nos modelos apresentados por esse programa, principalmente quando foram adotados conjuntos cuja tipologia era determinada por blocos serpenteantes e longilíneos, que comportavam grande número de unidades. Exemplo significativo de empreendimento implantado pela FCP, já nos anos 1950, foi o conjunto residencial Deodoro, no Rio de Janeiro. Na verdade, aos longos eixos gerados pelo partido longilíneo, concebidos à imagem dos projetos de Reidy, tais como o Pedregulho e o conjunto residencial da Gávea,
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no Rio de Janeiro, se incorporavam às unidades de habitação ou habitação mínima. A intenção inicial dos projetos de então era a racionalização da construção nos espaços privados, em detrimento dos grandes espaços livres. Assim, era proposta uma nova relação entre a paisagem e o espaço construído. Em estudos sobre a habitação social no Brasil, Bonduki (1998, p . 162) afirma que, apesar de se conhecer pouco sobre sua produção, a FCP buscava soluções mais apropriadas às diferentes realidades regionais, rompendo com a centralização de projeto que caracterizava os IAPs. Apesar de considerar, em seus programas, a moradia composta por infra -estrutura e saneamento básico e não simplesmente o lote ou a edificação nele inserida, o que representava na época um avanço conceitual, essa idéia não contemplou com eficácia as necessidades imediatas dessa faixa da população, pois atendeu a uma parcela moderada da demanda. Já os conjuntos construídos pelo BNH, implantados a partir da década de 1960, eram de grandes dimensões e afastados do centro da cidade. A tipologia padronizada do partido arquitetônico uniformizava a ocupação característica da racionalização da produção em série, em plena expansão nessa época, e, conseqüentemente, diminuía o custo, embora a indústria brasileira ainda não tivesse atingido produção suficiente para atender à demanda. Nos conjuntos, as moradias unifamiliares apresentavam condições adequadas de salubridade, com infra-estrutura básica, tais como abastecimento de água, esgoto, energia elétrica e transporte coletivo. Os demais equipamentos urbanos nem sempre chegavam a ser construídos na maioria dos assentamentos. A extensão dos conjuntos e a uniformidade das moradias conferiam ao local a monotonia da paisagem, retratando, inclusive, o ar impessoal nas unidades residenciais. Quanto ao alcance social, observa -se que a política do BNH, ao pretender a diretriz básica para o planejamento de conjuntos habitacionais, a partir dos anos 1960, ativou preferencialmente a segregação espacial dos moradores dos conjuntos em relação ao resto da cidade, quando optou pela aquisição de terrenos na periferia. Tais terrenos se localizavam em áreas distantes do centro, pois eram os espaços disponíveis que apresentavam dimensões e viabilidade financeira para esse tipo de
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empreendimento. O processo de exclusão social se intensificava quando acontecia o distanciamento dessa população dos centros urbanos e dos locais em que eles já tinham estabelecido anteriormente relações pessoais, sociais e de trabalho com determinada vizinhança. A insuficiência de serviços comunitários, equipamentos públicos e, principalmente, a distância do mercado de trabalho restringiram os benefícios destinados às novas comunidades. Como os conjuntos habitacionais construídos durante a gestão do BNH foram produto de um processo que tinha como objetivo primordial atender à alta demanda de moradias, esses conjuntos, projetados e construídos para serem ocupados pela população de baixa renda, plasmaram o ideário que lhes deu origem. Dele, não transcendia o conceito de casa popular como abrigo para pobres, pois eram ditados conceitos e normas que viabilizassem esses espaços dentro de condições técnicas adequadas a uma execução rápida e eficaz para a implantação das residências, com custo reduzido, porém sem apresentarem qualquer caráter inovador. Além do mais, a maioria das soluções apresentadas nessa época, apesar de suprir a população carente de moradias com infra-estrutura, não chegou a atender completamente a importantes fatores sociais como principalmente a inclusão do seu morador no meio urbano. Outro aspecto que reduz esse conceito de habitação social diz respeito aos critérios estabelecidos para moradias dessa natureza, por preoc upações pragmáticas, que se limitavam a manter a qualidade técnica, o dimensionamento e o custo, visto que os aspectos quantitativos, tais como valores mínimos da construção e da infra -estrutura por metro quadrado e o tipo de implantação de acordo com as condições topográficas do terreno, passavam a direcionar grande parte dos projetos. Ainda tentava -se, favoravelmente, a racionalização do sistema viário e da infra-estrutura, de modo que se adequassem as edificações ao terreno com o menor movimento de terra. Tais iniciativas nem sempre permitiam atender integralmente aos futuros usuários desses conjuntos, principalmente no que dizia respeito às condições particulares de cada família e sua inserção no novo meio. A mesma tipologia projetada poderia ser ocupada por famílias com variada composição e modos de vida completamente diferentes.
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Cabe aqui uma crítica feita por Bolaffi (1986, p. 28), pertinente à solução arquitetônica dos conjuntos habitacionais implantados pelo BNH: “inspirado no princípio velho e superado da Carta de Atenas com a conseqüente segregação do espaço e das funções urbanas”, esses conjuntos constituíam verdadeiras cidades, sem que fossem tratados como tais e foram desenhados para serem cidades dormitório, sem a presença de qualquer atividade de trabalho e de vida.
2.1
A arquitetura da URBEL
No município de Belo Horizonte, os conjuntos construídos sob a administração da URBEL eram amparados pelas diretrizes estabelecidas pelo Conselho Municipal de Habitação que, por sua vez, se baseavam na Constitu ição de 1988 (BRASIL, 1989) para atender às condições da produção da moradia popular pela Prefeitura Municipal. Foram criados vários programas, a partir de 1993, resultantes da reformulação da política habitacional no município, em que sobressaíam, dentre eles, o Orçamento Participativo, o Habitar Brasil, o Pró-Moradia e o Estrutural em Áreas de Risco, nosso motivo da Tese. O critério inicial para a escolha do terreno considerava sua viabilidade quanto às expectativas do número de residências passíveis de serem construídas com a menor intervenção possível, nos aspectos naturais do terreno, o que certamente baratearia o custo da obra. Observava-se a preocupação dos técnicos em executar uma implantação correta dos termos construtivos, atendo-se a condicionantes como a forma e a topografia do terreno. Esses novos conjuntos habitacionais, diferenciados conceitualmente dos anteriores, ofereciam vantagens na sua implantação, pois os terrenos a serem utilizados no programa eram inseridos na malha urbana e já contavam com infra-estrutura, serviços e equipamentos, o que poderia compensar o valor mais elevado das áreas disponíveis, e também proporcionar aos usuários um benefício social, principalmente no que se referia à sua inclusão na cidade. Além disso, esses equipamentos tornaram-se importantes na vida cotidiana dos habitantes, não só pela sua função, como também por criarem oportunidades de socialização entre eles.
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No que diz respeito aos projetos dos novos conjuntos, nota-se que eles buscavam nas unidades unifamiliares um partido arquitetônico que atendesse não só às necessidades básicas de conforto ambiental, tais como iluminação e ventilação naturais, mas que também integrasse técnicas construtivas que pudessem garantir a qualidade na habitação com custo mais acessível. As tipologias arquitetônicas eram propostas para estabelecer maior continuidade e integração da paisagem com o entorno adjacente, de modo a interferir o mínimo no ambiente já existente. Observa -se que, pela proposta da política habitacional adotada, a preocupação em tratar diversidades se registrava não somente no plano físico, mas também no social, introduzindo fatores de convivência harmônica entre grupos de poder econômico, cultura e modos de vida diferentes. Nesse sentido, os novos conjuntos indicaram uma concepção diferente daqueles modelos adotados anteriormente. A aprovação desses projetos, por sua vez, se dava em obediência às normas da Lei de Uso e Ocupação do Solo – LUOS – vigente, nas quais se definiram os afastamentos, as taxas de ocupação e os coeficientes de aproveitamento destinados a determinado zoneamento. Pode-se verificar que, ao contrário do direcionamento centralizado dos programas coordenados pelo Estado até então, essa nova proposta busca nas raízes do município o conhecimento da realidade local: os projetos foram elaborados por profissionais de Belo Horizonte. Cabe observar que, inicialmente, a ação desses arquitetos se limitava a seguir os encaminhamentos estabelecidos pelos técnicos da URBEL. É importante ressaltar agora que, quando começaram a ser executados os primeiros projetos de conjuntos habitacionais pela URBEL, a partir da política adotada em 1993, esse órgão propôs, através dos termos de referência, três maneiras de produzir moradias: na primeira fase, que implantou oito conjuntos, foram construídos sobrados de dois e três quartos, em duas etapas; na segunda, sobrados de dois e três quartos construídos em única etapa, que também abrangeu oito conjuntos, e na terceira fase, prédios de dois a quatro pavimentos sem elevadores, compreendendo o total de sete conjuntos (URBEL, 1998).
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Nesses conjuntos, foram adotados, preferencialmente, os sobrados geminados, visando à solução mais adequada para o partido arquitetônico, ao concentrar as edificações e ocupar menor área do terreno, reduzindo a projeção das áreas construídas e disponibilizando parte do terreno para instalação de equipamentos coletivos. Justificou-se a construção das habitações em duas etapas pela insuficiência de recursos para a execução dos sobrados completos, embora tivesse sido possível viabilizar a parte mais significativa e mais cara da casa, que era o primeiro pavimento. Esse atendimento das condições programáticas ditadas pela URBEL tinha como objetivo reduzir o custo da obra. A segunda etapa deveria ser construída pelo proprietário, sob orientação de técnicos dessa instituição, de acordo com a sua demanda. Na verdade, isso não se verificou, pois a URBEL não dispunha de mecanismos e de corpo técnico que acompanhasse, naquela época, o processo de pós -ocupação. A URBEL (1998) considera que a produção em duas etapas apresentou também aspectos negativos: a complexidade do processo de aprovação nos órgãos competentes de cada uma das etapas do projeto demorou. Além disso, nem sempre se pôde garantir a execução da segunda etapa conforme o projeto original, apesar dos esforços do órgão junto aos moradores para que isso se viabilizasse; finalmente, ao implantarem lajes de piso como teto do primeiro pavimento, seu custo incidiu significativamente na primeira etapa.
2.1.1
Os projetos dos conjuntos Goiânia e Araguaia
Os conjuntos Goiânia e Araguaia foram ocupados em meados de 1996. Os projetos foram elaborados por escritórios de arquitetura cadastrados na URBEL, obedeceram a normas ditadas pelo termo de referência e pela LUOS e tiveram o cumprimento de suas especificações fiscalizado pelos técnicos desse órgão. A sua prévia aprovação na Prefeitura comprova terem atendido às condições de conforto ambiental como ventilação e iluminação, bem como às características mínimas de dimensionamento da legislação.
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Mesmo assim, a relação desse órgão com os contratados não foi satisfatória e tampouco destes com as comunidades envolvidas, àquela época, conforme entrevista realizada em junho de 2003, com o arquiteto Gabriel Aun, autor do projeto do conjunto Araguaia, executado em 1993. Segundo ele, as diretrizes para o estudo foram encaminhadas pela URBEL e não foi cogitada qualquer possibilidade de contato com os futuros moradores, tampouco com os habitantes do bairro do entorno, o Araguaia. A referência básica do contrato dizia respeito ao custo do projeto arquitetônico e dos afins, como estrutural e elétrico, que deveriam ser o mínimo possível, conforme se pôde constatar na carta-convite para o projeto; já a licitação indicava apenas o menor preço. Pode-se perceber que, mesmo que as intenções da política habitacional visassem a amplos objetivos, na prática, a sua gestão ainda não estava sendo cumprida integralmente. Por outro lado, no caso do conjunto Goiânia, o mesmo não ocorreu com o projeto da arquiteta Ana Schmidt, elaborado no mesmo período. Houve significativa evolução, dado que ela manteve contatos com os futuros moradores do assentamento, apresentando-lhes o projeto do empreendimento e informando os parâmetros do novo conjunto. Em entrevista realizada em junho de 2003, ela afirmou que não consultou a população que já morava no bairro, embora já tivessem acontecido manifestações deles contra a implantação. Esta última experiência citada pode ser considerada como evolução no sentido de participação da população no projeto, embora ainda insuficiente. É de se esperar que, com a regulamentação do Estatuto da Cidade, tais situações tendam a se ajustar, visto que os futuros empreendimentos deverão ter a participação popular também nas fases antecedentes à sua construção. Isso implica em pesquisas prévias que levantem as necessidades básicas das comunidades carentes para permitir aos novos espaços a serem construídos atender, com maior eficácia, à nova demanda. Apesar de se buscar nos projetos melhor adequação às condições locais, houve modificações nas residências, a partir da sua ocupação. Quanto a essas ocorrências, enfrentadas pelos moradores dos conjuntos após a construção, elas poderão ser melhor compreendidas, a partir da descrição dos conjuntos.
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2.1.1.1
O projeto do conjunto Goiânia
O projeto do conjunto Goiânia, de autoria do escritório Schmidt Arquitetura e Urbanismo Ltda, procurou atender aos parâmetros estabelecidos no termo de referência ditado pela URBEL àquela época: deveria abrigar famílias oriundas de áreas de risco, adotar sistema construtivo de baixo custo e conter o mínimo de 40 casas de aproximadamente 30 m 2 de área, com possibilidade de acréscimo do segundo pavimento na etapa seguinte (Termo de Referência editado pela URBEL em 1994, para licitação dos serviços de projeto do conjunto Goiânia). Segundo as normas ditadas por esse documento, a dimensão do terreno por unidade habitacional não deveria ultrapassar os 100 m 2.
FIGURA 2
Localização do conjunto Goiânia no município de Belo Horizonte
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO HORIZONTE, 1996.
Esse conjunto, localizado no setor nordeste da capital, no bairro Alvorada, 3 na avenida Josefino Gonçalves da Silva, contém 42 unidades geminadas em série, e teve sua implantação condicionada ao grande desnível em relação a essa avenida. Por isso, foram edificadas escadas de acesso às moradias, pois assim as casas
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Os limites dos bairros no presente trabalho foram adotados segundo o Processamento de Dados do Município de Belo Horizonte (PRODABEL, 2002).
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poderiam ser construídas nos patamares superiores do terreno, evitando serviços de terraplenagem e garantindo maior privacidade às mesmas, por estarem acima do nível da rua.
FIGURA 3
Situação do conjunto Goiânia em relação aos bairros adjacentes
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO HORIZONTE, 1996.
Segundo relato da autora do projeto, o emprego de platôs facilitou o assentamento das casas na topografia acidentada e as articulou pela rua interna, paralela à avenida, o que ainda possibilitou o deslocamento ao longo do conjunto. Cada residência compreendia o lote com o seu respectivo quintal, não sendo previsto no projeto original o fechamento com muro individualizado. Isso tornaria o custo da obra mais elevado e poderia fugir da proposta do conjunto, que seria a de integrar as edificações. No centro do Goiânia, foi prevista uma pequena área de lazer, onde as crianças menores poderiam brincar em segurança. Além de promover encontros da população do local, essa pracinha se destinaria ao elemento de articulação com o
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bairro, pois se abria para a avenida um espaço de integração com o local. Mas, infelizmente, parte desse espaço foi invadida pelos moradores vizinhos.
FIGURA 4
Planta do conjunto Goiânia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em URBEL,1998.
A volumetria do conjunto forma blocos diferenciados que seguem a direção dos eixos longitudinais, quebrados pela movimentação dos telhados dispostos contra a topografia e pelo agrupamento de casas com cores diferentes, o que peculiariza o assentamento sem, no entanto, dar a aparência de um conjunto habitacional
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tradicional. Mesmo sendo concebidas em série, que também é um recurso para o barateamento da obra, as casas parecem ter diversos volumes, graças a essa movimentação adotada para a cobertura no partido arquitetônico e à variação de cores utilizada em cada bloco de três casas. As casas geminadas compreendiam, na primeira fase do projeto original, quarto, sala, cozinha, banheiro e um nicho, onde está prevista a instalação da escada para o segundo andar. A área inicial de construção chega a 33,65 m 2, com previsão de crescimento até o máximo de 68 m 2, com a ocupação do segundo pavimento, que comporta mais três quarto s e um banheiro.
FIGURA 5
Plantas originais da casa do conjunto Goiânia - 1ª e 2ª fases
Fonte: URBEL,1988.
Cabe observar que o conjunto Goiânia foi implantado num terreno desapropriado pela Prefeitura Municipal, como pagamento de dívidas do imposto territorial de um grande loteamento destinado à classe média, assentado pela incorporadora Fayal nos anos 1980. Na sua implantação original, não foram contempladas as necessidades básicas de um bairro, mesmo aquelas comuns na periferia, especialmente equipamentos urbanos. O local é limitado por duas rodovias: a MG-05 que liga a cidade ao Estado do Espírito Santo e a que segue para Sabará, município
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da região metropolitana de Belo Horizonte. No seu entorno, existe uma favela, a Vila São Jorge, e vários loteamentos, cuja ocupação vinha se efetuando, com intensidade, desde os anos 1970, época em que a cidade vivenciou fase de grande expansão, conseqüente do processo de metropolização.
FIGURA 6
Situação do conjunto Goiânia em relação ao bairro Alvorada
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO HORIZONTE, 1996.
Acrescente-se, ainda, que a região é bem servida de infra -estrutura básica, que consta de iluminação pública, asfaltamento, transporte coletivo, telefonia e rede de água e esgoto. O comércio local atende satisfatoriamente à população com padaria, supermercado, açougue, farmácia, sacolão, na maioria instalados nas proximidades da avenida Josefino Gonçalves da Silva. Há três escolas públicas na região, a Escola Estadual Maria Cecília, a Escola Estadual José de Alencar e a Escola Estadual Luiz de Bessa. Foram detectadas várias corporações religiosas, dentre elas, a evangélica, embora a religião católica ainda seja predominante entre os moradores do local. Observa-se que essas funções são importantes no sentido de permitir a socialização das pessoas. O posto médico encontra -se no bairro vizinho Gorduras, o que exige deslocamento a pé da população do conjunto em cas o de necessidade de atendimento. Não existe posto policial nas imediações.
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FIGURA 7
Mapa do conjunto Goiânia e equipamentos do entorno
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
Quanto aos espaços destinados ao lazer, só existe uma quadra esportiva particular nas imediações, que é utilizada pelos moradores nos fins de semana. Durante a semana, o seu proprietário permite que crianças de até 12 anos, residentes no conjunto, pratiquem futebol no horário das 17 às 19 horas, quando ela passa a ser alugada para terceiros. Há previsão de implantação de um parque ecológico em terreno a ser desapropriado pela Prefeitura. Esse equipamento poderá beneficiar a região, que passará a ser provida de uma área de lazer. Considerando-se as características apresentadas, os equipamentos e a infra-estrutura, trata-se de um bairro comum de classe média.
2.1.1.2
O projeto do conjunto Araguaia
O projeto do conjunto Araguaia, localizado na região sudoeste de Belo Horizonte, no bairro Araguaia, na confluência das ruas Coronel Severiano, Amparo da Serra,
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Campo Grande e Brasitália, foi elaborado pelo escritório de arquitetura Gabriel Aun. Parte integrante do programa Área de Risco, assim como o Goiânia, esse conjunto se constitui de 35 unidades em série, também com previsão de construção em duas etapas e ocupando parcialmente uma quadra do bairro.
FIGURA 8
Localização do conjunto Araguaia no município de Belo Horizonte
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO HORIZONTE, 1996.
O conjunto Araguaia se constitui de duas ruas internas, paralelas e independentes, perpendiculares à rua Amparo da Serra, que servem de acesso às moradias. Os fundos dos lotes adjacentes às ruas Coronel Severiano e Campo Grande passaram a ser respectivamente lindeiros a elas, devido à sua forte declividade. O partido foi determinado pela topografia acidentada e buscou a implantação de habitações geminadas escalonadas no terreno, em obediência às condições naturais da sua declividade. As dimensões do terreno e o número de habitantes programado por técnicos da URBEL não permitiram agregar equipamentos coletivos comuns a projetos dessa natureza. Segundo o autor do projeto do conjunto Araguaia, as ruas internas foram criadas para proporcionar maior recolhimento e aconchego, sem qualquer interferência externa. A intenção do arquiteto seria recuperar romanticamente o modo de vida da
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comunidade que estava chegando, em sua maioria, oriunda do interior do Estado e que sonhava com o quintal no fundo da sua casa.
FIGURA 9
Vista das ruas internas do conjunto Araguaia
Fonte: Acervo particular da autora.
FIGURA 10 Situação do conjunto Araguaia em relação ao bairro Araguaia Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO HORIZONTE, 1996.
A integração do conjunto com o bairro Araguaia não se realizou dentro dessa concepção arquitetônica: o acesso às casas se dava unicamente por essas ruas internas e somente a fachada posterior de algumas residências era voltada para o bairro. A topografia íngreme das ruas Coronel Severiano e Campo Grande dificultava o ajustamento adequado das casas ao terreno. A solução encontrada no projeto foi a de construir um talude na fachada posterior da casa, nos lotes fronteiriços a essas vias. Ao contrário do previsto originalmente pelo arquiteto, esse projeto intensificou, também espacialmente, a diferença entre os moradores do bairro e os do conjunto.
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FIGURA 11 Planta do conjunto Araguaia Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em URBEL,1998.
O programa inicial da casa na primeira fase comportava estar, quarto, cozinha e banheiro, e a área de 30,30 m 2 poderia chegar a 59,21 m 2 com o acréscimo no primeiro pavimento de mais um quarto e no segundo andar de um quarto e um banheiro. A articulação dos cômodos promovia bom apro veitamento nos espaços internos, permitindo layout apropriado de acordo com as suas dimensões. A volumetria das edificações era valorizada pelo jogo de telhados, com alturas diferenciadas, embora todas as moradias tivessem pintura monocromática. O conjunto Araguaia tem como referência o Barreiro, região próxima à Cidade Industrial, que abrange, entre outros, os bairros Flávio Marques Lisboa, Milionários e Santa Helena. O processo de ocupação no Barreiro foi iniciado por operários, nos
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anos 1940, época da expansão industrial da capital mineira. Mesmo assim, ainda se mantiveram nas imediações muitos terrenos vazios, de propriedade particular, especialmente da Companhia Siderúrgica Mannesmann, mineradora alemã. Essa empresa implantou uma reserva ecológica no local, nos anos 1980, e abriu uma via, cujo acesso, diretamente facilitado à zona sul da cidade, é a Via do Minério. Com isso, surgiram novas perspectivas de desenvolvimento e expansão para a região, através do parcelamento de chácaras e de pequenas fazendas e, posteriormente, de loteamentos. É claro que essa expansão não evitou processos de invasões, o que provocou o surgimento de vilas e favelas, que cresceram desordenadamente.
FIGURA 12 Plantas originais da casa do conjunto Araguaia - 1ª e 2ª fases Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em URBEL, 1988.
Verificou-se que a região é bem servida de infra-estrutura básica e de equipamentos urbanos, muitos deles de abrangência regional, como o hospital Júlia Kubitschek, o centro de educação da FEBEM e algumas escolas secundárias, como o Grupo Escolar Francisco Bicalho, a Escola Municipal Isaura Santos e a Escola Municipal Pedro Aleixo. Foi percebida a deficiência de pré-escolas no entorno, que obriga a população a atravessar vias de grande movimento e se deslocar através de longos percursos.
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FIGURA 13 Situação do conjunto Araguaia em relação aos bairros adjacentes Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em BELO HORIZONTE, 1996.
Apesar de existir nas imediações uma reserva ecológica, não é permitido o acesso generalizado a ela, pois os programas educacionais da Reserva são dirigidos especificamente para entidades de ensino. O lazer acessível aos habitantes é uma quadra de esportes, construída pela Prefeitura Municipal nos anos 1980, localizada no bairro vizinho Barreiro de Cima. Quanto à localização, verifica-se que o conjunto está próximo a uma extensa avenida de fundo de vale de grande movimento, avenida Olinto Meireles, que liga a região do Barreiro ao centro da cidade. Essa avenida, assim como vias coletoras importantes, abriga o comércio local e regional, que atende a população com lojas de autopeças, artigos para festas, louças, materiais de construção, além de serviços,
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escolas e transporte coletivo. O comércio local provê, ainda, os habitantes com padaria, supermercado, açougue, sacolão, armarinho e farmácia. Já nas proximidades do conjunto, a única possibilidade de compras de última hora para a população local é um pequeno comércio, do tipo de secos e molhados, a venda do Itamar.
FIGURA 14 Mapa do conjunto Araguaia e equipamentos do entorno Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
Cabe salientar que, atualmente, a URBEL tem conseguido melhorar o processo de implantação dos novos conjuntos, resultante das experiências vividas anteriormente, associando as necessidades do usuário, seu perfil socioeconômico e o custo da obra. É de se destacar que a inclusão da consulta prévia, além de garantir o aval da
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população preexistente, resulta em substanciais aperfeiçoamentos do programa, o que vem beneficiando as populações ate ndidas. Mesmo assim, ainda permanece a padronização nos partidos arquitetônicos, faltando em cada residência a singularidade característica de quem mora nela. Esses projetos ainda mantêm o padrão que conceituamos como sendo ditadura da arquitetura, imposto pelos princípios de economia e padronização, oriundos da Arquitetura Moderna, que procuram priorizar a redução do custo da obra e facilitar a sua construção, sem considerar as necessidades específicas de cada família. Assim, não se deve descuidar de que os projetos da moradia para a habitação social sejam independentes, executados individualmente por cada família, possibilitando a construção da casa dos seus sonhos , dentro de recursos disponíveis. O Estado proveria o local de infra -estrutura, aplicando ali condições de um planejamento urbano adequado, ao passo que caberia ao novo proprietário a definição do projeto para a sua própria moradia, a ser elaborado por técnicos das instituições públicas, à maneira do que acontece com as soluções individuais.
2.2
A arquitetura do morador
À medida que o espaço projetado pelo Estado passa a ser apropriado pela comunidade, novas interferências vão acontecendo na sua configuração física, conseqüência dos valores e da vivência dessa comunidade, que refletem no lugar o caráter simbólico adquirido. Nesse sentido, o espaço se configura como construído, representando as características físicas e sociais, como bem lembra Milton Santos (1985, p. 5-49). Quanto ao caráter de totalidade expresso no conceito de espaço adotado por esse autor, ele abarca tanto os aspectos físicos como os de ordem social e simbólica. Essa totalidade se constitui numa aspiração real da sociedade em permanente processo de transformação. Para ordenar espaços, deve -se compreender sua interação com a sociedade. De fato, o morador se relaciona de maneira própria e peculiar com cada espaço que ele freqüenta, tornando o lugar por ele apropriado único, pois ali se expressa a sua maneira de ver e viver o mundo; o espaço é inventado, construído à sua maneira.
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No momento em que se manifesta essa identificação, a casa passa a adquirir para o seu morador um valor além de simples abrigo: ela se mostra através de uma objetividade social que se reflete nos intercâmbios subjetivos que ali se realizam, nas manifestações entre os membros da família e como lugar dos sonhos para os seus habitantes. Além do mais, a ação do Estado, cuja relação entre a política e o projeto delineia uma distância da realidade, necessita ser revista no enfoque daquele pensador, na busca dessa interação com a sociedade. É por isso que Oliveira (1993, p. 193-204), em estudo sobre Bangu, no Rio de Janeiro, lembra que o projeto ainda continua vindo de fora, estranho ao morador, pois não contém as marcas da sua história, do seu lugar, da sua prática e, por não ter essas marcas, não é compreendido em sua generalidade e, portanto, não se torna objeto de apropriação. Sob esse ponto de vista, a noção do direito de morar se estendeu além do acesso à propriedade, à qualidade de vida e à infra-estrutura, pois, conforme esse autor, morar já não era mais apenas ocupar um pedaço de terra; era ter direito ao lugar. Quando analisamos grande parte dos conjuntos habitacionais, principalmente os construídos pelo BNH, podemos perceber que as pessoas se apropriavam desses espaços, após a sua ocupação, de maneira diferenciada daquela proposta inicialmente pelo projeto, tanto nos aspectos físicos como nos de ordem social. A configuração física dos projetos originais foi alterada pelos moradores, ajustada às suas necessidades, dentre as quais a de estabelecer um caráter pessoal e diferenciado, em que eles se sentissem identificados e integrados ao novo espaço. Além do mais, verifica-se que o encaminhamento da produção da habitação popular, naquela época, foi originário de uma política centralizadora e que observava precariamente as condições locais específicas. Dessa forma, o novo olhar sobre a política habitacional municipalizada, resultado de múltiplos fatores, como novas concepções de cidadania, mudanças tecnológicas e conquistas sociais, qualifica o atendimento às necessidades da população local. Impõe-se, então, que as ações para a habitação se adaptem mais adequadamente às condições do lugar, atendendo, assim, de modo imediato, àquelas questões não resolvidas até então pelos projetos da habitação social.
63
No entanto, ao avaliar as experiências dos projetos direcionados por essa nova política, verificamos que a configuração das casas dos conjuntos implantados pela URBEL continua apresentando modificações e acréscimos nos seus pro jetos originais. Esse fato traduz certo grau de insatisfação em relação às moradias construídas por esse órgão, apesar de terem sido seguidos pelos construtores os critérios para implantação desses conjuntos. Também foram definidos os padrões que compunham a dinâmica de organização espacial das moradias, que obedeciam, inclusive, às normas estabelecidas pela política habitacional municipalizada e pela LUOS. Essas alterações resultaram no comprometimento das suas fachadas e das condições ambientais internas dos espaços. A relação preconceituosa dos moradores dos bairros se manifestou quanto às características físicas das casas dos conjuntos. A tipologia das novas residências se aproximava mais daquelas já existentes e eram mais ameaçadoras do que se fossem ed ifícios altos. Essas edificações poderiam ser, sob o olhar dos moradores dos bairros, mais um elemento que pudesse diferenciar aqueles que chegavam: “Tinha que fazer um conjunto de prédios e não as casas de pombo que fizeram. Deveriam também colocar pessoas que não fossem perigosas, bandidas. Nós achávamos que quem ia morar ali eram pessoas que tiveram as casas desapropriadas para a construção de avenidas” (vendedora, 47, 36A).4 Pôde-se verificar que, à medida que iam sendo modificadas, seguindo técnicas c onstrutivas elementares, as casas tinham suas fachadas alteradas e, na maioria das vezes, conservavam as paredes aparentes, sem serem rebocadas. Isso era condenado por vários entrevistados que moravam nas proximidades dos conjuntos: “Tenho vontade de mudar, sem me referir a essa pobreza. São verdadeiras malocas de maconha. Fico bravo com a Prefeitura, porque ela tratou a gente com descaso” (gerente de loja, 45, 32A). “O conjunto incomoda. Ele é feio e sujo. De frente, é horrível! De perto do lixo, dá uma impressão muito feia” (técnica laboratorial, 38, 48G). Dessa maneira, o sentido estético foi reforçado no sentimento dos indivíduos, já que todos demonstraram o desejo de morar próximo à beleza e não à feiúra.
4
Na informação verbal, a identificação dos moradores se deu primeiramente através da profissão, da idade e da representação alfanumérica, cujo número identifica a ordem na qual foi feita a entrevista, e a letra representa o conjunto pesquisado: G, o Goiânia e A, o Araguaia.
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FIGURA 15 Vista parcial do conjunto Goiânia Fonte: Acervo particular da autora.
FIGURA 16 Vista parcial do conjunto Araguaia Fonte: Acervo particular da autora.
Isso se confirma ante as observações de Palhares (2001, p. 176), que constataram que as deficiências no espaço projetado provocaram modificações em mais da metade das habitações pesquisadas no conjunto Esperança, em Belo Horizonte. O comprometimento da qualidade dessas moradias era conseqüência dos parâmetros mínimos de habitabilidade estabelecidos pela Secretaria Municipal de Habitação, da incompatibilização do programa com a composição familiar e da falta de áreas livres disponibilizadas em contraposição aos princípios de adensamento máximo. Esse autor acrescenta que o ato de modificar o espaço da habitação é entendido como atitude própria da natureza humana e que as alterações, embora descaracterizem o espaço arquitetônico formal e espacialmente, possibilitam a liberdade ao morador para que ele construa a sua melhoria da qualidade de vida (PALHARES, 2001, p. 74). Na elaboração do projeto não se deve perder de vista a
65
realidade dessa afirmação, buscando se aproximar o máximo dessa tendência e observando a liberdade da produção do espaço pelo próprio morador, visto que ali a sua identidade é cons truída continuamente. No trabalho de campo realizado nos conjuntos Goiânia e Araguaia, pôde-se avaliar o comportamento da população em relação às adequações desse espaço produzido pela URBEL, no processo inicial da municipalização da política habitacional em Belo Horizonte e, ao mesmo tempo, indicar, tanto quanto possível, quais as mudanças mais recorrentes no processo de adaptação a esses novos espaços. Cerca de 80% dos
entrevistados
consideraram
as
condições
originais
das
habitações
insatisfatórias, de ac ordo com a TAB. 1. Por outro lado, as restantes 20% de respostas indicaram que não se apresentaram problemas nas residências. Na concretização do projeto, foram detectados problemas construtivos em 50% das casas do Goiânia e em 48% do Araguaia, ao passo que as críticas ao projeto se mostraram presentes em 25% das residências do Goiânia e em 36% do Araguaia. TABELA 1 Problemas encontrados nas casas dos conjuntos Goiânia e Araguaia Problema Citado
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Problema construtivo
31
50
21
48
52
52
Problema de projeto
14
25
16
36
30
30
Não apresenta problema
11
25
7
16
18
18
Total de incidências
56
100
44
100
100
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Os fatores da insatisfação que se relacionavam diretamente com o padrão construtivo diziam respeito às infiltrações, trincas e acabamentos de má qualidade. Quanto ao direcionamento do projeto, os fatores que mais chamaram atenção dos entrevistados se referiam ao dimensionamento dos cômodos e à organização em série das moradias, como se pode ver em detalhes, na TAB. 2. Quanto às infiltrações, trincas e o material de acabamento, assim se manifestaram alguns moradores: “Tem muita goteira; é mais na cozinha. Peço a Deus pra me abençoar e me ajudar” (dona de casa, 43, 33G). “Minha sala tá cheia de trinca.
66
Quando chove, é um transtorno, porque inunda tudo” (aposentado, 49, 8A). “O esgoto passa na frente da nossa casa” (faxineira, 37, 19G). TABELA 2 Discriminação dos problemas encontrados nas casas dos conjuntos Problema Citado
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Infiltração
13
23
17
39
30
30
Acabamento
8
14
-
-
8
8
Trinca
7
13
4
9
11
11
Padrão Construtivo
28
50
21
48
49
49
Cômodos pequenos
11
20
10
22
21
21
Casas em série
3
5
6
14
9
9
Direcionamento do Projeto
14
25
16
36
30
30
Não apresentam problemas
11
20
7
16
18
18
Outros
3
5
-
-
3
3
Total de incidências
56
100
44
100
100
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Já a organização das edificações em série, ou seja, a implantação de casas geminadas, sem qualquer afastamento lateral, não isolava acusticamente o ruído interno de cada unidade. Apesar de representar custo mais baixo na construção, os moradores alegaram que não havia privacidade, o que se pode considerar uma falha tanto na concepção do projeto como na sua construção: “As casas são muito junta uma nas outras; não tem muita intimidade” (estudante, 18, 18G). “Não dá muito certo esse negócio de casa colada. Tinha que ser separada” (dona de casa, 44, 7G). Através das manifestações dos moradores, pode-se observar o desejo de intimidade, ou seja, de voltar à configuração das residências unifamiliares adotadas por programas anteriores. Essa solução vem se tornando cada vez mais distante, em função do alto custo do terreno e do seu aproveitamento no nível coletivo do conjunto. O dimensionamento dos cômodos, principalmente banheiros e quartos, também foi fator de descontentamento para muitos moradores dos conjuntos, o que levou os usuários a alterá-los: “O banheiro é pequeno. Fizeram a casa pequena achando que ia satisfazer as pessoa que ia morar lá” (desempregada, 35. 13G). “Os quarto não dá nem pra gente bota r as cama direito” (vendedora, 18, 10A).
67
Embora muitos habitantes dos conjuntos tivessem consciência das deficiências nas suas moradias, especialmente dos defeitos construtivos, a maioria não recorria ao órgão competente, no caso, a URBEL, para reivindicar seus direitos. Por falta de informação ou até por conformismo, eles acreditavam que já se tinha feito muito por eles, ao serem assentados em moradias estáveis. Nesse sentido, cabe observar que a ação desse órgão, no que diz respeito à provisão de moradias, vem atendendo às proposições estabelecidas pela política vigente, embora ainda existam dificuldades reais da participação dos moradores dos conjuntos no exercício dos seus direitos nesse processo de doação.
2.2.1
O projeto do morador
À medida que as pessoas iam vivenciando o espaço, elas puderam perceber a melhor maneira de adaptá-lo ao seu modo de vida. Assim que as condições financeiras permitiam, eram feitas modificações na proposta original. Essas modificações traduziam tanto a adequação do espaço físico para melhor acomodação dos moradores, como a necessidade de representar a singularidade da vida de cada família. Aliás, situação semelhante é bem analisada por Peluso (1999, p. 124), ao afirmar que “depois da reforma, a casa serve ao dono, proporcionandolhe o almejado conforto burguês [...] Ele reformou a casa para si, para a idéia que faz do conforto. Ele marca a diferença”. De fato, a casa é o lugar da identificação. O contínuo processo da mudança estabelece a ressignificação desse espaço. Serão, então, apresentadas as maiores incidências das modificações e dos acréscimos dos projetos originais. As manifestações de moradores que desejavam reformar suas moradias podem exemplificar bem essa análise, espelhada no pensamento burguês: “Se eu tivesse dinheiro, fazia uma casa colonial em cima da minha” (desempregada, 36, 24G). “Quero arrumar minha casa igual à deles” – no caso, as casas dos moradores do bairro que indicavam perfil caracterizado de classe média (catadora, 63, 7G). Não se pode deixar de considerar, ainda, a grande influência que os meios de comunicação de massa exercem sobre qualquer tipo de público. As mensagens transmitidas pela TV têm a capacidade de influenciar o comportamento das pessoas
68
na linguagem, no modo de vestir, de agir e até mesmo de morar. Com isso, a televisão, acessível a todos, gera categorias de valor que se incorporam facilmente à cultura das pessoas e passam a fazer parte dela. E, assim que possível, os novos habitantes introduziam modificações nas suas casas, de modo que elas pudessem atender, tanto quanto possível, às suas demandas e desejos e se tornassem para eles singulares .
FIGURA 17 Vista das casas em frente ao conjunto Goiânia Fonte: Acervo particular da autora.
O desejo de tomar posse da propriedade, garantindo privacidade e segurança, levou 32% dos entrevistados do Goiânia e 37% do Araguaia, conforme a TAB. 3, à providência inicial da construção de muros para fechar seus lotes. Nos conjuntos, essa tendência foi confirmada como a principal interferência nas novas moradias após a sua ocupação, que é bem avaliada por Peluso (1999, p. 124), ao afirmar que, enquanto não se efetua a demarcação, a casa se mantém imersa na extensão homogênea e infinita do nada e do todos. Cabe ressaltar que as demais reformas se concentraram na colocação de acabamento mais resistente sobre a base de concreto existente, na ampliação dos cômodos e no acréscimo de novos espaços. Alguns elementos constituintes da moradia, tais como portas e janelas, foram trocados imediatamente após a chegada ao conjunto, pois não ofereciam segurança aos habitantes, conforme relata uma moradora: “As porta já caíram. Tive que trocar, senão eu nem dormia mais” (dona de casa, 59, 29G). Isso mostra que os materiais empregados na construção das casas populares naquela época não atingiram padrão de qualidade aceitável.
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TABELA 3 Modificações feitas nas casas dos conjuntos Modificação feita
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Muro (lateral e/ou frontal)
40
32
38
37
78
34
Acabamento
31
25
23
22
54
24
Improvisou modificação
27
22
14
14
41
18
Acréscimo de cômodo
18
14
18
17
36
16
Acréscimo de pavimento
2
1
5
5
7
3
Nenhuma modificação
7
6
5
5
12
5
Total de incidências
125
100
103
100
228
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
FIGURA 18 Vista dos lotes sem muros na época da implantação Fonte: N ASCIMENTO, 1998.
FIGURA 19 Vista dos lotes com muros em 2003 Fonte: Acervo particular da autora.
Muitas outras modificações significativas feitas nas casas se relacionavam com o acréscimo de quartos, áreas de serviço, varandas, garagens, escadas ou cozinhas externas, lembrando as antigas casas de origem da maioria dos moradores, no interior do Estado. Esses novos espaços eram incorporados gradualmente ao corpo
70
da casa, ampliando a área construída e diminuindo o quintal, sendo que, em alguns casos, houve invasão do espaço público adjacente às moradias.
FIGURA 20 Foto da construção por etapas de casa do conjunto Goiânia, mostrando situação na época da implantação Fonte: N ASCIMENTO, 1998.
FIGURA 21 Foto da construção por etapas de casa do conjunto Goiânia, mostrando situação em 2003 Fonte: Acervo particular da autora.
71
Maricato (1982, p. 91), em estudo sobre autoconstrução, bem lembra essa situação, em que a ingênua busca da criação arquitetônica popular resulta bastante frustrada, dada a articulação rígida de todos os elementos que se compõem na determinação do projeto. Ao mesmo tempo, na construção por etapas, observa -se que são empregados materiais baratos, simples, de manutenção fácil e amplamente conhecidos, mão-de-obra não especializada e intermitente, técnica rudimentar, poucas ferramentas, nenhuma máquina e a disponibilidade parcelada de tempo e dinheiro. De toda forma, a liberdade resultante das modificações não se evidencia, desde já, como uma solução complementar. Por outro lado, em estudo sobre conjuntos em Belo Horizonte, Santos (1999, p. 85) observa que a comunidade desconhece a legislação. A autora alerta que esses moradores possuem um estilo próprio de vida e que suas necessidades são específicas: flexibilizam o uso das edificações para a realização de atividades econômicas, ocupam afastamentos frontais, de fundos e laterais, invadem áreas destinadas a equipamentos públicos. As alterações que buscavam atender às demandas de cada família iniciavam o processo de descaracterização dos conjuntos Goiânia e Araguaia. No que diz respeito à obediência à legislação e à ordem estética, a imagem das residências ficava sujeita a iniciativas particulares. O comprometimento do conforto ambiental interno foi um dos aspectos negativos nas reformas dessas moradias, pois os novos espaços anexados nem sempre garantiam iluminação e ventilação adequadas. Essas mudanças não se limitaram a comprometimentos de fachadas e das condições ambientais dos espaços internos, mas na eliminação de janelas que permitiam iluminação e ventilação naturais, e no sub-dimensionamento dos cômodos, resultando, todas essas intervenções, no desmedido consumo das áreas livres. Esse fato pôde ser observado na maioria das casas alteradas no conjunto Goiânia, como mostram as plantas das casas 1 e 2, onde o espaço destinado à futura escada no projeto original passou a ser utilizado como quarto, nem sempre dotado de iluminação ou ventilação adequadas, observando-se, ainda, as dimensões insuficientes para essa função, que, pela legislação, deveriam ser superiores a 9 m 2.
72
A ampliação da cozinha das casas desse conjunto também provocou ambientação interna inadequada que, na maioria das vezes, era sanada pelos habitantes com telha translúcida, permitindo, assim, maior iluminação interna, como foi demonstrado na planta da casa 3. Interessante notar que a nova setorização e a articulação interna dos espaços eram bem resolvidas, o que não causou surpresa, visto que grande parte dos chefes de família que habitava os conjuntos era composta por trabalhadores da construção civil.
FIGURA 22 Plantas modificadas das casas 1 e 2 do conjunto Goiânia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
Os acréscimos construídos nas casas dos conjuntos Goiânia e Araguaia mantiveram essas características na solução das plantas. E até mesmo como exemplo de tendências utilitárias complementares, no conjunto Goiânia, havia um desnível significativo das casas lindeiras à avenida Josefino Gonçalves da Silva, aproveitado para a construção de lojas ou garagens, como demonstrado nas casas 4 e 5. Como surgiu a possibilidade de expansão horizontal sobre as lajes desses novos cômodos, a tendência de seguir o acréscimo sugerido originalmente pelos arquitetos se anula.
73
FIGURA 23 Planta modificada da casa 3 do conjunto Goi창nia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
FIGURA 24 Planta modificada da casa 4 do conjunto Goi창nia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
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FIGURA 25 Planta modificada da casa 5 do conjunto Goi창nia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
FIGURA 26 Plantas modificadas das casas 6 e 7 do conjunto Araguaia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
75
Observa -se que as alterações se davam sempre a partir da condição mais facilitada pelo projeto original. Isso pôde ser percebido no conjunto Araguaia, onde a expansão prevista na segunda fase se iniciou com o acréscimo do quarto no primeiro pavimento. Esse acréscimo se verificou, como mostram as plantas das casas 6 e 7, mas as dimensões desse cômodo ultrapassaram as previstas no projeto original, gerando comprometimento na iluminação e ventilação do novo quarto, visto que a área da janela era inferior àquela necessária para oferecer condições saudáveis ao ambiente.
FIGURA 27 Planta modificada da casa 8 do conjunto Araguaia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
A busca de padrões que referenciavam os valores da classe média pôde ser detectada na planta da casa 8 do conjunto Araguaia, que adotou no programa da residência destinações incompatíveis com moradias para a habitação social. Mesmo nesse caso, as deficiências resultantes das modificações mais agravaram do que atenderam às condições mínimas do projeto original, considerando-se
o
comprometimento das áreas livres e das condições de conforto ambiental e de salubridade. Essas alterações talvez não teriam ocorrido se houvesse um prévio contato do usuário com o projeto, de modo a identificar suas aspirações e transmitilas ao arquiteto, para que o projeto as atendesse mais adequadamente.
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Como visto anteriormente, no Araguaia, o acesso original do conjunto se dava através das ruas internas. A maioria das casas, cujas fachadas posteriores eram voltadas para as ruas Coronel Severino e Campo Grande, alterou o seu ac esso para essas vias. As ruas internas se destinariam apenas ao controle da leitura da água e da luz, já que os medidores são ali localizados. O objetivo dos seus moradores foi manter maior contato com o bairro, o que seria natural, por se tratar de uma oportunidade de entrosamento desses indivíduos com o entorno, como demonstram os depoimentos: “Fico isolado do mundo. Preciso de uma frente para sair” (carpinteiro, 48, 23A). “A chegada pela rua Campo Grande é ótima. Não mexo com nada pelo fundo – rua intern a. Lá só tem leitura de água e luz” (doméstica, 43, 18A). Esse fato apresenta uma intenção da população do conjunto de se integrar à comunidade e à vida cotidiana do bairro, conforme indicado nas plantas das casas 9, 10, 11 e 12.
FIGURA 28 Vista das fachadas posteriores das casas, que se voltaram para as ruas principais Fonte: Acervo particular da autora.
Em nosso entender, as alterações constantes na maioria das residências dos conjuntos Goiânia e Araguaia não teriam acontecido no partido e na extensão em que ocorreram, se tivesse havido maior participação dos usuários na fase de elaboração do projeto. Não se pode deixar de comentar que, das alterações assinaladas, ocorrem não só danos à qualidade arquitetônica das casas, como também ao comprometimento do aspecto geral da paisagem local. Evidencia-se, assim, nossa preocupação em demonstrar tudo quanto de danoso pode resultar de um projeto imposto, que não leva em consideração aspirações naturais dos futuros
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usuĂĄrios. Este fato ĂŠ demonstrado no desenho da autora do projeto e na foto desse projeto na realidade.
FIGURA 29 Plantas modificadas das casas 9 e 12 do conjunto Araguaia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
FIGURA 30 Planta modificada da casa 10 do conjunto Araguaia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
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FIGURA 31 Planta modificada da casa 11 do conjunto Araguaia Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco com base em pesquisa de campo, 2003.
FIGURA 32 Projeto do conjunto Goi창nia idealizado pela arquiteta Ana Schmidt Fonte: Elaborado por Ana Schmidt, 1995.
79
Felizmente, é tranqüilizadora a expectativa futura de não ocorrerem fatos dessa natureza, devido à oportuna imposição da nova legislação urbanística, que dilata consideravelmente as tarefas dos órgãos encarregados da produção da habitação social.
FIGURA 33 Vista do conjunto Goiânia na realidade Fonte: Acervo particular da autora.
A sociedade, por sua vez, vem passando por transformações e a moradia, na medida do possível, tem se adaptado aos diferentes modos de ser e existir das pessoas. Novos fatores vêm, cada vez mais, interferindo na ação de morar que, como muito bem afirma Penzim (2001, p. 33), são, dentre outras, de ordem histórica, cultural, social, demográfica, psicológica, política, econômica, ética e estética. É assim que se faz a tradição: hábitos antigos são revistos na medida em que surgem novas oportunidades da vivência das pessoas, visto que a sociedade vive em constante mutação. Sob esse ponto de vista, constata-se que o projeto não atende e não vai atender integralmente a todas as aspirações do ser humano. Mas isso não impede que os projetos de arquitetura das moradias se aproximem de um nível de satisfação para ele e sua família. Essa dinâmica é claramente confirmada nos conjuntos Goiânia e Araguaia. Mesmo que grande parte dos habitantes tivesse feito reformas e acréscimos no projeto original, a maioria dos entrevistados ainda gostaria de incluir, futuramente, alguma alteração em suas casas, visando a atender de maneira mais adequada às necessidades das suas famílias. O desejo manifestado por 20% dos residentes no Goiânia e 13% no Araguaia, conforme a TAB. 4, se referia à complementação da construção de muros nos lotes; alterações internas da casa como, por exemplo, melhorar o acabamento dos espaços já existentes, para 26% dos habitantes do
80
Goiânia e 20% do Araguaia; ampliar o segundo pavimento ou aumentar o número de cômodos, principalmente de quartos, para 25% deles no Goiânia e 28% no Araguaia. TABELA 4 Modificações que os moradores gostariam de fazer nas casas dos conjuntos Tipo de Modificação
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Acabamento
17
26
10
20
27
24
Acréscimo de cômodo
16
25
14
28
30
26
Muro (lateral e/ou frontal)
13
20
6
13
19
16
Acréscimo de pavimento
10
15
10
20
20
18
Nenhuma modificação
6
9
3
6
9
8
Outros
3
5
6
13
9
8
Total de incidências
65
100
49
100
114
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Embora constasse a previsão do acréscimo para a segunda fase do projeto – o do pavimento superior nas moradias dos conjuntos –, pôde-se constatar que as modificações não se detiveram aos projetos originais, pois cada família alterou sua casa conforme o seu entendimento do que seria o melhor espaço para ela. A maioria acreditava que a estrutura existente não comportaria o peso do andar superior, apesar de técnicos da URBEL terem afirmado que o projeto estrutural da casa suportava o acréscimo superior. Esta também foi outra justificativa de grande parte das expansões ter ocorrido no sentido horizontal, gerando comprometimento da qualidade ambiental dos espaços, principalmente na ventilação, iluminação e insolação dos compartimentos. Nos raros casos em que se acrescentou o segundo pavimento da casa, o mesmo se destinava a outra família: geralmente, eram os filhos dos proprietários que casavam ou um parente próximo que não tinha condições de adquirir uma moradia. Outro aspecto a se considerar é que o acréscimo se tornava necessário em função do número de moradores por residência, que variava de quatro a sete pessoas, chegando a atingir até doze moradores em uma só unidade. Mais uma vez, pode-se comprovar que o programa adotado ainda não atendia integralmente às
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necessidades do público a ele destinado. Como conseqüência, o projeto também não satisfazia às condições básicas de instalação da maioria das famílias. Poucas foram as famílias que ainda mantiveram o projeto original da casa, tanto no conjunto Goiânia, com 9% dos casos, como no Araguaia, para 6% dos entrevistados, segundo a TAB. 4. A maior razão é que os proprietários não dispunham de capital para as reformas ou a casa já atendia às necessidades dos moradores, não precisando, portanto, de intervenções. O fato de morar numa casa que oferecesse segurança foi considerado como positivo, o que, sob esse ponto de vista, permite afirmar que o programa habitacional ali implementado beneficiou a maioria desses cidadãos, embora o dimensionamento dos espaços ainda não atendesse completamente à composição familiar. Na produção de conjuntos habitacionais, as possibilidades de adequação dos espaços destinados a esse fim poderão atender mais adequadamente às necessidades dos usuários na realidade. Nesse caso, o mais importante seria a mudança da mentalidade dos atores envolvidos na produção de moradias dessa natureza, pois a qualidade do espaço passa também pela sua adequação a todas as questões ali envolvidas, tanto no que tange à construção quanto ao projeto, como é o caso do dimensionamento, da articulação espacial e do conforto. E se acentua a necessidade de atender cada vez mais a esse público, com a participação efetiva na construção da sua própria casa. Esse espaço, conforme se verificou, vem atendendo apenas parcialmente às demandas de suprimento de moradia para a população de baixa renda. É inegável o esforço e alguns bons resultados obtidos na ação e no atendimento dos órgãos competentes, embora, ainda, na maioria das vezes, não esteja conseguindo prover grande parte das necessidades da habitação social. Cabe, finalmente, uma observação no sentido de valorizar a atuação da pós ocupação nesses conjuntos, visto que o processo não termina quando as casas são entregues aos moradores; pelo contrário, essa continuidade torna-se premente, principalmente ao se considerar que as adaptações vão depender de condições culturais antecedentes e de informações e de acompanhamento que possibilitem sua adequação, agora referendados pelo Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001).
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Como se pode verificar, o processo de atendimento das necessidades para os usuários da moradia social ainda requer maior ação participativa da comunidade, com vistas a identificar cada vez mais as suas aspirações, a exemplo do que ocorre nos projetos individuais. Mesmo assim, os projetos individualizados ainda são modificados por seus proprietários, demandando ajus tamentos necessários nos espaços apropriados, visto que a sociedade muda, refletindo novas maneiras de viver esse espaço.
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3
A MUNICIPALIZAÇÃO DA POLÍTICA HABITACIONAL
Este capítulo procura analisar a política adotada pela URBEL e de que forma a sua ação vem se processando nos programas elaborados por esse órgão, visto que eles se refletem nos projetos que atendem à população de baixa renda. Além do mais, torna-se importante avaliar a eficácia da sua gestão, no sentido de conseguir melhor atendimento às necessidades dos seus moradores. Os projetos elaborados pela URBEL seguiram as diretrizes da política habitacional estabelecida por esse órgão, resultante da municipalização da política urbana, que alterou os conceitos de habitação, a partir da participação popular no processo da produção das moradias e das observações de ordem local, o que se constituiu em avanço, face às ações anteriores do Poder Público. Mesmo que tais projetos ainda não atendessem integralmente às necessidades dos moradores, cabe observar que esse órgão cumpriu seus objetivos ao proporcionar a casa própria para a população inscrita nos programas. A ação da URBEL, nesse sentido, tende a melhorar no que diz respeito ao atendimento aos usuários, pois as experiências sob essa nova orientação têm se acumulado através dos programas de acesso à casa própria. Além disso, elementos da legislação federal, como o Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), que referenda a Constituição de 1988 (BRASIL, 1989), podem contribuir para que ações desse órgão evoluam nesse sentido. A análise da política e da ação da URBEL pode auxiliar na compreensão do processo e das melhorias nas condições dos projetos das moradias ali produzidas. A Constituição Brasileira, em obediência a movimentos sociais dos mais diversos setores, incluiu na sua etapa a Reforma Urbana, que conferiu, à cidade e à propriedade, funções nitidamente sociais. Tais disposições constitucionais, ao serem regulamentadas, geraram uma legislação específica, nacional, que impunha a inclusão de todos os órgãos na solução do problema habitacional. Dadas as dimensões geográficas e a variedade cultural e social do país, a própria legislação levou isso em conta, quando dotou de atribuições coerentes o Estado e o município. As ações dos movimentos populares também retrataram uma nova postura para a questão urbana, vista através da descentralização, da participação popular, da
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parceria com o terceiro setor, do respeito ao meio ambiente e da busca do direito de acesso às funções da cidade, tais como educação, saúde, habitação. Na realidade, coube ao município a função específica da solução habitacional, fato que, genericamente, representou a desejada municipalização do problema. O Plano Diretor tornou-se o principal instrumento para que os municípios cumpram essa função. No sentido de atender a aspectos referentes à habitação social, o Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), através do Plano Diretor, adota as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS – como instrumento indutor dessa atividade urbana. Nessa nova concepção, cabe às ZEIS, além da produção, cuidar também da manutenção de programas de habitação social. 5 Também é incluída na ZEIS uma categoria que permite, mediante um plano específico de urbanização, o estabelecimento de um padrão urbanístico próprio para o assentamento. Nesse novo contexto, a gestão das políticas urbanas foi delegada em grande parte às prefeituras. O poder municipal, então, articulou com os governos estadual e federal mecanismos que pudessem criar estratégias para melhorar a administração local, inclusive no que dizia respeito à provisão de moradias. Além disso, novas tendências surgiram em função desse novo olhar, que certamente incentivou a descentralização, até então pouco adotada. Cabe observar que a gestão local seria o nível de governo que poderia permitir maior integração entre as políticas de provisão de moradias e as ações de controle do uso e ocupação do solo e, baseada na realidade do lugar, teria chances de atender mais imediatamente às necessidades e especificidades locais. No caso de Belo Horizonte, a URBEL surgiu com esse objetivo. Os projetos que passaram a ser elaborados pela URBEL começaram a apresentar características inovadoras, resultado de um progressivo e lento ajustamento à nova legislação. Embora as soluções contivessem vícios provenientes das políticas
5
Dentre as várias modalidades classificadas pelas ZEIS, destacam-se terrenos ocupados por favelas, por população de baixa renda ou por assentamentos irregulares nos quais haja interesse em se promover a urbanização ou a regularização jurídica de posse da terra. A segunda espécie diz respeito aos loteamentos irregulares que têm interesse público em se promover a regularização jurídica do parcelamento, a complementação da infra-estrutura ou dos equipamentos comunitários, bem como a recuperação ambiental. Já a terceira espécie de ZEIS se refere aos terrenos não edificados, subutilizados ou não utilizados, necessários à implantação de programas habitacionais de interesse social. (BRASIL, 2001, p. 191-192)
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anteriores, principalmente os decorrentes de falhas na elaboração do projeto, a URBEL, baseada nas imposições da nova legislação, passou a tomar cuidadosas medidas quanto ao recrutamento dos profissionais encarregados dos mesmos. A relação prévia entre esses técnicos e a comunidade constituiu uma das principais e mais proveitosas medidas a serem efetivadas. Em decorrência delas, os profissionais também se prontificaram a introduzir nos projetos aspetos que pudessem identificar, entre as aspirações das comunidades, as que seriam agregadas a eles, naturalmente sem perder de vista as limitações orçamentárias. Ao mesmo tempo, a própria URBEL não se descuidou desse necessário e amplo diálogo. Os projetos dos conjuntos Goiânia e Araguaia se desenvolveram nesse período de ajustamento das soluções da política de aproximação da URBEL com a legislação urbanística, que vem se firmando cada vez mais. Pelo visto, o processo evolutivo da produção da habitação social segue seguramente rotas claras e definidas, apoiadas numa progressiva introdução de equipamentos urbanos e elementos ambientais, suportes indispensáveis de uma vida urbana mais saudável. O processo da implantação, que deveria ser resultado de prévio contato com as comunidades em ações ininterruptas, envolveu projetos, edificações e gestão por parte de assistências técnicas e jurídicas, e embora se completasse com a regularização fundiária, conforme a nova política, não se cumpriu na íntegra. Dada a complexidade das sucessivas fases desse processo, a URBEL deve exercer inevitáveis ações pedagógicas ante a gama de atores envolvidos, tanto nos projetos e na implantação quanto na destinação das moradias. Com a municipalização, o acesso à moradia tornou-se mais explícito, em virtude do atendimento às características físicas e sociais locais. Ainda mais que já havia, anteriormente, realizações de projetos de construção de moradias populares, com destaque para a iniciativa de urbanização e regularização fundiária de loteamentos ilegais e áreas faveladas, para os programas por iniciativa dos estados e municípios e para a utilização de terras públicas ociosas para assentamentos de baixa renda, que passaram a se identificar nos setores locais. Sob esse aspecto, Oliveira (2000, p. 62) veio contribuir efetivamente para a compreensão, ao afirmar que o acesso à terra e à cidadania, orientado por movimentos populares pela moradia, buscava
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novo modelo de política habitacional. Os princípios norteadores dessa ação se sustentavam na compatibilização de projetos de arquitetura e localização adequada com custos viáveis, bem como no estímulo à autogestão, elementos que se traduziram em um leque de programas de caráter inovador, capazes de dar respostas a demandas diversificadas. Já a política de urbanização de favelas e a autoconstrução na periferia indicavam novas prioridades das classes menos favorecidas, quando se tratava da concretização do sonho da casa própria. Ao mesmo tempo, a proposta de buscar na autoconstrução uma alternativa para implantação de novos assentamentos contrapunha-se à idéia de se manter a tradição da construção de grandes conjuntos habitacionais padronizados. Em Belo Horizonte, durante o período de transição para a municipalização das políticas habitacionais, foram implantados vários planos e programas para a provisão da moradia popular. E uma das alternativas que atendeu com maior eficácia a população menos favorecida, assim como já se tornava evidente em todo o país, foi a autoconstrução, principalmente na periferia, pois ela traduzia a maneira como se efetivava a participação popular no processo de aquisição da sua moradia. De acordo com a municipalização, vários programas de habitação popular foram implantados em diversas regiões do país. Dentre eles, assentamentos em vazios urbanos, cujo entorno havia sido ocupado anteriormente: eram áreas in natura , disponíveis na malha urbana, originadas de medidas institucionais, estabelecidas por programas de governo, de ações coletivas, provenientes dos movimentos comunitários ou da iniciativa privada, que se organizava, em grande parte, na retenção especulativa. Essa medida proporcionou vantagens, pois reduziu custos com infra-estrutura e equipamentos, o que compensou o valor mais elevado dos terrenos disponíveis, além de proporcionar aos futuros usuários benefícios adicionais, principalmente no que dizia respeito ao deslocamento na cidade. Apesar da diversidade das dimensões de tais terrenos e da sua irregular distribuição pelo território urbano, essas áreas têm contribuído historicamente, de modo significativo, para a correção de anomalias e para a complementação de deficiências estruturais de seus respectivos entornos. A importância dessa ação se avoluma quando, além de reduzir custos financeiros, atenua a gama de impactos sociais vinculados aos
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desloc amentos populacionais implicados, mesmo se considerando a limitação da disponibilidade de tais terrenos. É importante salientar que essa política habitacional evoluiu a partir do processo de municipalização, momento em que o conceito de morar não só extrapolou o entendimento da casa isolada, como adotou o entorno com a provisão de um plano global de infra-estrutura e as devidas condições de habitabilidade, além de prever, também, a participação dos agentes envolvidos nos projetos, o que poderia atender de forma mais eficaz às necessidades locais das comunidades. Deve-se observar ainda que a política adotada tem introduzido algumas transformações sociais: a proximidade das áreas centrais proporciona menor deslocamento do trabalhador para os vários setores da cidade e essa camada da população não se isola da maioria das atividades realizadas próximas ao centro, maior articulador do mercado de trabalho. Apesar de essas ações terem permitido maior integração entre as políticas de habitação e as fundiárias, deve-se evitar que elas se tornem um modelo ambíguo de descentralização para o município, e que ele mantenha claras as atribuições municipais, evitando-se superposições dos demais níveis de governo. Cardoso e Ribeiro (2000, p. 23) se colocam numa posição de expectativa quanto à total eficiência atribuída à municipalização e observam que, na experiência brasileira, os piores resultados ocorreram em locais onde as carências se mostravam mais acentuadas, ressaltando as disparidades regionais que sempre marcaram o país. Em Belo Horizonte, a partir de 1993, a Prefeitura implantou o Sistema Municipal de Habitação, cuja função era elaborar a Política Municipal de Habitação da cidade. Esse sistema se compunha do Conselho Municipal de Habitação, do Fundo Municipal de Habitação Popular e da URBEL. O Conselho Municipal de Habitação delibera sobre as políticas, os planos e os programas de aplicação de recursos utilizados pelo Fundo para a construção de moradias na capital. Suas atribuições se constituem em analisar, discutir e aprovar os objetivos, as diretrizes e as prioridades da política municipal de habitação e da política de captação e aplicação dos recursos. O Conselho, composto por vinte membros, tem representantes de entidades populares, de instituições responsáveis
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pela produção de moradias, de representantes da Câmara Municipal e da Prefeitura. Observa -se que a participação popular tornou-se efetiva nessa instância, pois os vários segmentos da sociedade vêm atuando efetivamente na avaliação da produção da moradia. Cabe ressaltar que os recursos do Fundo Municipal de Habitação, provenientes de dotações federais, estaduais e da própria Prefeitura, de financiamentos, de contribuições de pessoas físicas e jurídicas, são aplicados em urbanização de vilas e favelas, na construção e na recuperação de unidades habitacionais, na urbanização de lotes e na aquisição de imóveis para programas habitacionais de interesse social, com atenção especial à população em precárias condições de habitação, residente em áreas de risco. Os proje tos e programas priorizam o atendimento a famílias cuja renda não ultrapasse cinco salários mínimos. À URBEL cabe a elaboração e execução da Política Habitacional do Município, bem como a gestão do Fundo Municipal de Habitação Popular. A sua responsabilidade atinge atividades multidisciplinares da solução do problema, desde a gestão dos projetos até a implantação dos conjuntos. Essa ação abrange a aquisição e a regularização de imóveis, a urbanização e reurbanização de áreas, a construção e a recuperação de assentamentos habitacionais ou de moradias isoladas, as ações emergenciais e a contratação de assessoria técnica, jurídica e urbanística. Portanto, esse é o órgão encarregado da implementação de programas decorrentes do Plano de Ação e Metas aprovado pela Prefeitura de Belo Horizonte, para elaborar ou executar projetos que deles decorram.
3.1
A política da URBEL
A Resolução nº II do Conselho Municipal de Habitação, de dezembro de 1994, que trata da Política Habitacional para o município de Belo Horizonte, no artigo 1º, conceitua habitação como a moradia inserida no contexto urbano, provida de infraestrutura básica, dos serviços urbanos e dos equipamentos comunitários básicos . E as diretrizes gerais dessa Lei buscam promover o acesso à terra e à moradia digna para os habitantes da cidade, de maneira democrática, utilizando processos tecnológicos que garantam maior qualidade e menor custo da habitação. Isso deve
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ser assegurado por canais de participação da população organizada, tanto nas fases de concepção e definição de prioridades da política habitacional quanto nas fases de implementação, promovendo a co-gestão e a autogestão dos processos. Além disso, essa política de habitação deve assegurar a vinculação da política habitacional com a política urbana e com as demais políticas setoriais que apresentem interfaces com a questão da habitação. De fato, a integração entre as políticas que atuam no plano da cidade torna-se essencial na medida em que todos os
aspectos
envolvidos
na
produção
da
habitação
sejam
contemplados
integralmente, o que se pode considerar um avanço no que diz respeito à busca das condições adequadas para morar. É importante destacar que a política habitacional da URBEL abrangia inicialmente tanto os assentamentos existentes quanto os novos conjuntos. Quanto aos já existentes, ela se limitou a interferir nos diversos aspectos físicos e sociais complementares, especialmente os de infra-estrutura, de acordo com a necessidade ou a demanda local. Essas ações diziam respeito ao programa de apoio e asses soramento técnico às iniciativas populares na execução de obras, na regularização fundiária e no acompanhamento pós-ocupação, medida esta que, embora indispensável, ainda não se concretizou efetivamente. Sua ação fundamental, no que se refere aos novos ass entamentos, se resumia a programas direcionados para a produção de lotes urbanizados e de conjuntos habitacionais. Os usuários contemplados nesse último caso foram os organizados em movimentos pela moradia, os removidos de áreas sujeitas às condições de risco e os afastados de locais onde seriam executadas obras públicas. No que diz respeito à implantação de novos conjuntos habitacionais, o direcionamento da política foi ampliado, mediante a aquisição de glebas, o seu parcelamento e a sua urbanização, bem c omo a construção das unidades habitacionais e dos equipamentos comunitários, quando fosse o caso. Quanto às diretrizes para implantação desses novos conjuntos, em obediência aos conceitos gerais de políticas habitacionais do processo de municipalização, elas ratificam a intenção de se construir pequenos empreendimentos, cuja população assimile prontamente a proximidade e a relação com a cidade: foram utilizadas
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pequenas áreas inseridas na malha urbana, já dotadas de infra-estrutura básica e equipamentos comunitários. Em avaliação publicada pela URBEL (1998), constatou-se que a relação custo benefício de implantação física de conjuntos de pequeno porte havia demandado grandes investimentos financeiros para atendimento a um número reduzido de usuários. Esse fato indicou a necessidade de se adotar uma atitude seletiva na aquisição de terrenos que consideravam preços e características mais adequados ao padrão das soluções. Por outro lado, os conjuntos maiores, felizmente em menor número, passaram a demandar soluções relativas a problemas como infra-estrutura, transporte e equipamentos destinados à educação e ao lazer, em que seriam necessários estudos e negociações complementares. Por isso, esse órgão passou a priorizar a construção de conjuntos de médio porte, c onstituídos de prédios de apartamentos de dois a quatro pavimentos. A redução do custo do terreno por unidade habitacional e o agrupamento das famílias cadastradas de acordo com a composição familiar foram os argumentos favoráveis a tal procedimento, mesmo que isso demandasse um trabalho de assistência social mais intenso com as famílias (URBEL,1998). Devido a essas novas diretrizes, melhores soluções no que diz respeito à adequação da moradia às condições de cada família favorecem os investimentos em implantação. Uma vantajosa conseqüência da verticalização é que ela permite maior proporção de áreas destinadas ao uso comum,
destinadas
à
implantação
de
infra-estrutura
e
equipamentos
complementares. A fim de ampliar o conceito de moradia, no sentido de melhor adaptação ao meio em que estão inseridos, na Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte, 6 os conjuntos não devem ultrapassar 300 moradias, visto que, a partir desse número de unidades residenciais, seria necessária a elaboração de Relatórios de Impacto Am biental – RIMAs, para liberação do projeto na Comissão Municipal de Meio Ambiente – COMAM (Art. 208, capítulo XIII, que trata da habitação). Os terrenos devem, ainda, se localizar preferencialmente próximos à origem da demanda identificada pela
6
A Lei O rgânica do Município de Belo Horizonte foi promulgada em 21 de março de 1990 e tinha como objetivo integrar a capital aos princípios de autonomia observados pela Constituição da República de 1988 (BELO HORIZONTE, [1990]).
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pesquisa e ter regularização fundiária obrigatória. Um outro aspecto a ser considerado é que o projeto do loteamento deve ser vinculado ao das edificações, para que a integração espacial se efetive de maneira eficaz. Pode-se observar, aqui, que a possibilidade de participação efetiva dos agentes envolvidos no processo da implantação dos conjuntos foi um dos fatores que apresentaram maior avanço na conduta desse órgão quanto à política habitacional municipalizada. Outro aspecto que chama a atenção sobre a qualidade do espaço a ser produzido pelo órgão é a preocupação em seguir a LUOS, que estabelece normas para o tratamento da cidade como um todo. E mesmo que as diretrizes emanadas dessa Lei se apresentem de maneira restritiva, não se pode deixar de avaliar positivamente o tratamento para os setores especiais, destinados à expansão de equipamentos de interesse social, que tenta fixar bases para os novos assentamentos como parte integrante da cidade. Podemos verificar, então, após a avaliação dos diferentes conceitos de habitação, inclusive aqueles que incluem benefícios de ordem social, que a abrangência sugerida sob diferentes enfoques ainda não foi contemplada integralmente pela URBEL. E que o avanço no direcionamento da política habitacional, propondo a inserção das novas casas no contexto urbano, o que diminuiria a exclusão da população-alvo no âmbito da cidade, tem apresentado pouca evolução quando se aproximam os efeitos da sua gestão na realidade.
3.2
A ação da URBEL
A reformulação da política habitacional no município de Belo Horizonte gerou uma série de programas para a aquisição da casa própria destinada à população de baixa renda, tais como o Estrutural em Áreas de Risco, o Orçamento Participativo, o Pró -Moradia e o Habitar Brasil. Dentre esses programas, o Estrutural em Áreas de Risco se propõe a atender famílias em situação de risco ou ocupando áreas destinadas à execução de obras públicas. Ele tornou-se emergencial na medida em que se verificou na capital grande
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demanda habitacional e que essa situação se agravava consideravelmente após o período das chuvas, época em que eram freqüentes os desabamentos e as inundações. Cabe ressaltar, ainda, que é responsabilidade do Poder Público, segundo a Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte (BELO HORIZONTE, [1990]), realizar o processo de remoção e reassentamento em outro local de famílias ocupantes da área de risco (Art. 207). Esclarecemos que o Programa Estrutural em Áreas de Risco tem como objetivo acompanhar e eliminar as situações de risco geológico/geotécnico e de intempéries, levando segurança às famílias que morem nas áreas em questão. Segundo a URBEL, esse programa se desenvolve em três níveis de atuação: Plano de Obras, Mobilização Social e Plano de Atendimento Emergencial – PAE. O Plano de Obras consiste no planejamento da implantação de obras para eliminação do risco nas vilas e favelas existentes, dentro de uma escala de prioridades, que varia de acordo com a magnitude do risco e a possibilidade de consolidação futura do núcleo. O Plano de Mobilização Social prevê ações educativas junto às populações moradoras em áreas de risco e o estímulo à criação de Núcleos de Defesa Civil nas vilas (URBEL, 1998). A ação da URBEL, no cumprimento das respectivas circunstâncias a que se destina atender, tem sido amplamente satisfatória, principalmente em seus aspectos preventivos. O PAE, por sua vez, visa a diminuir a probabilidade de ocorrência de mortes nas áreas de risco e a prestar socorro emergencial às vítimas de acidentes naturais, após a declaração do estado de alerta, decorrente das precipitações pluviométricas, sempre que houver indícios de perigo de destruição de moradias. Se ela for constatada, a URBEL executa as obras de proteção em conjunto com os próprios moradores. Se não for possível garantir as condições mínimas de segurança, os moradores não são autorizados a retornar para suas antigas casas, sendo encaminhados para o Programa de Produção de Moradias. No cumprimento dessas tarefas, a ação da URBEL tem demonstrado eficiência satisfatória. No balanço da produção de conjuntos habitacionais, até o final de 2000, a URBEL construiu cerca de 3800 unidades habitacionais, distribuídas entre residências unifamiliares e prédios de pequeno porte, beneficiando uma população de aproximadamente 12 mil habitantes. A região do Barreiro, próxima à Cidade
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Industrial, no setor sudoeste de Belo Horizonte, cuja infra -estrutura permitia absorver esse empreendimento, foi a mais favorecida no município, com a implantação de 1.117 domicílios. Por outro lado, as regiões Centro-Sul e Noroeste não foram contempladas com qualquer programa até essa época. Considerando a crescente tendência de destinações orçamentárias específicas, e reforçada a programação contida no Plano Diretor, principalmente a decorrente das ZEIS, a solução do problema habitacional caminha de forma razoável no sentido de cobrir em breve todo o território do município. Durante esse processo de produção da habitação social de Belo Horizonte, em dezembro de 2000, a Prefeitura Municipal passou por uma reestruturação administrativa, que também se refletiu na URBEL: ocorreram modificações internas de modo a permitir que esse órgão se tornasse compatível com os demais setores da nova administração municipal. A URBEL ampliou sua hierarquia, transformandose em Secretaria Municipal de Habitação, assumindo toda a responsabilidade pela produção da habitação social na cidade. Nessa nova estrutura, a Secretaria trabalha em parceria com as demais Administrações Regionais da cidade,7 o que facilita a operacionalização das obras e compatibiliza as ações com as diretrizes do desenvolvimento urbano da Capital. As normas do plano global e o direcionamento político são estabelecidos pela Secretaria, mas as diretrizes da urbanização ficam a cargo das Regionais, diretamente ligadas aos setores locais. Além do mais, foram avaliados pela Secretaria os novos indicadores de impacto da política habitacional do órgão nos vários setores da cidade. Nesse sentido, a sua atuação, segundo seus técnicos, contempla a administração da Prefeitura, a política urbana e a política social, já que a habitação teria interface com todos. A administração da nova Secretaria Municipal da Habitação, nessa nova estrutura, abrigava quatro gerências: a de Planejamento e Informações Técnicas, a Executiva, a de Programas Habitacionais e a de Monitoria e Avaliação, que eram responsáveis
7
São nove as Administrações Regionais de Belo Horizonte: Norte, Nordeste, Venda Nova, Pampulha, Noroeste, Leste, Centro- Sul, Oeste e Barreiro.
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pela produção de moradias, pelos investimentos na urbanização e pelo desenvolvimento de programas habitacionais. Na nova administração, tendo surgido problemas de gestão conjunta entre a Secretaria Mu nicipal de Habitação e as Regionais, concomitantemente ao agravamento da demanda de moradias, foi necessária a interveniência de outros órgãos, para complementar a ação da Secretaria na cidade. Mesmo assim, segundo avaliação do gerente de programas habitacionais do órgão, em agosto de 2003, Aderbal Geraldo de Freitas, a interface com órgãos como a Empresa de Transporte de Trânsito de Belo Horizonte – BHTrans e a Secretaria Municipal de Assuntos Urbanos complementou a ação da Secretaria na cidade. Essa possibilidade de compatibilizar a administração para a gestão conjunta tem permitido aos órgãos elaborar e executar planos de integração das ações nos setores da cidade, tornando-as mais eficazes. Novas modificações, ocorridas em meados de 2003, determinaram o remanejamento interno na Secretaria Municipal de Habitação, que foi desmembrada e passou a se responsabilizar pela gestão dos novos conjuntos habitacionais. À URBEL foi concedida a sua atribuição original específica de promover soluções relativas aos conjuntos e favelas já existentes, e também o controle das intervenções em áreas de risco, que tinha passado na reforma anterior a ser responsabilidade das Regionais. Dessa nova condição, resultou para a URBEL maior clareza de objetivos específicos, no que se relaciona ao atendimento de favelas e conjuntos existentes; a Secretaria Municipal de Habitação, por sua vez, beneficiou-se da mesma forma, ao se encarregar de problemas e ações que surgem das crescentes pressões migratórias que incidem sobre a capital, pas sando, assim, a assumir a responsabilidade pela implantação de novos conjuntos. Como resultado, segundo declaração do gerente de programas habitacionais da URBEL, os programas ministrados por esse órgão produziram, no período de 1996 a meados de 2003, 7000 novas moradias, resultantes dos programas Área de Risco, Pró -moradia, Habitar Brasil e do Orçamento Participativo. Por outro lado, embora tivesse sido acertada a maioria das dificuldades na gestão do assentamento da população originária de área de risco, à URBEL coube, ainda,
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nessa nova reestruturação, o encargo de administrar juridicamente as questões de indenização e de titulação para as comunidades, visto que a maioria dos seus moradores era proprietária dos imóveis nessas áreas vulneráveis. Como exemplo, pode-se citar o caso do conjunto Esperança, o pioneiro nos programas implantados pelo órgão, cujos moradores ainda não receberam o título de propriedade do imóvel. Segundo Palhares (2001, p. 71), ao longo de cinco anos de ocupação, já foram feitas diversas transações comerciais com as unidades habitacionais e a documentação se baseava em promessas de compra e venda, realizadas através de acordos particulares. Essa mesma falha ocorre em relação aos conjuntos Goiânia e Araguaia, nosso estudo de caso. E ess a situação tem provocado freqüentes reivindicações da população, junto ao órgão, para regularização da titulação dos mesmos. É necessário lembrar que a política habitacional concebida pela nova legislação urbanística visa fundamentalmente à regularização fundiária, que só se completa com essa indispensável titulação.8 (BRASIL, 2001, p. 153) Outra opção para a questão da titulação se deu por intermédio do programa do Orçamento Participativo da Habitação – OPH: os permissionários financiam 35% do valor total da obra, já que 65% são subsidiados. O valor da prestação gira em torno de R$ 50,00 mensais, por um período médio de 18 anos. Para dar cobertura legal a essa situação, foi criado pela Prefeitura Municipal, durante esse período, o termo de permissão de uso a título oneroso entre o órgão e o usuário, até que seja concluído o pagamento da moradia. Outro aspecto que, segundo técnicos do setor, necessita de avanços é o atendimento às famílias recém-chegadas aos conjuntos. De acordo com o Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), no Art. 12, parágrafo 12, cabe também ao município a assistência jurídica integral e gratuita àqueles que comprovarem insuficiência de recursos. Essa comissão técnica e jurídica orienta os grupos sociais carentes em ações judiciais e perante o cartório, garantindo a essa faixa da população o direito à regularização fundiária e à propriedade.
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A regularização fundiária objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei, para fins de habitação, implicando melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida de população beneficiária.
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Atualmente, o processo do pós -morar dos conjuntos produzidos pela URBEL se inicia na entrega das chaves, com o auxílio aos novos moradores na formulação da convenção condominial, prossegue com a assistência nas adaptações de ordem social do grupo e nas operações burocráticas, que, devido às deficiências culturais e financeiras dos grupos atendidos, só se completarão com a participação de equipes técnicas mencionadas na legislação. Cabe observar, porém, que os primeiros conjuntos implantados pela URBEL não tiveram acompanhamento no processo de pós -ocupação. A ausência de tais procedimentos nos conjuntos Goiânia e Araguaia dificultou o entrosamento entre os moradores dos conjuntos e principalmente nas relações dessa população com os antigos habitantes dos bairros vizinhos. Com a perspectiva de implantação de novos conjuntos de médio porte e com os terrenos localizados em áreas centrais tendendo a se esgotar, tem s ido incrementada a busca de novos empreendimentos em áreas periféricas próximas a setores urbanizados da cidade. Esse movimento merece atenção no que se refere ao âmbito da região metropolitana, pois as relações urbanas existentes entre os diversos municíp ios poderão afetar significativamente o transporte coletivo e a infraestrutura local. Para tal, o controle da reestruturação da área metropolitana de Belo Horizonte passa a ter caráter fundamental para a sua real integração, objetivando, assim, melhor qualidade de vida para sua população.
3.3
Antecedentes históricos da política da municipalização
Consideradas as metodologias adotadas pela URBEL, envolvendo regularmente e de forma satisfatória a sua ação em Belo Horizonte, para efeitos de comparação dos avanços dessa ação em relação às do passado, cabe um ligeiro retrospecto para examinar os processos que orientaram, em diferentes fases, as soluções habitacionais no país. Nossa análise parte do período correspondente ao processo de industrialização do país que, nos meados do século XX, originou um acelerado crescimento da urbanização nas principais cidades brasileiras, gerado pela crescente migração do campo para a cidade, fato que incrementou a demanda por habitação.
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Nesse período inicial, as ações da política habitacional no governo tinham como objetivos primordiais garantir estabilidade aos regimes então vigentes frente a manifestações populares contrárias à condução política do país. Esse fato pôde ser ilustrado com os programas financiados pelos IAPs (1933), pela Fundação da Casa Popular (1946) e pelo BNH (1964-1986), que marcaram uma condução similar no processo da ação do Estado para aquisição da casa própria. É verdade que algumas medidas governamentais e ações da iniciativa privada relativas à habitação já haviam ocorrido em períodos anteriores. Porém, foi a partir dos anos 1930, época em que o Estado passou a se responsabilizar pela proteção legal da força de trabalho, que houve acesso mais significativo à moradia, apesar de estar longe de se constituir propriamente numa ação de bem-estar social. Bonduki (1998, p. 136) não considera significativas as ações dessa época, ao afirmar que a produção habitacional no período populista não chegou a se destacar enquanto ação social. Nesse sentido, também Azevedo e Andrade (1982, p . 30) consideram que os governos populistas nunca conseguiram dar grande prioridade à questão da habitação popular, porque praticavam um paternalismo autoritário. Além disso, essa produção, conforme constata Sachs (1999, p. 112), era restrin gida pela insuficiência de recursos financeiros do Estado. Apesar disso, as iniciativas efetivas que trataram da política trabalhista podem ser vistas nas ações do governo, que se iniciaram com a criação do Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio, nos anos 1930. Foi estabelecida, a partir daí, uma série de medidas importantes de ordem social, como a jornada de trabalho de oito horas diárias, as férias remuneradas, a sindicalização dos operários e o salário mínimo. Para Sachs (1999, p. 111), porém, esses benefícios favoreceram apenas uma minoria de trabalhadores organizados com empregos estáveis. Mas quanto à solução do problema da habitação social, a maioria da população de baixa renda permaneceu excluída, conforme aqueles autores. É claro que, pelo fato de não estarem vinculadas a qualquer organização, mais uma vez, essas pessoas não foram contempladas com qualquer programa de ordem social, nem mesmo com aqueles destinados à produção da casa própria.
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Nessas medidas, a maioria implementada na era Vargas, época em que o Estado Novo tinha como objetivo principal estimular o desenvolvimento nacional, a intervenção do Estado na economia e no atendimento social aos trabalhadores não deixou de apresentar benefícios no conjunto da política social. Embora essas iniciativas da ação governamental se constituíssem mais num artifício para manter a ordem pública, ameaçada por ideologias em ascensão na Europa. Nessa época, o Poder Público Federal defendia a tese de que o fundamento da constituição moral da sociedade e do bom trabalhador era a família, sendo o lar a associação simbólica do espaço físico e do ambiente doméstico. Além disso, a imagem do trabalhador padrão era considerada elemento fundamental na formação ideológica, política e moral do homem novo. Nesse sentido, Bonduki (1998, p. 83) admite significados para essa política, quando afirma que, durante esse período, a questão da moradia assumiu papel fundamental no discurso e nas realizações do governo, como símbolo da valorização do trabalhador e comprovação de que a política de amparo aos brasileiros estava dando resultados efetivos. As ações se intensificaram à medida que o Estado se responsabilizava pela formulação e gestão de políticas habitacionais e, ao mesmo tempo, verificou-se, na concretizada regularização do setor previdenciário, o repasse de recursos significativos para o financiamento de moradia pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões – IAPs: IAPI, IAPC, IAPB, IAPM, IAPTEC e IAPE – criados a partir de 1933. Nesse momento, a produção da habitação passou a ser importante na agenda das políticas sociais do governo, devido a essa nova ação social que valorizava sobremaneira o trabalhador. Paralelamente, decisões políticas que definiram as condições para atuação dos IAPs no campo habitacional autorizaram os Institutos a criar carteiras prediais e a destinar até metade de suas reservas para o setor habitacional. Essas decisões criaram expectativas quanto à ampliação de oferta de moradias, considerando-se que as taxas de juros foram reduzidas, os prazos de pagamento ampliados e que se justificou maior investimento em financiamento nos programas de casa própria, cuja maioria, até então, se destinava a aluguel.
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Esse fato não se verificou, não só devido às repercussões das crises do conflito mundial, como também às prioridades dadas aos IAPs, que se dedicaram especificamente aos benefícios previdenciários, tais como aposentadorias, pensões e assistência médica a seus associados. A Fundação da Casa Popular – FCP – deu novo impulso à implantação do processo da produção da habitação social. Instituída em 1946, foi o primeiro órgão de âmbito nacional voltado especificamente para a provisão de residências destinadas à população de baixa renda. A FCP foi concebida como um órgão cujos financiamentos abrangeram, além das obras urbanísticas de infra-estrutura e saneamento básico, o apoio a indústrias de material de construção e a pesquisas que visassem ao barateamento da obra, à qualidade dos projetos arquitetônicos e à assistência social, na busca da melhoria d a s condições de vida e bem-estar das classes trabalhadoras (AZEVEDO e ANDRADE, 1982, p. 21). Os princípios estabelecidos por essa Fundação apresentaram inovações a partir da articulação entre a produção da moradia e o desenvolvimento urbano. De fato, a FCP tinha condições de atender adequadamente ao que poderia ser considerado conceito de habitação popular, que incluiu também a infra -estrutura como parte integrante da moradia. Mas, mesmo assim, nem a criação de um banco9 que pudesse administrar o financiamento e as taxas de transação foi suficiente para a subsistência da FCP, pois os atores envolvidos, tanto os empreendedores como os mutuários, não arcaram com esses custos. A produção da FCP foi pouco significativa, pois não se tornava possível o acesso à moradia se ela não fosse integralmente subsidiada. Por outro lado, o financiamento para o morador esbarrava na própria lógica do populismo. Aliás, Azevedo e Andrade (1982,
p. 53)
concluem
que
aos
governos
populistas
não
interessava
primordialmente resolver a questão da habitação popular: a prioridade intencional era derivar dividendos políticos sob a forma de votos ou de prestígio.
9
A criação do Banco Hipotecário de Investimentos e Financiamento da Habitação Popular se responsabilizou pela execução da política habitacional, na busca de recursos que dessem autonomia e capacidade de empreendimentos à FCP, que responderia pela normatização dessa política (BONDUKI, 1998, p. 123).
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Mais uma vez, a política que tratava da habitação, apesar de ter avançado na concepção do que seria a moradia popular agregando à edificação a infra -estrutura básica, não cuidou adequadamente dos aspectos sociais que envolviam o acesso a programas desse bem social. A questão urbana ganhou visibilidade e contorno, no princípio dos anos 60, com a escolha da habitação como eixo da política urbana, que se revelou principalmente através das tensões nas favelas e das migrações maciças para as cidades. Bolaffi (1986, p. 29) reafirma esse fato, ao sugerir que o mito da casa própria não foi criado gratuitamente, mas, sim, “estimulado precisamente com base em aspirações legítimas da população”. Apesar da significativa ampliação dos investimentos e do volume de obras realizadas pelos inúmeros programas criados pelo BNH, a partir de 1964, a contribuição desse Banco para a solução do problema habitacional não correspondeu totalmente às expectativas. Isso devido a causas que são bem interpretadas por Azevedo e Andrade (1982, p. 16), ao afirmarem que o rápido processo de industrialização por que vinha passando o país atraiu um imenso contingente rural para os grandes centros urbanos e, conseqüentemente, congestionou a infra-estrutura existente, incapaz de atender às novas demandas adequadamente. Isso, apesar do empenho do governo militar, que visava à modernização do aparelho do Estado, desde que fosse restabelecida a ordem social, nesse momento ameaçada pela subversão comunista e pela desarticulação da economia. Devido ao rígido controle dos militares, o problema habitacional também foi centralizado e de âmbito nacional, e não reconheceu peculiaridades re gionais. E o novo regime precisava dar provas de que era capaz de resolver problemas sociais, pois interessava legitimar-se junto aos setores populares. Pode-se observar que a uniformidade das soluções arquitetônicas nos projetos resultantes da condução da política nesse período bem retratou a centralização e a não-observância dessas peculiaridades regionais. As políticas sociais foram, então, subordinadas à perseguição dos objetivos prioritários de segurança e crescimento econômico para reduzir as violentas tensões
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sociais, aumentar a produtividade do trabalho, reduzir o absenteísmo dos trabalhadores e garantir mais alternativas de emprego. Além do mais, o Estado arcou com uma parte do custo da mão-de-obra, reduzindo os custos trabalhistas das empresas, o que permitia a manutenção dos salários e dos empregos, aumentando, assim, a possibilidade do acesso à moradia (AZEVEDO e ANDRADE, 1982). A política do BNH teve duas faces: a primeira respondeu pelos interesses econômicos de expandir a indústria da construção civil e a segunda, associada à legitimidade da ação estatal, atuou no sentido de intervir na geração de empregos. Nessa direção, o Estado buscou produzir políticas compensatórias para amenizar os efeitos perversos da espoliação do trabalho pelo capital. Para moderar a ação capitalista, criou políticas de bem -estar social, em que a habitação se constituiu em um importante objeto de ação, ao lado da educação e da saúde. Foi essa forma de pensar – que teve por resultado a construção de quatro milhões de moradias no período de 22 anos de existência do Banco – que, de certa forma, justificou a montagem do sistema financeiro da habitação, amparado em uma política de poupança compulsória, o FGTS, e voluntária, as cadernetas de poupança. Na estrutura formalizada pelo governo, atribuiu-se ao BNH a responsabilidade pela política da habitação, ao orientar, disciplinar e controlar o Sistema Financeiro da Habitação – SFH – e o Serviço Federal da Habitação e do Urbanismo – SERFHAU.10 Essas instituições realizariam uma política nacional de habitação e urbanização do território, promovendo a construção de habitações de interesse social e financiando propriedades para as camadas de baixa renda. Através das Companhias de Habitação – COHABs – foram construídos também conjuntos habitacionais em grande escala, para atender à demanda da moradia popular. Coube, também, ao BNH, constituir um sistema que buscasse articular o setor público com o setor privado na execução da política habitacional, considerando que houve, a partir da sua implantação, a instituição de um centro decisório unificado
10
O SERFHAU desenvolveu uma política de incentivo às prefeituras municipais para que elaborassem seus planos de desenvolvimento local integrado, buscando a modernização administrativa das prefeituras, principalmente através da criação de órgãos locais de planejamento.
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com normas e políticas padronizadas. Como se sabe, foi uma política centralmente organizada no nível federal, que ignorou as diferenças regionais e locais, sendo que a margem de manobra dos Estados e dos municípios foi reduzida, passando a depender progressivamente da administração central. Na busca do que seria essa política habitacional consistente e socialmente orientada, Sachs (1999, p. 238) entende que deveriam ser reformuladas as relações entre o escalão central e o escalão local, traduzidas por menor dependência financeira para o município. Assim, o aumento das receitas próprias das municipalidades destinadas à habitação social e a criação de um fundo federal de apoio à produção de habitações sociais, cujos recursos seriam transferidos automaticamente para os Estados e municipalidades, lhes deixariam a escolha das formas de intervenção mais apropriadas e a elaboração dos respectivos projetos. O objetivo dessa proposta buscava atingir uma flexibilidade maior na intervenção pública, rompendo as barreiras dos programas nacionais para a produção de habitações. Além disso, o princípio de subvenção da habitação social necessitaria ser explicitamente reconhecido. Ela deveria tornar-se transparente, precisaria ser calculada facilmente e, assim, as fontes dos fundos distribuídos poderiam ser identificadas. Ao mesmo tempo, deveriam ser cristalizadas novas modalidades de intervenção, o que demandaria um processo de adaptação longo e difícil por parte de todos os atores sociais implicados e uma colaboração efetiva na gestão urbana entre administrações públicas e associações (SACHS, 1999, p. 240). O início da década de 1980 foi marcado por um cenário de crise econômica e, em 1983, pela primeira vez na história do BNH, o valor das prestações subiu acima do salário mínimo. O Banco, pressionado, acabou por adotar um conjunto de medidas favoráveis aos mutuários, entre elas a indexação abaixo dos índices inflacionários para aqueles que optassem pelo reajuste semestral. Essa condição, aliada aos atrasos cada vez maiores no pagamento dos empréstimos, gerou um agravamento do déficit do SFH, instaurando uma profunda crise no órgão. Esses resquícios da ação do Banco são identificados por Bolaffi (1986, p . 31), ao avaliar que o BNH e a política habitacional desenvolvida durante o período autoritário foram uma
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catástrofe, pois era premente a necessidade de uma política habitacional consistente e socialmente orientada. Segundo esse autor, para que a política habitacional pudesse ser construída numa democracia plena, seria urgente ampliar os canais de participação da população, os quais passariam pela educação e pelas comunicações de massa. Embora concordando com a participação popular, não se pode deixar de valorizar a importância desse órgão e nem desconhecer que as obras realizadas contribuíram na atenuação do problema habitacional naquele período. Mesmo que as políticas públicas de habitação, nesse período, estivessem iniciando o entrosamento com seus usuários, pela escuta de suas aspirações e reivindicações, pela adaptação das soluções às condições diversas de cada ambiente e às necessidades específicas de cada grupo social (SACHS, 1999, p. 236), esse era um aspecto que ainda não vinha sendo contemplado com eficácia nos principais programas habitacionais no país e nos seus respectivos projetos. Residem aí raízes conceituais que instigaram a empreender esse trabalho. No entanto, Bourdieu (1998a, p. 166), examinando as limitações das políticas habitacionais na França, afirma que as lutas pelo espaço podem assumir formas coletivas, como é o caso daquelas que se desenrolam no nível nacional em torno das políticas de habitação, ou daquelas que ocorrem no nível local, a propósito da construção e da distribuição de moradias sociais ou das escolhas em matéria de equipamentos públicos. Os mais decisivos têm como aposta última a política do Estado, que detém um imenso poder sobre o espaço através da capacidade que ele tem de fazer o mercado da terra e, conseqüentemente, o da moradia. Esse autor conclui, com certo pessimismo, que, naquele país, tal política, apesar de ter sido discutida por representantes de grupos financeiros interessados no mercado imobiliário, por funcionários do Estado e por membros das coletividades e das repartições públicas, foi sendo construída de modo que atendesse mais aos grupos homogêneos interessados na base espacial, e que se direcionava objetivamente para os aspectos econômicos. Daí, segundo ele, o fracasso que fez surgir conjuntos degradados ou bairros des ertos naquele país. Cabe observar que, no Brasil, as
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ações nesse campo se assemelharam às da França, o que pode explicar a razão de tais ações terem cumprido apenas em parte os propósitos visados. No Brasil, ainda recentemente, conforme estudos realizados por Werna et al. (2001, p. 137), no município de São Paulo, a partir de 1997, verificou-se que até mesmo na adoção de sistemas de financiamento ainda prevalecem as ações tradicionais utilizadas até então, em que se vêem programas governamentais tanto locais como regionais que pouco exploram as novas fontes de recursos dos parceiros, especialmente as Organizações Comunitárias de Base – OCBs – e as Organizações não-Governamentais – ONGs. De toda forma, esses pesquisadores consideram que a maior dificuldade que o Poder Público ainda enfrenta para prover a habitação é a limitação financeira, pois mesmo essas organizações, apesar de apresentarem várias formas alternativas de gestão e de trabalho comunitário, dificilmente abrem mão do apoio estatal. E, em contrapartida, os programas federais, apesar de parecerem flexíveis nos diversos pontos, tais como modalidades, tecnologia e fontes de contrapartida do financiamento, ainda não conseguiram motivar análises satisfatórias por parte dos profissionais que lidam com a habitação, tanto em agências de outros níveis de governo com em entidades autônomas. Por sua vez, quanto à iniciativa privada, cabe aqui observar que esses fundos se limitam a movimentar capitais, mesmo de origem pública, destinando-os à construção de moradias para as classes mais favorecidas. Assim, não ocorreram programas que visassem ao investimento para habitação social, com resultados objetivos na intensa tentativa de se livrar do apoio estatal, nem na obtenção de novas fontes de recursos pretendidas. Na citada pesquisa, a maioria dos entrevistados manteve o conceito generalizado de que o Estado ainda deve permanecer como o maior financiador de empreendimentos para a baixa renda. Assim, ao retomarmos a Constituição de 1988 (BRASIL, 1989), que destina à cidade e à propriedade funções sociais, ela vem ao encontro dos aspectos do direito da cidadania, que inclui o direito à moradia.
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3.3.1
O direito à moradia
Como já vimos anteriormente, durante o governo Vargas ocorreram ações governamentais em que o Estado passou a ocupar a posição central nas decisões que tratavam das políticas públicas, a partir do momento em que se articulava um conjunto de políticas sociais. A habitação, um dos capítulos dessa política social, se constituía em condição básica da valorização da força de trabalho, fator econômico fundamental para a industrialização, ao mesmo tempo em que se tornou elemento importante na formação ideológica, política e moral do trabalhador. É por isso que Bonduki (1998, p. 83) avalia que, naquela época, a moradia era considerada o símbolo da valorização do trabalhador e a comprovação de que a política de amparo dava resultados. É preciso lembrar que as ações do governo, ao longo do tempo, permaneceram ineficientes nesse campo, até mesmo no período que envolveu ações do BNH, pois esse Banco, apesar de ter buscado ações bem elaboradas na sua concepção, apresentou deficiências na gestão, em grande parte relacionadas a especulações e desvirtuamentos por parte dos empreendedores. Note-se que esse órgão estendeu para todas as classes o atendimento do acesso à moradia, mas o que ocorreu foi que aquelas menos favorecidas enfrentaram agravamentos decorrentes de problemas políticos e econômicos. No final, verificou-se que a oportunidade de acesso à casa própria continuou sendo privilégio de poucos, como Bolaffi (1980, p. 172) interpreta com muita propriedade, pois o Estado era constituído dentro de uma economia de mercado, na qual as mercadorias se vendem por quanto o consumidor pode pagar. Devido a isso, a exclusão se agravou no âmbito das classes menos favorecidas. Também foram abordadas as causas que confirmaram os fatos acima: ao se observarem as políticas adotadas no Brasil ao longo do tempo, pouco se conseguiu no sentido de alcançar um resultado satisfatório, mesmo que tivessem sido testadas inúmeras formas diferenciadas de políticas habitacionais e tentados variados tipos de moradias populares. Isso porque, independentemente da condução adotada nesse sentido pelo Poder Público, a habitação, conceitualmente, se manteve uma mercadoria como outra qualquer.
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Essas indefinições e interrupções também são anotadas por Jacobi (1989, p. 17). Esse autor afirma que o Estado tem que responder pelas demandas sociais; afirma também que o Estado capitalista tende a representar, hegemonicamente, os interesses das classes dominantes e que esses interesses apresentam contradições que fazem com que o próprio Estado assuma, freqüentemente, um caráter ambíguo nas suas intervenções, desenvolvendo políticas que, apesar de atenderem às exigências das classes populares, se limitam a manter a dominação social. Opinião semelhante é manifestada por Villaça (1986, p. 53), ao avaliar a política e a ação do Estado, em estudos sobre habitação popular no Brasil. Isso define claramente o que ocorreu até o pre sente. Na verdade, como já visto, a habitação não deixa de se constituir problema para o Estado, mesmo que as agências governamentais tivessem empregado vultosos recursos no financiamento de moradias. Segundo Kowarick (1993, p. 63), o que aconteceu foi que a imensa parcela dos montantes empregados seguiu a lógica de financiamento ditada pela lei do lucro. Conseqüentemente, o mercado tornou-se disponível somente para aqueles que estavam inseridos nele mesmo, e as classes populares, por disporem de menor poder aquisitivo, continuaram à margem da conquista desse bem. Essa situação que, por si, não permite acesso aos bens comuns urbanos por todos os cidadãos, resulta em exclusão, e até mesmo na discriminação em relação ao trabalhador. Cabe aqui analisar o conceito de segregação adotado por Grafmeyer (1994, p. 86), que pode auxiliar o olhar sobre o nosso tema, quando não se tratar somente da exclusão dos mais pobres, mas também da identificação desse processo, que se manifesta tanto territorial como socialmente. A segregação é, na verdade, considerada por esse autor, como um fato social que provoca distanciamento e, ao mesmo tempo, separação física. Pelo fato de se situar entre a junção dos aspectos sociais e espaciais, ela mostra um limiar entre a realidade desses dois campos, em que não se pode considerar apenas as condições geográficas ou somente o conjunto das diversas formas de diferenciação, de discriminação ou de estigmatização que podem ser observadas no mundo social. Portanto, confirma-se que a segregação, em todos os seus aspectos, é, ao mesmo tempo, considerada categoria de análise e categoria prática, pois a referência aos contextos históricos
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leva a uma análise das representações e das práticas, que permite vislumbrar as relações entre as pessoas e os grupos. A segregação é conceituada por Johnson (1997, p. 203) como a separação de um grupo em relação a outro, em geral perpetuando condições de desigualdade e opressão social. Na maioria das vezes, refere-se a distribuições de natureza física. Essa questão tem sido abordada com bastante freqüência por outros autores, a maioria confirmando a tendência de diferenciação acima citada. Sabatini (1999, p. 4), mais especificamente, em estudos realizados na América Latina, identifica a segregação como uma forte tendência no enfoque espacial ou residencial, ao considerá -la como a aglomeração geográfica, de famílias de uma mesma condição ou categoria social, num determinado local. Esse autor chileno diferencia três dimensões principais na segregação: a primeira define a tendência de um grupo se concentrar em algumas áreas, estabelecendo, assim, a caracterização dos grupos sociais pela localização; a segunda estabelece a conformação de áreas socialmente homogêneas, em que se determina a composição social do grupo e a terceira, a segregação constituída como delimitação de uma área exclusiva de um grupo. A primeira, segundo esse pesquisador, é uma forma de segregação menos excludente de outros grupos em comparação com a segunda, que é a segregação dos muros, das comunidades cercadas de hoje. A terceira dimensão refere-se aos sentimentos que a segregação residencial produz nas pessoas, ou seja, a percepção subjetiva que as pessoas têm das dimensões objetivas da segregação. Tal aspecto é, segundo esse autor, de grande importância, porque mostra os efeitos da segregação residencial que estão associados ao sentimento de exclusão social. Essa exclusão social também é abordada por Lago (2000, p . 33), em trabalhos sobre a segregação no Rio de Janeiro e nos países latino-americanos, em que as análises sobre a reestruturação espacial estão centradas nos impactos da crise econômica sobre a pobreza urbana, seja ela considerada através do nível de renda da população, das condições de emprego ou das condições urbanas de vida. Ao mesmo tempo, essa autora acredita que as análises dos novos padrões de segregação socioespacial e o agravamento da crise habitacional definiram o quadro
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da crise econômica e social que marcou os anos 1980 no país. Além disso, os fatores que demonstram o processo de pauperização da população decorrem do subemprego, da concentração de renda e da precarização das condições de trabalho. Esse mesmo fundamento é adotado por Sachs (1999, p. 42), que afirma, ainda, que a conjunção do crescimento empobrecedor com o rápido processo de urbanização das cidades brasileiras detonou um poderoso mecanismo de exclusão social e de segregação espacial. Essa autora exemplifica que a polarização social se inscreve também no espaço, quando os centros das cidades e os bairros elegantes concentram a maior parte da infra-estrutura e vivem um boom imobiliário, ao passo que a maioria pobre vê -se empurrada para uma periferia cada vez mais distante, o que leva a um crescimento horizontal desmesurado das aglomerações. Em virtude disso, não seria de admirar que a classe menos favorecida fosse excluída do mercado imobiliário regular e, além disso, pela notória insuficiência de promoção pública que seja adaptada a seus meios, ela fosse obrigada a resolver a questão de sua habitação na cidade ilegal, sub-equipada. Cabe, ainda, observar que a segregação, geralmente considerada por alguns autores um fenômeno de ordem física, leva a processos sociais de exclusão, que comprometem o acesso de grande parte da população sem condições de inserção no mercado de trabalho, impossibilitando-a de participar integralmente das atividades da cidade. Devido a isso, essa camada da população é expulsa para as favelas e para a periferia, cujos terrenos apresentam custo mais baixo e cujas características de implantação de moradia nem sempre reproduzem as condições ideais ou mesmo adequadas para a habitação. A exemplo de Lago e Sachs, também Jacobi (1989, p. 68) ilustra bem a periferização e o seu processo, classificando-a sob dois aspectos: a primeira periferia se caracteriza pelo crescimento desordenado da cidade, cujos loteamentos são aprovados sem qualquer planejamento, com a malha viária extensa, valorizando áreas desocupadas ao longo do percurso para tais assentamentos. Por sua vez, a segunda periferia apresenta terrenos em condições pouco favoráveis para a urbanização, tanto no que diz respeito à topografia quanto às suas condições geológicas.
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Em Belo Horizonte, tal situação não é diferente, conforme relata Ferreira (1997, p. 142) em estudos sobre o sítio e a formação da paisagem na capital mineira. Essa autora afirma que os estratos mais baixos da pirâmide social não conseguem mais se estabelecer formal e oficialmente no município. Como já não se dispõe mais de áreas de baixa declividade, a ocupação avançou por terrenos ín gremes e com problemas de instabilidade nas encostas. Como conseqüência, essa periferização, comum às grandes metrópoles, não representa os moldes adequados ou permitidos, comprometendo a relação moradia trabalho para as classes mais pobres. Ainda mais agregando situações como falta de transporte, saneamento e demais deficiências estruturais. Constata-se, então, que o problema da habitação, bem como de todos os programas de interesse social, vai além da questão de seu possível acesso pelos mecanismos de mercado, pois está ligado às condições de exploração do trabalho, ou seja, às condições de pauperização absoluta ou relativa a que estão sujeitos diversos segmentos da classe trabalhadora. Esse processo leva à espoliação urbana, que é o somatório de extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo. Tais serviços tornam-se socialmente necessários como subsistência e reforçam ainda mais “a dilapidação realizada no âmbito das relações de trabalho” (KOWARICK, 1993, p. 62). Nesse caso, seria fundamental o Estado intervir provendo suportes de infra -estrutura para a expansão industrial e mantendo a ordem social necessária para a realização de determinado modelo de acumulação. O processo de redemocratização no país, bem como a redefinição institucional promovida pela Constituição de 1988, instituíram a função social na cidade, articulando as políticas sociais às demais políticas urbanas. Essa Constituição representou marco significativo da política habitacional ao atribuir ao âmbito municipal as ações que anteriormente eram tratadas no nível nacional. Ela realmente proporcionou abordagens específicas das características regionais e locais, o que resultou na aproximação e participação mais ativa das comunidades. Sob esse ponto de vista, Cardoso e Ribeiro (2000, p. 23) observam positivamente esse processo de municipalização da política urbana, pois ele ressalta a
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potencialidade da gestão local, ampliando a eficácia, a eficiência e a democratização das políticas. A política municipal conta com a assistência direta da Prefeitura e da comunidade, integra a política de provisão de moradias com a fundiária e a de controle de uso e ocupação do solo; enfim, aumenta as possibilidades de atender a características especiais do cidadão. Sob esse olhar promissor, os movimentos populares começaram a alcançar reconhecimento da sociedade e do Poder Público, impondo aos governos locais suas reivindicações através de ações coletivas e da participação ativa nos conselhos municipais e nos debates s obre o orçamento para a habitação. Além do mais, esse processo decorrente da municipalização da política conduziu à ampliação do conceito de habitação, principalmente pela participação do usuário, pois ela passou a ser um produto cujo conceito de qualidade não se limitou só à unidade habitacional, mas se estendeu ao seu conjunto, ao seu entorno e à sua inserção na cidade (WERNA et al., 2001, p. 143). Apesar dessa evolução nas ações do Poder Público, Penzim (2001, p. 40) alerta, entre outras coisas, que as mesmas têm se caracterizado por uma visão bastante restrita
das
necessidades
habitacionais.
Resulta
daí
a
necessidade
de
implementação de uma ação contínua de todos os atores na busca de novos programas e estruturas administrativas de apoio, em que se avaliem experiências anteriores e que se configurem em programas habitacionais adequados, conseqüentes dessa avaliação. Considerando-se que essas opiniões contribuem significativamente para definir o problema, ainda mais ao se observarem as últimas modificações na legislação e as crescentes manifestações de uma sociedade mais solidária e participativa, essa situação certamente se atenuará num futuro próximo. Cabe aqui reiterar todas as posições descritas em relação ao projeto, pois, como vimos anteriormente, a URBEL já vem se integrando nessa política. Certamente, os novos projetos arquitetônicos configurados pela legislação urbanística que efetivou a municipalização passarão a considerar o morador como condição determinante da sua elaboração. Esse fato poderá ac rescentar às moradias projetadas pela URBEL
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melhorias no atendimento imediato às necessidades dos usuários, posto que a sua participação no projeto da casa poderá torná-la mais próxima das suas aspirações.
112
4
A IDENTIDADE COM O LUGAR
Este capítulo trata da identidade dos moradores com o lugar em que vivem, a partir da apropriação de suas moradias e dos conjuntos. Essa identidade se manifesta através das relações afetivas, representadas pela sua experiência de vida nesses locais, que refletem a influência cultural, social e econômica dos habitantes já instalados nos bairros Alvorada e Araguaia – os estabelecidos – e os que chegavam aos conjuntos Goiânia e Araguaia – os outsiders. A escuta das experiências vividas pelos habitantes nos permitiu avaliar a adequação do espaço construído e os reflexos nas relações de identificação estabelecidas com ele, nas quais surgem oportunidades de mostrar como os grupos apropriam e inventam o espaço em que vivem. É indispensável para o entendimento dessa apropriação do espaço pelos dois grupos em estudo elaborar uma descrição histórica do processo de assentamento das comunidades envolvidas, bem como uma identificação dos seus habitantes, para que não se repitam, durante a aplicação da política urbana, fatos dessa natureza.
Tais
comunidades apresentam modos de vida acentuadamente
diferenciados, que se refletem, portanto, nas relações que eles mantêm com o lugar. O lugar vai assumir papel importante neste estudo, a partir do momento em que o indivíduo se identifica com o espaço que ele habita. As categorias valóricas que levam a essa identificação retratam a história de vida desse indivíduo e a sua afetividade com o local, através da maneira como ele vive e se instala ali. Bourdieu (1998a, p. 160) acredita que o lugar torna-se o ponto do espaço físico onde um agente ou uma coisa se encontra situado: ele existe. Esse lugar, ao ser apropriado pelos agentes, é constituído de propriedades, que definem sua posição pela relação que ele próprio tem com os outros lugares e pela distância que o separa dos demais, definindo, assim, o seu espaço social. Cabe ao projeto arquitetônico destinado a esse espaço físico ordená-lo, dimensioná-lo e equipá-lo, de forma que ele cumpra a sua função social e possa permitir a interação das comunidades com o lugar. O espaço físico, segundo esse autor, é definido pela
113
exterioridade mútua das partes, e o social, pela exclusão mútua (ou distinção) das posições que o constituem, como estrutura de justaposição de posições sociais. Essas intervenções conferem a identidade dos usuários com o lugar de forma semelhante ao que define Milton Santos (1997b, p. 258): [...] no lugar se superpõem dialeticamente o eixo das sucessões, que transmite os tempos externos das escalas superiores e o eixo dos tempos internos, que é o eixo das coexistências, onde tudo se funde, enlaçando, definitivamente, as noções e as realidades do espaço e tempo.
Isso se confirma ainda mais, quando Ana Fani Carlos (1996, p. 20) afirma que as especificidades locais decorrentes das determinações históricas diferenciam os lugares, mas é no lugar que se desenvolve a vida em todas as suas dimensões. Isso porque as relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem todos os dias nos modos de uso, nas condições mais banais, no secundário, no acidental. Esse que é o espaço passível de ser sentido, pensado, apropriado e vivido através do corpo, ou seja, que permite relação mais imediata da reprodução da vida. Segundo essa autora, o lugar é o espaço imediato das relações cotidianas reconhecidas em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido, mas que criam laços profundos de identidade, “habitante -lugar e habitantehabitante” (CARLOS, 1996, p. 21), relacionados com os modos de vida dos indivíduos.
4.1
A origem dos moradores
Os grupos que constituem o nosso estudo de caso – os estabelecidos e os outsiders – têm origem, cultura, condição socioeconômica e social diferentes. Esses fatores vão influenciar as relações que eles mantêm com o espaço, pois ali são manifestados os modos de vida nas atividades cotidianas .
4.1.1
Os estabelecidos: moradores dos bairros Alvorada e Araguaia
Como visto anteriormente, as características físicas dos bairros Alvorada e Araguaia apresentavam semelhanças, bem como os serviços de infra-estrutura e os equipamentos urbanos. No Araguaia, observou-se certa homogeneidade de tipos de
114
habitação, ao passo que no Alvorada, as moradias indicavam padrão superior e acentuada diversidade das tipologias. Essa diferenciação se mostrava também entre a cultura e o comportamento dos moradores dos dois bairros, resultado do perfil socioeconômico de ambos. Na época da elaboração da pesquisa, em março de 2003, 51% dos entrevistados na população que residia nos bairros Alvorada e Araguaia eram proprietários dos seus imóveis e já residiam no local, em período que variava, em média, de 15 a 35 anos, conforme indica a TAB. 5. Havia entre eles sólida relação de vizinhança, que permitiu a criação de associações de moradores nas respectivas regiões. Após a construção dos conjuntos, em 1996, esses bairros ainda continuavam a atrair novos moradores, na proporção de 27% no Alvorada e 14% no Araguaia, de acordo com a TAB. 5. TABELA 5 Tempo de moradia dos habitantes nos bairros Alvorada
Anos de Permanência
Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Mais de 35 anos
-
-
2
14
2
7
De 15 a 35 anos
6
40
9
65
15
51
De 7 a 14 anos
5
33
1
7
6
21
Menos de 7 anos
4
27
2
14
6
21
Total de incidências
15
100
14
100
29
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Os fatores de atração do bairro se justificaram pela proximidade de parentes, pela facilidade de acesso ao centro da cidade - que concentrava as atividades de comércio e prestação de serviços – e, finalmente, pelo preço acessível das moradias. Esse último aspecto era influenciado principalmente pela presença dos conjuntos, que desvalorizaram os imóveis próximos por cerca de 30%, segundo depoimentos de proprietários e de corretores de imóveis na região. Note-se que o preço da terra identifica o impacto negativo resultante na definição do espaço social, agravado pelo processo migratório local. Dessa desvalorização surgiram casos de evasão, como o de alguns antigos proprietários
que
se
deslocaram
para
outros
bairros.
Além
disso,
essa
desvalorização levou outros ex-moradores a venderem rapidamente seus imóveis
115
por um valor bem abaixo do preço de mercado. Percebe-se que os novos moradores apresentaram, na maioria, padrões inferiores aos das populações originais. Revelase, assim, que os propósitos da política habitacional de criar espaços adequados à população, em princípio não se verificaram, apesar de previamente planejados, o que confirma a necessidade de aperfeiçoamentos, que vêm sendo tentados pela URBEL. A
composição
familiar
de
expressivo
percentual
dos
estabelecidos
que
permaneceram nos bairros após a construção dos conjuntos apresentava estrutura familiar convencional, cujos componentes da família sob o mesmo teto se constituíam do marido, da esposa e dos filhos. Essa composição foi definida mais claramente na população do bairro Araguaia, cuja ocupação das casas variava de três a cinco habitantes por moradia, para 72% da população pesquisada nesse bairro, como indica o GRAF. 1. No Alvorada, verificou-se que essa distribuição se concentrou em 67% das moradias pesquisadas, de acordo com o GRAF. 2. Cabe observar que o número de integrantes das famílias se concentrou em quatro pessoas, para 53% dos entrevistados nesse bairro, confirmando, assim, a composição familiar tradicional. GRÁFICO 1 Número de habitantes por moradia no bairro Araguaia 7% 21%
De 01 a 02 habitantes De 03 a 05 habitantes De 06 a 09 habitantes
72%
Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco, com base em pesquisa de campo, 2003.
116
GRÁFICO 2 Número de habitantes por moradia no bairro Alvorada 13% 20%
De 01 a 02 habitantes De 03 a 05 habitantes De 06 a 09 habitantes
67%
Fonte: Elaborado por Branc a Teixeira Perocco, com base em pesquisa de campo, 2003.
Registrou-se grande diversidade na escolaridade dos moradores do bairro Alvorada, que variava do 1º grau incompleto até o nível de pós-graduação, conforme indica a TAB. 6. Foi constatado razoável desempenho escolar: 40% dos entrevistados completaram o 2º grau, 7% concluíram o nível superior e 13% possuíam curso de pós -graduação o que, de certa maneira, criaria melhores oportunidades de acesso ao mercado de trabalho; por outro lado, 20% dos entrevistados não haviam completado o 1º grau. TABELA 6 Escolaridade dos moradores dos bairros Escolaridade
Alvorada
Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Pós-graduação
2
13
-
-
2
7
Superior
1
7
1
7
2
7
2º Grau completo
6
40
3
22
9
32
2º Grau incompleto
1
7
2
14
3
10
1º Grau completo
2
13
1
7
3
10
1º Grau incompleto
3
20
7
50
10
34
Total de incidências
15
100
14
100
29
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
117
A TAB. 7 mostra que tal diversidade cultu ral se retratava na renda familiar do grupo, que oscilava entre 3 e 27 salários mínimos, com maior concentração na faixa de 6 a 15 salários mínimos,11 cujo índice atingiu 60% do universo pesquisado. TABELA 7 Renda familiar dos moradores dos bairros Renda Familiar
Alvorada
Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
De 27 a 16 salários mínimos
1
7
-
-
1
3
De 6 a 15 salários mínimos
9
60
3
22
12
42
De 3 a 5 salários mínimos
4
26
9
64
13
45
Menos de 3 salários mínimos
1
7
2
14
3
10
Total de incidências
15
100
14
100
29
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
O nível de instrução dos habitantes do Araguaia, por sua vez, se mostrou inferior ao do bairro Alvorada. Apesar de 7% terem concluído o nível superior, 50% dos entrevistados não concluíram o 1º grau e nenhum deles cursou pós-graduação, de acordo com a TAB. 6. Observa -se, então, que a pouca qualificação desses indivíduos dificulta seu acesso ao mercado de trabalho com boa remuneração. Mais uma vez, verifica-se a relação da escolaridade com a renda familiar, pois 64% dos ganhos da família desse grupo se concentravam na faixa entre 3 e 5 salários mínimos, como indica a TAB. 7, com oscilações variando entre 1 e 15 salários. Os habitantes que haviam pelo menos completado o 1º grau dispunham de empregos estáveis, ocupados por amplos contingentes femininos, especialmente no setor de prestação de serviços. Pode-se perceber uma relação entre salários, nível de instrução e acesso ao mercado de trabalho. As informações da TAB. 8 sobre a ocupação dos entrevistados12 demonstraram que a faixa mais significativa dos habitantes dos bairros já se aposentara, compreendendo 26% no Alvorada e 36% no Araguaia, sendo que eles dedicavam
11
O salário mínimo vigente na época da pesquisa de campo, março de 2003, era de R$ 200,00 (duzentos reais).
12
Esses dados foram categorizados segundo referência do IBGE (1982): Censo Demográfico - mão-de-obra, MG/1980.
118
parte do tempo livre à família ou a outras atividades complementares que pudessem aumentar a renda familiar, tais como consultoria ou prestação de serviços. TABELA 8 Ocupação dos moradores dos bairros Ocupação
Alvorada
Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Desempregado
1
7
1
7
2
7
Prestação de serviço
3
20
1
7
4
14
Comerciário
1
7
3
21
4
14
Atividades sociais
3
20
-
-
3
10
Aposentado
4
26
5
36
9
31
Dona de casa
3
20
4
29
7
24
Total de incidências
15
100
14
100
29
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
A prestação de serviços, geralmente de ordem técnica, era a atividade exercida por 20% dos entrevistados no Alvorada e por 7% no Araguaia. Outra parcela se envolvia em atividades sociais, destacando-se o ensino e o artesanato, sendo praticados por 20% somente no Alvorada, ou se dedicava ao comércio, trabalhando como vendedores, que abrangiam 7% no Alvorada e 21% no Araguaia. As donas de casa, que faziam parte do universo pesquisado com 20% no primeiro e 29% no segundo, se limitavam aos afazeres domésticos, não contribuindo monetariamente, portanto, para o orçamento familiar. Houve baixa incidência de desempregados nos dois bairros; apenas 7%, ao mesmo tempo em que, como foi indicado na TAB. 8, grande parte dos entrevistados ainda vem exercendo algum tipo de atividade profissional. Com relação ao responsável pela renda familiar, pôde-se constatar que a situação desses bairros não se diferenciava daquela dos padrões médios brasileiros, em que o marido cuida da manutenção da família, em praticamente metade dos casos – 48% dos entrevistados nos dois bairros, segundo a TAB. 9. Observou-se que a mulher também participava do orçamento familiar, ora sozinha, e em determinados casos, incluindo o marido ou os filhos. Em conclusão, o padrão dos estabelecidos nos bairros Alvorada e Araguaia se caracterizou por níveis de instrução de baixo a médio, havendo um percentual significativo de aposentados e de donas de casa, que não contribuíam para o
119
orçamento familiar. Foi apurado, ainda, que cerca da metade da renda familiar do grupo é de única responsabilidade do marido. TABELA 9 Responsável pela renda familiar dos moradores dos bairros Alvorada
Responsável
Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Marido
7
46
7
50
14
48
Marido e mulher
3
20
3
21
6
21
Marido, mulher e filhos
3
20
-
-
3
10
Mulher
1
7
-
-
1
4
Marido e filhos
1
7
3
21
4
13
Mulher e filhos
-
-
1
8
1
4
Total de incidências
15
100
14
100
29
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2 003.
4.1.2
Os outsiders: moradores dos conjuntos Goiânia e Araguaia
Os outsiders, assim denominados os que compuseram as populações dos conjuntos, apresentaram características diferentes dos habitantes originais dos dois bairros, os estabelecidos, como acontece em casos semelhantes, bem interpretados por Bourdieu (1998b, p. 134): o mundo social é construído com base em princípios de diferenciação ou de distribuição, constituídos pelo conjunto de propriedades que atuam no universo social e, nesse caso, os agentes são definidos pelas posições relativas que eles ocupam nesse espaço. Cada um deles, segundo o autor, se situa numa posição ou numa classe precisa de posições vizinhas, numa região determinada do espaço, e não pode ocupar duas regiões opostas do mesmo. Nos conjuntos Goiânia e Araguaia já se podem notar sintomas de um quadro social que tende a tornar suas afirmações realidade, tanto no campo social quanto no econômico. Para se tirar melhores conclusões de análise desse tipo de interação, foi que recorremos a Bourdieu, que afirma que o campo social deve ser visto como espaço multidimensional, em que qualquer posição pode ser definida em função de um sistema também multidimensional de coordenadas, cujos valores correspondem aos das diferentes variáveis pertinentes.
120
Mas é preciso considerar que é um processo muito lento, visto que, no caso, os outsiders eram originários de classe menos privilegiada da sociedade, constituindose a maioria de trabalhadores rurais, vindos de diversos pontos do Estado de Minas Gerais. Deve-se levar em conta que essa camada da população não apresentava mão de obra qualificada, o que, lhes restringia a acesso ao mercado de trabalho. No que se refere à faixa etária produtiva dos 221 habitantes do conjunto Goiânia e dos 176 do Araguaia, ela se concentrou entre as idades de 18 e 60 anos, que compreendia 74% no primeiro e 80% no segundo, conforme a TAB. 10. Era grande a incidência de pessoas dessa faixa etária, visto que elas se dedicavam a algum tipo de atividade econômica e tinham acesso ao mercado de trabalho. TABELA 10 Faixa etária dos moradores dos conjuntos Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Mais de 60 anos
12
6
13
7
25
6
De 40 a 60 anos
47
21
42
24
89
23
De 18 a 39 anos
117
53
98
56
215
54
Menos de 18 anos
45
20
23
13
68
17
Total de incidências
221
100
176
100
397
100
Idade
Total
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Quanto à escolaridade, a maioria dos outsiders entrevistados nos dois conjuntos apresentou baixo nível de instrução, pois 66% deles nem mesmo chegaram a terminar o curso primário, como indica a TAB. 11. Foi detectada, ainda, alta taxa de analfabetismo, chegando a 19% do universo pesquisado. Além disso, não se encontrou nenhum morador que tivesse completado o 2º grau e sequer o nível superior. Felizmente, essa situação tende a melhorar, já que a pesquisa indicou que os menores de 18 anos, em grande parte, freqüentavam alguma modalidade de curso. Pode-se, então, admitir perspectivas otimistas, em que as comunidades com graus de deficiências culturais, econômicas e sociais semelhantes às das populações descritas poderão transcender as atuais, devido ao acesso à educação.
121
TABELA 11 Escolaridade dos moradores dos conjuntos Conjunto Goiânia
Escolaridade
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
2º grau incompleto
2
5
1
3
3
4
1º grau completo
2
5
5
17
7
11
1º grau incompleto
25
64
20
69
45
66
Analfabeto
10
26
3
10
13
19
Total de incidências
39
100
29
100
68
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Quanto a essa população atual, sua incipiente qualificação profissional refletiu a baixa renda dos moradores dos conjuntos, que variava entre um e dois salários mínimos, conforme a TAB. 12. Por outro lado, a faixa mais ampla indicava que o maior salário recebido pelos moradores dos conjuntos era de 5,5 salários mínimos. Uma observação que merece destaque é que uma razoável parcela dos entrevistados não chegava a receber mensalmente sequer o salário mínimo, como indicam 21% do universo pesquisado. Esse índice, que comprovou clara relação entre baixos salários e educação, demonstra que o mercado de trabalho demanda um nível mínimo de qualificação que a maioria dessa população não alcança. Isso pôde ser percebido através das atividades dos mantenedores de famílias, que exerciam profissões pouco qualificadas. Dos que se dedicavam à prestação de serviços, 34% dos entrevistados indicados pela TAB. 13, trabalhavam em faxina ou na construção civil, sendo que, nessa função, sobressaíam-se os serventes. Atuavam também como catadores, diaristas, garis, carpinteiros e bordadeiras. TABELA 12 Renda familiar dos moradores dos conjuntos Renda Familiar
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
De 5 a 2 salários mínimos
11
28
11
38
22
32
De 2 a 1 salários mínimos
20
51
12
41
32
47
Menos de 1 salário mínimo
8
21
6
21
14
21
Total de incidências
39
100
29
100
68
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
122
Os desempregados residentes nos dois conjuntos chegavam a 12% e buscavam alternativas na economia informal, fazendo biscates como catar papel ou ferro-velho, trabalhando com artesanato ou consertando aparelhos eletrodomésticos. As donas de casa, que compreendiam 41% dos entrevistados nos conjuntos, se dedicavam à atividade doméstica e os aposentados, 3% do universo pesquisado, não buscavam outra fonte de renda complementar além da sua aposentadoria. Portanto, não havia qualquer contribuição extra para a renda familiar da parte desses moradores. TABELA 13 Ocupação dos moradores dos conjuntos Ocupação
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Dona de casa
18
46
10
35
28
41
Prestação de serviço
12
31
11
38
23
34
Desempregado
5
13
3
10
8
12
Comércio
3
8
2
7
5
7
Estudante
1
2
1
3
2
3
Aposentado
-
-
2
7
2
3
Total de incidências
39
100
29
100
68
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
A renda familiar dos outsiders era de responsabilidade apenas do marido, em 38% do universo pesquisado na TAB. 14, reforçando a tradição cultural da função provedora do homem. Ao mesmo tempo, a mulher sustentava sozinha sua família em 14% dos casos e em 6% destes, os filhos assumiam tal posição. Mas verificaram-se situações em que mais de um membro da família assumia a renda familiar: o marido e a mulher, 12% e o marido, a mulher e os filhos, 6%, conforme a TAB. 14. Além disso, surgiram casos isolados de agregados que também contribuíam para a renda da família, como parentes próximos, irmãs ou genros, perfazendo um total de 4% dos entrevistados. Um fato a se observar é que, de acordo com uma tendência das primitivas frentes de trabalho ali existentes, grande parte desses moradores trabalhava em atividades no entorno. Em pesquisa realizada em 1997 por Nascimento (1998), logo após a implantação do conjunto Goiânia, muitas mulheres ali residentes exerciam atividades como camareiras nos motéis lindeiros à rodovia que liga a capital a Sabará, o que
123
não
continuou
se
verificando
recentemente.
Isso
porque
a
maioria
dos
estabelecimentos que ali vem se instalando nos últimos anos, geradores de empregos, tem passado por um processo de reestruturação que envolve a informatização e a exigência de qualificação profissional, o que provocou a demissão dos não-qualificados. TABELA 14 Responsável pela renda familiar dos moradores dos conjuntos Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Marido
13
32
13
46
26
38
Mulher
5
13
5
17
10
14
Marido e filhos
5
13
1
3
6
8
Marido e mulher
3
8
5
17
8
12
Marido, mulher e filhos
3
8
2
7
5
6
Filhos
3
8
2
7
5
6
Agregados
2
5
1
3
3
4
Outros
5
13
-
-
5
6
Total de incidências
39
100
29
100
68
100
Responsável
Total
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Examinando as condições estruturantes dos moradores dos bairros e dos conjuntos, pôde-se verificar que existe uma diferença significativa entre esses dois grupos, no que tange aos aspectos sociais e econômicos.
4.1.2.1
O caminho para casa
A trajetória da população dos conjuntos não se diferencia das demais que compuseram o êxodo rural no país. Como tal, ela só encontrou disponíveis as áreas de risco. A maioria das famílias dos outsiders era originária desses locais, antes de ter acesso ao programa da URBEL: 58% delas eram oriundas das margens de rios, 31%, de áreas sujeitas a desmoronamentos e 9%, de espaços que se destinavam à implantação de obras públicas, conforme a TAB. 15. Embora grande parte dessas residências tivesse sido construída em alvenaria – 74%, a precariedade estava presente no baixo padrão construtivo das mesmas, em que 26% delas eram vedadas com materiais pouco adequados, tais como placas de
124
latão e de madeira usadas na construção civil – o madeirit. A precariedade e a insalubridade se confirmaram ao se verificar a cobertura das mesmas, que em 75% dos casos se compunha de telha amianto, material poluente que irradia excessivo calor para o interior dos compartimentos e que pode provocar graves danos à saúde. Eram poucas as unidades que apresentavam laje na cobertura, apenas em 25% dos casos, o que demonstra a condição deficiente de grande parte dessas construções. Mesmo assim, foram registradas algumas residências sólidas que, embora tivessem sido construídas em alvenaria, não estavam livres de riscos, porque os terrenos eram, geralmente, localizados em áreas inundáveis ou sujeitas a desabamento. TABELA 15 Condições das casas anteriores dos moradores dos conjuntos (em %) Condição
Propriedade
Situação de Risco
Material de Vedação
Cobertura
Número de Cômodos
Cozinha
Banheiro
Especificação
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
Invasão
64
52
58
Casa própria
18
41
30
Aluguel
10
4
7
Favor
8
3
5
Beira rio
59
58
58
Barranco
26
36
31
Obras do metrô
13
6
9
Prédio abandonado
2
-
2
Alvenaria
61
86
74
Madeira
39
14
26
Laje
20
30
25
Telha amianto
80
70
75
01 cômodo
54
31
42
02 cômodos
26
31
28
03 cômodos
18
24
21
04 cômodos
2
14
8
No mesmo cômodo
54
62
58
Em cômodo separado
46
38
42
Dentro de casa
57
70
64
Fora de casa
43
30
36
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Pôde-se observar a precariedade das condições de habitabilidade, em que 42% dos barracos se compunham de um único cômodo que atendia às funções de cozinha, quarto e sala, simultaneamente. O acúmulo de atividades domésticas num só
125
espaço impedia a ventilação e a insolação, comprometendo a qualidade do conforto ambiental interno. As informações do TAB. 15 indicam ainda que tais casas se compunham de no máximo quatro cômodos. Ao mesmo tempo, o banheiro ainda era, para 36% das moradias, localizado em área externa da casa, em fossas no fundo do quintal. Inegavelmente, pode-se constatar que quase todas as habitações desses locais de risco apresentavam condições de habitabilidade e higiene precárias e de salubridade inadequada.
4.1.2.2
“Eu não tenho onde morar”
Tais condições provocaram situações muito vulneráveis, principalmente durante as chuvas de verão, quando a freqüência de tempestades se intensificava. Esses locais eram afetados por remoções urgentes, obrigando, na maioria dos casos, o Poder Público a remover os moradores para abrigos temporários. Assim, compreendeu-se que essas famílias percorreram um longo caminho: foram recolhidas pela Defesa Civil e passaram por acampamentos, até que chegassem às suas moradias definitivas nos conjuntos. Nessa circunstância, a maioria das famílias foi inicialmente acolhida pela Defesa Civil e encaminhada em caráter emergencial para escolas das proximidades, até que cessassem as chuvas de verão. Após a triagem, seguiram para abrigos improvisados como acampamento, cujas condições das barracas de lona e das instalações sanitárias eram precárias. A permanência dos desabrigados ness es acampamentos variou de 6 meses a 3 anos, até que fossem liberadas as casas para cada família. Por conta dessa gravidade, foi criado o programa Área de Risco, para atender a tais famílias.
4.1.2.3
A chegada à casa nova
A intervenção da URBEL se fez para proporcionar participação no programa, para efetivar a orientação entre os integrantes do mesmo e apresentar os projetos das novas moradias. Essa ação, embora meritória, não foi imediata, visto que os parâmetros adotados na municipalização das políticas habitacionais ainda não estavam completamente incorporados ao processo.
126
Os moradores dos conjuntos estavam isentos de qualquer tipo de pagamento por suas novas casas, pois o programa Área de Risco prevê indenizar os aderentes pela perda de suas moradias, o que não ocorre nos demais programas da URBEL. Aliás, a titulação de propriedade do imóvel não foi concedida aos habitantes, pois as modificações ocorridas na maioria das residências não permitiram à Prefeitura conceder o Habite-s e,13 o que impediu o processo de apropriação formal das mesmas. Até então, esses proprietários possuíam apenas o termo de permissão de uso estabelecido por decreto pelo prefeito municipal, donde se conclui que a regularização fundiária ainda não se efetivou. As respostas aos questionários da pesquisa indicaram que, apesar de nem todos os moradores dos conjuntos terem participado do programa Área de Risco desde a fase inicial, 95% dos entrevistados no Goiânia e 93% no Araguaia, conforme os GRAF. 3 e 4, ainda eram proprietários das suas casas nos conjuntos. A exceção se apresentou em casos pouco significativos, quando os proprietários dos imóveis os emprestavam para parentes próximos, tais como nora ou tia, ou os vendiam. Quanto à venda de imóveis, ocorreram oito em cada um desses conjuntos. A pesquisa mostrou que os motivos de atração para 8% dos moradores dos conjuntos, assim como para aqueles que procuravam os bairros, foram o preço acessível, a segurança e a facilidade de se chegar ao centro da cidade. Por outro lado, os habitantes que vendera m suas casas dos conjuntos saíram de suas residências porque voltaram para as cidades de origem ou as permutaram com moradores de outros bairros. Vizinhos informaram que dois desses ex-moradores voltaram ao local de origem, ou seja, às áreas de risco que eles habitavam anteriormente, onde, em 2003, ocorreram deslizamentos. Embora não tenham sido vítimas diretas, enfrentaram todas as circunstâncias em acidentes dessa natureza. A URBEL, por sua vez, não tem controle sobre essa movimentação dos moradores dos c onjuntos.
13
Como é sabido, denomina-se Baixa e Habite-se o documento fornecido pela Prefeitura Municipal, comprovando que a construção está de acordo com o projeto e em condições de ser habitada.
127
GRÁFICO 3 Representação gráfica da propriedade dos imóveis do conjunto Goiânia 5%
Proprietário Não proprietário
95%
Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco, com base em pesquisa de campo, 2003.
GRÁFICO 4 Representação gráfica da propriedade dos imóveis do conjunto Araguaia 7%
Proprietário Não proprietário
93%
Fonte: Elaborado por Branca Teixeira Perocco, com base em pesquisa de campo, 2003.
No que diz respeito ao total de moradores por residência, 60% das casas dos dois conjuntos apresentavam de 2 a 5 moradore s, como mostra a TAB. 16, embora já se manifestasse uma tendência média de quatro pessoas por unidade. O mais interessante a observar é que havia moradias ocupadas por até doze pessoas, incluindo-se aí agregados como genros, sogras, netos e até outra família. É claro que, em tais condições, o espaço era inviável para comportar tanta gente, chegando mesmo a se verificarem situações de insalubridade e promiscuidade.
128
TABELA 16 Número de habitantes por moradia nos conjuntos Número de Ha bitantes
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Menos de 2 habitantes
-
-
1
4
1
2
De 2 a 5 habitantes
25
64
16
55
41
60
De 6 a 9 habitantes
11
28
9
31
20
29
De 10 a 12 habitantes
3
8
3
10
6
9
Total de incidências
39
100
29
100
68
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Após a entrega das moradias, ocorreu o súbito abandono desses empreendimentos por parte da URBEL. Desse fato decorreram desajustes no relacionamento interno e conflitos entre os outsiders e os estabelecidos . No caso desses conjuntos, a URBEL permanece ausente do processo, tendo os próprios moradores tomado iniciativas individuais já citadas, chegando, alguns deles, a venderem suas casas. Constata-se, assim, a necessidade de prosseguimento do plano após a ocupação dos conjuntos, como seria indispensável em programas dessa natureza. Aliás, é essencial o envolvimento da URBEL, a fim de dar continuidade à solução desses problemas, mediante um projeto específico com características suficientes para ajustá-lo às recomendações da legislação, que só se consolidará com o importante instrumento da regularização fundiária. Além disso, em obediência ao Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), a URBEL terá que recorrer às comissões técnico-jurídicas, que oferecem assistência gratuita para as comunidades e os grupos sociais menos favorecidos (Art. 4, inciso III, alínea r). Nos novos projetos, esse órgão já vem empreendendo ajustamentos extensivos desse processo até a sua consolidação. Há expectativa de que, com essa medida, a implantação de novos conjuntos atingirá padrões e ordenamentos semelhantes aos que já ocorrem em seus programas de autogestão. Nesses novos programas de autogestão, os habitantes participam efetivamente do projeto, da implantação e da consolidação dos conjuntos, coordenando e administrando a obra. Essa gestão apresenta dois aspectos positivos: primeiro, não há interveniência de intermediários, no caso as empreiteiras, que cobram altas taxas de administração, o que onera o custo do empreendimento; segundo, torna-se possível a formação de mão-de-obra, visto que os futuros moradores participam da
129
execução da obra. Esse envolvimento da população aproxima os futuros habitantes, visto que estão todos comprometidos com o mesmo objetivo, o que possibilita, assim, vínculos com o lugar. Segundo depoimento da diretora de Planos Globais da URBEL, a arquiteta Maria Cristina Magalhães, são nítidas as conseqüências dessa gestão, pois as casas construídas por esses programas sofrem o mínimo de alterações posteriores e dificilmente há mobilidade dos seus moradores. Daí a importância de haver participação e envolvimento dos moradores em todo o processo da produção da sua moradia. Embora a municipalização da política habitacional tivesse como uma das premissas a participação de atores envolvidos durante todo o processo da implantação de novos conjuntos, a URBEL, que ainda não dispunha de elementos e de corpo técnico profissional que pudessem atender a essa demanda, passou a contar com as novas legislações e melhoria na organização técnica, embora ainda não tenha ação efetiva para exercer com eficácia a política habitacional no município. Evidentemente, os futuros projetos apresentarão características adequadas a essa situação. Atualmente, o Estatuto da Cidade, que vai humanizar a política urbana no país, favorece maior participação dos grupos envolvidos, o que poderá facilitar ainda mais na adequação dos futuros assentamentos de conjuntos habitacionais, objetivo perseguido pela comunidade e pelos órgãos de fomento à habitação.
4.2
As relações afetivas com o lugar
As idéias de espaço e lugar são definidas simultaneamente, pois o espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado (TUAN, 1983, p. 151-184). E esse lugar só terá sentido se os atores envolvidos puderem estabelecer uma relação de intimidade construída com ele em qualquer escala, seja no lar, no bairro ou na cidade. E a maioria dos lugares não é criação, pois eles são construídos a partir das necessidades práticas. Os grupos dos estabelecidos e dos outsiders tiveram origens diferenciadas e passaram a compor um novo meio: um lugar singular que, conforme Bauman (2003, p. 21), não se limita a ser diferente e cujos sintomas de identificação se manifestam nos depoimentos individuais.
130
No início da implantação dos conjuntos, verificou-se que a história de vida dos moradores com o lugar se apresentava de maneira muito diferente, tanto para os habitantes dos conjuntos construídos pela URBEL como para os moradores dos bairros Alvorada e Araguaia, que já vinham consolidando suas relações com ele por um longo período. Na realidade, o novo espaço veio se configurando e teve origem com a implantação dos mesmos, em que se destaca a indução das identificações com o lugar. No momento em que se manifesta essa identidade para o seu morador, a casa passa a adquirir um valor além de simples abrigo: ela representa uma objetividade social que reflete, nos intercâmbios subjetivos que ali se realizam, o lugar dos sonhos para os seus habitantes. Tal situação remete ao olhar de Tuan (1983, p. 6) sobre o lugar, que se diferencia do espaço à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. Aliás, na prática social, os critérios objetivos da identidade são objeto de representações mentais e de representações objetuais que atuam como propriedade simbólica de atos que os agentes investem como sinais de interesses materiais e simbólicos do seu portador (BOURDIEU, 1998b, p. 112). Assim, ao mesmo tempo em que é importante conhecer o lugar onde estão implantados os conjuntos, pois são conhecidos o perfil socioeconômico das populações envolvidas e as características físicas do local, surge a necessidade de demonstrar como elas vivem nesse espaço e a partir de quais condições passam a assimilá -lo como lugar. A vivência desses habitantes no local demonstra as relações de identidade estabelecidas em vários níveis, refletindo o estilo de vida dos grupos no espaço. Nesse sentido, os valores de cada um deles se manifestam através de hábitos e atividades retratados pela sua cultura no dia-a-dia, permitindo uma avaliação sobre a adequação desse espaço, resultado das diretrizes iniciais da nova política habitacional. Após verificar as relações com a casa, a célula menor, a análise das referências da identidade com o conjunto torna-se importante para o entendimento da apropriação desse lugar pelos diferentes grupos e escalas. Para atender aos objetivos do trabalho, tornou-se necessário identificar como os conjuntos eram considerados
131
pelos estabelecidos e pelos outsiders e até que ponto a pesquisa contribui para compreender o sentido de lugar nesse novo espaço. Os conjuntos foram valorizados de maneira diferente pelos seus habitantes e pelos estabelecidos. Observou-se que as manifestações dos primeiros foram favoráveis às condições do local, o mesmo não ocorrendo com os últimos, que se sentiram afrontados face à implantação dos conjuntos Goiânia e do Araguaia, construídos contra a sua vontade. As relações de identidade estabelecidas entre o habitante e o espaço proporcionaram oportu nidades de trocas de experiências em diversos níveis. Inicialmente, essas trocas se davam nas atividades primárias do convívio familiar e iam se desenvolvendo e se ampliando naturalmente nos contatos com grupos mais próximos. Assim, a casa passa a ser o lugar íntimo, considerado como aquele em que pensamos como lar e lugar, mas as imagens atraentes do passado são evocadas não tanto pela totalidade do prédio, que somente pode ser visto, mas por seus elementos e mobiliário, que podem ser tocados e também cheirados (TUAN, 1983, p. 160). A pesquisa indicou que grande maioria dos entrevistados nos dois grupos se identificava com as suas moradias: tanto os estabelecidos, que construíram suas residências conforme seus desejos e possibilidades, como os outsiders, que valorizaram sua casa como o abrigo e o acesso à infra -estrutura básica. Isso não impediu de haver modificações nas moradias, fruto de possíveis deficiências no programa e na gestão do empreendimento pela URBEL, conforme visto anteriormente. Nesse item, nosso objetivo é observar como se manifesta a identificação dos estabelecidos e dos outsiders ao se apropriarem das moradias e dos conjuntos, avaliando o sentido da construção de lugar.
4.2.1
Identidade dos estabelecidos com suas moradias
Os estabelecidos mantive ram uma boa relação com as suas moradias: primeiro, porque eles eram, na maioria, proprietários dos seus imóveis por muitos anos;
132
segundo, porque as residências, em grande parte, foram construídas por eles mesmos e, portanto, atendiam a condições definidas pelos próprios membros da família. Essa satisfação geral tem a ver com a construção das residências de acordo com as reais aspirações do proprietário e justifica a necessidade de um prévio contato dos autores dos projetos com os usuários, com vistas a atender mais amplamente a cada família. As dimensões e a tipologia arquitetônica das moradias dos bairros Alvorada e Araguaia se assemelhavam. As casas eram constituídas, em grande parte, por sala de estar, estar íntimo, sala de refeições, três ou quatro quartos, sendo um deles a suíte do casal, além de ampla cozinha, área de serviço e garagem para, no mínimo, um carro. Além disso, surgiam, nessas residências, espaços complementares tais como escritórios, lavabos, salas de estudos e varandas. O partido arquitetônico e a composição de fachada da maior parte das habitações, bem como o mobiliário, os equipamentos e o material empregado apresentavam similaridade. No bairro Araguaia, verificou-se redução de padrões quanto aos aspectos e características acima enumerados. As casas são mais simples e mais da metade contava com cinco cômodos, que se limitavam ao estar, refeições, três quartos, cozinha e banheiro. As edificações são mais antigas, sendo que a maioria dispõe de quintal com árvores frutíferas, mantendo a implantação original. A tipologia nesse bairro ainda determina certo padrão de poder aquisitivo que remete àquele estabelecido pela classe média brasileira.
4.2.2
Identidade dos estabelecidos com os conjuntos
A maioria dos entrevistados dos bairros nos entornos – 95% no Alvorada e 93% no Araguaia, conforme a TAB. 17 – observou com pessimismo que a implantação dos conjuntos os prejudicou, principalmente porque, para 41% dos entrevistados nos dois bairros, houve grande desvalorização dos seus imóveis. Além disso, 13% acreditavam que a chegada dos novos habitantes poderia comprometer a segurança do local, ao passo que 12% se preocupavam com as drogas.
133
TABELA 17 Influências da implantação dos conjuntos segundo os moradores dos bairros Fator
Alvor ada
Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Desvalorização dos imóveis
15
38
13
45
28
41
Diferença social
8
21
4
13
12
18
Droga
6
15
2
7
8
12
Segurança
3
8
6
21
9
13
Má conservação das casas dos conjuntos
2
5
-
-
2
3
Chegou depois
3
8
2
7
5
7
Subtotal
37
95
27
93
64
94
Não afetou
2
5
2
7
4
6
Total de incidências
39
100
29
100
68
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
De fato, a implantação dos conjuntos provocou a desvalorização dos imóveis, que chegava, segundo entrevista com proprietários, a reduzir até 30% do valor inicial: “O conjunto acabou com o bairro; o valor das casas desabou” (dona de casa, 55, 36G). “Se minha casa valia R$ 60 mil, ela deve estar valendo agora uns R$ 40 mil. Mesmo assim, muita gente não compra. Tudo por causa do conjunto” (dona de casa, 70, 43A). Além disso, os recentes problemas de segurança, como tráfico, consumo de drogas e assaltos eram atribuídos à implantação dos conjuntos, embora eles fossem comuns em toda a cidade: “A segurança ficou comprometida; hoje em dia, visa muito roubo e droga” (técnica laboratorial, 38, 48G,). “Só eu, fui roubada três vezes, depois que esse povo mudou pra cá” (artesã, 29, 51G). Os hábitos dos novos vizinhos, definidos pelos estabelecidos como demonstração de diferença social, foram também apontados como um dos fatores negativos da implantação dos conjuntos, pois eram diferentes dos vividos anteriormente pelos moradores locais. Além do mais, essa diferença indicava o não-pertencimento dos novos moradores ao grupo dos já estabelecidos. Mais uma vez cabe lembrar Bourdieu (1997, p. 21), que afirma que o espaço de posições sociais se traduz num espaço de tomadas de posição pela intermediação do espaço de disposições, que é o do habitus . Essa diferenciação registra a luta das classificações, que é a luta pela definição da identidade, e que indica que as propriedades podem ser estigmas e
134
emblemas da origem, com sinais que lhes são correlativos e que impõem a definição legítima das divisões do mundo social (BOURDIEU, 1998b, p. 113). Essa avaliação resulta de observações dos estabelecidos, ao julgarem desde o tratamento higiênico dispensado à casa, até ao mau condicionamento do lixo, que espalhava sujeira ao longo das ruas adjacentes aos assentamentos: “No princípio, era cada palavrão! Agora está até melhorando. Tinha uma turma que roubava, que era um caso sério. Piorou muito com a implantação do conjunto. O que a gente vê de venda de maconha! Eles não respeitam ninguém” (aposentado, 70, 33A). “As pessoas não conservam suas casas. É tudo muito bagunçado” (cozinheira, 53, 47G). “Eles não me aborrecem. Chamo atenção deles pra não fumar maconha, não fazer sexo na rua. O ambiente ficou carregado. Meia noite, uma hora, a gente escuta tiro e, em seguida, o helicóptero da polícia” (aposentado, 69, 52G). O espaço social encontra-se inscrito ao mesmo tempo nas estruturas espaciais e nas estruturas mentais e ele é o produto da incorporação desses elementos. Por esse motivo, o espaço social é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce sob a forma mais sutil, a da violência simbólica como violência despercebida. Nesse sentido, o espaço arquitetônico é o componente mais importante, pois ele se define como ligação direta com o corpo e obtém dele a reverência e o respeito que nas ce do distanciamento, que são, sem dúvida, os componentes do simbolismo do poder (BOURDIEU, 1998a, p. 163). Mais uma razão que indica a necessidade de levar o projeto arquitetônico, tanto quanto possível, a captar as aspirações dos moradores, para que ele traduza os elementos citados. Ao mesmo tempo, famílias que se deslocaram para os bairros Alvorada e Araguaia, após a implantação dos conjuntos, aceitaram melhor esses habitantes, pois os conjuntos já existiam quando eles passaram a residir no local. Além do mais, esses novos moradores dos bairros, por sua vez, não passaram pelo exaustivo processo de ter que lutar contra a sua implantação: “Na época que eu mudei, incomodavam muito, pedindo as coisas. De madrugada, sempre passava uma turma fazendo muita algazarra. Agora, não amolam mais” (costureira, 45, 38A). “Não tive qualquer problema com o pessoal. Pode ser que eu venha a ter” (professora, 39, 50G). “É normal essa convivência. A gente tem que aceitar” (dona de casa, 43, 37A). Esses
135
novos moradores se adaptaram mais facilmente ao lugar e não tiveram problemas de ajustamento com os outsiders .
4.2.3
Identidade dos outsiders com suas moradias
Nos conjuntos pesquisados, os entrevistados, os outsiders, criaram rapidamente a identificação em diversos níveis com o espaço que eles habitam. A grande maioria, que compreendia 92% no Goiânia e 97% no Araguaia, como indica a TAB. 18, demonstrou que melhorou sua qualidade de vida quando mudou para os novos assentamentos. Para 75% dessa população pesquisada, o fato de terem adquirido a sua casa, a segunda pele, ou estar vivendo em melhores condições do que a anterior, tornou-se prioritário para sua satisfação, o que comprova os argumentos de Tuan (1983, p. 152), de que é ali onde se encontra carinho, onde as necessidades fundamentais são consideradas. Cabe observar que essas informações foram colhidas em período posterior às reformas e acréscimos, em atendimento às reais necessidades de cada família assentada. De fato, o sonho da casa própria se realizava; a propriedade significava a tranqüilidade de não mais despender parte da renda familiar com aluguel. Isso também permitiu adquirir a segurança de tornar-se proprietário de um imóvel e, em alguns casos, garantir independência de parentes: “Saí de baixo da lona” (dona de casa, 24, 3A). “Nós pagava aluguel e tinha barracão de madeirit. Agora, só pago energia, telefone e água” (aposentada, 53, 16A). “Morar de favor é muito difícil” (desempregada, 36, 24G). TABELA 18 Fatores de melhoria da qualidade de vida dos moradores dos conjuntos Fator
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Casa própria
14
36
14
48
28
41
Melhor condição da casa
15
38
8
27
23
34
Melhor condição do bairro
7
18
6
22
13
19
Subtotal
36
92
28
97
64
94
Não melhorou
3
8
1
3
4
6
Total de incidências
39
100
29
100
68
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
136
Essa identidade se manifestava também na nova residência, que lhes proporcionava situação melhor do que aquela em que eles viviam anteriormente, especialmente porque não oferecia mais riscos. Isso certamente garantia segurança para cada morador e sua família. Além do mais, para essa população, o que mais importava era ter acesso à infra-estrutura básica, elemento essencial para a sobrevivência saudável, chegando até a se definir a relação topofílica com o espaço que os abrigava: “Tem saneamento, esgoto, água e luz. Até de saúde os meninos melhorou!” (dona de casa, 59, 29G). “Meus filhos têm banho, chuveiro, água encanada, escola perto e quarto separado” (dona de casa, 40, 31G). “Só de nós ter uma casa que tem laje...” (pedreiro desempregado, 53, 39G). “Eu sofria muito; carregava água na cabeça; não tinha luz, não tinha tanque” (dona de casa, 28, 9G). “Eu tô no céu. Tenho água, luz, rede de esgoto, ônibus; posso levar minha filha ao médico” (faxineira, 47, 5G). “Agora estou em outro ambiente; mudou minha situação de vida: tem escola perto” (pedreiro, 28, 22A). “Onde nós mora hoje, a casa é maior do que a de antes” (salgadeira, 32, 12G). Essa condição garantia, ainda, o acesso a outros bens como escola e saúde. Cabe aqui uma observação a respeito da importância da infra-estrutura na questão da saúde pública: nos investimentos destinados ao saneamento básico, para cada R$ 1,00 gasto em infra-estrutura correspondem R$ 4,00 destinados à saúde. Houve manifestações de completa identidade com a moradia, em que se expressava o encantamento de ser experimentada uma nova e melhor situação, diferente daquela anterior, vivida na barraca de lona do acampamento: “Nossa, meu Deus, eu tô no céu. Nunca perdi a fé de ganhar uma casa” (faxineira, 32, 14G). “Ganhei na loteria” (dona de casa, 31, 21A). “Aqui é muito sossegado. Os meninos brincam tranqüilos” (catadora, 44, 15A). O sentimento de pertencimento a um grupo definido tranqüilizava os moradores dos conjuntos e os fazia reconhecer seus direitos de cidadãos, especialmente quando se tratava de situações onde havia riscos de desabamentos e inundações: “Só da gente deitar na cama e dormir direito já é uma melhora” (doméstica, 52, 21G). “Melhorou a condição de vida de muitas pessoas que viviam sofrendo, principalmente na época da chuva” (dona de casa, 37, 8G). “Aqui é mais tranqüilo; não tem risco de vida” (desempregada, 36, 2A). “A gente tem sossego quando chove” (dona de casa, 52, 35G).
137
Raras eram as habitações que possuíam no quintal um jardim ou uma horta e quando isso acontecia, era motivo de orgulho para o proprietário: “De manhã cedo, antes de fazer café, eu vou ver minhas plantas. Isso me alegra” (doméstica, 43, 18A). Poucos residentes entrevistados nos conjuntos, 8% no Goiânia e 3% no Araguaia, segundo a TAB. 18, afirmaram que não houve melhoria da sua qualidade de vida quando se mudaram para lá, alegando que as casas em que moravam anteriormente eram mais amplas e apresentavam condições de habitabilidade mais adequadas: “As coisas em vez de melhorar, piorou. Minha casa era de tijolo, maior que essa; tinha dois quarto, garage, banheiro, sala grande e varanda, num terreno que dava mais de 700 metro. Eu podia morar e trabalhar lá” (dono do ferro-velho, 64, 32G). Cabe observar que esse morador não se sentia ameaçado pela proximidade de um córrego, que inundava toda a região na época de chuva, arriscando a vida da sua família e dos habitantes nas proximidades . Para ele, o mais importante era o tamanho da casa e o espaço livre que a circundava, onde ele pudesse praticar suas atividades.
4.2.4
Identidade dos outsiders com os conjuntos
Parte significativa dos outsiders, que a TAB. 19 indicou como 75% do Goiânia e 72% do Araguaia, se identificava com os conjuntos, isto é, salientava os aspectos positivos do local e afirmava que o conjunto oferecia qualidade adequada ao seu modo de vida. Por outro lado, 26% dos entrevistados nos dois conjuntos não se identificaram com qualquer aspecto positivo desses lugares. Foram detectados dois tipos diferentes de moradores: os que se ajustaram imediatamente aos conjuntos e aqueles que se encontravam descontentes com variados aspectos dos mesmos. A maior incidência das respostas nos dois conjuntos dava ênfase positiva à amizade e ao relacionamento entre as pessoas como indicado por 28% dos outsiders, pois ali eles estabeleciam a relação de pertencimento ao meio em que viviam: “As pessoas são ótimas. É todo mundo conhecido. Não tem diferença” (doméstica, 47, 27G). “Gosto muito do povo. Os vizinhos são muito bons” (dona de casa, 60, 23G). “Gosto muito das amizades. É importante todo mundo ligado com todo mundo” (dona de
138
casa, 34, 27A). “Gosto muito da vizinhança. Quando preciso de socorro, eles sempre me ajudam” (dona de casa, 28, 9G). “A gente não fica sozinha perto dos vizinhos” (dona de casa, 28, 28A). TABELA 19 Fatores positivos dos conjuntos considerados por seus moradores Fator
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Relacionamento com as pessoas
9
23
10
35
19
28
Infra-estrutura
8
21
2
7
10
15
A casa
6
15
3
10
9
13
Segurança
3
8
5
17
8
12
Tudo
3
8
1
3
4
6
Subtotal
29
75
21
72
50
74
Não gosta de nada
9
23
6
21
15
22
Não sabe
1
2
2
7
3
4
Subtotal
10
25
8
28
18
26
Total de incidências
39
100
29
100
68
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Outro aspecto valorizado pelos entrevistados era a infra-estrutura local, pois ela facilitava a vida de to dos: “Tudo aqui é bom demais” (faxineira, 47, 5G). “Aqui tem ônibus toda hora; a gente não precisa ficar muito tempo no ponto” (dona de casa, 44, 7G). Outra manifestação indicava uma relação adequada com o conjunto, mas não com o bairro: “Do conjunto eu gosto; não gosto é do lugar. Não tem é divertimento pras crianças” (desempregada,
distribuidora
de
droga,
34,
11G).
Embora
sua
manifestação indicasse uma deficiência de equipamentos do próprio conjunto, para essa moradora, o olhar se referia ao bairro. Em contrapartida, 22% dos residentes nos dois conjuntos afirmaram que nada os atraía ali e alguns dentre eles até manifestaram extrema repulsa pelo local: “Aqui não tem nada pra se gostar. Se eu pudesse mudar o mais rápido possível, eu mudava” (dono do ferro-velho, 64, 32G).”Quase não saio; só com precisão. Fico isolada. Vizinho não é amigo não” (dona de casa, 43, 33G). “Não tem nada que eu
139
gosto. Tenho vontade de tirar a minha mãe daqui e jogar uma bomba dentro do conjunto” (dona de casa, 24, 3A). Por outro lado, muitos aspectos dos conjuntos foram considerados negativos pelos seus moradores, especialmente os que diziam respeito à droga, presente com freqüência de 38% no Goiânia e de 59% no Araguaia, de acordo com a TAB. 20. TABELA 20 Fatores negativos dos conjuntos considerados por seus moradores Fator
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Droga
15
38
17
59
32
47
Relacionamento com as pessoas
9
23
3
10
12
18
Lixo
6
15
2
7
8
12
Insegurança
1
3
1
3
2
3
Traçado do conjunto
1
3
-
-
1
1
Aceitação pelos moradores do bairro
-
-
1
3
1
1
Subtotal
32
82
24
82
56
82
Não tem problema
6
15
1
3
7
10
Não sabe
1
3
4
15
5
8
Subtotal
7
18
5
18
12
18
Total de incidências
39
100
29
100
68
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Mesmo tendo conhecimento dos riscos que a droga causava, a maioria não acreditava que houvesse uma solução a curto ou médio prazo para o problema. Eles se demonstravam incrédulos quanto a qualquer ação do Poder Público; a intervenção das autoridades era interpretada sem crédito ou até mesmo com descaso por parte de alguns moradores: “É muito difícil; é muita malandragem. Nem a polícia está dando conta. Ultimamente, até a polícia está entrando aqui, mas não resolve não” (faxineira, 47, 5G). “Tem muita gente cangueta.14 Os homens (polícia) dão batida direto, mas não resolve não” (salgadeira, 43, 6G). “Tem gente de fora que está vindo pra cá e vem polícia direto. Tem gente que não deixa nem agente de
14
O termo cangueta foi utilizado por essa moradora, no sentido de alcagüete para identificar pessoas que denunciavam ações criminosas para a polícia. Ao mesmo tempo, homens significava policiais, nem sempre bem-vindos na região, pois não resolviam os problemas da marginalidade de maneira eficaz.
140
saúde passar. Denúncia não pode fazer. Precisa de policiamento constante; não é só vir, pegar quem está aqui e ir embora” (faxineira, 22, 6A). A
pesquisa
registrou
uma
diversidade
considerável
de
motivos
de
descontentamento. A falta de entrosamento entre os moradores dos conjuntos também passou a ser motivo que dificultava a identidade com o local de 18% dos outsiders de ambos os conjuntos, embora o relacionamento entre eles fosse considerado como positivo por 28% dos entrevistados, de acordo com a TAB. 19. Esse fato resultou, muitas vezes, da forte vinculação com o antigo lugar de origem: “Não gosto daqui. Gosto é de Venda Nova” – bairro localizado no setor noroeste da capital (aposentada, 53, 16A). De fato, as relações afetivas que os indivíduos mantêm no seu cotidiano com o lugar vão construindo a sua história de vida, e tornase difícil a sua desvinculação, até que novos motivos o atraiam para o novo meio. A diversidade entre as opiniões foi retratada também em relação à segurança, que foi avaliada por 3% dos moradores dos dois conjuntos como um dos fatores que comprometiam a qualidade de vida do bairro, ao passo que 12% afirmaram que os conjuntos são lugares seguros para se viver, como demonstram as tabelas 19 e 20. A sujeira e o lixo também foram indicados como motivo de incômodo para 15% dos habitantes do Goiânia e para 7% do Araguaia, principalmente no que se referia aos horários de coleta, que acontecia nas manhãs de terça, quinta e sábado: “A única coisa chata aqui é o lixo jogado na rua. Não precisava; bastava cada um colocar o seu nos dias certos da coleta” (desempregado, 24, 1G). “Tem muito lixo e muita sujeira. Eu faço a minha parte” (doméstica, 52, 21G). “O lixo é um problema. Cada morador tinha que se organizar” (corretora de imóveis e tratadora de animais, 36, 9A). Como exemplo, no Araguaia, foi instalada uma lixeira comunitária na esquina das ruas Amparo da Serra e Capim Branco. Ela foi destruída depois de pouco tempo de uso. Manifestações isoladas da comunidade reverteram o quadro, quando um novo morador a recuperou e incentivou a população a zelar pela manutenção do equipamento, que passou a ser utilizado adequadamente pela população. Atitudes isoladas dos moradores permitem a construção do hábito, que poderia ser incentivado pelos órgãos no processo de pós-ocupação.
141
Um fator agravante de situação semelhante referiu -se a um morador do conjunto Goiânia que apropriou todo o seu lote, invadiu a rua de pedestres adjacente a ele, anexando ao terreno o ferro-velho de sua propriedade. Tornou-se evidente que esse ferro-velho se apresentava como um lugar problemático no conjunto, pois esse espaço passou a ser considerado ameaçador para a saúde de todos: várias latas e recipientes ficavam expostos em céu aberto, ocasionando o acúmulo de água, que poderia abrigar larvas de insetos provocadores de várias doenças. Por sua vez, a ação do Poder Público se limitava à fiscalização: agentes de saúde iam até o local constantemente, tentavam aplicar multas e ameaçavam despejo, mas não houve solução através da intervenção dos órgãos c ompetentes. Conforme depoimento de vizinhos, dois dos três filhos do proprietário foram hospitalizados em condições precárias de saúde, como conseqüência da sujeira do local. Daí ter surgido o comentário: “O lixo do ferro-velho deve ter rato de todo tamanho. Só acaba se ele (o proprietário) mudar daqui” (doméstica, 34, 37G). O proprietário, por sua vez, alegava a impossibilidade de se mudar, já que era a maneira de ele trabalhar e não levava em conta os direitos do restante da comunidade: “Eles discrimina a gente porque tem ferro -velho. Na cidade pequena, o prefeito até elogia o nosso trabalho” (dono do ferro-velho, 64, 32G). O enfoque particular passava a dominar e a se impor sobre o coletivo e, por mais que a comunidade estivesse contrária e reclamasse verbalmente, ninguém se manifestava oficialmente contra essa atitude, pois esse morador atendia aos vizinhos e transportava os necessitados em casos de urgência. A ação crítica detectada pela pesquisa demonstra que, apesar de tudo, permaneciam, no interior do conjunto, os interesses personalizados em face dos interesses coletivos. Convém lembrar aqui o pensamento de Weber (1999, p. 175), ao estudar as classes sociais na ordem econômica e no exercício do poder. E esse poder sendo, segundo o autor, “a probabilidade de uma pessoa impor, numa ação social, a vontade própria, mesmo contra a oposição de outros participantes desta”. Interessante é que não se busca o poder para fins de enriquecimento, mas sim, no momento em que ele está condicionado pela honra social (pelo prestígio) que traz consigo.
142
FIGURA 34 Vista do ferro -velho do conjunto Goiânia Fonte: Acervo particular da autora.
FIGURA 35 Vista de espaço invadido no conjunto Goiânia Fonte: Acervo particular da autora.
O fato de o espaço público estar sendo apropriado em caráter privado limitou ainda mais o uso das áreas livres pelos moradores. Observou-se que vários desses espaços destinados a atividades comuns foram apropriados pelos vizinhos de lotes adjacentes a eles, que os fizeram parte integrante da sua propriedade. Quando os
143
demais eram abordados a respeito do fato, mostravam indignação, mas não tomavam qualquer atitude formal, junto com a sua comunidade. Isso gerava, obviamente, mal-estar entre os habitantes dos conjuntos, comprometendo a harmonia desejada na sua convivência. Todavia, reações contra esse tipo de comportamento sempre aconteceram, com poucas denúncias efetivas junto à Prefeitura Municipal, tanto por parte de moradores dos conjuntos como por proprietários de residências nas proximidades, razão pela qual os problemas continuaram a existir. Aliás, pôde-se observar que não havia uma clara liderança dentre os moradores dos conjuntos que permitisse criar alguma representatividade na tomada de decisões por algum grupo de moradores. As reclamações geralmente eram isoladas, sem participação significativa dos habitantes. A solução para tais problemas não chegava a um resultado satisfatório, pois os moradores pareciam incrédulos quanto a qualquer ação do Poder Público, apesar de terem tentado sanar o problema na administração regional da Prefeitura. O seguinte depoimento ilustra bem a situação: “Não foi por falta de chamar atenção ou fazer reclamação nas Regionais que a gente deixou de tentar, mas não conseguimos resposta” (pedreiro desempregado, 53, 39G). Destaque-se que, nesse sentido, a URBEL não realizou qualquer intervenção no processo de pós -ocupação dos moradores, a partir do momento da sua mudança. E a ação na política habitacional deveria considerar, com muita atenção, a instalação dos desabrigados e a sua adaptação aos moldes da nova situação, avaliando até que ponto sua atuação levava a um resultado eficaz. Os moradores assim fizeram a sua avaliação: “A Prefeitura e a URBEL abandonaram o conjunto. Eu fiz o muro com o meu vizinho. A URBEL era coordenadora só no acampamento” (dono do ferrovelho, 64, 32G). Evidencia -se nesse caso, mais uma vez, a ausência de uma liderança que demandasse do governo a implantar melhoramentos e correções dos problemas . Mesmo considerando que conquistas dessa natureza devem ser conseguidas, principalmente por parte da população, não se pode deixar de julgar inaceitável a ausência da URBEL com a assistência técnico-jurídica que a lei impõe. Pode-se observar que, mesmo com novas diretrizes políticas que procuram atender às especificidades locais, os primeiros projetos dos conjuntos habitacionais da
144
URBEL, construídos no processo de municipalização, ainda se mantinham distantes do que se poderia considerar ideal ou até mesmo adequado para essas famílias de baixa renda. Para tanto, seria importante considerar o atendimento específico para essa camada da população, em que ela também pudesse participar da elaboração do projeto, de modo a atender à maioria das suas necessidades. A não-identificação dos estabelecidos com os conjuntos passou a ser um dos fatores que mais demonstraram o processo de indisposição entre eles, ao retratar valores de classes distintas, mas que necessitavam de estabelecer alguma aproximação e convivência entre os dois grupos. A história do lugar confirmou que a produção do espaço vai além de construí-lo diretamente através de desenhos urbanos e de dar a eles novas formas de uso. Essa ação deve, também, determinar ordenações racionais do território, que implicam no melhor desenvolvimento da política urbana, ao considerar os mecanismos articulados na organização do território, mas que também poderão abrigar as práticas sociais exercidas por pessoas com valores que dão identidade a esse lugar. Obedecida a obrigação legal, os conjuntos poderão oferecer as funções sociais urbanas que, pelo visto, ainda não ocorreram nesse setor. Seria necessário um acompanhamento constante, por parte dos técnicos da URBEL, no período de pós ocupação desses conjuntos, para que se pudesse construir uma convivência razoável.
145
5
A VIDA COTIDIANA E AS PRÁTICAS ESPACIAIS
Esse capítulo analisa a apropriação do espaço pelos estabelecidos e pelos outsiders na sua vida cotidiana. A percepção da relação que eles passaram a manter com o lugar se definiu através das citações dos pontos de referência locais e dos deslocamentos no seu dia-a-dia, em que eles retrataram o seu espaço vivido. Esses deslocamentos proporcionaram oportunidades de encontros entre eles, que certamente influenciaram nas suas relações sociais, principalmente após a construção dos conjuntos. O lugar continua sendo considerado de grande importância no estudo do cotidiano e, ao ser analisado no presente trabalho, vai retratar o significado das relações que as comunidades dos conjuntos e dos bairros passaram a estabelecer com ele, no seu dia-a-dia. O espaço físico ainda mantém singulares referências para os moradores, que irão valorizá-lo, de acordo com suas vivências. Para entender como acontece a apropriação do espaço, deve-se considerar que as práticas espaciais estão diretamente ligadas a modelos que oferecem sentidos a essas relações com o cotidiano. O espaço geométrico dos urbanistas e arquitetos, por exemplo, se apresenta com sentido próprio, construído pelos gramáticos e pelos lingüistas, com nível normal e normativo, que permite avaliar os desvios e variações do figurado (LÉFÈBVRE, 1991, p. 180). Mas esse sentido deve expressar a identidade manifesta dos significados de determinado lugar, tanto para o indivíduo isoladamente c omo para a coletividade. As relações entre as representações e as práticas na cidade demonstram suas significações através dos modos de morar, dos modelos culturais adotados, do comportamento dos grupos e da maneira como se transmitem ou se adquirem os hábitos. As representações se prestam para justificar socialmente essas práticas, para valorizar os lugares na combinação dos espaços com suas referências e para analisar o que diz respeito à memória da cidade (RONCAYOLO, 1997, p. 177). Para Léfèbvre (1991, p. 180), a vida cotidiana oculta o misterioso e o admirável que escapam aos sistemas elaborados. Para ele, é no cotidiano que as pessoas ganham
146
ou deixam de ganhar sua vida e é onde se mostram os conflitos entre o racional e o irracional na sociedade. O cotidiano determina o lugar em que surgem os problemas concretos da produção, ou seja, como é produzida a existência social dos seres humanos, com as transições da escassez para a abundância e da apreciação para a depreciação. Esse lugar, que aparentemente é de equilíbrio, é também o lugar em que se manifestam desequilíbrios ameaçadores. Para Certeau (1998, p. 202), o lugar é o espaço praticado; conceito apresentado por Santos, definido como um conjunto de objetos e de relações em torno desses objetos. Nesse s entido, é na prática social que o processo espacial se realiza, pois ali aparecem as oportunidades de encontro, com trocas de experiências do estar junto em um mesmo lugar. As relações dos indivíduos com o espaço e o lugar permitem tomar conhecimento de um mundo de experiências que retratam os valores e símbolos de cada sociedade. Para Tuan (1983), o que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar, à medida que o conhecemos mais profundamente e o dotamos de valor. Esse lugar dotado de valor adquire significado na cotidianidade, embora seja necessário quebrar os preconceitos, pois, segundo Heller ([19--]), quem não se liberta de seus preconceitos artísticos, científicos e políticos, acaba fracassando na sua convivência com o próximo, com o vizinho. Também Certeau (1998, p. 41-202) avalia que espaço e lugar são diferenciados através da sua apropriação no cotidiano. Esse autor afirma que a apreensão do espaço, por parte da população, se dá através das maneiras de fazer, que constituem as práticas pelas quais os usuários reapropriam o espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural. Os espaços que estão se delineando no ambiente dos conjuntos apresentam características e conformações que, em geral, confirmam o autor. Essa configuração pode ser verificada com a análise dos dados da pesquisa. Nesse sentido, o lugar é reinventado pelo usuário, que retrata ali a identidade construída continuamente com esse espaço. O projeto arquitetônico desses conjuntos tratou com rigor a definição e o tratamento do espaço; porém descuidou-se da consideração das variedades individuais que compunham as comunidades. Mais uma vez, verifica-se a necessidade de maiores cuidados quanto à relação projeto-indivíduo-sociedade.
147
Ao mesmo tempo, esse autor identifica as prá ticas sociais na vida cotidiana e afirma que a sociedade se forma a partir de certas práticas exorbitadas, organizadoras de instituições normativas e, além disso, de outras práticas, sem-número, consideradas como se fossem menores . Essas, embora não sejam organizadoras de um discurso, conservam as primícias ou os restos de hipóteses diferentes para essa sociedade ou para outras, organizam, ao mesmo tempo, espaços e linguagens relacionados ao poder (CERTEAU, 1998, p. 115). Para dar sentido às práticas cotidianas ligadas ao poder, o autor lança mão dos conceitos de tática e de estratégia. No que diz respeito às táticas, ele assegura que elas apontam para uma hábil utilização das ocasiões que apresentam e dos jogos praticados na guerra cotidiana, pois elas são [...] procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo – às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, à rapidez dos movimentos que mudam a organização do espaço e às relações entre momentos sucessivos de um golpe (CERTEAU, 1998, p. 99-102).
Por outro lado, as estratégias demandam [...] um lugar de poder, em que se elaboram lugares capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem [...] A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as reações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (CERTEAU, 1998, p. 99102).
Para Léfèbvre (1991, p. 27-30), é no cotidiano que se ganha ou se deixa de ganhar a vida, num duplo sentido: não sobreviver ou sobreviver, apenas sobreviver ou viver plenamente. E acrescenta: “é no cotidiano que se tem prazer ou se sofre. Aqui e agora”. O cotidiano apresenta vários significados, dentre eles, o econômico, o psicológico, o sociológico, objetos e domínios particulares atingíveis por métodos e diligências específicas. É o alimento, a veste, os móveis, a casa, a habitação, a vizinhança, os arredores. Para conceber o cotidiano, deve -se viver nele e, em seguida, rejeitá-lo e tomar uma distância crítica, pois esse é o melhor caminho para auxiliar na compreensão dos fatos. Nesse sentido, a análise do cotidiano poderá revelar
148
analogias, ao passo que o seu conhecimento compreenderá uma crítica ideológica e uma autocrítica perpétua (LÉFÈBVRE, 1991, p. 28-34-82). No presente trabalho, na busca da identificação de pontos de referência, optou-se por solicitar aos entrevistados a enumeração daqueles que eles mais apreciavam, a ponto de desejar registrá-los em fotos. Logicamente, essa avaliação retrata os vínculos pessoais com o lugar, vividos na sua cotidianidade. O que se pretende com a pesquisa é verificar como o espaço é valorizado pelas comunidades dos estabelecidos e dos outsiders e identificar as semelhanças e diferenças no seu olhar sobre cada lugar. As práticas espaciais, por outro lado, serão determinadas pelo exame dos deslocamentos das comunidades nesse espaço físico e pela definição dos pontos de encontro mais freqüentes dessas populações no seu cotidiano. O mapeamento vai permitir a identificação desses lugares e mostrar como são apropriados nas respectivas escalas, quando se trata dos conjuntos e dos bairros de seus respectivos entornos, visto que a valorização da moradia pode demonstrar o seu valor no nível mais particular.
5.1
O cotidiano nas comunidades
Para avaliar o cotidiano vivido pelas comunidades dos estabelecidos e dos outsiders, recorremos a Milton Santos (1997b, p. 252), que identifica cada lugar com o mundo, embora lhe seja atribuída singularidade. Esse autor indica, ainda, a neces sidade de interpretar o significado desses lugares, que se dará através da avaliação do cotidiano. Além do mais, o lugar é o cotidiano compartilhado por pessoas e instituições, que constituem a base da vida em comum, na cooperação e no conflito. Assim, o lugar é [...] o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade (SANTOS, 1997b, p. 258).
À medida que o homem vivencia o lugar, ele participa da vida cotidiana e revela aspectos da sua individualidade e da sua personalidade. Isso nos faz lembrar Heller
149
([19--], p. 17) quando ela afirma que a vida cotidiana é a vida do homem inteiro. Segundo essa pesquisadora, as partes orgânicas da vida cotidiana constam da organização do trabalho e da vida privada, dos lazeres e do descanso, da atividade social sistematizada, do intercâmbio e da purificação. Na verdade, esse espaço repleto de significado reflete o imaginário social que, segundo Léfèbvre (1991, p. 95), é distinto da imaginação individual e também dos grandes simbolismos. Ele se expressa muito bem na imprensa feminina, onde está presente a retórica, na qual os objetos são dotados de uma segunda existência, e os códigos que ritualizam e tornam práticas as mensagens, programando o cotidiano. O cotidiano dos estabelecidos e dos outsiders foi retratado na pesquisa através das referências dos bairros adjacentes indicadas como significativas e do deslocamento dos moradores e seus respectivos percursos nas suas atividades do dia-a-dia. A pesquisa apresentou identidade nos mais diferentes graus, com variedade de circunstâncias de lugares descritos pelos autores citados. Assim, no que diz respeito à apropriação dos conjuntos e dos bairros pelos moradores, pode-se observar que esses espaços passaram a ser vivenciados, tendo em vista experiências anteriores da população, retratando o seu modo de vida, seus hábitos e a identidade que eles mantêm com o lugar. Os percursos para o trabalho, as compras, o lazer são providos de significados e contam a história de cada personagem com o local. A partir do momento que as pessoas se apropriam desses espaços, no seu dia-a-dia, manifestam-se os hábitos, que passam a ter significado simbólico construído pela cotidianidade no lugar; que é o espaço de ser (SILVA, 1988, p. 127).
5.1.1
Os pontos de referência
Léfèbvre (1969, p. 63) avalia que a cidade tem uma dimensão simbólica, em que os monumentos, como também os vazios, praças e avenidas representam o cosmos, o mundo, a sociedade, ou simplesmente, o Estado. A cidade tem uma dimensão paradigmática, que mostra as oposições e que se apresenta como um subtema privilegiado, porque é capaz de refletir, de expor e de se oferecer como um mundo, como uma totalidade única, na ilusão do imediato e do vivido.
150
Para a avaliação dos espaços significativos no meio urbano, retomando a referência de Lynch (1990, p. 59), foram trabalhados os cinco elementos de identificação dos indivíduos na cidade: os cruzamentos, as vias, os limites, os bairros e os elementos marcantes, por nós designados como pontos de referência. Na pesquisa, tomamos como fator de análise os pontos de referência que pudessem ser identificados pelos moradores, pois, conforme afirma esse autor, esses pontos marcantes determinam um objeto físico que parece adquirir um significado crescente à medida que os deslocamentos vão se tornando cada vez mais familiares. O cineasta Wim Wenders (1994, p. 185) comenta, observando os aborígines, que esses povos acreditavam na sua história, que tinham convicção de que pertenciam à sua terra e que se sentiam responsáveis por ela. Essa relação se dava também com as pessoas nas cidades, que tinham a sensação de fazer parte do lugar, de estarem seguras ali. Além do mais, uma rua ou a fachada de uma casa, uma montanha ou uma ponte ou um rio ou o que quer que seja, são mais que um último plano, pois eles também possuem uma história, uma personalidade, uma identidade que deve ser levada a sério. Eles influenciam os caracteres humanos que vivem nesse último plano, criam uma atmosfera, uma noção de tempo e uma certa emoção. Os lugares com os quais os entrevistados apresentaram maior identificação se estendiam também aos bairros de entorno e diziam respeito ao seu cotidiano, pois eles viviam ali relações espaciais que se retratavam nos deslocamentos e nos encontros com a vizinhança. Conforme salienta Lynch (1990, p. 59), esses pontos de referê ncia podem se situar em uma distância tal que podem desempenhar a função constante de símbolo de direção, sendo que o seu uso implica na distinção e na evidência em relação a uma quantidade enorme de outros elementos. Nesse sentido, a cidade torna-se habitável, a partir do momento em que ela dá lugar a um vazio; ela permite que se faça o jogo num sistema de lugares definidos e autoriza a produção de um espaço de jogo num tabuleiro analítico e classificador de identidades (CERTEAU, 1998, p. 186). As vias, os cruzamentos, os nós e os limites dos conjuntos foram percebidos rapidamente pela população, ao passo que a identificação dos limites dos bairros tornou-se mais difícil, pela sua dimensão e pela falta de conhecimento desse limite por parte da população pesquisada. Os pontos de referência foram bem demarcados
151
pelos entrevistados, quando questionados de onde eles tirariam uma foto do bairro que pudesse expressar um lugar significativo para eles. Esses lugares eram apresentados como uma relação topofílica, por grande parte dos entrevistados, conceituada por Lynch (1990, p. 5-107) como o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou o ambiente físico, ou todos os laços afetivos dos seres humanos com o ambiente material.
5.1.1.1
Os pontos de referência para os estabelecidos
Os elementos marcantes foram avaliados através das suas características estruturais e funcionais, considerando que a orientação dos entrevistados nos bairros Alvorada e Araguaia estava ligada à proximidade e à experiência vivida nesses locais. Ao mesmo tempo, a identidade da população com o lugar, apresentada através desses pontos de referência, foi comum para a maioria dos habitantes questionados. As manifestações dos estabelecidos retrataram a sua identificação com o local através do uso territorial no cotidiano, e os pontos de referência eram ou lugares onde as pessoas se encontravam, ou então, aqueles aos quais foram atribuídos valores singulares, em que se estabeleceu com eles uma relação topofílica: “Eu ia fotografar a matinha, que é essa área antiga da Fayal. É uma área verde muito bonita e dá pra ver daqui de casa” (costureira, 59, 49G). “Valia a pena registrar as casas novas do bairro; elas são muito bonitas, parecem chalés” (cozinheira, 53, 47G). Essas relações eram uma tradução do afeto pelo lugar, referida por Lynch, no bairro Alvorada. A participação nas atividades religiosas contribuiu para que 21% do grupo pesquisado pudessem registrar a igreja como um importante ponto de referência do Araguaia, como indica a TAB. 21: “Eu ia tirar a foto da igreja Santa Mônica; eu adoro a igreja e vou lá sempre!” (dona de casa, 62, 35A). “Eu tiraria uma foto da igreja Santa Mônica. É um pedaço do meu coração” (dona de casa, 70, 43A). De fato, a prática religiosa permite a criação de hábitos que consolidam a aproximação das pessoas.
152
FIGURA 36 Vista da Igreja Santa Mônica Fonte: Acervo particular da autora.
Conforme a TAB. 21, 26% dos entrevistados no Alvorada e 37% no Araguaia gostariam de tirar uma foto aérea dos bairros para expressá-los como ponto de referência.
As
respostas
direcionavam
para
que
eles
fossem
percebidos
integralmente, representando a evolução do comércio e da vizinhança: “Eu tiraria uma foto do bairro para indicar a valorização do lugar onde a gente mora. Isso vem com a perspectiva de que uma coisa boa aconteceu e que o bairro vai se transformando” (almoxarife, 39, 44G). “Eu tirava das ruas de cima, porque tem umas casas bonitas” (artesã, 29, 51G). “Eu acho que a avenida seria um bom lugar pra fotografar, porque ela tem de tudo, não é mesmo?” (aposentado, 61, 31A). O progresso era visto pelos entrevistados como indício favorável à evolução dos bairros, chegando até a demonstrar indícios de especulação imobiliária. Em contrapartida, surgiram opiniões de estabelecidos que registraram sua indignação e indicaram essa mesma foto aérea para mostrar que os bairros adquiriram uma condição pior, após a construção dos conjuntos. Aliás, o conjunto Goiânia foi considerado, para 20% dos entrevistados no Alvorada, o ponto de referência local, sob a justificativa de que ele se tornava ameaçador para a região, como indica a TAB. 21. As características desse assentamento eram relacionadas à sujeira, à droga, à insegurança e à feiúra. A diferença entre os dois grupos se
153
evidenciava e passou a ser expressa com determinação, a partir do momento em que se ressaltavam os aspectos negativos dos conjuntos: “Eu tiraria uma foto aérea do bairro, pois seria um apanhado perfeito da comunidade e também registraria as favelas que temos aqui” (aposentado, 58, 54G). “Claro que eu tiraria a foto do conjunto! A gente ficou cercada. De um lado, a favela São Jorge; do outro, o conjunto, com as casinhas com infra-estrutura péssima. Agora não tem mais jeito. Conseguiram desvalorizar o bairro e o lugar que a gente mora” (dona de casa, 37, 45G). A maioria dos ressentidos se encontrava nas áreas em que a URBEL teve atuação direta, reforçando a necessidade de retomada da solução inacabada. TABELA 21 Pontos de referência nos bairros segundo seus m oradores Alvorada
Referência
Araguaia
absoluto
%
absoluto
%
O bairro
4
26
5
37
Mata próxima
3
20
-
-
Casas da vizinhança
3
20
1
7
O conjunto
3
20
1
7
Praça rotor
1
7
-
-
Igreja
-
-
3
21
Praça da Vila do Minério
-
-
1
7
Cristo Redentor
-
-
1
7
Própria casa
-
-
1
7
Subtotal
14
93
13
93
Sem referência
1
7
1
7
Total de incidências
15
100
14
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Ao mesmo tempo, observa-se que somente 7% dos habitantes do bairro Araguaia admitiram que o conjunto Araguaia poderia ser o seu ponto negativo de referência no bairro. Tal comportamento se justificou pela presença, no local, de equipamentos significativos e pelo fato de o conjunto ser percebido de modo menos agressivo por essa população. Houve indicação de que não existia qualquer lugar que pudesse ser significativo nos bairros, para 7% dos entrevistados nos dois bairros, segundo a TAB. 21: “Não posso tirar foto de nenhum lugar, porque não gosto de nada daqui” (aposentado, 69, 52G).
154
“Por aqui não tem nem uma praça, nem nada que atraia a gente” (vendedora, 47, 36A). A ausência de equipamentos na região dificultou a possibilidade de vinculação afetiva dos moradores com o lugar.
5.1.1.2
Os pontos de referência para os outsiders
No que diz respeito aos outsiders, quando eles foram questionados sobre registros fotográficos que mereceriam suas preferências, as respostas obtidas indicaram a escala de valores atribuída aos pontos de referência. Para os habitantes dos conjuntos Goiânia e Araguaia, a história do lugar se confundia com o cotidiano deles. Assim, o cotidiano passou a representar também o uso territorial, que indicava a sua identificação com os respectivos bairros, e as relações sociais ali estabelecidas: “Se eu fosse tirar uma foto do bairro, tirava da Ig reja Universal, porque é um lugar que eu vou sempre, me sinto bem e é onde meus amigos estão” (estudante, 18, 18G). “Eu fotografava a praça da Febem, pois eu conheço lá tem muitos anos” (catadora, 63, 7A). “Eu tirava uma fotografia do Luiz de Bessa, porque é lá que eu estudo” (servente de pedreiro, 16, 25G). Uma observação que poderia justificar as escolhas dos pontos de referência nos bairros e seus arredores, pelo universo pesquisado entre os outsiders, é que não se encontravam nas imediações lugares muito significativos no meio urbano que pudessem ser considerados como pontos expressivos, tais como monumentos ou grandes áreas livres. Como resultado, os lugares mais representativos para os entrevistados do conjunto Goiânia se restringiram ao próprio conjunto e às moradias. O conjunto Goiânia era, ainda, considerado por 23% dos seus habitantes, segundo a TAB. 22, como expressivo ponto de referência, sob o argumento de que a identidade com o lugar estava ali bem representada, pois o mesmo era bonito, atraente e bem estruturado fisicamente: “Eu tirava uma foto do conjunto. Ali vive todo mundo junto” (dona de casa, 42, 30G). “Eu tirava uma foto da pracinha de cima do conjunto, porque é o melhor lugar pra ver ele todo” (dona de casa, 52, 20G). “Eu ficava no bairro em frente pra tirar a foto, porque de lá pra cá, dá pra ter uma vista bonita do conjunto” (dona de casa, 52, 35G).
155
TABELA 22 Pontos de referência nos bairros segundo os moradores dos conjuntos Referência
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
absoluto
%
absoluto
%
O conjunto
9
23
2
7
A própria casa
8
21
1
3
Praça rotor
7
18
-
-
Casas da vizinhança
7
18
-
-
Escola/Igreja
3
8
2
7
Mata próxima
2
5
-
-
Comércio
1
2
1
3
Praça da Febem
-
-
7
25
Praça do Minério
-
-
6
21
Cristo Redentor
-
-
5
17
Subtotal
37
95
24
83
Sem referência
2
5
3
10
Não sabe
-
-
2
7
Subtotal
2
5
5
17
Total de incidências
39
100
29
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Os espaços abertos, configurados no projeto original do conjunto como praças internas que acolhiam as crianças nas atividades de lazer, não foram citados pelos entrevistados como ponto marcante do bairro. Os espaços de uso coletivo do conjunto Goiânia também faziam parte dessa manifestação sobre os pontos de referência. A percepção dos entrevistados indicava as ruas internas como extensão da moradia, o que permitia aproximar as relações com os vizinhos: “Eu tirava a foto do bequinho – rua interna secundária, pois fica mais adequada com o meu jeito de ser” (faxineira, 37, 19G). “A foto tinha que ser da ruazinha – rua interna. Acho ela bonitinha e sossegadinha. E além de tudo, cada um varre a sua porta” (doméstica, 52, 21G). Já entre os habitantes do Araguaia, apenas 7% dos entrevistados que ali residiam indicaram o conjunto como um marco importante: os demais elementos marcantes externos se apresentavam como mais significativos, para a quase totalidade dessa população.
156
FIGURA 37 Vista da rua interna do conjunto Goiânia, em 1998 (esquerda) e em 2003 (direita) Fonte: N ASCIMENTO, 1998, ilustração da esquerda; foto do arquivo particular da autora ilustração à direita.
A casa ainda continuava sendo considerada por 21% dos outsiders entrevistados no conjunto Goiânia como o lugar mais significativo do bairro Alvorada, dada a importância da moradia na vida deles. O motivo maior ainda era justificado como a melhoria da sua qualidade de vida, depois da mudança para o local: “Eu tirava o retrato da minha casa, pra mostrá que a minha vida melhorou” (dona de casa, 39, 4G). “A foto tinha que ser da minha casa; a casa da gente é a casa da gente, uai!” (dona de casa, 43, 33G). Por outro lado, cabe observar que apenas 3% das respostas dos outsiders do conjunto Araguaia indicaram que as suas moradias se sobressaíam como ponto marcante no bairro Araguaia.
FIGURA 38 Vista da pracinha do rotor Fonte: Acervo particular da autora.
157
Uma única área de uso coletivo foi apresentada como praça, por 18% dos entrevistados do conjunto Goiânia, conforme TAB. 22, representando uma centralidade que proporcionava oportunidades de concentração e encontro com os vizinhos. Esse lugar, situado nos arredores do conjunto, sequer tinha nome, visto que se tratava de área livre, conseqüente de aproveitamento da quadra, mas sem fim institucional. Ela se compunha de um pequeno jardim e, embora não possuísse equipamentos urbanos adequados, era o lugar mais próximo, onde as crianças iam brincar com freqüência ao qual, em segurança, podiam estabelecer alguma relação de vizinhança: “Eu tirava a foto da pracinha perto do final do ônibus. Lá tem mais verde e muita flor” (faxineira, 37, 3G). “Eu ia tirá da pracinha perto do Araponga – supermercado. Lá é mais arejado e mais aberto” (faxineira, 32, 14G). “Eu tirava a foto da pracinha. Tem jardim perto dela e ninguém pisa na grama” (dona de casa, 60, 17G). Note-se que a praça, ao ser citada como referência por esses moradores, confirma a opinião de Egler, segundo a qual [...] a praça é, historicamente, o lugar reservado ao encontro, o grande espaço dedicado ao estar na cidade. A praça da cidade é a sala do apartamento, mudando-se as escalas de observação e análise. São tradicionais as praças que reúnem comunidades, nas quais são procuradas referências para a ação social e se en contram as tribos urbanas (EGLER, 2000, p. 210).
Por outro lado, os lugares que resultaram na indicação para fotos representativas nas redondezas do conjunto Araguaia tratavam de equipamentos urbanos que se tornaram facilmente visíveis pela população e se definiram fisicamente como elementos marcantes na região. Os mais indicados como referência pelos habitantes do conjunto Araguaia foram, para 25% dos entrevistados, como indica a TAB. 22, a praça Modestino Barbosa, denominada pela população como praça da Febem e por nós adotada, a praça José A. Neto, chamada praça do Minério para 21% deles, e o Cristo Redentor para 17%, também localizado em uma praça no topo de um morro. Para os entrevistados no conjunto Araguaia, esses marcos significativos no bairro e nos setores adjacentes, embora se localizassem fora do limite oficial do bairro, foram identificados como pontos de referência, porque ali se concentravam comércio, serviços e lazer de caráter regional e também se caracterizavam como ponto de encontro de grande parte da população, no seu cotidiano: “Eu tirava o retrato da
158
Praça da Febem, porque é onde eu consulto” (aposentada, 51, 11A). “Pra mim, a praça do Minério é linda! Ela é cheia de flor” (office-boy, 16, 24A). “Eu ia fotografar a praça da Febem, porque lá é sossegado. Todo domingo, vai todo mundo pra lá” (dona de casa, 24, 3A). “Pra mim, a praça do Minério é a praça de melhor visual da região” (gari, 38, 26A).
FIGURA 39 Vista da praça da Febem Fonte: Acervo particular da autora.
É interessante observar que esses pontos de referência se constituíam não só de edificações, mas também de vias ou espaços expressivos. Cabe lembrar Lynch (1990, p. 91): [...]o domínio espacial pode causar elementos marcantes de duas formas: tornando o elemento visível de muitos outros pontos ou criando um contraste local com os elementos circundantes, isto é, sendo uma variante em altura ou constituição.
159
FIGURA 40 Vista da praça do Minério Fonte: Acervo particular da autora.
FIGURA 41 Vista do Cristo Redentor, de onde se vislumbra toda a região Fonte: Arquivo particular da autora.
Assim, o Cristo Redentor, monumento distante do bairro Araguaia, mas visível na região, foi considerado um marco significativo para 17% dos outsiders entrevistados no Araguaia, como indica a TAB. 22, pelo fato de ser freqüentado, nos fins de semana, por jovens que ali desfrutavam momentos de lazer. Além disso, esse
160
monumento apresentava grande visibilidade, já que foi implantado isoladamente no alto do morro: “Eu ia tirá uma foto do Cristo Redentor, porque ele é muito bonito e a gente avista ele de qualquer lugar” (dona de casa, 31, 21A). “Eu tirava uma foto do Cristo, porque ele é um ponto turístico do bairro” (pedreiro, 28, 22A). A idéia de evolução vinculada ao progresso mostrou-se importante em algumas respostas, pois indicava valorização do local e melhoria da qualidade de vida, não só em termos de bens materiais como também nos de ordem financeira: “Eu tirava a foto dessa avenida – Josefino Gonçalves da Silva – pra mostrar mais o nosso conjunto e como ele valorizou com o comércio e as residência nova que tá sendo construída” (desempregada, 24, 1G). Pode-se perceber, ainda, que a intenção de melhoria da condição de vida retrata os valores da maneira mais imediata para alguns moradores. Exemplo de um ponto de referência citado por uma moradora do conjunto Goiânia ilustra bem o fato: “Eu tirava a foto do conjunto, pois ele é um lugar que poderia ser mais valorizado” (dona de casa, 35, 10G). A entrevistada argumentou que essa valorização deveria acontecer nas ações de ordem física, para que a sua configuração não se descaracterizasse tanto e nas de ordem social, a fim de que o combate à droga se tornasse urgente. Fato interessante ocorreu no conjunto Goiânia, onde moradores indicavam as casas do entorno como um ponto valorizado da região e manifestaram o desejo de fotografá-las. Pode-se perceber que para os outsiders , embora estabelecessem, mesmo que visualmente, relação com o seu cotidiano, essas residências se tornavam importantes não só pela falta de pontos de referência significativos no local, mas também pela busca de outros valores, mesmo que fossem inatingíveis para essa camada da população: “Se eu fosse tirar uma foto, tirava do panorama em frente. Acho as casa bonita demais!” (faxineira, 47, 5G). “Eu tirava a fotografia da vista em frente. Aquelas paisagem – as casas do bairro – são muito bonita” (desempregada, 36, 24G). Ao mesmo tempo, outro morador desse conjunto percebia a diferença entre os dois grupos, tomando como referência os hábitos e o modo de vida da outra comunidade: “Eu tirava o retrato do pedaço da vista oposta do bairro. As casa é bonita, as
161
pessoas decente e não há perturbação, porque você não vê um na casa do outro” (pizzaiolo, 27, 2G).
FIGURA 42 Vista das casas em frente ao conjunto Goiânia Fonte: Acervo particular da autora.
O conceito de valor adotado por Heller ([19--], p . 78) remete à compreensão do fato de que valor é o conjunto de todas as relações, produtos, ações, idéias sociais que promovem o desenvolvimento da essência humana. Aliás, no momento em que o homem passa a viver numa comunidade, os valores dessa comunidade se expressam, demonstrando possibilidades de objetivaç ão que integram sua socialidade, que configuram universalmente sua consciência e que interferem na sua liberdade social. O valor é representado pelo modo de vida do indivíduo no cotidiano e, como observa Léfèbvre (1991, p. 38-39), “é na vida cotidiana que se situa o núcleo racional, o centro real da práxis”, pois é ali que se manifesta o modo de compreender a ação sobre as coisas e a ação sobre os seres humanos. Para esse autor, as antigas relações se reconstituem enquanto puderem viver o cotidiano. Dando continuidade a esse pensamento, cabe lembrar Certeau (1998, p. 190-191) quando ele diz que o memorável é aquilo que se pode sonhar a respeito do lugar e que a prática do espaço repete a experiência da infância. “É, no lugar, ser outro e passar ao outro”. Esse fato pode ser exemplificado no depoimento de uma moradora do conjunto Araguaia, que passou parte da infância em centro de recuperação: “Eu tirava um retrato da praça da Febem, porque ela me faz lembrar a minha infância: eu
162
era da Febem, que antigamente era um centro de menores infratores. Isso foi em 1969” (bordadeira, 43,1A). Observa -se que, a exemplo das respostas dos estabelecidos , sobre os aspectos negativos vislumbrados pelos moradores dos conjuntos, os outsiders também retrataram experiências mal s ucedidas no seu cotidiano, que resultaram em algum tipo de repulsa e comprometeram a identificação dos entrevistados com os respectivos bairros. Esses fatores se relacionavam com as favelas localizadas nas proximidades, que abrigavam elementos suspeitos de comprometer a ordem interna dos conjuntos e com a falta de equipamentos e infra-estrutura no local, que acarretava o aumento do deslocamento da população à procura de atendimento imediato. Ainda assim, os entrevistados expressavam simpatia pelos bairros Alvorada e Araguaia, apesar de suas respostas se limitarem a indicar experiências mal sucedidas que impediam a boa aceitação dos locais: “O bairro é muito bom. O problema é o pessoal da favela. Eles vêm lá de cima e entram no conjunto” (pizzaiolo, 27, 2G). “O bairro até que é bom. O posto de saúde é que é longe e tem um atendimento péssimo” (dona de casa, 47, 27G). Por outro lado, 5% dos entrevistados no Goiânia e 10% no Araguaia, como indica a TAB. 22, não quiseram registrar marcos nos respectivos bairros, pois não encontraram qualquer lugar nas imediações que fosse significativo ou que representasse expressivamente os respectivos setores. Além disso, registrou-se a deficiência de grandes equipamentos que permitissem o encontro das populações no seu cotidiano. A indiferença demonstrada por esses moradores que não responderam coincidia com a sua frágil condição cultural, fisicamente retratada pelos aspectos como vestimenta, higiene e cuidados com as suas casas.
5.1.2
As mudanças ocorridas nos bairros
O longo tempo de moradia dos estabelecidos nos bairros definiu a sua relação com o local, verificada quando eles passavam a contar a sua história de vida, mesclandoa com a do lugar. As intervenções e transformações ocorridas foram assimiladas pelos moradores, que apontavam aspectos positivos e negativos nelas.
163
Dentre os fatores positivos indicados pela população questionada sobressaiu, expressivamente, tanto para os estabelecidos entrevistados do Alvorada como do Araguaia, a infra-estrutura, que compreendia, respectivamente, 42% e 64% das respostas dos entrevistados nos dois bairros. Acrescente-se o desenvolvimento e a expansão das atividades ao longo das principais vias, com 38% e 29% da incidência das respostas, conforme a TAB. 23. Essa infra-estrutura se referia à ilum inação pública, à pavimentação das ruas e ao abastecimento de água e esgoto. A valorização se justificava pelos fatores favoráveis ao desenvolvimento não só do bairro, mas também da região: “Melhorou muito! Antigamente não tinha o viaduto do Barreiro; asfaltaram as ruas e botaram água encanada” (dona de casa, 70, 35A). “O comércio melhorou, com depósito de gás, padaria, loja de colchão, de roupas e depósito de bebidas ” (aposentado, 69, 52G). “Antigamente não tinha água, luz, asfalto. Hoje tem tudo” (dona de casa, 70, 43A). TABELA 23 Mudanças positivas ocorridas nos bairros segundo seus moradores Alvorada
Mudança
Araguaia
absoluto
%
absoluto
%
Infra-estrutura
8
42
9
64
Desenvolvimento
7
38
4
29
Segurança
1
5
1
7
Construção de casas boas
1
5
-
-
Escola
1
5
-
-
Quadra
1
5
-
-
Total de incidências
19
100
14
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Como mudanças positivas ocorridas nos bairros, os estabelecidos abordaram também a construção de novas casas, além de equipamentos urbanos essenciais, tais como escola: “A construção das casas melhores do lado de cima da avenida valorizou bastante o bairro” (desempregada, 55, 41G). “Tinha muito lote vago. O aumento do número de residências foi bem grande. Construíram escolas” (dona de casa, 37, 45G). A melhoria na segurança local foi outra alteração citada como positiva para os bairros por 5% dos estabelecidos no Alvorada e 7% no Araguaia, conforme a TAB.
164
23. Esse fator, contudo, é polêmico e até contraditório, visto que 20% das respostas dos entrevistados do Alvorada e 21% do Araguaia ainda consideram a insegurança como um dos maiores problemas desses lugares, conforme indica a TAB. 24. TABELA 24 Mudanças negativas ocorridas nos bairros segundo seus moradores Alvorada
Mudança
Araguaia
absoluto
%
absoluto
%
O conjunto
5
33
6
43
Insegurança
3
20
3
21
Infra-estrutura
3
20
3
21
Não tem
3
20
2
15
Não sabe
1
7
-
-
Total de incidências
15
100
14
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Por outro lado, as mudanças ocorridas nos bairros, e consideradas negativas, se vinculavam à construção dos conjuntos e aos conseqüentes resultados da sua implantação, para 33% dos entrevistados no Alvorada e 43% no Araguaia, segundo a TAB. 24. Esses lugares passaram a ser ameaçadores para os antigos moradores, indicando perigo iminente. As razões citadas pela população do bairro se referiam, prioritariamente, ao comprometimento de alguns moradores dos conjuntos com o tráfico de drogas , fato que levava à insegurança e à violência: “A violência aumentou muito. Antes, eu dormia até de porta aberta” (desempregada, 55, 41G). “O bairro piorou muito com esse conjunto. Você tem que ficar de olho. Não pode mostrar que tem medo” (dona de casa, 70, 43A). “O conjunto atrapalhou. Antes, todo mundo era preocupado em construir pracinha pras crianças. Deu uma mudada, como se fosse um balde de água gelada. As pessoas ficaram desanimadas depois do conjunto” (dona de casa, 37, 45G). “Aumentou muito o número das favelas. Não tem mais segurança. A gente não pode deixar mais o carro fora da garagem” (desempregada, 42, 42G). “Pra mim, o que piorou o nosso bairro foi esse danado aí” – no caso, o conjunto (aposentada, 52, 39A). Mesmo assim, 20% dos questionários respondidos no Alvorada e 15% no Araguaia, de acordo com a TAB. 24, revelaram que não existiam mudanças nos bairros que pudessem ser avaliadas como piores. Deve-se considerar que alguns desses
165
moradores apresentavam na sua identidade com os mesmos uma relação topofílica e outros passaram a habitar o local a partir de um período recente: “Nada mudou pra pior. Aqui só evoluiu” (aposentada, 62, 46G). “Ainda não percebi” (professora, 39, 50G). O GRAF. 5 correlaciona os valores positivos e negativos das mudanças dos bairros indicados por seus moradores, categorizados nas tabelas 23 e 24. Constatou-se, ali, a diferenciação entre as opiniões dos grupos daqueles que destacaram as mudanças positivas e negativas nos itens da segurança e da infra-estrutura no Alvorada e no Araguaia. GRÁFICO 5 Valores positivos e negativos das mudanças dos bairros indicados por seus moradores Valores negativos
Valores positivos
Não sabe Não tem Infra-estrutura Insegurança O conjunto Quadra Escola Construção de casas boas Segurança Desenvolvimento Infra-estrutura -60
-40 Alvorada
-20
0
20
40
60
80
Araguaia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa direta, 2003.
Em relação à segurança, o aumento de incidências de respostas do ponto de vista negativo se deveu às conseqüências da implantação dos conjuntos, e a maioria indicou que a insegurança piorou a qualidade de vida nos bairros, com a presença de delinqüentes ameaçando os estabelecidos . Quanto àqueles que os consideraram positivos, foi justificada a sua opinião, porque eles exerciam poucas atividades,
166
permanecendo grande parte do tempo em suas casas: “A segurança é um problema. A gente fica sem liberdade de sair de casa à noite. Fico muito preocupada” (aposentada, 70, 33A). “Eu tirava férias todo mês de outubro e viajava. A minha casa ficava fechada. Hoje, eu não vou mais” (aposentado, 52, 30A). “O bairro é tranqüilo, sem crime, sem assalto. Praticamente não tem violência” (aposentado, 61, 31A). Quanto à infra-estrutura, a maioria indicou que sua melhoria se deveu a medidas de saneamento que beneficiaram a população local, embora ainda houvesse quem não concordasse com essa opinião. Cabe lembrar que o Araguaia surgiu como um bairro operário, em cujo início apresentava condições pouco satisfatórias no que se refere a esse condicionante: “O bairro melhorou demais. Cresceu e está crescendo. Tem de tudo, desde ruas asfaltadas até iluminação e água encanada” (gerente de loja , 45, 32A). “A iluminação das ruas e das praças ainda é muito deficiente” (dona de casa, 43, 37A). Portanto, pode-se observar que as mudanças ocorridas nos bairros foram, em sua maioria,
apreciadas
como
positivas,
especialmente
no
que
se
refere
a
melhoramentos na infra -estrutura e no desenvolvimento do comércio e serviços ao longo das principais vias. É inegável que a construção dos conjuntos foi avaliada como negativa para os respectivos bairros dos seus entornos, acarretando problemas no modo de vida das famílias ali instaladas, principalmente no que diz respeito às atividades ilícitas ligadas ao tráfico de drogas.
5.2
As práticas espaciais nos conjuntos e nos bairros
Aprofundando as análises de Léfèbvre, Ana Fani Carlos afirma que, no cotidiano, [...] a apropriação do espaço se daria através das relações de vizinhança, do ir às compras, do encontro dos conhecidos, do jogo de bola, dos percursos reconhecidos de uma prática vivida e em pequenos atos corriqueiros, ou seja, através das formas das quais o homem se apropria e que vão ganhando o significado dado pelo uso (CARLOS, 1996, p. 20).
Realmente, ao tratar da apropriação do espaço, Certeau (1998, p. 176) lembra que os passos produzem inumeráveis singularidades, moldam espaços e tecem os lugares; a atividade dos passantes é transposta em pontos que compõem sobre o plano uma linha totalizante e reversível.
167
Dentro da relação de vizinhança, e ao expressar essa identificação, a casa adquire um valor superior ao simples abrigo: ela se apresenta também através de uma objetividade social (HELLER, [19--], p . 5), que se reflete nos intercâmbios subjetivos que ali se realizam, nas manifestações da solidariedade entre os membros da família e da comunidade e no lugar dos sonhos para os seus moradores. A análise das vivências dos moradores, sob esse enfoque, mostra o limiar entre a intimidade e o uso da esfera pública que, segundo Arendt (2001, p. 39-40), cuida da proteção da liberdade do cidadão no mundo. Na esfera familiar, os homens vivem juntos por serem compelidos por suas necessidades e carências, a sua sobrevivência, ao passo que, na esfera pública, a liberdade se situa como o principal caminho para se atingir a ação política na esfera do social. No que se refere ao estudo de caso, ao serem apropriados pela população através de hábitos cotidianos, esses lugares confirmam a relação de proximidade, que passa a ser uma das primeiras possibilidades do uso territorial. As vivências apresentadas pelos outsiders com o espaço se davam nas ruas internas dos conjuntos, nas casas dos vizinhos mais amigos e nas vias do entorno dos assentamentos, onde as crianças brincavam nos passeios ou nas pistas improvisadas como quadra esportiva. Os estabelecidos , por sua vez, costumavam se manter em casa, resguardados de qualquer contato mais íntimo com o outro grupo, cujo comportamento era estendido aos filhos. Nesse item do trabalho, a vida cotidiana dos outsiders dos conjuntos Goiânia e Araguaia e dos estabelecidos nos seus entornos, os bairros Alvorada e Araguaia, vai expressar a identificação que eles mantinham com o lugar, através dos encontros, estabelecendo, entre si, relações de vizinhança. Esses lugares que permitem encontros podem provocar interação ou confronto. Egler (2000, p. 215) bem lembra que os encontros estão associados ao acontecimento, que eles constituem uma forma de refazer o cotidiano, de reinventar e de reviver.
168
5.2.1
Os encontros nos conjuntos e nos bairros
O encontro, na vida cotidiana, se manifesta de diferentes maneiras, pressupondo a inclusão, no agir coletivo, de segmentos da população urbana. Incluir é fazer participar de um mesmo processo. Os locais onde as pessoas desenvolvem as diversas atividades cotidianas, tais como compras, atividades religiosas, caminho para a escola e lazer possibilitam novas relações de vizinhança. Como os lugares em que se efetuavam essas relações cotidianas eram próximos e se apresentavam como visivelmente familiares, para grande parte dos entrevistados, os pontos de encontro adquiriram maior importância para a compreensão do desenvolvimento das vivências no local.
5.2.1.1
Os encontros dos moradores nos conjuntos
As áreas livres dos conjuntos se tornaram pontos de encontro para grande parte dos seus moradores. Os outsiders se encontravam no interior delas, principalmente nas ruas internas e na frente de suas moradias, o que intensificava o relacionamento entre eles. Nas áreas abertas, dentre as quais se sobressaíam as pracinhas e as ruas internas, estabelecia -se a relação de privacidade, que permitia o encontro dos vizinhos. Isso pôde ser comprovado na TAB. 25, que indica o seu uso para 31% dos habitantes do conjunto Goiânia e 48% do Araguaia: “Não vou na casa de ninguém. Não gosto da casa dos outros. Só fico assentada no bequinho” – rua interna – (dona de casa, 30, 16G). “Fico na pracinha, com um olho aqui e o ouvido lá em casa” (dona de casa, 48, 26G). “Nós tromba é por aqui mesmo. Da última vez, fizemo uma reunião na pracinha pra cimentá a rua e corrigi umas trinca” (dono do ferro-velho, 64, 32G). “Lá dentro do conjunto, quando subo, encontro alguém no caminho e a gente conversa” (salgadeira, 43, 6G). Nas duas praças existentes no conjunto Goiânia aconteciam os encontros entre seus moradores; elas, porém, foram, aos poucos, sendo invadidas pelos que moravam ao seu lado, para ampliar os lotes. Assim, esses locais eram apropriados com pouca intensidade, no que se referia ao uso coletivo, passando as oportunidades de convivência no interior dos conjuntos para as ruas internas.
169
TABELA 25 Onde os moradores dos conjuntos se encontram Local
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Interior do conjunto
12
31
14
48
26
38
Rua
6
15
10
36
16
24
Casa de vizinhos
6
15
-
-
6
9
Igreja
5
13
-
-
5
7
Porta da escola
2
5
1
3
3
4
Posto de saúde
-
-
1
3
1
1
Não encontra
8
21
3
10
11
17
Total de incidências
39
100
29
100
68
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Essa situação ilustra considerações de Egler (2000) sobre interação e confronto no espaço urbano: [...] no espaço de interação, o confronto pode ser conduzido, apenas, para que ocorra a dominação de uma das partes, quando estão sendo decididos os rumos da ação coletiva. Confrontar, menos que um saudável exercício democrático, pode, portanto, ser apenas um mecanismo estrategicamente utilizado para fazer valer um conjunto de idéias que, efetivamente, não são compartilhadas (EGLER, 2000, p. 215-216).
No Goiânia, embora 21% dos entrevistados preferissem manter a privacidade e pouco contato com a vizinhança, ainda se mantinha como hábito a visitação entre eles, em 15% das respostas, como demonstra a TAB. 25. As pessoas estabeleceram amizade desde a época em que se abrigaram nos acampamentos e a sustentaram, após a mudança para os conjuntos, com visitas mútuas constantes. Também nesses locais, a convivência entre parentes fortalecia o entrosamento entre as moradoras: “Costumo ir na casa da minha sogra. No mais, não vou na casa de muita gente, porque trabalho o dia todo” (faxineira, 32, 14G). “De vez em quando, vou na casa da Salete, mas não é todo dia não. Ela mora na terceira casa depois da pracinha do fundo, logo depois da casa da Jurema” (dona de casa, 39, 4G). “Vou lá na casa da Socorro, que fica no beco principal, do lado da casa da Edna, aquela de muro alto com um portão marrom, sabe?” (dona de casa, 28, 9G). Interessante notar que esse hábito não foi registrado entre os entrevistados no Araguaia. Aqui seria oportuno lembrar as observações de Certeau (1998, p. 177-188) sobre os percursos,
170
ao considerar a indicação do deslocamento para ac essar casas de amigos: ela era definida pela referência espacial conhecida e assimilada por todos, e não pelo endereço da rua interna em que ela se localizava. As principais vias de acesso aos conjuntos também passaram a ser vivenciadas, principalmente pelas moradoras, em 24% dos casos, de acordo com a TAB. 25, que ficavam na calçada à tarde observando o movimento do trânsito e as crianças brincando na calçada. Os encontros se davam à medida que os vizinhos passavam ali para fazer alguma compra, pegar ônibus ou buscar as crianças na escola: “À tarde, as pessoas sentam na calçada para descansar e conversar. Aí, sabe como é, né? Um passa daqui, outro conversa dali...” (desempregada, 37, 13G). Mesmo que grande número de pessoas se conhecesse por um longo período, as respostas indicaram que 17% do universo pesquisado não se encontravam com seus vizinhos. Os motivos eram justificados pelo trabalho, que demandava dedicação de tempo, e porque não havia lugares onde se encontrar no conjunto: “Não encontro com ninguém , porque saio de manhã e volto de noite. Nos fins de semana, fico lavando minha roupa e cuidando da casa. É quando eu posso descansar. Também eu quase não conheço ninguém” (faxineira, 35, 3G). “Não tem nenhum lugar decente pra gente encontrar as pessoas aqui no conjunto” (bordadeira, 26, 20A). Cabe observar que era raro o acesso dos estabelecidos aos conjuntos. Tal situação somente ocorria quando algum outsider conhecido necessitava de cuidados ou quando eles iam à procura de mão-de-obra para prestação de serviços, especialmente faxina ou serviços hidráulicos e elétricos.
5.2.1.2
Os encontros dos moradores nos bairros
Os bairros ofereciam espectro maior de vivência, visto que eram mais amplos e a variedade de atividades ali desenvolvidas possibilitava o uso do espaço, tanto para os seus moradores como para os outsiders. Entre os estabelecidos, as práticas espaciais aconteciam de maneira similar àquelas realizadas pelos outsiders: eles se encontravam nas ruas, se visitavam e, como as suas ligações já vinham se estruturando ao longo de muito tempo, promoviam
171
reuniões que tornavam mais sólida a amizade entre eles. Cabe ressaltar que, mesmo assim, 17% desses estabelecidos nos dois bairros, segundo a TAB. 26, só se cumprimentavam e outros sequer freqüentavam algum evento social, tanto no Alvorada como no Araguaia, mesmo que o tempo de permanência de grande parte desse grupo fosse longo no local e as relações de vizinhança houvessem se consolidado: “Não freqüento nenhum lugar por aqui” (desempregada, 36, 34A). “Não tem onde encontrar meus vizinhos. A gente só se cumprimenta” (corretora, 59, 53G). “Não encontro com meus amigos vizinhos, porque todos trabalham fora” (vendedora, 36, 4A). TABELA 26 Onde os moradores dos bairros se encontram Alvorada
Local
Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Porta de casa
9
38
2
9
11
23
Rua
5
21
8
35
13
28
Comércio
1
4
1
4
2
4
Casa de vizinhos
2
8
3
14
5
11
Igreja
3
12
4
17
7
15
Porta da escola
-
-
1
4
1
2
Não encontra
4
17
4
17
8
17
Total de incidências
24
100
23
100
47
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
A maioria dos estabelecidos se encontrava nas portas das suas casas ao sair para o trabalho, abrindo o portão da garagem ou molhando o jardim, conforme indica a TAB. 26. Além do mais, esse grupo já se apresentava sedimentado pelo tempo de moradia e os hábitos comuns já haviam se consolidado ao longo da sua convivência. A exemplo dos moradores dos conjuntos, também a rua se apresentava como lugar de encontro apropriado para a população dos bairros nos percursos a pé: “A gente se encontra pela rua, quando sai a pé” (almoxarife, 39, 44G). “Quando vou pra igreja, encontro muitos conhecidos pela rua” (costureira, 45, 38A). As pessoas ainda se visitavam e promoviam reuniões informais, confraternizações, aniversários, grupos de oração, festas religiosas e tardes festivas. Essa prática já havia se tornado comum entre eles, desde tempos anteriores, quando se
172
encontravam nos fins de semana em residências próximas: “Não sou muito de encontrar nas portas das casas das minhas vizinhas. Temos um grupo de oração, onde a gente reza o terço, ou a gente se encontra pra conversar e trocar idéia, comendo um salgadinho...” (costureira, 59, 49G). “Nós temos o terço toda segunda, comemoramos os aniversários do mês e procuramos manter a turma unida, fazendo uma confraternização nas nossas casas ou no sítio ” (desempregada, 42, 42G). “O ano todo, a gente tem atividade: coroação em maio, barraquinha em junho e um monte de festa da igreja. Em setembro, tem o passeio comunitário e outubro, o almoço comunitário. O povo do conjunto só vai lá se a gente oferecer alguma coisa pra eles” (aposentado, 61, 31A). Cabe observar que os templos religiosos se transformaram num lugar de encontro nos bairros, pois a prática de cultos e orações demandava regularidade e, com isso, maior oportunidade de se encontrarem. Quanto às demais vivências no cotidiano, desenvolvidas pelos estabelecidos , o comércio se apresentou como pouco representativo, embora essa atividade disponib ilizasse atendimento eficiente, tanto no nível local como regional. Uma das justificativas se dava porque alguns moradores, principalmente os do Goiânia, faziam suas compras fora dessas regiões.
5.2.2
Os deslocamentos nos conjuntos e nos bairros
Diferentemente dos pontos de referência conceituados por Lynch, os percursos distinguem o espaço geométrico do espaço antropológico. Os percursos, por nós adotados como deslocamentos, vão delinear os caminhos vividos pelos indivíduos, obedecendo a uma linguagem natural, específica da relação deles com o espaço. Certeau (1998, p. 177-188-203) observa que as caminhadas atribuem aos percursos um valor de verdade, um valor cognitivo ou um valor de transgressão, que passam a tomar significado na medida em que deixam de ser roteiros e passam a ser caminhos. Esse autor acredita que os relatos de lugares são bricolagens e que eles retratam um conjunto simbólico e se expressam ligados a histórias perdidas e a gestos opacos; são justapostos numa colagem em que suas relações não são pensadas, mas postas como necessárias.
173
O exame dos lugares que apresentavam possibilidades da prática social, no cotidiano das comunidades envolvidas, vai auxiliar no entendimento das relações entre elas. Para isso, cabe registrar aqueles mais freqüentados no dia-a-dia para compras, lazer e atividades religiosas e escolares. No que diz respeito às compras, tornou-se necessário indicá-las nas diferentes escalas, tais como padaria, sacolão, supermercado, farmácia, para que fossem analisadas as freqüências diárias, semanais e esporádicas, que indicariam as possibilidades de encontro dos grupos envolvidos. Nesse sentido, podem ser verificadas as incidências de freqüência em cada um desses estabelecimentos e quais as possibilidades de encontros entre eles nesses locais. As respostas das TAB. 27 e 28 indicaram, conforme veremos adiante, que a maioria das atividades praticadas pelos estabelecidos e pelos outsiders acontecia na região, nas proximidades dos conjuntos, embora nem sempre esses lugares estivessem localizados dentro dos limites dos bairros Alvorada e Araguaia.
5.2.2.1
Os deslocamentos no conjunto Goiânia e no bairro Alvorada
No Alvorada, a maioria das atividades comerciais se concentrava na avenida Josefino Gonçalves da Silva, na rua Maria da Conceição Bonfim e na rua Tiziu, ambas fora do limite do bairro, porém próximas a ele. Nessa última via, fica o ponto final do ônibus que transita pela região. Quanto às compras nos supermercados dos dois setores de estudo, elas se efetuavam em função da proximidade, dos preços e das condições de pagamento que, indubitavelmente, se apresentavam como fator de atração. De fato, esse exemplo pode ser demonstrado por 74% dos depoentes do conjunto Goiânia, como indicado na TAB. 27, que buscavam o supermercado Araponga para atender a essa demanda. Em entrevista com um dos proprietários do estabelecimento, chamou atenção o uso constante de cartões de crédito pela população do conjunto. Verificou-se que esse estabelecimento era também freqüentado por 20% dos habitantes dos bairros, o que poderia proporcionar possibilidade de encontros entre os membros dos dois grupos. Cabe ressaltar, ainda, que tal mercado supria de pão 29% dos moradores do Goiânia, embora a qualidade do produto fosse questionada.
174
Outro supermercado que atendia à população do Goiânia, o Leva Tudo, se situa numa das principais vias de concentração do comércio, fora do limite do Alvorada, e atraía 22% dos entrevistados no conjunto, pois apresentava preço competitivo. Esse estabelecimento comercial não foi indicado como lugar de compras pelos moradores dos bairros. Por outro lado, o Vitorino e o Quero-Quero, localizados fora dos limites do conjunto e do bairro, só eram freqüentados pelos estabelecidos do bairro Alvorada, visto que, para acessá-los, necessitava -se de algum meio de transporte. Cabe aqui a observação de que esses consumidores faziam suas compras mensalmente, ao passo que os outsiders do Goiânia, na maioria, faziam a provisão a cada semana, ocasião em que recebiam o pagamento. Portanto, os habitantes do conjunto freqüentam esses lugares com maior intensidade. TABELA 27 Deslocamento dos moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada Local
Supermercado
Padaria
Sacolão
Araponga Leva Tudo Vitorino Quero Quero Ganha cesta básica Cidade Nova Santa Inês Centro Total de incidências Mirloh Araponga Pão Gostoso Castro Não compra Santa Inês Total de incidências ABC Marcos Vitorino Delivery Não compra Cidade Nova Santa Inês Centro Total de incidências
Conjunto Goiânia absoluto % 29 74 8 22 1 2 1 2 0 0 39 100 25 65 11 29 1 2 1 2 1 2 39 100 30 77 6 15 2 6 1 2 39 100
Bairro Alvorada absoluto % 3 20 3 20 1 7 2 13 1 7 5 33 15 100 5 33 1 7 5 33 4 27 15 100 3 20 1 7 3 20 2 13 2 13 4 27 15 100 (continu a...)
175
(conclusão) Local
Farmácia
Escola
Igreja
Lazer
Avenida Leandro Não compra Delivery Santa Inês Cidade Nova Maria Goretti Centro Total de incidências Maria Cecília Luiz Bessa José Alencar Carrossel Encantado José Calazans Cidade Nova Maria Gor etti Santa Inês São Marcos Centro Fora da cidade Não freqüenta Total de incidências Universal Nossa Senhora d’Ajuda Quadrangular Deus é Amor Não freqüenta Cidade Nova Maria Goretti Santa Inês Centro Fora da cidade Total de incidências Quadra Escola Luiz de Bessa Não pratica Cidade Nova Santa Inês Centro Total de incidências
Conjunto Goiânia absoluto % 12 31 4 11 12 31 1 2 1 2 1 2 8 21 39 100 20 35 15 26 5 9 4 7 3 5 5 9 1 2 4 7 57 100 15 38 8 21 3 8 3 8 5 13 2 5 1 2 2 5 39 100 21 54 3 8 15 38 39 100
Bairro Alvorada absoluto % 1 7 2 13 4 27 3 20 5 33 15 100 1 6 3 20 1 6 2 12 1 6 2 12 2 12 1 6 3 20 16 100 2 13 3 20 1 7 2 13 1 7 5 33 1 7 15 100 3 20 3 20 5 34 2 13 2 13 15 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
As compras nas padarias próximas ao conjunto Goiânia se efetuavam, simultaneamente, para a maioria dos dois grupos na Mirloh, localizada na avenida Josefino Gonçalves da Silva, em frente ao conjunto, onde 65% dos entrevistados do conjunto e 33% do bairro faziam suas compras diariamente. Também a Pão Gostoso, situada na rodovia próxima ao conjunto, em direção ao Espírito Santo, era
176
referência de compras de pão no cotidiano para as duas comunidades, tornando-se potencial de encontro para ambos os grupos.
FIGURA 43 Indicação dos percentuais de consumidores em supermercados, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
Apenas os moradores do bairro Alvorada compravam na padaria Castro. A sua decoração se apresentava de maneira mais sofisticada, o que causava constrangimento e gerava desconfiança aos outsiders do conjunto, que pensavam, inclusive, que os preços dos produtos eram mais caros, conforme depoimento de moradora do conjunto: “Eu compro aqui na padaria da avenida. O pão da Castro é
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muito bom, mas lá é muito caro. A gente paga luxo!” (dona de casa, 39, 4G). Fato que não se verificou, após a comparação dos preços com os das demais padarias dos arredores.
FIGURA 44 Indicação dos percentuais de consumidores em padaria, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
A maioria das compras feitas no sacolão pelas duas comunidades se realizava no ABC15 (77% do Goiânia e 20% do Alvorada, conforme a TAB. 27), pois ali era
15
O programa Abastecimento a Baixo Custo – ABC – é patrocinado pela Prefeitura Municipal, que fornece produtos hor tifrutigranjeiros sem intermediários, o que reduz o custo final dos produtos.
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assegurado o abastecimento de alimentos frescos, a preço baixo. O sacolão do Marcos vendia produtos frescos e, apesar de se situar mais longe, na rua Maria da Conceição Bonfim, também era motivo de encontro dos dois grupos, porém sem muita intensidade. Nessa atividade, os estabelecidos do bairro utilizavam o serviço de entrega em domicílio que, ainda que fosse mais caro, significava para eles conforto e economia de tempo. Foi verificado que 2% das famílias do conjunto não faziam qualquer tipo de compra, pois suas condições eram precárias e eles ganhavam cesta básica de associações beneficentes.
FIGURA 45 Indicação dos percentuais de consumidores em sacolão, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
179
As compras nas farmácias pelos dois grupos, nem tão freqüentes, ocorriam nas drogarias Avenida e Leandro. A oportunidade de encontros nesses dois lugares passava a ser esporádica, visto que mais da metade dos moradores do bairro utilizava o serviço de entrega para o seu atendimento ou comprava em farmác ias fora da região. Cabe ressaltar que grande parte dos entrevistados no conjunto Goiânia recebia a medicação no posto de saúde, não freqüentando, portanto, as farmácias próximas.
FIGURA 46 Indicação dos percentuais de consumidores em farmácia, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
180
Quanto à possibilidade de encontro nas escolas, uma prática facilitadora de intercâmbios sociais, ela não acontecia como seria de esperar. Os alunos dos dois grupos que freqüentavam o Maria Cecília e o Luiz de Bessa participavam de todas as atividades nas escolas, mas raramente mantinham contatos extraclasse. No José de Alencar, por sua vez, não foi matriculado nenhum morador do bairro Alvorada. Metade dos que ainda se encontravam em fase de aprendizagem no bairro e 23% dos outsiders entrevistados estudavam em instituições fora da região, tais como universidades e entidades de ensino localizadas na área central da cidade.
FIGURA 47 Indicação dos percentuais de freqüentadores de escolas, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
181
As relações entre as duas comunidades ainda se tornavam possíveis: a TAB. 27 indica que 7% dos moradores do conjunto e 20% do bairro não se encontravam mais em processo de formação nas escolas, mas esse fato não isentava os indivíduos de se encontrarem nas portas dos colégios, ao encaminharem as crianças para o estudo.
FIGURA 48 Indicação dos percentuais de freqüentadores de templos, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
Quanto às práticas religiosas, conforme indica o TAB. 2, 54% dos outsiders do conjunto Goiânia praticavam a religião evangélica. A maioria deles era composta por fiéis da Igreja Universal, que concentrava 38% dos praticantes do conjunto e 13% do
182
Alvorada. A proximidade e a facilidade de acesso às boas instalações também facilitaram a prática dessa crença no templo para os dois grupos. Nesse sentido, o relacionamento entre os moradores, dentro das igrejas, se mostrou amigável. Por outro lado, os demais templos que seguiam essa crença atraíram somente aqueles residentes no conjunto Goiânia, o que ocorreu também com os praticantes católicos, cerca de 20%, que freqüentavam a igreja Nossa Senhora d’Ajuda, localizada fora dos limites do bairro Alvorada. Observa -se, aqui, que a possibilidade de encontro entre os dois grupos nos templos religiosos tornava-se difícil, devido à pouca incidência comum dos cultos e à distância entre eles. Nas atividades de lazer, a quadra próxima ao Goiânia era utilizada como o ponto de encontro dos moradores do conjunto e do bairro. Como esse local era cedido pelo proprietário para as crianças brincarem até as 17 horas, a partir desse horário, a quadra passava a ser alugada para terceiros, destinando-se a eventos que intensificavam encontros de membros dos dois grupos. Na creche anexa à escola Luiz de Bessa, existe uma quadra que acolhe somente jovens do Goiânia para a prática de vôlei, embora não haja participação de moradores do bairro nessa atividade. Algumas respostas de ambos os segmentos indicaram que não se praticava qualquer atividade de lazer nas imediações, o que era justificado pela falta de equipamentos, de informação e de hábito nessas funções. A pesquisa indicou que um número significativo de moradores do bairro Alvorada desenvolvia atividades fora da região: 53% faziam compras, 50% iam à escola, 60% se dedicavam ao lazer e 67%, a atividades religiosas. Isso se justificava pela facilidade de deslocamento para essas áreas, visto que grande parte dos estabelecidos desse bairro era proprietária de automóveis, o que facilitava o acesso a setores mais distantes da cidade. Outros fatores responsáveis pela busca das atividades fora dos locais de origem foram a proximidade ao trabalho e a concentração específica dessas atividades em questão no centro da cidade: “Eu trago pão da padaria que fica perto do meu trabalho. Fica mais fácil” (orientadora educacional, 49, 40G). “Faço minha caminhada na avenida José Cândido, porque eu e meu marido vamos de carro e é mais seguro, porque tem pista de Cooper”
183
(desempregada, 55, 41G). “Eu faço hidro – hidroginástica – na Cidade Nova (bairro localizado entre o Alvorada e o centro da cid ade); por aqui, nem pensar. Olha, depois das oito da noite, eu não saio de jeito nenhum” (cozinheira, 53, 47G). “Estudo no Senac, no centro da cidade” (costureira, 45, 38A). A justificativa dos depoentes a respeito de suas decisões na busca de locais externos confirma tendências comuns a vários setores da cidade.
FIGURA 49 Indicação dos percentuais de praticantes de atividades de lazer, moradores do conjunto Goiânia e do bairro Alvorada Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
Não deixaram de existir, da parte dos habitantes do bairro Alvorada, manifestações que retrataram o relacionamento com os outsiders
de maneira distante,
184
considerados por eles como pessoas perigosas. Esse exemplo nos remete a Elias e Scotson (2000, p. 20), nos estudos sobre o tema, que mostram os problemas centrais referentes às distinções de valor atribuído a famílias já consolidadas no local, que passam a se ver e a serem vistas pelos outros como melhores e superiores : “Compro pão numa padaria da Cidade Nova”. “Esse povo fica muito na rua. Não peço pro meu filho ir comprar pão lá embaixo pra ele não ter contato e não encontrar com eles” (dona de casa, 37, 45G). “Encontro com muitos deles na padaria e no supermercado, mas não converso com nenhum” (desempregada, 25, 43G). Mas nem por isso deixam de ocorrer manifestações preconceituosas que indicam desajustamento, que só o tempo poderá atenuar.
5.2.2.2
Os deslocamentos no conjunto e no bairro Araguaia
Entre os moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia, essa diferenciação não se assemelhou, ao exemplo anterior: a maioria das atividades se concentrava no bairro e nos arredores, o que permitia maior contato entre os dois grupos. Isso não impedia que se declarassem, ali também, as manifestações de desconforto em relação aos outsiders . Somente quando se avaliou a possibilidade de encontros nas escolas houve indicação do deslocamento da maioria dos entrevistados para outras regiões da cidade, a exemplo do que sucedeu entre os moradores do Goiânia e do Alvorada. Grande parte das atividades de comércio e prestação de serviços nas escalas regional e local acontecia na avenida Olinto Meireles. Outra concentração surgia ao longo das ruas Maringá e Eduardo Carlos, geradoras de importante eixo que ligava o Colégio Polivalente Celso Machado ao Hospital Júlia Kubitschek, ambos centros de referência regional. No que diz respeito às compras nos supermercados, havia maiores possibilidades de encontros entre os habitantes do bairro e do conjunto no Parapai, visto que 68% dos habitantes do conjunto Araguaia e 64% do bairro Araguaia, conforme indica a TAB. 28, se dirigiam para esse supermercado, fato que aconteceu também no Paranaíba, apesar de ser em menor incidência. Os motivos que levaram a tal escolha consideraram a proximidade e as condições de pagamento facilitadas, a exemplo das respostas das comunidades do Goiânia e do Alvorada. O
185
supermercado BH, apesar de distante do conjunto, apresentava ofertas de produtos a preço mais acessível e atraía somente os consumidores outsiders do conjunto. Um dos fatores que pode ter contribuído para o afastamento dos moradores do bairro é a aparência muito popular das suas instalações. TABELA 28 Deslocamento dos moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia Local
Supermercado
Padaria
Sacolão
Farmácia
Escola
Igreja
Parapai Belo Horizonte Paranaíba Fora da região Ganha cesta básica Total de incidências Itamar Estrelinha Bom Trigo Belo Horizonte Praça do Minério Parapai Não compra Total de incidências ABC Belo Horizonte Lima Fora da região Não compra Total de incidências Gerson Febem Gerson Maringá Araguaia Fora da região Ganha no posto de saúde Total de incidências Isaura Santos Francisco Bicalho Ana Alves Pedro Aleixo Escola de outro bairro Não freqüenta Total de incidências Cristo Redentor Santa Mônica Evangélica Sirius Quadrangular Maranata Assembléia de Deus Católica de outro bairro Evangélica de outro bairro Não freqüenta Total de incidências
Conjunto Araguaia absoluto % 20 68 5 17 2 7 1 4 1 4 29 100 16 55 6 21 2 7 3 10 2 7 29 100 23 80 2 7 2 7 1 3 1 3 29 100 19 66 6 21 1 3 3 10 29 100 15 37 3 8 3 8 16 39 3 8 40 100 7 25 2 7 3 10 1 3 4 14 3 10 1 3 5 18 3 10 29 100
Bairro Araguaia absoluto % 9 64 3 22 2 14 14 100 4 28 4 29 4 29 1 7 1 7 14 100 8 57 6 43 14 100 7 50 1 6 3 22 3 22 14 100 1 6 1 6 1 6 6 35 8 47 17 100 7 50 3 22 1 7 1 7 2 14 14 100 (continua...)
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(conclusão)
Lazer
Quadra José Verano Pedro Aleixo Isaura Santos Rua Fora da região Não pratica Total de incidências
12 3 2 1 11 29
41 10 7 3 39 100
1 3 10 14
6 22 72 100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
FIGURA 50 Indicação dos percentuais de consumidores em supermercados, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
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A compra diária do pão se dava, para a maioria dos outsiders pesquisados, na venda do Itamar, que se situava na esquina das ruas Amparo da Serra e Coronel Severiano, próxima ao conjunto Araguaia, cujo percentual de consumidores era quase o dobro, pois compreendia 55% deles contra 14% dos do bairro. É evidente que a proximidade foi o fator que mais influenciou para esse resultado. Para os eventuais encontros em compras nas padarias, o lugar mais adequado para que se efetivassem as relações cotidianas entre os dois grupos seria a venda do Itamar.
FIGURA 51 Indicação dos percentuais de consumidores em padaria, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
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A panificadora Bom Trigo também atendia simultaneamente aos consumidores do bairro (29%) e do conjunto (21%, conforme a TAB. 28), bem como o supermercado BH, embora neste tenha se manifestado menor freqüência. A padaria Estrelinha, por sua vez, não era o lugar procurado por consumidores dos conjuntos, pois se tornava distante para o seu deslocamento diário. Ao mesmo tempo, a padaria da praça do Minério era freqüentada somente por moradores do conjunto, porque esses consumidores tinham como bom motivo passear naquele lugar, considerado muito bonito e cheio de flor. Essa manifestação lembra as observações de Bourdieu (1998b), Santos (1997b) e Lynch (1990), que afirmam que o envolvimento dos indivíduos com o lugar se dá além de questões pragmáticas, retratando o reflexo dos valores atribuídos a eles e estabelecendo, assim, relações topofílicas significativas. No que diz respeito às compras no sacolão, o ABC concentrava 80% dos freqüentadores do conjunto e 57% do bairro, de acordo com a TAB. 28, pois ele era próximo à praça da FEBEM e, além disso, se avizinhava de outros estabelecimentos de comércio local, tais como açougue, loja de aviamentos e o supe rmercado Parapai. Nesse local se evidenciavam os encontros dos moradores da região, tornando possível maior intercâmbio entre eles. Tal situação pôde ser comprovada pelas manifestações dos usuários: “Sabe que eu aproveito pra ir no Parapai e já faço tudo por ali. Aquela região da praça de FEBEM é muito boa e tem de tudo. É onde a gente encontra os conhecidos” (dona de casa, 33, 5A). “Olha, eu vou pra praça da Febem e resolvo tudo por ali e depois, quando é no sábado, ainda tomo uma cervejinha antes do almoç o. A mulher não gosta muito não, mas eu encontro com os meus amigos e bato um papo” (aposentado, 77, 41A). O sacolão Lima, apesar de se localizar fora do percurso cotidiano dos moradores do conjunto, foi citado como local de compra de frutas e produtos hortigranjeiros, tanto pelos entrevistados dali como do bairro. A longa distância ao conjunto foi o fator que explicou a freqüência do sacolão Maringá somente pelos estabelecidos compradores do bairro.
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FIGURA 52 Indicação dos percentuais de consumidores em sacolão, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
Nessa região, os habitantes ainda não tiravam partido dos benefícios do serviço de entrega em domicílio. A rede de farmácias Gerson dominava o comércio de medicamentos e duas dessas lojas eram ponto de concentração de vendas para a população. A maior demanda se dava na Gerson próxima à praça da Febem, onde a maioria dos dois grupos era atendida. A drogaria Araguaia foi citada somente pelos moradores do bairro, pois se localizava em ponto estratégico da região, embora distante do conjunto.
190
FIGURA 53 Indicação dos percentuais de consum idores em farmácia, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
As escolas Francisco Bicalho e Ana Alves foram os estabelecimentos de ensino freqüentados pelas duas comunidades, mas, mesmo assim, apresentaram baixa incidência, com 8% de estudantes no conjunto e 6% no bairro, conforme a TAB. 28. Também nesse caso, a aproximação entre os jovens dos conjuntos e dos bairros se dava no período das aulas, mas poucos eram os intercâmbios efetivados extraclasse. Configuravam-se, assim, as condições de estigmatização, em que um grupo passava a afixar um rótulo de inferioridade humana e fazê-lo prevalecer em função de uma figuração específica que os dois grupos formavam entre si (ELIAS E SCOTSON, 2000, p. 23). Em contrapartida, as portas das escolas serviam de palco
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para práticas sociais entre eles, chegando até a atrair a presença cotidiana de pessoas ao local.
FIGURA 54 Indicação dos percentuais de estudantes, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
A Escola Municipal Isaura Santos era a mais procurada pelos habitantes do conjunto (38%), embora o percurso de acesso a ela fosse dificultado pelo cruzamento da avenida Olinto Meireles. Essa instituição era ampla e disponibilizava maior número de vagas para todas as idades. A falta de alunos do bairro dentro do universo
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pesquisado impossibilitou o encontro das duas comunidades nesse estabelecimento de ensino. Quanto à questão religiosa, a maioria dos entrevistados declarou se dedicar à prática do catolicismo, sendo que a ação dos padres das igrejas Cristo Redentor e Santa Mônica envolvia os dois grupos nas atividades comunitárias em 32% dos fiéis do conjunto e 72% do bairro. Assim, surgia a possibilidade favorável de encontros entre os moradores católicos do Araguaia e os do bairro, durante os cultos e as festas religiosas, sendo que estas eram realizadas na Semana Santa, em maio, época de coroações, em junho, com barraquinhas, e em setembro, quando se comemorava a primavera.
FIGURA 55 Indicação dos percentuais de fiéis, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
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FIGURA 56 Vista da Igreja Cristo Redentor Fonte: Acervo particular da autora.
A igreja S írius, evangélica, era a única que acolhia, em seus cultos, fiéis tanto outsiders quanto estabelecidos, pois nos demais templos essas atividades religiosas eram praticadas apenas pelos moradores dos conjuntos. Fato comum entre os católicos e evangélicos era a prática de missas e cultos em regiões mais afastadas do bairro, com a presença de 21% dos fiéis tanto do conjunto como do bairro. Isso se devia principalmente aos costumes mantidos pela tradição familiar, que buscavam a realização das atividades, nos fins de semana, em locais mais afastados, inclusive em cidades próximas da capital. A prática de esportes se efetivava na quadra José Verano, um dos poucos lugares que acolhiam os esportistas dos dois grupos nos jogos de futebol, representando, portanto, novas chances de encontro entre eles. As demais respostas indicavam que as quadras das escolas Pedro Aleixo e Isaura Santos davam suporte aos jogos dos alunos nos horários fora de aula, mas elas eram freqüentadas apenas por estudantes que moravam no conjunto, o que restringia a oportunidade de membros dos dois grupos se encontrarem. Cabe observar, ainda, que um alto índice das respostas indicou que 39% dos moradores do Araguaia e 72% do bairro não praticavam qualquer atividade de lazer
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ou esportiva. Os motivos eram justificados pelo desejo deles de permanecerem em casa e por não terem se habituado, desde a infância, a praticar essas atividades.
FIGURA 57 Indicação dos percentuais de praticantes de atividades de lazer, moradores do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
Grosso modo, pode-se concluir que o cotidiano vivido pelos habitantes dos conjuntos e dos bairros se diferenciou nos dois estudos de caso, mesmo considerando que o processo de implantação e ocupação dos conjuntos Goiânia e
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Alvorada tenha sido semelhante e simultâneo. As comunidades envolvidas nos conjuntos apresentaram, no cotidiano, atividades distintas entre si. As práticas de grande parte dos moradores dos bairros se dava fora da região, chegando até a ocorrer além dos limites da cidade. A motivação para esse comportamento se deveu às facilidades proporcionadas nessas áreas mais afastadas, tais como proximidade do local de trabalho, acesso a estabelecimentos que ofereciam maior variedade de produtos e preços mais acessíveis e, não surpreendentemente, o desejo de não cruzarem com a população do conjunto no seu dia-a-dia. Por outro lado, os habitantes do conjunto Araguaia e do bairro Araguaia freqüentavam os mesmos lugares nas atividades domésticas e de trabalho no dia -adia e pode-se avaliar que o entrosamento entre os participantes das duas comunidades se manifestava mais harmonicamente, se comparado ao estudo de caso anterior. Ainda assim, a pesquisa não apresentou aspectos que identificassem tendências que levassem a um efetivo entrosamento. Cabe ressaltar que a participação das lideranças religiosas, nas comunidades em estudo, contribuiu para que o relacionamento entre os dois grupos se efetuasse de maneira menos agressiva. Outro aspecto que se apresentou como facilitador da relação amigável entre os habitantes do conjunto e do bairro foi o padrão educacional, de renda e da constituiç ão das moradias dos habitantes do bairro Araguaia. Esses fatores caracterizavam maior aproximação, ainda mais que foi constatada menor diferenciação em relação ao modo de vida daqueles que chegavam ao local, o que provocou, assim, maior aceitação dos estabelecidos no bairro.
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INTOLERÂNCIA ENTRE ESTABELECIDOS E OUTSIDERS
Em projetos habitacionais que impliquem novas concentrações de populações são indispensáveis os cuidados relativos à forma em que as mesmas se entrosam. No presente trabalho, os resultados das pesquisas indicaram claros sintomas de intolerância entre os estabelecidos e os outsiders, cujas manifestações serão avaliadas neste capítulo. Consideramos mais objetivo analisar os aspectos referentes às práticas sociais nos conjuntos e às relações entre os grupos envolvidos componentes da população resultante. Nessa etapa do trabalho, foram realizados questionários com os dois grupos envolvidos e entrevistas com antigos moradores dos bairros, os estabelecidos . Estes são instrumentos de grande importância para a compreensão do entrosamento entre eles no espaço. No momento em que grupos diferenciados passam a conviver e a estabelecer relações de vizinhança entre si, podem acontecer redes de solidariedade, mas podem também surgir conflitos, decorrentes da origem, da cultura e dos modos de vida predominantes em cada um desses grupos. No sentido de reproduzir as relações sociais, o fato de estar junto pode ser apenas uma etapa da vida de um grupo; já o fato de se separar assinala o fim de um encontro (JOSEPH, 2000, p. 66). E por que isso acontece? As possibilidades de valorização e apropriação do lugar se expressam nas formas de sociabilidade e podem retratar, nas experiências vividas, os níveis de tolerância e de intolerância que cada grupo apresenta internamente e em relação ao outro. Para tentar entender como isso acontece, inicialmente, cabe retomar as diretrizes da sociologia urbana estabelecida pela Escola de Chicago, nas quais uma cidade é definida como “um núcleo relativamente grande, denso e permanente, de indivíduos socialmente heterogêneos ” (WIRTH, 1973, p. 96-107). Aliás, o grande desafio dos estudiosos é descobrir as formas de ação e organização social que emergem em grupamentos compactos, relativamente permanentes, de grande número de indivíduos heterogêneos. Para Wirth, a inter-relação do urbanismo com o modo de vida pode levar ao maior conhecimento dos fenômenos sociais no meio urbano e ela pode ser caracterizada de três maneiras: primeiro como uma estrutura física
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consistindo uma base de população, uma tecnologia e uma ordem ecológica; segundo como um sistema de organização social envolvendo uma estrutura social característica, uma série de instituições sociais e um modelo típico de relações sociais. Finalmente, essa inter-relação pode ser abordada como um conjunto de atitudes, de idéias e como uma constelação de personalidades dedicadas a formas típicas do comportamento coletivo e sujeitas a mecanismos de controle social. Sob essas três formas, as relações sociais entre grupos heterogêneos podem se manifestar, com freqüência, através da intolerância, fruto de relações conflituosas no contato com o diferente.16 Aqui, Héritier (2000, p. 24) conceitua intolerância como a “expressão de uma vontade de assegurar a coesão daquilo que é considerado como que saído de Si, idêntico a Si, que destrói tudo o que se opõe a essa permanência absoluta”. A intolerância também se refere à aceitação dogmática de uma série de concepções sociais, políticas e religiosas e à identificação pessoal que dela decorre. Silva (1987) considera que a intolerância está associada ao temor da alteração e da subversão da ordem estabelecida e, se tal fato não ocorrer, ela carece de importância do ponto de vista social. Já Eco (2000, p. 17) admite que, entre outras formas, a intolerância e t m raízes biológicas e se manifesta entre os animais através da territorialidade, baseando-se em reações emocionais superficiais. O ser humano, desde a infância, apresenta intolerância em relação ao outro, instintivamente, se apropriando de tudo o que lhe agrada. Para esse autor, a intolerância é uma condição natural, e o ser humano vai aprendendo pouco a pouco a controlá -la através da permanente educação. A importância desse aspecto justifica abordagem mais ampla, inclusive avalizada por autores diversos. Assim, a convivência com o diferente exige tolerância, pois ela permite acionar funcionalmente a heterogeneidade (VAINER, 1998, p . 35) através do aprendizado, e necessita de constante controle. Nesse sentido, Vainer avalia que, atualmente,
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Referencia-se a Ecologia Urbana à sigla POETS: Population, Organization, Environment, Technology and Socio- psychology.
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assistimos nas cidades ao crescimento das desigualdades, dos processos da segmentação socioespacial e da violência, incrementados através da falta e da precarização do emprego e dos cortes nos investimentos sociais. Esse aprofundamento da desigualdade gera a construção de barreiras crescentes à circulação e ao contato entre grupos sociais diferenciados, o que contradiz uma das funções primordiais a serem estabelecidas nos centros urbanos, pois, além das funções acima descritas, a cidade é o lugar do encontro do homem consigo mesmo; ou se se prefere, o lugar do homem com sua humanidade (VAINER, 1998, p. 41-43). Simmel (1973, p. 17) vai além e sua justificativa é de que, quando se trata de relações do cidadão metropolitano, a tolerância sofre influência da questão econômica e passa a determinar não apenas a indiferença, mas também a reserva. Ela trata da auto-preservação dos indivíduos, face aos valores adotados para as coisas que podem ser adquiridas, limitando a personalidade ao preço da desvalorização de todo o mundo objetivo, cuja intensificação quantitativa é transformada, gerando comportamentos como uma leve aversão, uma estranheza e uma repulsão, chegando até à atitude blasé. Simmel afirma também que a essência de tal atitude consiste no embotamento do poder de discrimin ar e, embora as coisas apresentem significado e valores diferenciais, elas são destituídas de substância, tratadas num tom uniformemente plano e fosco em que “o dinheiro torna-se o mais assustador dos niveladores” (SIMMEL, 1973, p. 17) Como exemplo, pode-se verificar, pelas manifestações das populações originais dos bairros Alvorada e Araguaia, que vários desses fatores abordados pelos autores já vinham induzindo esse comportamento. Essas comunidades já haviam estabelecido fortes relações de vizinhança entre si ao longo da sua permanência nesses locais, cujos laços reafirmaram a vinculação ao lugar através da proximidade, da busca de objetivos comuns e dos encontros da população. Além do mais, esses moradores já tinham uma consciência manifestada em várias lutas e conquistas, que os induzia a demandar a utilização dos terrenos disponíveis para complementar a infra -estrutura e implantar equipamentos carentes na região. Ao mesmo tempo, as áreas urbanas para expansão representavam determinado valor para os habitantes que ali viviam a sua cotidianidade. Então, a expectativa da vizinhança em relação ao futuro uso desse espaço, não construído fisicamente, era
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de que ele deveria ser apropriado dentro de critérios e de parâmetros que retratassem ali a cultura, os valores e o modo de vida dos estabelecidos. Quando os conjuntos foram implantados nessas áreas, surgiram reações contrárias à sua construção, principalmente porque eles não atendiam às expectativas daqueles que ali residiam anteriormente. Ao ser destinada uma função diferente de suas expectativas, ou seja, um conjunto habitacional, a reação se intensificou, ainda mais quando se verificou que tal empreendimento passaria a abrigar um grupo que se caracterizava com costumes e modos de vida completamente diferentes dos seus. Isso provocou uma série de manifestações e conflitos da população moradora dos bairros contra a chegada dos novos habitantes, pois as diferenças percebidas entre os dois grupos se tornavam ameaçadoras para o grupo que vinha se mantendo coeso e adaptado na sua homogeneidade. A URBEL não considerou essas circunstâncias e prosseguiu o processo de implantação. Ainda mais que esse órgão, conhecendo tais diferenças, não se preocupou em tomar medidas especiais a fim de atenuar as inevitáveis discordâncias. E permaneceu na compreensão de que seria fácil integrar os novos moradores com aqueles que já habitavam o local. Os objetivos dessa ação tornavam-se importantes, pois seria uma oportunidade de inclusão dos menos favorecidos no meio urbano, mesmo que as populações do conjunto e do entorno se diferenciassem nos aspectos econômico, social e cultural. O grupo dos moradores dos bairros, os estabelecidos , era composto, na sua maioria, por população de classe média, cujos padrões se miravam em valores burgueses e que se diferenciavam da situação dos novos habitantes, os outsiders , que buscavam, antes de tudo, a casa própria e o acesso à infra-estrutura. Ainda mais, acrescente -se que, no Alvorada, em 1995, o anúncio da construção do conjunto Goiânia, através dos meios de comunicação, desencadeou reações imediatas, pois segundo os habitantes mais antigos da região, não foi sequer comunicada a construção de um conjunto habitacional nas proximidades. Esse fato causou indignação em grande parte da população local, porque aquela comunidade havia requisitado junto à Prefeitura Municipal a construção, no citado terreno, de equipamentos urbanos precários ou ausentes na região, tais como postos de saúde e policial, escolas ou centros comunitários. A declaração de um morador do conjunto
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confirmou essa indignação: “a Prefeitura está implantando o conjunto sem dar nenhuma contrapartida à comunidade como a melhoria da iluminação pública, posto de saúde e escolas” (cf. ANEXO B). Outro aspecto indicativo da revolta dos habitantes do local contra a implantação desse assentamento foi a alegação de que seria perniciosa a convivência entre os dois grupos e que esses conjuntos “poderiam representar um apartheid social: estariam convivendo lado a lado, residências de pessoas de classe média com as casas de famílias de baixa renda” (cf. ANEXO B). Ao contrário do otimismo da URBEL, ocorreram evasões de habitantes do bairro, em que os depoentes explicitaram como causa a implantação do conjunto. A simples possibilidade de conviver com a nova vizinhança motivou a imediata mudança desses antigos moradores. Esses habitantes se deslocaram para áreas mais próximas do centro da cidade, providas de melhor qualidade de vida e que, para eles, se resumia na proximidade de vizinhos com características semelhantes: “São gente como a gente”, afirmou ex-residente do bairro Alvorada, atual morador do centro da cidade. Cabe ressaltar que a influência dos meios de comunicação era muito clara no imaginário dos moradores antigos: os programas populares como, por exemplo, as novelas, tornavam explícito o espírito da sociedade de consumo na busca de novos valores, que expressavam maior poder e prestígio para o indivíduo, pelo fato de possuir certos bens materiais. Como que “uma casa tão sonhada, bem implantada, bem dividida, poderia ter nas suas imediações um conjunto habitacional?” Essa era uma das várias colocações que os vizinhos faziam para apresentar sua indignação e evitar a aproximação com o outro grupo. É curiosa a observação a respeito desse conceito negativo generalizado quanto a planos habitacionais. No que diz respeito ao projeto de novos assentamentos, torna-se importante considerar os fatos citados. Outro motivo da saída dos moradores dos bairros foi a desvalorização das casas, visto que grande parte deles temia que seus imóveis tivessem o preço desvalorizado ainda mais. Aconteceram casos em que algumas residências foram vendidas “a preço de banana, para cair fora dali o mais rápido possível”, segundo depoimento de um deles. Essa afirmativa foi ratificada por moradores do entorno, que não eram
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proprietários de imóveis para aluguel no Araguaia: “Se eu tivesse casa de valor pra renda, ficaria preocupado. Teve um morador que mudou” (aposentado, 61, 31A). “O conjunto acabou com o bairro. O valor das casas des abou. Coloquei minha casa à venda pela metade do preço e não consegui vender” (vendedora, 47, 36A). Pode-se observar, aqui, que a desvalorização não dizia respeito somente ao valor da terra, mas retratava também o preconceito de indivíduos de classes mais favorecidas contra a proximidade do outro ameaçador, presumidamente mais sujo, mais pobre e mais feio que eles. Do ponto de vista social, embora a prioridade do programa Área de Risco propusesse abrigar famílias desalojadas e a sua aproximação e integração com os habitantes dos arredores, essa segunda intenção, na realidade, não foi alcançada. Tanto que a então presidente da URBEL, Dalva Stela Rodrigues, diante dos protestos dos moradores do bairro contra a construção do conjunto, argumentou na época do início da implantação do programa: “Com esses quatro pequenos conjuntos estaremos com todas as famílias vítimas das chuvas de 1993 e 1994 fora do risco [...] As famílias removidas de área de risco são trabalhadoras também. A única diferença é que seus salários são baixos. Não são pessoas marginalizadas; não são moradores de rua” (cf. ANEXO B). A declaração da presidente certamente não considerou as conseqüências futuras da implantação do conjunto, que ainda hoje se manifestam nas opiniões dos habitantes do bairro: a rejeição, a intolerância e o preconceito foram sentimentos expressos com freqüência nas respostas da presente pesquisa. Fatos que com a nova legislação urbanística, já em curso na URBEL, tenderão a se atenuar. Torna-se evidente que as repercussões negativas na época da implantação dos conjuntos não foram devidamente consideradas no processo de planejamento e, posteriormente, nas respectivas fases do assentamento, pois faltou continuidade na orientação às populações, por parte dos órgãos responsáveis . Portanto, ao contrário do esperado, as conseqüências dessa deficiência se retrataram de maneira crescente no período de pós -ocupação. Essa não teria sido a única causa das ocorrências, pois uma retomada histórica do processo desenvolvido indica que inadequações do projeto ocorreram em desobediência a diretrizes e normas da legislação vigente na época. A ausência de consulta prévia às respectivas comunidades também gerou grande parte dos problemas ali existentes, que
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poderiam identificar, desde o início, es sas reações, ou então, conduzir a uma solução mais adequada e conciliatória. Até mesmo contra-indicar a implantação do conjunto nesse local, destinando-lhe terrenos disponíveis em outros setores da cidade, de entorno mais adequado. Mas o que importa é a situação criada, que exige retomada do problema, a fim de atenuar impactos e, de acordo com a legislação atual, conduzir a população até à regularização fundiária, que implicará a indispensável participação das comissões técnico-jurídicas, que apoiarão os fu turos usuários. Conflitos dessa natureza se retrataram desde os primeiros passos da pesquisa, nos contatos com as populações envolvidas nos estudos de caso, os estabelecidos nos bairros Alvorada e Araguaia e os outsiders nos conjuntos Goiânia e Araguaia. Porém, à medida que o trabalho de campo avançou, foi possível verificar que, no interior do conjunto, o relacionamento mútuo dos outsiders, embora em nível mais brando, também apresentava algum tipo de conflito. Percebeu-se, então, a necessidade de analisar não só as relações sociais entre os habitantes dos dois grupos, mas também aquelas exercidas pelos moradores dos conjuntos entre si, para que a condução do trabalho abrangesse um espectro mais amplo no que dizia respeito à sua cotidianidade. Na verdade, essa deveria ser uma medida de amplo sentido, como forma de efetivar melhorias de relacionamento.
6.1
As práticas sociais entre grupos no espaço
A tendência universal que se verifica quando dois grupos de origens diferenciadas se aproximam resulta em divergências, cuja intensidade se manifesta na proporção das diferenças sociais, econômicas e culturais dos mesmos. Essas circunstâncias despertaram a atenção de variados autores. Dentre eles, podemos recorrer a Freud (1997, p. 65-68), que, conforme seu profundo conhecimento da natureza humana, assim as interpreta: “o ser humano apresenta uma predisposição à agressividade e se uma pessoa for estranha para mim e não conseguir atrair-me por um de seus próprios valores, me será muito difícil amá-la”. Na verdade, não precisa apenas amar; é necessário, antes de tudo, respeitar. Assim, poderia haver a tendência de esse estranho, mediante estímulos decorrentes da implantação de equipamentos e eventos, estreitar suas relações no cotidiano.
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Para esse autor, a existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a tão elevado dispêndio de energia. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê, permanentemente, ameaçada de desintegração, pois as paixões instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis. O fato, pela sua freqüência e constância demonstradas , realmente absorve energias a ponto de requerer atenções que, infelizmente, até o presente, não têm sido levadas em conta. Mas que norteiam, fundamentalmente, as recentes soluções que implicam em aproximações dos grupos. Cabe lembrar, então, Bourdieu (1998a), que afirma que se pode ocupar, fisicamente, um habitat, sem habitá-lo propriamente, falando se não se dispõem dos meios tacitamente exigidos, a começar por um certo hábito. Esse autor lembra que o hábito contribui para fazer o habitat, através dos costumes sociais mais ou menos adequados, que ele estimula a fazer. Nesse sentido, existe a crença de que a aproximação espacial de agentes muito distantes no espaço social pode ter um efeito de aproximação social. E, assim, ele conclui: “nada é mais intolerá vel que a proximidade física (vivenciada como promiscuidade) de pessoas socialmente distantes” (BOURDIEU, 1998a, p. 165). Atenção especial deve ser dada ao cotidiano, pois ele contém elementos e fatos que podem arrefecer os aspectos negativos dessa intolerância citada. Aliás, a existência de conflitos dessa natureza, retratada por Norbert Elias e John Scotson (2000), demonstra que a forma original predominante da apropriação do espaço pelos estabelecidos sofria o impacto da dos outsiders. O que mais chamou a atenção no estudo dos pesquisadores é que não havia diferenciação de classe social, étnica, racial, crença religiosa ou econômica entre os dois grupos, pois todos os seus componentes eram trabalhadores da mesma fábrica, exercendo funções semelhantes, com renda e nível educacional iguais. O único elemento distintivo entre eles foi o tempo de moradia no local. Isso, no entender deles, não se configurava como diferença entre classes; aliás, a diferenciação se dava intraclasse. É oportuna uma referência ao es tudo de Bosi (1983), que recupera a história da cidade de São Paulo através de depoimentos de velhos moradores, bem como ao
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trabalho de Teixeira (1996) sobre o antigo bairro Floresta em Belo Horizonte. O tempo de permanência no mesmo lugar estratifica as relações de afeto e os hábitos das pessoas, retratando maior identificação do grupo com o lugar que, por sua vez, estigmatiza aqueles que não construíram com ele o seu cotidiano. De fato, o tempo de permanência no local poderia criar “o grau de coesão grupal, a identificação coletiva e as normas comuns capazes de induzir à euforia gratificante que acompanha a consciência de pertencer a um grupo de valor superior, com desprezo complementar por outros grupos ” (ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 21). O alto grau de coes ão de famílias que se conheciam por duas ou três gerações tornava os recém -chegados estranhos, não apenas para os antigos residentes, como também para eles próprios. O maior potencial de coesão era ativado pelo controle social dos grupos mais antigos que, para preservar sua identidade e afirmar sua superioridade, usavam como armas poderosas a exclusão e a estigmatização. Na verdade, as condições de análise do presente trabalho parecem semelhantes às dos estudos citados, porém ultrapassam esse nível, pois contemplam, ainda, divergências e distanciamento nas relações sociais entre os dois grupos, provocados, no mínimo, pelos aspectos econômicos e culturais.
6.1.1
A intolerância entre os pobres
A agressividade de grupos diversos em contatos iniciais é intensa em virtude da diferenciação, mas tende a se atenuar. Nesse sentido, Freud (1997, p. 71) afirma que a agressividade entre os indivíduos é uma forma de hostilidade contra intrusos, exemplificada nas comunidades com territórios adjacentes que se relacionavam, mas se empenhavam em manter rixas constantes, ridicularizando umas às outras. Esse fenômeno foi identificado por ele como narcisismo das pequenas diferenças . Na verdade, segundo esse estudioso, a agressividade constitui a base de toda relação de afeto e amor entre as pessoas. Ela é retratada pela coesão entre os membros da comunidade e constitui um dos vínculos de uma sociedade através das identificações dos seus membros uns com os outros. Na medida em que a manifestação da comunidade passa a refletir unicamente um pensamento, esse único torna-se perigoso.
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De fato, conforme observa Eco (2000, p. 17), não gostamos dos que são diferentes de nós, “porque têm uma cor diferente de pele, porque falam uma língua que não entendemos, porque comem rã, cachorro, macaco, porco, alho, porque usam tatuagem”. É verdade que essa reação se limita ao contato inicial, em que sua intensidade e sua duração, que se configuram nas diferenças sociais, culturais e econômicas, tendem a se atenuar. Joseph (2000, p. 66) percebe essa dinâmica ao expressar que “o mal-estar dos contatos mistos é uma cena primitiva da sociologia, porque nos revela a tensão criada pelas relações sociais”. Sob esse aspecto, é visível que a pobreza poderia ser um dos principais fatores que levam ao agravamento da distância entre grupos nas sociedades modernas. Ela não se configura simplesmente pela falta de bens materiais; ela corresponde a um estado social específico, inferior e desvalorizado, marcando profundamente a identidade daqueles que nela vivem. Segundo estudos realizados por Paugam (2002), na mentalidade coletiva moderna, a pobreza é percebida de maneira unicamente negativa; ela se torna “o símbolo do revés social e se traduz muitas vezes na existência humana por uma degradação moral” (PAUGAM, 2002, p. 16). Assim, a intolerância mais perigosa é sempre aquela que, na ausência de qualquer doutrina, nasce dos impulsos elementares; por isso é que ela é difícil de ser identificada e combatida com a ajuda de argumentos racionais e, nesse sentido, “a intolerância mais terrível é a dos pobres, que são as vítimas da indiferença” (ECO, 2000, p. 18-19). Essa mesma opinião é compartilhada pelo padre Joseph Wresinski nos estudos de Gaulle -Anthonioz (2000, p. 158): mais inesperada é a intolerância entre os pobres. Sua existência deve fortalecer nossa recusa à miséria e baseá-la em uma visão da realidade, tão exata quanto possível, para evitar, ao máximo, os bons sentimentos e uma certa ingenuidade [...] em terra de miséria, os ideais, certamente, são muitos, mas estão em contradição com as realidades da vida e as pessoas não podem se organizar para vivê los em conjunto.
E esse estudioso vai além: “Eis toda a tragédia da miséria. Ter privado um homem da cultura é mais grave que tê -lo privado do pão. Não lhe demos a possibilidade de se identificar com um ideal”.
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Os pobres, para Paugam (2002, p. 3), não são somente aqueles privados de recursos econômicos, mas também os que exercem pouca influência sobre o poder político, sendo que sua respeitabilidade corresponde geralmente à sua posição social inferior. A nova pobreza remete a várias evoluções simultâneas, em particular, à degradação do mercado de trabalho com a multiplicação dos empregos instáveis e ao forte crescimento do desemprego, assim como ao enfraquecimento das ligações s ociais cujos principais sintomas são o aumento das rupturas conjugais e o declínio das solidariedades de classe e de proximidade. Mesmo que a situação abordada no presente trabalho não represente os casos extremos aqui citados, cabe incluir previsões dos autores seguintes, no sentido de caracterizar situações que inevitavelmente venham a ocorrer. Tal situação torna-se ainda mais perversa à medida que o pobre passa de uma identidade já negativa, uma espécie de não-identidade, de não-existência administrativa, ao desaparecimento de qualquer registro. Joseph Wresinski afirma que “o mal maior da pobreza extrema é viver como um morto -vivo durante toda a existência, não conseguir ser levado em conta por ninguém, a ponto de até mesmo seus sofrimentos serem ignorados” (GAULLE-ANTHONIOZ, 2000, p. 157). No entanto, repetimos que, no presente estudo, as intenções definidas pelos entrevistados levam, no mínimo, no caso de não ocorrer a indispensável orientação dos órgãos competentes, aos ajustamentos naturais que ocorrem no território urbano da capital. Nesse sentido, se existe uma expressão do local, a relação progressiva com ele se faz gradual e conjuntamente, no sentimento dos seus ocupantes, através de processos cumulativos de trocas entre as pessoas. Por isso, a vizinhança existe sem organização formal (PARK, 1973, p. 32). Acontece que a implantação dos conjuntos Goiânia e Araguaia é uma formalização física e material, que certamente tem influenciado nas relações sociais dos moradores, especialmente pelo fato de todos eles terem apropriado esses conjuntos simultaneamente.
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6.2
As práticas sociais nos conjuntos
Na pesquisa, durante os contatos iniciais com os moradores dos conjuntos Goiânia e Araguaia, foi constatado que não só as relações entre os estabelecidos e os outsiders se apresentavam conflituosas. Verificou-se também que o convívio entre os moradores dos conjuntos indicava situações semelhantes. Ao se efetivar a pesquisa, o que chamou atenção foi que 41% dos residentes de ambos os conjuntos, conforme indicado na TAB. 29, não tinham qualquer tipo de convivência com os demais membros internos, enquanto 26% do Goiânia e 21% do Araguaia afirmavam que só se cumprimentavam nas suas relações cotidianas e ainda havia quem, em menor proporção, não tivesse bom relacionamento com os demais, que compreendia 2% no primeiro grupo e 3% no segundo. TABELA 29 Relacionamento entre moradores dos conjuntos Tipo de Relacionamento
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Não tem co nvivência
16
41
12
41
28
41
Boa convivência
12
31
10
35
22
32
Só cumprimenta
10
26
6
21
16
24
Não tem bom relacionamento
1
2
1
3
2
3
Total de incidências
39
100
29
100
68
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Tal desarticulação provocou a ausência de qualquer representatividade dessas comunidades ou de uma liderança que respondesse por ela. Esse fato foi comprovado durante as discussões da II Conferência Municipal de Habitação, realizada em Belo Horizonte, em dezembro de 2001, onde não havia representantes de ambos os conjuntos. Aliás, Ribeiro (2000, p. 20) considera que a liderança é reconhecida a partir da sua identificação com o domínio de informação sobre o espaço analisado, com o contato freqüente com responsáveis pelas intervenções, assessores e mediadores, com a experiência em práticas de organização e mobilização e com a capacidade de estimular e orientar a participação dos moradores. Além do mais, para melhor entendimento do relacionamento entre as pessoas, Joseph (2000, p. 65-66) afirma
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que é necessária a participação no grupo, e esse grupo passa a se configurar como tal quando representa uma organização social cujos elementos são indivíduos que se percebem como membros e que percebem a organização como entidade coletiva distinta, separada das relações particulares que eles mantêm entre si. Mesmo assim, segundo essa autora, na maioria dos casos, torna-se difícil reconhecer lideranças, visto que, por princípio, a comunidade encontra-se mobilizada e representada nas arenas construídas pela intervenção urbana. Esse fato não se verificou nos conjuntos, pois a competição entre seus membros se sobrepôs à sua participação na comunidade (RIBEIRO, 2000, p. 20). Manifestações de moradores dos conjuntos Goiânia e Araguaia retratara m bem a falta de lideranças representativas, característica comum aos mesmos, o que foi bem observado por um residente do Goiânia: “Pra mim, a coisa mais importante agora no conjunto é fazer uma sindicância pra melhorar o conjunto. Se não tirar uma pessoa de frente pra tomar conta das coisas, nada vai pra frente” (desempregado, 53, 39G). Esse depoimento manifesta rara consciência capaz de indicar uma potencialidade de liderança, embora não ficasse explícita sua disposição em exercêla. Vários depoimentos demonstraram a necessidade de melhorar o entrosamento entre os moradores, relacionado, em grande parte, com as diferenças entre as pessoas, o que não impedia, no entanto, que permanecesse a característica de grupo: “Antigamente quando a gente mudou pra cá, o pessoal era mais uma família. Hoje são poucas as pessoas unidas. Não é mais uma família. A gente era mais unido” (faxineira, 32, 14G). “Pra mim, o conjunto é uma comunidade de pessoas. Aqui era pra ter mais entrosamento, mas não tem. Tem muito tipo de pes soas diferentes. Precisava ter mais entendimento entre as famílias. Falta união” (dona de casa, 35, 10G). Não há, portanto, expectativa de uma liderança, pelo menos até que apareça um fato novo que possa criar objetivos comuns nos dois grupos. Isso mostra, conforme Elias e Scotson (2000, p. 166-179) afirmam, que os grupos residenciais de famílias que constroem lares com certo grau de permanência suscitam problemas próprios, cuja compreensão é fundamental para a constituição da comunidade como comunidade. De fato, no caso em estudo, essa coesão dos
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moradores dos conjuntos é passível de ocorrer. Mediante uma ação conjunta com os órgãos competentes, no que diz respeito ao cotidiano, essas populações poderão atingir a situação prevista pelos autores e serem conduzidas pelo complexo caminho institucional que leva ao objetivo final, que é a regularização fundiária. Na pesquisa, foi constatado que a maior parte dos habitantes dos conjuntos não se relacionava com seus vizinhos, e foi demonstrado, por outro lado, que havia ambiente da boa convivência para 31% dos habitantes do Goiânia e para 35% do Araguaia, de acordo com a TAB. 29. Essas aproximações foram naturais, decorrentes do relacionamento construído ao longo da história de vida comum dessas
pessoas,
desde
o
tempo em que elas estiveram alojadas nos
acampamentos: “Tenho boa convivência com todo mundo, mas é cada um na sua” (dona de boteco, 37, 15G). “Graças a Deus, convivo bem com todo mundo. É só com essa mulher que sumiu, que não. Ela atrapalhou o conjunto. Ela mexia com droga e teve que fugir” (pedinte, 64, 19A). “Sou amiga da Etelina e da Nora. O resto eu conheço de vista. A gente se conhece desde o acampamento e foi aprofundando nossa amizade com o passar dos anos” (dona de casa, 48, 26G). “Convivo com a maioria, mas vou mais na casa da Rute. Ela é a mãezona de todos nós” (dona de casa, 44, 25A). Como todo o espaço livre dos conjuntos já tem destinações, não há possibilidade de implantação de equipamentos que poderiam contribuir para que as relações cotidianas entre os outsiders se estreitassem no seu interior. A menos que a URBEL promova um reajustamento dos usos desses espaços livres. Embora grande parte dos habitantes dos conjuntos se identificasse com o local, foi constatada, na pesquisa, a necessidade de alguns deles se isolarem para se proteger, não se comprometer e resguardar a privacidade da família. Havia aqueles que faziam questão de demonstrar total isolamento, manifestando sua discriminação em relação aos membros do grupo ao qual pertenciam formalmente: “Não tenho intimidade com ninguém; não converso com ninguém para falar se aqui é bom” (bordadeira, 26, 20A). “Só conheço as pessoas de vista. É meu jeito de ser: evitar ter contato pra não ter problemas” (vendedora, 28, 12A). “Não sou conhecida do pessoal; eles são do Jatobá 4” – acampamento onde se estabeleceram vários desabrigados do programa Área de Risco – (aposentada, 51, 11A). Essas afirmações partiram de pessoas que enfrentaram situações diferenciadas, pois não pertenciam ao grupo original que vinha convivendo desde o início do processo.
210
Outros entrevistados valorizavam sua moradia, mas mantinham distância em relação aos vizinhos do conjunto: “Gosto mesmo é da minha casa. A gente avista ela lá de longe. Mas eu não gosto de me misturar não” (dona de casa, 48, 26G). Os questionários mostraram outros graves problemas que dificultaram o relacionamento entre os moradores dos conjuntos: o tráfico de droga e o mau comportamento dos vizinhos. As brigas dentro dos conjuntos provocaram desavenças entre os habitantes do Goiânia e do Araguaia, pois a maioria das pessoas que ali residia se sentia ameaçada e amedrontada. Essas realidades inevitáveis, em casos dessa natureza, como o consumo de drogas, retrataram uma nova prática social, que diferenciava as pessoas. A convivência com esse mundo era uma coisa inevitável: crianças estavam habituadas a brincar nos espaços coletivos, principalmente nas ruas internas, enquanto jovens sentados nos passeios consumiam drogas. Alguns moradores conviviam naturalmente com a situação e, de certa maneira, eram coniventes com os traficantes: “Eles não amolam. Não tenho coragem de entregar ninguém, porque eles não mexem com a gente” (dona de casa, 60, 17G). “Os detetives vieram me perguntar se eu sabia de alguma coisa sobre o pessoal da droga, mas eu não falei nada. Não tô aqui pra morrer de graça não” (dona de casa, 48, 26G). Obviamente, os habitantes dos conjuntos se sentiam ameaçados, temendo represálias, quando comentavam que havia pessoas no conjunto envolvidas com droga: “Os maconheiros são o maior problema do conjunto. Eles não gostam que a gente fala. Eles marcam a gente” (doméstica, 43, 18A). “Tem muita falta de união entre os moradores. Com isso, está tendo infiltração de pessoas com outros hábitos dentro do conjunto; com droga, num sabe?” (pedreiro, 53, 39G). “Tem os que vêm de fora. Falar, ninguém fala” (dona de casa, 60, 23G). Aliás, todos nos conjuntos sabiam quem eram os envolvidos com droga. Grande parte dos vizinhos se relacionava socialmente com eles, mas temia a possibilidade de ser identificada por terceiros, como integrante do grupo de marginais, o que significava que eles seriam estigmatizados como traficantes ou usuários da mesma. Por isso, evitavam contatos. Até mesmo utilizavam outra denominação para se referirem a eles: malandragem, coisa estranha, porcariada, bandidagem, todos
211
esses termos indicando algum tipo de negação ou rejeição. Em alguns casos, chegavam até a afirmar que os usuários de drogas eram provenientes das favelas localizadas nas proximidades: “Não tenho nada a reclamar do conjunto. Fico mais dentro de casa. Os vizinhos são maravilhosos, mas tem dia que dá vontade de sumir, por causa dessa malandragem” (dona de casa, 42, 30G). “Tem muita porcariada nesse lugar. Não resolve a polícia entrar e prender só alguns” (catadora, 63, 7A). “O povo de fora, com a bandidagem, é o maior problema do conjunto. Eles vêm aqui e roubam. A polícia tem que freqüentar mais esse lado. Na verdade, o contato com eles aqui é com o pessoal da casa 38” (dona de casa, 60, 36G). Pôde-se observar que alguns dos que mudaram posteriormente para os conjuntos não se sentiam como parte integrante do grupo, chegando a apresentar, também, distanciamento dos moradores, como foi demonstrado no depoimento de uma nova residente: “O que eu acho bonito é a união deles; eles brigam, mas continuam unidos” (dona de casa, 37, 13A). Observa -se como a recém-chegada se distancia da condição de membro do grupo. Assim, mais uma vez, percebe-se que a intenção dos empreendedores e arquitetos de implantar racionalmente as edificações não aconteceu após a ocupação dos mesmos, não só sob o aspecto físico, mas também sob o ponto de vista das relações sociais. Além disso, o entrosamento entre os habitantes dos conjuntos foi agravado pela interrupção dos procedimentos de assistência às comunidades, especialmente no campo social. O trabalho de informação dos passos da implantação dos conjuntos, bem como da integração entre elas, através do incentivo de atividades comuns, seriam bons exemplos de continuidade do processo de ocupação.
6.3
As práticas sociais conjunto-bairro
Desde o início da implantação dos conjuntos que as manifestações dos habitantes dos bairros Alvorada e Araguaia expressaram opiniões desfavoráveis ao empreendimento. Primeiro, porque a ocupação das áreas livres não se verificou de acordo com a expectativa da maioria, que pretendia uma vizinhança com características
e
padrões
semelhantes
à
existente;
segundo,
porque
a
212
desvalorização dos seus imóveis foi conseqüência imediata da implantação dos mesmos e, por último, porque os novos moradores se tornaram ameaça constante para os que ali residiam, pois eram vistos pelos já estabelecidos como indivíduos desconhecidos e de origem duvidosa. Além disso, o fato de todo esse novo grupo chegar ao local ao mesmo tempo, também era considerado ameaçador para grande parte de quem já residia ali, que preferiu se isolar ou até mesmo apresentar relações de intolerância ao novo grupo.
6.3.1
“Um estranho no ninho”
Elias e Scotson (2000), na sua pesquisa, afirmam que, num núcleo de residentes antigos, era atribuído um valor elevado aos padrões, às normas e ao estilo de vida que eles haviam criado entre si. Tudo isso tinha, segundo eles, uma estreita ligação com o respeito próprio e pelo que eles julgavam que lhes seria devido por aqueles que não construíram com eles esses valores. Os recém-chegados que se fixaram no loteamento foram vistos como uma ameaça a essa ordem, não porque tivessem qualquer intenção de perturbá-la, mas porque o seu comportamento levava os velhos residentes a achar que qualquer contato estreito com eles rebaixaria seu próprio status, que os arrastaria para baixo, para um status inferior em sua própria estima e na do mundo em geral, e que reduziria o prestígio de seu bairro, com todas as possibilidades de orgulho e satisfação que lhe estavam ligadas (ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 167).
Os moradores dos bairros Alvorada e Araguaia adotaram processos semelhantes no movimento contra a construção dos conjuntos, que eram, na maioria das vezes, mal vistos e causavam reações extremadas da parte dos estabelecidos. Ao mesmo tempo, receavam que os hábitos desenvolvidos pela maioria dos moradores até então fossem alterados ou subvertidos, como lembra Silva (1987). Essa reação gerou indisposição no relacionamento com os membros do outro grupo, que os obrigava a conviver com esse outro desigual e desconhecido que chegava. O contato com a diferença chegou a criar obstáculos para o respeito às normas de tal convivência: “Fui contra a vinda do conjunto pra cá. Desde o início achei que ia dar problema. No início, já vi de cara. Atualmente, as pessoas que apoiaram estão super-arrependidas” (dona de casa, 51, 42A). “No começo, eu achava que seria uma coisa mais bem organizada, que fossem pessoas selecionadas, como foi dito na
213
reunião: seriam pessoas que perderam suas casas, porque iam abrir ruas onde elas moravam. Houve muita discussão e fui taxada como a ‘riquinha do bairro’, porque não queria pobre aqui” (vendedora, 47, 36A). “Eu já não esperava coisa boa. Participei do movimento contra ele desde o começo: paguei até advogado. Teve gente que falou que não ia ter problema, que, no futuro, a gente ia comprando as casinhas aos poucos e transformava tudo em prédios” (aposentado, 69, 52G). Os depoimentos confirmaram a desconfiança em relação aos resultados do impacto da construção dos conjuntos, que eles consideravam negativos, o que se verificou na realidade. Desses comentários, pode-se concluir que a população não foi integralmente informada quanto a aspectos e características do novo grupo a ser atendido. Para os moradores dos bairros Alvorada e Araguaia, os modos de vida dos outsiders apresentavam grande distanciamento nas condições econômicas, culturais e sociais em relação a eles, o que era expresso nos níveis de educação, de higiene, de cultura e de acesso ao mercado de trabalho. Além do mais, grande parte dessa população já residia no local há mais de 30 anos, com alto nível de coesão. Sob esse ponto de vista, a coesão entre os estabelecidos no Alvorada e no Araguaia apresentou um índice mais alto do que o predominante nos conjuntos. Isso leva, para os seus membros, “as posições sociais com potencial de poder mais elevado, excluindo dessa posição os membros dos outros grupos” (ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 22), conforme os depoimentos: “A diferença está no estilo. Só de olhar para as pessoas, a gente sabe que elas são diferentes. Só andam bêbados, não trabalham. Os moradores do bairro são proprietários, são de classe média, de nível; os do conjunto não” (vendedora, 47, 36A). “Tem muita diferenç a no modo de viver. Lá é outro nível de convivência. Todo mundo diferente, completamente diferente. Eu não vou misturar com eles lá. Vou ficar no meu cantinho. Pra quê que eu vou lá?” (dona de casa, 70, 43A). “No bairro, todo mundo trabalha. Ali eles não trabalham, a rua fica cheia de desocupados o dia inteiro. Alguém bebe no sábado e a gente finge que não vê, porque tem muita gente dopada” (vendedora, 41, 43A). “No conjunto, é uma meninada na rua, invadem a rua, os pais não ligam. Não é um ambiente que a gente está acostumada” (dona de casa, 62, 35A).
214
Poder-s e-ia admitir que, com o passar do tempo, tais reações seriam amenizadas. Isso não se verificou com tanta evidência e tão rapidamente, pois indagados sobre o que significava morar próximo a um conjunto habitacional, tanto os habitantes do Alvorada como os do Araguaia ainda manifestavam certa intolerância em relação aos novos vizinhos. Assim como aconteceu entre os outsiders, o principal fator que levou a esse distanciamento foi a falta de segurança que, na maioria das vezes, se vinculava às drogas para 60% dos habitantes do Alvorada e para 35% do Araguaia, como indica a TAB. 30: “A única coisa é que não tem sossego para sair de casa depois das nove. Tenho que voltar de táxi, pois os malandros já estão na rua” (artesã, 29, 51G). “Ter um conjunto perto de casa é muito risco. Apesar deles ficarem pra lá, tem a questão da segurança. Depois deles, teve mais assalto na região” (aposentado, 59, 53G). “A única coisa que eu tenho medo é da violência. Não é pelo fato de ser conjunto; é pelos desempregados, porque eles arranjam uma forma mais fácil de ganhar dinheiro, o que se torna uma ameaça pra nós ” (orientadora educacional, 49, 40G). TABELA 30 O que significa morar próximo a um conjunto habitacional Alvorada
Fator
Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Insegurança
9
60
6
35
15
47
Indiferença
5
34
2
12
7
22
Distanciamento
-
-
6
35
6
19
Vandalismo
1
6
1
6
2
6
Sujeira
-
-
1
6
1
3
Antes de construir era pior
-
-
1
6
1
3
Total de incidências
15
100
17
100
32
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Pode-se afirmar que esse é um fenômeno comum a todos os centros urbanos, mas como os moradores dos conjuntos representavam o diferente e o ameaçador, eles se tornaram para os estabelecidos um valor humano inferior ao que eles se atribuíam. Aliás, o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao de menor peso social costuma penetrar na auto-imagem desse último e, com isso, enfraquecêlo e desarmá-lo (ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 24). As respostas dos moradores dos bairros Alvorada e Araguaia podem ilustrar essa diferença social atribuída: “A
215
diferença é muito grande, porque infelizmente tem muita gente que separa: tem droga, tem ladrão. A diferença é essa e é deles também. Eles são os pobres e nós os doutores. Isto gera distância” (professora, 39, 50G). “A diferença existe em tudo: na educação, na higiene e no comportamento ” (artesã, 29, 51G). “Eles me parecem revoltados: batem campainha e pedem pão. Se você não dá, eles fecham a cara, ficam revoltados e falam palavrão” (dona de casa, 37, 45G). Essas reações demonstram que nesse grupo ainda se mantêm atitudes de preconceito. Na verdade, o impacto foi real sobre os modos de vida de ambos os grupos, mas o que agravou essas reações contrárias à implantação dos conjuntos foram essas atitudes preconceituosas. A situação de morar próximo a esses estranhos era entendida pelos estabelecidos como proximidade à favela, vista com preconceito e distanciamento, o que reforçava ainda mais a diferença entre os dois grupos: “O conjunto é um problema, porque o povo é estranho. Eles causam medo na gente. O tempo inteiro que a gente passa por ali, está aquele bolo de gente: um tanto de homem e mulher bêbados. É deprimente!” (orientadora educacional, 49, 40G). Mais uma vez, para os estabelecidos dos bairros Alvorada e Araguaia, morar próximo a um conjunto habitacional passava a significar proximidade com os outros que eram diferentes, o que poderia ser entendido como ameaça, relacionada à insegurança e à distância social: “Todo mundo tem oportunidade de ter uma casa. Eles deveriam viver bem sem trair a gente. A gente os acolheu. Nós não ganhamos nada com isso. Só perdemos. Temos que ser solidários, mas ficou difícil” (corretor, 59, 42A). “Pra mim, não significa nada. Não dou confiança, não bato papo. É eles pra lá e eu pra cá. Quando eles mudaram, era faca pra cá, faca pra lá. Os ladrões foram embora, mas têm muitos por lá que mexem com maconha” (aposentada, 70, 33A). “O conjunto não ameaçou quando veio: era mais novo, mais limpo, tinha umas casinhas coloridas. Com o passar do tempo, perdeu e deu no que deu” (técnica laboratorial, 38, 48G). Vê-se que os impactos dessa implantação no local transcenderam aspectos físicos, mesmo que tenha se tornado evidente a descaracterização dos conjuntos e resultaram, também, em constrangimentos sociais, o que confirma as relações de exclusão percebidas.
216
Como foi bem exposto por Elias e Scotson, as diferenças nos modos de vida dos moradores dos conjuntos e dos bairros implicam no distanciamento entre eles: os sintomas de inferioridade que os grupos estabelecidos muito poderosos mais tendem a identificar nos grupos outsiders de baixo poder e que servem a seus membros com justificação de seu status elevado e prova do seu valor superior costumam ser gerados nos membros do grupo inferior – inferior em termos de sua relação de forças- pelas próprias condições de sua posição de outsiders e pela humilhação e opressão que lhe são concomitantes (ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 28).
Essa relação de poder foi expressa pelos entrevistados: “As pessoas não estão preparadas pra viver no meio da gente. Já são assim e não mudam de uma hora pra outra. Fica uma convivência difícil” (costureira, 45, 38A). “Pra gente que mora aqui, com plicou bastante: o pessoal gosta de ficar à toa e não gosta de trabalhar; tem muita gente estranha. Aqui era mais tranqüilo. Hoje é difícil não ver um policial fazendo ocorrência” (gerente de loja, 45, 32A). “Na questão social, eles são muito diferentes. A impressão que se tem do conjunto é quase uma favela. Acaba intimidando as pessoas. Você tem que ficar com tudo trancado” (professora, 25, 43G). Além disso, o preconceito passa a ser incorporado a outros tipos de sentimentos mantidos pela população dos bairros. Ainda Elias e Scotson (2000, p. 177) elevam essa percepção como um importante pano de fundo para afirmá-lo no contexto “como mais um aspecto das crenças sociais de um grupo estabelecido, em defesa de seu status e poder contra o que é sentido como uma agressão dos outsiders ”. Os depoimentos de moradores do Goiânia podem ilustrar essa rejeição manifesta: “Eles sentem que são discriminados, que a gente não trata todos como gente, mas nós somos felizes. Eu não falo favela, falo conjunto. É uma palavra meio pesada. Eles mesmos são diferentes com a gente, mas não podem reclamar” (costureira, 59, 49G). “Não dou a menor confiança pra esse povo que mora aí. Nem penso em entrar lá” (dona de casa, 37, 45G). Essa realidade constitui mais um argumento que reforça a necessidade de reaproximação da URBEL, para que, conjuntamente com a população envolvida, alcancem melhores condições de convívio. Felizmente, as opiniões não são unânimes; elas são variáveis e têm gradações, o que constitui um atenuante nos
217
esforços de conciliação. Além disso, a intolerância dos outsiders não apresenta a mesma
intensidade,
circunstância
que
faz
prever
otimismo
quanto
ao
relacionamento entre os dois grupos no futuro. Mesmo acontecendo várias reações dos estabelecidos contra a implantação dos conjuntos, surgiram depoimentos favoráveis à sua construção, chegando até a retratar certa conformidade com a situação. Essas pessoas admitiam que, como cidadãos, os novos habitantes teriam direito à moradia: “Aceitei. Quando as pessoas estavam no Jatobá, nós fomos lá visitá-los. Aceitamos na época, porque era Campanha da Fraternidade, era o ano dos sem -terra” (dona de casa, 62, 35A). “O pessoal precisava de casa e ficamos sensibilizados. Meu marido foi contra e eu fiquei dividida. Quem mandava mesmo era a Prefeitura; a gente não podia ir contra” (dona de casa, 37, 13A). “Não tive nada contra; nem liguei. Tudo é válido. Eles precisavam de um lugar pra morar” (aposentada, 62, 46G). Mas até mesmo quando tratavam com naturalidade a presença de um assentamento nas proximidades, muitos entrevistados não deixavam de apresentá -lo como diferente em relação ao contexto em que viviam: “O conjunto não influenciou na qualidade do bairro não, porque em todos os lugares da cidade tem favela perto” (vendedora, 41, 40A). “Pra mim, todos nós temos direito à moradia. É um direito que Deus deixou pra nós como ser humano. Agora, problema traz problema: o bairro foi planejado para um certo tipo de pessoas e chegam essas pessoas daí. Dá muito problema, muita briga” (aposentado, 58, 54G). Apesar de não apresentarem distanciamento explícito no relacionamento com o outro grupo, os estabelecidos do bairro Araguaia também depreciavam o comportamento dos moradores das casinhas azuis , tratamento dado ao conjunto Araguaia na época da implantação. Uma das moradoras, que alugou uma residência no bairro há dois anos, alegou que não conhecia as casinhas azuis, pois se soubesse da existência do conjunto, não teria feito a negociação. Outro fato curioso chamou a atenção: foi construído um prédio em frente ao conjunto Araguaia, na rua Amparo da Serra, no final de 2000. Dos 16 apartamentos disponíveis, somente oito deles tinham sido vendidos até março de 2003, apesar de anunciados com freqüência pelos meios de comunicação. O principal motivo
218
apres entado pelos pretendentes, para que a negociação não se realizasse, foi a proximidade do conjunto.
FIGURA 58 Vista da esquina das ruas Amparo da Serra e Coronel Severiano no bairro Araguaia Fonte: Acervo particular da autora.
Por outro lado, pode-se perceber que, já na época da pesquisa, aparecem sintomas de uma natural aproximação entre os dois grupos, mas mesmo assim, a relação de superioridade dos antigos moradores, comentada por Elias e Scotson, se faz presente, como mostram os depoimentos: “Eles já civilizaram. Mesmo assim, eu tomo cuidado. Nossa rua era sossegada antes do conjunto” (desempregada, 55, 41A). “Não concordei quando eles vieram pra cá. Fui contra; cheguei até a ir na Câmara dos Vereadores, mas não adiantou. Atrapalhou, mas está dando pra levar: agora não está tão ruim assim. Eles não perturbam tanto” (costureira, 59, 49G). Algumas manifestações indicaram que já tinha havido melhora no comportamento dos outsiders, a partir da sua convivência com a comunidade ali estabelecida anteriormente: “É a mesma coisa; não altera nada. Já foi pior do que é hoje. Tinha muita briga, muito barulho. Agora, graças a Deus, eles estão mais civilizados ” (dona de casa, 62, 35A). “Depende muito das pessoas que moram nos conjuntos. Não som os contra os conjuntos. Queremos pessoas selecionadas para termos tranqüilidade” (almoxarife, 39, 44G). Observações de campo mostraram que grande parte das antigas residências do bairro apresentava muro alto ou grade na frente, sendo que algumas delas sequer tinham campainha. Perguntados sobre a falta desse equipamento, os proprietários responderam que não gostariam de ser importunados pelos novos vizinhos, pois quando eles mudaram para o local, tocavam esse dispositivo ininterruptamente. A estigmatização e a busca da tranqüilidade passaram a fazer parte dos hábitos da comunidade existente, como forma de ajustamentos iniciais no contato com a nova
219
vizinhança. É verdade que sempre haverá manifestações comuns a relacionamentos que ocorrem em qualquer setor urb ano. Mas nem sempre, como no caso em estudo, em que a intolerância seja pouco significativa. Os moradores dos bairros viam como solução o afastamento físico do conjunto, para que não houvesse ameaça ou qualquer impacto conseqüente da implantação desses assentamentos, sempre ressaltando a diferença entre os grupos : “A URBEL devia arrumar uma área um pouco mais distante, que não fosse misturada com a gente. Tem muita gente boa, mas tem muita droga” (desempregada, 55, 41G). “Não poderia nem começar a construir o conjunto; tem lugares bons pra construir conjuntos, mas não é aqui no Goiânia. Tinha que colocar esse povo mais isolado, em lugar mais apropriado” (artesã, 29, 51G). “Eu sugeri que fizessem um posto de saúde ou policial, de utilidade pública e construís se o conjunto num terreno mais distante” (aposentado, 52, 30A). “Devia construir o conjunto em outro lugar, com pessoas de mais ou menos o mesmo tipo de vida. Pra eles, está tudo normal” (costureira, 45, 38A).
6.3.1.1
Relacionamento entre os dois grupos: o olhar dos estabelecidos
A pesquisa indicou as formas em que ocorrem as práticas sociais entre os habitantes dos bairros Alvorada e Araguaia. Ao serem questionados sobre o relacionamento com os outsiders, cerca de metade dos estabelecidos entrevistados demonstrou indiferença em relação aos primeiros, conforme a TAB. 31. Eles alegaram que apenas os cumprimentavam, o que representava boa convivência entre eles. Observa -se que só o fato de cumprimentar já era entendido como manter o bom relacionamento com os vizinhos: “Só cumprimento. De primeiro, a gente ainda fazia via-sacra nas casas deles. A relação é muito distante, mas se precisar, estou pronta pra ajudar” (dona de casa, 62, 35A). “Passo e cumprimento por questão de educação. Não desfaço de ninguém. Se eles pedem alguma coisa, dou” (aposentada, 52, 39A). Embora as manifestações representem distanciamento, elas indicam possíveis potencialidades de convivência no futuro.
220
TABELA 31 Relacionamento entre moradores dos bairros e dos conjuntos Olhar dos moradores dos bairros
Alvorada
Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Só cumprimenta
7
47
6
50
13
45
Não tem convivência
7
47
7
43
14
49
Boa convivência
1
6
-
-
1
3
Ajuda quando precisa
-
-
1
7
1
3
Total de incidências
15
100
14
100
29
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Dentre os entrevistados nos bairros, metade deles comprou o lote e construiu a sua casa e a outra metade adquiriu casas de pessoas que desejariam sair do local por causa da implantação do conjunto. Esses novos proprietários, num primeiro momento, não viam os assentamentos como empecilho para os planos futuros; mas, à medida que o tempo passava, o convívio entre os dois grupos foi se tornando difícil. Mas, mesmo assim, seu nível de tolerâ ncia em relação aos outsiders era maior do que o apresentado pelos demais estabelecidos. Isso pode ser explicado pelo fato de esses novos moradores dos bairros não terem participado, ao longo do tempo, da criação das normas que ditavam tacitamente a ordem estabelecida pelo grupo ali instalado. Embora não se verificasse nenhuma manifestação de bom relacionamento dos habitantes do bairro Araguaia com os moradores do conjunto, exemplo de boa relação com a vizinhança do entorno, mesmo que distante, foi constatado por 6% dos residentes do bairro Alvorada: “A meninada brinca na rua nas férias, soltando papagaio. De vez em quando, um sobe no muro e preciso chamar a atenção” (professora, 39, 50G). “Não traz nada de constrangimento. Se você não atinge eles, eles não atingem você” (aposentada, 62, 46G). A chegada voluntária de tais pessoas não causou impactos. Como se vê, as relações entre os grupos são mais conciliadoras . Ao mesmo tempo, 47% dos entrevistados do bairro Alvorada e 43% do Araguaia afirmaram que não têm qualquer tipo de convivência com os participantes do outro grupo e nem fazem questão de incentivá-la. Para eles, a melhor maneira de conviver deveria ser através do distanciamento: “Não converso com ninguém. Não freqüento aquele lugar” (aposentada, 70, 33A). “Não tenho contato com ninguém do conjunto” (dona de casa, 51, 42A). “Não dou confiança pra esse povo que mora aí” (dona de
221
casa, 37, 45G). O distanciamento referido pode ser tomado como decisão comum a situações dessa natureza, resultado de eventuais preconceitos, retratados ao longo do estudo.
6.3.1.2
Relacionamento entre os dois grupos: o olhar dos outsiders
Também sob o ponto de vista dos habitantes dos conjuntos, pôde-se perceber que as relações sociais entre as comunidades dos estabelecidos e dos outsiders não se mostravam freqüentes, já que 43% dos moradores do Goiânia e 27% dos do conjunto Araguaia admitiam que não tinham qualquer convivência com os habitantes dos bairros adjacentes, como demonstra a TAB. 32. Ao verificar a distância física entre esses dois grupos e, ainda, acrescentada a falta de encontros no seu cotidiano, tomamos esse distanciamento como fator positivo. TABELA 32 Relacionamento entre moradores dos conjuntos e dos bairros Olhar do morador dos conjuntos
Conjunto Goiânia
Conjunto Araguaia
Total
absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Não tem convivência
17
43
8
27
25
37
Boa convivência
6
15
10
35
16
24
Só cumprimenta
8
21
5
17
13
19
Não tem bom relacionamento
5
13
2
7
7
10
Ajuda quando precisa
3
8
4
14
7
10
Total de incidências
39
100
29
100
68
100
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Mesmo assim, o cumprimento entre as pessoas dos conjuntos e dos bairros foi considerado como representação do seu relacionamento por somente 21% dos entrevistados no Goiânia e 17% deles no Araguaia. Aliás, as manifestações dos habitantes dos conjuntos indicaram que, mesmo havendo distanciamento, só o fato de cumprimentar já era positivo e visto com satisfação, como no comentário de uma moradora do conjunto: “Graças a Deus, eu me relaciono muito bem com eles, apesar do pouco contato. Eu só cumprimento eles” (desempregada, 24, 1G). Ainda mais considerando que, da parte do conjunto, as manifestações eram mais amistosas. Fato curioso se refletiu nas respostas de 15% dos outsiders do Goiânia e 35% do Araguaia, mostrando que o convívio entre os dois grupos se manifestava através do
222
bom relacionamento entre eles. Essa situação não foi confirmada pelos moradores dos bairros que, por sua vez, tratavam de manter o maior distanciamento possível com os novos vizinhos. Aliás, para os moradores dos conjuntos, a pior condição de vida existente no local era a rejeição que habitantes do bairro apresentavam por esse grupo. A intolerância do outro grupo em relação a eles se mostra visível nos depoimentos desses outsiders: “O problema do conjunto é a aceitação da população do bairro aí. Eles não conseguem ver a gente como um conjunto. A URBEL deveria ter trabalhado mais a cabeça deles e colocar eles na situação de ter maior aceitação dos moradores daqui, fazer palestras. A gente é como cordeiro no meio dos lobos” (pedreiro, 28, 22A). “Esse povo das casas grandes é muito esquisito. Eles não podem nem ver a gente!” (catadora, 37, 34G). Na verdade, esses outsiders se sentem excluídos e dem onstram intuitivamente um desejo de aproximação. Portanto, a repulsa não é mútua. Para casos como o presente, essa situação deve ser considerada com otimismo. Além disso, as manifestações de expectativa quanto a uma gestão conjunta entre as comunidades e a URBEL criam possibilidades de integração.
6.4
Olhares sobre o futuro
Como se vê, estamos diante de uma situação em que bairros seguiam um processo de urbanização semelhante aos dos demais setores da capital. O impacto da inclusão dos conjuntos habitacionais destinados a grupos social, cultural e economicamente inferiores alterou as expectativas quanto ao seu futuro. A pesquisa realizada confirmou o resultado da solução proposta, na expectativa tanto dos estabelecidos como dos outsiders, referente ao futuro de uma possível comunidade resultante. A expectativa do futuro dos bairros Alvorada e Araguaia foi avaliada pelos outsiders como positiva, com 69% das respostas favoráveis para os entrevistados em ambos os conjuntos, conforme o gráfico 6. No entanto, essa mes ma avaliação não foi seguida pelos habitantes dos bairros, em que 60% das expectativas do Alvorada e 50% do Araguaia observaram o futuro dos bairros com pessimismo.
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GRÁFICO 6 Perspectiva futura dos bairros segundo seus moradores 30
25
20
15
10
5
0 Desenvolvimento
Questões relativas aos conjuntos
Expectativas positivas bairro Alvorada Expectativas positivas bairro Araguaia
Relação entre os dois grupos
Segurança
Expectativas negativas bairro Alvorada Expectativas negativas bairro Araguaia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
As manifestações indicando expectativa positiva quanto ao desenvolvimento dos bairros e, conseqüentemente, dos conjuntos, foi o principal aspecto citado por 51% dos entrevistados do conjunto Goiânia e para 42% dos do Araguaia. Esse otimismo se baseava no aumento do comércio, na construção de novas edificações e na melhoria da infra -estrutura e dos equipamentos urbanos, o que significava, para a população, melhoria das condições objetivas de vida: “Já tem melhorado muito. Hoje nós temos banco, casa de show; muita coisa está melhorando e vai melhorar ainda mais” (dona de casa, 35, 10A). “A tendência é só melhorar. Já mudou muita coisa na avenida: não tinha padaria, depósito de gás e pro futuro vai ser mais desenvolvido” (faxineira, 37, 3G). “O bairro vai melhorar mais ainda. Hoje já tá cheio de casão, umas mansão, que vai valorizar ainda mais a nossa área” (dona de casa, 28, 9G). “Tem muita coisa pra melhorar no bairro, principalmente uma pracinha pras crianças brincá, porque aqui no conjunto é tudo muito espremido” (desempregada, 37, 13G). O desenvolvimento dos bairros Alvorada e Araguaia foi considerado também pelos seus moradores como um dos principais fatores na previsão de sua melhoria para 20% dos habitantes do primeiro e para 29% do segundo, com justificativas semelhantes às do grupo anterior, conforme o GRAF. 7: “Espero que melhore. O Barreiro está expandindo muito. Precisa de uma faculdade e de um posto de saúde” (gerente de loja, 32A). “Precisamos de banco e de correio pra facilitar o pagamento.
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Vai melhorar muito” (corretor, 59, 53G). Deve -se registrar uma curiosa expectativa de otimismo entre membros dos conjuntos e dos bairros, cuja somatória de opiniões constitui uma maioria que certamente absorverá qualquer tentativa de integração. GRÁFICO 7 Perspectiva futura dos bairros segundo moradores dos conjuntos 60
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20
10
0 Desenvolvimento
Questões relativas aos conjuntos
Expectativas positivas conjunto Goiânia Expectativas positivas conjunto Araguaia
Relação entre os dois grupos
Segurança
Expectativas negativas conjunto Goiânia Expectativas negativas conjunto Araguaia
Fonte: Elaborado por Maria Cristina Villefort Teixeira e Beatriz Marinho Gomes com base em pesquisa de campo, 2003.
As referências negativas nos bairros constituíram minoria pouco representativa em relação às expectativas que levassem a agregações: “Não vai melhorar. Não tem ninguém tomando frente de nada; não tem um líder. Eu não vejo ninguém querendo pegar no chifre desse boi. Nós já quisemos fazer uma associação só para os moradores da Fayal” (desempregada, 37, 45G). “Não tem como melhorar. A tendência é estabilizar por aí mesmo. A não ser que se faça algum trabalho social com as diversas comunidades” (dona de casa, 43, 37A). “Vai piorar muito. Não tem ninguém para tomar iniciativa; não tem nenhum político para adotar o bairro. Cada um faz o que quer. O bairro está crescendo, estão construindo, mas não tem um líder. O conjunto desanimou todo mundo. Precisa ter um centro educacional, lazer, mais escolas, mais igreja” (desempregada, 42, 42G). Apesar de manifestações resistentes a uma perspectiva de bom relacionamento entre os dois grupos, os espaços públicos remanescentes nos bairros poderão contribuir para a instalação de equipamentos que serão indutores de toda a população do novo espaço. Esse fato inegavelmente influenciará na convivência futura.
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Outro aspecto a se assinalar é que ainda havia aqueles que acreditavam que um dia essa situação poderá ser amenizada, em função do ajustamento natural que ocorre no cotidiano dessas pessoas. Cabe notar que tais manifestações foram de habitantes dos conjuntos, que desejariam que acontecesse um relacionamento harmonioso entre eles e os estabelecidos : “Vai melhorar. Eles vão perder esse preconceito que existe. Eles vão ver que a gente ganhou as casas. O que aconteceu foi apropriação. O bairro é bom, eles compraram e acham que porque nós ganhamos nossas casas, devemos alguma coisa pra eles” (pedreiro, 28, 22A). “Eu gostaria que melhorasse, mas é difícil entrosar pessoas do bairro com as do conjunto. Só porque a pessoa é pobre, não pode relaxar. Tem que mostrar pros outros moradores o que estamos pensando e que é possível a gente caminhar junto. A manifestação contra a chegada do conjunto foi muito forte. Se na época que mudamos, que era só o povo do conjunto, eles já rejeitavam, agora que tem infiltração do povo da vila São Jorge com as drogas é que não vão aceitar mesmo” (pedreiro, 53, 39G). “Eu espero que melhore. Com o tempo, as pessoas vão convivendo juntas e se entendendo uns com os outros. Todo mundo aqui é bom e não tem motivo pra conviver assim” (doméstica, 43, 18A). Note-se que as manifestações traduzem desejo de aproximação. A segurança era sempre o fator mais significativo apresentado pelos dois grupos, como se pôde ver nas respostas à expectativa dos outsiders no Goiânia e no Araguaia. Isso ameaçava a população, que vislumbrava o agravamento da situação nos bairros: “Se não mudar a droga nas casinhas, só vai piorar. As crianças menores pegam o ritmo dos maiores. Alguns pequenos já estão até fumando. Isso ameaça a gente demais” (artesã, 29, 51G). “Deveria melhorar, mas acho que não vai não. Se eu falar demais, o povo do conjunto me põe pra correr. Mesmo se tiver um posto policial dia e noite grudado aqui, não melhora não. Vou contar sem entrelinhas: os garotinhos naquela praça são uma vergonha” (catadora, 63, 7A). Preocupações comuns aos dois grupos, como, por exemplo, a segurança, poderão também levar a um entendimento futuro. No que diz respeito à visão do futuro dos conjuntos pelos seus moradores, as respostas indicaram que houve equilíbrio de tendências positivas e negativas esperadas tanto para o Goiânia como para o Araguaia. No primeiro, 42% dos habitantes acreditavam que o conjunto passará por processo de melhoria e 58%
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entendiam que as condições do conjunto irão piorar. Quanto ao segundo, cuja previsão era um pouco mais otimista, 59% dos outsiders se posicionaram favoráveis ao seu futuro contra 41% que vislumbraram que a situação local tenderá a piorar, como indica a TAB. 33. Felizmente, ainda permanece no pensamento dessa população a esperança de ocorrerem melhorias. TABELA 33 Futuro dos conjuntos segundo seus moradores Conjunto Goiânia Opiniões
Vai Melhorar absoluto
Conjunto Araguaia
Vai Piorar
Vai Melhorar
Vai Piorar
% absoluto
%
absoluto
%
absoluto
%
Entrosamento entre as pessoas
7
18
11
28
6
21
5
17
Segurança
3
7
6
15
3
11
1
3
Desenvolvimento
4
10
-
-
-
-
-
-
Droga
-
-
4
10
5
17
4
14
Estado das casas
-
-
2
5
2
7
-
-
Estado do conjunto
2
5
-
-
-
-
-
-
Casa própria
1
2
-
-
1
3
-
-
Tudo piora
-
-
-
-
-
-
2
7
Total de incidências
17
42
23
58
17
59
12
41
Fonte: Pesquisa direta (dados compilados pela autora), 2003.
Pode-se observar que os reflexos do cotidiano vivido sobre o futuro dos bairros retratados na pesquisa influenciaram essa previsão. Os residentes do Goiânia foram mais pessimistas ao apresentarem sua expectativa em relação ao entrosamento dos vizinhos de conjunto, que, para 28% deles, ela se agravará; à segurança, especialmente a falta de policiamento, que irá piorar para 15%; e à droga, para 10% deles. Apesar de considerarem elevados os índices de agravamento em relação a esses itens, os habitantes do conjunto Araguaia foram mais otimistas, pois 21% acreditavam que o entrosamento entre eles irá melhorar, a segurança no local atenderá a população para 11% dos entrevistados e as questões relativas à droga serão sanadas fu turamente para 17% desses entrevistados. O processo de adaptação que eles vivenciaram, a partir do momento em que passaram a habitar o mesmo lugar, indicou que a desunião interna nos conjuntos ainda continuaria marcando a convivência entre os seus membros, conforme foi observado na descrença manifestada nas previsões: “Se for do jeito que tá, vai
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piorar. O povo aqui é muito desunido, ninguém ajuda ninguém. Só vai piorando” (dona de casa, 34, 37G). “Não tem melhorado nada até agora. Cada um quer ser melhor que o outro. Não acredito que daqui pra frente pode melhorar não” (aposentado, 49, 8A). “Eu acho que esse trem não vai melhorar não. Até hoje não melhorou. Piorou foi mais” (dona de casa, 28, 9G). “O que está acontecendo aqui, só Deus pra ajudar. Se tivesse que melhorar, já tinha melhorado” (dona de casa, 30, 16G). Embora essas manifestações sejam negativas, elas não traduzem explícita intolerância. Situações mais otimistas, porém, foram previstas por outsiders desses conjuntos, com maior tendência de ajustamento interno da população, pois o tempo se incumbirá de integrar os vizinhos e de estabelecer novas regras comuns, com a participação das comunidades, como foi bem indicado nos estudos de Elias e Scotson: “Chegou aí um trem difícil. Pode melhorar, se as pessoas ajudar. Depende das pessoas para o conjunto melhorar. Não precisa ter dinheiro, tem que ter boa vontade” (dona de casa, 35, 10G). “Vai melhorar sim. Com o tempo, vai vindo outras pessoas novas. Aí elas vão investir mais no conjunto” (bordadeira, 43, 1A). “Se não fizer um muro e não tiver pessoas que possam dar um conselho, pessoas de autoridade, aqui dentro vai piorar. Se tiver lei aqui dentro, vai melhorar muito” (dona de casa, 59, 29G). Como se pode notar nas manifestações dos entrevistados, existe a expectativa do surgimento de uma liderança entre os moradores para conduzir a organização dessas comunidades também do ponto de vista social. Além do mais, cada personagem apresenta a sua subjetividade, através dos seus desejos e expectativas. A falta de segurança que, na maioria das vezes, era vinculada ao tráfico de drogas, também foi indicada como motivo de preocupação para o futuro dos entrevistados nos conjuntos, agravada pela deficiência do policiamento no local: “Deveria melhorar em termos de segurança, mas acho difícil. Antes tinha policiamento na rua. Hoje já não tem mais. Tá ficando muito perigoso” (tratadora de animais e corretora, 36, 9A). O tráfico de drogas era, para os outsiders, grave fator de insegurança, que demandava rigoroso policiamento e controle pelo Estado. As previsões levaram 10% dos habitantes do Goiânia e 14% do Araguaia ao pessimismo, chegando a considerar o problema insolúvel, como indica a TAB. 33. “Pelo jeito, vai piorar. Do jeito que está indo, qualquer hora vai ter morte aqui na rua por causa desse povaréu
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que junta aqui no Goiânia por causa da droga. Se os homens não derem um jeito, vai ter problema. Tem que fiscalizar e dar de cima. A gente não pode fazer nada” (dona de casa, 44, 7G). Cabe observar que este fator ocorre em todo o território urbano da área metropolitana. Por outro lado, ocorreram manifestações de uma nítida acomodação ao meio, ainda permanecendo a esperança de se viver harmonicamente no local, como se verifica nos depoimentos: “Tem como melhorar. As pessoas que mexiam com tráfico tiveram que correr daqui e, de uns tempos pra cá, ficou mais calmo. A tendência é melhorar” (desempregada, 36, 2A). “É. Aqui vai piorar em termos de vício. Se Deus não tiver misericórdia, vai piorar demais da conta” (aposentada, 51, 11A). Verificou-se que, embora houvesse manifestações negativas dos outsiders em relação ao futuro do cotidiano dos conjuntos no que diz respeito aos aspectos da convivência, da segurança e da droga, a pesquisa indicou que, no geral, as previsões foram otimistas. Finalmente, pode-se verificar, na pesquisa, que o relacionamento entre os habitantes dos bairros Alvorada e Araguaia e os moradores dos conjuntos Goiânia e Araguaia foi conflituoso desde a época da implantação desses assentamentos. Esses conflitos não se limitaram apenas às diferenças econômicas, sociais e culturais. Acrescentem-se a isso descuidos e omissões originais desde os projetos arquitetônicos, seguidos da descontinuidade do seu processo de implantação. O tempo de permanência dos estabelecidos no local foi também um dos fatores que incrementaram as conseqüências negativas desse convívio. Os mais antigos se consideravam superiores, por terem estabelecido com a sua comunidade normas conjuntas que reforçaram a intolerância, o preconceito e o es tigma contra os que ali chegaram posteriormente. Apesar de existirem manifestações de intolerância no relacionamento cotidiano entre os grupos, elas eram mais aparentes que reais e, na maioria dos casos, eventuais. De toda forma, as tendências descritas levam a considerar com otimismo um lento processo de ajustamento entre elas no futuro, mesmo com ausência de orientações formais.
229
Assim, mais uma vez, deve-se considerar que, em programas dessa natureza, implementados pelo Estado, é essencial o acompanhamento contínuo do processo de implantação, desde a indicação dos futuros grupos de moradores, com a constante presença dos agentes envolvidos, na busca do equilíbrio nas relações sociais entre eles, até a ocupação posterior desses assentamentos. O mesmo deve ser levado em conta quando se tratar dos aspectos físicos dessas implantações, em que os projetos serão discutidos por todas as comunidades envolvidas.
230
7
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A política habitacional implantada após a Constituição de 1988 estabeleceu, dentre outras diretrizes, a municipalização da política e a participação popular na produção da moradia, condições inovadoras nesse processo. Para atender à nova conjuntura, elas foram elaboradas para que se estabelecessem contatos mais efetivo s com as comunidades a serem atendidas, de modo que características de ordem local priorizassem o atendimento a essas populações. Com isso, tornou-se prioritário o assentamento de pequenos conjuntos em terrenos inseridos na malha urbana, providos de infra-estrutura e equipamentos. Acrescente -se que ações de pós ocupação na implantação de tais assentamentos também deveriam ser contínuas, de modo a se tornare m essenciais para a eficácia dos programas. O presente trabalho indicou que os projetos dos conjuntos Goiânia e Araguaia, implantados pela URBEL, embora tivessem sido concebidos sob a nova orientação da política habitacional, ainda apresentaram soluções dos programas anteriores, principalmente daqueles implantados pelo BNH: não houve participação efetiva dos usuários no processo de implantação dos mesmos, a configuração original dos conjuntos foi alterada e a demanda do espaço interno das edificações não foi atendida satisfatoriamente. Além do mais, foi constatado que moradores que residiam anteriormente nas proximidades desses conjuntos não aceitaram os novos habitantes que chegaram aos assentamentos, estabelecendo até conflitos entre eles em certos momentos. Uma das razões da descontinuidade do processo se deveu à dificuldade de reestruturação do órgão para se adaptar aos novos encaminhamentos da política habitacional, visto que o programa Área de Risco, ao qual estão vinculados os conjuntos, foi dos pioneiros na URBEL. O remanejamento do quadro técnico demandou tempo para que se efetivassem os acertos necessários às novas normas e à metodologia propostas . Além do mais, devido ao caráter emergencial do atendimento a essa camada da população, como conseqüência das chuvas, aumentou ainda mais a necessidade de
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implantação de novas casas, o que demandou soluções imediatas para a provisão da casa própria. A participação popular ainda não se realizou plenamente em todo o processo da produção dessas moradias naquele momento e as comunidades envolvidas nesses projetos tiveram pouca ou nenhuma participação na sua elaboração, na sua construção e nos passos que seguiram a sua ocupação. Não houve também, por parte da URBEL, informações e discussões com as populações originais do local sobre os novos assentamentos e permaneceu ainda a tendência de um súbito abandono dos conjuntos por esse órg ão após a entrega das casas . De fato, as conseqüências da falta de participação nesses programas se tornaram perniciosas desde o início, pois segmentos sociais com culturas e condições financeiras diferentes foram obrigados a conviver proximamente sem que tivessem a oportunidade de discutir conjuntamente a adequada apropriação do espaço por ambos os lados. Além do mais, os conflitos entre os dois grupos se acentuavam por não existir em qualquer um deles uma liderança que conduzisse tais negociações. Os moradores dos bairros, na maioria, residiam nas proximidades por cerca de 30 anos. Grande parte deles tinha completado o segundo grau e a renda desse grupo girava em torno de duas faixas salariais: uma de três a cinco salários mínimos e a outra de seis a quinze salários. Grande parte desses moradores se dedicava ao comércio e à prestação de serviços. Apesar de se encontrar um número significativo de aposentados, eles ainda se dedicavam a algum tipo de atividade que, de certa forma, contribuía para o aumento da renda familiar. A família nesse grupo se compunha do casal e filhos, perfazendo a média de três a cinco pessoas na casa. Na maioria dos casos, o sustento da casa era de responsabilidade do marido ou do marido e da mulher juntos . Os moradores dos conjuntos, oriundos na maioria do interior do Estado, apresentaram baixa escolaridade, renda média em torno de dois salários mínimos, sendo que grande parte deles se ocupava na prestação de serviço, em especial a construção civil e o trabalho doméstico, respectivamente, para os homens e as mulheres. O marido ainda era o responsável pela renda familiar, mas a mulher também sustentava a casa, na condição de separada ou solteira .
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Mais da metade dos domicílios nos conjuntos era ocupada por dois a cinco habitantes e, quando dizia respeito a famílias estruturadas convencionalmente, sua composição era de casal e dois filhos. Essa proporção crescia para até nove moradores, quando eram acolhidos parentes como sogra, sobrinho ou cunhado. Em grande parte, esses agregados contribuíam para a renda familiar em troca do abrigo. Mesmo assim, a solidariedade manifestou-se nesse grupo, quando uma das moradoras, em cuja casa residiam genro, netos e filha ainda abrigou um casal morador de rua que estava à mercê do tempo em praça dos arredores. Considerando as diferenças entre os dois grupos, esse aspecto interferiu nas relações sociais entre eles desde o início do processo, pois, no convívio cotidiano, a essas diferenças se agregaram o preconceito e o estigma dos antigos em relação aos novos habitantes, manifestando até reações de intolerância. O tempo de permanência dos estabelecidos no local permitiu aos mais antigos se considerarem os donos do lugar. Eles se julgavam superiores por terem estabelecido nesse grupo normas conjuntas que chegavam a determinar valores contra os novos moradores dos conjuntos. Tanto que, nas relações cotidianas, os lugares freqüentados pelos outsiders nem sempre eram os principais pontos de encontro dos moradores dos bairros, que preferencialmente faziam suas compras ou se dedicavam ao lazer nas proximidades do trabalho ou então se deslocavam para praticá-los. Como conseqüência, as relações de poder configuradas pela maioria desses moradores, os estabelecidos, demonstraram que a coesão entre eles, mesmo que ela não se manifestasse em todas as situações praticadas no cotidiano, afirmou o propósito de aparecer como resposta comum para os outsiders. A reação inevitável dos moradores dos bairros apresentou maior diferenciação entre os dois grupos quando ela se manifestou no espaço, visto que eles se sentiram prejudicados por serem obrigados a morar próximo, o que não implica conviver com pessoas que não dispunham das mesmas condições sociais e culturais que eles. Nesse sentido, a intolerância chegou a ponto de levar estabelecidos que não suportaram essa convivência se deslocarem para outros setores da cidade que permitiriam a aproximação com seus pares.
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Outro aspecto resultante da falta de controle da URBEL em relação ao processo de ocupação diz respeito à formação dos grupos atendidos nesses conjuntos: os pretendentes a novas moradias que já haviam estabelecido relações com seus vizinhos nas antigas moradias, próximas às áreas de risco, foram remanejados para lugares distantes da sua origem. Essa mobilidade provocou desc ontinuidade das relações no seu novo modo de vida, demandando imediatamente novas possibilidades de aproximação. Mais um aspecto que retrata a falta de participação dos usuários no processo da produção da moradia é a transformação d elas pelo s habitante s. Aliás, essas pessoas se excluem, têm dificuldade de circular nos meios administrativos e nem sempre se consideram em condições de discutir sobre seus direitos e suas aspirações, embora o desejem, por descrença nos órgãos que direcionam as ações para a moradia popular e pela conformidade, visto que elas se adaptam com maior facilidade aos reveses que lhes foram impostos. Da desobediência às normas, bem como do pouco cuidado no trato do projeto arquitetônico e nas consultas à população, resultou a padronização excessiva das moradias, fonte da insatisfação dos moradores, que lançaram mão de alternativas da construção para melhor se adaptarem a elas. Mesmo assim, os resultados dos estudos nos conjuntos Goiânia e Araguaia confirmaram que os usuários se identificaram com as suas moradias, embora eles tivessem feito modificações na maioria delas. Ao ajustar os assentamentos às características naturais do terreno, os projetos reduziram custos, que até poderiam se reverter em saldo positivo. Além disso, na melhor adequação dessas propostas, poderia ser avaliada, ainda, a possibilidade de flexibilização de espaços internos da moradia para cada família, contrapondo-se ao rigor resultante da ditadura da Arquitetura. Nesse sentido, a padronização das habitações se flexibilizaria, visto que ela ainda vem sendo adotada por grande parte dos órgãos empreendedores da produção da habitação social, mesmo após a municipalização da política habitacional. O cuidado do projeto ao tratar da identificação do usuário com a sua moradia possibilita, mediante prévias audiências,
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maior humanização da habitação social, com sentido mais objetivo dentro da subjetividade de cada indivíduo. Por outro lado, a indispensável complementação de projetos dessa natureza se conseguiria mediante a convocação de lideranças capazes de incentivar o uso adequado dos lugares no cotidiano, tirando partido das potencialidades locais, fato que não se verificou nos conjuntos Goiânia e Araguaia. Então, poderiam favorecer o processo de ajustamentos entre os diversos grupos envolvidos nos programas. Com esse novo procedimento, a URBEL poderia amenizar a ocorrência de casos semelhantes aos verificados nos conjuntos Goiânia e Araguaia, como as modificações em grande parte das moradias, no que diz respeito aos aspectos físicos. No que tange à questão social, seriam atenuados os conflitos dos habitantes dos conjuntos entre si e com as comunidades que habitavam os bairros anteriormente. O novo olhar sobre a política habitacional municipalizada, resultado de novas concepções de cidadania, mudanças tecnológicas e conquistas sociais, qualifica o atendimento às necessidades da população local. Portanto, não se deve descuidar também da gestão, em que, juntamente com os demais atores do processo, se preservem características e potenc ialidades do meio. Ao mesmo tempo, aquilo que se refere ao projeto arquitetônico deve ser submetido criteriosamente às normas do Estatuto da Cidade e segundo elas, os atores devem se articular com o envolvimento da população a ser atendida em todo o processo da construção da moradia. O caminho seguido pelos profissionais das demais áreas envolvidas no processo deve ocorrer simultaneamente, a fim de se atender integralmente à sua multidisciplinaridade, nos aspectos econômicos, culturais e sociais. Cuidados dessa natureza certamente evitarão circunstâncias como as assinaladas nos conjuntos Goiânia e Araguaia. Mesmo que o programa e os projetos estejam de acordo com a legislação urbanística, a sua gestão ainda requer melhoria, principalmente quando se refere à continuidade do processo de implantação desses projetos. Especificamente nos programas Área de Risco, como é o caso dos conjuntos Goiânia e Araguaia, a população envolvida apresenta condições socioculturais mínimas. A participação das
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comunidades envolvidas desde o início do processo é, nesses casos, ainda mais, fator essencial das respectivas adaptações físicas e sociais, com possibilidades de, com o apoio da equipe de assistência social, os grupos melhor se ajustarem ao novo modo de vida. Este trabalho demonstra a necessidade de se levar em conta a natureza desigual da formação social brasileira, que mantém grande parte da população excluída dos padrões mínimos de cidadania e justiça social. É bom considerar que, dentro do processo histórico das políticas habitacionais no Brasil, a intervenção pública, ao se limitar a oferecer melhorias substanciais na qualidade habitacional, não contribuiu satisfatoriamente para a eliminação das demais necessidades sociais, tais como emprego, saúde, educação e suas conseqüências segregadoras para grande parte dos cidadãos. Espera -se que o Estado, ao contrário do que ocorreu no passado, não se descuide das obrigações financeiras, técnicas e sociais, quando se trata da política da habitação. Além disso, há a necessidade de implementação de uma ação contínua de todos os atores na busca de novos programas e estruturas administrativas de apoio, em que se avaliem experiências anteriores e que se configurem em programas habitacionais adequados, conseqüentes dessa avaliação. Não se deve esquecer que a nova legislação incumbe as administrações municipais, juntamente com a comunidade, de patrocinar gestões que ressaltem a integração dos diferentes grupos envolvidos nas suas relações cotidianas, como parte dos programas de habitação soc ial. O caráter local da gestão permite a continuidade do processo da implantação de conjuntos dessa natureza. O processo de urbanização que ocorreu no país, nas últimas décadas, agravou as condições para o problema da habitação social. Ainda mais que as populações que se agregaram às cidades se submetem a um lento processo de evolução cultural, econômico e social, ditado pelo meio urbano, fato que gera novos propósitos e demandas da parte dessas populações. Conseqüentemente, a política habitacional pode atender a esse processo, obrigando-se, então, a adotar metas capazes de atender às gerações atuais e futuras.
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Esta tese atinge importância fundamental nessa questão, pois atenderá a essa dimensão de demanda, mediante um novo projeto, elaborado por um profissional dotado de novos conceitos e, portanto, munido de novas orientações. Considerando a atual estrutura dos cursos de Arquitetura e Urbanismo, verifica-se que há necessidade de ampliar também a formação técnica dos atores dessa nova modalidade de atendimento do problema habitacional.
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Novos
Estudos
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240
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242
ANEXO A - Questionários MORADOR DO CONJU NTO O Sujeito Idade:
Sexo:
Escolaridade (até que série estudou): Ocupação (com o que trabalha): Local de trabalho (onde trabalha): Origem (de onde vem): Caminho que percorreu até chegar no conjunto: Proprietário:
c sim
c não
Tempo de moradia no conjunto: Quem mora na sua casa com você? -
Idade:
sexo: c M c F
parentesco:
-
Idade:
sexo: c M c F
parentesco:
-
Idade:
sexo: c M c F
parentesco:
Quem é responsável pelo sustento da família: c marido - c mulher - c filho - c outros Renda familiar (quanto ganham): A casa Descrever como era a casa em que você morava antes
Você acha que melhorou sua qualidade de vida? Por quê?
O que você mais gosta na casa em que está morando agora?
O que você não gosta na casa em que está morando agora?
243
Existem problemas na casa onde você mora? Quais?
Você fez modificações na sua casa? Quais?
Você pretende fazer alguma modificação ou reforma na sua casa? Qual?
O conjunto O que você mais gosta no conjunto? O que existe de bom no conjunto?
Quais os maiores problemas do conjunto? Existe uma maneira de resolvê- los?
Você conhece seus vizinhos do conjunto? c sim
c não
Como você conheceu seus vizinhos?
Tem boa convivência com eles?
c sim
c não
Há lugares no conjunto onde você pode se encontrar com seus vizinhos? Onde?
Que tipo de convivência você tem com os moradores do conjunto: - prestação de serviços: - comércio: - relacionamento social/amizade: O entorno/vizinhança De que lugar você tiraria uma foto do bairro? Por quê?
Cite um lugar de que você não gosta no bairro. Por quê?
244
Quais os lugares que você freqüenta no bairro para: - compras:
- padaria: - supermercado: - farmácia: - sacolão:
- lazer: - praticar esporte: - festa: - bar: - igreja: - ensino (escola dos filhos): - outros: Onde você se encontra com os moradores do bairro?
Como é o seu relacionamento com as pessoas que moram na vizinhança, fora do conjunto?
Você conhece ou participa de alguma associação de moradores? c Não - c Sim Qual? Seus filhos brincam na vizinhança? c Não c Sim Onde: c em casa - c na rua - c no conjunto - c na área de lazer - c em outros lugares Como você vê o futuro do conjunto? c melhor - c pior Por quê?
E do bairro?
245
MORADOR DO ENTORNO O Sujeito Idade:
Sexo:
Escolaridade: Ocupação: Local de trabalho: Proprietário:
c sim
c não
Quem mora na sua casa com você? -
Idade:
sexo: c M c F
parentesco:
-
Idade:
sexo: c M c F
parentesco:
-
Idade:
sexo: c M c F
parentesco:
Quem é responsável pelo sustento da família: c marido - c mulher - c filho - c outros Renda familiar: Tempo de moradia no bairro: Número de cômodos da casa: Se for morador recente (menos de 7 anos/depois de 1996): de quem comprou?
Sabe por que o antigo proprietário vendeu?
Como ficou sabendo da venda da casa?
Se for morador antigo (mais de 7 anos/antes de 1996): Qual foi sua reação quando soube da construção do conjunto?
Você acha que a construção do conjunto influenciou de alguma forma na qualidade do bairro? Como?
A URBEL informou previamente sobre a construção deste conjunto?
246
Como você acha que a URBEL deveria proceder diante de uma nova situação como esta?
O bairro/vizinhança De que lugar você tiraria uma foto do bairro? Por quê?
Cite um lugar de que você não gosta no bairro. Por quê?
O conjunto O que você mais gosta no conjunto? O que existe de bom no conjunto?
Quais os maiores problemas do conjunto? Existe uma maneira de resolvê- los?
Você conhece seus vizinhos do conjunto? c sim
c não
Como você conheceu seus vizinhos?
Tem boa convivência com eles?
c sim
c não
Há lugares no conjunto onde você pode se encontrar com seus vizinhos? Onde?
Que tipo de convivência você tem com os moradores do conjunto: - prestação de serviços: - comér cio: - relacionamento social / amizade: O entorno/vizinhança De que lugar você tiraria uma foto do bairro? Por quê?
Cite um lugar de que você não gosta no bairro. Por quê?
247
Quais os lugares que você freqüenta no bairro para: - compras:
- padaria: - supermercado: - farmácia: - sacolão:
- lazer: - praticar esporte: - festa: - bar: - igreja: - ensino (escola dos filhos): - outros: Desde que você mora aqui, notou modificações na vida do bairro? c Não - c Sim Quais foram positivas?
Quais foram negativas?
Onde você se encontra com seus vizinhos de bairro? Você conhece ou participa de alguma associação de moradores? c Não - c Sim Qual? Seus filhos brincam na vizinhança? c Não c Sim Onde: c em casa - c na rua - c no conjunto - c na área de lazer - c em outros lugares O conjunto O que significa para você morar próximo a um conjunto habitacional?
Que tipo de convivência você tem com os moradores do conjunto: - prestação de serviços: - comércio: - relacionamento social / amizade: Como você se relaciona com as pessoas que moram no conjunto?
Existe alguma diferença entre os moradores do bairro e os moradores do conjunto? c Não - c Sim Qual? Como você vê o futuro do conjunto? c melhor - c pior Por quê?
248
ANEXO B - Matérias de jornal
Fonte: MORADOR protesta contra construção de conjunto. Estado de Minas, Belo Horizonte, 1995.
249
Fonte: URBEL vai construir uma vila no bairro Goi창nia. Estado de Minas, Belo Horizonte, 1995.
250
251
252
Fonte: Moradores inconformados com conjunto da Urbel. Diรกrio da Tarde , Belo Horizonte, 8 ago . 1995.
FICHA CATALOGRÁFICA
T266e
Teixeira, Maria Cristina Villefort. Espaço projetado e espaço vivido na habitação social: os conjuntos Goiânia e Araguaia em Belo Horizonte / Maria Cristina Villefort Teixeira. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. 252 p. : il. Orientadora: Tamara Tânia Cohen Egler Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2004. 1. Arquitetura da habitação – Brasil 2. Arquitetura da habitação – Belo Horizonte (MG) 3. Conjuntos habitacionais – Belo Horizonte (MG) 4. Conjunto habitacional Goiânia – Belo Horizonte – Teses 5. Conjunto habitacional Araguaia – Belo Horizonte – Teses I. Egler, Tamara Tânia Cohen II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Arquitetura III. Título CDD : 728.981