Conto: Último ato

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FORTALEZA - CE, DOMINGO - 16 DE DEZEMBRO DE 2012

6 FIM DO MUNDO do mundo está sempre ao sabor Último Odadestino vontade divina. No início dos tempos ou no

ato

fim. Mas eis que o Todo Poderoso resolve dar uma volta na Praça do Ferreira, ouvir Belchior, contemplar o pôr do sol da Barra do Ceará. O que virá depois disso? O escritor Urik Paiva é quem conta a seguir

Urik Paiva

ESPECIAL PARA O POVO

Para Elenita, 80, que me criou

E

ntão, Deus se sente exausto, após milênios e milênios de árduos trabalhos. A Terra está muito populosa, a camada de ozônio não tem mais jeito e a cerveja anda bastante cara. E Deus viu que era boa a ideia de se aposentar (por idade ou tempo de serviço, tanto faz), mas lamentou não ter contribuído com a previdência desde o começo para terminar melhor financeiramente. E Deus, ao decidir findar o mundo, pensou que o Apocalipse tal e qual vaticinam as Sagradas Escrituras é praticamente inexequível do ponto de vista técnico, pois se trata de um megaevento, muito mais grandioso do que a Copa do Mundo e as Olimpíadas; se fosse licitar tudo, jamais concluiria no seu mandato, por mais eterno que este fosse. O Senhor pensou que não queria acabar com o mundo por etapas, assim como procedeu com a criação, portanto deveria executar o serviço num só dia, num só instante, talvez dizendo apenas: “Haja escuridão”. Então, lembrou que boa parte da população mundial possui celulares com lanterna, o que impossibilitaria o efeito desejado. E Deus também descartou algo como um Grande Pum, pois o acusariam de roubar a ideia da comunidade científica sobre a origem do Universo. O Senhor, movendo-se sobre a face das águas – já não tão límpidas assim, viu que não seria nada prático dar cabo de uma espécie como a humana, afinal não se trata mais de erguer pessoas peladas do barro, e sim desmontar toda uma estrutura de gel no cabelo, botox e escova progressiva. “São o grande problema da Terra”, pensou Deus ao lembrar que os homens são capazes de escravizar seus pares e cobrar mais de três reais por um coco gelado na praia, embora houvesse que admitir que contam boas his-

E DEUS, AO DECIDIR FINDAR O MUNDO,, PENSOU QUE IPSE O APOCALIPSE TAL E CINAM QUAL VATICINAM MENTE É PRATICAMENTE EL DO INEXEQUÍVEL PONTO DE VISTA TÉCNICO”

tórias numa fila de banco e conseguem dar múltiplos usos à manteiga. Valeria a pena manter Woody Allen fazendo filmes e as pessoas cantando irresponsavelmente no chuveiro. Mas e os especuladores imobiliários e operadores de callcenter? Confuso sobre a destruição do mundo, resolveu Deus caminhar numa cidade qualquer a fim de desanuviar os pensamentos e escolheu uma ao sul do Equador. Mas Deus na verdade teve os pensamentos fritados, porque Fortaleza é muito quente. E percebeu Deus que talvez pudesse ter dado uma segunda opção a Moisés no que concerne a desertos. Mas além, muito além do calor que embaça o horizonte, viu Deus que Fortaleza era boa, pois nesse dia comeu pastel e tomou caldo de cana na Praça do Ferreira, deu uma volta no Passeio Público e assistiu ao sol se pôr na Barra do Ceará. “Se a cidade tivesse mais calçadas e árvores, poderia montar uma filial do Éden aqui”, pensou Deus, enquanto amaldiçoava os semáforos da rotatória da Aguanambi. E alguém escutava Alucinação no rádio, e viu Deus que o Belchior era bom. Mas Deus não gostou da pobreza e dos edifícios muito altos, que não deixam o vento correr. Em compensação, achou uma boa as pessoas se reunindo no bo-

teco depois do expediente. Então, pensou Deus que na hora derradeira do mundo desejaria estar perto de amigos. “Valha-me, Deus, eu não tenho amigos!”, exclamou Deus, num ato falho autorreferente, dando-se conta em seguida que a mitologia grega era mais interessante nesse sentido. Despedindo-se de Fortaleza, caminhou o Senhor por outras cidades, e viu que são todas iguais e todas diferentes, pequenas e grandes, adoráveis e terríveis. E cami-

nhou o Senhor por cima do coração dos homens, embora tenha se esquecido de avisar aqueles propensos a doenças cardíacas. E vendo que são os homens capazes de tantas coisas – tantas e tão distintas , como separar o sujeito do

predicado com vírgula e sonegar o imposto de renda e não dividir uma bola de sorvete e inventar desculpas muito criativas e torturar alguém com cócegas e adestrar cães para morder parentes chatos e cantar Fly me to the Moon no meio da chuva

e odiar uns aos outros e amar uns aos outros, decidiu Deus deixar ao arbítrio Deles, dos homens, acabar ou não com o mundo, embora não ousasse deixar de pagar um bom seguro para ele. URIK PAIVA é escritor.


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