Crônica: Afinidades eletivas

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FORTALEZA - CE, DOMINGO - 7 DE OUTUBRO DE 2012

CRÔNICA

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Afinidades

eletivas Tire o título de eleitor do caminho, que Urik Paiva quer passar com sua dor: um exercício sobre as possibilidades narrativas (ficcionais ou nem tanto) para Fortaleza no dia da eleição. De Iracema ao jovem Werther, de Capitu a Joseph K, prefeitos imaginários de uma cidade (ir)real DIVULGAÇÃO

Leticia Persiles no papel de Capitu em minissérie da TV Globo exibida em 2008: a dissimulação dos olhos de ressaca é um fenômeno não raro na política

Urik Paiva ESPECIAL PARA O POVO

O

s gritos dos galos partidários rasgam a manhã para advertir: estamos em período eleitoral. As militâncias soam militares no fazer levantar da cama e pôr o mau humor na rua para ouvir aqueles “jingles” que “acredito” terem sido compostos por alguém como Tom Jobim; ser quase fatalmente atravessado por uma carreata ou bicicleata em que os condutores são pessoas tão felizes que é de se acreditar que tenham experimentado todo o Kama Sutra antes de sair de casa; ser abduzido nas esquinas por bandeiras gigantes que ficariam frouxas enrolando a Catedral; ter os tímpanos sodomizados por discursos megafônicos que deixariam Beethoven ainda mais surdo; e escutar um sem tamanho absurdo de promessas que talvez envolvam a devolução do Paraíso a Adão e Eva. Loirinha fritada pelo sol, Fortaleza está aquartelada pelo que há de mais dantesco na democracia. Nós, os misantropos políticos, que sempre votamos nulo para rainha do colégio e hoje não sabemos quem são os síndicos de nossos próprios prédios, sofremos o bullying de outubro - esse, sim, o mais cruel dos meses – que se aproxima. Busco uma evasão possível diante das agruras de um tempo que poderia ser belo em vez de bélico. Ainda há rei em Pasárgada? Porque se

HAMLET SERIA UM MAU CANDIDATO, HAJA A QUANTIDADE DE INTERESSES PESSOAIS QUE ARROLARIA À MÁQUINA ADMINISTRATIVA

houver prefeito, há também campanha e não será possível escapar do perturbador bochicho eleitoral. A solução para meu ranço vem no correr de um exercício à la realismo fantástico. Dentro da biblioteca, o mais prolífico dos refúgios, sou o (e)leitor que recruta seu rol de afins. Tire o seu título de eleitor do caminho que eu quero passar com meu relicário ficcional. A figura da personagem de José de Alencar se desfaz em minha mente, dando lugar ao discurso inflamado de uma Maria Moura sob o sol da Praça do Ferreira a instigar toda a sorte de mulheres a um levante feminista derradeiro, para aflição do eleitorado masculino. Para deixar a chapa um tanto mais polida, mas sem perder o caráter enfático, o arranjo partidário poderia in-

cluir a Capitu de Machado de Assis, sendo a dissimulação dos olhos de ressaca um fenômeno não raro na política. A mulher de Bentinho, através da condição do esposo, poderia alavancar muitos votos naquela região populosa do José Walter, cujos chavelhos dos homens são vigorosos indicativos de um determinado status quo. De Machado, ainda cabe considerar, para nosso inusitado pleito, Simão Bacamarte, defensor pétreo do equilíbrio e da normalidade. Entre suas propostas, a ampliação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPES), variandoos tematicamente: o CAPES para os perigosamente descuidados, para os excessivamente gulosos, para compulsivos sexuais, para leitores de Paulo Coelho, para pretendentes a ascensoristas etc. Retrocedendo aos primórdios do cânone literário ocidental, temos, do Partido Homérico, o heroico Odisseu, que promete construir faixas de trânsito exclusivas para quem está voltando de Ítaca e acabar com o problema da superlotação do transporte público com enormes cavalos de madeira que comportariam toda a massa produtiva. Não teríamos o Cavalo de Tróia, e sim o Cavalo do Mucuripe, o Cavalo do Bom Jardim, o Cavalo da Serrinha etc. Um mau candidato seria o sanguinário príncipe Hamlet, que nem numa surpreendente conversão ao republicanismo poderia dar certo como nosso alcaide, haja a quantidade de interesses pessoais que arrolaria à máquina

administrativa. O que daria muito sentindo à afirmação: há algo de podre no Município de Fortaleza. Mas não restam dúvidas de que Horácio, sempre lúcido, pudesse ocupar com louvor alguma secretaria. Também não seria acerto da cidade eleger Pinóquio como prefeito. Além de imaturo e ambicioso, este “cara de pau” possui uma nociva apetência ao embuste. Talvez mentisse tanto que seu nariz crescesse do Paço Municipal ao Terminal do Siqueira. Compondo a lista dos candidatos mais sérios e comprometidos, há o surpreendente Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, mais conhecido como O Cavaleiro Inexistente, que, segundo o romance de Italo Calvino, era o mais austero dos paladinos de Carlos Magno. Sua característica marcante é que, dentro da deslumbrante armadura branca, ele simplesmente não existe. Trocando o metal da armadura pelo linho do burocrático paletó, o nosso Prefeito Inexistente faria uma gestão de “visível” competência fiscal, digna do panteão de honra do Portal da Transparência. Literalmente. À esquerda do espectro político, Oliver Twist garante governar para os miseráveis, ampliando o acesso a programa de inclusão social, o que deixará a classe média da Regional II um tanto descontente. Além disso, seu primeiro escalão seria todo composto por outros órfãos de Dickens. À deriva em pensamentos surreais, imagino um jovem

EMMA BOVARY IMPLORA A NOMEAÇÃO DE SEU MARIDO COMO COORDENADOR DO SAÚDE DA FAMÍLIA, DEIXANDOO POUCO TEMPO EM CASA

Werther que, abismado com o déficit público, cometeria suicídio nos primeiros dias de mandato. Mil e uma propostas para sobreviver em Fortaleza, este poderia ser o programa de governo de Sherazade. O Pequeno Príncipe, aparentemente ingênuo e pueril, talvez seja na verdade um corrupto, fazendo valer a máxima “O essencial é invisível à prestação de contas”. Caso chegasse à chefia do Executivo, o autocomplacente Leopold Bloom criaria mais um feriado municipal, o Bloomsday, em 16 de junho. Hannibal Lecter promete acabar com o problema da fome em Fortaleza. E, seja lá qual for o resultado das eleições, Emma Bovary implora a nomeação do Doutor Charles, seu marido, como coordenador do Programa Saúde da Fa-

mília, deixando-o pouquíssimo tempo em casa. Agradando a todas as classes sociais, a Mulher do Médico, aquela que permaneceu “enxergando” diante da terrível epidemia de cegueira relatada por José Saramago, pode ser a grande surpresa destas eleições. Mantendose lúcida em meio à aflição coletiva, ela prestou-se, como servidora empossada pelas circunstâncias, a guiar os cegos pelos dissabores de um mundo autoconfinado. Mas nós não somos cegos, retrucariam os opositores da candidatura, que teriam apenas um constrangedor silêncio como réplica. Chegamos ao fim do conclave fictício com a “condenação” a candidato do desavisado Joseph K., o bancário que, em O Processo, é acusado de cometer um crime a ele desconhecido. O personagem talvez expressasse o mesmo assombro ao ser avisado de que foi repentinamente declarado, por ampla maioria democrática, prefeito da cidade, sem nem mesmo saber que estava concorrendo. A democracia “tem” dessas arbitrariedades. Curiosamente, é Kafka quem me retira de minha própria invenção, antes mesmo do fim do pleito, e me faz retornar a Fortaleza real, mas não menos absurda que esta outra de dentro do papel. Não seriam essas duas Fortalezas uma só? No fim das contas literárias, deixo à cidade a responsabilidade do espetáculo narrativo de contar a si mesma. Urik paiva é escritor


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