Conto: Um Grito

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FORTALEZA - CE, DOMINGO - 29 DE DEZEMBRO DE 2013

6 CONTO

Um Grito Contemplação às avessas, no conto de Urik Paiva a obra de arte é quem observa (e grita contra) o cotidiano e os segredos de uma família; é quem denuncia o réveillon e seus propósitos imóveis REPRODUÇÃO

O clássico O Grito, do norueguês Edvard Munch: na relação com o espectador, quem observa quem? Urik Paiva ESPECIAL PARA O POVO

F

inalmente, a casa está vazia, e apenas meu grito, silencioso e contínuo, pode ser ouvido. Gritar faz parte de minha ininterrupta postura; mas, mesmo que eu houvesse sido retratado de boca fechada, viveria a emitir sonoros berros, pelas tantas coisas que venho sido obrigado a escutar durante esses anos em que estou preso à parede da sala. Algo irritadiço até mesmo para uma réplica diletante, como é meu caso. Não fossem as questões de tempo e espaço, poder-se-ia imaginar que Munch coletou ideias para me pintar mantendo-se algum tempo entre estes que me riscam a vista. Refiro-me à certa família. Não sei como são as outras, tenho apenas uma de parâmetro, mas, se forem como esta, os quadros pendurados em suas casas devem sofrer tanto quanto eu. “O Beijo” de Klimt ou alguma dançarina de Toulouse-Lautrec têm suas devidas distrações para o cotidiano familiar, mas a mesma sorte não possuo, nem o casal Arnolfini, com seu enfado habitual. Estou sempre de mal a pior, com o tudo que me faz gritar. E cubro os ouvidos, mas escuto tudo o que eles dizem, e até o que não ousam dizer; o que dizem a si mesmos, ingênuos ou mentirosos, e o que dizem aos outros, frágeis e ardis. Tenho gritado em abundância ultimamente, mais do que o tempo inteiro que já passo gritando, porque é fim

REFIRO-ME A CERTA FAMÍLIA. NÃO SEI COMO SÃO AS OUTRAS, MAS, SE FOREM COMO ESTA, OS QUADROS PENDURADOS EM SUAS CASAS DEVEM SOFRER TANTO QUANTO EU

de ano e não cessam fiapos de fala repetidos acerca do que deve ser o tempo vindouro. Os anos estão ficando velhos. Veja-se o exemplo do Pai, um idiota de meia-idade. É idiota e engenheiro; gosta de chegar em casa comentando quando mais um pedaço do parque da cidade vai abaixo para a construção de edifícios. No ano que vem, quer impressionar o chefe, valendo-se das mais variadas técnicas de bajulação, para, quem sabe, receber uma promoção, um aumento, e comprar mais um carro, já não bastassem os dois na garagem. O planejamento das adulações é cortado quando a Mãe chega à sala, lembrando a hora do encontro de casais da igreja. É o compromisso principal dos dois, mais regular que as relações íntimas. A Mãe é uma mulher nos seus quarenta e tantos, que não faz muita coisa alem de ver tevê. E, por ser obrigado

a assistir junto dela a toda a ridícula programação, grito. E grito também porque ela vive se queixando do peso. Em conversa com uma amiga ao telefone, Diz que vai entrar numa academia para ficar magra, talvez até fazer botox para aliviar-se do tempo. Pergunta-se se o marido não teria uma amante, já que sempre negligencia a agenda do desejo. As desconfianças e as promessas não são novas; e intensificam-se aos finais de ano. Sim, querida, ele tem uma amante. Chama-se Pâmela e é um travesti. Os dois fizeram recentemente um tórrido sexo neste mesmo sofá em que você assiste à tevê. E, não, a academia não vai funcionar, nem o botox. Pâmela possui algo que claramente falta a você.

Reprises Mas Pâmela, que já está com o Pai há muito tempo, também tem suas demandas. Quer ser a única. Sempre faz o homem prometer que vai deixar a família para ficar com ela; e sempre ele promete. Há alguns dias, o rito se repetiu. Embora Pâmela dessa vez tenha dito a ele com veemência que se isso não fosse verdade iria sumir para sempre, o Pai recebeu a contenda como das outras vezes: imaginando que poderia desviar-se do cumprimento. Quem também se entrega a reprises infindáveis é o Filho. Diz todos os anos que vai arrumar um emprego e sair da casa dos pais. Mas o rapaz já vai para os vinte e nove anos e tudo permanece como está. Peguei-o ontem dizendo à namorada, com enérgica segu-

O VIÚVO CANSOUSE, PEGOU TODO O SEU O DINHEIRO E ESTÁ VIAJANDO PELO MUNDO. FEZ SUA FESTA DE RÉVEILLON NO ÚLTIMO AGOSTO, PARA A SURPRESA DE TODOS

rança, que tudo mudaria de verdade, finalmente, neste ano que está chegando. Minhas admirações, ganhou o Avô. O viúvo cansouse da vida que levava, pegou todo o seu o dinheiro e está viajando pelo mundo. Fez sua festa de Réveillon no último agosto, para a surpresa de todos. Estão agora na praia, à espera do ano novo, munidos de suas contingências, seus propósitos imóveis, esperando alguma coisa indefinida cair do espectro celeste junto com fogos de artifícios estourados. Por sinal, já posso ouvi-los. Boquiaberto, vejo pela janela o céu se tomar de muitas cores, como ao fundo da pintura que represento: o tempo ondula, turva-se, está queimando numa urgência vulcânica. Nesse momento, e assim sempre, sou espanto e angústia. E grito. Urik Paiva tem 24 anos e é editor.


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