a cidade da criança o desenho urbano para a infância como agente de transformação social
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
A CIDADE DA CRIANÇA O desenho urbano para a infância como agente de transformação social
VANESSA CAMPOS SILVA PIMENTEL
SÃO PAULO 2020
VANESSA CAMPOS SILVA PIMENTEL
A CIDADE DA CRIANÇA O desenho urbano para a infância como agente de transformação social
Trabalho Final de Graduação, apresentado à Universidade Presbiteriana Mackenzie como parte das exigências para obtenção do título de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Prof. Ms. Rodrigo Mindlin Loeb
SÃO PAULO 2020
VANESSA CAMPOS SILVA PIMENTEL
A CIDADE DA CRIANÇA O desenho urbano para a infância como agente de transformação social
Trabalho Final de Graduação, apresentado à Universidade Presbiteriana Mackenzie como parte das exigências para obtenção do título de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Prof. Ms. Rodrigo Mindlin Loeb São Paulo, 14 de agosto de 2020
BANCA EXAMINADORA
__________________________________ Prof. Ms. Rodrigo Mindlin Loeb Orientador __________________________________ Prof. Dra. Tereza Beatriz Ribeiro Herling __________________________________ Ms. Helena Strada Nosek
agradecimentos
Aos meus pais, João e Teresa, por me guiarem e possibilitarem que minha jornada até aqui fosse completa de amor e suporte; pelo carinho e importância de seus ensinamentos; pelo incentivo e colo em momentos de fragilidade; mas, principalmente, por comemorarem minhas vitórias e acreditarem em mim. À minha irmã, Marina, por sua admirável inteligência e sede de conhecimento; por ter participado do processo da minha formação e pelo auxílio e força que prestou durante o TFG. Ao meu namorado, Guilherme, pelo amor, carinho e leveza que trouxe à minha vida; pelo companheirismo e lealdade que temos e, mais do que tudo, agradeço pelas risadas e aconchego. Aos meus amigos do Peneira, que tornaram esses cinco anos repletos de histórias, memórias e alegria; por todas as festas, churrascos, viagens e Interfaus; por serem tão incríveis e diferentes, cada um com seu jeitinho, e por proporcionarem tantos momentos inesquecíveis. Em especial, à Gabs, por sua lealdade, força e espiritualidade; à Cami, por ser tão leve e única; à Clara, por sua tranquilidade e respeito; à Lívia, por sua sabedoria e companheirismo; ao Matheus, pelo divertimento que traz ao dia a dia, com sua personalidade inexplicável.
À minha base, Tuts, Aug, Mari, Rick, Fe, Nay, Jufi e Lucoc, que estão comigo há tanto tempo e fazem parte de quem eu sou. Por proporcionarem momentos incríveis no passado; apoio e confiança no presente, e por se firmarem em meu futuro. Obrigada pela vida feliz ao seu lado, por me apoiarem e acreditarem em mim, por serem minha família e minha base. À Mona, à Babi e às Gabrielas, que foram meu refúgio nos últimos anos; por alegrarem as madrugadas tensas de projeto; por proporcionarem tantas conversas e risadas; por se tornarem essenciais em tão pouco tempo, vocês foram um presente inesperado nessa reta final. Em especial, à Leite, por ter agregado e participado diretamente deste trabalho, por ser minha companheira da madrugada, seja em festas e roles, seja comentando filmes bobos enquanto fazíamos projeto; sem você, o resultado não seria o mesmo. Aos meus orientadores, Rodrigo e Lucas, por permitirem que eu desenvolvesse um trabalho no qual me identifico, por transmitirem seus conhecimentos e orientarem minhas angústias de forma tão sábia. Por fim, agradeço a Deus, por ter me guiado a estabelecer essa rede de apoio maravilhosa que possibilitou minha formação pessoal e profissional.
Obrigada a todos por participarem da minha jornada.
sumário
introdução
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a criança na cidade 1. as transformações dos espaços públicos ao longo do século XX os espaços públicos de lazer familiar rua: risco ou liberdade?
16 23 28
2. o desenho urbano pensado para a ocupação da cidade pela criança a cidade do ponto de vista da criança a rotina das famílias e cuidadoras como fator determinante
32 37 40
o ambiente escolar 3. a escola como articuladora da relação da criança com o território anísio teixeira e a conceituação das escolas parque brizola e os cieps ceus e territórios ceu
46 52 56 58
4. o engessamento da arquitetura pela institucionalização e política aplicadas ao ensino infantil a relevância do lúdico no desenvolvimento da primeira infância os espaços lúdicos como ambiente de ensino
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o ensaio projetual: uma proposta urbana
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68 71
considerações finais
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referências bibliográficas
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introdução
A cidade é aglutinadora das relações sociais. É ponto de encontro, é onde as pessoas desenvolvem moradia, trabalho e lazer, é palco das dinâmicas sociais e do modo com que as pessoas deixam acontecer suas vivências. Independentemente do tempo, do modelo urbano e das diferenças, a cidade é aglutinadora das relações sociais. E a criança, ser criança, é a origem de todos. É quem todos já fomos, é a origem de novas gerações, o início da sociedade do futuro, é a ingenuidade e o olhar puro. 12
Dito isso, o objetivo desse trabalho é tentar entender de que forma a sociedade pode atribuir à cidade e aos espaços públicos o caráter lúdico que atrai e proporciona o acontecimento dos usos infantis e familiares, tornando o ambiente urbano confortável para ser vivenciado por aqueles que mais necessitam dessa interação. Para isso, foram utilizadas duas lentes, uma se voltando ao ambiente urbano, e outra ao ambiente construído.
Na primeira parte, “A Criança na Cidade”, é abordada não só a vivência infantil na dimensão urbana, mas também a forma com que a cidade enxerga e se relaciona com a infância. Passando pela evolução dos espaços públicos ao longo do tempo, foi possível analisar como a vida infantil foi sendo excluída dos espaços públicos e reservada a equipamentos de playgrounds limitantes, os impactos que a segregação socioespacial gerou para as crianças de diferentes classes socioeconômicas, e a importância de considerar as crianças e as famílias ao pensar e planejar o ambiente urbano. Na segunda parte, “O Ambiente Escolar”, o olhar se volta para o único lugar pensado e desenvolvido de fato considerando a criança como usuária: a escola. Foram analisadas experiências de implantação escolar que se destacam da produção padronizada e monótona do modelo escolar tradicional, considerando o território como parte efetiva e articuladora da educação escolar, e o papel dos diferentes espaços na formação e desenvolvimento das crianças.
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A CRIANÇA NA CIDADE
as transformações dos espaços públicos ao longo do século XX
1
No Brasil pré-industrial, ou seja, até o século XVIII, a rua era protagonista das relações sociais – ela servia de palco principal para a realização de diversas atividades do dia a dia e era onde, de fato, tudo acontecia. Unia diferentes grupos sociais que interagiam e realizavam seus afazeres diários, enquanto as residências serviam apenas de local de permanência nos momentos de refeição e descanso. Conforme coloca Mayumi de Souza Lima (1989), em “A Cidade e a Criança”, a rua era lugar de constante troca e, exatamente por ser espaço público, pertencia tanto a adultos quanto crianças, tanto a ricos quanto pobres e, assim, promovia a interação, mas também era palco de recorrentes conflitos. Lima (1989, p. 91) discorre: “Os espaços privados eram exíguos, nos quais adultos e crianças de diferentes idades se acotovelavam, e, entre esses espaços privados e os espaços públicos abertos, existia uma gradação de lugares que uniam o indivíduo e a sociedade, a família e o urbano.” Somada à vivência natural do dia a dia, a rua também abrigava diversos festivais populares, como feiras, festas periódicas e eventos como corridas de touro ou brigas de galo, era o espaço onde a classe trabalhadora desenvolvia seu lazer ao ar livre. De acordo com Lima (1989), o problema começou a se dar quando, por volta de 1830, foi instaurada a força policial como modo de reprimir essas formas de recreação, controlar o uso das ruas e manter a ordem para evitar “tumultos, brigas ou crimes”. Tal situação nada mais foi do que um incômodo da burguesia com o lazer das classes economicamente inferiores, tratando tais eventos como uma
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ameaça à segurança da cidade e retratando os pobres como elementos perigosos e violentos, que poderiam “destruir a estrutura da sociedade”. Foi em meio a esse cenário que começaram a emergir ideias de uma segregação socioespacial motivada por uma suposta segurança que a burguesia sentia que estava perdendo. Somada a esses anseios das classes média e alta, a segregação socioespacial foi enfatizada pelo novo tipo de urbanização desenvolvido em torno da sociedade industrial, suas novas formas de trabalho e necessidades, onde as famílias e suas rotinas se transformaram drasticamente (NOSEK, 2018). O uso da rua como espaço de convivência já estava defasado, mas agora, com o uso do automóvel, as pessoas isolaram ainda mais as relações afetivas do espaço público – a rua perdeu seu espaço como lazer e troca, serviu majoritariamente para locomoção e virou sinônimo de perigo, o que fez com que principalmente as crianças se vissem limitadas aos espaços fechados, como as casas, creches, ou fábricas, variando conforme sua condição social permitia e sendo afastadas de seu ambiente familiar pelo trabalho industrial (LIMA, 1989). Em meados do século XIX, chegaram ao país as colônias de imigrantes, que estabeleceram morada em cidades já estruturadas e com demanda de mão de obra, como São Paulo. Essas famílias formaram as vilas operárias em locais precários e alagadiços próximos às indústrias nas quais trabalhavam. Eram as áreas mais desvalorizadas da cidade e cresciam sem nenhuma regra ou regulamentação urbanística – enquanto os bairros de classe média e alta se davam nas partes mais altas da cidade, em colinas secas, arejadas e iluminadas – e assim se dava também a aplicação de recursos públicos e melhorias urbanas pela administração municipal: eram quase que inteiramente destinadas aos bairros ricos, abandonando os pobres para viverem precariamente e sem infraestrutura (CALDEIRA, 2011). 18 retrato das vilas operárias [1]
Entrando no século XX, conforme narra Nosek (2018), temos o surto da industrialização e imigração em 1930, ano em que a população de São Paulo chegou a mais de 1 milhão de habitantes, e surge uma demanda habitacional impossível de ser suprida pelas vilas operárias. Começa então um crescimento horizontal de cidade dado pelas questões de moradia, mas intensificado pela implementação do plano de concepção urbanística de Prestes Maia em 1940, caracterizado por um sistema de avenidas radiocêntricas que desenfreou o crescimento da cidade de forma indefinida, optando pelo modelo rodoviarista de transporte automotivo e fortalecendo o surgimento das periferias – das vilas operárias às periferias, o trabalhador e sua família permanecem esquecidos pelo governo, sem recursos e infraestrutura que atendam a população que mora ali. Caldeira (2011) trata esse padrão de crescimento e ocupação da cidade como “centro-periferia”, que consistiu num processo de embelezamento e organização do centro de São Paulo, acabando por ser uma política higienista que encareceu o custo de vida, e empurrou os trabalhadores e a classe pobre para as periferias sem infraestrutura urbana.
[2] rodovias estaduais e anel viário de São Paulo
A criança, nesses cenários, fica deixada de lado. Os diversos conflitos sociais alteraram a rotina infantil tanto dentro de casa quanto na rua, tornando necessária a busca por novas relações sociais e condições urbanas onde a brincadeira seja possível. Nesse momento, a segregação socioespacial e o planejamento urbano (ou falta de) nos bairros pobres intensifica seu impacto: os espaços disponíveis para as camadas populares são os que sobram, correspondentes a suas pequenas moradias (como favelas e cortiços) e limitando a brincadeira das crianças pobres conforme esses ambientes permitem (LIMA, 1989). Posteriormente, vamos falar sobre como Mario de Andrade, secretário da cultura na época, desenvolveu políticas públicas capazes de abrigar as crianças no espaço público da cidade.
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Ao longo do século XX, a verticalização nas áreas centrais vai se intensificando, os trabalhadores de baixa renda se refugiam na periferia e a desigualdade e segregação socioespacial se tornam cada vez mais explícitas, conforme descreve Nosek (2018, p.80) no trecho de sua dissertação: “A concentração dos esforços nas áreas centrais da cidade, a falta de equidade na distribuição dos benefícios da urbanização, somadas ao padrão periférico de crescimento, com base na autoconstrução em favelas e loteamentos sem infraestrutura, levou à desigualdade e à exclusão de direitos sociais básicos, como o direito a equipamentos, à moradia digna e à infraestrutura urbana, por parte de uma parcela considerável da população.” A configuração viária passou a ser ditada pelas necessidades dos carros, dos condomínios fechados e dos shoppings centers, elementos que ganham força crescente alimentada pelo capitalismo e por sua consequente sociedade de consumo. As transformações na configuração urbana e no modo de vida das famílias impacta diretamente na forma de viver e ocupar os espaços públicos, tanto entre grupos de adultos, quanto entre famílias e crianças: o espaço privado e murado se torna sinônimo de segurança, fazendo com que as crianças estejam durante a maior parte do tempo recolhidas a esses espaços (CALDEIRA, 2011).
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Esse modelo de ocupação caracterizou a chamada cidade de muros, descrito por Caldeira (2011) como um padrão de ocupação que evoluiu do padrão centro-periferia, mas que levou as classes média e alta a migrarem do centro para distritos periféricos1 e que, pela necessidade dos ricos de se isolarem das habitações de classe baixa que já ocupavam aquele território, gerou o que a autora chama de “enclaves fortificados”. Estes consistem na utilização de muros e sistemas de segurança ostensivos para isolar e proteger os condomínios de classe média e alta. Tal padrão de ocupação acentuou a fragmentação do tecido urbano e social, pois fomentou a cultura do medo na cidade de maneira cíclica: 1 Ocupação que se deu pelo mercado imobiliário e sua busca por terrenos desvalorizados e baratos, construindo condomínios (habitacionais ou de escritórios) e urbanizando apenas o entorno de seu próprio terreno (CALDEIRA, 2011).
Segregação tensões entre as diferentes classes violência medo muros e tecnologias de segurança longos trajetos murados pedestre sem motivo para transitar calçadas se tornam lugares desertos insegurança locomoção apenas por carros segregação Jane Jacobs acompanhou a renovação dos espaços públicos por volta de 1950 nos Estados Unidos e foi grande crítica das novas mudanças. Em seu livro “Morte e Vida de Grandes Cidades” (2017), ela nos traz o conceito de olhos que vigiam, que é o cuidado inconsciente que as pessoas que pertencem a um lugar têm por ele e pelas pessoas que o vivenciam. São elas que garantem a segurança do bairro, quem são as proprietárias naturais daquele espaço e, portanto, se sentem confiantes o suficiente para tomar conta dele, tendo o movimento das ruas como entretenimento e, assim, vigiando aquele espaço e garantindo que tanto conhecidos quanto “estranhos” se sintam seguros e no direito de atribuir às ruas e calçadas a espontaneidade de usos que lhes é devida. Desde que haja pessoas utilizando e transitando na rua, mas também dentro das casas, comércios e aposentos voltados a ela, desde que as crianças possam brincar e os adultos possam confiar no espaço e em seus usuários, desde que a rua desempenhe seu papel de abrigar pedestres e servir à circulação, os olhos vigiam e garantem a segurança e o pertencimento daqueles espaços ao seu bairro. Na cidade de muros, os olhos que vigiam são bloqueados, e voltamos ao ciclo mencionado anteriormente. Nos bairros de classe baixa, o lazer gratuito tem mais espaço que o pago, onde os moradores se apropriam dos espaços que lhes pertence para desenvolver usos que supram a demanda do bairro. Daí a importância da noção de pertencimento e cidadania – temos novamente um ciclo urbano, mas dessa vez ele se inverte: Vitalidade dos espaços públicos pessoas na rua diversidade de usos padrões espaciais que satisfazem as necessidades dos usuários vitalidade dos espaços públicos
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Dessa maneira, as pessoas são o principal fator de ativação dos espaços públicos, que, por sua vez, devem ter sua manutenção pelo bom desenvolvimento do comércio e serviço, assim mantendo seus atrativos e seus pedestres circulando. Conforme coloca Jacobs (2017), o movimento na rua estabelece uma rede de confiança entre os vizinhos e suas famílias, dando abertura para os olhos que vigiam e favorecendo a permanência das crianças em tais espaços, que por sua vez também se configuram em elemento de ativação do espaço público.
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[3]
os espaços públicos de lazer familiar Conforme dito na abertura do capítulo, as mudanças urbanas ao longo do século XX tiveram diversas causas e consequências. A sociedade industrial, a reformulação da família e do trabalho, a intensificação da segregação socioespacial... houve toda uma revolução nos modos de morar e viver a cidade, em que a rua deixou de ser espaço de troca e lazer, o urbanismo se desenvolveu em torno das necessidades dos automóveis e da cidade com crescimento horizontal e periférico, as famílias perderam sua liberdade e autonomia, e o espaço público foi completamente ressignificado. Nessa nova dimensão da cidade moderna, tudo é planejado, qualquer espaço livre que “sobra” para ser ocupado abertamente e ter seu uso atribuído de maneira espontânea pelas pessoas que eventualmente irão notá-lo, rapidamente se transforma em algum comércio ou é destinado para um novo uso – geralmente para adultos e com o intuito de gerar lucro. Os usos “padrão” ganham cada vez mais espaço na cidade, enquanto a necessidade de espaços vazios, indeterminados, informais e inesperados, é ignorada. Assim, as áreas livres na cidade se tornam poucas e rasas, muitas vezes degradadas e esquecidas pelo poder público como potencial espaço com função social a ser cumprida (HERTZBERGER, 2008). Rolnik (2000), antes de tratar dos espaços públicos destinados ao lazer, analisa o que de fato é o lazer na sociedade contemporânea. Para isso, utiliza a abordagem do lazer como a existência de um tempo livre, um tempo de “não-trabalho”, destinado basicamente para três funções: descanso, divertimento e desenvolvimento, envolvendo liberdade de escolha, busca por prazer e o que seria uma “atividade não lucrativa”. A questão é que, com a chegada do sistema capitalista e a sociedade de consumo, o lazer passa a ter características de mercadoria, transformando o tempo livre em consumismo.
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Unindo-se a ela, França (2017) discorre sobre essa relação do tempo livre versus lazer versus mercantilização da busca por prazer. Ao transformar o trabalhador em consumidor até mesmo em seu tempo de não produção, o capitalismo exerce mais uma vez a diferenciação entre classes, onde o acesso às atividades de lazer é controlado e ocorre uma segregação por condições financeiras. Tais situações acontecem devido ao tipo de urbanismo e ocupação do espaço público que têm sido desenvolvidos desde o início do século XX, intensificado pelo urbanismo modernista que priorizou na cidade as funções de lazer, morar, trabalho e circulação, das quais apenas a última é realizada na dimensão pública. Rolnik (2000, p. 4) explica: “Para a perda da multifuncionalidade da cidade contribuiu o urbanismo modernista que desagregou as funções da cidade, definindo para cada uma delas um lugar e uma missão separada e específica, provocando a diminuição das possibilidades e da quantidade de contatos e misturas de uso que caracterizaram a cidade multifuncional e mais pública. A aceleração da evolução desse modelo privatista trouxe como resultado concreto e nocivo a desigualdade social, econômica e política, exacerbada nesse momento pela globalização e pelo neoliberalismo.”
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Até agora, tratamos dos efeitos das transformações urbanísticas e sociais que se desenvolveram no século XX somente do ponto de vista do adulto. Mas como tudo isso transformou o desenvolvimento das crianças? De que modo elas foram afetadas por todas essas mudanças e novas formas de viver? Como a experiência de cidade se modificou para elas? Qual o espaço projetado para elas? Os playgrounds padronizados, quando existem, são capazes de oferecer uma diversidade de usos e estímulos? Hertzberger (2008) argumenta que não, que os espaços para descobertas e aventuras são normalmente sufocados pela necessidade de regular os usos e que, “na melhor das hipóteses, o espaço oficial de brincar é organizado e estabelecido, sendo impermeável a novas experiências e interpretações” (tradução livre)2. 2 “[…] being at best the official play space, arranged and established and therefore impervious to new experiences and interpretations.” (HERTZBERGER, 2008, p. 212)
Seguindo essa linha de raciocínio, ele diz que os playgrounds tradicionais, com suas cores e materialidades, não foram pensados com a preocupação de estimular o desenvolvimento mental e motor da criança, mas apenas de entretê-las. E, de fato, não podemos negar que elas gostem e brinquem nesses equipamentos, mas o uso único e direcionado, a falta de ludicidade e abertura que incitam a exploração e fazem com que as crianças diversifiquem suas brincadeiras, remete a uma obediência que as priva de sua liberdade criadora. Os playgrounds urbanos devem, na verdade, ser um espaço que estimula o desenvolvimento e a imaginação, que ensina as crianças a se engajarem como cidadãs (HERTZBERGER, 2008). Ao nos voltarmos para a Holanda em 1947, podemos ver Aldo van Eyck propor um novo modelo de playground como experimento socioespacial que questionou o urbanismo moderno funcionalista que estava sendo desenvolvido na época. O experimento se deu no momento pós 2ª Guerra Mundial, com as cidades holandesas destruídas e num momento social extremamente delicado. Aproveitando os terrenos vazios em meio a zonas residenciais, van Eyck desenvolveu um programa de playgrounds com elementos fixos, como caixas de areia, barras de escalada, corrimãos, bancos e pedras, tendo pensado em cada um cuidadosamente para agregar o que as crianças gostam e se sentem mais estimuladas. Ele utilizou as formas e materiais primários, sem adição de cores, e manteve seu conceito simples e abstrato, unindo os elementos ao mobiliário urbano, e desenvolvendo uma nova composição de elementos para cada área a ser transformada (HERTZBERGER, 2008).
[5]
ilustração dos equipamentos projetados por van Eyck [4]
Oudenampsen (2001, p. 55) descreve com precisão a dimensão e importância do que foram os playgrounds de van Eyck: "Van Eyck desenhava conscientemente os equipamentos de forma mínima para estimular a imaginação de seus usuários: as crianças. O objetivo era que pudessem apropriar-se do espaço, deixando as interpretações em aberto. O segundo aspecto era seu caráter modular: os elementos básicos (caixas de areia, barras, pedras, escorregadores e gaiolas) podiam ser recombinados de maneira infinita em diferentes composições policêntricas, em função de cada lugar. O terceiro aspecto é a relação com o entorno, a natureza intermediária ou intersticial de cada playground. O seu desenho sempre buscava uma interação com o tecido urbano ao redor."
implantação de um dos playgrounds de van Eyck [6]
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[7]
No Brasil, ocorreu algo similar entre 1930 e 1940, quando Mario de Andrade foi Secretário do Departamento Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo (1935-38). Segundo Arantes (2015), em meio a um período de incertezas e instabilidade política, em que o presidente Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, buscava instaurar uma educação formal, sistemática e organizada, Mario de Andrade espalhava pela cidade de São Paulo seus Parques Infantis. Com objetivo de abrigar as crianças de famílias operárias, que ficavam sozinhas nas ruas enquanto seus pais trabalhavam, esses Parques funcionavam como uma “extensão da educação escolar”, onde eram desenvolvidas atividades com as crianças, juntamente com uma assistência médica, avaliação e tratamento médico-odontológico, e refeições diárias para dar suporte a essas crianças. Arantes (2015) descreve que o programa era composto por um gramado com brinquedos como balanços, gangorras, escorregadores e tanques de areia, junto a uma biblioteca e um abrigo-mor como auxiliar (com banheiros, chuveiros, salas de instrutores e médicos). Eram desenvolvidas atividades lúdicas, possibilitando que as crianças se expressassem usando diferentes maneiras, formas e intensidades, exercícios das dimensões humanas – lúdica, artística, imaginária – e promovendo a construção do conhecimento espontâneo e expressão da cultura. A brincadeira era realmente tratada e desenvolvida como ensinamento, complementar à educação regrada da escola, mas com uma liberdade de escolha e expressão que respeita a formação do indivíduo e sua participação na cidade.
[8]
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rua: risco ou liberdade? Como consequência da perda das relações afetivas nos espaços públicos, surgiu uma segregação socioespacial muito intensa, onde a população de classes alta e média se fecharam nos espaços privados, internos e murados, e a população de classe baixa se refugiou nos espaços que restaram: as áreas público-privadas que sobram entre os prédios dos conjuntos habitacionais e das escolas, terrenos vazios, vielas de favelas, quadras de comunidades, e a própria rua, sempre tendendo à fuga do espaço fechado de suas pequenas residências. A maioria desses refúgios não desempenha caráter infantil, e, muitas vezes, coloca as crianças em situação de violência e vulnerabilidade (LIMA, 1989). campo de futebol em meio a barracos da Favela do Moinho [9]
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Essa segregação socioespacial marcou o território por meio de uma expressão de estrutura social desigual e estratificada, fragmentando-o e alterando a relação das crianças com os espaços públicos (NOSEK, 2018). É importante e necessário tratarmos das experiências de famílias de classe alta e média separadamente das de famílias de classe baixa. A vivência e ocupação nos bairros de classe média e alta se dá pelo medo da violência, pelos condomínios fechados e ruas vazias, com as pessoas recolhidas em seus espaços privados com acesso controlado. Voltamos à cidade dos muros citada anteriormente: os condomínios ocupam seu térreo com espaços de lazer disponíveis apenas para aqueles que moram ali e a locomoção se dá por veículos individuais. A rotina dessas crianças é inteiramente ocupada por diferentes cursos e atividades capacitadoras, diferentes esportes, línguas, instrumentos, compromissos e obrigações a que são submetidas desde que aprendem a falar, e que se dão em escolas e espaços fechados isolados da cidade e seus espaços públicos (NOSEK, 2018). É claro que tais atividades exercem papel importante no desenvolvimento daquelas crianças como pessoas, mas, ao mesmo tempo, colocam uma responsabilidade de alta produtividade e valor de mercado nas costas de uma criança que é tratada, conforme coloca Lima (1989), como uma “redução imperfeita do adulto”. Essas crianças crescem sem contato com a cidade aberta e seus espaços e, mais importante, sem contato com as áreas e pessoas mais pobres da cidade, “causando uma ruptura nas relações sociais entre cidadãos de diferentes faixas de renda”, como afirma Nosek (2018, p. 145). Dessa forma, as crianças crescem sem vivenciar a cidade onde moram, o que afeta diretamente sua noção de pertencimento àquele lugar e, assim, sua formação e atuação como cidadãs de fato.
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Já nos bairros de classe baixa, o modo de ocupação é bem diferente, geralmente por loteamentos irregulares, construções precárias ou conjuntos habitacionais, e o espaço público não tem a manutenção necessária pelo governo, muitas vezes chegando a um estado degradado e danificado. Apesar disso, pelo que já comentamos do lazer como mercadoria, a rua – aberta e de graça – é o local que resta para o convívio, conforme coloca Rolnik (2000, p. 5) no trecho: "Permanece na rua apenas aquele grupo ao qual só resta o espaço público como moradia, como trabalho, como refúgio de sobrevivência." A população de baixa renda se apropria do espaço público para desenvolver suas atividades rotineiras, tanto de trabalho quanto de lazer e atribui ao espaço público os usos que lhe são devidos – comércios locais ou irregulares, festas de rua, feirinhas, ou apenas uma reunião entre amigos e vizinhos. Tal modo de ocupação desenvolve uma autonomia e sensação de pertencimento, que é o que Jacobs (2017) coloca como fatores fundamentais para embasar os olhos que vigiam e a segurança da rua. Então, sim, o espaço público nos bairros de classe baixa tem propensão de ser seguro pela alta sociabilidade entre vizinhos e por existir uma proteção comunitária; porém, há ainda outras questões que influenciam negativamente a vivência nesses bairros e o desenvolvimento das crianças que crescem ali.
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As principais são os altos índices de vulnerabilidade social e violência, ocasionados pela situação econômica e social das comunidades. Segundo Nosek (2018), a precariedade das condições de vida torna os indivíduos e a comunidade como um todo mais suscetíveis a situações de violência e drogas, inclusive quando falamos da violência contra a criança. Minayo (2001) divide essa violência em duas: a violência estrutural e a social. A estrutural se dá pelas condições de vida a que a criança é exposta, tornando vulnerável seu
crescimento e desenvolvimento; já a violência social é toda aquela cometida diretamente contra a criança, por um indivíduo ou pela comunidade, podendo ocorrer física ou psicologicamente, e incluindo a violência doméstica, que acontece dentro de casa. Nos bairros pobres, então, a vivência infantil ocorre de maneira fragilizada, como descreve Nosek (2018, p. 138): "[...] o desenvolvimento das crianças se dá frequentemente a partir de um ambiente doméstico e comunitário, sem relações sustentadoras, com estímulos inadequados e insuficientes e com a presença de drogas e violência." Assim, a segregação socioespacial atinge a infância tanto nos bairros pobres quanto nos ricos, de maneiras diferentes, mas ambas prejudiciais à cidadania ativa. Com as crianças de classe baixa, ocorre a marginalização e acúmulo de precariedades, expondo a infância a riscos e violências que tornam necessária e inevitável uma maturidade precoce, ao mesmo tempo em que possibilita uma liberdade em usufruir dos espaços públicos disponíveis, trazendo o sentimento de pertencimento à comunidade da qual fazem parte. Já as crianças de classes média e alta têm a oportunidade de se desenvolver de forma segura em ambientes propícios para sua formação e aproveitamento da ingenuidade da infância, porém são inseridas em um isolamento socioespacial, que promove o afastamento da vida pública e se manifesta na “deslegitimação da cidadania” (NOSEK, 2018, p. 189). imagem da intervenção militar na comunidade Kelson, no Rio de Janeiro/RJ ilustra a violência estrutural nas periferias, pelas condições precárias do território e repressão policial nas comunidades [ 10 ]
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o desenho urbano pensado para a ocupação da cidade pela criança
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Diante de todas as mudanças sociais e espaciais que ocorreram na cidade ao longo do século XX e início do XXI, a configuração e modo de vida das famílias também sofreram alterações. Contribuiu para o recolhimento das crianças ao espaço público não só o urbanismo voltado para o automóvel, mas a tecnologia, que ofereceu novas possibilidades de brincadeira dentro de casa (NOSEK, 2018). O desafio contemporâneo para os arquitetos e planejadores urbanos das grandes cidades é incentivar novos tipos de experiência do espaço urbano e trazer de volta a rua como espaço de troca e palco das relações sociais, driblando o tráfego intenso nas ruas e avenidas de modo com que as famílias sintam-se seguras em deixar as crianças brincarem no espaço público, e desenvolver esse espaço por meio de ambientes que estimulem e deem autonomia e liberdade para a brincadeira, despertando nas crianças a vontade de ocupar e pertencer àquele espaço. Sendo uma questão global, não específica a um único país, diversas cidades ao redor do mundo estão sendo orientadas e instruídas a promover e implantar políticas públicas que incentivem o acesso e a manutenção da qualidade dos espaços públicos, para que seus habitantes usufruam dos benefícios da vida urbana, e o universo infantil seja abraçado e estimulado por esses espaços (NOSEK, 2018).
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Tais iniciativas têm grande participação do terceiro setor, como é o caso da Fundação Bernard van Leer, que desenvolveu a solução Urban95 e eventos como o “Small Children, Big Cities”, e a própria UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), que formulou o guia “Shaping Urbanization for Children”, dos quais iremos trabalhar como embasamento e referência para esta monografia. Ambas iniciativas trabalham com a ideia de Design Universal, que seria o design (de produtos, ambientes, programas e serviços) inclusivo, que pode ser usado por todas as pessoas sem a necessidade de adaptação, como descreve o guia Shaping Urbanization for Children, da Unicef (2018). Trazendo isso para o urbanismo e os espaços públicos, podemos afirmar que, quando pensado para a criança e sua família ou cuidadores, o planejamento urbano abriga diversos outros tipos de usuários – adultos, jovens, idosos, pessoas com mobilidade reduzida, entre outros. Isso acontece porque as crianças necessitam de ambientes seguros e estimulantes, com iluminação e vegetação adequadas, acesso a serviços de saúde e alimentação saudável, e recursos de mobilidade que tornem a cidade caminhável. Dessa forma, quando projetado para a família, o espaço público abriga também as necessidades de diversos outros grupos sociais, fazendo com que se torne o cenário ideal para o desenho urbano das cidades. Ao facilitar a rotina das famílias, crianças e seus cuidadores e oferecer lazer público adequado a esse grupo, os demais também se beneficiam da cidade pensada para pessoas (URBAN95, 2019). 34
Nosek (2018) diz que a presença de crianças no espaço público pode ser um indicador positivo da qualidade urbana de uma cidade. Para chegar nesse nível de ocupação, a Unicef (2018) elencou 5 fatores essenciais, que unem os direitos das crianças aos pilares de sustentabilidade para o planejamento urbano:
Saúde – com moradias apropriadas, espaços públicos que estimulem a brincadeira, bairros caminháveis e acesso a comidas saudáveis; Segurança – com programas desenvolvidos na cidade no período de contraturno da educação formal (as escolas) e acesso à informação; Cidadania – por meio de bairros de uso misto para incentivar a interação social ao mesmo tempo em que disponibilizam espaços públicos que promovam o encontro e conversa; Sustentabilidade – dispondo de horta comunitária, infraestrutura de reciclagem e acesso à água; Prosperidade – pelo planejamento de escolas, moradia acessível, economia local e ensino avançado. Tais fatores refletem a interação mútua entre a criança e o meio construído, trabalhando tanto na escala da cidade, quanto na escala dos equipamentos públicos e mobiliários urbanos. A grande escala é necessária para a estrutura geral da cidade e infraestrutura dos bairros, enquanto a pequena escala, aplicada aos espaços públicos, permite que os equipamentos e mobiliários sejam projetados com a devida atenção às necessidades de seus usuários, no caso, as crianças (UNICEF, 2018). É importante, também, tratarmos do desenvolvimento das crianças como cidadãs ativas nesses espaços. Daí o sentimento de pertencimento comentado no capítulo anterior. Para isso, é necessário que elas vivenciem os espaços públicos e que estes favoreçam a realização de atividades e brincadeiras que valorizem as experiências da população e ofereçam condições para tal, sendo necessário que sejam planejadas e executadas com foco nelas, em suas atividades, necessidades e vontades. Nosek (2018, p. 19) coloca:
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"O modelo cívico forma-se da cultura, do espaço, da diversidade de relações sociais e do exercício da liberdade; portanto, a utilização do espaço público é fundamental para o desenvolvimento da cidadania nas crianças." No âmbito da cidade, Mayumi de Souza Lima (1989) pergunta: quais espaços são oferecidos às crianças? Como elas percebem, captam e utilizam esses espaços?
crianças e adultos brincando e explorando equipamentos públicos na praia [ 11 ]
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a cidade do ponto de vista da criança
"Se você pudesse experimentar a cidade a partir de uma elevação de 95cm – a estatura de uma criança de três anos – o que você mudaria?" – URBAN95, 2019 Na cidade contemporânea, o pensamento que condiciona o planejamento urbano é o da cidade para o adulto. Os percursos, as fachadas, as ruas, calçadas, a mobilidade, são todos desenvolvidos pelo e para o adulto e, quando muito, nas praças e parques há playgrounds com brinquedos de função única e direcionada, como balanços, gangorras, trepa-trepas, escorregadores e gira-giras (LIMA, 1989). Não que eles não sejam utilizados e explorados com gosto pelas crianças, mas não possuem o caráter lúdico necessário para instigar a curiosidade e o imaginário infantil, que atribuem à brincadeira um perfil de exploração sensorial livre e ao mesmo tempo de caráter pedagógico. A criança da atualidade experiencia a cidade nos momentos de circulação – o ir e vir da escola, do mercado, do trabalho dos pais. Seu uso da cidade se dá em pequenos “interstícios de tempo”, que acontecem em meio a uma hegemonia espacial dos adultos, como coloca Nascimento (2009, p.39) em sua dissertação: "Nesses intervalos de tempo, nos quais transitam de um espaço privado para outro, as crianças brincam mediante a leitura metafórica e uso lúdico dos espaços e equipamentos urbanos da cidade."
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Ou seja, o contato estabelecido é curto e efêmero. Em meio à dinâmica do intenso tráfego de veículos, a paisagem é vista de dentro do carro, van escolar ou ônibus; se dando de forma passageira, esse é o momento em que as crianças veem e aprendem os detalhes urbanos. Daí a necessidade de tornar a cidade e os percursos escolares caminháveis, para tornar físico o contato com a cidade, para que a curiosidade infantil seja aguçada e leve à exploração e descoberta de elementos que os adultos não dão atenção – buracos, bancos, poças, insetos, folhas caídas, são inúmeros os itens a serem explorados pelo olhar infantil. Em “Space and Learning”, Hertzberger (2008) coloca em questionamento esses percursos escolares e o que essas rotas têm a oferecer ou ser explorado, o que as crianças vivenciam além dos efeitos do trânsito, pessoas trabalhando e empresas funcionando. E, então, vai de encontro ao que a Urban95 coloca como principal ponto de sua abordagem: a importância das experiências que as crianças absorvem da cidade como educação não formal e como elementos de desenvolvimento e fortificação das conexões cerebrais na primeira infância.
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A Urban95 é uma iniciativa para auxiliar cidades e seus líderes a entender a importância de investir na infância. De acordo com o “Urban95 Starter Kit”, guia que reúne diversas informações e ideias de ação que unem a criança ao espaço urbano, a primeira infância – período que vai de 0 a 6 anos – é um momento crucial e decisivo na vida de uma pessoa. O cérebro dos bebês é moldado pelas experiências desses primeiros anos de vida: é nos primeiros 1000 dias que o cérebro estabelece as conexões neurais base – as conexões mais usadas são fortalecidas, enquanto as que não são ativadas se enfraquecem até desaparecerem. Ou seja, a qualidade das experiências nessa etapa de desenvolvimento estabelece conexões fortes ou fracas para tudo que acontecerá a seguir na vida da pessoa, como habilidades de aprender, se adaptar e se relacionar.
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Daí a importância de urbanistas, planejadores e mantenedores se atentarem aos espaços urbanos do ponto de vista da criança. Nascimento (2009, p. 50) afirma: "As crianças são perspicazes e andam pelas ruas com os olhos atentos a todos os detalhes da cidade, até em um tomate caído em um buraco, revelando que a curiosidade leva à descoberta." Em "A Cidade e a Criança", Lima (1989) discorre sobre os espaços infantis e a maneira com que são projetados. Os espaços, sejam urbanos ou escolares, são desenhados por adultos, pensando no que eles gostariam para as crianças, ou, quando muito, no que eles acham que as crianças gostam, mas sem proporcionar a participação infantil e a escuta da criança durante esse processo. Assim, o adulto tem o histórico constante de impor brincadeiras e espaços com funções determinadas e regras a serem seguidas, limitando os “caminhos da imaginação” e ignorando o tão falado ponto de vista da criança. Aos adultos que projetam para crianças, é necessário "pensar pequeno": não apenas se colocar nos 95 centímetros comentados pela Urban95, mas ouvi-los. Dessa perspectiva, Lima (1989) afirma que o brincar e o jogar são o “assunto sério” das crianças, é onde elas concentram seu foco e energia – a “hora do recreio” é também a hora de aprender. Então, os planejadores, designers e projetistas precisam ser muito cautelosos ao desenhar os espaços e mobiliários nos quais as crianças vão desenvolver essas atividades.
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a rotina das famílias e cuidadoras como fator determinante
Durante a primeira infância, a criança depende quase que completamente de um cuidador adulto; é ele quem vai escolher os espaços que vão frequentar, caminhos que vão percorrer, quais alimentos irão consumir e a forma mais eficiente de servi-los, e o mesmo serve para a higiene, educação, entretenimento e, igualmente importante, a brincadeira. A pessoa que cuida é quem mais interage com a criança e quem mais tem impacto direto e decisivo em sua formação. Para que essa influência seja positiva e o cuidador possa oferecer à criança os estímulos, a sensibilidade, o carinho, a compreensão e o conhecimento necessários, os espaços e as cidades devem prover apoio adequado não só para a infância, mas para quem anda ao seu lado: os cuidadores – na realidade, as cuidadoras, já que é uma tarefa realizada em sua maioria por mulheres (URBAN95, 2019). "Cuidadores moldam nosso futuro coletivo." – Urban95, 2019
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Por meio da pesquisa de María Ángeles Durán, sobre o valor do tempo e o tempo do cuidar, Riaño e Rivas (2015) discorrem sobre a distribuição desigual do “trabalho não remunerado” que é cuidar das crianças. Considerando o tempo total em horas dedicado a essa tarefa, as mulheres são responsáveis por 81,5%, enquanto os homens, por 17,5%; quando colocamos em horas ocupadas por dia, Samman (2016) evidencia dados que somam entre 1,7 a 10 semanas por ano de diferença entre homens e mulheres, ou ainda de 1,6 a 10 anos num período de 50 anos – dependendo do país e da classe social das famílias.
Por essa disparidade exposta pelas pesquisas citadas, unem-se aqui discussões essenciais para tratarmos de uma nova perspectiva de planejamento das cidades: a questão de gênero na dinâmica urbana, a mobilidade urbana e o tempo como privilégio na sociedade contemporânea, e a atenção especial que deve ser dada aos espaços infantis e familiares para o desenvolvimento das crianças como cidadãs ativas. Riaño e Rivas (2015) analisam a etimologia da palavra cuidar e como ela é aplicada à cidade e seu planejamento. A palavra cuidar vem do latim cogitare, que significa pensar. A raiz dessa palavra estando no verbo pensar e não no fazer indica que se trata do ato de atribuir atenção a alguém, de colocar na sua própria rotina e prioridades as necessidades dos outros. Nesse sentido, considerando que grande parte da jornada do cuidado às crianças é atribuída à mulher, é a ela que devemos nos voltar e estudar. Sua rotina, planejamento diário, necessidades pessoais, profissionais e familiares, sua forma de lazer e fuga do trabalho (seja ele remunerado ou não); precisamos pensar os equipamentos e espaços públicos de modo a facilitar e servir a seus afazeres. Envolvemos nesses aspectos principalmente a mobilidade urbana e deslocamentos diários (casa – escola – trabalho – mercado – escola – casa), tratando também de tarefas que ela agrega como afazer, como prover alimentação e itens para a casa, enquanto entra como necessidade também o brincar e divertir – seja no espaço de casa, seja no espaço público. Riaño e Rivas (2015) destacam: "Na distribuição desigual do trabalho não remunerado, escondida sob o céu das ‘decisões pessoais’, encontramos um sistema de segregação sexual que não só atribui às mulheres o cuidado, como se fosse algo natural para elas, mas ao mesmo tempo menospreza e torna insensível o valor deste enorme trabalho, do qual depende o bem-estar físico e emocional de nossa espécie."
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As autoras discorrem sobre a cidade que cuida, sendo aquela que “destina tempo, energia e recursos” a pensar e planejar os espaços para servirem às necessidades dos cidadãos; pensar nas relações das pessoas com o que há na cidade, quem irá trabalhar naquele espaço, o que essa pessoa irá precisar e como ela usa os equipamentos e espaços disponíveis. Em resumo, de que maneira o planejamento das cidades pode facilitar a vida daqueles que a habitam e, sobretudo, daqueles que mais precisam de cuidado. Se a cidade teve a possibilidade de ser fragmentada e setorizada, foi porque parte da população – as mulheres, principalmente – gastou seu tempo percorrendo as distâncias para unir os usos que a cidade rompia (RIAÑOS; RIVAS, 2015). Em sua dissertação, Nosek (2018) discute o tempo como produto da segregação, pois não é vivido de forma igualitária pelos diferentes gêneros e classes sociais. Os deslocamentos, o tráfego intenso e as grandes distâncias a serem vencidas tornam do tempo um privilégio na cidade contemporânea. Voltando aos olhos que vigiam, de Jane Jacobs (2017), tratamos dos olhos que cuidam. O cuidado das crianças costumava ser, de certa forma, uma tarefa comunitária, pois havia a colaboração dos vizinhos próximos e até dos transeuntes. Com as alterações nas dinâmicas de uso do espaço público, esse cuidado se tornou uma atividade mais individual, exigente e solitária. Resta à cidade, então, devolver a essas mães, tias, avós, vizinhas e babás sua vivência ampla do espaço e a proximidade das relações. Uma cidade que agrega bairros de uso misto e com espaços públicos voltados à infância e à família e cuidadoras, é capaz de reduzir a dupla jornada de trabalho da mulher, facilitar sua rotina e devolver a ela parte do tempo e estresse que consome seu bemestar e impacta na maneira com que vive e educa. 42
Não podemos deixar de comentar também sobre os desertos alimentares. Segundo o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), desertos alimentares são locais sem acesso a alimentos in natura ou minimamente processados, fazendo com que os moradores tenham que sair de seu bairro para obter esses itens, essenciais a uma alimentação saudável. Essa situação ocorre geralmente em bairros periféricos ou com baixos indicadores sociais, pois possuem maior concentração de pequenos comércios varejistas, que focam suas vendas em alimentos processados e ultraprocessados.
No cenário infantil e familiar, crescer em meio a um deserto alimentar acaba sendo mais um fator de amplitude da desigualdade social. Quando têm dificuldade de acesso a alimentos nutritivos, os pais ou familiares precisam gastar mais tempo e energia para se locomover e conseguir comprar tais produtos, o que nem sempre é viável, fazendo com que, muitas vezes, sirvam à família outras formas de alimentação, como os processados. Conforme dito anteriormente, segundo o Urban95 (2019), o desenvolvimento cerebral e corporal durante os 1000 primeiros dias de vida de uma criança é crucial e estabelece toda uma fundação para o que ela virá usar e precisar pelo resto da vida; sem acesso a uma alimentação e fonte de energia saudável, esse desenvolvimento fica defasado, impactando toda uma vida e capacitação. O IDEC (2020) coloca: "As pessoas consomem alimentos de acordo com a oferta que encontram nas proximidades de suas residências, quer sejam frutas e verduras, quer sejam fast foods." O papel da cidade e do governo em meio a essa situação, segundo o IDEC (2020), é promover políticas públicas que incentivem o fácil acesso à alimentação saudável, como feiras livres, hortas comunitárias, ou até mesmo incentivando que pequenos comércios passem a comercializar alimentos in natura ou minimamente processados. Num geral, concluímos que os moradores da periferia encontram diversos obstáculos para cuidar e sustentar sua família de forma fácil e adequada. É função dos planejadores e urbanistas, então, tornar essas tarefas mais práticas e confortáveis, de modo com que as famílias consigam dispor de tempo suficiente para criar seus filhos com o cuidado necessário e viver o lazer fora do período de trabalho (remunerado ou não).
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o ambiente escolar
a escola como articuladora da relação da criança com o território
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A escola é o “espaço oficial” da criança na cidade, aquele que de fato trata a criança como usuária. É nela que se dá o aprendizado que o Estado julga ser necessário para o desenvolvimento de todo cidadão e cidadã, por meio de um currículo escolar padronizado, transmitido em uma sala de aula com as mesas e cadeiras orientadas para a pessoa que tem algo a ensinar – a professora ou o professor. O horário das atividades esportivas, períodos de recreação e brincadeiras é limitado e designado pela diretoria de cada escola, sendo tratado como um “descanso” na grade curricular (LIMA, 1989). É por meio desse território nada dinâmico e extremamente ditatorial que se dá o principal espaço designado para a criança na cidade. É por meio dele que as dinâmicas urbanas infantis acontecem: a entrada e saída da aula, as amizades, o planejamento das atividades do contraturno entre as crianças, o desenvolvimento da principal ocupação da criança durante o dia. E é por isso que é necessário olhar para esse território com tanta cautela: é nele que os cidadãos do futuro se desenvolvem. De acordo com Singer (2015), a escola tradicional é marcada pela hierarquização do ensino, que se dá por meio de um caráter opressor e disciplinar, cheio de regras e limites, e ainda reforçado pela arquitetura escolar padronizada, que se consolidou numa reprodução de modelos que priorizam o programa de necessidades e metragem a ser respeitada, antes de considerar o entorno e seu território como complementares do ensino.
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Hertzberger (2008) discorre sobre o tema dizendo que a inadequação da cidade para as crianças coloca em questão sua adequação para todos. A cidade moderna é moldada por interesses políticos e econômicos, limitando seu potencial como local de eterno aprendizado, já que esse é um processo infindo. Ao longo de toda a vida, nunca paramos de absorver novas experiências e, ao invés de pressionar e ensinar as crianças a se adaptarem ao mundo dos adultos, devíamos fazer o contrário: usufruir a cidade e seus espaços como locais de ensino. Podemos considerar a cidade como uma grande escola na qual está agregado um conhecimento e compreensão de mundo que faz da sociedade o que ela é. É a noção colocada como “educação permanente”, que desconecta o aprendizado de um espaço ou idade, da limitação do currículo escolar direcionado às crianças e adolescentes, mas que aborda o tema de modo mais universal e como uma prática diária independentemente da idade. Singer (2015, p. 16) exalta: " [...] a educação é, por definição, integral, uma vez que deve atender a todas as dimensões do desenvolvimento humano e, como processo, estende-se ao longo de toda a vida."
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Nos padrões do processo educativo tradicional, o desenvolvimento humano (físico-motor, afetivo-emocional e social) é colocado, conforme coloca Singer (2015), como coadjuvante, quando, na verdade, deveria ser complementar ao desenvolvimento intelectual, pois exercem papeis igualmente essenciais, e deveriam ser colocados lado a lado como prioridades do Estado. Lima (1989) coloca em questão o espaço da escola como é feito tradicionalmente, se assemelhando a uma prisão com moldes disciplinares limitantes. A mudança deve ocorrer não só na arquitetura dessas escolas,
mas no método pedagógico utilizado e na formação dos profissionais responsáveis pelas crianças e seu ensino, assim como na forma com que a cidade é colocada pelo ponto de vista escolar. Ao considerar que as crianças não devam ser moldadas por padrões intelectuais, mas sim abordarem o desenvolvimento lúdico dos espaços, colocamos a cidade como ponto chave nesse aspecto. O conceito de Cidade Educadora ficou conhecido, segundo Nosek (2018), por meio do relatório “Aprender a Ser”, da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em 1972. Tratase da ideia de que a educação não deve se limitar à escola e seus muros, extrapolando o aprendizado para a escala do território e para todas as idades; é a ideia de a cidade valorizar e possibilitar experiências que agreguem novos conhecimentos a todos os cidadãos. Em 1990, com o I Congresso Internacional de Cidades Educadoras ocorrido em Barcelona, iniciou-se o Movimento das Cidades Educadoras, com o objetivo de difundir nas cidades princípios centrados no desenvolvimento pleno de seus habitantes, o que chamaram de Educação Integral – integral no sentido de não se limitar apenas ao horário e espaço da escola, e de se prolongar por toda a vida. Tais princípios foram organizados na Carta das Cidades Educadoras, tendo sua versão final divulgada no III Congresso Internacional em Bolonha, em 1994 (SINGER, 2015). Hertzberger (2018, p. 235) descreve: "A cidade é uma Cidade Educadora quando desperta nossa curiosidade, nos atrai, um lugar onde descobertas são feitas, que inspira associações e estimula o pensar." (tradução livre)3
3 “A city is a Learning City when it arouses our curiosity, draw us in, a place where discoveries are to be made, that invites associations, stimulates thinking.” (HERTZBERGER, 2008, p. 235)
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A partir daí, é essencial esclarecermos a diferença dos semelhantes termos “território educativo”, “Cidades Educadoras” e “Bairro-escola”. Território educativo: é o reconhecimento do conhecimento misturado, “aquele que se traduz entre a comunidade e a escola” (Bia Goulart em entrevista a SINGER, 2015); Hertzberger (2008) coloca que o território educativo acontece quando consideramos “a cidade como uma grande escola, na qual está agregado um conhecimento e compreensão que faz da comunidade o que ela é” (tradução livre)4. Cidades Educadoras: de acordo com a Carta das Cidades Educadoras (1994), “a cidade educadora é um sistema complexo em constante evolução e pode exprimir-se de diferentes formas, mas dará sempre prioridade absoluta ao investimento cultural e à formação permanente da sua população” Bairro-escola: conforme Singer (2015), é um “sistema de corresponsabilidade entre escolas, famílias e comunidades com foco na garantia de condições para o desenvolvimento das pessoas, especialmente as crianças e os jovens”.
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Em resumo, território educativo é aquele que envolve toda a comunidade num processo de educação que amplia o repertório das possibilidades de articulação entre as escolas e o território; já as Cidades Educadoras são um movimento que reúne e incentiva diversas cidades para implementar esse sistema de Educação Integral; enquanto que o Bairroescola é o sistema multidisciplinar, que conecta os diferentes elementos e equipamentos do bairro de modo a promover um todo integrado, que é o território educativo. 4 “We can regard the city as a large school in which is embedded all the knowledge and understanding that has made a community what it is […]” (HERTZBERGER, 2008, p. 236)
Os três são complementares e importantes para o entendimento da articulação entre a escola e seu território, mas, para isso, ambos a escola e o território precisam estar alinhados na formação de “sujeitos autônomos e integrados ao seu contexto sociocultural, capazes de produzir um conhecimento relevante para eles próprios e para o mundo”, conforme coloca Singer (2015, p. 18) em "Territórios Educativos: experiências em diálogo com o bairro-escola". A cidade passa a ser vista por uma perspectiva educativa, contendo em si mesma elementos importantes para uma formação integral e que mantém relações com as dinâmicas que nela acontecem, conforme é colocado na Carta das Cidades Educadoras (1994). Não se trata de substituir uma educação pela outra, mas de enriquecer e articular o conhecimento, sendo um movimento de mão dupla, em que “a escola se abre para a cidade, e a cidade entra efetivamente na escola” (SINGER, 2015, p. 94). Singer (2015, p. 6) coloca: "Foi com esse propósito que, nos últimos anos, diversas organizações, cidades e o próprio governo federal criaram programas que, de algum modo, promovem e fortalecem os territórios educativos." Nessa perspectiva, temos no Brasil algumas experiências de escolas que foram implementadas e consolidadas como políticas públicas, das quais iremos discutir a seguir. 51
Anísio Teixeira e a conceituação das Escolas Parque Entre as décadas de 1920 e 1930, o movimento moderno no Brasil buscava desenvolver uma identidade própria para o país, que fosse capaz de agregar em si toda a multiplicidade da cultura e miscigenação brasileira, podendo se basear nos modelos estrangeiros que sempre marcaram e tiveram grande presença na nossa cultura, mas tornando-os referência e não mais sendo figura principal. Na educação, esse movimento inspirou diversas personalidades a conceber a chamada Escola Nova brasileira, baseada no movimento da Escola Nova que já acontecia na Europa e Estados Unidos desde o final do século XIX, e se opunha ao modelo pedagógico tradicional (LOVATO; GOUVÊA, 2017). Foi também nesse período que Anísio Teixeira (1900-1971) iniciou sua carreira na vida pública como educador e gestor público no ano de 1924 como diretor da Instrução Pública do Estado da Bahia. Partindo dos conceitos do estadunidense John Dewey e em seus próprios conhecimentos, Anísio buscou desde sempre a democratização do ensino público e integral, conforme colocam Lovato e Gouvêa (2017, p. 67) no trecho: "[...] [Anísio Teixeira] procurou, a partir das condições brasileiras, encaminhar a questão da educação pública na direção da construção de um sistema articulado." 52
Ele oferecia as bases filosóficas do movimento da Escola Nova no Brasil, tendo participado ativamente da organização, em 1932, do Manifesto dos pioneiros da Educação Nova. Esse manifesto uniu diversos intelectuais com propostas reformistas para tornar a educação a grande pauta política do país, apresentando diferentes correntes de pensamentos que embasaram o documento que servia como um programa para a reconstrução educacional.
Conforme colocam Lovato e Gouvêa (2017) e Novak (2018), buscava-se atribuir à educação uma feição mais humana, capaz de integrar o indivíduo à sociedade e colocá-lo no centro do processo de aprendizado. Anísio se dedicou durante toda sua vida a promover mudanças estratégicas e planejadas na área educacional, que abrissem a escola para a comunidade e tornassem o ensino público universal e gratuito, democratizando a nação por meio da democratização do ensino. Durante o período da ditadura do Estado Novo, Anísio foi obrigado a se demitir e se refugiar no interior da Bahia até a queda de Getúlio Vargas, retornando como secretário da Educação e Saúde do estado da Bahia em 1947, no qual permaneceu buscando a descentralização do ensino e desenvolveu, por meio do Plano Estadual de Educação Escolar, o conceito das EscolasParque em Salvador (LOVATO; GOUVÊA, 2017). O conceito seguia três principais características dos movimentos de educação popular: a criança no caráter libertador da educação, com a formação integral e integrada; a necessidade de união para potencializar o processo de conscientização e organização popular, por meio da multidisciplinariedade; e a necessidade de criação de grupos e instituições educativas para difundir a ciência nas classes populares. A proposta, segundo Lovato e Gouvêa (2017), criava uma experiência genuinamente brasileira, focada em atividades educativas que extrapolavam o ensino propriamente intelectual e colocavam o estudante como sujeito de seu aprendizado, dando oportunidade de escolha e promovendo um ambiente de liberdade e confiança mútua.
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Anísio propunha inicialmente 9 centros de educação popular em Salvador, dos quais se realizou apenas o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, com projeto arquitetônico de Hélio Duarte e Diógenes Rebouças. No artigo A Escola Parque da Bahia, Anísio Teixeira (1967) explica o funcionamento do centro: a composição era formada por quatro escolas-classe, para mil alunos cada, integradas a uma escola-parque, que abrigaria o total de quatro mil alunos divididos em dois turnos escolares. Os alunos passariam metade do dia letivo na escola-classe, organizada em classes convencionais de 40 alunos e onde se dava o ensino curricular tradicional, juntamente a atendimentos médicos e odontológicos, e a outra metade na escola-parque, organizados em grupos de 20 alunos de acordo com as idades e tipos de aptidão, para realizar diversas atividades divididas nos seguinte setores: Setor de Trabalho: artes aplicadas Setor de Educação Física e Recreação: jogos, recreação e ginástica Setor Socializante: grêmio, jornal, rádio-escola, banco e loja Setor Artístico: música instrumental, canto, dança e teatro Setor de Extensão Cultural e Biblioteca: literatura, estudo e pesquisas Teixeira (1967) analisa o programa:
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"A organização da escola, pela forma desejada, daria ao aluno a oportunidade de participar, como membro da comunidade escolar, de um conjunto rico e diversificado de experiências, em que se sentiria, o estudante na escola-classe, o trabalhador, nas oficinas de atividades industriais, o cidadão, nas atividades sociais, o esportista, no ginásio, o artista no teatro e nas demais atividades de arte, pois todas essas atividades podiam e deviam ser desenvolvidas partindo experiência atual das crianças, para os planejamentos elaborados com sua plena participação e depois executados por elas próprias."
[ 13 ] galpão que compunha a escola-parque no Centro Educacional Carneiro Ribeiro
Seriam experiências educativas, pelas quais as crianças iriam adquirir hábitos de observação, desenvolver a capacidade de imaginar e ter ideias, examinar como poderiam ser executadas e executar o projeto, ganhando, assim, habilitação para a ação inteligente e eficiente em sua vida atual, a projetar-se para o futuro. Infelizmente o projeto não foi implantado de forma tão eficiente quanto foi desenvolvido. Teixeira (1967) coloca: "Veja-se bem que o Centro é uma conjugação de esforços do Ministério da Educação e do Governo do Estado, mas nem um nem outro o reconhecem plenamente em seus objetivos, seus métodos e o alcance do seu serviço." Segundo Teixeira (1967), em 1947 foi concluída a construção de apenas três das quatro escolas-classe propostas e, muito posteriormente, foram construídos o pavilhão de trabalho e os demais edifícios. A descontinuidade da proposta se deu tanto pelo poder público quanto pelos próprios educadores, que se encontravam num quadro político conservador, sem visão ou espaço para um projeto popular inovador voltado para a inclusão social. Entretanto, foi uma experiência de extrema relevância para a história da educação no Brasil, e que inspirou diversas outras, como as CIEPs no Rio de Janeiro e os CEUs em São Paulo, que iremos abordar a seguir.
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Brizola e os CIEPs
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No Brasil, a década de 1980 pós ditadura militar foi um momento de repensar o país e a escola pública, em que se uniram novamente movimentos de muita discussão na área educacional. No estado do Rio de Janeiro, durante o governo de Leonel Brizola, foi retomada a revolução da educação na busca pela escola integral. Inspirado na Escola Parque de Salvador de Anísio Teixeira, e também nos trabalhos de John Dewey e princípios da Escola Nova, foram criados os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) em 1984, sendo implementados no ano seguinte. 56
Os centros funcionavam em período integral, das oito da manhã às cinco da tarde, ofereciam três refeições diárias, possuíam atendimento médico e odontológico, além de espaços e atividades de lazer e banhos diários. Aos finais de semana as escolas permaneciam abertas e abriam a quadra, os consultórios e a biblioteca para a comunidade. De acordo com Lovato e Gouvêa (2017), o projeto foi idealizado e executado pelo então vicegovernador do Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro, que impulsionou a construção de quase 200 unidades em todo o estado, com projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer.
As disciplinas obrigatórias eram desenvolvidas no período da manhã, e no período da tarde aconteciam oficinas e encontros de estudo dirigidos, que englobavam diversas atividades individuais ou em grupo, sempre com foco em proporcionar aos estudantes vivências pedagógicas dinâmicas e além do currículo escolar. A experiência visava uma educação artística e física, valorizando a expressão e a comunicação, e tinha grande enfoque na formação diferenciada dos professores e funcionários. Todos envolvidos com o funcionamento da escola faziam parte do processo colaborativo de ensino, participando de formações iniciais e continuadas para trabalharem a escola como ponte entre os conhecimentos práticos e cotidianos dos alunos e o conhecimento formal exigido no currículo escolar, conforme colocam Lovato e Gouvêa (2017). Além do projeto pedagógico diferenciado, o projeto arquitetônico recebia grande enfoque, sendo padronizado para ser facilmente replicável e implantável em diferentes terrenos, constituindo um bloco principal de 3 pavimentos, uma quadra poliesportiva e uma biblioteca. Apesar das críticas que esta monografia traz à arquitetura escolar padronizada, pré-fabricada, com enfoque na tipologia das salas de aula e visando a economia monetária, o modelo foi bastante inovador no período, valendo como um experimento na história da arquitetura para a educação e agregando ao legado de Anísio Teixeira e ao conceito de educação integral atrelada ao território e à comunidade.
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CEUs e Territórios CEU Os Centros Educacionais Unificados (CEUs) são uma política pública da prefeitura de São Paulo para a redução das desigualdades sociais por meio da educação integral na infância. A conceituação do projeto se baseou nas Escolas-Parque, de Anísio Teixeira, nas CIEPs da gestão Brizola no Rio de Janeiro, e no conceito das Cidades Educadoras. Os CEUs focam na liberdade das crianças e na democracia dos espaços: a escola deve ser instrumento de apoio à estruturação social, exercendo potencial de integrar a população ao território pela apropriação dos espaços educacionais e culturais. O projeto foi concebido na gestão da prefeitura de São Paulo entre 1989 e 1991, quando Paulo Freire era secretário da educação, mas foi estruturado e implantado apenas em 2001, na gestão de Marta Suplicy, tendo inaugurado a primeira unidade em 1° de agosto de 2003. Foram três fases de implementação: A primeira, de 2001 a 2004, durante a gestão de Marta Suplicy, construiu 21 unidades. A segunda, de 2005 a 2012, durante as gestões de José e Gilberto Kassab, construiu mais 24 unidades. 58
E a terceira, de 2013 até hoje, durante a gestão de Fernando Haddad (2012-2016), compreendeu a reconceituação do programa, transformando-o em Território CEU, e teve suas obras paralisadas pela gestão de João Dória (2017-2018) e de Bruno Covas (2018-atualmente), sendo retomadas apenas no final de 2019, mas continuando apenas as obras já em andamento.
De acordo com Nosek (2018), o programa foi desenvolvido por uma equipe multidisciplinar e intersecretarial, envolvendo as Secretarias Municipais de Educação, Cultura e Esportes, e contém um Centro de Educação Infantil (CEI), uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI), uma Escola Municipal de Educação Fundamental (EMEF) e uma Educação de Jovens e Adultos (EJA), que acontecem em três volumetrias principais de formas simples. O edifício maior, bastante ortogonal e marcado pela estrutura, abriga as salas de aula, o refeitório, a biblioteca, o programa de inclusão digital, a padaria-escola e as áreas para exposições e convivência. O menor, de formato circular, é onde acontece a creche, e o último, com cinco pavimentos, reúne o teatro, o ginásio esportivo, sala de ensaios musicais e as salas administrativas, enquanto os pátios abertos possuem três piscinas, o parque infantil e uma pista de skate. Os volumes foram pensados de maneira a possibilitar variedades de implantação, assim como os CIEPs, considerando as particularidades de cada terreno a ser implantado, como a topografia ou dimensão, e a própria comunidade. O diferencial dos CEUs, conforme colocam Lovato e Gouvêa (2017, p. 217), foi realizar uma gestão democrática do complexo. A partir da proposta de formação integral e integrada, a população do bairro participa ativamente da gestão compartilhada do projeto, “na qual a comunidade alia seus interesses aos da organização” e torna a tomada de decisões do projeto um processo coletivo.
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60 [ 16 ] localização dos CEUs e Territórios CEU na cidade de São Paulo/SP
Desde a primeira fase, a implantação dos CEUs considerou o Mapa da Exclusão/Inclusão Social da Cidade de São Paulo, assim como os índices de violência e a precariedade dos serviços públicos essenciais, pretendendo induzir a urbanização das regiões. No entanto, apesar de ter funcionado como um grande instrumento de democratização do acesso a equipamentos sociais, os CEUs não funcionaram como reestruturadores urbanos das áreas. Assim, em 2013, durante a gestão Haddad, o programa foi reformulado e aprimorado, mas, pela paralização das obras pelas gestões seguintes, não foi implementado. A nova proposta foi batizada de Território CEU, e foi desenvolvida entre 2013 e 2016, funcionando de forma diferente: agora, a proposta inclui um projeto urbano para o entorno dos novos equipamentos, que são implantados de maneira a integrar os equipamentos já existentes no território. Ao invés de ser intrasecretarial, sua coordenação passou a ser de responsabilidade da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano da Cidade de São Paulo (SMDU), e constituiu uma rede de atendimento integrada dos equipamentos sociais, conforme discorre Nosek (2018, p. 48) no trecho: "Essa integração tem como objetivo não só otimizar a ocupação de espaços e equipamentos públicos ociosos, como também otimizar o tempo de deslocamento do cidadão para o atendimento de suas necessidades básicas, especialmente as cotidianas." Assim, a nova proposta ocupa um mesmo terreno público para a implantação de diversos equipamentos, além de desenvolver um projeto urbano de melhoria das conexões do bairro, envolvendo passeios públicos, arborização, iluminação adequada das vias e novas propostas de mobiliário urbano.
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Quando ao programa arquitetônico, o agrupamento da educação uniu os antigos CEI e EMEI no CEMEI (Centro Municipal de Educação Infantil Integrada), atendendo 500 crianças entre 0 e 5 anos, e retirou a EMEF do programa por falta de demanda – a ideia é que os estudantes de ensino fundamental e médio das escolas do entorno possam utilizar a estrutura e os equipamentos dos Territórios CEU durante o contraturno escolar; o agrupamento cultural envolve a biblioteca, o cineteatro, a sala e o estúdio de música, a sala de artes e a oficina digital; o agrupamento esportivo envolve uma piscina semiolímpica, uma quadra poliesportiva e salas de atividades; enquanto o agrupamento multiuso realiza as atividades de contraturno e abriga o EJA, a UAB (Universidade Aberta do Brasil), o Pronatec, o CRAS (Centro de Referência em Assistência Social) e salas para o Programa Juventude Viva.
relação dos edifícios dos Territórios CEU com as Praças Púb
Segundo Nosek (2018, p.56), esses agrupamentos funcionais são articulados por meio de um sistema compositivo que permite diversos arranjos espaciais, que são estudados pelos arquitetos responsáveis e auxiliam o projeto de cada unidade para se adequar ao terreno proposto e à comunidade. Todos os projetos preveem uma praça pública que se abre para o entorno, “deixando claro o caráter urbano e agregador do novo equipamento”. [ 17 ]
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blicas
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Essa amplitude dos Territórios CEU foi desenvolvida para as novas unidades previstas, mas também para ser implantada nos 45 CEUs existentes. Infelizmente, com a troca de gestão e interesses políticos, o programa foi descontinuado, deixando as obras das 9 unidades iniciadas em situações precárias e trazendo novos perigos para as comunidades. Em 2019 a prefeitura retomou as obras paralisadas, sem considerar o plano urbano de cada projeto e sem intenção de implantar os que ainda não haviam sido executados. De qualquer forma, a reformulação dessa grande política pública que é o Território CEU explicita a importância do conceito de território para a qualidade de ocupação dos equipamentos públicos, principalmente os educacionais, e representa uma aplicação de sucesso dos conceitos e estudos de Anísio Teixeira.
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o engessamento da arquitetura pela institucionalização e política aplicadas ao ensino infantil
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Os espaços infantis, como escolas e playgrounds, são projetados por adultos para crianças; não crianças reais, com o imaginário e necessidades infantis que elas possuem, mas sim crianças erroneamente vistas como “uma redução imperfeita do adulto”, conforme coloca Lima (1989, p. 56), o que produz edifícios e elementos muitas vezes limitantes. A escola tradicional como a conhecemos tem caráter espacial similar ao de presídios, onde a obediência e a disciplina são fatores condicionantes do espaço (com grades, muros, horários rígidos e orientação para uma pessoa de poder). Tais características, segundo Lima (1989) fazem com que a criança cresça e se desenvolva num meio que não é de sua natureza, como a imobilidade e o silêncio absolutos. O ideal dos espaços escolares é que sejam um lugar para que todos os envolvidos no processo de ensino – incluindo a criança – tenham voz para opinar, questionar, descobrir, explorar e aprender. Hertzberger (2008) coloca que a escola deve passar por um processo de “desescolarização”, para chegar no espaço estimulante e instigante que ele deve ser. O autor coloca que a escola deve ser um espaço com noção semelhante ao lar, que possa realmente ser apropriado e ocupado pelas crianças. No entanto, alterar a formação espacial das escolas exige um esforço não só dos arquitetos ao projetar, mas do corpo docente em se desconstruir, da escola em si como instituição e, no caso das escolas públicas, do poder público e das políticas daquele momento.
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As escolas particulares tradicionais têm seu sucesso medido por rankings nacionais que usam o vestibular como parâmetro, método que reforça ainda mais o sistema de ensino por meio de salas de aula rígidas e sem qualquer abertura para criação, imaginação ou interação – seja com o espaço ou com os colegas. Já nas escolas públicas, o modelo segue o padrão modular das salas de aula, com a intenção de manter o baixo custo e tempo de construção, assim como no desenvolvimento dos projetos.
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Mesmo com propostas espaciais mais inovadoras, como é o caso dos estudos de caso realizados no capítulo anterior que se conceituam nas escolas-parque, existe um currículo escolar predefinido a ser respeitado e desenvolvido, além do orçamento enxugado ao máximo. E, ainda quando a proposta respeita essas condições, as mudanças de gestão política tendem a descontinuar projetos que fogem do script previsto pelo partido, como aconteceu com as três políticas de ensino citadas – a Escola Parque, os CIEPs e os CEUs e Territórios CEU. As mudanças de gestão política apresentam incertezas aos projetos de inclusão social, pois estes são implementados mais como uma política de partido, e não de fato como gestão pública, o que acaba interrompendo grandes e importantes processos na luta pela erradicação da precariedade urbana e da desigualdade social. Teixeira (1967) faz uma análise antropológica que explica esse acontecimento:
A realidade é que resistimos inflexivelmente à inovação e forçados, por vezes, a aceita-la, pouco a pouco a desfazemos e diluímos até voltar ao estado – que chamaria natural – que é o de deixar as coisas correrem, até atingirem a simplicidade da desordem uniforme e, por fim, constante e estável. [...] A ordem só pode ser criada naquela situação de caos por uma força externa. Essa ordem pode ser de diferentes tipos e será mantida enquanto for mantida a força externa de organização. [...] Mas, devido ao princípio do caos, tudo tende a voltar ao caos e aí chegado, pelo princípio da produção em massa, a se repetir indefinidamente. Parece-me que estes princípios não deixam de se aplicar ao nosso estado social. E a educação e a escola são admiráveis ilustrações. Resiste-se à inovação, que só pode processar-se por uma força externa. Forçada a aceitação, logo se inicia o trabalho insidioso de destruí-la, até que tudo volte à desordem, ao caos inicial, em que tudo se repete fácil e indefinidamente. Assim sendo, a inovação é um novo tipo de ordem, que exige esforços para ser mantida. Para que o sistema educacional de fato tenha continuidade, é necessário que haja uma reformulação das propostas e disputas políticas, que agregue à agenda projetos sociais em andamento, como é o caso dos Territórios CEU, e que trate como elemento indispensável de governo manter o esforço que é a força externa necessária para dar continuidade às políticas públicas de educação, exigindo também que incorporem em si a importância da articulação com o território e a ludicidade que os edifícios escolares e os espaços públicos devem oferecer.
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a relevância do lúdico no desenvolvimento da primeira infância
Conforme já dito anteriormente e colocado pela Urban95 (2019), a primeira infância é determinante para o desenvolvimento e formação de todo um potencial de crescimento. Toda experiência exerce impacto na forma com que o cérebro se desenvolve, ou seja, acontecimentos e interações de qualidade no começo da vida são essenciais para prover embasamento e fundação para tudo que irá acontecer dali para frente.
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Nesse contexto, tudo que acontece é extremamente relevante para a criança: as pessoas com quem interage, as brincadeiras que participa e desenvolve, o meio que frequenta... todos os fatores estabelecem relação com o desenvolvimento motor e mental. Considerando que a primeira infância aborda os 6 primeiros anos de vida, a brincadeira é uma das principais atividades do dia da criança – assim como o comer e o dormir – e a forma com que ela acontece pode (e deve) ser considerada trabalho pedagógico e fazer parte do processo educativo, já que incorpora diversos fatores essenciais, como o incentivo por movimentos e atividades corporais, a criatividade, exploração do meio físico e social, expressão cultural e desenvolvimento de diversas outras habilidades.
De acordo com Filgueiras (1998), no processo de escolarização tradicional, há uma ausência do lúdico e da brincadeira como ponto crucial de educação, principalmente nas atividades de alfabetização. O professor geralmente apresenta uma postura de preocupação com a segurança física das crianças e uma necessidade de manter a ordem durante os processos educativos (mesmo que estes sejam por meio de brincadeiras ou jogos, há sempre regras impostas pelos adultos). Sem que haja intenção, a figura de poder nos ambientes educacionais acaba restringindo a exploração motora das crianças, limitando as atividades corporais e impedindo o desenvolvimento espontâneo que a criatividade e ousadia infantis podem permitir. Os espaços escolares devem oferecer, então, uma vivência lúdica, que trate o espaço de forma aberta a diferentes interpretações e que incentive o brincar através do movimento, proporcionando variadas formas de exploração do ambiente físico e social, que, segundo Filgueiras (1998), respeitem e incorporem as expressões culturais da sociedade, por meio das diferentes experiências desenvolvidas pelas próprias crianças. Rau (2013, p.191) discorre que “o lúdico aborda as ações do brincar, que podem ser organizadas por meio do jogo, do brinquedo e da brincadeira”, de forma com que o objetivo vá além do brincar por brincar, mas que atue como recurso pedagógico no processo de aprendizagem e exploração do conhecimento que a criança já tem, incentivando e possibilitando que ela organize seu pensamento, utilize sua memória e exercite formas de agir, capazes de ressignificar objetos e transpor emoções para a brincadeira, ao mesmo tempo em que o educador, ao observar as atividades, seja capaz de analisar e captar as habilidades e interesses de cada educando.
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Dessa maneira, a “pedagogia lúdica”, conforme coloca Filgueiras (1998), aborda desde o projeto e a preparação do ambiente, passando pelas formas, cores e objetos utilizados no desenvolver das brincadeiras, até a ação direta do professor, possibilitando que a brincadeira funcione como um incentivo à aquisição de novas habilidades, tornando prazerosa a construção e exploração do conhecimento. Assim, o ambiente escolar deve ser projetado de modo a despertar a curiosidade e o interesse infantil durante as brincadeiras de maneira espontânea e satisfatória, estimulando a interação não só com seus colegas, mas com o meio em que a criança está inserida, despertando autonomia para desenvolver toda a fantasia que a imaginação infantil é capaz de criar. Lima (1989, p. 72) coloca: "É preciso, pois, deixar o espaço suficientemente pensado para estimular a curiosidade e a imaginação da criança, mas incompleto o bastante para que ela se aproprie e transforme o espaço através de sua própria ação." É um grande desafio para os arquitetos desenvolver esse espaço como palco da brincadeira ampla, permitindo a livre exploração do recinto e visando o desenvolvimento geral da criança, por isso é importante que haja também uma parceria com a equipe e projeto pedagógico da escola, considerando as necessidades psicomotoras das crianças como premissas de projeto, e fazendo com que a brincadeira restrita, que exige atividades orientadas com foco num objetivo final específico, seja reprimida, pois, conforme coloca Filgueiras (1998), “a dimensão social do espaço é que confere sentido à sua utilização”. 70
os espaços públicos como ambiente de ensino Já foi exposto anteriormente que o ambiente em que a criança se desenvolve é essencial para sua formação. Sua casa, seu ambiente familiar, o método pedagógico utilizado pelos seus pais, cuidadores e escola, tudo isso é determinante na forma com que o cérebro da criança desenvolve suas percepções. Com o meio urbano, não poderia ser diferente. Os percursos da residência até a escola, se são feitos de carro, ônibus, bicicleta ou a pé, os deslocamentos do dia a dia, lojas frequentadas, lazeres desenvolvidos, todos esses são fatores de influência direta na pessoa que está iniciando sua formação e ideias de vida. Luz, Raymundo e Kuhnen (2010, p. 179) estudaram artigos que relacionam o comportamento infantil ao espaço urbano frequentado pelas crianças, constatando que as características socioespaciais dos bairros têm interferência direta no uso desses espaços. Outros fatores, como a percepção parental do bairro, a infraestrutura disponível, a qualidade dos espaços urbanos, a densidade de vegetação e a distância entre a residência e a escola, são determinantes para a qualidade e intensidade do uso do espaço urbano, como citam no trecho: "[...] as crianças desenvolvem a maioria de suas funções psicológicas em espaços ao ar livre do bairro, como as áreas designadas para brincadeira e os parques urbanos." São os espaços públicos, principalmente os voltados para o lazer infantil, que proporcionam acesso à interação com pessoas não integrantes da família, expondo a criança a uma maior diversidade de pessoas e apresentando novas culturas, etnias e modos de interação, o que ajuda a desenvolver na criança a noção de cidadania (LUZ; RAYMUNDO; KUHNEN, 2010).
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Assim, é essencial que os espaços urbanos dialoguem com a infância. Com a sociedade pós industrialização, a criança foi gradualmente excluída das esferas sociais, isolada à escola e muros fechados, com a justificativa da necessidade de segurança. No entanto, não só a criança deixou de frequentar o espaço público, mas o espaço público perdeu seu caráter lúdico e a contínua construção social daquele espaço, atribuído pela vivência infantil e familiar, conforme coloca Dias (2018). Ao trabalhar a intenção de retomar o espaço público como palco das relações sociais e elemento construtor da cidadania, é necessário devolver seu caráter lúdico, que cria a sensação de segurança e o elo de afetividade da comunidade, como discorre Dias (2018, p.108): "O potencial dos espaços urbanos/lúdicos no desenvolvimento das crianças é extraordinário, apesar de muitas vezes desvalorizado. Promover às crianças o direito à cidade, à vida urbana e ao lazer, através do direito de brincar no espaço público, desempenha um papel fundamental na reprodução da vida social, fortalece os vínculos comunitários, contribuindo para a construção da cultura infantil, além de ser uma importante ferramenta para forjar uma cultura de paz e a construção de uma nova cidadania."
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A iniciativa Urban95, promovida pela Fundação Bernard van Leer já citada anteriormente, traz estudos teóricos e práticos sobre o urbanismo voltado para a primeira infância e o modo como a criança enxerga o mundo à sua frente. Hoje, temos uma infraestrutura e construções pensadas quase que inteiramente para (e por) adultos e, quando voltada para a criança, é desenvolvida com base no que o adulto pensa para ela, que geralmente consiste em uma versão diminuída dele mesmo, mas sem considerar as percepções infantis, seu perfil exploratório e imaginário.
É necessário trabalhar a iniciativa pública e privada simultaneamente para trazer a participação infantil para as políticas públicas que desenvolvem e propõem projetos para o espaço urbano. É nesse espaço que a criança vai brincar, desenvolver habilidades motoras e mentais, aproveitar os brinquedos com experiências pré-determinadas e, ao mesmo tempo, trazer o lúdico e suas próprias percepções em brincadeiras que os adultos não haviam considerado possíveis. Para que as crianças desenvolvam a noção de cidadania e se apropriem daquele lugar, é necessário que os espaços urbanos sejam projetados para incentivar o instinto explorador das crianças, ao mesmo tempo em que deixem lacunas em aberto para que elas desenvolvam suas brincadeiras a partir do construído – sem que esse construído seja determinante de uma brincadeira em específico. É um desafio que envolve os projetistas, mas principalmente os usuários em foco (crianças, famílias e cuidadores). É tratar o projetar como algo que não tem fim, que será desenhado, mas que traz sua utilização como parte do projeto final, é uma construção que tem um ponto de início, mas será eternamente modificada por quem frequenta e interfere. Assim, é necessário tratar a criança como ela é: produtora de cultura e portadora de necessidades específicas, como sujeito do seu próprio processo educativo, é priorizar seus conhecimentos como ponto de partida para novas aprendizagens e novos territórios educativos (FILGUEIRAS, 1998). É um desafio para os adultos que, desde sempre, se veem como os proprietários do saber, como as pessoas que sabem o que é melhor para a criança, mas que muitas vezes não levam em consideração as necessidades de aprendizado do contexto lúdico, que querem sempre criar um atalho para facilitar determinadas atividades ou experiências, pulando um trecho essencial do caminho: a exploração e a descoberta.
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O ENSAIO PROJETUAL uma proposta urbana
Tendo discutido a importância da vivência no espaço público para as crianças e o impacto que isso pode gerar na comunidade, o ensaio projetual foi desenvolvido com base nos conceitos discutidos, de maneira a resgatar o espaço público como memória e palco das relações sociais do bairro, visando crianças e famílias como usuárias protagonistas e atribuindo o caráter lúdico para instigar a interação com o território. O território escolhido para o desenvolvimento do projeto está situado na cidade de São Paulo/SP, na subprefeitura do Ipiranga e distrito do Sacomã, na parte sudeste da cidade, conforme mostra o mapa abaixo. A área de estudo é o bairro Jardim Clímax, que faz divisa com o município de São Bernardo do Campo e se encontra próximo às linhas de metrô 1-Azul e 2-Verde, estando a 3,5km da primeira e 4,4km da segunda, um percurso de aproximadamente 20 a 30 minutos de ônibus. É um território de caráter periférico, que apresenta 14,5% no índice vulnerabilidade social, tendo o uso residencial como predominante seguido por comércios e serviços locais. Apresenta uma boa quantidade de equipamentos de educação – tanto públicos quanto privados – e fica próximo a equipamentos de lazer e cultura, como o Jardim Botânico e o Zoológico, além do Aquário de São Paulo, Museu do Ipiranga e Parque da Independência, que se encontram na mesma subprefeitura.
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Durante as visitas, foi observado que os moradores apresentam uma boa vivência e interação com o bairro, dado que, mesmo não tendo seu potencial de uso explorado pelo poder público, sempre há muitas pessoas na rua, seja fazendo compras, contratando serviços, ou apenas utilizando as praças e terrenos livres para usos variados. Sendo assim, quando aproximamos o olhar para a Avenida Padre Arlindo Vieira, grande estruturadora do bairro, o território apresenta um grande potencial de desenvolvimento urbano. Conforme mostra o mapa desenvolvido, o trecho norte da avenida compõe o eixo comercial principal do bairro, enquanto o trecho sul abriga a zona residencial, e, entre elas, grandes lotes vazios marcam o território. Segundo a prefeitura, 14,6% dos terrenos do distrito são vagos, ou seja, estão vazios e não cumprem função social, o que acaba criando uma barreira entre os moradores e a cidade, ora com trechos murados, ora com enormes terrenos vazios sem qualquer infraestrutura. No projeto urbano, então, foi realizada uma reestruturação viária para trazer a cidade para o nível do pedestre por meio da ampliação de calçadas e pedestrialização de vielas que se encontram atualmente desconectadas da rede viária, com o objetivo de fazer com que os moradores que já interagem com o bairro tenham vivências mais ricas e com mais oportunidades, e atrair aqueles que ainda não o têm como palco de suas experiências urbanas.
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Conforme podemos ver nos mapas a seguir, a reestruturação viária teve como princípio norteador a identificação das escolas do território e os percursos que as conectam à Av. Pe. Arlindo Vieira, eixo comercial e de mobilidade urbana no bairro. O raciocínio foi tratar esses percursos, os nós de chegada na avenida, e os vazios urbanos existentes no bairro, de forma com que exerçam uma presença mais ativa na rotina das crianças e famílias. De toda forma, a criança, com sua criatividade e ludicidade, explora o que vê e tem ali disponível, mas tratando esses percursos e espaços com a intenção de trazer a cidade ao nível da criança e da família, essa experiência se torna muito mais rica e envolvente. mapa de transposições do bairro
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mapa de ampliação das calçadas
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mapa identificando os percursos escolares, os nรณs de chegada na avenida e as zonas de vazios urbanos
Os vazios urbanos, citados anteriormente, são permeáveis ao eixo da Avenida, com alto potencial de aproveitamento para a proposta deste projeto. Assim, foram propostos usos que sirvam à rotina das famílias, possibilitem a transposição segura dentro do bairro, e ao mesmo tempo promovam a interação infantil no território, sendo lugares chave para a estruturação do plano urbano, como atrativos e grandes núcleos de uso e desenvolvimento humano.
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mapa de usos propostos para as zonas de vazios urbanos
A área foco para aprofundamento de projeto, é um terreno que abriga atualmente um desses vazios urbanos, sendo parte uma área com vegetação e topografia natural, parte um antigo galpão de “ferro velho”. O terreno permeia a Av. Pe. Arlindo Vieira, a Rua Sebastião Domingues e a Rua Almirante João de Faria Lima, estas últimas sendo ruas locais do bairro com uso habitacional predominante, e com potencial para realizar essa conexão da avenida estruturadora ao trecho habitacional do bairro.
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mapa de localização da área foco
mapa esquemático da intenção de fluxos que norteou a estruturação do projeto
O grande desafio do projeto foi vencer a topografia acidentada do terreno de maneira com que não se tornasse mais uma barreira de uso e transposição. Para isso, foram elencados os potenciais eixos de fluxo entre as ruas, considerando no miolo da quadra um percurso estruturador que segue o formato das calçadas da avenida e da rua local, servindo como uma calçada secundária no interior da quadra, e em seguida elencando as formas de acesso das calçadas viárias a esse percurso, por meio de escadarias, arquibancadas e taludes interativos, sempre pensando e considerando a topografia como um elemento em potencial para o desenvolvimento de brincadeiras e interação das crianças com o território. Num geral, o projeto desse espaço urbano implantado no bairro foi pensado como uma área que une diversas soluções, como a transposição da quadra e da topografia, espaço público de permanência com expansão para o comércio já existente, mas principalmente uma área recreacional, onde os sentidos das crianças sejam despertados e incentivados.
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A materialidade do complexo visa permitir e incentivar o contato com a natureza, ao mesmo tempo em que auxilia a transposição da topografia. Assim, mistura áreas verdes, decks de madeira, e concreto podendo ser na cor natural ou pigmentado em alguns trechos. O percurso estruturador e as calçadas possuem um piso drenante de concreto que auxilia a drenagem urbana e torna o complexo mais permeável.
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perspectiva geral do complexo
implantação
O percurso estruturador forma o que chamamos anteriormente de “calçada secundária”, que não está diretamente conectada à rua, mas estrutura o fluxo e o percurso entre os diversos usos do projeto. Do lado esquerdo, realizando os acessos à arquibancada, ao circuito geométrico e aos taludes da praça vertical, se encontra no nível 780.80; quando chega aos escorregadores amarelos, uma rampa com inclinação de 2° leva ao nível de 781.16, chegada da escadaria que vem da Rua Sebastião Domingues que vem do nível da praça planificada onde acontece a feira; na outra face dos escorregadores, também acesso à arquibancada das quadras, uma rampa de 11° de inclinação leva ao nível 783.32, conexão entre a escadaria das quadras e que leva à calçada da Rua Alm. João de Faria Lima; permeando o brinquedão urbano e os taludes de permanência, há uma rampa de 12° que chega ao nível 785.66, patamar da maior escadaria do projeto (e única pré-existente), que conecta as ruas Alm. João de Faria Lima e Sebastião Domingues.
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[ 27 ] diagrama dos equipamentos que proporcionam e incentivam a interação com a topografia
Os equipamentos ao lado foram desenvolvidos com a proposta de ser uma alternativa aos equipamentos infantis normalmente existentes nos playgrounds, proporcionando o desenvolvimento de diversas brincadeiras, ao mesmo tempo em que auxilia a transposição da topografia acidentada e caracterizando os taludes interativos. O mobiliário urbano proposto foi pensado de forma modular, para permitir diversos desenhos e possibilidades de acordo com o local em que for implantado. Ao mesmo tempo em que desempenha suas funções óbvias e destinadas como local de descanso e permanência, seu caráter modular e dinâmico incentiva que as crianças explorem e interajam com a volumetria.
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[ 28 ] esquemas do mobiliário urbano proposto
corte AA - passando pela Arquibancada e Circuito Geométrico
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Outro desafio de projeto foi dinamizar as escadarias de uma forma com que o desenho delas perdesse o limite rígido de escada. No trecho da arquibancada, os patamares possuem diferentes larguras, criando decks de permanência e diferentes volumetrias, que permitem a brincadeira conforme a criatividade e imaginação infantil fluírem. Os degraus da escadaria estruturadora se estendem cada hora com um comprimento, se mesclando aos patamares e interagindo com as formas.
planta aproximada da Arquibancada
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planta aproximada do Circuito GeomĂŠtrico
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No circuito geométrico, os taludes com diferentes angulações permitem explorar o território de uma maneira diferente – brincar com as diferentes materialidades e equipamentos auxiliares à subida e descida promove uma interação diferenciada com a topografia. Surgiu como resultado dos taludes um percurso secundário que conecta o patamar de descanso da escadaria à esquerda ao patamar de chegada dos grandes escorregadores, e entre os diferentes níveis ocorrem os taludes que dinamizam o território e a brincadeira.
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Vindos da arquibancada, os patamares entre os lances da continuam seu percurso até chegar na escadaria que conecta a praça e a feira ao percurso estruturador. Entre esses patamares, que caracterizam percursos secundários, se deu a chamada praça vertical, que consiste em taludes com inclinações e direções variadas que conectam os percurso secundários, dinamizando esses percursos e sugerindo novas possibilidades de subida, alguns com equipamentos de interação com o terreno, outros apenas pela materialidade e inclinação mais sutil.
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corte BB - passando pela Praça Vertical e Circuito Geométrico
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planta aproximada da Praรงa Vertical
planta aproximada da Praça Planificada e Feira
Na esquina da Av. Pe. Arlindo Vieira com a R. Sebastião Domingues, o terreno foi planificado no nível 764.96 criando uma praça, com acesso direto pelas calçadas nas extremidades, e no ponto da esquina por uma escada de 8 degraus que desenha o limite dessa praça e diminui os degraus conforme o nível das calçadas vai subindo de acordo com o terreno. Ela abriga um espaço de feira, com cobertura de madeira para proteção ao sol e chuva, e foi pensada para abrigar comerciantes ambulantes que trabalham de forma irregular no eixo comercial da Av. Pe. Arlindo Vieira atualmente.
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corte CC - passando pela Praรงa Planificada, Praรงa Vertical e escada lateral ao Escorregador
planta aproximada do Escorregador
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O grande escorregador faz a transposição da R. Alm. João de Faria Lima e o percurso estruturador no ponto de chegada da escadaria da feira, por meio de uma arquibancada com desenho irregular, escadarias laterais, e dois grandes escorregadores que possibilitam diferentes formas de transposição e brincadeira.
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As quadras acontecem no nível 777.02, com chegada pelo percurso secundário da praça vertical, pela escadaria da feira, ou pelo brinquedão urbano. Foi pensada uma quadra de futsal com dimensões não oficiais, e uma também não oficial quadra de basquete com cestas que formam 90° e criam uma dinâmica de jogo diferenciada.
planta aproximada das Quadras
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O trecho do brinquedão urbano é divido em dois trechos – a parte “de cima”, que conecta a calçada da R. Alm. João de Faria Lima ao percurso estruturador e, por ter inclinação elevada a 39° (angulação máxima pela ABNT para circulação), tem a permanência como uso principal, podendo ser realizada na grama ou nos acentos que “entram” no terreno; e a parte “de baixo” que tem um percurso secundário vindo do patamar da escadaria pré-existente no nível 779.54, e forma taludes interativos entre o percurso principal e o secundário, com diversos equipamentos lúdicos que incentivam e criam essa topografia do brincar.
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corte EE - passando pelo Brinquedão Urbano e pelas residências pré-existentes
planta aproximada do BrinquedĂŁo Urbano
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A escadaria pré-existente conecta as ruas Sebastião Domingues, no nível 770.90, e Alm. João de Faria Lima, no nível 791.96. Ela foi toda reestruturada para abrigar degraus e lances de escada confortáveis e seguros, que permitiram também desenvolver formas alternativas de subida e descida, com equipamentos semelhantes aos dos taludes interativos.
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corte FF - passando pela Escadaria pré-existente
[ 29 ] escadaria atualmente
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dessa forma, o prรณprio espaรงo se torna um jogo, uma brincadeira.
considerações finais
Tratar da cidade, em toda sua complexidade, envolve tratar da formação de diferentes gerações, do desenvolvimento e transformações da sociedade como um todo. Os estudos aqui apresentados pretenderam passar uma visão geral da ocupação da cidade ao longo dos anos até chegar no que ela é hoje, e, assim, entender como e porque a ocupação e apropriação dos espaços públicos se transformou drasticamente desde o século XIX até o XXI.
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Mais do que isso, pudemos analisar a gradual exclusão urbana da infância e os impactos que isso gerou nas gerações que se formam desde a sociedade industrial, constituindo uma cidade em que o medo afasta as relações sociais do espaço público. Daí se nota a importância de resgatar a experiência lúdica e infantil que a cidade pode oferecer, ao mesmo tempo em que traz à rua o movimento e a segurança que lhe são devidos, e devolve às crianças uma formação integral, que vai além dos muros escolares e dos playgrounds.
No desenvolver do ensaio projetual, foi possível ocupar um vazio urbano na periferia de São Paulo que trazia precariedade ao bairro, de maneira com que a criança fosse a protagonista de uso, atribuindo a ela e às famílias um espaço público que possibilita o caráter lúdico da educação, incentivando e instigando o movimento do corpo e a interação com o território. Ao trazer o olhar infantil para o desenvolvimento do projeto, o complexo une urbanisticamente as diversas escolas do bairro, reestruturando e requalificando os percursos escolares. Por fim, observando o quadro geral da educação no país, podemos entender o papel e a importância que a arquitetura e o urbanismo têm no desenvolvimento de seus cidadãos, ao olhar para a primeira infância e a necessidade de incluir a criança e o adolescente em sua própria formação. É nítido que a resolução e os estudos acerca dessa questão não cabem apenas a nós, arquitetos e urbanistas, mas sim a toda a multidisciplinariedade que compõe o sistema pedagógico. No entanto, ao planejar a cidade, somos os responsáveis por integrar (ou não) a criança em seu meio.
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[ 20 ] Acervo pessoal, 2020 [ 21 ] Acervo pessoal, 2019 [ 22 ] Acervo pessoal, 2019 [ 23 ] Acervo pessoal, 2019 [ 24 ] Acervo pessoal, 2019 [ 25 ] Acervo pessoal, 2019 [ 26 ] Acervo pessoal, 2019 [ 27 ] Conceituação elaborada pela autora; desenvolvimento das imagens por Marina Campos Silva Pimentel, 2020 [ 28 ] Projeto elaborado pela autora; conceituação e desenvolvimento das imagens por Gabriela Fernandes Leite, 2020 [ 29 ] Acervo pessoal, 2020 115 *Todos os mapas, plantas, cortes e imagens 3D referentes ao projeto urbano foram elaborados e desenvolvidos pela autora, com excessão daqueles aqui referenciados (imagens 27 e 28).