Pantanal - Planalto Ayrton Senna memórias, identidades e estigmas

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PANTANAL - PLANALTO AYRTON SENNA: SOBRE MEMร RIAS, IDENTIDADES E ESTIGMAS

Pantanal -Planalto Ayrton Senna: Sobre memรณrias, identidades e estigmas

Gabriela Alencar Sousa

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Gabriela Alencar Sousa

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GABRIELA ALENCAR SOUSA PANTANAL-PLANALTO AYRTON SENNA: SOBRE MEMÓRIAS, IDENTIDADES E ESTIGMAS

Livro-reportagem apresentado ao Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, orientado pelo professor mestre José Ronaldo Aguiar Salgado.

FORTALEZA 2014

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GABRIELA ALENCAR SOUSA PANTANAL-PLANALTO AYRTON SENNA: SOBRE MEMÓRIAS, IDENTIDADES E ESTIGMAS

Livro-reportagem apresentado ao Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel.

Aprovada em ____/____/____

BANCA EXAMINADORA ___________________________________________ Prof.Me. José Ronaldo Aguiar Salgado (Orientador) Universidade Federal do Ceará (UFC) ___________________________________________ Profª. Dra. Márcia Vidal Nunes Universidade Federal do Ceará (UFC) ___________________________________________ Prof. Dr. Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho Universidade Federal do Ceará (UFC)

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Pantanal - Planalto Ayrton Senna: Sobre memรณrias, identidades e estigmas Por Gabriela Alencar Sousa

Fortaleza-CE 2014 9


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Fortaleza Centro

Planalto Ayrton Senna (Pantanal)

José Walter

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Sumário

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Prólogo Como ler este livro Capítulo Um Vinte e sete de julho, a rua

Capítulo Dois A Rua Chico Mendes

Capítulo Três O encontro da Apucarana com a Planaltina

Capítulo Quatro A Rua Quixadá

Epílogo Bibliografia Lista de entrevistados Agradecimentos 13


RUA CHICO MENDES (1991) | FOTO: VALDENOR MOURA

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Prólogo

É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distração de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas. A Alma encantadora das ruas (João do Rio) 1515


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Recordações contadas são livros desfocados na prateleira. Houve esforço para que eu os visse nítidos, mas só enxerguei um pouco menos embaçado, como quem aperta os olhos para ver pelas frestas da janela. Não estava lá, não vivi, só ouvi. Não tive o sentimento de não ter onde morar. Não suei debaixo de sol quente para pegar água em cacimba. À noite, não percorri os caminhos sem luz. Os entrevistados pegaram-me pela mão e eu os acompanhei. Mas os segui de outra dimensão. Na caminhada, observei os cordões sendo colocados para mostrar a quem pertencia cada pedacinho de terra. Visualizei, na sala da minha casa, as reuniões que articulavam a futura União dos Moradores do Pantanal. Sei que as paredes eram nuas, com tijolos à mostra, porque vi nas fotos. Sei que o ânimo era de luta, porque me foi dito. Sei que houve conflitos, que algumas relações foram duras e mágoas ficaram. Percebi as dores na atmosfera das entrevistas, nos silêncios, nos olhares, nas pausas dos discursos. Algumas vezes, precisei de atenção dobrada para ler nas entrelinhas, noutras o entrevistado disse transparente: “A mágoa que guardo...”. No início, admito, queria uma história una, queria respostas completas e objetivas, que satisfizessem todas as minhas interrogações. Acreditei, ingenuamente, que seria fácil e encontraria tudo pronto e simplificado como nos livros de história que a gente lê na escola. Mas memó-

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rias não são lineares, são labirintos. Há divagações, digressões. Há uma ordem, sim: a ditada pelo pensamento. Além disso, como ninguém vivencia um acontecimento da mesma forma, tive diferentes respostas para as mesmas perguntas. Relatos trataram do mesmo episódio, foram até semelhantes, mas não iguais. Ainda bem, reside aí a riqueza das memórias. Isso é culpa de nossas subjetividades e experiências anteriores, que determinam como vamos perceber, sentir e entender cada fato e como iremos contá-lo depois. Este livro nasceu de uma memória que não tive, de algo que não vivi, mas que foi trazido na infância e na adolescência por repetidas vezes em histórias contadas por meu pai. Certo vídeo sobre a história do bairro, apresentado pelo projeto TV Janela, em um telão montado na rua, também despertou a ideia de que havia ali, à minha volta, uma história boa de ser narrada. Em quatro capítulos, o leitor conhecerá quatro ruas que se fizeram importantes ao longo da pesquisa. A Rua 27 de julho simboliza um novo começo na história de cerca de quatro mil famílias. Nessa data, em 1990, elas se dirigiram do bairro José Walter para o local que seria chamado de Pantanal, por influência da novela de mesmo nome exibida, à época, pela extinta Rede Manchete. A Rua Chico Mendes foi o local onde, num terreno vazio, à luz de um lampião, foram feitas reuniões para discutir os problemas da comunidade. O local de encontro deu lugar à sede da União dos Moradores do Pantanal (UMP). Mas esse não foi o motivo primeiro que reuniu as pessoas por lá, foram as estrelas. Em noites de lua clara, sem luzes de casas ou de postes, o céu convidava quem estava dentro de um barraco para a calçada de seu Francisco de Assis, ou Chico magro, para ouvi-lo tocar um violão. O encontro das ruas Planaltina e Apucarana ressoa um acontecimento que ficou no burburinho das calçadas não só do bairro, mas, devido à influência dos meios de comunicação, tomou ares de cidade e relacionou, para muitos,

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o estigma da violência a uma palavra outrora escolhida por representar belezas: Pantanal. A Rua Quixadá ou rua da feira é o ponto de encontro do bairro. Onde é realizada a feira nos finais de semana, onde se concentra o comércio, onde os amigos se encontram na sorveteria ou os casais marcam encontros. Na ausência de uma praça no Pantanal, a rua funciona como aglomerador de gente. É de gente que a rua gosta, é de gente que ela se faz. A ideia das ruas, por meio de crônicas, apresentarem o Pantanal foi inspirada pela crônica de João do Rio, pseudônimo do jornalista Paulo Barreto (1881-1921), autor de A Alma Encantadora das Ruas (1908), obra da qual alguns trechos foram destacados no começo de cada capítulo. Para o autor, as ruas têm fisionomia e alma, podem ser íntimas, familiares, guardar segredos, ideias, paixões, filosofia e religião. Elas têm histórias para contar, basta que alguém pare e ouça. Aprendemos cedo no curso de Jornalismo que objetividade, neutralidade e imparcialidade absolutas são mais “lendas” da profissão do que verdades incontestáveis e fáceis de serem seguidas. Não posso esconder quem sou no Jornalismo que produzo. Minhas ideias, preferências, experiências de vida estão sempre presentes em cada palavra escrita. Fazer Jornalismo é antes de tudo fazer escolhas, escolher quem terá a voz e quem será calado: quem entrevistar? Que trecho destacar? Qual foto usar? Que palavras escrever? Palavras, sabemos, não são neutras, carregam ideologias, memórias, preconceitos. Se fazer Jornalismo é fazer escolhas, previno ao leitor de que tomo claramente uma posição que diz respeito ao meu lugar social de repórter e moradora. A escolha se dá em torno da utilização das palavras ocupação e invasão. A primeira denota o ato de se colocar na terra para fazer morada e tem sido usada historicamente por movimentos sociais que ocupam terras nos centros urbanos e no campo. Já a palavra invasão evoca a ideia de violência, de quem toma “à força”, o que não ocorreu no bairro objeto da pesquisa. Uso a palavra

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ocupação por não comungar do pensamento de que as pessoas tomaram algo que não as pertencia, mas por acreditar que elas reivindicaram um direito que lhes era negado: o direito à moradia. Furtar-me da discussão entre esses dois termos seria ignorar toda uma história de luta pela terra que opõe oprimidos e opressores no Brasil. A palavra invasão aparece, porém, na fala dos entrevistados, a maior parte deles composta de atuais e antigas lideranças comunitárias do Pantanal. A escolha se deve ao objetivo de ouvir a voz dos que se dedicaram e se dedicam a tentar garantir melhores condições de vida para todo um bairro. A tela estava em branco e tentei fazer com que meus rabiscos levassem a ela um pouco de cor, um pouco de sentido, um pouco das memórias. Não, a história não está toda aí. Pelas letras, é possível perceber pedacinhos dela, esquadrinhados ao longo de um ano de trabalho. Juntas, apuração e escrita povoaram o ano de 2013 e chegaram a maio de 2014. Lanço o olhar a um pedaço da periferia de Fortaleza, cujo processo de formação baseia-se na luta pela moradia digna, negada a tantos. Faço parte desse pedaço chamado Pantanal. É da terra, das ruas, dos muros, da gente, são deles que falo. A tela não está mais em branco, espero que goste das cores.

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Como ler este livro

No decorrer do livro, a diagramação apresenta algumas marcas no design para facilitar a leitura. Nesta página faz-se um breve resumo desses elementos.

Linhas:

Abaixo dos textos, as linhas do design mudam. A destacada ao lado demarca uma escrita mais subjetiva e íntima, que flana pelas memórias da autora. Essa linha demarca textos mais objetivos, que fogem um pouco da narrativa em primeira pessoa. Para as páginas cinzas que demarcam bastidores e/ou informações adiconais, será utilizada essa linha mais simples.

Entrelinhas: As ENTRELINHAS surgem ao final de cada crônica que inicia os capítulos. O objetivo delas é falar dos bastidores da apuração e da escrita do livro trazendo para o leitor aquilo que não cabia no texto principal da reportagem, mas que não poderia deixar de estar presente.

Páginas cinzas: Demarcam textos com informações complementares ao texto principal, como estas.

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RUA 27 DE JULHO | FOTO: GABRIELA ALENCAR

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Capítulo Um Vinte e sete de julho, a rua

Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões humanas. São assim todas as ruas de todas as cidades, com vida e destinos iguais aos do homem. A Alma encantadora das ruas (João do Rio) 23 23


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Vinte e sete de julho, a rua

Vento forte nos ouvidos, não ouço bem os sons à minha volta, sou surpreendida por um ou outro carro que passa rápido perto de mim. As calçadas são muito estreitas, prefiro não andar sobre elas e caminho na rua. Sigo pela Joaquim Correia e paro ao ver a placa da rua procurada. À minha esquerda, há um quarteirão da Rua 27 de julho, à direita ficam os outros três. Não por acaso, escolho o lado direito. Quero pisar o chão de pedras toscas, mal espaçadas entre si, que compõem o calçamento. Na outra direção, no quarteirão solitário, pisa-se apenas em asfalto. O quarteirão nem é tão solitário assim, pois continua em outra rua, enquanto as pedras da direita levam a um muro, um impedimento à 27 de julho de prosseguir ou assumir outra identidade, como faz o quarteirão quase solitário. Sigo com o objetivo de conhecer o muro-ponto final. A data 27 de julho de 1990 foi o dia em que mais de duas mil famílias realizaram a ocupação do bairro Pantanal. Não foi a essa rua que as pessoas chegaram primeiro, mas ela foi escolhida como marco histórico, para que não fosse esquecida a data símbolo do surgimento desse novo pedaço de Fortaleza. O dia foi comemorado em grandes festas de aniversário realizadas na primeira década dos anos 2000 pela União dos Moradores do Pantanal (UMP). O bairro parava para a celebração. Montava-se um palco na Rua Chico Mendes ou na Quixadá, por serem ruas centrais, e bandas de rock ou forró; grupos de hip-hop ou swingueira, formados por moradores do bairro, apresentavam-se.

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Cadeiras e mesas na rua. Música alta até a madrugada. As festas duravam geralmente quatro dias, começavam na quinta-feira e iam até domingo. Devido ao período de festas de São João, barracas de comidas típicas eram montadas, renda extra para os moradores. As quadrilhas juninas eram o momento mais esperado. Uma multidão se reunia para vê-las. No dia seguinte, o assunto mais comentado nas ruas era o que acontecera na festa. Viabilizar tudo dava um trabalho que a UMP não conseguiu manter, mas as festas ainda foram realizadas por oito anos, de 2000 a 2008. Esse tipo de badalação não é próprio da 27 de julho, talvez por ser uma rua mais afastada da parte central do bairro, razão pela qual não recebeu as festas. Em 2014, o Pantanal completa 24 anos, e a 27 de julho simboliza não só o dia primeiro da ocupação como a história construída a seguir. Quem primeiro chama a minha atenção, quando chego à rua, é o muro-ponto final, mas a depender da direção escolhida, ele também poder ser o começo. A passos lentos, sem parar, sigo de um fôlego até ele. Nesse ínterim, vejo rapazes descamisados e camisados. Folhas secas de jambeiro pelo chão. Um gato siamês aproximando-se sorrateiro de algumas sacolas carregadas pelo vento. Antenas parabólicas, caixas de correio, dois telefones públicos, algumas placas com os dizeres “vende-se dindin”. Uma das residências oferece serviço diferenciado, vende trufas, musses e picolés. Há casas duplex e casas pequenas. Elas são pintadas de branco, verde, salmão, azul e amarelo. Apenas uma, na rua inteira, é pintada de rosa choque: Estúdio de Beleza New Hair. Lá o corte de cabelo é unissex e faz-se escova progressiva. Há ainda as residências nuas, com tijolos despudorados à mostra, exibindo tonalidades em marrom e vermelho. Quase todas as casas obedecem a um traçado invisível, não permitindo que uma avance mais para a rua do que a vizinha. Fizeram um pacto as calçadas. Deve ter sido. Chego ao muro. Ele não é muito alto. Foi grosseiramente recoberto de cimento, por isso é áspero ao toque. Corre uma lama fina na frente dele e algumas plantas crescem na terra da diminuta calçada. Ele não é mudo, como à primeira vista pensei, pois muitas de suas vozes estão quase apagadas pelo tempo. Sento-me em uma calçada, em frente a uma casa, ao lado dele,

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mas logo me levanto para vê-lo por inteiro. Saio de lá minutos antes de duas mulheres baterem na porta da casa. Ainda bem, talvez me perguntassem o que eu fazia ali, sem a mínima discrição, sem tentar disfarçar, fitando-o. O muro é uma polifonia que meu limitado vocabulário não permite entender. Para mim, ele é representativo de tantos outros muros erguidos no bairro. Muitos marcados por pichações. Ele é representativo do que foi fixado. Há pouco mais de 20 anos não havia muros, o que demarcava os limites entre as casas e a ruas eram divisórias de papelão, barbantes, cordões e lonas, prenúncios dos muros erguidos depois. Encosto-me à parede branca à frente dele, do outro lado da rua. Aproveito a sombra de uma árvore para proteger-me do sol e da chuva fina que se revezam no céu. Um cachorro de pelos alaranjados faz a mesma escolha. Não pergunto se podemos dividir a sombra e o cãozinho deve ter julgado a atitude arrogante, pois rapidamente levanta os olhos, as orelhas, o corpo inteiro, enfim, e vai deitar-se longe. Das mensagens deixadas aos passantes pelo muro, entendi poucas.

PROIBI COLAR LIXO CFL OSV P/ MOOK Os hieróglifos são pretos, azuis, verdes e brancos. Pelejo, pelejo, mas não, não os entendo. Desconheço os significados das mensagens, assim como desconheço os sujeitos inscritos na parede por meio dos símbolos. Há algumas figuras humanoides e complexas letras pertencentes a um alfabeto desconhecido a mim. Diviso ainda: THALITA TE AMO. Ela deve ter ficado feliz ao saber-se amada.

U2 GAIATINHU’S #2009#

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Algumas pichações são mais nítidas, outras mais apagadas. Do outro lado do muro, pelo que meus olhos conseguem perceber, há apenas coqueiros e outras espécies de plantas. Sobre o muro, pedacinhos de vidro foram colocados para ferir pés e mãos de quem tentasse descobrir o que há atrás dele. Indício de que por ali não está claro que muros são impedimentos, formas de dizer até onde se pode ir, até onde o espaço é público e quando deixa de sê-lo. Quem tenta quebrar a regra, pode se ferir. – Tinha uma vizinha lá em casa, mulher, que tinha ciúme até do vento! Sabe o que aconteceu? Fico sem saber. A mulher de cabelos cacheados até a cintura, vestido verde-claro e chinelas havaianas cor de rosa, fala alto enquanto caminha ao lado de outra mulher. Decido não segui-las, ainda que estivesse curiosa para saber o que acontecera à vizinha com ciúmes do vento. Por falar na vizinhança, o maior prédio ao lado do muro – polifônico e representativo – é a Comunidade Mariana Rainha da Paz. No mesmo local, já houve um colégio particular chamado Dom Bosco. Estudei lá. Da segunda à quarta série, creio. Quando chovia, era difícil chegar. Entre a rua e a calçada do colégio, parecia correr um rio de lama. Minha mãe me colocava nos braços para eu não sujar a farda. Meus irmãos estudaram lá. Pedro dançou na festa de formatura do ABC e Karina chorou até inchar os olhos, até soluçar, porque não queria trocar de professora a cada ano do Jardim. Não fazia sentido por que não poderia ser a mesma “tia” para sempre. Chorou por alguns dias, até esquecer a primeira professora e acostumar-se à segunda. Quando a escola fechou, porém, não a vi chorar. Onde hoje é o muro, havia uma árvore muito alta, pelo menos aos oito anos ela me parecia altíssima. O tronco era velho, ela era velha, já não tinha flores, ou folhas, os galhos eram secos. Parecia morta, mas mesmo assim sustentava-se de pé. Altiva, olhando o horizonte. Minhas colegas diziam que uma bruxa havia sido enforcada ali e o espirito dela assombrava quem chegasse perto demais. Um dia, uma mulher esqueceu-se disso e foi vista correndo e gritando que a árvore – ou a bruxa, nin-

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guém entendeu direito – falara com ela. Eu morria de medo e não passava perto. Não queria saber o que a bruxa ou a árvore queriam falar. Hoje, eu teria coragem, ficaria lá debaixo esperando para ouvir. Garanto que não teria medo. Duvida? Mas a árvore não está mais lá. Devem tê-la convencido de que estava morta e deveria sair dali. Nesse dia, ela se deitou, estava mesmo cansada de ficar em pé, e os homens a levaram para algum lugar. Quem quiser saber o que há do outro lado do muro, deve decifrar as letras pichadas e depois passar pelos vidros sem se ferir. Mas, cuidado, só há duas chances de erro, sob pena de encontrar a bruxa, porque ela não se convenceu de estar morta e continua por lá. – Eita Deus! Ô nossa senhora da Glória! Sobe a rua a mulher que falava da vizinha com ciúme do vento. Tímida, não pergunto o que aconteceu à vizinha e continuo sem saber. Deixo para trás o muro, polifônico e representativo. A rua me chama. Muitas outras vozes falam dentro e fora de seus muros. Sou convidada a ouvi-las. Uma mulher sentada na calçada segura uma criança. Elas estão em frente a uma casinha verde, com porta e janela que dão para a rua. Surpreende-me a ausência de grades, adorno comum em portas e janelas de outras residências pelo bairro. De pé, outra mulher, de calça florida e blusa preta, conversa com ela. Das duas, aproxima-se uma terceira, que varre a calçada. Um velhinho de boina, camisa amarela, calção florido e óculos estilo Reginaldo Rossi, continua sentado no mesmo lugar há mais de uma hora. Conversa com um homem ao lado, de camisa vermelha e boné. Três cãezinhos completam a irmandade da calçada. Não sei sobre quais mistérios conversam naquela manhã. Quatro meninas voltam da Escola Joaci Pereira. Vejo o nome nas blusas da farda. À minha esquerda, um rapaz numa bicicleta cargueira entrega cimento Poty. À minha direita, chega ao portão uma mulher com ar de preocupada. Ela fica lá, parada, olhando a rua. Depois de um tempo, me pergunta que horas são e permanece lá com aquele ar de preocupada. Um, dois, três, quatro, cinco... Dez montinhos de terra, entulho e tijolos em frente das casas. Parece uma epidemia de

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reformas. Perfume de gardênia tem em sua roupa. A rua canta e eu me distraio. – Só anotando aí, né? Só para sair multando depois? – ri e pergunta um conhecido, que passa numa moto. – É – retribuo o sorriso e sigo em frente. Nas cores verde e azul, Audízio disputa atenção com Ribamar, em vermelho. Aparentemente, aquele ganhou a disputa, porque os números deste já estão bem apagados.

VEREADOR AUDiZIO OLIVEIRA 1 9 1 90 P T N RIBAMAR O MARANHENSE 656... PC do B O amigao da g... Retornam as moças de farda. Riem alto, vão de cabelos soltos. Deve ser felicidade de não ter aula às 8h30min da manhã. Entendo. Estudei na mesma escola pública. Quando não tinha aula, voltava para casa e assistia TV, ou ia para casa de amigas ver filme de terror ou assistir a um DVD da Banda Calypso. Estava imersa no som do vento, no barulho de martelos, na voz do padre Reginaldo Manzoti mandando alô para um ouvinte, quando percebo: uma senhora de cabelos curtos e brancos havia me notado. Ela não me deseja “bom dia” ou diz “olá”. De súbito, pergunta onde eu moro. No susto, rapidamente respondo. Começamos uma prosa. Ela mora sozinha com o filho Assis, é viúva de dois maridos. O último morreu de repente, de ataque cardíaco, na calçada à frente da residência, hoje ocupada por material de construção e um telefone público. O cimento Poty fora entregue na casa dela. Mostra-me o altar, feito na sala, com imagens de várias santas e uma foto dela, no aniversário de 60 anos. Já foi a muitas missas. Hoje, contenta-se em assisti-las pela televisão. – Qual a idade da senhora? – pergunto. – Meu nome é Maria. – Qual o sobrenome? – Eu não me lembro, espere aí que vou pegar um documento de identidade.

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Espero. Ela retorna, mostrando-me os óculos. As mãos trêmulas seguram ainda um cadeado e algumas chaves. Tira e coloca os óculos, enquanto explica que só precisa deles para ver o que está longe, como estou perto, enxerga-me nitidamente. Explica que a casa foi dividida para o outro filho morar com a esposa. – Eu que limpo a minha casa. A vizinha aí da frente traz meu almoço. De tarde, ela me faz companhia. Briguei com meu filho hoje de manhã, ele saiu chorando, disse que não dormia em casa. – Brigaram por quê? – Eu não me lembro. Nem sei se ele volta hoje, mas ele tem de voltar que eu não posso dormir sozinha. Estou doente. Dona Maria não lembra a idade, mas diz depois, com firmeza, que o sobrenome é Rodrigues. Mora no Pantanal “há muito tempo”. Pergunto quanto: “Tempo de mais”. – Como é o nome da tua mãe? – ela quer saber. – Mazé. – Eu briguei com meu filho hoje. Quando ele saiu ainda deu com a mão pra mim, eu dei com a mão pra ele. Ele saiu chorando... Você mora onde? Despeço-me de dona Maria. Inquieta-me o paradoxo de querer escrever sobre memórias e ser abordada por alguém que as perde, que não lembra a própria história, muito menos a do lugar onde mora. Dona Maria me desperta um sentimento de fragilidade, por estar esquecendo o que viveu, o que enfrentou, o que a faz ser quem é. Ela me pede para retornar outro dia para conversarmos mais. Quando digo tchau, pergunta o nome de minha mãe e onde moro. Sinto-me presa à conversa repetida. Mais moças de farda passam na rua, com cabelos compridos soltos e gargalhadas altas. Escuto uma frase solta, mas não quero saber como a conversa continua. Não estou curiosa. No bar da esquina, um homem sozinho bebe cerveja e escuta uma música. Estou perdido pelas ruas (...) me dê uma chance de explicar.

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Entrelinhas Esse foi o meu primeiro dia de flâneur para o livro. Apreensiva, não dormi direito. Sonhei que estava muito nublado e meus óculos de míope não funcionavam. Eu não via bem a rua, ela estava acinzentada por conta da névoa e do embaçado dos meus olhos. Acordei e estava nublado, havia um sereno fino, seria um dia cinzento, mas os óculos, ainda bem, funcionavam. Dirigi-me aos quatro quarteirões da Rua 27 de julho naquela manhã. Retornei à rua, às 16 horas, para fotografar. Havia idosos nas calçadas e crianças correndo na rua. Aquele horário parecia pertencê-los. Encontrei dona Maria olhando a rua com outras duas Marias. Perguntei se lembrava de mim, ela não disse, apenas quis saber onde eu morava. Pedi as três para fazer uma foto, as outras concordaram, Maria Rodrigues não disse nada. O filho dela, disseram-me, sempre volta no fim do dia, após o trabalho, e não a deixa dormir sozinha em casa. Depois de alguns minutos, ela quis saber o nome da minha mãe e adiantou, secamente, que não teria dinheiro para pagar as fotografias. 32 32


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O dia 27 de julho de 1990

Liege Costa avisou a Luiz Bezerra, ajudante dela, que o encontro seria às 22 horas em frente a uma igreja ao lado do Colégio Doris Jonhson, no bairro José Walter. Naquele 27 de julho de 1990 entrariam no terreno. Apenas ela sabia onde ficava. A missão de Luiz era avisar ao máximo de pessoas possível. Juntou 2.100 famílias. Se cada uma tivesse em média quatro membros já eram mais de oito mil pessoas. Luiz, hoje um senhor de 77 anos, alto, negro e de cabelos brancos, achava que o local era distante. Um policial aproximou-se dele naquele dia, querendo saber o que toda aquela gente fazia por ali. Luiz disse com franqueza que iam ocupar um terreno. O policial fez mais algumas perguntas e foi embora. Quando Liege chegou, na hora marcada, estava vestida de modo diferente. “Ela sempre foi sabida”, diz Luiz. Liege vestia um macacão da empresa petrolífera Shell, colocou óculos e maquiou-se para parecer velha. O disfarce era necessário por ser muito conhecida e a pessoa no comando não poderia ser facilmente identificada. – Era uma sexta-feira, nós viemos e era muito mato aqui. Por isso era cada qual com uma foice. Amanhecemos o dia dormindo nos matos. Tudo que era inseto tinha aqui dentro, tinha cobra também. No outro dia, já correu o boato de que nós tínhamos invadido e vinha gente de toda essa Fortaleza – conta Luiz. Caminharam pela Rua Ipaumirim e pararam próximos à Rua Central, que já existia. A romaria durou pouco mais de 20 minutos. O terreno sem nome ao qual chegaram seria cha-

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mado depois de Pantanal. Ali, foram colocar os alicerces das casas e das vidas. No ano de 1989, Liege visitou alguns terrenos, mas não havia gostado de nenhum. – Gostei desse aqui. Então, juntei a documentação da terra. Consegui uma parte nos cartórios e outra com os antigos herdeiros do terreno. Eram os Sousas. Conheci o Arthur de Sousa, tem até uma rua aqui com esse nome, e ele me ajudou, dando documentos que pertenciam aos antepassados da família dele. Liege Costa tinha 42 anos, três filhos criados e uma rotina dividida entre a liderança comunitária e o “gabinete de beleza”, no bairro José Walter. – Disse para as pessoas virem preparadas: com panela, com menino, com lamparina, com pano pra se deitar. Eu bolava de rir daquela arrastadeira de coisa no meio do caminho. Uma zuada danada! Foi sofrido, mas foi bonito! (risos). Quando eu cheguei, beijei o chão igual ao papa, pedi proteção a São Francisco de Assis e ele me defendeu. Após aquele dia, ela voltou para a casa no bairro José Walter, deitou-se em uma rede e não conseguiu mais levantar. Ficou três dias no hospital, tomando soro e vitamina, consequência das noites mal dormidas e dos dias trabalhando para tornar a ocupação possível. Havia planejado o dia 27 de julho por oito meses em reuniões realizadas no Centro Social Urbano (CSU) do bairro José Walter. Por meio das reuniões, cadastrou 4.081 famílias na Associação Artesanal Padre Cícero, daquele bairro. Contou com a ajuda de Maria Hilda Barros, ou apenas dona Hilda, hoje com 84 anos. Hilda trabalhara por muito tempo para ocupar as casas do José Walter, conjunto habitacional criado em 1970. – As casas eram abandonadas, ninguém morava nelas, e eu saía atrás de gente pra levar pra Cohab (Companhia de Habitação do Ceará) pra comprar as casas. Não queriam vir porque não tinha escola, não tinha nada e achavam longe, deserto, achavam que era sertão. Quando levamos as pessoas pro Pantanal, não tinha mais casa no Zé Walter. Até as casas daqui eram invadidas, entravam na marra. Abriam as portas e ficavam. A gente só conseguia as coisas assim: na marra.

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Feita a ocupação do Pantanal, dona Hilda afastou-se do processo a pedido do marido, que não gostava “dessas coisas de invasão”. Liege continuou. Diferentes razões a moviam. – Uma família despejada por não pagar o aluguel foi me pedir ajuda. Eu só tinha a minha casa, não podia fazer nada. Então, comecei a fazer reuniões todas as segundas-feiras desde o dia 28 de novembro de 1989 no CSU. Queria juntar bastante gente e depois pedir ao governo terra pra moradia. Prometi casa pras pessoas, mas não exatamente no Pantanal. – Por que a senhora fez essa promessa? – Na época, muita gente morava de aluguel e eu via o descaso que acontecia. As pessoas invadiam e vendiam, então eu quis mostrar pras autoridades que o povo não precisa de invasão. Alguns precisam, mas outros não. Quanto mais o governo faz casa, mais os pobres vendem e voltam para área de risco. Por isso que não acaba esse tipo de pobreza em Fortaleza. Essas invasões que existiam eram comércio, imobiliárias, então decidi fazer uma só pra pessoas pobres mesmo. – Essa venda de terrenos aconteceu no Pantanal? – Aconteceu sim. A pessoa que vem pra uma invasão vem na certeza de ter um pedaço de terra, como alguns que estão até hoje aqui, mas tem outros que comercializam. Liege já havia tido experiência em outra ocupação, próxima ao Aeroporto Pinto Martins, no ano de 1982. “Lá foi só pra política, não foi pra mim. Aqui, eu fiz pra ser vereadora, juntei mais de quatro mil famílias, é claro que eu ia ser vereadora”, diz, sem rodeios. Ela já se candidatou ao cargo quatro vezes, por diferentes partidos: em 1988 pelo Partido Municipalista Brasileiro (PMB), em 2012 pelo Partido Social Cristão (PSC) e outras duas vezes pelo PMDB, partido ao qual foi filiada por mais de 20 anos. – Quando eu fiz isso aqui, eu disse: ‘gente, a única coisa que eu quero, que vale muito e nada pra vocês, é o voto’. O meu sonho é chegar a ser vereadora, pra realizar os sonhos (pausa) daquilo que eu mais desejo fazer na comunidade, como urbanização. Na próxima eleição, vou de novo, até conseguir ou até morrer.

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Liege Costa: Sobre aprender humildade e desejar reconhecimento

A casa não é difícil de achar. Há vários cartazes de quando se candidatou a vereadora, em 2012, no muro da residência, de chão de cimento e pequenos cômodos. Um quadro coberto de papel-madeira, colocado na parede da sala, apresenta-a aos visitantes. Dados Biográficos Maria Liege da Silva Costa Nascida a 14 de outubro de 1948, natural de Limoeiro do Norte, filha de Joaquim Correia da Silva e Maria Conceição da Silva. Profissão: Profª de Educação Artística e Cabeleireira Fundadora e Presidente da Associação São Francisco. Lutou com garra pela posse desta terra (Pantanal) e até hoje continua a serviço da Comunidade. No mesmo pequeno cômodo, um quadro do ex-prefeito de Fortaleza Juraci Magalhães – que ela diz ter levado ao enterro dele, morto em 2009, em decorrência de um câncer de pulmão. Há ainda fotos dos primeiros anos de Pantanal e de políticos como os ex-prefeitos de Fortaleza Antônio Cambraia e Luizianne Lins; pôsteres do ex-presidente Lula, da presidenta Dilma Rousseff, e dos irmãos Cid e Ciro Ferreira Gomes. A neta, Sabrina, possui o maior pôster. Em uma estante de madeira, um antigo ferro de passar roupa, daqueles em que se coloca brasa dentro para esquentar, faz companhia a algumas menções honrosas e prêmios recebidos de associações de

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bairro e também da prefeitura. Hoje, aos 66 anos, Liege diz possuir duas paixões: o maracatu e a política. “Está no sangue, a gente não consegue explicar”. No bairro José Walter, ela tinha ainda um grupo de capoeira, outro gosto. Mostrou-me recortes de jornal, fotos, documentos e uma cicatriz no abdômen, resultado de uma operação na vesícula. As mãos, cheias de anéis, são trêmulas. A voz, um pouco rouca. A pele é morena e os cabelos curtos são tingidos de loiro. Sentamos em um sofá de estampa xadrez com uma grande toalha branca de croché sobre ele. – Em 1964, eu era adolescente, mas já estava na Praça do Ferreira com a Rosa da Fonseca (ex-vereadora de Fortaleza e ativista do grupo Crítica Radical) e a Maria Luiza Fontenele (ex-prefeita de Fortaleza e também ativista do grupo Crítica Radical), quebrando ônibus na Revolução. Naquela época, não tinha grêmio estudantil porque era ditadura. Lembro que eu fui com a turma da escola municipal em que eu estudava. Nesse dia, foi até um soldado me deixar em casa. (risos) Na oficina de conserto de bicicletas do marido, a devoção por São Francisco de Assis se faz presente em duas imagens postas ao lado da televisão. O hino do santo foi cantado pelos amigos em frente à Delegacia do 8º Distrito Policial em uma das três vezes em que esteve presa. Com esforço, ela se recorda de um trecho da música: Onde houver ódio, que eu leve o amor. Onde houver ofensa, que eu leve o perdão. Onde houver discórdia, que eu leve a união. Onde houver dúvida, que eu leve a fé. Da sala, é possível ver o quarto com uma cama, uma TV, um guarda-roupa e um baú, onde guarda as próprias memórias misturadas às do bairro. Os cigarros, ela não larga. Mal sentamos ao sofá, a carteira Derby e o isqueiro branco são postos ao lado. Fuma e joga bitucas no chão. Foram sete ao fim da primeira conversa, de quase duas horas. Na segunda entrevista, levou-me para conversar com um amigo de lutas, Chico do Chapéu Preto, o cigarro e o isqueiro nos acompanharam.

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A fala de Liege é sempre reivindicatória, centralizadora, personalista: todas as ruas foram nomeadas por ela; a energia, a água, as escolas, o asfalto das ruas, a feira, tudo é obra dela. “Podem até se dizer lideranças comunitárias, mas jamais fundadores”. Ela é a única fundadora do bairro, enfatiza várias vezes, os demais “são apenas moradores”. No ano de 1991, foi presa três vezes. Nas datas 31 de janeiro, 19 de março e 16 de novembro. As datas viraram nomes de ruas no Pantanal. Nomeações feitas por ela. “A primeira prisão durou 54 dias, a segunda, um mês e 14 dias; a terceira, 13 dias”. Datas e números são sempre ditos com exatidão. Em fevereiro de 1991, o jornal Tribuna do Ceará noticia que uma líder comunitária foi presa por ter sido encontrado “em um compartimento da sua residência doze ‘dólares’ de maconha”. Acusada, ela se defende na reportagem: “Sou líder comunitária do prefeito José Walter há 16 anos, sempre lutei pelos interesses daquela gente, tenho três filhos e não sou traficante de maconha”. Dois pacotinhos com a droga foram encontrados no banheiro da casa dela, que já havia se mudado para o Pantanal, deixando para trás a vida no bairro José Walter. Ela diz ter sido incriminada por pessoas que queriam assumir a liderança da ocupação em seu lugar. A primeira prisão, na qual permaneceu 54 dias no Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa, foi a mais difícil. – Na cadeia, eu não comia, só tomava café e fumava. As minhas visitas levavam cigarro pra mim. O colchão era fino, parecia que eu dormia em cima de uma pedra. Eram 16 camas na cela, quando eu olhava ao redor, de madrugada, começava a chorar, elas pareciam defuntos, me lembravam do IML (Instituto Médico Legal). Minha irmã levava mingau de milho pra mim e eu ficava encostada na grade, escrevendo e chorando. Entrei em depressão, até hoje existe depressão em cima de mim. Na terceira prisão, foi acusada de vadiagem, porque estava sem o documento de identidade. “Antigamente, as pessoas eram presas por isso”, explica. Segundo ela, a própria polícia rasgou o documento, a mando de possíveis donos da terra.

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Sobre a segunda prisão, diz que um candidato a vereador, com influência na polícia, queria tomar o lugar dela no comando da ocupação e mandou prendê-la. Liege ainda foi acusada de vender terrenos. “Diziam também que eu derrubava casa. Foram me denunciar no Oitavo Distrito. Depois foi descoberto que quem vendia era um tal de Nêgo, ele foi preso e teve de pagar fiança pra sair”. Embora assegure que não vendia terrenos, não fala com tanta certeza dos que trabalhavam com ela. Alguns chegaram a fazê-lo, moradores iam avisá-la. – A distribuição dos terrenos foi tranquila e não foi, porque teve gente muito sabida que vendeu muito terreno e enricou. Nunca vendi, se eu tivesse vendido eu estava rica, nem morava mais no Pantanal. – A senhora não tentou impedir a venda dos terrenos? – Eu tinha sido presa, eu não podia brigar, porque se chamassem a polícia, eu ia ser presa de novo. Tinha de deixar passar, fiz de conta que não enxergava nada. Além das datas das prisões, Liege diz que parentes dela também nomeiam algumas ruas do bairro: Neném Tomé (mãe), Joaquim Correia (pai), Marcelo Costa (filho) e Batista Lima (cunhado). A Rua Frei Teodoro é homenagem ao padre que lhe deu a primeira comunhão. Admiradora de Juraci Magalhães, também batizou uma rua com o nome dele. Wagner Marinho era um dos homens que trabalhavam com ela. A Rua Fortaleza leva o nome do time do coração. A lista continua. – A Rua Vitória Régia é por causa daquela planta bonita, aí tem a Rua Sol, porque lá justamente o sol cai todinho, é uma rua muito clara. A Quixadá se chama assim porque há muitos moradores de Quixadá por lá. A Rua São Francisco e a São Francisco de Assis é porque eu sou devota do santo, até meu marido é Francisco (risos). – Mais gente, além da senhora, foi dando nome às ruas? – Não! (enfática) Admite ter mandado derrubar casas por duas vezes. Quando retornou de uma das prisões, um grupo supostamente formado por policiais estaria construindo casas no campo de futebol Vila Nova. Ela não gostou da ideia, queria o espaço do

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campo vazio, mandou os companheiros “botarem abaixo” antes que as casas fossem totalmente construídas. Noutra deixa, um pastor não teria construído a casa dele do “jeito que era pra ser, com seis metros de frente”, num formato semelhante a um chalé, determinação dela. A briga foi feia. Ela mandou quebrar a frente da casa. O episódio teria sido o responsável para que a rua onde o pastor mora fosse chamada de Apocalipse. Outra versão para que a rua tenha esse nome seria o fato de ter sido localizada nela uma das primeiras igrejas evangélicas da co1 munidade chamada Assembleia de Deus Apocalipse. Liege diz que hoje tem a “ficha limpa”, que nunca provaram nada contra ela. Com o Pantanal, diz ter aprendido a humildade, antes dele, vivia “no salto”. Orgulha-se de chegar a uma esquina qualquer, olhar para os lados e saber que participou da construção do bairro, onde mora até hoje. Ela continua a nutrir a paixão pela política-eleitoral, assim como a que sente pelo Maracatu Nação Fortaleza, para o qual pinta a face de preto todos os anos. Não me deixa ir embora, sem antes dizer: “Quando você fizer uma promessa, cumpra, porque a única coisa que nós temos nessa vida é a nossa palavra”, e eu não me permito ir embora sem saber o que o Pantanal significou para ela. – O que o Pantanal representou na sua vida? – (Pausa) Ninguém faz o que eu fiz, nem um homem de calça! Eu sofri. Tenho uma hérnia hoje que é resultado de um murro no estômago. Tive depressão. Disseram que eu era traficante. Deixei meu gabinete de beleza, deixei família, deixei casa, deixei tudo pelo povo, que nem reconhece, mas isso é uma coisa que Deus marca na vida da gente, foi uma missão que eu tive. – Valeu a pena? – (Pausa) Não valeu, mas você tem de se arrepender pelo que não fez. Se já tá feito, por que eu vou me arrepender? Se eu pudesse mudar algo, mudaria as pessoas que diziam estar do meu lado, mas me traíram. Tenho orgulho de tudo que eu fiz, porque qualquer pessoa pode ser liderança, fundadora não! 1

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Informação do vídeo, História da Rua Apocalipse, produzido pelo projeto TV Janela do Instituto de Desenvolvimento Social (IDS). Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=w04HCIT4ox4


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Estavam “botando pra correr” quem morava perto do riacho, que hoje já não existe. Um homem se dizia dono de um terreno e teria ateado fogo no barraco de um casal de idosos. Mandaram chamá-la. Liege não andava sozinha, havia 15 pessoas que a ajudavam. Uma mulher e 14 homens: dona Graça, seu Luiz – o braço direito – Marinho, Ananias, Zé Pequeno, Tonhão, Caetano, entre outros. Alguns já morreram, outros contam a história, como Francisco Pereira Alves, 74 anos, ou Chico do Chapéu Preto, apelido colocado por Liege. Cheio de anéis, cordões e pulseiras cor de prata, trajando apenas uma bermuda jeans azul e sentado numa cadeira de balanço em frente de casa, Chico do Chapéu Preto pede para trazerem dois banquinhos de madeira para mim e Liege. Mal tomamos assento, ele dispara a narrar uma tentativa de assassinato sofrida por ela. O algoz descarregou dois revólveres junto com outros dois homens. Naquele dia, ela havia convocado os companheiros com um apito. Apitar uma vez ou duas significava que pessoas estranhas à Liege haviam entrado no Pantanal; se apitasse três vezes, os companheiros deveriam se reunir rapidamente junto dela, levando faca, facão, foice e machado. Algumas vezes, ela também usava um megafone. “Quando entrava uma pessoa de carro aqui dentro, eu já sabia o número da placa e olhe que ninguém tinha nem celular”, conta Liege. Naquele dia, ela tinha apitado três vezes. Estavam todos de preto, era assim que saiam à noite, numa tentativa de camuflagem. O atirador parecia mirar a cabeça de Liege, mas só atirou perto dos pés. “Pá, pá, pá!” Chico imita o som dos tiros e fala do medo que sentiu. O atirador queria assustá-la. “Eu fui me afastando e ele atirando no chão, foi então que desmaiei e um tiro pegou na virilha de um rapaz”, ela conta. Não havia mais o que fazer ali. Foices não podiam competir com armas de fogo. Chico levou Liege e o rapaz ferido embora. O atirador disse que não queria matar ninguém, só defendia o terreno. O grupo de Liege não retornou ao local novamente. – Quando Liege desmaiou, pensamos que ela tinha levado os tiros – conta Chico. – Nós éramos armados até os dentes. Tinha faca, punhal envenenado. Um ou outro tinha revólver. Diziam que eu tinha pistoleiros, mas o que a gente fazia era vigiar as barracas de todo mundo pra garantir a segurança – diz Liege. Não se sabe que fim levou o atirador, apenas que depois ergueu uma fábrica de tecido no terreno disputado. O negócio não deu muito certo e ele foi embora. Chico do Chapéu Preto ouviu falar que o homem anda pelos lados da Pedra da Galinha Choca, em Quixadá. Não se sabe se vivo ou morto.

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GALERIA

FOTO: GABRIELA ALENCAR

Liege Costa ao lado de seu Luiz, o “braço direito” dela

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FOTO: O POVO, 3 DE jUNHO DE 1992 / BANCO DE DADOS O POVO

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Impressões do Pantanal do José Walter e de outros Pantanais Naquela casa vazia, que ele mesmo levantara Um mundo novo nascia, de que sequer suspeitava. O operário emocionado, olhou sua própria mão Sua rude mão de operário, de operário em construção E olhando bem para ela, teve um segundo a impressão De que não havia no mundo, coisa que fosse mais bela. O operário em construção (Vinícius de Moraes)

Dois idosos conversam na portaria de uma empresa de confecção no bairro Mondubim. Um explica ao outro que basta demarcar o terreno e fazer o barraco. Adalberto Ribeiro, 41 anos, acha fácil demais. “Aquele papo estava muito estranho. Na época da pós–ditadura, tempos de Tasso Jereissati governador do Estado, era impensável fazer um troço desses!”. Ele pediu a um dos homens para levá-lo ao lugar. “Num linguajar meio esquisito, ele explicou que era no ‘Patanal’ e que me levava se eu desse a ele um agradozinho, uma cédula verdinha de 200 cruzeiros da princesa Isabel, como se fosse uns 20 reais hoje”. Adalberto tinha vindo de Ubajara, na Serra de Ibiapaba, para Fortaleza. Terminara um relacionamento e queria construir uma nova história. – Quando cheguei no ‘Patanal’, me deparei com aquela vastidão de terra, nada construído. Como não havia edificações, era um vendaval horrível, a gente mal conseguia ficar de pé. Achei tudo meio diferente, exótico, e comecei a planejar como seria o meu primeiro barraco. Escolheu então um pedaço de chão para si, mas foi logo alertado por um homem de que o local escolhido já tinha dono. “E era dele porra nenhuma! O cara tinha colocado dois cordões

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e já se dizia proprietário”. O barulho de martelo batendo prego em madeira e a cantiga de pássaros eram os sons mais ouvidos por ele. Um pouco adiante, perguntou a outro homem onde havia um terreninho em que pudesse ficar. O interlocutor apontou em volta e, calmamente, explicou a situação. – Esse aqui é da minha mãe, esse do meu pai, esse do meu tio, esse de... – Eita, que parece um loteamento de cemitério! Estão todos enterrados aí, meu senhor? Não sobrou nada, não? O homem sorriu e disse: – Tem aquele ali, fulano ficou de vir e não veio. Fique com ele. O terreninho do fulano que não apareceu ganhou proprietário naquele instante. Adalberto poderia, enfim, construir o barraco. Primeiro, uma arquitetura de madeira era montada, depois, colocava-se palha ao redor. Havia também os cobertos de lona. Algumas pessoas fizeram casinhas de taipa. Os bens de Adalberto, também conhecido como Tukano – “devido à anatomia do nariz” e não por ser filiado ao PSDB, ele esclarece – eram um espelho, um tapete e alguns livros. À noite, lia à luz de uma vela. Perdeu o pouco que tinha em um incêndio. “Tinha tomado umas ‘pinga’ sozinho, dormi e esqueci a vela acesa. Acordei com a fumaceira e tinha começado exatamente nos meus livros!”, conta e ri da própria desgraça. Algumas pessoas já moravam no lugar. Era possível ver uma casinha e, depois de caminhar um pouco, via–se outra. Sobre a aparência, as pessoas são quase unânimes em dizer que “era mato, mato grosso mesmo, mata fechada”. Naquele mato, havia mangueiras, cajueiros e carnaúbas. Atualmente, é difícil ver essa vegetação. Coqueiros e pés de jambo são mais comuns. Foram plantados depois. Há também uma lagoa, onde dava para pescar. Chama–se Lago Azul. Hoje, está degradada, poluída, mas, naquela época, completava o cenário do lugar que, para os moradores, assemelhava-se ao Pantanal mato-grossense, um dos sete biomas brasileiros, cujas belezas naturais o país inteiro conheceu por meio da novela “Pantanal”, exibida em 1990 na extinta Rede Manchete.

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Escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Jayme Monjardim, a novela é considerada um marco na teledramaturgia brasileira. A narrativa chama atenção com o ritmo mais lento, contemplativo, carregado de imagens externas exibidas ao som de músicas instrumentais e regionais. Paisagens exuberantes, cenas do sol nascente e poente, e tomadas de animais silvestres levaram a TV Manchete a quebrar o monopólio da Rede Globo no horário nobre (depois das 20 horas). A novela foi reprisada pela própria Manchete em 1991 e pelo SBT em 2008 (MAIO, 2009). A beleza do Pantanal-bairro não foi, contudo, a primeira impressão despertada em todos. Antônio Carlos Souza, 53 anos, retorce o rosto em uma careta ao contar a lembrança. – Pense numa favela infeliz, numa coisa mais feia do mundo! Quem veio pra cá realmente não tinha pra onde ir, porque isso aqui era pobre de mais. Era horrível! Quando cheguei, eu pensei “Meu Deus, eu sou pobre, mas nem tanto! Vou é embora!”, e fui. (risos) Era 1991, uma amiga lhe disse depois que ele havia visitado a “parte errada”. Carlos conhecera o local onde hoje fica um campo de futebol chamado Vila Nova. Ela mostrou a ele um terreno na Rua Apocalipse, já com o mato baixo. Ele achou a aparência melhor e decidiu que ali se agarraria. Antes, ele morava no bairro Montese, onde tentou montar um comércio, que não deu muito certo. – No frigir dos ovos, tudo era ruim (pausa), tudo era difícil. A gente descia do ônibus lá no Zé Walter e vinha a pé pra cá, era uma escuridão medonha, a gente tinha medo. Tinha muito ladrão, não tinha segurança. E ainda veio muito especulador pra cá, mas muita gente, como eu (enfático), ficou só com seu pedacinho, não pegou nem pros filhos. Bom mesmo, para Carlos, era sentar no quintal, em um sofá velho, cheio de furos, na companhia da mulher e do filho pequeno, que brincava passando o dedo pela chama de uma vela. Ficavam vendo a lua e conversando até chegar a madrugada com o sono.

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O Pantanal começa a ser tratado nas páginas dos jornais como “Pantanal do José Walter”, em referência ao bairro próximo. Talvez por influência da novela da extinta Rede Manchete, muitas outras ocupações em Fortaleza recebem também a alcunha de Pantanal. De 1990 a 1996, período pesquisado, os jornais O Povo e Diário do Nordeste falam de problemas sociais de outros Pantanais espalhados por Fortaleza. Um próximo ao Aeroporto Pinto Martins, outro no Jardim Iracema, outro no Lagamar e um na Barra do Ceará. Havia ainda o Pantanal do Santo Amaro, o do Genibaú e o do Bom Jardim. Em dezembro de 1990, o jornal Diário do Nordeste noticia que cerca de 100 famílias residentes na “Favela do Pantanal, ao lado do Aeroporto Pinto Martins” vivem dias difíceis. Falta água encanada, energia elétrica e as pessoas utilizam cacimbas comunitárias. Os homens trabalham como pedreiros ou ambulantes e as mulheres como domésticas e faxineiras, registra a reportagem. A comunidade já contava com uma associação de moradores. “Ali foram instaladas, há cerca de um ano, pessoas vindas do bairro de Vila União, que moravam de aluguel. Todos são invasores do terreno, cujo dono nunca apareceu”. Em junho de 1991, no bairro Jardim Iracema, cerca de 400 moradores da “Favela Pantanal” convivem com lama, lixo, falta de luz e desemprego. A matéria do Diário do Nordeste diz ainda que o local foi ocupado em 19 de junho de 1990 (pouco mais de um mês antes da ocupação no Pantanal do José Walter). Antes das famílias chegarem ao terreno, o lugar era um matagal. Por não terem condições de pagar aluguel, as pessoas foram para lá em busca da casa própria. A matéria fala ainda sobre conflitos com moradores dos arredores, que se queixavam da “invasão”. Em dezembro de 1993, a editoria de Polícia do jornal O Povo noticia um crime ocorrido na “Favela do Pantanal da Barra do Ceará, localizada atrás do SESI, na Avenida Francisco Sá”. Enquanto as ocupações se multiplicam pela cidade, o então prefeito Antônio Cambraia anuncia que a urbanização

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de favelas e a distribuição de lotes urbanizados seriam prioridades na gestão dele. Segundo texto publicado no Diário do Nordeste em janeiro de 1993, o Plano Diretor, estabelecido pela lei 7.061/ 1992, reserva espaço para regularização fundiária de “assentamentos espontâneos, definidos como áreas ocupadas por população de baixa renda, favela ou comunidade assemelhada, destituídos da legitimidade do domínio dos terrenos”. No mesmo mês, o jornal fala das péssimas condições em que viviam comunidades próximas ao Rio Cocó. Uma associação de moradores aponta que estavam em “situação lastimável 300 famílias no Pantanal, 50 no Clóvis Maia, 60 na Vila Milão”. A regularização fundiária parece permanecer apenas como promessa no plano diretor. Instalada à beira do Rio Cocó ou em partes mais altas em torno da BR 116 (...) Núcleos favelados como Pantanal, Clóvis Maia, Vila Milão e João Albano, dentre outros integrantes do grande Lagamar, expõem no traçado vertical da região dos mais nítidos quadros da indigência em Fortaleza. (...) “Nem mesmo em regime de mutirão estamos em condições de construir casas. Se não temos dinheiro sequer para comer como podemos colaborar na compra de material de construção ou no pagamento de operários?”. A indagação é de Maria Aparecida Pereira, 22 anos, há dois anos na Vila Milão. (Diário do Nordeste, 9 de janeiro de 1993)

Em julho de 1996, a coluna O Povo nos Bairros denuncia a falta de posto de saúde, escola e saneamento básico no Pantanal do bairro Santo Amaro. O Governo havia liberado o terreno para as famílias construírem suas casas e não teria mais dado assistência. Também em situação precária viviam famílias da “Favela da Lagoa do Opaia”, que teria sido criada em 1981 e estava dividida em três núcleos: Pantanal, Riacho Doce e Adonias Lima. Havia casebres de barro, de tijolos e de papelão. A falta d’água e a violência eram as principais queixas. Já no Pantanal do Genibaú, o principal problema era a falta de acesso à água tratada, que chegava por meio de carros-pipa. Para piorar a situação, no início dos anos 1990, Fortaleza enfrenta uma

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epidemia de cólera, agravada pela precariedade do abastecimento de água e do esgotamento sanitário. A situação do abastecimento de água é, em geral, menos precária do que a de esgoto nos bairros de Fortaleza, embora todos os bairros registrem a existência de domicílios com água inadequada. (...) A situação do esgotamento sanitário é extremamente precária, 83,9% dos domicílios particulares (...) não possuem escoamento adequado do esgoto sanitário. (...) A observação do conjunto de dados levantados pelo Censo Demográfico de 1991 para o município de Fortaleza revela que a desigualdade é o traço marcante dos indicadores analisados, isto é, enquanto num bairro é possível encontrar quase 100% dos domicílios com esgotamento sanitário inadequado, em outros, menos de 5% estão nesta situação. (Censo Demográfico do IBGE de 1991. Caderno “Crianças e Adolescentes – Indicadores Sociais do Município de Fortaleza por bairro e setores censitários”).

Um ofício da União dos Moradores do Pantanal enviado à Secretaria de Ação Social do Estado em 1994 demonstra que a cólera também aflige o Pantanal do José Walter. “Em virtude de nossa comunidade ser composta de gente carente e o risco de cólera ser constante devido utilizarmos água de cacimba, solicitam-se 200 filtros para serem distribuídos entre os mais necessitados”. No mesmo ano, a comunidade também solicita a construção de banheiros. Já a Associação de Moradores do Parque Genibaú queixava–se da falta de saneamento, escolas e hospitais; as casas eram de taipa, com dois ou três cômodos e sem acesso à energia elétrica. O morador do Pantanal do Genibaú, João Rodrigues Lima, desabafa: “Nós só esperamos. Esperamos por saúde, por água, por pão. E, por último, pelas autoridades que, também se não vierem, não fazem muita diferença” (Diário do Nordeste, 28 de abril de 1993).

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Valdenor Xavier de Moura, 44 anos, chegou ao bairro por volta de outubro de 1990 com os pais. Natural do município de Mombaça, veio com a família morar no bairro Aracapé. – A cidade toda soube do Pantanal, as pessoas vinham e conseguiam um pedaço de terra, muita gente lá do Aracapé inclusive. O que a gente ouvia é que uma mulher estava doando a terra, mas ela estava era invadindo. Depois, eu soube que era a Liege. Valdenor e os pais não tinham condições de construir de imediato e ficaram sustentando a carga dupla de pagar o aluguel e construir a nova casa. Compraram tijolos e telhas e, aos poucos, ergueram a casa com a ajuda da família. Enquanto a residência não era feita, os pais dele dormiam no Pantanal para garantir a terra. – Meus pais colocavam uma tanga ou uma rede pra poder passar a noite e dormiam no chão mesmo, no relento, na terra batida. Tinha de fazer isso pra garantir o terreno, pra não invadirem, porque era uma desordem, uma desorganização. Lembro que quando cheguei, me assombrei: era um lugar que só tinha cordão demarcando, não tinha casa, tinha barracos, isso foi uma visão muito forte porque antes eu morava numa casa, né? Não havia água encanada, algumas pessoas cavaram cacimbas que, muitas vezes, secaram. Em 1992, um ofício da União dos Moradores do Pantanal (UMP) informa a então secretaria de planejamento Marfisa Aguiar que, devido à estiagem, as cacimbas estão secas e falta água até para beber. Três chafarizes são solicitados. À noite, a luz era de velas, lamparinas e lampiões. Com o tempo, os moradores começam a comprar fios e colocá-los em postes improvisados com a madeira das carnaúbas. No breu, as pessoas se assustavam quando viam alguém se aproximando ao longe. Preocupadas se quem vinha era de bem. Maria da Penha, 61 anos, mais conhecida como Izomar, morava no bairro Serrinha. Soube da ocupação pelos vizinhos e viu aí uma chance de não pagar mais aluguel, que levava quase o salário todo. Chegou sozinha, deixou os dois

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FOTOS: VALDENOR MOURA

Abastecimento de água no Pantanal em 1991

filhos morando com a mãe dela. Trouxe-os depois de já ter garantido algum pedaço de chão. Paulo tinha 13 anos e Érica, cinco. As crianças foram levadas a um Pantanal ainda sem escolas ou creches. Izomar e os filhos moraram por um tempo em apenas um compartimento de tábua, que possuía um banheiro. A cobertura era de telha de amianto. – Quando cheguei, o pessoal estava desmatando, dividindo com barbantes os pedaços em 6 x 18 metros. As pessoas marcavam, depois limpavam o terreno e faziam barraquinhas. A princípio, quando a gente só queria guardar o lugar, cada um fazia do seu jeito, como podia: com varas, com barro. Quando vimos que podia dar certo, começamos a fazer de tijolo. Eu não tinha muita certeza se daria certo, mas foi numa época que ia ter eleição e as pessoas falavam que ficaríamos, porque o Ciro Gomes (eleito governador do Ceará em 1990) ia nos apoiar e, de fato, deu certo, né? – explica Maria. Muitos vizinhos da Serrinha foram também para o Pantanal. Até o ano de 1992, Izomar participou da UMP,

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criada no ano anterior. Havia se divorciado do marido, e ficou inviável cuidar dos filhos, trabalhar fora de casa e atuar como liderança comunitária. “Tinha história também de que as pessoas ficavam com mais de um terreno. Coisas que sempre acontecem em ocupação, né? Dizem estar guardando pra parente e depois a gente descobre que não, a pessoa queria ficar com mais”, ela acrescenta. A UMP criou um jornal chamado Alerta!, a edição número nove, de 1992, denuncia a especulação do lugar. Numa área de terra anexa ao Pantanal está havendo uma nova invasão. No entanto, sabemos que muitos dos que correram para lá são pessoas que já têm terrenos no Pantanal. Portanto, alertamos aqui as novas lideranças que tenham cuidado com os aproveitadores, para não acontecer o que está acontecendo no Pantanal.

Naqueles dias, o barulho de carros ou motos não era ouvido com frequência, o principal transporte era a bicicleta. Em 1992, o caderno de Cidade do jornal O Povo noticia que, para pegar ônibus, os moradores precisam andar três quilômetros até o bairro José Walter. Posteriormente, as pessoas se organizam para conseguir transportes alternativos aos oferecidos pela prefeitura, que não chegavam ao Pantanal. Ficam conhecidos como ônibus-pirata, clandestinos ou irregulares. Para os moradores, a alcunha não importava, eles diziam que a qualidade era a mesma de outros ônibus que circulavam pela cidade. Izomar recorda, com saudade, que as pessoas eram mais próximas. Numa mesma rua, quase todos se conheciam e se alguém tivesse um problema, o vizinho ajudava no que podia. “Com o tempo, o lugar vai crescendo e as pessoas vão se dispersando, cada um cuida de sua vida”. Bárbara Severino Sousa, 65 anos, recorda-se do frio e da poeira, da falta de emprego e de um substantivo que simboliza as ausências que ela não consegue quantificar: o nada. Nesse lugar, onde tudo faltava, era preciso cuidado para não

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se perder o pouco que se tinha para saqueadores, que entravam em casas e barracos durante a noite. Unidas e organizadas, as pessoas criavam sinais para os vizinhos saberem quando havia perigo. “Quem tinha botijão de gás batia no bujão quando ouvia qualquer barulho suspeito. Chegava todo mundo junto (risos)”. Bárbara e a família pagavam aluguel na Pajuçara. Construíram uma área e um quarto, assim que chegaram ao Pantanal. Ela conta que eram frequentes as brigas porque uma pessoa tomava terreno de outra. “Era bate-boca, tabefe, aquela coisa (risos). Isso durou uns três anos mais ou menos, depois já tava todo mundo dentro dos próprios terrenos”. Em decorrência disso, quem havia conseguido um terreno era obrigado a estar sempre por perto, quando não podia, deixava alguém vigiando. Em meio às redes coloridas e às garrafas de cachaça do pequeno comércio que possui, Bárbara me propõe um exercício: “Faz de conta que a gente foi dormir ontem e era 1990, tivemos um sonho difícil e bonito, acordamos e estamos em 2013. Antes, não tinha nada, só aquele matagal, mas hoje é esse bairro e foi tudo feito pelo povo”. Ela não gosta que falem mal do lugar onde mora. “Não é o céu, mas é bom morar no Pantanal, não penso de jeito nenhum em me mudar”. Em 1991, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realiza o Censo Demográfico com um ano de atraso, devido à falta de recursos do órgão. Amândio Setembrino, 44 anos, era supervisor de um grupo de recenseadores do IBGE, à época. Amândio e equipe presenciaram um momento em que a ocupação estava um pouco mais estabelecida, mas as pessoas ainda enfrentavam muitas carências. – Quando nós começamos, eles estavam fazendo a invasão do terreno. Muitas casas estavam sendo construídas no estilo mais rústico que você possa imaginar: de barro, de taipa, de papelão, de placa de metal. O interessante é terem deixado bem separado o espaço das ruas. Não invadiam nem muito pra frente ou pra trás, havia o espaçozinho pra calçada.

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A maioria das famílias, ele explica, tinham de cinco a seis membros. As pessoas trabalhavam, em geral, por iniciativa própria: eram comerciantes ou vendedores ambulantes. Por ser uma região ainda não registrada em mapas, os próprios recenseadores tiveram de improvisar mapas do lugar. Os moradores achavam muito estranho aquele pessoal indo e voltando nas ruas, fazendo perguntas com uma prancheta nas mãos. Dos botecos, vinham gritos de “ei, maluco!”. – O que era difícil era encontrar um pai de família, geralmente tinha alguém cuidando da casa: a companheira ou alguns jovens. Às vezes, nem eram moradores do local, eram parentes que vinham vigiar para não ser tomado o terreno, né? Íamos lá durante o dia, e era meio deserto, havia pouca gente, porque estavam trabalhando fora. Não choveu muito em 1991, logo, havia muita poeira, característica que, para Amândio, lembra os cenários dos filmes americanos de faroeste. Além disso, a explicação para o nome de uma rua específica, conhecida como Rua Central, chamou-lhe atenção. Ao perguntar aos moradores quem havia nomeado a rua com o nome de Joaquim dos Anjos, ouviu uma resposta da qual dá risada até hoje quando conta. “Foi aquele senhor que mora ali que deu nome à rua, ele é o primeiro que veio morar aqui, o seu Joaquim dos Anjos”.

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A história que contam: crônica dos possíveis donos da terra de ninguém

Teria sido obra de um corretor, um tal de Antônio Sales, que mandou dividir o lugar em lotes de 6 x 18 metros e abrir ruas. O local era então chamado, nos mapas do corretor, de Loteamento Indaiá. Uma parte, 10% da área, seria do então deputado federal Pinheiro Landim, noticiou o jornal O Povo em 1992. Uma tal de Lucimar disse ter a escritura de outro pedaço das terras. Na linha do tempo, dizem, até os índios Tapeba, de Caucaia, teriam passado pelo local. Um “vintenário” fora feito – pela União dos Moradores do Pantanal ou pelo Governo do Estado, ninguém soube precisar – um histórico dos contratos de compra e venda do local nos últimos 20 anos. Nesse papel estava escrito que havia mais de 90 herdeiros, mas ninguém apareceu para reivindicar nada. As pessoas aproveitaram as demarcações dos mais de 84 hectares do loteamento para construir as casas, as marcações tornaram mais fácil deixar o espaço para as ruas. Os moradores tinham medo. Ouviam-se boatos de que viria um trator e passaria por cima das casas. O trator, felizmente, nunca veio, mas o medo foi uma das razões a levar as pessoas a se organizarem em uma associação de bairro. Uma freira, da qual não se sabe o nome, irmã do suposto herdeiro Arthur de Sousa, apareceu um dia, sem mais nem menos, com uma escritura: a prova de que ela havia recebido as terras como herança. Liege Costa já havia conseguido uma escritura de Arthur de Sousa. A freira achou o grupo de Liege no campo Vila Nova e, num rápido encontro, disse que não tivessem medo, que era uma pessoa de Deus, daria o documento a quem

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estivesse no comando. Disseram primeiro que o povo era quem comandava, depois confiaram na tal da freira, que entregou a escritura a Liege, foi embora e nunca mais se ouviu falar nela. Quando estava presa, Liege deixou os documentos com seu Luiz, o braço direito, que não sabia ler, mas sabia: o que guardava era importante. Ela diz ter apresentado os papéis em uma audiência com Antônio Sales na qual foi discutida a posse da terra. Foi a documentação versus o mapa do corretor. Diante do juiz, as escrituras tiveram mais validade. Mas, no principio de tudo, segundo as escrituras guardadas por Liege em um baú, o lugar era uma fazenda, que havia sido vendida em 1942 por 10 contos de réis. O bem foi herdado por João Bosco Paiva de Sousa, filho de Maria do Carmo Paiva de Sousa, “viúva, de prendas domésticas”. No primeiro dia de setembro de 1964, a senhora de prendas requeria a “interdição” do filho, nascido do casamento com João Ferreira de Sousa, falecido em 1952, “sem deixar nenhuma posição testamentária”. O único bem deixado foi um terreno, que havia herdado da mãe. João Ferreira deixou ainda mais nove herdeiros, elencados nos documentos com algumas descrições: outro João, brasileiro, ferroviário, casado; Maria, solteira e religiosa; Jonas e Marcelo, dos quais nada foi dito; Nely, professora; Eliézer, agricultor; Maria Lucimar, solteira, religiosa e residente em São Paulo; Esaú, agricultor e Lenira outra que teve as prendas domésticas reconhecidas. Todos, em acordo, teriam vendido o terreno no ano de 1989 ao corretor Antônio Sales. Bosco, assim me permito chamá-lo, era portador “de oligofrenia (debilidade mental)”. Devido à doença, ele não poderia administrar os próprios bens, algo constatado em uma audiência na qual, ao ser perguntando, não teria dito o nome, o estado civil, o dia, o mês e o ano em que estava sendo entrevistado “e outros fatos de conhecimento obrigatório a pessoas normais”. A interdição do filho de Maria do Carmo é concedida, pois, segundo o documento, seriam “incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil (...) os loucos de todo gênero”. De todos os nomes que apareceram nos documentos, por algum desconhecido magnetismo, fiquei curiosa para sa-

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ber quem seria Maria do Carmo, senhora que entrara para a história das mães viúvas citadas em folhas de cartório e que assumiu o comando, no lugar do filho, do único bem deixado pelo marido. Permito-me algumas alucinações a respeito dela, que não acreditava que o filho tivesse qualquer debilidade mental, como diziam os médicos e os vizinhos intrometidos. Fora um menino danado e carinhoso, que aprendia num ritmo diferente dos demais. Bosco tinha um ritmo particular, que o coração de mãe já aprendera como funcionava, mas os demais não entendiam. Foi aos cartórios pedir a interdição do filho por mera formalidade ou para poupar-se, e ao filho, de aborrecimentos futuros. Maria do Carmo foi uma mulher “de fibra”, que impunha as próprias opiniões, ou foi submissa, conformada com o que a vida lhe deu? Certamente foi decidida com relação aos próprios desejos e relações, quero crer. Intensa com os homens que amou, amorosa com os amigos e a família. Sempre foi frágil e a fragilidade que, disseram-lhe toda mulher deveria ter, transformou-a na tal mulher de fibra depois de algum trauma ou forte drama amoroso. Escolheu cuidar da casa e trabalhar fora, mas não escolheu se apaixonar pela vizinha, numa relação que jamais saiu da imaginação para habitar o mundo concreto. Maria do Carmo teve escolha? Tomou as próprias decisões? Ou, com medo da solidão, sempre disse que concordava com os outros, sempre fez o que esperavam dela? Usou minissaia, gostava das madeixas compridas, tinha os seios fartos, as cochas grossas e a pele morena. Dançou, tocou piano, mas não aprendeu a manejar as cordas de um violão. Veio o primeiro filho e o tempo para a música ficou escasso. Por motivos nunca desvendados, chorou muitas vezes antes de dormir e ao acordar. Mas sentiu o que chamam de verdadeira felicidade quando os pés tocaram o mar pela primeira vez. Nasceu em alguma parte muito, muito pobre, do interior do Ceará, onde carregou muitos baldes d’água na cabeça nos períodos de seca, e sempre sonhou com as águas salgadas e a areia quente da praia.

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Nunca se sentiu parte desta cidade, Fortaleza, onde veio morar com o marido. Na verdade, odiava a cidade, mas amava os filhos e as filhas, criados aqui, os laços de amizades construídos e o prazer de olhar o mar de vez em quando. Teria andado pelas madrugadas, sentido dó dos que sobreviviam debaixo da ponte, lançado um olhar triste e ido embora. Irritava-a profundamente ter sido definida apenas como “viúva de prendas domésticas”. “Como puderam me resumir assim?!” Não, não, nada disso. Tinha muito orgulho das prendas domésticas. Era cozinheira de mão cheia e a casa dela sempre foi “um brinco”. Ela queria ter escrito sua história e a dos que amava. Dizer que sentira Fortaleza como uma casa, onde encontrou a felicidade, a verdadeira. Nunca gostou de pisar na areia quente, muitos menos do gosto salgado e da imensidão do mar, que a fazia sentir medo, sentir-se insignificante e medíocre diante do mundo. Jamais gostou de ir à praia. Maria do Carmo queria poder dizer a essa uma que faz conjecturas sobre ela que se calasse. “Cala-te! Tu não sabes escrever! Eu também não, mas sempre soube dançar”. E colocaria para tocar num vinil a música favorita, cantaria desafinada, me mandaria parar de rir de sua voz anasalada. Pedir-me-ia que prestasse atenção no movimento do corpo dela. No vestido longo vermelho. Na pele branca. Nos cabelos pretos e curtos, cheios de cachos. Nos olhos castanho-escuros. Pedir-me-ia para parar de escrever, não era importante, ninguém ia ler. Porque na dança, ela ia sumir. Estava cansada. Brigaria comigo porque antes estava quieta no canto dela e só precisava se esforçar agora porque eu insistira em lembrar. “Mas como posso me lembrar de você, Maria do Carmo, se nunca a conheci?”, “Eu que vou saber, menina? Coloque aí nas suas mentiras sobre mim, antes que eu me vá: eu tive escolhas, toquei violão como ninguém e nunca tive medo da solidão”.

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RUA CHICO MENDES | FOTO: GABRIELA ALENCAR

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Capítulo Dois A Rua Chico Mendes

Por que nascem elas? Da necessidade de alargamento das grandes colmeias sociais, de interesses comerciais, dizem. Mas ninguém o sabe. Um belo dia, alinhasse um tarrascal, corta-se um trecho de chácara, aterra-se um lameiro, e aí está: nasceu mais uma rua. Nasceu para evoluir, para ensaiar os primeiros passos, para balbuciar, crescer, criar uma individualidade.

A Alma encantadora das ruas (João do Rio) 61 61


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A Rua Chico Mendes

Uma mulher muito magra e morena empurra, lentamente, um carrinho cheio de papelão. Ela saiu cedo para procurar material reciclável, por isso nem eram nove horas da manhã e o carrinho estava cheio. Na calçada, sentada em uma cadeira branca de plástico, dona Valmira lê o livro de biologia da neta. Está na parte que trata da reprodução sexual humana. “É por isso que as crianças, hoje em dia, já sabem tudo!” – surpreende-se com a leitura da neta. Um homem negro, de boné e óculos escuros, grita enquanto pedala uma bicicleta cargueira. “Êeeeeeiiita! Tapioca é no quilo e o caldo é no metro! É a tapioca que é uma delícia, é o caldo que é uma delícia!” Naquela manhã de sábado, os fiéis na Igreja Católica são apenas os pombos. As portas estão fechadas, e as aves observam do telhado da igreja, próximas a três cruzes, quem passa na rua. Esperam uma oportunidade de pousar no chão e procurar comida. É final de novembro. Algumas casas têm árvores de natal: pinheiros de plástico com cerca de um metro de comprimento, carregados de laços, bolas coloridas, anjinhos e estrelas. Um dos extremos da Rua Chico Mendes é o muro do Centro Integrado de Educação e Saúde (Cies) Zélia Correia. O equipamento foi inaugurado em 1993, durante o mandato do então prefeito Antônio Cambraia, e recebeu o nome da vereadora Maria Zélia Correia de Souza, morta em 1992. A continuação da Chico Mendes é a Rua Natal, que já faz parte do bairro Cidade Nova, município de Maracanaú. O começo dessa rua em nada lembra a época de natal. Há apenas muito lixo, cheiro de algo podre, nenhuma casa. De um lado,

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há o pequeno sítio de seu Soares, cercado por altos muros, com pedacinhos de vidro no topo e inúmeras assinaturas pichadas. Do outro lado da rua, há um pequeno colégio chamado Bárbara de Alencar. Ele termina e logo começam metros e metros de muro, que dobram a rua até chegar ao colégio novamente. É um vazio cercado. Já houve casas lá, ficaram ainda uns cinco anos, fruto de uma “invasão”, conta Soares. Depois, o dono do terreno “mandou tirar” não se sabe como. Em uma semana as casas estavam lá, na outra, não mais. Voltando o olhar à Chico Mendes, noto calçadas vaidosas. Umas querem ser mais que as outras. Algumas são humildes e diminutas, nas quais é impossível duas pessoas andarem lado a lado. Outras são cobertas de pedacinhos de cerâmica. Há uma na qual o azulejo imita um gramado, outras exibem arabescos. As mais altas dispensam cadeiras, são elas mesmas o próprio assento. As calçadas não fizeram nenhum pacto por aqui, decidiram pegar da rua a parte que quisessem e avançam, cada qual do seu jeito. São lugares de encontro, as calçadas. Nelas, sentam-se os solitários, mas também famílias inteiras. Se o sol bate na sua calçada pela manhã ou pela tarde, tudo bem aproveitar a sombra da calçada da frente. Antes de começar a novela preferida, ponha o papo em dia com o vizinho, que já está na calçada. À noite, elas começam a se esvaziar às 21 horas. Cadeiras e bancos são levados para dentro de casa e cadeados trancam portões. O costume de sentar em calçadas é antigo, ninguém sabe exatamente quem as elegeu primeiro como um bom lugar para observar, meditar, refletir sobre banalidades, ou falar da vida alheia. É, sem dúvida, o lugar do diálogo, consigo mesmo ou com os outros. Nos idos de 1990, quando energia elétrica era apenas projeto para o futuro, – talvez o governo mandasse, o candidato a vereador prometera... –, na Rua Chico Mendes, nas noites de lua clara no céu, vizinhos reuniam-se na calçada de Francisco de Assis, ou Chico magro, para ouvi-lo tocar violão, enquanto olhavam as estrelas. Na escuridão, elas pareciam brilhar com mais intensidade. As dificuldades vividas, naturalmente, tornaram-se assunto e, naquela calçada, perto

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da cacimba do Chico magro, ou Chico da Dida, veio a ideia de criar uma associação de moradores. Notou que sua marmita, era o prato do patrão, Que sua cerveja preta, era o uísque do patrão Que seu macacão de zuarte, era o terno do patrão Que o casebre onde morava, era a mansão do patrão Que seus dois pés andarilhos, eram as rodas do patrão Que a dureza do seu dia, era a noite do patrão Que sua imensa fadiga, era amiga do patrão. O operário em construção (Vinícius de Moraes)

Seu Chico, 59 anos, ou Francisco Luiz de Sousa, para os que não são vizinhos, chegou à Rua Chico Mendes “antes de todo mundo”, no final de 1989, alguns meses antes da ocupação. Ele fez parte da primeira diretoria da União dos Moradores do Pantanal (UMP), fundada em 1991. “Criamos a associação porque não tinha quem fizesse nada aqui, o pessoal só queria vender terreno e comprar, vender e comprar, e a gente tinha interesse em melhorar o bairro”. Seu Chico veio do município de Mombaça, junto com a esposa e com as três filhas, com idades de seis a oito anos. Em 1989, algumas pessoas do bairro José Walter se dirigiam por conta própria para fazer morada no Pantanal, seu Chico soube por meio do cunhado. O primeiro sofrimento ao chegar ao novo bairro, conta, foi brigar com as formigas. – Não tinha ninguém além de vento e um monte de formigueiro dessa altura (coloca a mão próxima à altura do joelho), umas casas de formiga grandes mesmo! O pouquinho que eu ganhava, juntava para investir, porque o meu sonho era fazer logo um barraquinho. E, quando precisava cozinhar, era na lenha mesmo, não tinha esse negócio de gás não, ninguém tinha dinheiro pra isso, nem tinha onde comprar. Na Rua Chico Mendes, ele criou as três filhas e foi vendedor de peixe e de ração para cachorro. Hoje, vende ovos, produto que lhe rendeu algumas economias e o apelido de Chico dos Ovos. A Rua Chico Mendes – uma homenagem ao ambientalista e sindicalista brasileiro assassinado no Acre em 1988,

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Francisco Alves Mendes Filho – poderia ser chamada também de Rua dos Chicos, cujos apelidos sempre foram diversos: o Chico da Dida, o Chico gordo, o Chico magro, o Chico da Lúcia, o Chico cabeludo e o Chico da esquina, dono do bar – que foi embora para um lugar distante. O Chico da Dida também se mudou. Eles recebem como sobrenome alguma característica física, a ocupação ou o nome da esposa. A Chico Mendes poderia ser chamada ainda de Rua dos Jambeiros. Havia sempre alguma criança subindo em um pé de jambo para pegar os frutos vermelhos. As que não sabiam, ou não tinham coragem de subir, jogavam pedras para acertar os galhos e derrubar as frutas no chão. O jambeiro tem flores cor-de-rosa. Antes de a árvore ter frutos, as flores caem e se desmancham no chão, deixando tapetes cor-de-rosa na frente das casas. Mas isso é apenas lembrança, pois, quando os muros ficaram altos e as calçadas foram feitas de cimento, não houve mais espaço para as raízes e os troncos dos pés de jambo foram derrubados. Um, todavia, resiste. Uma das funções dele é sustentar a placa do grupo Alcóolicos Anônimos (AA), que se reúne semanalmente na sede da UMP. A Rua Chico Mendes me parece modesta, sem ostentações. Algumas flores, muros pichados, calçadas competitivas, um bar a cada quarteirão, duas oficinas de motos, um depósito de bebidas e mercadinhos nas esquinas. Vários desses mercados fecham as portas de 12 horas até quase 14 horas, não se trata apenas do costume de cochilar depois do almoço, mas de uma medida de segurança, pois nesse intervalo as ruas ficam mais vazias. A rua é ecumênica, nota-se pela harmônica convivência de uma Igreja Católica, três evangélicas e um centro espírita. Há casas à venda, outras para alugar. Algumas foram repartidas ao meio para dar teto à família do filho que casou, ou para se ter uma renda extra com aluguel. Ao longo da rua, pequenas placas amarradas em portões anunciam as casas onde há manicure e depilação. Antigamente, o chão da Chico Mendes era de uma areia fina. Depois, colocaram o calçamento, feito de pedras. Péssimo para jogar bola descalço ou fazer as bilas seguirem uma

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trajetória retilínea. Jogar pião, nem se fala. Então, colocaram asfalto e as tardes ficaram mais quentes. Hoje em dia, quase ninguém brinca mais de pião, ainda vejo as bilas e o futebol nunca some. Pá, pá, pá, quase todos os dias têm bola batendo em portão. As janelas e as portas que dão para a rua são protegidas por grades ao longo dos quatro grandes quarteirões da Chico Mendes. É, certamente, acostumada ao barulho. Carros, motos, bicicletas e ônibus a povoam incessantemente. Algumas motos receberam uma espécie de carrinho acoplado na lateral e circulam, barulhentas, entregando botijões de gás. Quando a confusão de motores cessa, escuto o som de furadeiras, de facões sendo amolados na casa onde se vende caldo de cana, e muitos rádios com volume alto. Outro dia, flagrei uma disputa sonora. De um lado: “Amar alguém que é de alguém, eu sei que é contra a lei de Deus. Não voltarei jamais, eu sei, aos braços seus” versus “When I say that something, I wanna hold your hand, I wanna hold your hand”. A batalha ensurdecedora atordoava os passantes. Bem perto dali, um casal de idosos abriu a porta da sala para olhar a rua, ela cantarolava uma canção, não consegui ouvir bem. Há mercadinhos improvisados em algumas casas. As fachadas não precisam avisar que ali são vendidos produtos de higiene e alimentos. A vizinhança vai se acostumando, a clientela é certa. Da mesma forma, bares e algumas lojas de roupa tem as fachadas lisas. O Mercadinho Kaylane resolveu escrever o que vende em uma cartolina. Há feijão, leite condensado, biscoito recheado e fósforo. Salões de beleza são três, que alisam cabelos, fazem maquiagem, penteados e hidratação: Vânia atitude e beleza; Niza cabeleireira; Poderosa em estilo. Três lan houses oferecem serviços como impressão, digitação, currículo, jogos, folha criminal, internet (alta velocidade), CD e DVD (personalizados), IPVA, boletos bancários e, claro, o etc., porque nunca se tem absoluta certeza do que será preciso fazer, deve-se abrir margem para o “e outras coisas”. Pela manhã e ao fim da tarde, homens e mulheres varrem a frente das casas. O Bar do Nelson está sempre aberto quando

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passo por lá. Descobri, faz pouco, que esse é o nome do estabelecimento. A fachada está há muito tempo coberta por uma árvore frondosa. Nessa época do ano, noto que as casas começam a ser embelezadas. Homens e garotos preparam cimento. Inconscientemente, deve-se pensar que dá sorte para o próximo ano ou talvez se tenha apenas recebido o 13º salário e a reforma, há tempos adiada, pode ser feita. No Salão Oliveira, corta-se cabelo, faz-se barba e ponto. Nada de etecéteras. O dono do salão, seu Manuel Oliveira, 66 anos, explica que o estabelecimento é “apenas salão”, esses outros que fazem vários serviços são “gabinetes de beleza”. Ele mantém o salão desde 1993, quando cobrava um real pelo corte. Por conta da inflação, o montante subiu para cinco reais. Quando abriu o salão no Pantanal, só havia ele e mais dois cabeleireiros trabalhando no bairro. Policial militar aposentado, fez o curso de cabeleireiro na polícia e ostenta o diploma num quadro pendurado numa parede do estabelecimento. Fez a capacitação porque pediram, mas o ofício aprendeu sozinho, aos 17 anos, cortando o cabelo de parentes. Abriu o salão quando se aposentou da PM. Ficou dois meses em casa, cansou daquela vida com tempo sobrando e resolveu trabalhar como cabeleireiro, um prazer que a vida lhe proporcionou. A aposentadoria também não impediu Pedro Rufino Ferreira, ou o “velho das redes”, de continuar a labuta. Quase todos os dias, é possível vê-lo pelo Pantanal com redes coloridas no ombro. Os passos lentos, por vezes, cambaleiam, talvez por conta do peso das redes e dos 77 anos. Ele não anuncia o produto à venda, apenas caminha, vagarosamente, com as redes no ombro. Desde 1958, aos 22 anos, ele vende redes. Os preços variam de 30 a 50 reais, dependendo “da qualidade do tecido”. Ele só vende a dinheiro. Nada de quererem comprar fiado. Não se irrita com o apelido de velho das redes. “Ora, se até os filhos me chamam de velho (risos)!” Irônico, diz que foram “poucos” os filhos que teve. “Só 19, de vivo ainda tem 14 filhos”. São 47 netos e 12 bisnetos. Veio de Icó com a família porque para as bandas de lá não havia escola para as crianças ou emprego para ele. Vive da aposentadoria e da ajuda dos filhos.

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Ultimamente, as pessoas compram cada vez menos redes e ele não arrisca dizer a razão. “Só Deus sabe...”, suspira. Gosta de sair todos os dias para as ruas, o local de trabalho. Não quer ficar “encostado” em casa. Às nove horas, ele começa a jornada, às 11h30min encerra o expediente e segue, a pé, para casa. Na juventude, andava por outros bairros também. Vende ainda pano de prato e toalha de mesa, carregados numa sacola no ombro direito; no esquerdo, ficam as redes. Ele carregava seis no dia em que conversamos, uma já fora vendida. Leva ainda um grande saco nas costas. Se começa a chover, ele não para, prossegue na caminhada coberto pelo saco. Encerramos a conversação com a minha promessa de comprar uma rede outro dia. “Precisando, tô sempre por aqui”, ele disse. De longe, fiquei ainda observando os passos vagarosos do “velho das redes”, naquela caminhada que parece sentir cada passo. Silencioso, ele segue sem anunciar a venda das redes ou sua presença.

FOTOS: GABRIELA ALENCAR

Seu Oliveira no salão de cabeleireiro e seu Pedro Rufino ou “velho das redes”

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Entrelinhas Durante a escrita deste capítulo, a Rua Chico Mendes perdeu uma de suas personagens mais antigas. Em um domingo, vi dona Valmira Queiroz ler o livro da neta. No mesmo dia, ela foi atropelada por uma moto na frente de casa. A idade de 69 anos piorou a gravidade da queda. Em um hospital do Sistema Único de Saúde (SUS), ela demorou demais a ser atendida, demorou demais a ser operada e, no domingo seguinte, a notícia da morte se espalhou rapidamente, como fazem todas as notícias ruins. Vizinhos, amigos e familiares encheram a rua para o velório. Todos os dias, muito cedo de manhã, ela varria as folhas caídas do pé de jambo em frente à UMP. Queria chegar antes do vento, que empurrava as folhas para a frente da casa dela. Não me lembro de ver tanta tristeza em um lugar ou de ser tão dolorosa a imagem de alguém varrer a calçada. Na segunda de manhã, as folhas estavam todas lá, sendo levadas pelo vento. 70 70


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O meu lugar no mundo, a minha moradia

Pantanal, 8 de julho de 1991– José Walter Excelência, Sr. Governador Ciro Gomes, (...) o Pantanal faz um ano no dia 27/07. Somos mais de duas mil famílias, carentes de tudo: água, luz, segurança, (...) posto de saúde e condução. Aqui, não aparece uma autoridade para nos ajudar. E, quando aparece, é gente (...) se dizendo emissários do governo, prometendo mundo e fundos, mas não aparece nada. Sr. Governador, um abraço do Pantanal.

O fragmento acima foi retirado de uma carta escrita por um membro da União dos Moradores do Pantanal (UMP), quando a associação ainda se chamava Comunidade de Base Pantanal, e entregue à Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente. O texto representa as carências enfrentadas pelos moradores, bem como a confiança de o Estado interceder para mudar a situação de abandono. O grupo que formaria a UMP, localizada na Rua Chico Mendes, começou a se reunir a partir de uma missa específica, celebrada pelo arcebispo de Fortaleza, à época, dom Aloísio Lorscheider. A missa é considerada momento inicial para que a mobilização da UMP começasse. Na ocasião, um morador chamado França Jerônimo, morto em 1999, entregou três cartas a dom Aloísio Lorscheider, relatando os problemas da comunidade. Uma deveria ficar com dom Aloísio e as outras duas deveriam ser entregues pelo arcebispo ao governador Ciro Gomes e ao prefeito Antônio Cambraia. A celebração foi em um campo de futebol chamado Barcelona, onde hoje se localiza o Centro Integrado de Educação e Saúde (Cies). “Lá seria a Igreja Católica, como ocorre em cidades do interior, segundo os trâmites do sertão, em que se

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coloca a igreja no centro do bairro. Foi algo intuitivo da comunidade, algo natural, porque a maioria das pessoas vinha do interior”, explica Valdenor Moura, morador do Pantanal desde 1990. Seu França tinha como sonho construir uma Igreja Católica no bairro, mas morreu antes de ela ser finalizada. A capela começou a ser construída no ano de 1995, em regime de mutirão. Apenas em 1999, ficou totalmente pronta. O corpo de França Jerônimo foi o primeiro a ser velado na Capela Nossa Senhora do Rosário.1 1 Valdenor, que já havia presidido uma associação de moradores aos 16 anos em Mombaça, conheceu Ribamar de Sousa na missa celebrada por dom Aloísio. Os dois ajudaram a fundar a UMP. Na celebração, conheceram também Ana Maria Ferreira, líder comunitária do Lagamar e integrante das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), grupos ligados à Igreja Católica que acreditam na mobilização popular como um dever cristão para a superação da pobreza e alcance da igualdade entre as pessoas. As CEBs foram fortemente influenciadas pela Teologia da Libertação, doutrina cristã de base marxista, que tem grande destaque na América Latina a partir dos anos 1960 e possui como preceitos a crítica ao individualismo e a valorização da comunidade. A mobilização dos que atuavam na UMP foi cultivada inicialmente pelas CEBs, a união que atou as pessoas naquele momento teve como um dos nós a religião católica. Ana do Lagamar ajudou as lideranças comunitárias, que surgiam no Pantanal, a cumprir as formalidades necessárias à criação de uma associação de bairro, além de orientá-las nas primeiras reuniões, realizadas na casa de Ribamar de Sousa, ou mesmo na rua, enquanto não se tinha um local específico para os encontros. – Nós sofremos, viu, bichinha? Nós sofremos! Pra conseguir resolver o problema da falta de energia, vivíamos em reunião no Cambeba (local onde ficava a sede do Governo do Estado) e tinha de dividir três almoços para sete pessoas ou não 1

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Informações do vídeo, Senhor França: Sonho, fé e esperança, produzido pelo projeto TV Janela do Instituto de Desenvolvimento Social (IDS). Disponível em http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=FFJt3gfd-5Y


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sobrava dinheiro para pagar a passagem de volta. O negócio foi sério, foi de sair água do olho – narra seu Chico, ex-membro da UMP. Eu sou feliz é na comunidade, na comunidade eu sou feliz. Onde há comunidade, lá não há miséria não, pois aquele que tem mais vai partir com seu irmão. E assim todos unidos: pobre, rico, homem, mulher, como uma só família; isto é o que Deus quer.

A música destacada acima era cantada em missas que, por algum tempo, foram realizadas na UMP, antes de a Igreja Católica do Pantanal ser construída. Os moradores contribuíram como puderam, uns ajudaram com material de construção, outros com trabalho. Nas missas da UMP, os assentos eram troncos de carnaúba, algumas pessoas levavam cadeiras e bancos de casa, alguém emprestava uma mesa para servir de altar e outro dava uma bacia para banhar a cabeça das crianças quando fossem realizados batismos. Como não havia energia elétrica, as celebrações tinham de ser feitas enquanto havia sol, eram sempre às 17 horas, até hoje o horário é mantido. Maria Cileode Magalhães, 64 anos, lembra os nomes dos padres que celebravam na época e ajudaram nas campanhas de arrecadação de tijolos, cimento e telhas para que se conseguisse construir a igreja. Padre Teodoro, padre Chico Moser e padre Anízio, tendo este último arrecadado doações para a compra do terreno da igreja. A comunidade havia destinado um terreno para o prédio, mas a terra foi ocupada por moradores e, por isso, foi preciso comprar outro. Na época, Cileode precisou aprender a andar de bicicleta para pedir quilos de alimento nas casas. Com o que era arrecadado, a UMP montava cestas básicas e fazia bingos para comprar material de construção e pagar os pedreiros que, no final da obra, começam a receber pelo trabalho, antes voluntário. Já o prédio da UMP teve o terreno doado por uma moradora. Para que fosse erguida, o material de construção foi comprado com dinheiro repassado pelo governo, a mão-de-obra foi voluntária dos integrantes da associação. Aos 15 dias de setembro de 1991, cerca de 60 pessoas

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FOTO: VALDENOR MOURA

Primeira reunião da União dos Moradores do Pantanal

se reuniram para tratar da criação de uma diretoria provisória para a UMP e houve a eleição da primeira diretoria da entidade. “A abertura da reunião se deu com a leitura da Bíblia e com cânticos e louvores. Logo a seguir, foram feitas reflexões sobre o texto lido. (...) A presente diretoria foi eleita para um período de quatro meses”, registra a ata de posse, que nomeia 11 membros. Em novembro do mesmo ano, o estatuto da associação é publicado no Diário Oficial do Município.

A União dos Moradores do Pantanal – José Walter é uma entidade da sociedade civil sem fins lucrativos, com sede em Fortaleza, à Avenida Chico Mendes, s/n, bairro José Walter, composta pelos moradores do mesmo bairro, com tempo de duração indeterminado e tem como objetivo principal assegurar a organização e as reivindicações dos moradores do Pantanal – José Walter e comunidades adjacentes.

Foi de telhas, cal, cimento, ferro, areia e brita que se fez

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a sede da UMP, mas não só isso a sustenta, foi preciso união das pessoas em torno de objetivos comuns para que ela ficasse de pé e atuante. As reuniões da associação, no início dos anos 1990, contavam com mais de 100, mais de 200 pessoas, relata a empolgada Bárbara Severino Sousa, ex-presidenta da entidade. “Se nós temos uma riqueza nesse Pantanal é aquela associação. Mesmo que o povo diga que não é, mas é! Porque através dela conseguimos as melhorias aqui dentro”. Ela sente falta dos tempos de reuniões e assembleias lotadas. – Todo mundo procurava a associação, mas depois que puseram água e energia nas casas e chegaram linhas de ônibus, o povo se acalmou e não quis mais nada com a UMP. A união foi se acabando, acabando e pronto. O povo só quer união quando não tem nada! Para Ribamar de Sousa, primeiro presidente da entidade, o Pantanal provou que “a união do pobre tem força”. Ele também se ressente de a mobilização dos moradores ter arrefecido com o passar dos anos e de outras lideranças não terem surgido com a mesma força das primeiras. – O próprio pobre se deixa destruir, se desune quando FOTO: VALDENOR MOURA

Mutirão de construção da UMP

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FOTO:VALDENOR MOURA

FOTO: GABRIELA ALENCAR

União dos Moradores do Pantanal em 1991 (à esquerda) e em 2013

aparecem os recursos. Onde está a união, está a força, mas a ganância pelo poder destrói (a união). O próprio governo, como no caso da comunidade de Canudos, e do próprio quilombo de Zumbi, só vai destruir! Não querem uma comunidade que não precise do Estado, que não seja dependente e a união consegue ser independente, aí inventam que isso é comunismo, que é socialismo e aniquilam – diz Ribamar. Hoje, a associação é usada como espaço para projetos da comunidade. Um grupo de capoeira treina no local, um grupo de dança ensaia apresentações, os Alcoólicos Anônimos se reúnem. Quando o posto de saúde está em reforma, a entidade serve como espaço para atendimento médico, mesmo sem a estrutura apropriada para isso. Um armário velho improvisa a separação entre o espaço para a consulta e uma “sala de espera”. Os projetos que utilizam o local são responsáveis por pagar a água e a luz. Segundo Ana Lúcia da Silva, atual presidenta da entidade, as reuniões são mensais e apenas a diretoria se mobiliza para participar. Em períodos eleitorais, aparecem políticos fazendo promessas. Cileode diz que são como sapos. “Quando se aproxima o inverno, os sapos aparecem com seu alarido, quando o inverno passa, eles vão embora. Assim são

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esses políticos!” – ri da própria metáfora. Um riso conformado, de quem já se acostumou ao alarido. Pelas ruas marchando, indecisos cordões Ainda fazem da flor, seu mais forte refrão E acreditam nas flores, vencendo o canhão. Vem, vamos embora, que esperar não é saber Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Pra não dizer que não falei das flores (Geraldo Vandré)

Em 1991, Antônio Carlos Souza, ex-membro da União dos Moradores do Pantanal, ficou desempregado. Conseguir um novo trabalho estava difícil e ele precisava de uma maneira de ganhar dinheiro. Decidiu vender din-din, o problema é que não havia energia elétrica no Pantanal para fazer a geladeira funcionar. Ele improvisou uma forma de resolver a dificuldade. “Ninguém tinha coragem de botar uma geladeira numa gambiarra e eu tive a coragem! Fiz uma gambiarra de qualidade, a melhor dessa área, muito bem feita!”. Ele não foi o único a improvisar “gambiarras”. Semanalmente, a Companhia Energética do Ceará (Coelce) mandava funcionários ao bairro, acompanhados da Polícia Militar, para retirar os fios colocados sem autorização da empresa. Quando o carro da Coelce chegava, a notícia rapidamente se espalhava e os moradores saiam recolhendo os fios dos postes improvisados e guardando-os dentro de casa. A energia só chegava a uma pequena parte do bairro. “Quando a Coelce ia embora, a gente ficava de meia noite até uma hora da manhã refazendo toda a gambiarra, enrolando em pé de coqueiro, cajueiro, carnaúba, onde a gente encontrava um suporte, enrolava um fio”. Carlos teve a ideia de organizar um protesto reivindicando energia elétrica para o local. O momento ficou conhecido com a Passeata da Lamparina. “Eu organizei e botei aí umas 2.500 pessoas na rua. Era tanta da lamparina, minha irmã! O que tinha que fizesse um foguinho a negrada trouxe. E o pessoal é tudo doido por progresso, né? Lotou! Foi um

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sucesso!”. A caminhada partiu da Rua Apocalipse e percorreu as ruas centrais do bairro, até chegar a um campo de futebol. “Esse negócio repercutiu de uma forma tão incrível, que em 30 dias o Ciro Gomes assinou a ordem de serviço. Logo os postes chegaram aqui e foi uma alegria, uma maravilha! Cada casa, feinha, recebendo dois bicos de luz (risos)”. FOTO: VALDENOR MOURA

Passeata da Lamparina

Fernando Silva, também ex-integrante da UMP, lembra que Vicente Veloso, um dos primeiros moradores do bairro, morto em 2009, discursou num carro de som. Era um carrinho velho, uma Veraneio, que eles tinham conseguido. “O Vicente quando pegava o microfone falava bem de mais”, diz Fernando. Ele acredita que a instalação da energia só ocorreu porque era período eleitoral. A marcha foi realizada em 1991, no ano seguinte o novo prefeito de Fortaleza seria eleito. “No dia da inauguração da energia, veio Tasso Jereissati, doutora Socorro França, Ciro Gomes, todos pra frente da associação discursar”, recorda.

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Os moradores do Pantanal não costumavam esperar pelas promessas do governo de que teriam direitos básicos como acesso a transporte e educação garantidos e davam um jeito de suprir essas necessidades. Por alguns anos, um dos projetos da UMP era uma escolinha de alfabetização de crianças. Foi nela que aprendi a ler. Uma professora chamada Conceição dava as aulas e contava com o auxílio de algumas mães no trabalho. Os pais das crianças contribuíam com uma irrisória mensalidade no valor de 10 reais. O material didático era comprado com essa verba e as educadoras recebiam uma ajuda de custo. A escassez de recursos inviabilizou a continuidade do projeto. Diante da necessidade de transporte, os moradores também improvisaram. “A gente ia pegar ônibus no José Walter, depois conseguimos os ônibus clandestinos que a gente chamava de ‘cata corno’ (risos). No primeiro dia que os ônibus clandestinos vieram, foram dois, e não tinham uma rota certa”, conta a moradora Ana Lúcia da Silva. Em 1993, representantes de segmentos ligados ao setor de ônibus de Fortaleza se reúnem na Secretaria de Transportes do Município. O então secretário Tomás de Carvalho Rocha afirma que a prefeitura não está alheia aos problemas do chamado Sistema Integrado de Transportes (SIT). O objetivo é chegar a uma decisão sobre os ônibus alternativos (piratas) que circulam pela cidade. (...) Contudo [o secretário Tomás de Carvalho Rocha] discorda que essa lacuna seja preenchida por ônibus alternativos (...) A invasão dos 140 carros chamados piratas nas linhas de operação do SIT está provocando a evasão de CR$ 10 bilhões/mês na receita, segundo o Secretário. Já a representante dos proprietários alternativos, Maria Edineusa Barbosa, afirma que os veículos não estão invadindo qualquer espaço, mas conquistando, a pedido das comunidades. Relata que moradores de bairros como o Bom Jardim, Pantanal, Aracapé e Santa Filomena andam dois quilômetros de suas residências até pegarem um coletivo. (O Povo, 17 de março de 1993).

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A Associação Comunitária São Francisco, criada por Liege Costa em 1990, consegue que circulem no bairro os “torquatos”, como ficam conhecidos os ônibus pertencentes a Joaquim Torquato Neto, major da Polícia Militar, à época. O contrato foi celebrado no Cartório Marques, de Maracanaú, em 28 de novembro de 1991. Eles circulavam das cinco horas da manhã até a meia noite e deveriam ser ofertados à população a cada 15 minutos. Era cobrado o mesmo valor da passagem cobrado pela prefeitura. No contrato, a associação estipula que ao menos quatro mil pessoas se beneficiariam com o serviço. A UMP também conseguiu ônibus para a comunidade e, dessa forma, não faltou mais transporte coletivo. “As empresas de ônibus Fortaleza, Maraponga e Angelim só se interessaram porque viram os piratas lotados. Todas as comunidades do entorno do bairro foram beneficiadas, como o Ipaumirim e o Novo Mondubim. Ninguém tinha ônibus! Era tudo no Zé Walter”, explica Ribamar de Sousa, presidente da UMP à época. A ideia da entidade era que os “piratas” fossem legalizados, já que tinham servido à comunidade quando outras empresas não quiseram, mas, com o tempo, as pessoas deixaram de usar o transporte alternativo para utilizar o ofertado pela prefeitura. Hoje, o Pantanal conta com duas linhas de ônibus: Planalto Ayrton Senna – Centro (406) e Planalto Ayrton Senna – Parangaba (456). O passo seguinte foi conseguir água tratada para o bairro. E por falar em água, as seis mil casas do bairro do Pantanal (não é mais favela), próximo ao Conjunto Jose Walter, não recebem uma gota d’agua da Cagece. Correndo todos os riscos possíveis, cerca de 30 mil pessoas abastecem-se em cacimbas e poços, comprovadamente contaminados por coliformes fecais. Quem pode, compra água transportada por carroças, também sem nenhuma segurança sanitária e a preços extorsivos, cinco vezes mais do que pagariam se houvesse a rede de abastecimento da Cagece. (Coluna Comunicado, Diário do Nordeste, 8 de dezembro de 1996)

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Foram 24 quilômetros de canos, que chegaram em julho de 1997, depois de muitas idas a órgãos públicos e da intercessão de deputados, conta Valdenor Moura, presidente da UMP em 1996. Mesmo a ocupação tendo começado em 1990, somente em 1997 as pessoas conseguem água encanada. Segundo Valdenor, por conta da intervenção político-partidária, a ligação de água nas casas de boa parte dos moradores foi feita gratuitamente. – Nós gastamos dinheiro de passagem do nosso bolso e tempo, como outros antes de mim também fizeram. Morremos de levar oficio para o governo, fizemos movimento com carro de som, chamando imprensa e nada resolveu! Chega um ponto que tem de haver a participação político-partidária (bate na mesa), se não tiver, não anda, infelizmente.

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Moradia é um direito humano

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: IX promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico. Da União, Capítulo II da Constituição Federal Brasileira de 1988.

Em 1993, o então prefeito de Fortaleza Antônio Cambraia declara em um encontro de prefeitos das capitais nordestinas que o êxodo rural está “inchando” a cidade, fazendo com que uma média de 30 a 35 famílias cheguem por dia à capital. “Fortaleza sofre tanto ou mais do que o interior com a seca. Contingentes enormes de pessoas vêm para a periferia, causando o inchamento da cidade” (Jornal O Povo, 6 de maio de 1993). Quando discute a questão fundiária no Ceará, o livro Reforma Agrária Quando? CPI mostra as causas da luta pela terra no Brasil explica que a partir dos anos 1960 até 1980, em consequência da modernização da agricultura, moradores das grandes propriedades migram em busca de emprego. “Esse fato é agravado pelos longos períodos de seca na região do Semiárido, uma das causas do êxodo rural, tanto das cidades do interior para as capitais como para o Sul e Sudeste do País”. (2006, p. 384) Assim como tantas metrópoles brasileiras, Fortaleza possui uma estrutura desigual, que comprime as classes mais pobres para a margem geográfica, política, econômica e cultural da cidade. Na capital cearense, esse quadro foi agravado a partir da década de 1960 – após migrações Sertão-Capital ocasionadas pelos grandes períodos de secas que a região enfrentou – e após a década de 1980 – quando o

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Brasil assistiu a uma explosão da moradia popular, concentrada na periferia de suas capitais. (BRAGA, 2010, p. 31)

Despreparada para a chegada dos migrantes, Fortaleza recebe os hóspedes em áreas com infraestrutura precária ou sem infraestrutura nenhuma. Na periferia ou mesmo em vazios urbanos nas áreas centrais da cidade, as pessoas conseguem o direito a ter uma casa, mas logo percebem que um teto para se proteger da chuva é insuficiente e, a partir da necessidade de superar carências, é que as associações de moradores começam a surgir. – Quando acontecia uma ocupação, surgia a necessidade por água, luz, posto de saúde, escolas, água tratada; abriam-se poços que, devido à falta de saneamento, estavam quase sempre contaminados. Não existiam programas de habitação ou políticas públicas voltadas para essa questão, mas programas de governos, muitos com fins eleitoreiros – explica Gorete Fernandes, presidenta da Federação de Entidades de Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF) em entrevista no dia 4 de outubro de 2013. A FBFF é criada em 1981, durante o Primeiro Congresso das Associações de Moradores de Fortaleza e a partir daí participa das lutas das comunidades. “Onde não havia associação, a federação ajudava a criar e esse foi um período muito forte de ocupações (fim de 1980, início de 1990), de despejos violentos, de carestia: o preço dos alimentos aumentava diariamente”. Dentro da compreensão da moradia como um direito humano é que movimentos sociais como a FBFF defendem que o debate sobre habitação faça parte do planejamento das cidades, de forma que o direito à moradia seja assegurado no plano diretor (instrumento que determina como cada porção do território do município cumprirá sua função social), principalmente em áreas onde serão realizados megaeventos e projetos de remoções. Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos

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em 1948, o direito à moradia adequada passou a incorporar o rol dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente como universais, ou seja, que são aceitos e aplicáveis em todas as partes do mundo e valem para todas as pessoas. Depois da Declaração, tratados internacionais determinaram que os Estados têm a obrigação de promover e proteger este direito. (...) Atualmente há mais de 12 textos diferentes da ONU que reconhecem explicitamente o direito à moradia. Ele é parte integrante do direito a um padrão de vida adequado e é neste contexto que deve ser compreendido. 3

O direito à moradia é o direito a permanecer em um lugar com acesso à saúde, educação, transporte, emprego e o que mais for necessário para se viver bem, dignamente. Além de fruto da necessidade de moradia nas cidades, as ocupações de terra são um fato político, reflexo de uma demanda real não atendida pelo Estado, que não garante o acesso a uma moradia digna e consequentemente não garante o direito de estar na cidade. As ocupações são o grito de quem teve de levar um problema social as últimas consequências, levando a família a viver em situação precária em nome do direito humano de ter um lugar no mundo, não apenas de ter uma propriedade. No Brasil, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/ 2001) regula o uso da cidade em prol do bem coletivo, da segurança e do bem estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. O Estatuto regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição (artigos dedicados ao direito urbanístico e à propriedade urbana) além de estabelecer diretrizes gerais de política urbana, que devem ser seguidas pelos municípios, mas a legislação por si só não garante o cumprimento da função social do espaço urbano, cabe aos planos diretores municipais darem providências específicas de acordo com a realidade de cada cidade. 3

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Trecho do Guia “Como atuar em projetos que envolvem despejos e remoções?”, produzido pela relatoria especial da ONU para a moradia adequada. Disponível no endereço http://direitoamoradia.org/wp-content/uploads/2012/01/GUIA_REMOCOES_portugues_20119.pdf


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Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Dos Direitos Sociais, Capítulo II da Constituição Federal Brasileira de 1988.

Na luta pela moradia digna, associações de moradores, como a formada no Pantanal, são importante instrumento de mobilização popular. De acordo com Gorete Fernandes, as entidades surgem no Brasil entre os anos de 1960 a 70. “Devido à ditadura militar, criam-se grupos de pais para lutar por escolas, criam-se bibliotecas comunitárias para reunir a comunidade e, a partir dessas experiências, se formam as associações de moradores”. Segundo ela, da década de 1960 até hoje o número de associações caiu de 800 para cerca de 300 entidades em Fortaleza. – As associações que morrem geralmente foram criadas apenas para receber determinado benefício, quando ele acaba, a entidade acaba, elas não têm a missão de propor políticas, de fazer o controle social. Além disso, por muitos anos, houve uma cooptação pelo poder público, dando emprego aos líderes comunitários. Para não perder o emprego, a liderança se cala e consequentemente deixa de ser liderança. Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Da Política Urbana, Capítulo II da Constituição Federal Brasileira de 1988.

O direito de morar na cidade equivale ao direito à

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própria cidade, a estar nela, ocupá-la, vivê-la e não importa se o pedaço em que se vive foi comprado, ocupado ou recebido de herança. Para entender melhor essa questão, a entrevista com Gorete Fernandes, 55 anos, foi fundamental. Desde os 17 anos, ela trabalha como liderança comunitária no bairro Dias Macêdo, onde reside até hoje. No currículo, ela ressalta, não há formação de nível superior, mas a atuação em movimentos sociais a gabarita a falar não apenas sobre direito à moradia, como sobre a importância das lideranças comunitárias, principais fontes deste livro. Dedico um espaço a dar voz a essa personagem por meio do gênero entrevista.

FOTO:GABRIELA ALENCAR

Gorete Fernandes na sede da FBFF

O que significa dizer que a moradia é um direito hu-

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mano? Significa que é preciso pensar além da casa. Quando você diz que está dando moradia digna para o povo significa que há uma casa de qualidade – arejada, com água, luz, piso, calçada, saneamento –, que há espaços de lazer nas proximidades, colégios, acessibilidade, transporte. A moradia digna é um direito de todos, não estou dizendo que a casa é um direito de todos, mas a moradia! O que é preciso fazer para que o direito à moradia digna seja cumprido? É necessário que o plano diretor seja discutido com a população. Hoje, a terra na cidade é muito cara e ela é da cidade, não de um indivíduo apenas! (bate na mesa). Não é justo que, enquanto muitos não têm onde morar, uma pessoa guarde um terreno para vendê-lo apenas quando estiver valorizado no mercado. Esse proprietário se aproveita das melhorias que o Estado proporciona, como a instalação de água e luz, para vender a propriedade por um preço maior depois, chamamos isso de terreno de engorda. O terreno deve servir à cidade, cumprir a função social dele. Se o dono sabe que ali só pode ser construída moradia de interesse social – um posto de saúde, uma escola, equipamentos públicos enfim –, ele não vai subir o preço. Isso evita a especulação imobiliária e ajuda a garantir o direito à habitação. Precisamos de um conselho de desenvolvimento urbano voltado para a questão humana, porque hoje o desenvolvimento nunca pensa em direitos humanos como a habitação, a não remoção, (em) não se tirar as famílias de um local para colocá-las bem longe. Queremos que essas políticas sejam discutidas entre sociedade civil e governos para que valorizemos a pessoa humana e não levemos em conta apenas a mobilidade e grandes construções. É preciso infraestrutura e regularização fundiária e o plano diretor dá

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conta disso. Qual a importância da regularização fundiária? A regularização fundiária não é só o papel da casa, às vezes passa por melhorias no lugar, às vezes só na residência, inclui urbanizar área de risco, fazer equipamentos públicos, garantir que ambulâncias tenham acesso a todas as ruas, garantir escolas. Se eu digo que vou fazer regularização fundiária num local, eu não posso deixar vila ou ruazinha sem saída, vou ter de realocar as famílias que estão no meio da rua. A regularização passa pela regulação da terra em si, porque a pessoa terá o documento da casa, mas também implica a garantia de uma moradia digna. Não se trata apenas do papel da casa, há todo um contexto que perpassa a urbanização do local, das vias, de uma infraestrutura de qualidade. Qual o papel das lideranças comunitárias nesse processo de garantia do direito à moradia digna? Nós, lideranças, damos os melhores anos das nossas vidas em prol da melhoria da qualidade de vida de um coletivo, isso precisa ser valorizado, o povo precisa ter mais respeito por isso, a imprensa principalmente! Há lideranças que compram pão fiado pra pegar o dinheiro para vir para reunião, ir pra Regional cobrar, pra cuidar da vida dos outros, como dizem (risos). E a mulher liderança ainda tem a tripla jornada porque cuida da casa, dos filhos, da luta comunitária e ainda trabalha pra ganhar um dinheirinho. Hoje, digo que vou sair pra cuidar um pouco da minha casa, da minha vida, de mim, mas quando alguém se queixa de um problema: “não tem médico no posto de saúde, o ônibus está demorando”, você já quer chamar o povo pra se organizar pra resolver. Está no sangue! Você não decide ser liderança, porque ser liderança faz com que você esqueça que existe, você existe muito mais para os

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outros do que para você, e muitas vezes a família não entende isso. Se hoje estamos aqui, algumas pessoas caminharam e deram sua vida por isso, portanto, quem vai acompanhar a luta comunitária a partir de hoje precisa lembrar que houve grandes nomes, pessoas que deram as vidas, que se dedicaram à luta. A gente não quer agradecimento das pessoas (bate na mesa), mas ouvir que o povo quer ajudar, contribuir, fazer!

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ENCONTRO DA RUA APUCARANA COM A RUA PLANALTINA | FOTO: GABRIELA ALENCAR

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Capítulo Três O encontro da Apucarana com a Planaltina

Algumas dão para malandras, outras para austeras; umas são pretensiosas, outras riem aos transeuntes e o destino as conduz como conduz o homem, misteriosamente, fazendo-as nascer sob uma boa estrela ou sob um signo mau, dando-lhes glórias e sofrimentos humanos, matando-as ao cabo de um certo tempo. A Alma encantadora das ruas (João do Rio) 9191


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O encontro da Apucarana com a Planaltina

Na primeira hora do dia 20 de novembro de 1993, cerca de seis jovens conversam e cheiram cola na esquina das Ruas Planaltina e Apucarana. Três homens em motos aproximam-se do local e quebram o silêncio da madrugada com 20 tiros. Três garotos fogem. Luzes de casas são acesas. A polícia é chamada. Dos disparos feitos, 11 atingem três adolescentes: Veridiano Duarte da Silva, 15 anos; André Gomes Sousa, 14 anos, e Carlos Antônio da Silva, 16 anos. Os tiros atingem-nos na cabeça. Mortes imediatas. Os assassinos fogem rapidamente. Ninguém anota as placas das motocicletas. Em pouco tempo, uma multidão se aglomera em volta dos corpos. A imprensa logo chega e faz fotografias das vítimas em diferentes ângulos. Manchete de jornal no dia seguinte. O sangue, a morte, a especulação, o sofrimento dos pais. A retórica do então governador Ciro Gomes pedindo agilidade nas investigações. Hipóteses não faltam à polícia. Teria sido vingança por causa de alguma briga em baile funk? Ação de “justiceiros” policiais? Ajuste de contas de um traficante da área que não fora pago pelos garotos “empregados”? Tinha início naquele dia, o caso nomeado de “Chacina do Pantanal”, tanto nas páginas dos jornais impressos, como nos nascentes programas policiais da televisão cearense. Emblemático, além de pôr fim a três vidas, resultou na construção de um estigma em torno da palavra Pantanal e na consequente luta de moradores para mudar o nome do bairro para Planalto Ayrton Senna. Uma tentativa de desvincular a imagem do local do estigma da violência. Nas famílias dos jovens, não me

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arrisco a mensurar as consequências. Ainda não inventaram palavras suficientes para descrever a dor de perder um filho, um irmão, um amigo. Não ouso lançar-me a tal descrição. Mais de 20 anos após o crime, percorro as duas ruas cuja esquina presenciou a “Chacina do Pantanal”. Nas próximas linhas, apresento impressões, personagens e características das ruas. Na segunda parte do capítulo, narro a “Chacina do Pantanal” tendo como base o que foi publicado nas páginas dos jornais O Povo e Diário do Nordeste, bem como processos a que tive acesso na 5ª Vara do Júri do Fórum Clóvis Beviláqua, onde o caso se encontra arquivado. Por fim, falo sobre como o crime e a cobertura dedicada a ele contribuíram para o movimento em prol da mudança do nome do bairro para Planalto Ayrton Senna. As referências das notas de rodapé encontram-se ao fim do capítulo.

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Terça-feira – Rua Planaltina

Não houvesse barulho de veículos, os sons viriam apenas dos rádios sintonizados nas vozes graves de locutoras e locutores AM e FM. Fala-se do horóscopo do dia, ouvem-se as músicas-mais-tocadas-nas-paradas-de-sucesso – estilo musical preferido das FMs – e, a cada 20 ou 30 minutos, as notícias consideradas mais importantes para o dia das pessoas. Ouço também um canto afinado vindo de uma casa, cuja frente é decorada com cerâmica preta. Um homem idoso convida cantando. Escute a voz do amor, escute a voz do amor. Ele me sorri de lado e acena com a mão. As pessoas na rua dizem bom dia umas as outras. Perguntam coisas do tipo: “Como vão as crianças? Como vai o trabalho? Como vai o namoro? Como vai a faculdade? Como vai?” Desejo internamente que as respostas sejam positivas. Perto de mim, um homem fala sozinho enquanto caminha sozinho. Os portões pretos da Planaltina foram pichados de branco e vermelho. Já nos muros brancos, a letra pichada é preta. O comércio se faz presente na rua. Veem-se frigoríficos, uma perfumaria, um lava-rápido, quitandas, lojas de roupa, salões de beleza, uma funerária. Há quatro paradas de ônibus ao longo da Planaltina, todas sinalizadas por uma plaquinha azul, com o desenho de um ônibus preto. Em uma delas, uma mulher morena e sorridente fala ao celular, enquanto acarinha um grande cão preto. O ônibus chega. Ela faz um último cafuné no cachorro e, ainda falando ao celular, sobe no veículo. O animal observa o ônibus se distanciar e depois vai embora. Havia cumprido a missão de cuidar da

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FOTO:GABRIELA ALENCAR

Lateral do Liceu do Pantanal, localizado na Rua Planaltina

dona. Recrimino-me pelas vezes em que duvidei da inteligência canina. Até então só havia notado pelo bairro placas vendendo dindin ou picolé, mas na Planaltina há ferro, coluna, balde e vergalhão à venda nas placas penduradas em portões. A maior parte das calçadas da rua é larga. É possível andar sobre elas. Há carros estacionados na rua e motos nas calçadas. As motocicletas vêm e vão, algumas com três passageiros, sendo o terceiro uma criança colocada sobre o tanque da moto, ou entre os dois adultos, sem capacete. Mais arriscado, impossível. Nas terças-feiras, dia de coleta de lixo no bairro, veem-se facilmente catadores empurrando carrinhos cheios de material reciclável. Naquela manhã, conto seis homens e duas mulheres fazendo o serviço. Um deles chama atenção. Diferente dos demais, usa tênis e luvas, além de uma blusa com capuz e mangas até o pulso – os outros usam apenas chinelas, blusas ou camisetas, boné às vezes. Ele abre sacos colocados nas calçadas, recolhe o que pode ser reciclado, fecha o saco e segue caminho. O

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nome “original” é José Carlos de Sousa, mas está acostumado a Betinho, apelido colocado pelo finado pai pelo fato de Betinho ter sido uma criança pequena e magricela. A bem da verdade, ele continua magro e não é um homem alto. Betinho estudou até a sexta série em uma escola pública. Teve de escolher entre trabalhar e estudar. Aos 41 anos, foi ajudante em açougue, entregador em mercantil. Há mais de dez anos, trabalha como catador. Não gosta do que faz, acostumou-se a fazer. A família com mais de dez pessoas para sustentar e o desemprego fizeram-no catador. O trabalho, diz, é cansativo e humilhante. “O povo trata isso, não sei nem explicar... Quando eu vou num lugar e some algo já sou eu que tenho de pagar. As pessoas nos associam logo à marginalidade e não reconhecem a importância do nosso trabalho”. As luvas e o tênis foram ganhos, “é o povo quem dá”. Se der sede durante o trabalho, pede água nas casas. Protetor solar nunca tem, a pele é queimada de sol. “A gente passa o dia praticamente de fome, o dono da sucata só nos dá um pãozinho e um café. Almoço e merenda são por nossa conta”. Betinho trabalha para um depósito de reciclagem, que funciona no bairro. O carrinho de catador pertence ao dono do depósito. Para ganhar em torno de 30 reais, é preciso trabalhar das cinco horas da manhã até 18 horas, um total de 13 horas por dia. “O material é muito barato, o quilo de garrafa pet é só 25 ou 30 centavos”, queixa-se. O maior perigo, diz, é pegar micoses. Ele já passou por isso e “foi um custo ficar bom”. Apesar do sorriso simpático diluído entre as respostas, ele me avisa para ser rápida com as perguntas. Não há tempo a perder. O trabalho de catador é como uma competição, se ele não for o primeiro nas ruas, outro já tem pegado o material. Foi sorte encontrá-lo naquele dia. Às oito horas da manhã, ele já deveria estar distante da Planaltina, mas se atrasou “porque a mulher demorou a fazer a merenda”. Terças, quintas e sábados, ele está no Pantanal, sempre na mesma rota. Segundas, quartas e sextas-feiras está na Pajuçara, em Maracanaú. Aos domingos, mesmo sem coleta, também trabalha. As grandes distâncias percorridas aliadas ao peso do lixo ainda não prejudicaram a coluna, que ele diz estar ótima, mas fazem o

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“carrinho de geladeira” sempre apresentar problemas. É corriqueiro os pneus furarem. A conta fica com o dono do depósito de reciclagem, proprietário do carro. Betinho trabalha para José Maciel Freitas, 56 anos, que há dez anos possui um depósito de reciclagem na Rua Apocalipse. José compra o material dos catadores, que trabalham como autônomos. Depois, vende a “atravessadores”: donos de caminhões com grandes caçambas. “O meu apurado aqui não passa de 2 mil reais por mês, quem ganha dinheiro mesmo são os donos dos caminhões. Eles vendem direto para as fábricas que compram o lixo”. José é um homem de aparência simples – chinelas, camisa social, calça jeans, boné –, de respostas curtas. O depósito é o retrato de onde não se quer trabalhar. Pilhas desorganizadas de papelão, garrafas pet, latas, fios velhos de energia e pneus compõem o cenário. É um local sujo, cheio de moscas, abafado e sem janelas. Questiono-me que sociedade é essa que busca sustentabilidade submetendo seres humanos a tais condições. José diz passar quase todo o dia por ali. De volta à Planaltina, um senhor sentado em um banquinho de madeira na calçada trança uma tarrafa com fios de náilon. Usando um boné laranja, uma bermuda xadrez e chinelas havaianas, ele não olha nem para os lados de tão concentrado. Já o vi outras vezes no mesmo lugar, no mesmo trabalho, com a mesma atenção. Hoje, decido conhecê-lo. Moacir Matos Barbosa tem 79 anos, a pele morena e a face magra que costumam ter os agricultores do sertão cearense. Seu Moacir é natural de Russas, onde trabalhou como carpinteiro, pedreiro, agricultor (plantava milho, feijão, mandioca) e aprendeu a fazer as tarrafas. Chegou a Fortaleza exatamente no dia 21 de abril de 1958, num dia de sol. Enquanto conversamos, o céu começa a ficar nublado. Se cair chuva, a árvore na qual ele prende a tarrafa oferece proteção. A casa dele é escura, por isso prefere trabalhar nas calçadas dos vizinhos. O comprimento das redes é contado com a palma da mão. A que faz no momento terá 13 palmos. Custará em torno de 120 reais. Ele as faz por encomenda para os amigos e leva em média um mês para terminar cada uma. Moacir trança as tarrafas durante as manhãs

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de segunda a sexta-feira, descansa durante a tarde. Nos finais de semana, encontra os amigos, toma um “vinhozinho”. No peito, uma cruz e um pingente de Nossa Senhora em um cordão prateado. É católico, mas não gosta de ir à missa. Não confia nos padres. A ausência na igreja não o impede de rezar todas as noites, diz olhando-me nos olhos e tirando o boné da cabeça, deixando à mostra o cabelo tingido de preto. É o único momento da conversa em que para de trançar a tarrafa. Junto com dona Antônia André Barbosa, 86 anos, teve “só” seis filhos. Muito filho, para os dois, “é de 10 pra lá”. Casaram-se no dia 8 de janeiro de 1957. Já são mais de 56 anos juntos. “A gente se ‘esconde’ na mesma casa aqui na Planaltina desde 1990. O tempo traz os altos e baixos do casamento, mas estamos bem”, conta ele. Os dois moram próximo ao Centro Educacional Cardeal Aloísio Lorscheider (Cecal) – antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem). O local atende jovens de 18 a 21 anos autores de ato infracional grave, como roubos. Segundo1 dados da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do 2 Estado (STDS), em 2013 foram atendidos 418 adolescentes em regime de internato. No local, os jovens participam de ações socioeducativas como atividades culturais e cursos profissionalizantes. O Cecal ocupa todo o quarteirão final da Planaltina. Quando digo ser estudante, Moacir adianta que estudou pouco. “Só assino o meu nome, mas isso nunca me impediu de trabalhar ou chegar a qualquer endereço”, diz orgulhoso. Começa a chover. Os pingos batucam uma escada de metal em formato de caracol colocada em uma calçada estreita. Em minutos, o chão é tomado de poças. Mesmo chovendo, um vizinho de Moacir continua a varrer a rua. “Esse aí não é que nem bode não, que quando vê chuva faz carreira”. Do outro lado, o vizinho responde: “Esse aí só mora aqui há tanto tempo porque tem quem varra a frente da casa dele!”, diz enquanto se afasta em direção a uma bica. Moacir ironiza: “Cuidado com a enchente! (risos)”. Em um mercantil próximo dali, ouve-se uma conversa animada, composta por vozes de mulheres. O barulho alto da chuvarada não é capaz de abafar os sons.

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– A população quer o que votando nos vereadores de fora do bairro? É muita burrice! – Pois é! Se votassem nos daqui, as coisas melhoravam – comenta a companheira de papo, convicta. Em minutos, mais intenso que antes, vem o sol no encalço da chuva. Despeço-me de seu Moacir e de dona Antônia. “Deus lhe dê um bom marido e felicidade”, ela deseja enquanto aperta com força a minha mão. Chego à parte central da Rua Planaltina, onde o Liceu Estadual Prof. Domingos Brasileiro ocupa um quarteirão. “Nenhum obstáculo é tão grande se a vontade de vencer é maior”; “Educação é impregnar de sentido o que fazemos a cada instante”, dizem dois cartazes nas paredes do Liceu do Pantanal. Visito a escola no início de janeiro de 2014. Ainda são férias. Não há burburinho de alunos nas salas de aula, no auditório, na biblioteca ou nos laboratórios (dois de informática, um de matemática, um de química e um de biologia). Estudei na escola em 2007, primeiro ano de funcionamento dela, à época apenas o laboratório de química funcionava. Hoje, a diretora Denise Silvestre diz que todos estão ativos, com boa estrutura. O Liceu começou a ser construído no Pantanal em 2004 depois de muita reivindicação de lideranças comunitárias. Bárbara Severino Sousa, ex-presidenta da União dos Moradores do Pantanal, diz que foi necessária muita peleja tanto com o Governo do Estado quanto em busca de apoio de deputados na Assembleia Legislativa. A cada ano, a escola de ensino médio recebe de 800 a 900 alunos divididos nas 21 turmas que a escola possui, uma média de 42 estudantes por sala a cada um dos três turnos em que o colégio funciona. Chama atenção de forma negativa, o fato de a lateral da escola estar sempre cheia de lixo. Esporadicamente, a prefeitura realiza limpezas, mas em pouco tempo o local volta à imundície. As colunas do prédio são marcadas por frases, assinaturas e desenhos escritos a lápis e canetas coloridas.

Renam

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Larissa


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O Bonde das Virgenz [sic] Lucas NenEm Te amo Diante da falta de espaços de lazer no bairro, o Liceu cede o espaço da quadra poliesportiva a times de futebol da comunidade que queiram treinar. O grafite nas paredes internas do prédio fala de “Atitude para curtir a vida” e alerta “Jovem drogado e sem educação não faz revolução”. As laterais do Liceu do Pantanal também são grafitadas.

MELHOR UM MURO SUJO DE TINTA DO QUE UM CHAO SUJO DE SANGUE Pixar [sic] é errado, errar é humano... Somos humanos, por isso... pixamos [sic]

MAD IN FAVELA O grafite tem espaço certo na Rua Planaltina, onde está localizado o ateliê FC Grafite. A sigla FC significa Facção Central e remete a como se intitulavam Diegon, Denis, Douglas e Felipe Bandeira, na época em que pichavam. “Facção remete a grupo, galera, e dizemos ser central porque essa área fica no centro do bairro e praticamente o divide em quatro lados”, explica Felipe, 23 anos. Eles grafitam bicicletas, capacetes, celulares, motos, fachadas de lojas, quartos e eletrodomésticos. Todo dia há novas encomendas de pessoas não só do Pantanal como de outros bairros da cidade. “Além de local de trabalho, aqui virou ponto de encontro”, diz Felipe, designado como “assessor de imprensa” de Diegon, “o patrão”. No ateliê, paredes marcadas por cores. Spray, compressor, pistola e aerógrafo são os materiais usados para grafitar. Eles começaram grafitando as próprias pranchas, depois passaram a fazer pequenos trabalhos para amigos. O passo seguinte foi transformar os dois primeiros cômodos da casa de

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Diegon em ateliê para dar conta das crescentes encomendas. “Geralmente, as pessoas deixam por nossa conta o que vai ser grafitado, confiam no nosso trabalho, mas no começo não era assim não”, diz Felipe. No início, só produziam assinaturas grafitadas, depois passaram a reproduzir paisagens e rostos de pessoas. Ele criou o próprio personagem. Um fantasminha negro de boné, máscara, óculos escuros e spray na mão que deixa a mensagem “Jesus te ama”. Felipe pichou dos dez aos 18 anos. “Pichava pela adrenalina do proibido, pela aventura”. Hoje, trabalha para convencer os colegas a não picharem mais. “Para mim, pichar é uma forma de expressão, mas a maioria das pessoas despreza, considera vandalismo. Com o grafite é diferente, as pessoas consideram arte, prestam atenção, admiram. O status muda para melhor”. Segundo ele, a pichação começou a se disseminar no bairro por conta de bailes funks. “As ‘galeras’ que frequentavam as festas e já tinham siglas, assinaturas, começaram a demarcar (com a pichação) que frequentavam aquele local específico, por isso pichação também tem a ver com disputa de território entre grupos”. Ele conta que muitos dos grafites nos muros do bairro são custeados pelos próprios grafiteiros. “Falta o governo enxergar na arte uma forma de inclusão social, de meio de sobrevivência até”. Uma frase na parede envia mensagem similar: Grafite não muda o mundo, mas muda algumas pessoas. A Rua Planaltina é uma das maiores do bairro. São oito quarteirões que começam na Avenida Maria Francisca da Conceição e terminam na Rua Teresinha. É também uma das poucas existentes antes de o bairro ser criado. Nem seu Coelho, morador da rua há cerca de 30 anos, sabe por que ela é chamada de Planaltina. “Isso foi nome lá que botaram na prefeitura depois da ocupação, mas deve ter algum significado, porque os nomes dos lugares são registros da história do local”, explica e acrescenta, indignado: “Imagine você, que tem um bairro na cidade com o nome de Presidente Kennedy, um homem que presidiu lá os Estados Unidos, mas o que diabos ele fez por aqui para darem o nome dele a qualquer coisa?!” Sabe-se que Planaltina é o nome de uma cidade em Goiás e de outra no Distrito Federal. Especula-se que alguém

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daquelas bandas, chegando pela rua ainda sem nome, resolveu batizá-la assim para recordar a terra natal. Seu Francisco Pereira Coelho reside na rua desde 1986. Comprou o terreno do corretor Antônio Sales Magalhães. A propriedade era bem maior, virava a esquina na Rua Amaral Peixoto e chegava até a Rua Coronel Queiroz. Um quarteirão quase todo chamado Sítio Indaí. Ele me mostra a escritura do Cartório Melo Júnior. Chegou a manter uma vacaria e uma criação de porcos no local, mas depois foi distribuindo o terreno entre os dez filhos, vendendo a conhecidos, e se desfez dos animais. Embora não saiba o porquê do nome da rua, os 90 anos fizeram-no sabedor de muitas outras coisas. “Só decorei a cartilha do ABC, mas minha sabedoria é como estrume pras raízes dos mais jovens, faz com que eles gerem frutos mais bonitos, mais doces”. Ele completa. “Eu posso lhe mostrar todas as fotografias que tenho na minha casa, mas se você não souber o que tenho pra contar, não vão significar nada. Não é por isso que a gente tira foto? Pra lembrar? Pois eu tenho a memória boa e a vista também! (risos)”, garante, apesar do glaucoma. São 10 horas da manhã. Bem perfumado, sentado numa cadeira de balanço na área de casa, ele lê o livro Kairós escrito pelo padre Marcelo Rossi. Pergunta-me logo se deve me chamar de senhora ou senhorita. Indaga isso a todas as mulheres, para não cometer nenhuma gafe, porque, para ele, “mulher só quer ser velha na hora de pegar fila, nas outras horas se maquia para parecer mais nova”. Ele traja bermuda marrom e camiseta branca. Usa óculos de armação escura, relógio cor prata. A tez é morena, a barba grisalha é curta. Gosta de manter os ralos cabelos penteados para cima. Mora numa casinha cor laranja, com alpendre no quintal e garagem na frente. Vive sozinho com a esposa e prima Maria Ferreira, 88 anos. Casaram-se em 1947 e lá se vão 60 anos de união. Enquanto o abraça, Maria diz que ele é a cruz que ela carrega. “Nesse tempo todinho minha barriga só encosta na dela”, ele afirma orgulhoso. O quintal dos dois não tem muros, as casas em volta são dos filhos, sempre por perto, trazendo os netos. Seu Coelho diz não ser ciumento com a esposa, mas com o carro. Uma Parati 1983. Um dos maiores prazeres da vida

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é dirigir, garante. Melhor ainda se for até Canindé, onde ele cresceu com Maria. Ainda melhor que ir a Canindé é conversar e ele me convida para uma prosa outro dia, acompanhada de café, quando irá me contar as aventuras dos cinco anos em que esteve em um convento. Adia a narrativa, porque exigirá esforço lembrar algo ruim da experiência, pois quando o tempo “foi muito bom, a gente só conta o melhor e num livro deve aparecer a parte que favorece e a que desfavorece”. Quando nos despedimos, ele agradece por eu tê-lo ouvido, reclama que ninguém mais tem paciência para isso. “É muito bonita essa coisa de ser jornalista, dedicar-se a ouvir os outros. Além do que é produção de conhecimento e isso é muito importante”. Ele aperta minha mão e diz até logo.

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Quinta-feira – Rua Apucarana

Numa porta velha de madeira está escrito em um adesivo verde brilhante: Não há derrota que derrote o que nasceu para vencer. Ouve-se o barulho das televisões ligadas nos programas matutinos. São 8 horas da manhã e já há quem prepare o almoço. Corre no ar cheiro de frango cozido e feijão. Há sons de periquitos cantando. Atrás de uma janela gradeada, uma mulher sozinha olha a rua e ouve uma canção de Amado Batista: Desesperado pelo sofrimento, nem sequer percebi que atirava sem parar (...) ao ver os corpos abraçados e sem vida, vi nascer uma ferida no meu peito a machucar. Juntamente ao forró, ritmo preferido por aqui, as músicas do cantor são a trilha sonora da manhã da Apucarana. – Essa menina é burra! – grita uma mulher. – É não, Maria, toda criança é boa de aprender – responde uma voz feminina apaziguadora. Em um trecho da rua: 57, 55, 255 e 51. Os números das casas parecem sem nexo. Há muitas residências com placas de “vende-se” e “vendisi”. A mensagem da venda é passada das duas formas. A Apucarana possui calçamento apenas no começo, na parte mais próxima da Rua Planaltina. A partir dali, a rua se estica e estreita, ramifica-se em becos, mas segue em linha quase reta. Em 1993, quando ocorreu a “Chacina do Pantanal”, a Apucarana era percorrida em poucos passos, não passava de dois quarteirões, mas em 2008 a rua se alongou até o Campo Vila Nova. Cerca de 700 famílias, com uma quantidade de membros variando de três a nove pessoas, deram origem à Favela da Portelinha. A maioria teria participa-

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FOTO: GABRIELA ALENCAR

Final da Rua Apucarana

do da ocupação com o objetivo de deixar de pagar aluguel. O local ficou conhecido dessa forma por conta da novela Duas Caras exibida na mesma época pela Rede Globo. O enredo da trama trazia uma ocupação também chamada de Portelinha. Seu Januário, líder comunitário, renega a nomenclatura e diz que os moradores escolheram o nome de comunidade Santa Maria para o local. Integram a Santa Maria, a Rua Apucarana e as ramificações da via. “Aqui era campo e matagal, só tinha rato, cobra e servia para esconder corpo” – Januário descreve o lugar antes da ocupação. Quando chovia, alagava metro e meio, as pessoas aterraram o local e ergueram casas, pequenas a maioria. O campo Vila Nova ficou menor. Sem planejamento, a rua cresceu estreita. É difícil passar algum carro por ali. Pergunto-me se uma ambulância conseguiria entrar na rua caso alguém precisasse ser levado com urgência ao hospital. A Companhia Energética do Ceará (Coelce) acabou nomeando a rua inteira como Apucarana quando colocou energia nas

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casas. Algumas delas já chegam ao terceiro andar, enquanto outras mal terminaram o primeiro. Um fio de esgoto percorre boa parte da rua, dividindo-a ao meio, formando duas compridas artérias. As casas abandonadas nos primeiros tijolos, no comecinho de muro que se formava, não ficaram vazias: lixo e plantas habitam-nas. É comum os moradores ficarem doentes de dengue por ali, diz Maria José Rodrigues, 59 anos. Ela afirma tachativa a tranquilidade da rua e a amizade dos vizinhos. “Nesse ponto, não tenho do que me queixar”, diz, mas reclama das péssimas condições sanitárias e acredita existir apenas uma forma de a situação melhorar. “Só se for político querendo voto, aí a gente alavanca isso aqui”. Apucarana também é nome de cidade. No Paraná mais especificamente. De acordo com o site da prefeitura de Apu3 carana , o nome é de origem caingangue e significa “floresta imensa”, mas pode ser ainda de origem tupi, significando “furo rachado”, ou “em círculo, mas com interrupções ou rachas”. Os moradores da rua não sabem dizer o porquê do nome indígena ou se já viveu por ali alguém da cidade paranaense. Um fragmento da rua se destaca pela quantidade de plantas em jarros e em garrafas pet cortadas ao meio. Há samambaias, comigo-ninguém-pode, palmeiras, algumas flores cor de rosa e brancas. Um jardineiro mora por ali. Ele tem estatura baixa, os olhos castanho-claros. Traja boné, camiseta e bermuda. Chama atenção nele, a fala ligeira e mansa. Chama-se Francisco Izidro Bezerra, tem 49 anos e não sabe dizer ao certo se o nome é escrito com “z”. A casa pequena de três cômodos não comporta a quantidade de plantas, por isso ele deixou várias na frente das casas dos vizinhos, que não se incomodam. Ninguém leva uma planta dele sem pagar, diz. “Deixam a rua mais bonita, né?”. Deixam mesmo. Além de vender plantas, ele poda árvores, vive de “fazer bico”. Veio de Juazeiro em 1997 e aprendeu a “se virar” em Fortaleza. A renda fixa da casa é da esposa Ana Cláudia, que trabalha como doméstica. Estão juntos há seis anos. Residem na Apucarana pelo mesmo período. Izidro conta que chegou a se matricular em 19 colégios, mas a necessidade de trabalhar

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sempre o levou a desistir logo nas primeiras semanas de aula. A falta de estudo, conta, não o impediu de percorrer 172 cidades do Nordeste, sempre a trabalho, vendendo artesanato. Por anos, ele confeccionou cestas de ferro forradas com estopa de coco. “Fica um jarro de plantas que dá para pendurar, deixa a casa bonita que só!”. O casal se queixa da falta de iluminação pública na rua. À noite, só há iluminação dentro das casas. Algumas pessoas colocaram uma lâmpada na frente da residência e se revezam com os vizinhos para deixá-la acesa à noite. Mesmo sem iluminação na rua, alguns moradores pagam de três a seis reais de iluminação pública, cobrada mês sim, outro não, na conta de energia. Izidro diz ter tentado reunir pessoas para cobrar providências na prefeitura ou na Coelce, mas dizem sempre ser muito ocupadas, ou alegam não saber falar com “essa gente importante”. Todos por ali têm acesso à água encanada. Na falta de calçamento, as pessoas colocaram pedras e pequenos pedaços de tijolos no chão. Não fosse isso, em dia de chuva andar-se-ia pisando em lama o tempo todo. Outro problema é o fato de o caminhão da coleta de lixo não conseguir entrar na rua. “Tem de levar o lixo até a Planaltina, mas tem muita gente que joga nesses terrenos vazios da rua ou no campo Vila Nova”, conta ele. Talvez por essa razão, o lixo faça parte da paisagem. Sacos, copos e pratos de plástico, pneus e sabugos de milho adornam o caminho. O dia corria lento, frio, convidativo a uma conversa longa, mas ele estava apressado. Tinha uma encomenda para entregar na bicicleta cargueira. A esposa esperava por uma carona até a parada de ônibus. Despeço-me de Izidro e da esposa, que já o havia chamado duas vezes, lembrando-o do dia cheio que teriam pela frente, da chuva que ameaçava cair. Alguém riscou com giz de cera na última casa da via: Rua Apucarana. A rua termina em um muro alto, recoberto de cimento e cheio de pichações. A parede separa a rua das casas do outro lado do muro, mais próximas do campo Vila Nova. Diferente do muro que finda a Rua 27 de Julho, este apresenta pichações bem vívidas, não apagadas pelo tempo. Nomes

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femininos frequentam a parede. Há dedicatórias a Ester, Luana, Bruna, Júlia. Algumas marcas aparecem não só naquela parede, como em outras ao longo da rua.

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T <3 E Snupy John Makaco Danadin PIRATIM

Os nojetos

JOGO DOIDO E DO NOSSO Marqin eterno

Começa a serenar. Parada diante de um caminho estreito e recoberto de lama escura, cato no olhar algum espaço seco. Percebendo minha indecisão sobre por onde seguir, uma moradora indica uma rota alternativa. “Vire a esquerda ali, bichinha, a casa dele é a de portão preto na esquina”. Entre os caminhos que cortam a Apucarana, procuro seu Genaro, como me disseram se chamar o homem que “corre atrás das coisas por ali”. Quando chego ao local, ele me corrige: “É Ja-nu-á-rio”. No dia anterior à nossa conversa, Manoel Januário de Sousa, 60 anos, fora chamado para uma reunião na Coelce para discutir os problemas relativos à energia elétrica na comunidade Santa Maria. “Não pude ir e ninguém se manifestou pra ir, por isso, as coisas vão bem devagar. Precisamos de seis a 12 pessoas ativas para trabalhar numa associação, porque não existe comunidade sem associação”. Ele se sente sobrecarregado. “O pessoal me cobra, mas não se mexe”. Januário já procurou outras associações do Planalto Ayrton Senna, mas as pessoas da comunidade Santa Maria divergiram e acharam melhor que não houvesse a parceria. “Dinheiro de passagem pra ir pra reunião é do meu bolso, o povo só ajudou quando supostos proprietários do terreno ameaçaram entrar com uma ação de despejo”. Na ocasião, a comunidade juntou 1.500 reais para pagar um advogado. Agora os moradores tentam conseguir usucapião das terras para garantir que ficarão definitivamente no lugar.

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Januário veio de São Gonçalo do Amarante para Fortaleza há 23 anos. Antes, morava em uma casa alugada. Ele traja calça jeans, não veste camisa. Tem olhos miúdos verde-claros, a pele mulata e os cabelos brancos. Quando a chuva engrossa, convida-me a entrar na casa simples. Solícita, a esposa nos serve um café. Os dois têm uma filha de 15 anos que quer ser advogada. Conversamos na cozinha e o forró faz a trilha sonora na rádio FM. Ele trabalha como pedreiro e a esposa como doméstica no Aeroporto Pinto Martins. Para economizar dinheiro de passagem, às vezes ele a leva para o trabalho de bicicleta. Januário diz vir de uma época em que os pais não se importavam com a educação formal. A mãe queria que ele e os 20 irmãos estudassem, mas o pai dizia “pra que? filho meu vai ser criado é trabalhando!”. Quando perguntavam a ele o que seria quando crescesse, Januário respondia “tangedor de jumento”, a tarefa dada pelo pai. Aprendeu a assinar o primeiro nome: Manoel, de tanto ver o ônibus do bairro Vila Manoel Sátiro. Ele conta que assumiu a liderança da ocupação após o outro líder ser preso por se envolver “com coisas erradas”. Afirma que hoje a ocupação não é perigosa, pois “os traficantes que foram para a área no início mataram uns aos outros”. Ele se recorda de um garoto de 11 anos viciado em crack assassinado no local. Mesmo tão jovem, o menino já teria feito roubos a mão armada. Por conta do vício, fora abandonado pela família. Com a voz grave e rouca, o garoto sempre pedia comida a Januário, um dia pediu dois reais para ir ao Terminal da Parangaba. Na manhã seguinte, encontraram-no morto no Campo Vila Nova. “O perigo é a bala deixar de ser perdida e lhe encontrar. Tem de ter fé em Deus!”. O líder comunitário segue na luta como pode, indo a reuniões em órgãos públicos para buscar melhorias para a Rua Apucarana e a comunidade Santa Maria como um todo. “Devagar e sempre, mas sozinho é sempre mais difícil”. Despeço-me dele e sigo o caminho de volta até a Planaltina. Para não pisar em lama, ando em ziguezague, buscando calçadas, algumas casas as têm. O problema do esgoto na Apucarana é certamente agravado pela chuva que, felizmen-

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te, já parou de cair e deixa o sol queimar as minhas costas. Eu não havia percorrido aquela rua até então. Ela é um novo surgir. Um Pantanal dentro de outro. Uma ocupação dentro de outra. Um começar do zero para famílias movidas pela necessidade de moradia, da mesma forma que as quatro mil de 1990. Sempre difícil, a sequência é semelhante: matagal desmatado, barracos erguidos, casas construídas, pobreza, especulação, violência, luta por direitos, aglomerado, favela, união de moradores, lideranças que surgem, conquistas estruturais, luta por inclusão, por igualdade social e pelo reconhecimento como bairro, como lugar de gente de bem. Parece o mesmo jogo de tabuleiro do Pantanal de 1990, no qual as pessoas deveriam ser apenas peças manipuladas, conformadas, números impotentes, cada qual no seu lugar isolado. Ocupar a terra, no entanto, é um ato político, é arriscar-se, impor-se, reivindicar um lugar digno no mundo e, por mais difícil que seja, há quem não se canse de buscar fazer valer a própria vontade no tabuleiro.

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A Chacina do Pantanal

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A Polícia apurou que os três menores executados sumariamente no Conjunto Prefeito José Walter integravam a gangue do Pantanal, acusada de envolvimento com pequenos furtos, brigas e droga.

(O Povo, 21 de novembro de 1993) A mãe de “Verinho”, Luíza Duarte da Silva disse que seu filho revelou que (...) fora ameaçado de morte junto com quem estivesse em sua companhia. “Meu filho tinha uma vida errada, cheirava cola e se envolvia com turmas, mas não merecia ter sido morto de maneira tão cruel”.

(O Povo, 22 de novembro de 1993) Até hoje, o caso do Pantanal não teve julgamento. Um recurso, impetrado pelo advogado de defesa dos acusados, Aldenor Xavier, está há cinco meses esperando uma resposta. Já passou pelas mãos de três desembargadores, sem que houvesse nenhuma resposta para o caso.

(O Povo, 20 de novembro de 1995) O procurador da Justiça Luiz Gonzaga Batista Rodrigues questiona as provas apresentadas no inquérito policial. (...) Segundo Rodrigues, os depoimentos de algumas testemunhas foram conseguidos sob tortura.

(O Povo, 10 de janeiro de 1996) Primeira hora do dia 20 de novembro de 1993, na confluência da rua Planaltina com a rua Apucarana, Pantanal, (...) Veridiano Duarte da Silva, codinome “Verim”, 15 anos de idade, André Gomes Sousa, apelido “Duda” – 14 anos de idade – e Carlos Antônio da Silva, agnominado “Bite” – 16 anos de idade, foram chacinados a tiros de revólver.

(Diário do Nordeste, 20 de novembro de 1996 – Reprodução da peça de denúncia do Ministério Público)

i As informações sobre a Chacina do Pantanal são baseadas em pesquisa realizada nos jornais O Povo e Diário do Nordeste de 1993, ano em que o crime foi cometido, a 2003, ano em que foi localizada a última matéria relativa ao caso.

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As pessoas foram chegando, chegando, até se amontoarem ao redor dos três corpos no chão. No minuto 15 da madrugada do dia 20 de novembro, a execução ocorreu.4 O sangue escuro, mostrado nas fotos em preto e branco dos jornais, escorria no cruzamento das ruas Apucarana e Planaltina. O cheiro era de dor. A Polícia Militar declarou ter ficado “surpresa” com o crime, pois, no mesmo dia, havia policiamento no local. Uma blitz teria abordado os garotos momentos antes. “Eles foram revistados e, como não estavam cometendo nenhuma infração, os PMs saíram do local”.5 Três garotos fugiram. Esconderam-se em uma casa próxima. Foram 20 disparos à queima-roupa, 11 atingiram na cabeça os outros três adolescentes. Eles tiveram morte imediata. As vítimas foram André Gomes de Sousa, também conhecido como Duda; Veridiano Duarte da Silva, ou Verinho, e Carlos Antônio da Silva, apelidado de Bite pela mãe. Tinham respectivamente 14, 15 e 16 anos. Uma bala de fuzil e uma cápsula de revólver foram encontradas no local do crime6. Os garotos são descritos no Diário do Nordeste como “membros de quadrilhas mirins”, que passavam a noite pelas ruas “cheirando cola e praticando furtos”.7 Dia seguinte. O próprio secretário de segurança, Francisco Quintino de Farias, visita o bairro para conversar com familiares das vítimas. As primeiras pistas indicam que o crime foi cometido por dois homens em uma moto vermelha, cuja placa não foi anotada. O então governador Ciro Gomes (PSDB na época) pede rigor na apuração e define o crime como intolerável e chocante. “Esse caso teve uma característica diferente e preocupante, já que existe a possibilidade de essa chacina ter sido perpetrada de propósito para imitar o que aconteceu no Rio de Janeiro, na Candelária e tentar provocar consequências no plano sócio-político”.8 Ciro Gomes refere-se à Chacina da Candelária, ocorrida em 23 de julho de 1993, na qual oito

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crianças e adolescentes moradores de rua foram assassinados por policiais, na calçada da Igreja Matriz do Rio de Janeiro. Quatro PMs foram presos, mas só cumpriram parte da pena. Como parte da investigação, o Secretário de Segurança Pública, Quintino Farias, e a titular da Delegacia do José Walter, Elenice Pinheiro, realizam diligências pelo bairro, usando carros sem identificação.9 Surgem hipóteses para as motivações do crime. Os arredores de 1993 concentram bailes funks no Conjunto José Walter, na Serrinha e no Itaperi. Brigas ocorridas nas festas são apontadas como possível razão do assassinato. “A polícia também não afasta a hipótese de que ‘Bitch’, ‘Verinho’ e ‘Duda’ tenham sido eliminados por justiceiros revoltados com a atuação deles, e traficantes enganados por eles”.10 “O fato de acusar as vítimas de delinquência não justifica a realização de justiça pelas próprias mãos”, afirma o editorial do jornal O Povo, dois dias após a chacina. A prática dos “justiceiros” seria “repetição de um tipo de delito do Rio de Janeiro e São Paulo e já imitado com certa frequência por Recife”. Grupos de justiceiros formados por policiais, segundo o texto, já teriam sido identificados no bairro Pirambu cometendo crimes semelhantes à chacina.11 O assassinato repercute na cidade e motiva declarações de autoridades locais. O então cardeal da Arquidiocese de Fortaleza, Dom Aloísio Lorscheider, que celebrou a primeira missa na comunidade, diz em entrevista ao O Povo 12 que a sociedade não pode tolerar a violência contra crianças e adolescentes. Ao ser perguntado pelo periódico se algumas pessoas estariam tentando “denegrir a imagem dos meninos como se eles fossem réus e não vítimas”, ele declara: “Os verdadeiros culpados somos nós, os adultos, que os empurramos para uma vida que nós mesmos detestamos. Não podemos lavar as mãos como se nós fossemos inocentes e eles os culpados”. O então presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, o deputado estadual Mário Mamede, também se manifesta. “Alguns segmentos da Polícia Militar, Polícia Civil e até mesmo da imprensa vem insistindo em

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colocar que a Chacina do Pantanal foi um acontecimento isolado, no entanto, o fato de que este ano, 33 menores foram mor13 tos no Ceará, desmente esta afirmação” . Segundo ele, chegava a 250 o número de policiais envolvidos em crimes no Estado em 1993. O deputado disse ainda que, no ano anterior, menores de idade foram encontrados mortos com “cabelos impregnados de cola de sapateiro apresentando um tiro de misericórdia na base do crânio”. Ele reforça a tese de que o crime teria sido cometido por justiceiros.14 A investigação mobiliza as polícias Civil e Militar e aponta o funcionamento de um grupo de extermínio na periferia de Fortaleza. Sete delegados trabalham no caso. Cerca de 20 pessoas têm prisão temporária decretada. “O assassinato dos menores no Pantanal foi apenas um de uma série que vinha acontecendo no eixo Pacatuba – Maranguape – Maracanaú (Região Metropolitana de Fortaleza), cuja grande parte permanece insolúvel, e não um caso isolado como se pensava”, declara o secretário Francisco Quintino de Farias 15. “Depois da descoberta dos ‘exterminadores’ caiu em quase 80% os índices 16 de crimes dessa natureza naquela região da Grande Fortaleza”. Pelo menos 37 pessoas teriam sido assassinadas pelo grupo de extermínio. Adolescentes entre as vítimas. Os “justiceiros” matariam “até por brincadeira” e seriam contratados por comerciantes.17 Havia registros de outros crimes supostamente cometidos por policiais na região dos Inhamus e nos bairros Parque Dois Irmãos, Cambeba, Mucuripe, Barra do Ceará, Messejana e Henrique Jorge. As razões seriam banais, como pedir ao policial para que ele falasse baixo, não colocar uma música pedida em um bar, furtar dois galões de tinta ou 18 arranhar a pintura do carro de um policial. Se fizermos uma retrospectiva dos assassinatos ocorridos em Fortaleza, nos últimos 20 anos, vamos encontrar uma disputa acirrada entre policiais civis e militares que simplesmente por não acreditarem na Justiça preferem fazer justiça com as próprias mãos. (...) Muitas vezes as execuções são tão mal feitas que os autores terminam sendo identificados, mas as tes-

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temunhas não ousam falar temendo represálias (Diário do Nordeste, 20 de fevereiro de 1994).

Três homens são acusados de envolvimento na chacina do Pantanal: o ex-sargento da Polícia Militar Agenor de Castro Costa; o ex-soldado da PM José Luiz Lima Bezerra, conhecido como “Luizão”, e Eduardo Fernandes Siqueira de Nazareth, o “Washington”, policial civil lotado na Delegacia da Criança e do Adolescente. Eles têm prisão preventiva decretada pelo juiz Jucid Peixoto do Amaral, da Quinta Vara do Júri. Embora as prisões tenham ocorrido em 1994, somente em 1997 o caso seria julgado.

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O sentimento das famílias

Uma cadeira vazia, família faltando um pedaço Dói no estômago, tipo azia No âmago, o espaço daquela piada que ele sempre fazia Esses meninos são sangue, medo e pele Onde viaturas são abre alas do IML É, eu nem choro mais, pois bem Não sei dizer se eu fiquei mais forte ou se eu morri também Canção para meus amigos mortos (Emicida)

Dois anos após o crime, o jornal O Povo conversa com as 19 mães de Carlos e Veridiano no local da chacina. A reação delas é descrita mais como revolta do que como tristeza. “Será que a morte de um filho de pobre vai ficar por isso mesmo? E se fosse o assassinato de um filho de um juiz, já não teria sido julgado?”, questiona Maria José da Silva, mãe de Carlos. Ela descreve o filho como um rapaz trabalhador e esforçado. Após a morte dele, Maria José mudou o nome de seu pequeno armarinho para São Carlos. “É minha forma de manter viva a lembrança do Bite e o desejo de que justiça seja feita”. O pai adotivo, Paulo Frutuoso da Silva, não teve coragem de voltar à esquina das ruas Planaltina e Apucarana. “Acima de tudo, ele era fiel. Nunca meteu a mão em nada dos outros. O seu único defeito era não ter maldade, não diferenciar ninguém”, define ele. Verinho e Bite trabalhavam em supermercados como empacotadores. Ajudavam em casa com o dinheiro ganho, mas, segundo as mães, envolveram-se com “más companhias”. “Reconheço, meu filho era metido com muita coisa que não presta. Mas será que quem matou não é mais bandido que ele? Pelo menos meu filho nunca tinha matado ninguém”, disse a mãe

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de Veridiano, Suzana Duarte da Silva. “Mesmo sabendo dos defeitos dele, eu queria ele vivo. Quem sabe, ele teria voltado a ser o menino bom que era antes?”, completa. Cinco meses após a morte do filho, ela perdeu o marido. “Ele não se conformou com a morte de Verinho, passou a viver triste pelos cantos e acabou morrendo do coração”. Há um corpo na calçada, uma cápsula caída Uma mãe angustiada, um número pra estatística Bibliotecas vazias, presídios lotados sem livros, com armas e desinformados Canto da Vitória (Emicida)

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Reviravoltas e julgamentos

Em 1994, ano em que os acusados são presos, surge a denúncia de que algumas testemunhas foram torturadas na Delegacia de Furtos e Roubos de Veículos (DRFV) para apontarem Luiz Lima Bezerra, Agenor de Castro Costa e Eduardo Fernandes de Nazareth como autores do crime. Durante a investigação, as testemunhas Flávio Silveira Diógenes e o vigilante Ricardo Wagner Sabóia Carvalho teriam sido presas na DRFV sem ordem judicial. Por cinco dias, Ricardo teria ficado preso, tendo sido torturado por três policiais, que repetiram o nome de cada um dos acusados até que ele respondesse afirmativamente. A tortura seriam murros e saco plástico na cabeça.20 Ricardo e Flávio afirmam que outras testemunhas também foram torturadas. O delegado Jorge Luiz, então responsável pela investigação, nega a tortura e diz que os depoimentos foram tomados na presença do promotor do Ministério Público do Estado Wilson Furtado. “‘Agenor’, ‘Luizão’ e ‘Washington’ são mesmo os autores da Chacina. O Ministério Público também acredita nisso, ou não teria indiciado os três. Falta apenas sabermos quem são os mandantes”, diz o delegado.21 O promotor admite, depois, ter assinado documentos da investigação sem participar dos depoimentos dos principais envolvidos. A partir daí, as testemunhas são novamente ouvidas. A cada ano que se passava sem o julgamento do crime, a comunidade organizava atos de protesto. Um ano após os assassinatos, é realizada uma passeata pelas ruas do bairro até o local do crime, onde é celebrada uma missa. Na mesma

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época, “Luizão” havia sido solto por habeas corpus, mesmo respondendo a processo por mais três homicídios, dois deles contra menores de idade. “Washington” e Agenor continuavam presos.22 Na passeata, o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) divulga índices de homicídios contra adolescentes. De agosto de 1992 a julho de 1994, cerca de 230 foram vítimas de homicídio doloso ou culposo, 72% eram do sexo masculino.23 Em 1995, novo protesto é realizado, dessa vez em frente ao Tribunal de Justiça do Estado. Moradores, parentes das vítimas e crianças do Movimento de Meninos e Meninas de Rua participam.24 No ano seguinte, outra missa é realizada no local do crime para protestar contra a morosidade da Justiça.25 À semelhança do episódio do Rio, o massacre do José Walter obteve repercussão nacional e já conta com apoio de entidades internacionais que pressionam para que o caso seja deslindado e os acusados, julgados. “Para advertir ao Governo e aos Tribunais do Brasil que o mundo observa sua atitude e exige que se faça justiça, nós, as Associações Meninos de Rua de Granada e Niños y Niñas de la Calle de Málaga (Espanha), enviamos cartas ao Presidente do Tribunal de Justiça e ao Governador do Estado do Ceará e ao Ministro da Justiça do Brasil. Muitas pessoas em Espanha colaboram conosco”, diz carta que o Cedeca recebeu. (Diário do Nordeste, 19 de novembro de 1996).

Quatro anos após o crime, em 21 de fevereiro de 1997, uma quinta-feira, o crime vai a julgamento no Fórum Clóvis Beviláqua.26 O processo continha mais de mil páginas, segundo 27 o juiz do caso Jucid Peixoto do Amaral. Após 16 horas de julgamento, os jurados entram na sala secreta às 0h45min para votar nos 63 quesitos preparados pelo juiz. A decisão do Júri é anunciada às 2h15min da madrugada. Diante de poucas pessoas no plenário, a sentença é recebida friamente. Apenas a mãe de Veridiano, Suzana Duarte da Silva, sentada na segunda 28 fila de cadeiras do plenário, teria se emocionado. O Conselho de Sentença do Tribunal Popular do Júri decidiu que os três

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réus eram os autores da morte dos adolescentes. As penas são de 51 anos para José Luís Lima Bezerra; 54 anos para Agenor de Castro Costa e 39 anos para Eduardo Nazareth. Por unanimidade de votos, “Luizão” e Agenor são considerados culpados. Washington 29 tem um voto a favor da absolvição. Eles são levados ao Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), em Aquiraz, onde permaneceriam presos até o julgamento de recursos dos advogados de defesa. A condenação dos ex-policiais parecia ser o fim da espera por justiça, mas em novembro do mesmo ano um novo depoimento surge alegando a inocência dos réus. Segundo a testemunha J.P.S., o autor da chacina seria o traficante de Maracanaú Luiz Evaristo Alves Filho, conhecido como “Satanás”. Ele teria praticado a chacina junto com Francisco Souza da Silva, o “Sapinho”. A testemunha declara ao Departamento de Inteligência Policial (DIP) que os garotos foram assassinados por não terem entregado o dinheiro adquirido com a venda de maconha no Pantanal. Com a quantia, eles teriam comprado tubos de cola. “Eu tinha medo de morrer. Ele dizia que se eu falasse, podia ser vítima de ‘queima-de-arquivo’. Como ‘Satanás’ morreu, resolvi me apresentar”,30 diz J.P.S. Ele afirma ainda que o traficante subornou policiais civis para ser liberado todas as vezes em que foi preso. Após o depoimento, os réus do crime continuam presos aguardando o resultado das apelações feitas ao Tribunal de Justiça. Os três acusados sempre negaram participação no crime. Em 2000, acolhendo recurso da defesa, o Tribunal de Justiça, através da 2ª Câmara Criminal, anula a sentença de 1997 e determina a realização de novo julgamento. Dessa vez, Agenor de Castro Costa é absolvido e a pena de Eduardo Fernandes Nazareth aumenta de 39 para 43 anos, mas em 2003, o policial sofre um enfarto ful31 minante e morre. O réu estava em liberdade porque o processo tramitava em grau de recurso no Tribunal de Justiça. Em 2011, a 2ª Câmara Criminal do TJ declara extinta a punibilidade devido à morte do ex-policial. Os processos do julgamento estão arquivados na 5ª Vara do Júri do Fórum Clóvis Beviláqua. De acordo com a diretora da secretaria da Vara, Francisca Auri Silvério Tabosa, as únicas informações que constam no local sobre o segundo julgamento da

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chacina são os processos de Agenor Costa e Eduardo Nazareth. Segundo ela, não há informações na Vara sobre José Luiz Bezerra, o terceiro acusado de participação no crime. Já na pesquisa realizada em jornais, a última reportagem encontrada sobre o caso data de 17 de agosto de 2003 no Diário do Nordeste. A matéria fala sobre réus que recorreram ao Tribunal de Justiça em processos e aponta que José Luiz Bezerra ainda não foi julgado. Segundo informações do TJ, o caso da chacina foi arquivado em 16 de fevereiro de 2001 e no momento encontra-se em grau de recurso. O último recurso data de 24 de agosto de 2009. A Quinta Vara do Júri também não possui informações sobre o conteúdo dos recursos e das apelações contra o julgamento do ano 2000.

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Busca pelos familiares vinte anos depois

A chacina do Pantanal foi destaque frequente nas editorias de polícia e cidade dos dois jornais impressos de maior circulação na capital cearense. As fotos dos três garotos mortos, com rostos identificáveis, foi recorrente nas páginas do O Povo. A imagem foi menos presente nas páginas do Diário do Nordeste, mas a primeira matéria sobre o caso no periódico trouxe os endereços das vítimas, bem como os nomes completos dos pais. Decisão editorial que poderia colocar em risco as famílias dos jovens, mas, graças a ela, pude ir às casas das vítimas mais de 20 anos após o crime. Segundo vizinhos, a mãe de Veridiano morreu há alguns anos e a família se mudou. Já no endereço da casa de André, hoje mora outra família. Eles não souberam informar se os antigos donos da casa eram os pais de André. Perguntei a vizinhos se eles se recordavam do crime. “Ih, mas já teve tantos parecidos...” foi a resposta. Encontro morando no mesmo local apenas a mãe de Carlos, dona Maria José. Quando digo o assunto do qual quero tratar, o sorriso simpático de quem me confirmou o nome da rua, desaparece. Ela logo se apoia em um carro próximo e põe a mão na fronte. Mazé acompanhou o caso apenas até o primeiro julgamento em 1997, quando soube que haveria outro, entregou “nas mãos de Deus”. Viúva, ela tem outra filha hoje com 29 anos. “Meu filho estudava e trabalhava, era empacotador num supermercado, mas quando se envolveu com más companhias largou tudo e começou a cheirar cola”, diz uma voz triste, impotente diante das escolhas do filho. O nome do Armarinho que ela possui continua sendo chamado

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de São Carlos em homenagem ao filho. Ela demonstra impaciência e percebo o quanto sou inconveniente, alguém que aparece para cutucar uma ferida que ela não esquece, mas prefere deixar de lado para não doer. Não faço muitas perguntas e vou embora sem conseguir não pensar no sofrimento dela. Veja bem, escute bem, periferia todo dia acontece assassinatos (...) Como saber se o próximo sou eu ou se é você (...) Na rua a lei é dura, quem não pode, sofre Meu Senhor, por favor, paz e amor Ilumine a periferia e nos livrai de toda dor Real Periferia (RZO)

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PANTANAL PANTANAL - PLANALTO - PLANALTO AYRTON AYRTON SENNA: SENNA: A LUTA SOBRE PELO MEMÓRIAS, DIREITO À IDENTIDADES MORADIA EMEFORTALEZA ESTIGMAS

Entrelinhas Peço licença para fugir da ordem de deixar as Entrelinhas ao fim da crônica reporteira que inicia o capítulo. Algumas questões me incomodaram ao longo da apuração e da escrita sobre a “Chacina do Pantanal” e gostaria de destacá-las aqui. Também por isso estas entrelinhas ocupam maior espaço que as demais. Durante a pesquisa das matérias publicadas sobre o caso, acostumei-me a afastar os olhos das fotos presentes em boa parte das 47 notícias examinadas. Procurava ler apenas o texto, mas não pude fugir às imagens estampadas. Os corpos magros deitados no chão da calçada, a multidão em volta, os pés descalços e muito sangue em volta das cabeças dos garotos, cujos olhos estavam fechados como se dormissem. Pergunto-me por que tanta gente correu para vê-los. Talvez quisessem saber se conheciam os garotos ou, por algum motivo, sentiram-se atraídos pela tragédia. Poupo o leitor dos diversos ângulos da cena do crime nas imagens doídas e sensacionalistas publicadas nos jornais. A meu ver, as fotos não constituem informação, mas estavam nas páginas talvez para chocar, talvez para doer mais nos familiares e amigos das vítimas, certamente para chamar mais atenção dos leitores. Nas entrevistas para o livro, os depoimentos sobre a mudança do nome do bairro sempre remetiam à Chacina como algo que maculou a ideia que se fazia do Pantanal. Um discurso, por vezes, repetiu-se na fala de alguns entrevistados, segundo os quais, a cobertura teria tratado os adolescentes como “coitadinhos”, quando, para esses entrevistados, os garotos seriam “vagabundos” e “esse tipo de gente deve morrer”. Não assumo aqui a posição de juíza sobre quem deve ou não morrer, limito-me a problematizar 125 125


sobre a questão da morte de jovens nas periferias, fato que não é novidade. Segundo dados do Mapa da Violência 2013,32 produzido pelo Centro de Estudos Latino-Americanos, o número de homicídios de jovens brasileiros cresceu 326% de 1980 a 2011. Entre jovens pretos e pardos, de 2002 a 2011, mais de 307 mil foram mortos. Enquanto escrevo estas linhas, outras esquinas do Pantanal presenciam homicídios igualmente bárbaros e lamentáveis. Muitos dos jovens são apenas vítimas, outros tantos fazem vítimas. Os números mostram que não é preciso que surjam vozes para dizer que anseiam por mais mortes de jovens “delinquentes”, isso já ocorre diariamente em todo o país e a situação da violência parece bem longe de ser resolvida. Nas primeiras semanas de 2014, um vizinho e um amigo de infância, que há tempos eu não via, foram mortos. Um teria sido confundido com um traficante e foi assassinado com um tiro na nuca por engano. O outro morreu a facadas e o motivo permanece oculto. A explicação comentada nas calçadas é a mesma: suposto envolvimento com o tráfico. Discurso semelhante ao de muitas matérias, que repetem o padrão narrativo: garoto menor de idade morto na periferia, pardo ou preto, assassinado por policiais ou traficantes, suspeito de envolvimento com o tráfico, fim da matéria. A suspeita geralmente se repete nas notícias e parece suficiente para explicar os crimes, mas não é. Pergunto-me o que os “justiceiros” e o Estado fizeram por esses meninos e meninas que são mortos e matam todos os dias. Esses jovens e crianças tiveram uma família? Uma chance de estudar? Começaram a trabalhar na infância? Tiveram acesso à moradia digna, saúde, cultura, lazer, esporte, alimentação? Toda uma geração continua sendo perdida, enquanto o debate parece limitar-se ao que deve ser feito para prender e matar mais pessoas. Não me parece que deixarei de perder amigos ou vizinhos em breve. 126 126


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PANTANAL - PLANALTO AYRTON SENNA: SOBRE MEMÓRIAS, IDENTIDADES E ESTIGMAS

ARQUIVO BIBLIOTECA PÚBLICA MENEZES PIMENTEL

Capa do Jornal O Povo de 21 de novembro de 1993

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ARQUIVO BIBLIOTECA PÚBLICA MENEZES PIMENTEL

Capa do Jornal O Povo de 21 de novembro de 1995

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ARQUIVO BIBLIOTECA PÚBLICA MENEZES PIMENTEL

Diário do Nordeste, 19 de novembro de 1996

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BANCO DE DADOS O POVO

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Editorial do Jornal O Povo de 24 de fevereiro de 1997 130 130


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Pantanal – Planalto Ayrton Senna: sobre memórias, identidades e estigmas

Uma palavra pode carregar diferentes sentidos. A depender dos acontecimentos, novos significados podem ser atribuídos a um mesmo nome. A palavra que antes oprimia, conotava preconceito, pode passar a ser reivindicada, gritada com orgulho, adquirindo um sentido positivo. O caminho contrário também ocorre. Assim, a palavra Pantanal, antes escolhida devido à arborização do bairro onde moro e à influência da novela homônima da TV Manchete passou a ser relacionada à violência e à marginalidade a partir do crime nomeado de “Chacina do Pantanal” na cobertura jornalística. O assunto não se limitou ao burburinho das ruas do bairro. “Mataram foi três! Ficou sabendo? Passou no Barra Pesada”. Não se restringiu à fofoca da vizinhança. “Foram se meter com o que não devia, é o que dá...” O crime tomou os ares da cidade e a referência que se colocou para as memórias tem sangue, corpos na calçada, preconceito. “Foi lá na favela do Pantanal. Lá é assim mesmo, só tem o que não presta...” O crime contribuiu para a construção de um estereótipo acerca dos moradores do bairro. À cobertura midiática coube difundir uma ideia depreciativa sobre o lugar. As identidades assumidas pelo Pantanal são formadas não só pelos moradores, mas pela relação do lugar com o Estado, pela representação midiática do local, pela localização territorial do bairro na cidade. O Pantanal é periferia. Lugar distante do Centro. Parte recortada de Fortaleza. O estigma da violência e da criminalidade são características comuns às periferias, como explica Robson Braga na dissertação Identi-

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ficações e Recepção: O olhar dos moradores do bairro Pantanal ou Planalto Ayrton Senna sobre o vídeo popular da TV Janela. De modo geral, as comunidades periféricas das grandes metrópoles do país sofrem com dois principais estigmas: o da miséria e o da violência, estando diretamente ligados entre si. No caso do Pantanal, esses estigmas foram amplificados em novembro de 1993, quando as mídias locais – jornais impresso e programas policiais de rádio e televisão – noticiaram exaustivamente o episódio que ficou nacionalmente conhecido como Chacina do Pantanal. (BRAGA, 2010, p.25)

Com o objetivo de combater a discriminação sofrida pelos moradores do Pantanal, fazendo com que o estigma da violência não fosse mais lembrado, a Associação Comunitária para o Desenvolvimento Humano e Social (Acodehs) realiza em 2001 uma “consulta popular” no Pantanal para perguntar aos moradores se eles gostariam que o lugar continuasse com o mesmo nome. “A ideia era dar uma cara nova ao local, era dizer que nós não éramos criminosos. Nós estávamos à margem, sem sombra dúvida, mas não éramos marginais, queríamos uma identidade própria e hoje nós temos”, explica o ex-presidente da Acodehs, José Adalberto, mais conhecido como Tukano. Embora a mudança do nome não fosse suficiente para resolver o problema da discriminação, para Tukano, funcionou como primeiro passo para ser conquistado respeito pelo local. Na época, ele procurou apoio da União dos Moradores do Pantanal (UMP) para levar a ideia à frente, diante da negativa, reuniu um grupo e criou a Acodehs. A UMP fez ferrenha oposição à mudança do nome. Segundo Ribamar de Sousa, ex-presidente da associação, a vontade de mudar o nome do bairro se deu pelo constrangimento que as pessoas tinham ao dizer que moravam no Pantanal. “Foi por vergonha e preconceito. Se envergonharam da história do lugar, de chegar nos cantos e dizer que eram do Pantanal. Quando você ia fazer um crediário e dizia onde morava, por

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exemplo, ouvia um risinho irônico, mas isso é besteira de vendedor”. Para ele, a mudança de nome implica na perda da identidade do lugar. “Por mim era Pantanal, porque muita gente se orgulhava (do nome). Eu tenho o maior orgulho de dizer que moro no Pantanal. E, se riem, pergunto o motivo da risada. Tem de respeitar! Pantanal era o nome da gente”. Para combater a iniciativa da mudança de nome, a UMP cria o Movimento Viva Pantanal (MVP), responsável por juntar atores antagônicos entre si desde o início do bairro como Liege Costa e a própria UMP. Para o Movimento, manter o nome Pantanal estava ligado à preservação de uma memória que moradores, como Vicente Veloso, temiam ser apagada. O Pantanal é uma história curiosa. Muitos sabem, mas para os que chegaram depois do ano 2000 tem muito que saber ainda. (...) a nossa ocupação foi uma luta do povo por moradia, porque na época os governantes não dispunham de meios especiais para dar moradia ao povo. (...) Então, umas lideranças acharam por bem conduzir o povo a uma invasão, invasão essa que se deu em julho de 1990 (...) E como verdadeiros bandeirantes urbanos, chegamos a nos embrenhar na mata em que hoje nós vemos o Pantanal, 33 que até de nome já mudaram.

Segundo Tukano, a ideia inicial da Acodehs não era alterar o nome do bairro, mas saber se os moradores se identificavam com a denominação Pantanal. “Nossa ideia não era mudar nada, era registrar! O nosso bairro existia de fato, mas não existia de direito. Era uma logomarca: Favela do Pantanal do José Walter”, explica. “Nós víamos a necessidade de dizer para a opinião pública, pra imprensa, pra cidade, que nós existíamos e queríamos ser registrados, daí nasceu a ideia do plebiscito”. Segundo ele, era comum os moradores não colocarem o nome do bairro no endereço de currículos, temendo a discriminação. “Por várias vezes, fui ao terminal da Parangaba (na parada de ônibus do Pantanal) perguntar para onde as pessoas iam. Respondiam ‘Zé Walter, Mondubim’, mas todos desciam aqui no Pantanal”, completa.

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“A gente vê até pessoas daqui demonstrarem preconceito”, conta Fátima. Ela cita como exemplo as linhas de ônibus (...) em direção à comunidade. “Fica um monte de gente, mas ninguém admite que está vindo ou que mora no Pantanal”. (Diário do Nordeste, 15 de abril de 2001).

Em uma reunião da Acodehs, os membros da entidade fizeram sugestões de nomes para a mudança. Sete foram apontados: Conjunto Habitacional Tiradentes, Planalto Dragão do Mar, Conjunto Jardim Ouro Verde, Planalto Novo Brasil, Conjunto Habitacional Ayrton Senna, Planalto Cristo Rei e Conjunto Alameda do Sul. Na cédula de votação, todas essas opções apareciam, mas a palavra Pantanal não, ela é representada pela opção “prefere não mudar”. A cédula de votação não pergunta se os moradores querem realizar a mudança de nome, mas qual nome dariam ao bairro. ARQUIVO PESSOAL: JOSÉ ADALBERTO RIBEIRO

Cédula de votação do plebiscito

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A votação e a aprovação da mudança de nome

No dia primeiro de maio de 2001, os moradores do Pantanal vão às urnas. “Umas caixas de papelão cobertas de papel madeira com os seguintes dizeres: ‘Vote para mudar ou manter o nome do bairro, você decide’”, conta Tukano. As urnas foram colocadas em locais como igrejas e comércios. Segundo ele, havia uma folha de assinatura na qual os votantes deveriam escrever o nome completo e colocar o número do RG. “Era um plebiscito que não era oficial, diga-se, mas era a voz do povo. Pelo caráter mais informal, podemos dizer que era uma consulta popular”. Para Tukano, não fazia sentido realizar a consulta e depois guardá-la em uma gaveta, era preciso transformar “a vontade do povo” em lei. “Na época, eu tinha um link muito forte com o vereador Rogério Pinheiro (PSB à época) e eu solicitei a ele que fizesse a apresentação da lei (na Câmara) pra que o processo fosse legal”. A apuração é realizada então no pátio da Câmara Municipal. “Nós levamos dois ônibus pra Câmara, um levou só as urnas, outro levou a multidão”, diz Tukano. Após a apuração, será apresentado um projeto de lei na Câmara que além de trocar o nome do Pantanal, vai reconhecer a comunidade como um bairro. O trabalho começa a ser preparado hoje, com autoria do vereador Rogério Pinheiro. (...) Atualmente, mesmo reunindo mais de 10 mil famílias, a ocupação pertence ao bairro Prefeito José Walter. (Diário do Nordeste, 27 de junho de 2001).

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GALERIA

Cartaz de divulgação do plebiscito

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Cartaz de divulgação do plebiscito

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Um total de 11.247 pessoas votou. Aproximadamente 7% dos votantes escolheram Pantanal, enquanto 30% elegeram a opção “Conjunto Habitacional Ayrton Senna”. O nome seria ainda alterado para Planalto Ayrton Senna na redação da lei feita pelo vereador Rogério Pinheiro. O segundo e o terceiro nomes mais votados foram Jardim Ouro Verde e Cristo Rei, com 15% e 13% dos votos respectivamente. De nome de bioma e novela ao do tricampeão do mundo de Fórmula 1 Ayrton Senna da Silva (1960 – 1994), no dia 21 de fevereiro de 2003 é aprovada na Câmara Municipal a Lei nº 8.699 que estabelece o Planalto Ayrton Senna com um novo bairro de Fortaleza. Para o então secretário da Regional V, Renato Parente, “a mudança de nome não mudaria muita coisa e 34 tratava-se apenas de uma questão de bairrismo”. Já um texto publicado no caderno Vida e Arte atribui maior importância à mudança. Não se trata de um primeiro passo qualquer, mas do principal ponto de partida. Estamos falando da capacidade de nomear e das coisas que só passam a existir quando ganham nomes. (...) A construção do que nós somos (e do que os outros são) se dá com determinados usos de determinadas palavras. (...) Assim a identidade é um “tornar-se”. E aqueles que a reivindicam não se limitam a ser posicionados por ela, pois são capazes de posicionar a si próprios e de reconstruir e transformá-la. (O Povo, 3 de junho de 2003)

No dia da aprovação da lei, a Acodehs realizou uma festa. Tukano enviou email ao Instituto Ayrton Senna convidando um representante. A ONG agradeceu o convite e disse que não poderia comparecer por problemas de agenda. Tukano guardou a primeira correspondência recebida com o nome do novo bairro. Já o Movimento Viva Pantanal realizou um cortejo fúnebre anunciando a morte do Pantanal. “Liege arranjou um caixão de verdade. Todos nós vestimos blusas pretas, pegamos terços, rosários e rodamos o Pantanal todo com um carro de som, criticando a forma como feita a mudança”, conta Valdenor Moura, um dos líderes do MVP.

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ARQUIVO PESSOAL: JOSÉ ADALBERTO RIBEIRO

A presente proposta de oficialização do local (...) é, portanto, mais uma etapa na construção de uma nova identidade de seus moradores, que vêem nesta mudança uma perspectiva para alcançar junto à Administração Municipal, melhores condições de infra-estrutura para o local. A comunidade tem cerca de 105 ruas, onde moram aproximadamente 10 mil famílias. No local se encontram instaladas escolas, igrejas, supermercados, linha de ônibus, farmácias etc., legitimando, assim, a intenção dos moradores em constituir um novo bairro autônomo. (O Povo, 27 de junho de 2001).

Após a aprovação da lei e oficialização do novo bairro, tentou-se reverter a decisão judicialmente. O Movimento Viva Pantanal buscou o Ministério Público do Estado para tentar revogar a lei. Para muitos moradores, especialmente os mais antigos, houve muitas críticas ao processo. “Eu trouxe gente do Montese pra votar! E o cara podia votar quantas vezes qui

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sesse. Plebiscito era pra ser feito pelo TRE (Tribunal Regional Eleitoral) e não pra qualquer um votar como eu, que votei dez vezes só pra mostrar como o processo era irregular!”, indigna-se o morador Antônio Carlos Souza. Além disso, o MVP alegou que o nome Planalto Ayrton Senna sequer aparecia no plebiscito, mas sim a opção Conjunto Habitacional Ayrton Senna. A aprovação da lei significa ainda não só o reconhecimento do Pantanal como bairro de Fortaleza, como modifica os limites territoriais do bairro, anexando-o a comunidades adjacentes, que não participaram do plebiscito. “As comunidades vizinhas mudaram de nome sem saber, viram a matéria no jornal dizendo que agora eram novo bairro e pronto”, diz Valdenor. A lei fez com que distintos territórios, cada um com sua própria história de formação, fossem considerados um mesmo bairro. O Planalto Ayrton Senna é composto por Pantanal, Arvoredo, Renascer, Ipaumirim, Lírio do Vale, Sítio Córrego, Novo Mondubim e Marcos Freire. Até então essas comunidades eram consideradas parte do bairro Mondubim. Tukano diz que a questão dos limites do bairro foi uma decisão posterior ao plebiscito ocorrida durante a tramitação da lei. Segundo ele, para se demarcar o território do novo bairro era necessário que o Pantanal estivesse ligado a grandes avenidas e as escolhidas na Câmara Municipal foram a Avenida Costa e Silva ou Perimetral; a Bernardo Manuel, considerada sequência da Expedicionários no texto da lei; a Godofredo Maciel e a Avenida Maria Francisca da Conceição. As oito comunidades estão inseridas nesse perímetro. O Pantanal e adjacências estão em convulsão social, pois foi aprovada uma lei na Câmara Municipal de Fortaleza que cria o Bairro Planalto Ayrton Senna. (...) Estamos apresentando as autoridades competentes à forma como aconteceu o “plebiscito” que foi feito em “caixas de papelão” colocadas nos comércios do Pantanal e, não havia sequer uma comissão eleitoral para coordenar o processo (...) Os demais bairros só souberam da mudança no dia 19 de junho de 2003. Nessas comunidades sequer foi feita pesquisa ou qualquer outra consulta para saber se que-

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riam mudar o nome. Cada bairro e localidade possui as suas próprias realidades sócio-econômicas, sua história, seus valores, que devem ser preservados. (Carta do MVP, 17 de julho de 2003).

A criação do novo bairro é descrita como autoritária pelo MVP ao Ministério Público Estadual. À época, o MP ainda realiza uma pesquisa sobre a mudança de nome com 1006 pessoas, perguntando se concordavam com a alteração dos nomes dos bairros. Mais de 600 pessoas foram ouvidas no Pantanal, enquanto nas demais comunidades o número variou de 40 a 70 pessoas, à exceção do Sítio Córrego e do Lírio do Vale (uma pessoa foi ouvida na primeira e três na segunda localidade). Verificou-se que 79% das pessoas discordavam. O Movimento Viva Pantanal recorreu ao MPE junto a 19 associações dos outros bairros afetados. Em pouco tempo, os letreiros dos ônibus mudaram de Pantanal para Planalto Ayrton Senna, (apenas Arvoredo e Sítio Córrego têm linhas de ônibus exclusivas) bem como os endereços nas contas de água, luz e telefone dos moradores. Enquanto isso, o MVP solicitava à prefeitura que voltasse atrás com as alterações, alegando que a vontade da maioria das comunidades do novo bairro não estava representada nem pela lei, nem pelo plebiscito. No fim das contas, os pedidos do Movimento Viva Pantanal foram negados e os nomes nos endereços e ônibus foram mesmo alterados. O Movimento e a Acodehs ainda participaram de uma audiência no Ministério Público, mas segundo Valdenor Moura, para que a lei fosse revogada teria de ser inconstitucional ou ter havido alguma irregularidade durante a tramitação, o que não ocorreu. “Não havia o que pudéssemos fazer, a mudança estava feita e ponto, o jeito que teve foi aceitarmos e deixarmos a divergência de lado”, diz Valdenor. A nomenclatura muda, mas o lugar continua periferia. Seria o nome de fato o suficiente para uma mudança social? Para que se superasse o estigma da violência? O próprio Tukano admite que não, mas é inegável a carga negativa em torno da palavra Pantanal em decorrência da cobertura da chacina e de outros crimes, o que, para muitos, justificou a alteração.

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Muita gente ainda diz “vish!” quando digo morar no Pantanal. Quando digo viver no Planalto Ayrton Senna, alguns fazem uma expressão de dúvida, mas ao ouvirem Pantanal, sabem a qual lugar me refiro. Tenho amigos nas outras comunidades anexadas ao Planalto, alguns dizem morar no José Walter ou falam o nome anterior de suas localidades: Ipaumirim, Arvoredo, Marcos Freire, etc. No fim das contas, não é uma lei ou um plebiscito que determina para as pessoas o nome do lugar onde moram, mas o sentimento de pertencimento, de identidade, bem como os afetos relacionados não apenas àquele lugar, mas também ao nome que ele possui.

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Referências do capítulo

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Os artigos 103 e 173 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) definem o ato infracional como o crime ou a contravenção penal praticados por criança ou adolescente mediante o uso de violência ou grave ameaça.

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http://www.stds.ce.gov.br/index.php/protecao-social-especial/166-cecal Acesso em 3 de fevereiro de 2014. 3 http://apucarana.pr.gov.br/servicos/historia. Acesso em 17 de fevereiro de 2014. 4 Diário do Nordeste, 21 de novembro de 1993. 5 Diário do Nordeste, 23 de novembro de 1993. 6 Idem. 7 Editoria de Polícia do Diário do Nordeste, 21 de novembro de 1993. 8 O Povo, 29 de novembro de 1993. 9 Editoria de Cidades do O Povo, 30 de novembro de 1993. 10 O Povo, 21 de novembro de 1993. 11 O Povo, 22 de novembro de 1993. 12 Editoria de Cidades do jornal O Povo, 30 de novembro de 1993. 13 Editoria de Polícia do jornal O Povo, 25 de novembro de 1993. 14 Idem. 15 Editoria de Cidade do Diário do Nordeste, 2 de fevereiro de 1994. 16 Diário do Nordeste, 22 de novembro de 2000. Disponível em http://diariodonordeste.globo.com/2000/11/22/010073.htm

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Editoria de Polícia do O Povo, 2 de fevereiro de 1994. Editoria de Polícia do Diário do Nordeste, 20 de fevereiro de 1994. 19 O Povo, 20 de novembro de 1995. 20 O Povo, 14 de abril de 1994. 21 Idem. 22 Editoria de Cidades, O Povo, 20 de novembro de 1994. 23 Idem. 24 O Povo, 21 de novembro de 1995. 25 Editoria de Cidade, Diário do Nordeste, 19 de novembro de 1996. 26 O Povo, 20 de fevereiro de 1997. 27 O Povo, 21 de fevereiro de 1997 28 Editorial do jornal O Povo, 24 de fevereiro de 1997. 29 O Povo, 23 de fevereiro de 1997. 30 Editoria de Polícia do Diário do Nordeste, 8 de novembro de 1997. 31 O Povo, 3 de maio de 2003. Disponível em http://www.opovo. com.br/app/opovo/fortaleza/2003/05/03/noticiasjornalfortaleza,247646/morre-ex-policial-acusado-br-da-chacina-do-pantanal.shtml 32 Mapa da Violência 2013. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2013/mapa2013_homicidios_juventude.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2014. 33 Depoimento do líder comunitário Vicente Veloso retirado do vídeo História da Rua 27 de julho, produzido pelo projeto TV Janela, do Instituto de Desenvolvimento Social (IDS). Disponível no endereço http://www.youtube.com/watch?v=jFwAtq34Epc &feature=youtu.be 34 O Povo, 27 de junho de 2001. 18

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FEIRA DO PANTANAL | FOTO: GABRIELA ALENCAR

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Capítulo Quatro A Rua Quixadá

Se as ruas são entes vivos, as ruas pensam, têm ideias, filosofia e religião. (...) Mas o importante, o grave, é ser a rua a causa fundamental da diversidade dos tipos urbanos. A Alma encantadora das ruas (João do Rio) 147147


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A Rua Quixadá

Levamos quase uma hora para montar a barraca. Lúcia do Nascimento, minha vizinha, topou levar-me a tiracolo para a feira, na qual trabalha há dois anos, vendendo roupas. Meu objetivo naquele fim de semana não era comprar relógios, fraldas descartáveis, faqueiros, brinquedos, bijuterias, frutas, verduras, ou pequenos aquários, todos produtos à venda, mas buscar histórias, do tipo que se ouve de graça e começa com uma pergunta sobre o preço da mercadoria. Para conhecer a Rua Quixadá, é preciso perambular pela tradicional Feira do Pantanal, realizada nos finais de semana e em datas comemorativas propícias às vendas, como a véspera de Natal. Desde 1993, quando foi criada pelos moradores, a feira gera renda para a comunidade. Já estive inúmeras vezes por lá, conheço “de vista” alguns personagens, mas até então não havia me detido no local apenas como observadora. Na falta de uma praça, onde possivelmente seria realizada a feira, a Rua Quixadá assume o papel. Recebe ainda encontros furtivos de namorados, saídas noturnas de amigos para tomar um pó de guaraná ou comer batata frita. Lembro-me, no colégio, de alguém julgar absurdo o fato de eu não frequentar a rua. Do alto dos meus 13 anos, passei a frequentá-la, evidentemente, para evitar a acusação de não fazer parte da vida social do bairro. O nome Quixadá se deve à grande quantidade de moradores oriundos da cidade homônima do sertão cearense. No início do bairro, também era conhecida como Rua da Farmácia, pois contava com a única farmácia do lugar, pertencente à dona Salete, proprietária da Farmácia São Francisco até hoje.

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Se, como diz o jornalista Paulo Barreto, as ruas têm alma, a Quixadá é certamente a mais pulsante no Pantanal. Ela é uma jovem empolgada, louca por gente. Nos fins de semana, começa a se arrumar cedo para receber os visitantes. Às seis horas da manhã, já há bancas totalmente montadas, à espera dos bolsos cheios dos clientes. Fazendo-se de tímida, esconde-se entre maçãs, seriguelas, tomates, folhas de babosa e cebolas, mas é mesmo vaidosa, gaba-se às outras de que todos já a visitaram ou pelo menos ouviram falar dela. Assim que chegam, trazendo grandes sacolas de roupas ou descarregando caixas de frutas retiradas de Kombis, os feirantes montam as bancas. Lúcia retira de um carrinho, semelhante aos utilizados por catadores de lixo, ferros no formato de canos para montar a barraca, além de três grandes bolsas jeans – onde a mercadoria é guardada –, e uma cadeira, para quando as pernas cansarem. Tudo é posto na calçada, “depois do quebra mola, em frente à Madelê modas”, e em seguida ela começa a encaixar os ferros, um a um. Ignorante na técnica de montar bancas de feira, ajudo pouco. Ela aprendeu a montar a barraca de tanto ver o marido fazer o serviço. No começo, ele a acompanhava para ajudar e também por ciúme, ela revela. Hoje, Lúcia vai sozinha, o marido perdeu o ciúme da feira e conseguiu um trabalho no mesmo horário. Após todos os encaixes da estrutura de ferro, ela coloca uma lona preta sobre a armação. “Olha como tá velhinha, o inverno chegando e ela cheia de goteira”, diz Lúcia, com o olhar fixo na lona. Tudo montado, ela esparrama blusas, cuecas, calcinhas, shorts e pendura manequins na banca. À nossa volta, conto pelo menos seis mulheres desempenhando a mesma tarefa. O relógio marca sete horas da manhã. Lúcia começou a participar da feira vendendo apenas calcinhas, costuradas por ela. Hoje, vende diferentes tipos de roupas masculinas e femininas, a maior parte comprada na feira da Rua José Avelino, no Centro de Fortaleza, local também buscado por muitos outros feirantes do Pantanal. Ela faz empréstimos de até mil reais no Banco do Nordeste com mais cinco amigas para poder comprar as mercadorias. Para conse-

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guir um cantinho na rua, Lúcia veio um dia “sem pedir autorização a seu ninguém”, montou a barraca e começou a vender. Continuou indo outros dias, até conseguir um local fixo. A renda extra dos fins de semana ajuda no sustento da família. “Todos querem um lugar na feira” – diz, mas não é fácil conseguir um espaço sobrando, é preciso que alguém falte. Quando isso ocorre, segundo ela, dois rapazes alugam espaços, pelo preço de cinco a sete reais. Uma vez por ano, um fiscal da prefeitura visita o local para atualizar o cadastro dos feirantes junto ao órgão. Foi assim que Lúcia conseguiu a carteirinha de feirante e deixou de ser “feirante eventual” para ser “oficial”. O cadastro custou R$ 10,00. O documento simboliza que um lugar na rua a pertence, pelo menos nos fins de semana. “Nunca deixo a carteirinha em casa”, diz orgulhosa. FOTO: GABRIELA ALENCAR

Lúcia e a carteira de feirante

Todos parecem mesmo querer um pedaço da Quixadá, que sempre se mostra generosa. Durante a semana, há quem se posicione em uma esquina com uma caixa de abacates ou castanhas e apenas espere. Cedo ou tarde aparece comprador.

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O comércio é a marca da rua. A cada três lojas, encontra-se uma residência. Às vezes, o comércio fica em baixo e o dono reside junto com a família no andar superior. Além de lojas de roupas, há mercados, frigoríficos, uma sorveteria, farmácias, lanchonetes, lojas de celulares, de utensílios de cozinha, de papelaria e embalagens. Em dia de feira, a rua é dividida em duas estreitas artérias, que às vezes entopem de gente. Há uma banca em cada lateral e uma posta na parte central da rua, as três mais ou menos alinhadas. É assim ao longo de toda a Quixadá. Não adianta pressa, o espaço é pequeno, é preciso seguir devagar, a passos miúdos. Os mais altos certamente incomodam-se com a altura das barracas, não muito elevadas. A feira é dividida por setores, caminhando em direção à Rua Central, ou Joaquim dos Anjos, ficam frutas, verduras, carnes e peixes – esses últimos tratados ali mesmo. Na outra parte, há bancas de roupas, bijuterias, brinquedos, calçados. Estas têm estrutura de ferro e são cobertas por lonas pretas, aquelas são de madeira e cobertas por lonas cor de laranja ou azuis. No sábado, contei cerca de 160 barracas. No domingo, o número mais que dobra. Seu Muniz, 51 anos, vendedor de verduras, explica que, durante a semana, quando a feira não é realizada, um rapaz guarda as armações de madeira para montá-las nos fins de semana. De acordo com o tamanho da banca, o garoto cobra de 15 a 20 reais. Muniz trabalha por ali há mais de dez anos. Diz estar velho e por isso ninguém lhe dá emprego, “o jeito que teve foi a feira”. Ele e o vizinho de feira dividem a balança digital. O tomate, a cenoura, a cebola e a batata custam R$ 2,50 o quilo. Muniz trabalha em feiras de outros bairros também: Canindezinho, Granja Portugal e Aracapé. Compra os alimentos na Central de Abastecimento S/A (Ceasa), situada na Avenida Dr. Mendel Steinbruch, em Maracanaú. O local abastece quase todos os vendedores de alimentos na feira. Ele “apura” uma média de 500 reais por fim de semana. “Começo de mês é sempre melhor”, diz. Tudo é pesado em balanças digitais ou dessas de prato, mais antigas. Pessoas de todas as idades trabalham na feira,

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de adolescentes de 17 anos a idosos de quase 70. Encontram-se por lá bicicletas usadas, mercadorias nas calçadas, sabão em pó, amaciante, biscoito recheado, leite condensado, panelas, e gente, muita gente. No domingo, as bancas se estendem por ruas laterais, tomando quatro dos cinco quarteirões que compõem a rua. No sábado, apenas dois quarteirões são ocupados. A variedade do que é vendido é ampla. Óculos de sol a dez reais. Bacias, baldes, peneiras, mauses, chaves de fenda, polpas de fruta, perfumes. Há plantas medicinais: aroeira, eucalipto, camomila, erva cidreira, boldo, babosa e o que você precisar. As marcas chamam atenção: calcinhas Sensual, Glamurosa, Quero te ter, Doce Beijo. Cuecas igualmente criativas: Bruto man, Hot man, Life estyle. Blusas Loira gata, Myrla e outros nomes de mulher. Dois homens fardados fazem a segurança do local. Não os vejo no sábado, apenas no domingo. Os feirantes que cortam peixe e carnes usam avental e lavam as mãos em grandes baldes brancos posicionados atrás das barracas. Enxugam o suor na manga da camisa. Alguns dividem o serviço, um corta as carnes, outro recebe o pagamento e passa o troco. O vozerio na rua é constante. – Diga, meu amor! Tem macaxeira, batata doce. Vai comprar com dinheiro miúdo? – pergunta a feirante, amorosa. – Mandioca da Serra da Meruoca! Aqui tem goiabinha se-le-cio-na-da. Seis maracujás são dois reais. A cebolinha tá boa! Lu-xo! Maçã, eu faço cinco por dois reais! – grita outro. – É dois reais a manga, o abacate, a goiaba e ninguém quer! Vai acabar, vai acabar! Lá vem a feeeeeira! – Bola pra menino jogar a um real. Um real pra olhar e outro pra levar! Os moradores da rua parecem não se incomodar com o barulho, alguns colocam banquinhas também. Quem já possui comércio na Quixadá geralmente não gosta de barracas na frente. Se o feirante insiste, “dá briga”. Sebastião Moura, 48 anos, já trocou de lugar quase seis vezes por conta dos comerciantes. Agora, com a banca colocada na parte central da rua, o problema parece resolvido. Durante a semana, ele trabalha em feiras nos bairros Rodolfo Teófilo, Parque Dois Irmãos e Jar-

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dim União. Diz vender mais no Pantanal. No domingo, conta, muita gente de fora do bairro trabalha por ali também. “Eles geralmente vêm do Parque Dois Irmãos, da Messejana, do Aracapé e do Itaperi”, enumera. Num “dia bom”, ele lucra de 300 a 400 reais. Aqui, acolá, explica, alguém leva uma mercadoria sem pagar, mas, “fazer o quê?” Para quem vende roupas, como ele, o ano de 2013 está “fraco”, o lucro tem sido irrisório. “Feira é assim, tem dia bom e dia ruim, às vezes, a pessoa se engraça de alguma coisa, às vezes não”, conforma-se. Mesmo com o movimento fraco, não se pode faltar. “Se você não vem um dia, no outro já dizem que você morreu ou foi presa, é uma comédia (risos), mas, se não aparecer três semanas seguidas, perde o lugar mesmo”, explica Lúcia. Francisca Pereira da Silva, mas conhecida como Chaguinha da Galinha, também vive de ser vendedora em feiras. Aos sábados, ela está na Feira do Pantanal, na qual diz lucrar de 500 a 600 reais, apenas com a venda de galinhas. O quilo custa oito reais, o produto é trazido em um carro por um homem para o qual trabalha. Há seis anos é feirante “de carteirinha” no Pantanal. Ela reside na Messejana e já vendeu frutas, feijão e carne. Há 39 anos é feirante e criou os sete filhos assim. De manhã está em feiras pela cidade, à tarde faz artesanato em casa. Segunda-feira é o dia de folga, no resto da semana está nos bairros Antônio Bezerra, Sítio São João, Aracapé, Bom Jardim e Parque Dois Irmãos. O dia dela começa às três horas da madrugada. Chega a todas as feiras por volta de cinco horas. Com o trabalho, consegue uma renda média de 2 mil reais por mês. O chato de ser feirante, conta, são os momentos em que não há nada para fazer. Nem clientes para comprar, nem conversa para jogar fora. Nesses intervalos ociosos, ela faz crochê ou corta retalhos, com os quais faz tapetes para vender. Pergunto que conselho daria para quem quer começar a ser feirante, ela não titubeia na resposta. “Não faça confusão com ninguém na feira, compre e venda barato. Comece com frutas e verduras ou roupas, as carnes dão mais trabalho, exigem uma grande agilidade, é preciso mais experiência”. Chaguinha ensina também que é necessário dar o mesmo “nome”

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que o vizinho para a mercadoria, caso contrário, dá confusão. O nome é o preço. “Se meu colega diz que é seis reais, tenho de acompanhar (o preço), porque eu não posso deixar ninguém no prejuízo pra não fazerem o mesmo comigo”. Os preços são parecidos, pois “não adianta vender muito caro, porque ninguém compra, e se vender muito barato não lucra”. Converso com Chaguinha sob a sombra de uma banca, mas quem não possui nem sombra, nem banca, arruma a mercadoria no chão mesmo, sobre uma lona. É o que faz Aquino, vendedor de chinelas para adultos e crianças. No sábado, ele está no Pantanal e no domingo na feira da Messejana. Ele mora no bairro Montese e tem conseguido lucrar apenas 30 reais nas últimas semanas. Veio de Aurora, no interior do Estado, para trabalhar nas feiras de Fortaleza. A amiga dele, Kátia, empresta-lhe a sombra da barraca. Segundo ela, o ano foi de poucas vendas. A culpa talvez seja dos cartões de crédito, ela formula a hipótese. “Aqui a gente não pode usar cartão porque as peças são muito baratas e o povo só quer comprar nesses cartões de crédito agora”, queixa-se. Ela diz ter comprado o espaço de outra feirante por 500 reais. A mulher queria desistir da feira e sabia que o lugar era valioso. “Foi barato, hoje tem gente que vende por dois mil reais”, revela. “Olha o pé, olha o pé!” – avisa um rapaz no meio da multidão. Não vejo as mãos dele e imagino que carrega algo pesado e pode machucar o pé de alguém se não for cuidadoso. Perco-o de vista, quando ele entra em um frigorífico, mas antes vejo o que carrega: dois pés de boi, sem a pele, crus. Pouco tempo depois, ele sai do frigorífico segurando os dois pés de boi bem cortados em fatias, embora ainda inteiros. Novamente, ele avisa ao povo. “Olha o pé! Olha o pé!”. Tac, tac, tac. Ouço as facas batendo na carne, quando o vozerio diminui. Permaneço pouco tempo na parte das carnes, é realmente difícil acostumar o nariz ao cheiro. Para fugir da multidão, que não para de lotar os corredores da rua, posiciono-me atrás de uma barraca, encostando-me à parede de uma casa, cuja porta de madeira velha está semiaberta. Um homem entra e sai rapidamente do casebre,

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abastecendo pequenas bacias com batata, cenoura, beterraba e chuchu. Permaneço algum tempo perto da porta até ser notada, junto com o bloquinho e a caneta. O homem me olha desconfiado, mas não diz nada. – Quanto é a baciada de verdura, moço? – pergunta um comprador. – Dois reais. – Ave Maria! Eu queria só uma, meu senhor! O homem acha graça da própria piada e compra a “baciada” mesmo julgando o preço alto. Tac, tac, tac. Continuam batendo os facões cortando peixe e carne. Tac, tac, tac. Meu esporte favorito é o mesmo do Romário, cantam dois jovens vendedores de frutas. Tac, tac, tac. A baciada custa dois reais em toda banca. Escamas voam em quem fica perto dos peixes. O barulho e o calor são atordoantes. Mais distante da Rua Central, o cheiro de carne crua diminui, o barulho também, e surge um cheiro gostoso de salgadinhos. Ouço um quase silêncio na parte em que roupas são vendidas. Estranho a calmaria. Como minha anfitriã, a rua, vejo-me buscando os espaços mais lotados de gente. No meio do povo, ambulantes anunciam: – Alho roxo! Alho roxo! – Doril, Dorflex, Neosaldina! Barbeador! – tudo no mesmo caixote de madeira de um velhinho. Uma menina se distrai varrendo restos de cigarro no chão. Ela coloca tudo numa pá e depois em um cantinho perto da calçada. Depois, espalha tudo e volta a varrer. Uma mulher idosa, vendedora de verduras, toca-me o ombro e olha-me fixamente nos olhos. “Se levar 20 reais ganha um brinde especial. Não vai levar nada, não?” – pergunta com ar de ansiedade. Assusta-me a inquirição repentina, gaguejo um agradecimento e sigo. Observo-a de longe alguns instantes. Ela leva o tempo beliscando pedacinhos de tapioca, enquanto anuncia em alta voz o preço das mercadorias. Um casal trajando camisetas pretas vende camisetas pretas de bandas de rock – Nirvana, ACDC, Legião Urbana – a R$ 17,00. Vende ainda camisas brancas de anime – Naruto, Death Note, Dragon Ball Z – a R$ 15,00. Há também series

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e filmes nas estampas: The Walking Dead, Big Bang Theory, Resident Evil. Quanto mais colorida, mais cara é a camisa. É a única banca a vender roupas do tipo na rua inteira. Pertence ao Marcos, que criou a própria linha de camisetas: Ani Mark. Conserte o seu relógio ou compre um novo por preços que variam de dez a 25 reais. Alicate, tesoura, pinças de alguns tamanhos e chave de fenda são as ferramentas do relojoeiro. Ao lado dos relógios há também dois cadernos e uma Bíblia. Mais a frente, dois rapazes dizem que é preciso ter esperança. Um segura a Bíblia e fala ao microfone, com um entusiasmo que quase lhe faz saltar uma veia da testa, o outro distribui panfletos com a mensagem de que existe vida após a morte. Irmão Carlos Anderson e Irmão Chagas dizem que Jesus está chegando. “É uma igreja aí, é?”, incomoda-se com a pregação uma menina, chupando pirulito. Manequins pela metade e manequins inteiros vestem as roupas à venda. Em dia de feira, todas as ruas que cruzam a Quixadá se tornam estacionamento, os ônibus desviam a rota para não passar perto de ruas próximas. No sábado, até as 13 horas, a feira acontece; no domingo, até 14 horas vê-se gente comprando. Algumas barracas permanecem armadas até o fim da tarde. Umas poucas permanecem na rua durante toda a semana. Para abrir um comércio na rua, é preciso capital, mas para nomeá-lo basta unir o nome de alguém à palavra variedades: Lívia Variedades, Márcio Variedades, Vânia Variedades, Ana Variedades, Zeneide Variedades, Minny Variedades, Neuda Variedades, J e C Variedades. O nome pode ainda ser escrito de trás para frente ou evocar o preço das mercadorias. Pró game AMITAF; Loja dos 7, qualquer peça a sete reais; Loja 9,99. Há desde fachadas coloridas, até as sóbrias, com poucas cores. Algumas optam por grafitar um nome e um desenho. Crispim, chaveiro e vendedor de rações, desenhou um pássaro e chaves na fachada; Samara Modas vende roupas femininas e escolheu o desenho de uma mulher. Muitos dos grafites das fachadas, bem como outros espalhados por colégios do bairro, têm a assinatura de Davi Favela, o apelido que Davi Viana, 32 anos, ganhou por conta do

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trabalho de divulgação do grafite e do hip-hop em bairros da periferia de Fortaleza. Davi chegou ao Pantanal com a família em 1992, aos 11 anos. Há mais de 15 anos, reside na Rua Quixadá. Com o apoio da Prefeitura de Fortaleza, ele realiza, na própria casa, oficinas de grafite e desenho para jovens do Pantanal e de outras comunidades. No ateliê, Davi me mostra a assinatura dele nos grafites e a de colegas grafiteiros e grafiteiras. Já vi a maioria das assinaturas nas ruas do bairro. Um dos autores dos símbolos, conta Davi, está preso em decorrência da pichação. “Pichar é um passo para a criminalidade, porque começa a ter a adrenalina, começa a pular muro, se arriscar para chegar aos locais mais difíceis. Muitos começam pequenos furtos assim”. Além disso, ele explica, os sprays possuem gás propano e solvente na composição, por conta disso, algumas pessoas podem ficar viciadas na tinta, por isso a necessidade de usar máscaras. Davi pichou nas ruas do bairro dos nove aos 19 anos. Naquela época, relata, deixava nos muros mensagens de crítica ao descaso social e retratava problemas da comunidade, como a violência e as drogas. Ele diz observar a crítica social cada vez menos presente na pichação do bairro, que se resumiria às assinaturas dos pichadores. Hoje, Davi vive como grafiteiro. Segundo ele, o Pantanal foi um dos primeiros bairros de Fortaleza a difundir o grafite. Há oito anos, ele ensina a arte em presídios. “Muitos até trabalham com o grafite quando saem das prisões, mas a maioria volta a ser preso ou é morto quando sai”, lamenta. Para Davi, não se deve confundir grafite com pichação. O primeiro dialogaria melhor com diversos grupos e classes sociais, enquanto o segundo atingiria a um grupo restrito de pessoas. Ele sente uma forte criminalização em torno das duas formas de expressão. “No fim das contas, os dois são considerados dano ao patrimônio público. Se a pessoa tem autorização é diferente, caso contrário, não importa se é pichação ou grafite, é entendido como crime”. Na Rua Quixadá, um grafite feito na parede do que um dia foi um frigorífico divide espaço com assinaturas pichadas. Chama atenção uma frase do muro.

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MEUS IRMAOS, VAGABUNDO DE VERDADE E AQUELE QUE DEIXA VIVO, E TAMBEM SE MANTEM VIVO!

FOTO: GABRIELA ALENCAR

Pichação e grafite dividem muro na Rua Quixadá

Após a balbúrdia de sons da manhã, durante a tarde a Quixadá é uma rua tranquila, quase silenciosa. No domingo, por volta das 14 horas, quase todas as barracas estão desmontadas, cinco delas, todavia, resistem até a noite. Às 16 horas, um menino recolhe ferros e pedaços de madeira em um carrinho de mão. Pombos pousam no lixo que ficou da feira. Dois bares estão abertos: um toca funk, o outro, música brega. Idosos sentam-se à calçada para conversar. Latas de cerveja boiam na lama. Uma mulher lê a Bíblia, uma moça lê o jornal. Na falta de garagens, as casas pequenas usam a rua como estacionamento. Wilson Alves, 80 anos, e Maria Ferreira, 74 anos, marido e mulher, quiseram um grafite na frente de casa na

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época da Copa das Confederações. Davi Favela assina o trabalho: uma bandeira do Brasil pela metade, nas cores verde claro, azul e branco. Substituindo a frase “Ordem e Progresso” no centro da bandeira, está inscrita a sigla P2K (Paridos pelo Caos), grupo de grafiteiros ou crew integrado por Davi. Diariamente, por volta das 16 horas, seu Wilson e dona Maria põem cadeiras brancas de plástico na frente de casa para falar sobre a temperatura, o parente do interior que ligou prometendo visita, e fatos comezinhos como o que terá na janta, se foi o cachorro ou o gato que comeu o pé de malva, que já crescia tão bonito. Mas, na maioria das vezes, não conversam muito, contentam-se em mergulhar em pensamentos. Mesmo com o sossego do fim do dia, parece que ainda ouço o alarido de vozes falando de preços, pechinchando. Os fins das tardes de domingo são de melancolia, revela-me, baixinho, a Quixadá. A solidão, felizmente, é temporária. Amanhã é segunda-feira, os comércios reabrem, algumas bancas voltarão a ser montadas e o vai e vem de pessoas se estenderá desde o começo do dia até a noite. FOTO: GABRIELA ALENCAR

Fim de tarde depois da feira na Rua Quixadá

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PANTANAL PANTANAL - PLANALTO - PLANALTO AYRTON AYRTON SENNA: SENNA: A LUTA SOBRE PELO MEMÓRIAS, DIREITO À IDENTIDADES MORADIA EMEFORTALEZA ESTIGMAS

Entrelinhas

Seu Antônio e o chapéu

Estive na Rua Quixadá em três momentos. No sábado, apenas de manhã, e no domingo pela manhã e à tarde. Durante as manhãs, imaginei que pudesse passar despercebida, em virtude da quantidade de gente na feira. No sábado, foi impossível, a feira estava quase vazia. Avisaram-me que nesse dia o movimento é mais fraco. Fiquei conhecida como a contadora de Lúcia, “contratada para anotar tudo”, disseram. Foram vários os convites de “venha, contadora, anote o meu apurado do dia também”, seguidos de gargalhadas. Quando comecei a fotografar, muitos se animavam e faziam poses, sorriam, outros se escondiam, incomodavam-se com a minha presença e vinham perguntar em tom de curiosidade e desconfiança: “Isso aí é pra que, menina?”. Quando ouviam a explicação, alguns respondiam mais tranquilos: “Vou querer meus direitos de imagem” ou apenas passavam a me ignorar. Outros ordenavam: “Não tire foto minha não, moça!” Mas, seu Antônio Lopes, 65 anos, vendo-me fotografar o grafite de algumas lojas no fim da tarde de domingo, convidou-me a fotografar a frente da casa dele também. Eu disse que faria a foto, mas com a condição de ele aparecer nela. Antônio estava na frente da casa de amigos, conversando na calçada, fomos andando até a residência dele, cujo muro é verde e o portão preto é pichado com letras brancas. Quando chegamos, pediu-me para esperar. Retornou, instantes depois, com um chapéu na cabeça. “Isso é pra sair mais bonito na foto?” – brinquei. Ele riu da pergunta. Antônio é do interior do Ceará e vive no Pantanal desde 1995, mora sozinho e guarda como recordação a imagem do pai, já falecido, sempre usando chapéu. Quando lhe mostrei a foto, a exclamação foi certeira. “Mas, olha, não é que fiquei parecido com meu pai mesmo! (risos)”. 161 161


Ainda há muita história por vir

Os muros pedem “paz nas quebradas”. A mensagem dos grafites é de que “sem justiça, não haverá paz”. As pichações reproduzem assinaturas e desenhos. Em algumas partes do Pantanal, a cada três casas, uma tem o muro marcado de letras pichadas. Na Rua Maria Francisca da Conceição, 16 novas casas de dois andares foram recentemente construídas no terreno de seu Soares. O térreo será para lojas e a parte de cima funcionará como residência. No local onde há cerca de 20 anos “era só matagal”, construções semelhantes se multiplicam. Segundo dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Planalto Ayrton Senna conta com mais de 11 mil domicílios particulares, sendo 92% desse total composto por casas1 . Cerca de 4% moram em condomínios e 2% em apartamentos. Segundo o órgão, são 39 mil habitantes ocupando uma área de 3,28km². Diferente da realidade do começo do bairro, aproximadamente 95% dos moradores tem acesso a abastecimento de água e quase 100% tem acesso à energia elétrica. Ainda de acordo com o IBGE, aproximadamente 87% das pessoas com mais de cinco anos de idade no bairro são alfabetizadas. Com relação à renda domiciliar per capta, a maioria dos moradores tem rendimentos que não ultrapassam um salário mínimo. Os dados se referem a moradores com mais de 10 anos de idade. Mais de 60% recebem até um salário mínimo. Cerca de 12% recebem de um a dois 1

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Os dados são referentes ao Planalto Ayrton Senna como um todo e não apenas ao Pantanal.


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salários minímos. A porção dos que ganham mais de dois salários mínimos figura em apenas 2% dos moradores. O Pantanal está inserido na Regional 5, a mais populosa e mais pobre de Fortaleza, com rendimentos médios de 3,07 salários mínimos. A principal atividade econômica da área é o comércio. Na Regional, estão concentrados apenas 2,89% dos empregos formais do município. A taxa de acesso à rede de esgoto é de apenas 24,56%, o pior ín2 dice entre as seis regionais da cidade . Os números referentes ao bairro não são mesmo nem um pouco animadores. O Planalto Ayrton Senna ocupa a sétima posição entre os bairros com pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Fortaleza. Para se ter uma ideia, o bairro com melhor índice na cidade é o Meireles com 0,953 enquanto o Planalto aparece com 0,168. A classificação do IDH varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de 1 melhor o nível de desenvolvimento humano e quanto mais próximo de 0 pior o nível de desenvolvimento. O índice considera renda, educação e longevidade das pessoas. O IDH por bairro é elaborado pela Secretaria do Desenvolvimento Econômico (SDE) de Fortaleza com base nos dados do Censo Demográfico 2010. Os dados ruins infelizmente não distam da realidade. Diante disso, moradores trabalham para melhorar o lugar. Enquanto no começo do bairro só havia a União dos Moradores do Pantanal e a Associação São Francisco, representada até hoje por Liege Costa, atualmente o número de associações se multiplicou. “Ainda há bastante coisa que o nosso bairro precisa, como urbanização da lagoa e saneamento básico. Desde 1992, fala-se também em construir um centro cultural. Faltam lideranças para lutar por isso”, diz Valdenor Moura. Ele é o atual responsável pelo Instituto de Desenvolvimento Social (IDS), localizado na Rua Planaltina. O Instituto foi fundado em 1999 por 2

Dados da Pesquisa Cartografia da Criminalidade e da Violência na cidade de Fortaleza 2010, elaborada pelo Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética (Labvida) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Disponível em http:// www.uece.br/labvida/dmdocuments/relatorio.pdf

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Valdenor, Geliene Queiroz, Célio Ferreira e Noely Barros, todos antigos moradores do Pantanal. O IDS desenvolve o projeto TV Janela na Nossa Rua, que produz vídeos sobre personagens e histórias do Planalto Ayrton Senna. A TV Janela é definida por Valdenor como uma TV de rua. Ela exibe vídeos produzidos por jovens do bairro, capacitados pelo projeto. A proposta do IDS é promover ações de combate ao desemprego e de incentivo à formação de grupos de produção audiovisual na comunidade. A cada exibição, cerca de 300 pessoas se reúnem para assistir aos vídeos exibidos em um telão montado na rua. Em 2013, o projeto se encontra desativado em virtude da falta de recursos públicos. A Associação de Mulheres do Planalto Ayrton Senna (Ampase), localizada na Rua Apocalipse, também trabalha para o desenvolvimento social do bairro. Criada em março de 2008, a entidade teve início a partir da reivindicação de mulheres por melhor atendimento no posto de saúde. O principal problema era a falta de ginecologistas. Segundo Sônia Guerra, atua presidenta da entidade, o problema ainda não foi resolvido, mas a Ampase consegue atuar com relação à violência contra a mulher no bairro. “Oferecemos cursos com o objetivo de libertá-las da dependência econômica do opressor. O curso de corte e costura já formou 200 mulheres, mas há também o de manicure, de cabeleireira e programas de primeiro emprego para os jovens”, diz Sônia. A Ampase promove ainda ações de combate ao uso de drogas e trabalha pela preservação do meio ambiente. De acordo com Sônia, a entidade possui 500 mulheres cadastradas. A associação é apoiada pelo Banco Paju, de Maracanaú, e consegue projetos com a Secretaria de Trabalho e Desenvolvimento Social do Estado (STDS) e a Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Fortaleza (SDE). Sempre na segunda semana de junho, desde 2008, a Ampase também realiza festas juninas na Rua Quixadá. Metade da rua é fechada para os festejos, nos quais o momento mais esperado é a apresentação de quadrilhas.

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Já na Rua Paranaí, fica o Conselho de Integração Social (IntegraSol). A entidade é ligada à ONG internacional Visão Mundial e trabalha a economia solidária, além de projetos com música, ballet, oficinas sobre Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST’s) e cursos de informática. A ONG trabalha ainda encaminhando jovens para o primeiro emprego. O IntegraSol surge logo após a criação do Programa de Desenvolvimento de Área (PDA) na UMP em 1998. O projeto deu tão certo que foi necessário criar uma associação responsável exclusivamente pela gestão do PDA. Nasce, assim, o IntegraSol. Atualmente, mais de 1600 crianças, adolescentes e 900 famílias, com renda inferior a um salário mínimo, são beneficiadas pela instituição. O Pantanal se ressente da falta de atividades culturais e opções de lazer para os moradores. Há o campo Vila Nova, onde há futebol nos finais de semana. Adolescentes e crianças soltam pipa e jogam bola diariamente no lugar, mas são as ruas que mais servem de campo. Dois pares de chinelas imitam traves e quando algum veículo se aproxima o jeito é sair correndo ao primeiro som de buzina. Não se pode esquecer, é claro, das calçadas. Mesmo estreitas, bastam para que Josés e Marias coloquem suas cadeirinhas e engatem a prosa do fim de tarde ou apenas olhem a rua. Aliás, olhar não, observar. Não se trata apenas de uma mudança de verbos, mas de atitude. Observar imprime muito mais atenção ao simples gesto de olhar. Pergunte à dona Toinha quem casou, morreu, mudou de endereço ou mesmo dormiu fora de casa. Ela oferece informação de última hora aos interessados. Alguns se incomodam com o estilo de vida de Toinha. Aos quais ela responde que se importam demasiadamente com a vida alheia. Deve estar certa, no fim das contas. Cada um tem o lazer que mais lhe apraz, convém ou pode ter. Há escolas públicas e particulares no bairro, mas apenas uma creche, que funciona junto ao único posto de saúde do local, o Cies Zélia Correia, que em 2013 se encontra em reforma. O Planalto Ayrton Senna ainda não possui

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projeto de regularização fundiária. Segundo Carolline Braga, assessora da Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor), isso não ocorre tanto por não se tratar de uma área pertencente à prefeitura, quanto por não haver registro dessa demanda nas Assembleias do Orçamento Participativo (OP). As pessoas seguem então sem ter o “papel da casa”, mas a regularização vai além disso como me explicou a presidenta da Federação de Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF), Gorete Pereira. “Passa pela regulação da terra em si, porque a pessoa terá o documento da casa, mas também implica a garantia de uma moradia digna, de uma infraestrutura de qualidade para a população,” explica. Muito se avançou no bairro. Como me disse Bárbara Sousa, para os moradores antigos parece fantasia que “do nada tenha se erguido, pelas mãos do povo, todo um bairro”. Na falta de energia, os moradores fizeram “gambiarras”; na falta de água, cavaram cacimbas; na falta de saneamento básico, improvisaram as próprias fossas sépticas; sem acesso ao transporte público, conseguiram ônibus alternativos; a carência de empregos foi suprida com a criação da Feira do Pantanal facilitada pela proximidade com a Ceasa. As lideranças comunitárias têm de fato muito do que se orgulhar quando recordam de como era o bairro em 1990. Diante do que ainda há por fazer no local, desejo que a vontade de lutar nunca cesse. Não diminua. Jamais acabe. Afinal, problemas não faltam. Se você é de fora e quer saber sobre essa realidade, basta conversar com algum morador, mas pergunte também das coisas boas, não só das carências. Falarão, certamente, das pessoas, dos vizinhos-amigos, que construíram e constroem o bairro a cada dia. Seja no Pantanal, no Planalto Ayrton Senna, pelas ruas da cidade enfim, não faltam causos, sofrimentos e alegrias para se ouvir na mesa do bar, na fila comprida do posto de saúde, ou nas calçadas das Marias e dos Josés.

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As páginas finais dos livros não são de fato as últimas da história, pois o tempo e as narrativas, diferente de nós, não se acabam, não se prendem, não se despedem. As histórias mudam a cada nova pessoa que vive, conta e lê as experiências. Esse foi apenas o meu jeito de contar.

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PANTANAL (1991) | FOTO: VALDENOR MOURA

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Epílogo

Toda rua tem seu curso Tem seu leito de água clara Por onde passa a memória Lembrando histórias de um tempo Que não acaba. A rua (Composição de Gilberto Gil e Torquato Neto) 169 169


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Memórias são fugidias. As versões de um relato mudam a depender de quem o conta. A imaginação, por vezes, insiste em completar o que a mente não recorda bem. Contar fatos significativos da história de um bairro com mais de 20 anos de existência implica na confiança e na valorização das lembranças dos moradores. No processo de apuração, não vasculhei só papeis, atas, retratos, mas também emoções, dores, mágoas, arrependimentos, erros e acertos. O Pantanal não é formado apenas de uma estrutura física, erguida em tijolo, suor e cimento, mas é composto por histórias de vida modificadas pela criação de um bairro no meio do caminho. A maior parte dos entrevistados do livro são moradores antigos como dona Barbara Sousa vinda do interior do Estado; Valdenor Moura, então um jovem de vinte e poucos anos se mudando com os pais; Liege Costa, que deixa de lado um pouco de si própria pela política e pela ocupação do bairro; meus pais, que começavam a constituir uma família e queriam realizar o sonho de ter a casa própria. Cada pedaço de chão, cada casa, cada rua tem um significado diferente para mim do que tem para as pessoas participantes da construção do bairro. Não posso alcançar o sentido que possui para elas, só posso imaginar e tentar traduzir nas letras do papel. Meu horizonte inicial para o livro eram apenas as mobilizações em torno da União dos Moradores do Pantanal. Ouvi muito sobre elas nas histórias trazidas por meu

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pai. O primeiro passo da apuração foram os documentos dele relacionados à UMP, guardados em uma velha mala no guarda-roupa. Era um domingo e esparramamos tudo na mesa da cozinha. À medida que eu fotografava papel por papel, ele rememorava acontecimentos. Cresci ouvindo-o falar sobre a importância da união do pobre, sobre os desafios da vida em comunidade e sobre o quão importante é tentar cultivar o espírito de coletividade nas pessoas. Antes mesmo de saber qual seria o tema do Trabalho de Conclusão de Curso, só tinha certeza de uma coisa: faria livro-reportagem. Enxergo na escolha desse suporte a melhor possibilidade de trabalhar conjuntamente Jornalismo e Literatura por meio da escrita. O livro-reportagem, como explica Edvaldo Pereira Lima na obra Páginas Ampliadas: O livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura, possibilita oferecer uma ampliação do fato e um aprofundamento em aspectos sociais, históricos, culturais e políticos. Geralmente não é possível fazer isso no dia-a-dia da profissão de jornalista por questões como o interesse da empresa de comunicação, a falta de recursos financeiros ou de tempo hábil para o profissional mergulhar no fato. O objetivo deste trabalho foi oferecer uma abordagem mais profunda e contextualizada, trazer outro olhar além do já difundido na mídia local sobre a comunidade. A intenção é fugir do enfoque marcado pelo estereótipo da violência, ressaltado principalmente em programas policiais. Durante a apuração, as entrevistas variaram de meia hora a tardes inteiras. Bárbara Sousa foi a primeira entrevistada, Gorete Pereira a última. Valdenor e Liege me receberam para duas tardes de conversa. Uma das entrevistas mais difíceis de conseguir foi com meu pai. A rotina de trabalho mal o deixava parar em casa. Aos domingos, quando ele tinha folga, estava muito cansado, além de muito incomodado em ter de remexer o passado diante de um gravador e da filha, metida a jornalista. Depois de alguma insistência, deu certo. Ao som de Nelson Gonçalves, o boêmio, a conversa finalmente fluiu em um domingo. Dona Hilda

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também me exigiu mais esforço. Numa manhã de sol quente, levei algum tempo de caminhada pelas ruas do bairro José Walter para encontrar o endereço dela. Voltei para casa com alguns calos e um tornozelo torcido, por conta de uma calçada ser mais alta do que eu havia notado. O único olhar de fora do bairro no início da ocupação é de Amândio Setembrino. Ele fora professor do meu namorado, que felizmente lembrou-se de que Amândio falava em sala de aula detalhes da história do bairro. Nós o encontramos por acaso na rodoviária Engenheiro João Tomé, de Fortaleza. O ônibus já estava à espera, mas houve tempo para que eu anotasse números de telefone para entrar em contato depois. Este trabalho não teria sido possível sem a gentileza dos entrevistados em me confiar pedaços de memórias do bairro. Eles guardavam recortes de jornais ou fotos de algum momento significativo para eles nos últimos 20 anos da comunidade. A pesquisa na hemeroteca da Biblioteca Pública Menezes Pimentel e nos bancos de dados dos jornais Diário do Nordeste e O Povo também foram fundamentais para ser formado um horizonte possível para a construção da narrativa. Entendo um pouco melhor o que João do Rio quis mostrar quando disse que as ruas têm alma. “Oh! Sim, as ruas têm alma!” – exclama ele em A alma encantadora das ruas. Elas não têm personalidade monocromática. Vermelhas de raiva. Amarelas sem graça. Azuis de tranquilidade. A maioria é calada nas horas mortas da madrugada. Quando quase todos dormem, as ruas sonham, escutam o silêncio. Falar delas é adentrar assunto inesgotável. Os tijolos das paredes, as pedras dos calçamentos sabem mais segredos do que se imagina. Se eu visitasse todas as ruas do Pantanal, certamente teria novas e diferentes histórias e personagens para conhecer em cada uma, mas um livro só não caberia tanto. Desconfio que dezenas ainda não abarquem a quantidade possível de narrativas resultante do cruzamento das ruas. São incontáveis os relatos possíveis

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e olhe que o Pantanal é apenas um jovem a completar 24 anos no dia 27 de julho de 2014. Depois de flanar por cinco ruas (27 de julho; Chico Mendes; Planaltina; Apucarana e Quixadá), realizar 16 entrevistas com duração média de uma hora cada e inúmeras outras mais rápidas com moradores. Após ler sobre livro-reportagem, sobre direito à moradia e viver uma rotina de cinco a nove horas de escrita (a depender da saúde e da disciplina da autora), posso dizer que, aos poucos, o Pantanal delineou-se para mim como outro lugar, ainda sendo (espacialmente) o mesmo de antes, adquiriu sentidos diferentes. A cada entrevista, luzes se acendiam e eu via mais traços. Vejo marcas antes ocultas do Pantanal. Sinto-me mais intima do meu bairro. De alguma forma, consigo visualizar nas luzes da noite, nas pessoas, nas ruas, nas casas erguidas, na minha própria casa, um passado, uma história, que fazem do lugar o que ele é, com o que há de bom e ruim, com o que oprime as pessoas e com o que as dá alento. Chego a estas últimas páginas, depois de uma jornada intensa, cansativa e cheia do aprendizado que é lançar-se à árdua tarefa de escrever. Mas não só difícil, escrever é também, e principalmente, prazeroso. Desejo que este trabalho possa contribuir um pouco para a produção de livros-reportagem. Que seja uma produção cada vez mais vasta. Acredito que o livro pode contribuir ainda para difundir e preservar as memórias do Pantanal-Planalto Ayrton Senna e de seus moradores. Não só eles habitam o lugar, como o lugar os habita. Finalizo essa experiência sentindo-me mais habitada pelo local onde moro e habitando mais esse mesmo local. Ofereço ao bairro e às pessoas que nele residem esse pedacinho da história deles em formato de livro-reportagem.

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Bibliografia

BÁRBARA, Vanessa. O livro amarelo do Terminal. São Paulo: Cosac Naify, 2008. BRAGA, Robson. Identificações e Recepção: O olhar dos moradores do bairro Pantanal ou Planalto Ayrton Senna sobre o vídeo popular da TV Janela. Disponível em: <http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/704/1/2010_Dis_RSBraga.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2013. LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: o livro reportagem como extensão do livro e da literatura. São Paulo. Editora da Unicamp, 1995. LOWY, Michael. Marxismo e cristianismo na América Latina. Disponível em: <. http://www.scielo.br/pdf/ ln/n19/a02n19.pdf>. Acesso em: 9 dez. 2013. MAIO, Ana Maria Dantas de. Comunicação e representações sociais: o Pantanal que os brasileiros (des) conhecem. Disponível em: <http://www.ec.ubi. pt/ec/05/pdf/11-maio-comunicacao.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2013. MELO, João Alfredo Telles (Org.) Reforma agrária quando? CPI mostra as causas da luta pela terra no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2006.

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PEDROSA, George. Palmas e Palmeiras. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2012. RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Martin Claret, 2007. SALGADO, José Ronaldo Aguiar. A Crônica Reporteira de João do Rio. Laboratório de Estudos da Oralidade UFC/UECE, 2006. Arquivos pessoais consultados de José Adalberto Ribeiro, José Ribamar de Sousa, Liege Costa, Maria da Penha, Valdenor Moura e União dos Moradores do Pantanal.

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Lista de entrevistados

Amândio Setembrino de Sousa Araújo Ana Lúcia Nogueira da Silva Antônio Carlos Souza Bárbara Sousa Francisco Fernando Silva Francisco Luiz de Sousa Francisco Pereira Alves, o Chico do Chapéu Preto Gorete Fernandes José Adalberto Ribeiro, o Tukano José Ribamar de Sousa Liege Costa Luiz Bezerra da Silva Maria da Penha ou dona Izomar. Maria Hilda Barros Ozelita Pereira Sombra Valdenor Xavier de Moura

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Além das fontes citadas na página anterior, houve as encontradas em entrevistas mais rápidas, nos momentos em que estava a flanar pelas ruas do bairro para escrever as crônicas de abertura dos capítulos. Destaco abaixo os nomes dessas personagens, também fundamentais para a composição do livro. Rua 27 de Julho Dona Maria Rodrigues Rua Chico Mendes Pedro Rufino Ferreira, o “velho das redes”; Dona Facilda e Dona Cileode, que me ajudaram no resgate da história da Igreja Católica Nossa Senhora do Rosário; Manuel Oliveira e Lúcia Pedrosa de Sousa. Rua Planaltina e Rua Apucarana José Carlos de Sousa ou Betinho; Sônia Guerra; Francisco Pereira Coelho e a esposa Maria Ferreira; Denise Silvestre; Felipe Bandeira; José Maciel Freitas; Moacir Matos Barbosa e a esposa Antônia André Barbosa; Maria José Rodrigues; Francisco Izidro Bezerra; Manoel Januário de Sousa; Francisca Auri Silvério Tabosa e Maria José da Silva. Rua Quixadá Lúcia do Nascimento; Davi Favela; Sebastião Moura; Francisca Pereira da Silva ou Chaguinha da Galinha; Wilson Alves e a esposa Maria Ferreira; Antônio Lopes.

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Agradecimentos

Ao meu pai, Ribamar, que devido ao maravilhoso hábito de contar histórias, inspirou-me a escrever sobre o local onde moramos. À Mazé, minha mãe, baixinha piauiense mais briguenta e linda que tenho em minha vida. À vó Stela, senhorinha questionadora que me ensinou muito. Por ela, creio numa existência após essa, porque é cruel pensar em não mais poder encontrá-la. Aos meus irmãos, Karina e Pedro, sempre curiosos para saber quando poderiam começar a ler este livro. Ao Márcio, meu amor, ouvinte paciente de incertezas e medos durante o difícil processo que é escrever um livro. Ao Ronaldo Salgado, professor–amigo de madeixas compridas, louco por flores e aficionado por chapéus. Muito obrigada pela paciência como orientador e pelos ensinamentos sobre o Jornalismo e sobre a vida. À madrinha Dudu e ao padrinho Chico, sempre apoiadores e incentivadores. Quando eu mesma não acredito em mim, lembro que eles acreditam. À minha leitora beta, querida amiga Érika Lopes. À amiga Amanda Alboino, designer e diagramadora do livro. Ao fotógrafo Humberto Mota, que gentilmente editou as fotografias deste livro. Aos queridos companheiros do curso de Comunicação Social da UFC: Aline Moura, Aline Lima, Fernando Wisse, Ingrid Braquehais, Danielle Fernandes, Fernando Falcão,

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Kamila Medeiros e Nina Ribeiro. Aos amigos de mais de dez anos de amizade e de paciência comigo Andréa Sousa e Thiago Emanuel Teixeira, que sempre interessados perguntavam “e, ai, como vai o livro?”. Aos entrevistados, por remexerem memórias que talvez nem quisessem mais tirar do fundo das gavetas, mas que o fizeram prontamente ao meu pedido. Em especial Valdenor Moura, que com uma Yashica, primeira câmera fotográfica dele, registrou importantes momentos do bairro e me permitiu reproduzi-los no livro. À Liege Costa, por me receber e indicar outras fontes, além de me permitir ter acesso a um arquivo pessoal repleto de documentos e matérias de jornal. A Adalberto Tukano, outro valorizador de memórias, que guarda cuidadosamente registros de momentos do bairro, que atravessam a própria história dele. Aos moradores do Pantanal-Planalto Ayrton Senna por me darem um pouco do seu tempo e de suas histórias.

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PANTANAL - PLANALTO AYRTON SENNA: SOBRE MEMÓRIAS, IDENTIDADES E ESTIGMAS

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Pantanal-Planalto Ayrton Senna: Sobre memórias, identidades e estigmas lança o olhar a um pedaço da periferia de Fortaleza, cujo processo de formação baseia-se na luta pela moradia digna, negada a tantos. Inspirada na crônica de João do Rio, a repórter-moradora fala das ruas, dos muros e da gente do bairro Pantanal, ocupado por mais de quatro mil famílias em 1990. Momentos significativos são trazidos por meio das memórias de lideranças comunitárias, de moradores antigos e das recordações da autora em textos que transitam entre a objetividade e a subjetividade no exercício da crônica-reporteira.

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