MARGARIDA JOÃO FERREIRA ISAQUE MARIA EDUARDA CÂNDIDA SALUSTIANO JOÃO INÊS MARIA FERNANDO ANA E ERMELINDA HÉLDER MARIA JORGE JOÃO JÚLIO
MEMÓRIAS DA FRONTEIRA
ROSTOS DO CONTRABANDO
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“Se você encontrar um caminho sem obstáculos, ele provavelmente não leva a lugar nenhum.” Frank A. Clark
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PREFÁCIO “TINHA QUE HAVER MUITA FINURA” MARGARIDA
6 “LEMBRO-ME QUE OS CARABINEIROS MATARAM UM RAPAZ DE GANFEI” JOÃO FERREIRA
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“RECEBIA 35 ESCUDOS POR CADA SACO DE CAFÉ”DE CAFÉ” ISAQUE
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“A MULHER MAIS FINA DA FRONTEIRA” MARIA
12 “TRABALHAVA PARA OS OUTROS” EDUARDA
14 “ARRASTÁVAMO-NOS COMO AS COBRAS” CÂNDIDA
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“EU NÃO TINHA GRANDE JEITO” SALUSTIANO
18 “ERA UM TEMPO DO CARAÇAS!”” JOÃO
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Índice
“Adriminho” · CLDS Valença 3G
“GANHAVA BEM, MAS ARRISQUEI A VIDA” INÊS
22
“COM CINCO ANOS JÁ IA SOZINHA E SEMPRE DESCALÇA” MARIA
24
“CHEGUEI A PASSAR 200 VITELOS POR NOITE” FERNANDO
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“AS PESSOAS ERAM MAIS UNIDAS” ANA E ERMELINDA
28 “O MEU PAI ERA CHEFE DA PIDE” HÉLDER
30 “LEVAVA OS OVOS SEMPRE NAS MANDRANAS” MARIA
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“EU ERA O MAIS RICO DA MINHA FREGUESIA” JORGE
34
“ATRAVESSÁVAMOS O RIO A NADO E AS ESPANHOLAS DAVAM-NOS UM BOCADILLO” JOÃO
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“SALAZAR FOI O MAIOR ESTADISTA DO MUNDO” JÚLIO
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AGRADECIMENTOS
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FICHA TÉCNICA
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Memórias da Fronteira
Rostos do Contrabando
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Prefácio
“Adriminho” Adriminho” · CLDS Valença 3G
PREFÁCIO
14 de junho de 1985, Luxemburgo. A bordo do barco
‘Princesse Marie-Astrid’, em pleno rio Mosela, um importante capítulo da história europeia era assinalado. Com o Acordo de Schengen, subscrito por Portugal e Espanha em 1992, estavam lançados os dados para a abolição definitiva das fronteiras nos países da União Europeia. Hoje, em Valença, vinte e cinco anos após a liberalização do movimento transfronteiriço de pessoas e bens, importa recordar quem tinha no contrabando o seu principal meio de sustento. Preservar esse legado e homenagear aqueles que, no século passado, se dedicaram a uma atividade clandestina, mas usual na zona raiana, são os objetivos primordiais desta pesquisa. Nesta viagem pelo passado, muitas emoções foram despertadas. Saudade, nostalgia, orgulho … Cada testemunho representa um pedaço da história num período conturbado da vida sociopolítica. Nas raias do Rio Minho, o contrabando fazia parte da vida de homens, mulheres e até mesmo de crianças, tendo-se tornado uma atividade indispensável para complementar os escassos
recursos de grande parte da população. Antes do 25 de Abril de 1974, mas sobretudo depois da explosão demográfica que ocorreu, praticamente após a II Guerra Mundial, a população vivia com grandes dificuldades, muitos no limiar da pobreza. A emigração e o contrabando foram uma saída.
e partilhavam os mesmos caminhos, mas por diferentes motivos. Uns percorriam-nos transportando mercadorias, outros vigiavam-nos. Estes mesmos caminhos eram o sustento de ambos. Se não houvesse contrabando, também não haveria a necessidade de constituir um corpo especial de funcionários para a vigilância das fronteiras.
“Se voltava a fazer o mesmo? Sim, voltava.” Esta frase, repetida em diferentes entrevistas, espelha bem o impacto que o contrabando teve nas pessoas.
Com a abertura das fronteiras deixou de haver contrabando em Valença - pelo menos o que abordamos neste trabalho – e também a necessidade de vigiar a fronteira. Os Guardas Fiscais e os carabineiros foram transferidos e os caminhos deixaram de ser percorridos. Colocou-se um ponto final nas aventuras e, com o tempo, as memórias foram-se perdendo. E são estas mesmas memórias que devem ser resgatadas.
O contrabando foi uma realidade que marcou profundamente Valença. Em zonas predominantemente rurais, a proximidade da fronteira permitiu que o cultivo dos campos fosse complementado por esta prática, atividade que trazia mais rendimentos para o seio da família. A pé, de carro ou a nado, homens e mulheres, mais idosos ou de tenra idade, todos eles arriscavam para trazer o sustento. De dia, agricultores, de noite, vestiam outro papel. Contrabandistas e Guardas Fiscais, os dois lados antagónicos do contrabando, por vezes eram vizinhos
Para uns, do contrabando resta apenas uma recordação remota, uma história de vida para contar aos netos. Para outros, as memórias despertam emoções mais difíceis de disfarçar e, apesar das amarguras sentidas na pele, os tempos mais felizes foram os que passaram nessa época. Ao longo de todo o processo de recolha de testemunhos,
foi ganhando peso a ideia de que a maioria dos entrevistados não hesitaria perante a possibilidade de regressar ao passado numa espécie de máquina do tempo… Para estas pessoas, o contrabando não era algo de ilícito e elas nunca se viram como criminosas. Este era simplesmente um modo de vida e uma espécie de balão de oxigénio em tempos austeros. Tendo em conta tudo o que foi já escrito e documentado sobre este riquíssimo tema, o presente trabalho não tem a pretensão de ser um estudo aprofundado ou de assumir-se como um novo cânone do contrabando. Preservar a memória destas gentes, dar ênfase às suas recordações, aos seus rostos, valorizar a sua coragem, determinação, capacidade de superação, esses sim, são os nossos grandes desígnios.
Memórias da Fronteira
Rostos do Contrabando
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“TINHA QUE HAVER MUITA FINURA” MARGARIDA
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Margarida, 92 anos, uma das últimas trapicheiras da sua geração. Começou nas lides do contrabando com nove anos de idade. De trato meigo, conta-nos que naquele tempo “havia uma gente muito boa, muito unida”. “Era uma vida boa. Levavam-se coisas do campo e vendia-se tudo. Agora, é governar …”, desabafa. Para passar mercadoria, era necessária destreza. “Tinha que haver muita finura. Então eu levava 10 quilos de café atado a mim e levava uma cesta de ovos e chegava à aduana e punha-me a conversar e às gargalhadas com eles enquanto as outras passavam nas minhas costas”, recorda a Dona Guida, que nunca teve medo. “Nem no tempo da Guerra!”.
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Memórias da Fronteira
Rostos do Contrabando
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“LEMBRO-ME QUE OS CARABINEIROS MATARAM UM RAPAZ DE GANFEI” JOÃO
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João, 80 anos, nunca chegou a andar no contrabando, mas lidou com muita gente que recorreu a esse ato ilícito devido à miséria que havia. “Além de ganharem dinheiro, essas pessoas desenrascavam muita gente que precisava. Eu lembro-me que um quilo de broa chegou a custar 7 e 500 e ninguém a tinha. Havia uma fábrica de moagem e serração, chamavam-lhe a fábrica do Pêra, ali à beira da Ponte Seca em Valença, e importou milho de fora. Uma vez o barco meteu água e o milho ganhou um certo sabor a podre, mas mesmo assim não o deitaram fora. Comia-se tudo”, recorda João. “Eu sou desse tempo, mas ainda era um rapaz novo, se não também era capaz de alinhar. Lembro-me que morreram algumas pessoas. A Guarda Republicana não, esses eram uma paz de alma.
Adriminho” · CLDS Valença 3G
Lembro-me que os carabineiros mataram um rapaz de Ganfei, terra onde nasci. Era o Tone do Leirós. Isso deu muito que falar.”
De acordo com João Ferreira, eram vários os intervenientes que lucravam com as transações ilegais. “Além dos contrabandistas, havia as autoridades que também comiam. Havia corrupção. Segundo o que constava, a Guarda Fiscal vendia-se. Sabiam quando iam passar, era tudo programado. Perto dos postos havia umas guaritas, tinha uns caminhos de passagem onde eles se metiam à espera que o contrabandista passasse. Estava tudo feito…”
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Memórias da Fronteira
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“RECEBIA 35 ESCUDOS POR CADA SACO DE CAFÉ” ISAQUE
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Isaque, 66 anos, participou em várias aventuras antes de emigrar para os Estados Unidos, aos 16 anos. “A mercadoria que costumávamos levar era essencialmente café. Andei nisso durante um ano, mas não íamos todos os dias. Só o fazia por causa do dinheiro. Recebia 35 escudos por cada saco, ou seja, 35 quilos de café. Escondíamo-nos no meio das canas e quando víamos que era a hora para passar havia sempre sinais para avançarmos. Atravessávamos de barco e depois levávamos os produtos nas costas até a uma casa. Esperávamos meia hora e voltávamos. Às vezes tínhamos que ficar lá escondidos”, atira Isaque. “Não me arrependo de nada. Era uma forma de arranjar dinheiro para as borgas!”.
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Rostos do Contrabando
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“A MULHER MAIS FINA DA FRONTEIRA” MARIA
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“Cheguei a ganhar 320 contos numa semana. Nem o presidente da República ganhava isso.” A frase é de Maria, 66 anos, outrora a “mulher mais fina da fronteira”, diz-nos, em jeito de brincadeira. A partir dos 19 anos, comprou uma carrinha e dedicou-se ao contrabando de carapaus e de bananas. “Era desenrascada e ultrapassava barreiras”, explica Maria, que apesar da “ratice”, revela que hoje sofre do coração devido aos sustos que apanhou. “Uma vez tive uma denúncia. Trazia um pouco de camarão, que também era proibido, para a ‘Mar Ibérica’. A pessoa que me denunciou até era uma autoridade e estava a carregar no mesmo sítio que eu. Eu cheguei à fronteira e é claro, nós tínhamos os nossos esconderijos na carrinha, até te vou dizer, tinha um banco falso… ia tapadinho e passava. Tinha também um fundo na carrinha para trazer o carapau ao falso… nós fazíamos aquelas trafulhices… Até que um dia me fizeram uma espera na bomba de gasolina. Passei na fronteira e vi que eles estavam lá em cima à minha espera, e eu ‘ai meu Jesus…’. Só que enquanto eles deram a volta ao jipe e não deram, eu dei o gás à carrinha e fugi em direção a Segadães, mandei um contentor do lixo para dentro de um campo e acertei num poste da lata, apanhei uma garagem aberta que era do Sr. Pereira e fechei-me lá dentro. Eles passaram e não me viram.”
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“TRABALHAVA PARA OS OUTROS” EDUARDA
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Para Eduarda, de 80 anos, recordar os tempos do contrabando não é sinónimo de alegria. Parca nas palavras e com as lágrimas a surgirem no rosto, Eduarda explica-nos que prefere deixar essas memórias escondidas no passado. Acolhida por um casal quando tinha oito anos de idade, foi obrigada a tornar-se contrabandista. “Eu trabalhava para os outros. Não era para mim…”
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Memórias da Fronteira
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Rostos do Contrabando
“ARRASTÁVAMO-NOS COMO AS COBRAS” CÂNDIDA
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Cândida, 69 anos, neta do “maior contrabandista de Vila Nova de Cerveira”, Joaquim Magalhães, garante que apesar da miséria no tempo de Franco e Salazar, vivia mais feliz e governava melhor o seu dinheiro. Diz-nos que gostava do contrabando, mas que por vezes era “sufocante”. “Muitas vezes os carabineiros não deixavam passar o que ia a mais, então tínhamos que ir com as caixas de peixe na cabeça a fugir até à margem portuguesa para não nos poderem prender. Púnhamos o peixe numa esquininha na curvinha do passadiço da ponte e depois ali era distribuído para dentro de sacas de asas e tínhamos que saltar o trapiche, que só abria às 8h00. Entre o trapiche e a casa de vigia tinha uma largura de cerca de 2 metros e do outro lado da linha férrea, na parte da Guarda Fiscal, havia um sentinela a vigiar quem passava. Para ele não nos ver o que fazíamos? Barriga no chão e
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arrastávamo-nos como as cobras. Púnhamo-nos em pé a correr por ali fora até nos escondermos na casa de uma senhora na passagem de nível. Depois, tornávamos a fazer o mesmo para ir buscar mais carga à cancela.
Além do peixe, levávamos bananas e muitas pastas de chocolate. Tínhamos por baixo das saias uns aventais com uns bolsos fundos e escondíamos lá.”
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“EU NÃO TINHA GRANDE JEITO” SALUSTIANO
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“… São as memórias de um tempo em que era criança e, apesar das dificuldades da época, nunca as consegui esquecer. Sinal que para ser feliz não faz falta muito.” Este excerto de texto está presente na introdução do livro ‘Memórias de uma infância feliz’, da autoria de Salustiano. Para este valenciano, falar do passado é algo que lhe traz satisfação. “Aos 8 anos, quando ia para a escola, a minha mãe enchia-me a mim e ao meu irmão de café. Atava-nos uma corda e levávamos nas costas, nos braços e no peito. Eu não tinha grande jeito, mas o meu irmão era habilidoso e ao passar em frente da Aduana, levávamos sempre uma bola de farrapos para ir a jogar. Mas um dia, um carabineiro chamou-nos. O meu irmão disse: “Foge”, mas eu fui entregar-me para ver o que ele queria. Mandou-me entrar no edifício da Aduana em Tui para me tirar o café. Mas a revistadeira era amiga da minha mãe e só tirou do peito e das costas, deixou ficar o dos braços. Ao sair, o carabineiro disse-me: “Já vais mais leve”. E eu disse: “Oh, mas levo aqui os braços cheios à mesma...” Então, ele mandou-me novamente para dentro para a mulher fazer o serviço completo…”
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“ERA UM TEMPO DO CARAÇAS!” JOÃO
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João, 78 anos, foi contrabandista enquanto pôde, revela. De carga nas costas, levava café e trazia amêndoa. Era para governar a vida. “Ganhava-se muito dinheiro. Davam-se 100 escudos por carga. Naquele tempo valia muito…. Dávamos um x aos guardas e depois passávamos à vontade. Os carabineiros, apanhando a gente, davam porrada e tudo! Apesar de tudo, era um tempo do caraças!”. “Fui apanhado na Senhora da Cabeça, por conta do Mamede. Fomos descarregar na Capela, mas fomos descobertos. Os de cá deram alerta e os carabineiros apareceram. O barco pôs-se no caraças e ficámos detidos. No entanto, conseguimos fugir… Os carabineiros vieram atrás de nós, mas conseguimos escapar.”
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“GANHAVA BEM, MAS ARRISQUEI A VIDA” INÊS
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“Levava uns ovinhos, levava café para Espanha. De lá trazia umas machadas, trazia o que havia. Era a necessidade. Não havia nada. A gente queria comer e tinha que se manear”, lança Inês, 88 anos, para quem o contrabando lhe traz recordações de um tempo alegre, quando tinha os filhos ao seu redor e o seu marido. “Se fosse hoje faria o mesmo, se pudesse. Foi onde ganhei alguns tostões. Ganhava bem, mas arrisquei a vida”. “Uma vez fiquei muito chocada. Um rapazinho espanhol com cerca de 12 anos veio buscar uma bola de trigo à banda de cá, bateu nos fios da eletricidade e caiu abaixo queimado, já morto… Por uma bola de pão naquele tempo…”
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“COM CINCO ANOS JÁ IA SOZINHA E SEMPRE DESCALÇA”
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MARIA
As marcas do passado no contrabando são bem visíveis nos pés de Maria, de 77 anos. “Com cinco anos já ia sozinha e sempre descalça, a cantar para lá e para cá. Até me diziam: ‘tu ao menos cantas tudo’. Nunca tive tempo para brincar. Só tive uns sapatos quando fui trabalhar para a fábrica de calçado quando acabei a 4ª classe, com 11 anos.” “Acabou a Guerra de Espanha [01/04/1939] e a polícia veio pedir ao meu pai se lhes podia arranjar comida porque eles não tinham lá. Assim, eles punham as mulheres a vender e sempre ganhavam e davam algum ao meu pai. Eu andava todos os dias desde as cinco da manhã por aqui abaixo até ao rio e levava arroz, massa ou açúcar. Isto todo o dia… Depois mais tarde veio o café. A minha madrasta fez-me uma mandrana.”
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“CHEGUEI A PASSAR 200 VITELOS POR NOITE” FERNANDO
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Fernando, 66 anos, mais conhecido por ‘Senica’, tornou-se um verdadeiro especialista na ‘arte do contrabando’. Com 12 anos já acompanhava o pai. Além de mercadorias, como roupa ou café, revela-nos que passou muita gente com destino a França. Como estava todo o dia no rio, onde trabalhava na extração de areia, sabia bem os horários e as rotinas das autoridades. “Cheguei a passar 200 vitelos por noite. Um barco grande levava 12 vitelos e as vacas vinham a nadar presas por uma corda. Os cavalos também, mas estes faziam muito barulho. Afocinhavam o nariz na água … Mas nunca correu mal. Nunca me morreu nenhum animal nem me apanharam algum.”
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“AS PESSOAS ERAM MAIS UNIDAS” ANA e ERMELINDA
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A função das irmãs Ana e Ermelinda era carregar material a pé, essencialmente ovos, para o seu pai transportar de barco até Espanha. “Fiz contrabando antes de ter a paralisia infantil, aos 10 anos. Tínhamos umas cestinhas pequenas e vínhamos pela estação a pé. Uma vez ia a brincar com a cesta, deixei-a cair em frente do posto da guarda e pensei: ‘já estraguei tudo’. Entrei para o comboio com a cesta a pingar e pus a cesta do lado em que eu ia sair aqui em S. Pedro. Mas estava um guarda atrás de mim e mudou-me a cesta de sítio. Vá lá que acabei por conseguir trazer os ovos”, conta Ana, de 80 anos.
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“Tivemos um irmão que foi espia e uma vez foi para o cemitério e pôs-se em cima do muro, atrás dos jazigos. Vem uma ave qualquer e bate-lhe. Ele assustou-se muito e deitou-se abaixo porque julgou que era algum morto que vinha atrás dele! Já não acabou de fazer a espia”, afirma Ermelinda, de 79 anos. “Havia muita fome, mas naquele tempo eramos alegres. As pessoas eram mais unidas do que agora. Os vizinhos ajudavam-se muito”, frisa.
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“O MEU PAI ERA CHEFE DA PIDE” HELDÉR
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Hélder, 60 anos, filho de um chefe da PIDE, foi seduzido pelo contrabando devido à proximidade do rio e por outras circunstâncias, como “ter as miúdas do outro lado”. “Tinha eu 16 anos, eram as festas de S. Telmo, em Tui, no fim de semana seguinte ao da Páscoa. As minhas notas foram muito fracas e o meu pai deixou-me uma nota na cabeceira da cama: ‘não há S. Telmo para ti’. E ele era o chefe da polícia… Eu fui ter com um amigo meu e disse-lhe que não podia ir, mas ele convenceu-me e fomos a nado. Isto aconteceu 15 dias antes do 25 de abril. Vou para a avenida principal de Tui, assistir à procissão, com o moço e as miúdas, mas esqueço-me que o meu pai era convidado. E quando estou na primeira fila, o meu amigo toca-me e diz: ‘olha o teu pai!’. Eu, com o movimento de querer fugir, atiro com as pessoas, o que deu mais nas vistas para quem vem na
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procissão e ele vê-me. À noite, quando ele chegou a casa e não me disse nada, eu pensei, ‘se calhar não me viu bem’. Mas nisto toca a campainha e ele disse-me para eu abrir. Era um colega da polícia. Passados 10 minutos, ‘vai abrir’, e era outro colega. Era outro, e outro ... Entretanto vejo que na sala de jantar já estavam cinco funcionários subalternos do meu pai. Ele chama-me à sala e noto que estão todos a olhar uns para outros sem perceberem o que se passava. O meu pai vira-se para eles e pergunta: ‘qual de vocês deixou passar este indivíduo? Eles respondem todos: ‘eu não fui chefe, eu não fui!’. Comecei a ficar numa situação algo desconfortável e disse que ia buscar mais cafés. O meu pai depois perguntou-me como eu tinha passado e contei-lhe que fui a nado. Mas aí os colegas dele cercaram-no, porque eram tempos em que se levavam umas chapadas valentes, e já não deixaram que ele me batesse.”
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“LEVAVA OS OVOS SEMPRE NAS MANDRANAS” MARIA
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Maria começou a levar ovos e a trazer pescada quando atingiu os 18 anos de idade. “Trazia coisas para casa, que faziam falta, claro, como peixe. Levava os ovos sempre nas mandranas. Também se trazia muito azeite. Deixavam-me passar porque eu tinha que dar alguma coisa. Depois também vendíamos lá as nossa coisas. Cebolo, alface, vendíamos um pouco de tudo, à quinta-feira só, na praça.” “Numa altura, eu ia a fugir com peixe, e um guarda de Ganfei levou-me para a Guarda. Estive lá presa. Chorei muito. No fim, não perdi a mercadoria nem aconteceu nada de mal.”
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“EU ERA O MAIS RICO DA MINHA FREGUESIA”
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JORGE
Jorge começou a transportar café a partir dos 15 anos. Recebia 100 escudos por cada saco que transportava e mais 100 escudos por ir à frente. “Eu era afoito, arrojado. Cem escudos naquele tempo era muito dinheiro. Eu era o mais rico da minha freguesia. Com o decorrer do tempo, foi-se “profissionalizando”. “Comecei a fazer um doblete, ou seja, com um tiro matava dois coelhos. Levava peças de automóveis para Viana, Porto e Lisboa, provenientes de Espanha, e para lá transportava velas de automóveis. Eu, numa semana, com 16 anos, ganhava mais do que um guarda fiscal.” As mercadorias traficadas variavam, a fronteira era como o clima, explica. “Daqui para lá eram lonas de pneus. Depois era o peixe e a carne. O bom ia daqui para lá, porque os espanhóis tinham mais dinheiro, e o mais simples vinha para cá. Para lá iam os vitelos, para cá vinham vacas velhas. Para lá ia o linguado, o robalo e o rodovalho. Para cá vinha carapau …”
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“ATRAVESSÁVAMOS O RIO A NADO E AS ESPANHOLAS DAVAM-NOS UM BOCADILLO” JOÃO
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“Tinha uns 14 anos e vinha ensinar as vistas aos turistas. Aldrabávamos um bocado, pois de história não sabíamos nada. Queríamos era as gorjetazinhas. Depois levávamos os turistas a uma tia minha, ou a outras mulheres que andavam no contrabando e que vendiam chocolates, perfumes, pó de arroz, etc… Elas faziam cinco ou seis mil escudos e depois diziam-nos que só tinha vendido 500 escudos. Nós íamos todos contentes, com um bocadinho de dinheiro, na direção dos tascos…” “Namorávamos com as espanholas, já com aquela idade. Atravessávamos o rio a nado e elas davam-nos um bocadillo, uma sandes. Nós queríamos era comer.”
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“Uma vez ia roubar as uvas a Espanha, mas os carabineiros apanharam-nos. Eu e mais dois ou três conseguimos fugir. Um fugiu e foi até Segadães, pela parte Espanhola. Eu fui o único que fiquei por ali, pois tinha a mania que era forte, e meti-me no meio das canas escondido. Quando vou para o rio para atravessar a nado, saem-me dois carabineiros com as armas apontadas a mim, mas eu parei o caraças e continuei sempre a nado!”.
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“SALAZAR FOI O MAIOR ESTADISTA DO MUNDO”
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JÚLIO
O contrabando não é um tema que mereça grande destaque no discurso de Júlio, de 93 anos. Afável, de trato fácil e conversador, ‘Ti Júlio’, como gosta de ser chamado, prefere recordar os tempos do Estado Novo. “Salazar foi o maior estadista do Mundo. Depois de Marquês de Pombal foi ele. O nosso Salazar estava a estudar em Coimbra e o País estava em constantes revoluções. Os políticos diziam: ‘há um homem em Coimbra que é capaz de resolver isto’. Outros diziam: ‘mas é muito novo’. Entretanto, foram buscá-lo. Ele começou a equilibrar as Finanças. Disseram-lhe que era preciso contrair um empréstimo e então ele respondeu: ‘Não, não vamos por aí’. Como era revolução atrás de revolução, ele foi novamente para Comba Dão, mas foram outra vez buscá-lo. Então, voltou a trabalhar e resolveu os problemas sem empréstimos, engrandecendo Portugal. Mas atenção, ele aceitou regressar porque disse que queria ter as rédeas na mão. ‘Eu é que mando!’.”
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AGRADECIMENTOS
Adriminho · CLDS Valença 3G O CLDS Valença 3G mais do que agradecer quer manifestar que esta publicação só foi possível graças aos 16 entrevistados que gentilmente aceitaram participar neste projecto cedendo-nos as suas histórias de vida. As suas reflexões estão reproduzidas no decorrer do texto como forma de ilustrar ou reforçar as ideias apresentadas. Outros depoimentos não foram transcritos, mas são igualmente relevantes, pois, analisados em conjunto, ajudaram a compor os resultados deste trabalho. De uma forma especial agradecemos ao senhor Salustiano Faria pela sua disponibilidade e dedicação ao projecto e à fotógrafa Custódia Pereira que, voluntariamente nos acompanhou em todas as entrevistas realizadas. Agradecemos ainda ao SPE do Destacamento da GNR de Valença. A todos, o nosso sincero Muito Obrigado!
Adriminho” · CLDS Valença 3G
TEXTOS César Lopes
FOTOGRAFIA Studio Custódia Pereira
DESIGN EDITORIAL +MaisDesign
IMPRESSÃO Gráfica VilaVerdense