Tropicália

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Música • Cinema • Moda • Design


Apresentação O ano é 1967. O MAM do Rio de Janeiro exibia a exposição Nova Objetividade Brasileira, e nela a instalação Tropicália, do artista plástico Hélio Oiticica: um ambiente tropical for¬mado por duas tendas (penetráveis), com vaso de plantas, araras, areia, pedras que no final encontrava um aparelho de televisão ligado.

Alegria, Alegria era uma marchinha alegre de carnaval com a intenção de provocar empatia com o público. Domingo no parque parecia uma roda de capoeira ao som de berimbau. Como a preferência dos jovens pela música estrangeira era maior do que pela MPB que naquele momento soava desinteressante e chata aos ouvidos dos jovens Caetano e Gil queriam modernizar a música popular brasileira introduzindo guitarras elétricas, sabendo que estavam preparando uma provocação ao público dos festivais e a visão dos esquerdistas, defensores da música de protesto e xenófobos que eram contra o uso dos instrumentos por considerarem símbolo da invasão cultural norte-americana.

Em maio do mesmo ano, estreia Terra em Transe, obra polêmica do diretor Glauber Rocha. O filme destaca-se pela estética agressiva e forte conteúdo político. A anárquica e provocativa montagem encenada pelo Teatro Oficina da peça teatral O Rei da Vela, texto do modernista Oswald de Andrade escrito em 1933 dirigida por José Celso Martinez Correa, misturava circo, teatro de revista e buscava uma superteatralidade interação com o publico.

Caetano Veloso ficara impressionado ao assistir Terra em Transe e sentiu-se estimulado a utilizar aquela agressividade na música. Semanas antes de assistir a peça, ele compôs a canção - manifesto cujo título, por sugestão do fotógrafo Luis Carlos Barreto, recebeu o nome da instalação de Hélio Oiticica: Tropicália.

A eclosão do movimento deu-se principalmente no III Festival de MPB da Tv Record, em que Caetano Veloso e Gilberto Gil apresentaram as canções Alegria, Alegria e Domingo no parque. A canção

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45 anos depois da criação do Tropicalismo, o Banco do Brasil orgulhosamente apresenta esta caixa comemorativa que contém três DVDs com imagens raras e um livro com textos e fotografias deste movimento que até hoje influencia a moda, a música e o design como um movimento cultural brasileiro pela própria natureza.

A sincronicidade de acontecimentos de 1967, em diversos campos artísticos, deu início a um manifesto bem-humorado de um ambicioso projeto cultural. O nome surgiu numa con¬versa de bar entre os cineastas Glauber Rocha, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor, Gustavo Dahl, o fotógrafo Luis Carlos Barreto e o jornalista Nelson Motta, que refletindo sobre o ano anterior, perceberam que havia algo de novo ocorrendo na cultura brasileira e decidiram fundar um movimento que recebeu o nome de Tropicalismo.

Sumário O Movimento Tropicalista .........................................10

A Tropicália durou pouco mais de um ano, encerrando-se em dezembro de 1968, com as prisões de Caetano e Gil. Porém, as idéias e as influências do movimento conseguiu impulsionar a modernização da cultura nacional, realizando a mistura de elementos díspares: do arcaico e moderno, alta cultura e cultura de massa, tradição e vanguarda, nacional e internacional, pop e folclore, que ressoariam ainda por mais alguns anos.

“...aqui é o fim do mundo” ........................................12 A Cruzada Tropicalista ...............................................15 O Cinema Tropicalista ...............................................19 Tropicalismo, antropofagia, mito, ideograma ..........21 Design do Caos ..........................................................25 “Panis et Circencis” ...................................................27

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O Movimento Tropicalista Ana de Oliveira “eu organizo o movimento. eu oriento o carnaval” Caetano Veloso o popular, o pop e o experimentalismo estético, as idéias tropicalistas acabaram impulsionando a modernização não só da música, mas da própria cultura nacional.

O Tropicalismo foi um movimento de ruptura que sacudiu o ambiente da música popular e da cultura brasileira entre 1967 e 1968. Seus participantes formaram um grande coletivo, cujos destaques foram os cantores-compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil, além das participações da cantora Gal Costa e do cantor-compositor Tom Zé, da banda Mutantes, e do maestro Rogério Duprat. A cantora Nara Leão e os letristas José Carlos Capinan e Torquato Neto completaram o grupo, que teve também o artista gráfico, compositor e poeta Rogério Duarte como um de seus principais mentores intelectuais.

Sincrético e inovador, aberto e incorporador, o Tropicalismo misturou rock mais bossa nova, mais samba, mais rumba, mais bolero, mais baião. Sua atuação quebrou as rígidas barreiras que permaneciam no País. Pop x folclore. Alta cultura x cultura de massas. Tradição x vanguarda. Essa ruptura estratégica aprofundou o contato com formas populares ao mesmo tempo em que assumiu atitudes experimentais para a época.

Os tropicalistas deram um histórico passo à frente no meio musical brasileiro. A música brasileira pós-Bossa Nova e a definição da “qualidade musical” no País estavam cada vez mais dominadas pelas posições tradicionais ou nacionalistas de movimentos ligados à esquerda. Contra essas tendências, o grupo baiano e seus colaboradores procuram universalizar a linguagem da MPB, incorporando elementos da cultura jovem mundial, como o rock, a psicodelia e a guitarra elétrica. Ao mesmo tempo, sintonizaram a eletricidade com as informações da vanguarda erudita por meio dos inovadores arranjos de maestros como Rogério Duprat, Júlio Medaglia e Damiano Cozzela. Ao unir

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Irreverente, a Tropicália transformou os critérios de gosto vigentes, não só quanto à música e à política, mas também à moral e ao comportamento, ao corpo, ao sexo e ao vestuário. A contracultura hippie foi assimilada, com a adoção da moda dos cabelos longos encaracolados e das roupas escandalosamente coloridas.

Discos antológicos foram produzidos, como a obra coletiva Tropicália ou Panis et Circensis e os primeiros discos de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Enquanto Caetano entra em estúdio ao lado dos maestros Júlio Medaglia e Damiano Cozzela, Gil grava seu disco com os arranjos de Rogério Duprat e da banda os Mutantes. Nesses discos, se registrariam vários clássicos, como as canções-manifesto “Tropicália” (Caetano) e “Geléia Geral” (Gil e Torquato). A televisão foi outro meio fundamental de atuação do grupo – principalmente os festivais de música popular da época. A eclosão do movimento deu-se com as ruidosas apresentações, em arranjos eletrificados, da marcha “Alegria, alegria”, de Caetano, e da cantiga de capoeira “Domingo no parque”, de Gilberto Gil, no III Festival de MPB da TV Record, em 1967.

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“...aqui é o fim do mundo” Gilberto Gil e Torquato Neto

das classes média e alta, essa facção venceu por meio do golpe militar de 31 de março. O Exército e seus aliados civis depuseram o presidente Jango e entregaram o poder aos militares. O golpe, apoiado pelos americanos, rompeu o já frágil jogo democrático brasileiro. A concentração de renda surgiu como forma de expansão capitalista. Castelo Branco se tornou o primeiro de uma série de generais-presidentes ditatoriais. Seu substituto, Costa e Silva, governou o País de 1967 a 1969, cada vez com mais poder.

Em 1964, o Brasil encontrava-se no olho do furacão. A Guerra Fria – disputa entre as superpotências dos Estados Unidos e da União Soviética – alimentava conflitos na América Latina e no País. Em 1959, a Revolução Cubana transforma Fidel Castro e Che Guevara em heróis internacionais e atiça a pressão do bloco capitalista sobre os países do terceiro mundo. Por aqui, o presidente João Goulart (Jango) propõe uma série de reformas de base para atenuar o grave problema da desigualdade social e as pressões políticas que vinha sofrendo dos movimentos de esquerda. Contra tais propostas – acusadas de comunistas – formou-se um movimento da direita política e de parte da sociedade, que preconizavam uma modernização conservadora. Com a participação do Congresso,

Culturalmente, o País fervilhava. Até 1968, intelectuais e movimentos de esquerda podiam agir livremente, com pequenos problemas com a censura. A intensa produção ia das peças do Teatro Oficina aos grupos Opinião e Arena; das canções de protesto às músicas da Jovem Guarda,

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passando pelos filmes do Cinema Novo e pelas artes plásticas. Em todas as áreas, a política faziase presente, mantendo acesa no campo das artes uma polêmica que opunha experimentalismo e engajamento, participação e alienação. A partir de 1967, os antagonismos foram radicalizados. No campo da música, houve confrontos entre os artistas nacionalistas de esquerda e os vanguardistas do Tropicalismo. Estes se manifestaram contra o autoritarismo e a desigualdade social, porém propondo a internacionalização da cultura e uma nova expressão estética, não restrita ao discurso político. Para os tropicalistas, entender a cultura de massas era tão importante quanto entender as massas revolucionárias. Ainda no terreno político, 1968 foi o ano em que as tensões chegaram ao máximo no País. As greves operárias e as manifestações estudantis – com a conseqüente repressão policial – se intensificaram. As guerrilhas rural e urbana aumentaram suas ações. Com o crescimento da oposição, Costa e Silva, pressionado pela extrema direita, respondeu com o endurecimento político. Em 13 de dezembro, o Ato Institucional Nº 5 decretou o fim das liberdades civis e de expressão, sacramentando o arbítrio até 1984, quando o general João Figueiredo deixa a presidência do País.

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A Cruzada Tropicalista Nelson Motta O lançamento da cruzada tropicalista seria feito em uma festa no Copacabana Palace. A piscina estaria coberta de vitórias-régias, palmeiras por toda a pérgula, bebidas servidas em abacaxis ou cocos, abacaxis que também serviriam de abajur, iluminados por dentro. A música baseada em samba-canção da década de 50 e o menu, sofisticadíssimo: aperitivo; batida de ovo; entrada; sanduíche de mortadela com queijo-de-minas (facultativo); vatapá como prato forte e mariamole de sobremesa. Ao final, em vez de licor, seria servido xarope Bromil em pequenos cálices.

O filme Bonnie and Clyde faz atualmente um tremendo sucesso na Europa e sua influência estendeu-se à moda, à música, à decoração, às comidas, aos hábitos. Os anos 30 revivem em força total. Baseados nesse sucesso e também no atual universo pop, com o psicodelismo morrendo e novas tendências surgindo, um grupo de cineastas, jornalistas, músicos e intelectuais resolveu fundar um movimento brasileiro mas com possibilidades de se transformar em escala mundial: o Tropicalismo. Assumir completamente tudo que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mal gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra ainda desconhecido.

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O terno de linho branco, requinte supremo. Mas cuidado com as lapelas, que devem ser o mais largas possível. Também é permitido o azul-marinho listradinho de branco, mas penas

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Está decretada a falência de qualquer outra forma de iluminação que não seja abajur de vidro que roda e sai fumacinha do desenho do trem ou ainda o modelo de caramujo ou concha. Iluminação também válida é a luz vermelha ou verde que acompanha a imagem de São Jorge, que deve estar sempre em cima da cristaleira.

quando usado com gravata vermelha de rayon. A camisa deve ser de nylon, de preferência com abotoaduras de grandes pedras. Na gravata, pérola, é claro, podendo os mais sofisticados usar uma esmeralda ou uma água-marinha, que como se sabe, é a pedra da moda… Há uma corrente que defende o lançamento de calças idênticas às de Renato Borghi em O Rei da Vela, as calças pansexuais.

PS – Não esquecendo que os sapatos de homem devem ter sempre duas cores e o material nobre é crocodilo ou cobra. Para mulheres, forrados de cetim, o salto bem fino alto e o bico mais agulha possível. Trexos de matéria publicada no jornal Última Hora – 5 de fevereiro de 1968

Pingüim de louça só em cima da geladeira. Em cima da geladeira é também tolerado qualquer outro bicho, desde que de louça recoberta de camurça. No liqüidificador, uma grande saia de baiana de plástico e para o puxador da geladeira nada mais certo que um grande peixe também de plástico. O plástico e a louça são materiais do Tropicalismo por excelência.

Para a praia, a moda seria calção de nylon, mas com seu comprimento reduzido por dobras manuais, assim como a camisa de linho branco que teria suas mangas também dobradinhas com esmero. Bonés, muitos bonés na praia do Posto 4. Bonés brancos com palas de plástico verde transparente (para proteger do sol). Para os mais requintados: óculos ray-ban. Ou de espelho.

Turquesa, laranja, maravilha e verde-amarelo seriam as cores da moda, usadas pelas mulheres em vestidos pelo meio das pernas se abrindo em grandes rodas. Anáguas, muitas e engomadas anáguas, sempre é bom. Laquê, litros de laquê, para todas as mulheres fazerem grandes penteados, quanto mais alto o cabelo, mais bonito. O Tropicalismo vence. 

Para os homens não ficarem atrás, a grande novidade é a tintura para cabelo, mesmo aqueles que não têm cabelos brancos, só pra dar “aquela” tonalidade levemente azulada. Para os cabelos a cor é “asa de graúna” e muita brilhantina Royal Briar e Glostora, que ressaltam e perfumam o penteado.

Não percam batizados e paradas de Sete de Setembro. É chiquérrimo! São Jorge é o nosso santo e carnaval a nossa festa. Por um mundo tropical! Pelo sol! Pela ginga do brasileiro! Viva o trópico! Viva o trópico! Viva o trópico!

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O Cinema Tropicalista Ricardo Janoário palavras do cineasta Glauber, “havia uma gama infinita de possibilidades de comunicação com o público, através de uma linguagem muito violenta, agressiva representadas em seus filmes”. Entre os vários cinemas novos que se desenvolveram pelos anos 60, o brasileiro foi um dos mais destacados, não só pela importância que teve internamente como também, pela repercussão internacional. Os cinco primeiros anos da década de 60, são dominados, entretanto, pelo fenômeno baiano, que se constituiu de um conjunto de filmes realizados na Bahia.

Dentre outras influências marcadas pelo movimento Tropicalista, o Cinema Novo foi uma das mais significativas. A partir da exibição de Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe do cineasta Glauber Rocha, determinou-se um novo impulso criativo na composição das letras musicais. As canções passaram a representar um conjunto de elementos culturais. Um som que simbolizou as coloridas imagens de revistas, expostas nas bancas de jornal, com fotos de atrizes de cinema, mescladas com cenas violentas de guerra e flagrantes de viagens espaciais que em sua união constituíram o tom enfático representado pela estética tropicalista. O corte, a justaposição, o uso de fragmentos, e dos efeitos flashback, presentes na produção cinematográfica, pareciam atrair a atenção, não apenas do grupo baiano, mas também dos expressivos setores da juventude interessados pela cultura. Significava expressar o ato descritivo dos quadros, dos desenhos que faziam acender a realidade dos objetos. Seus processos de construção lembravam montagens, sons, ruídos que nas

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Tropicalismo, antropofagia, mito, ideograma Glauber Rocha

O Tropicalismo, a antropofagia e seu desenvolvimento são a coisa mais importante hoje na cultura brasileira. Tropicalismo é aceitação, ascensão do subdesenvolvimento; por isto existe um cinema antes e depois do Tropicalismo. Agora nós não temos mais medo de afrontar a realidade brasileira, a

nossa realidade, em todos os sentidos e a todas as profundidades. Eis por que em Antônio das Mortes existe uma relação antropofágica entre os personagens: o professor come Antônio, Antônio come o cangaceiro, Laura como o comissário, o professor come Cláudia, os assassinos comem o povo, o professor come o cangaceiro.

realidade econômica, social e cultural do país. Esse movimento contou com a participação de outras personalidades como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Luiz Sérgio Person, Leon Hirzman, Carlos Diegues, Sergio Ricardo, Walter Lima Júnior dentre outros. O movimento cinemanovista chegou ao fim dos anos 60 procurando novos caminhos, pois a sua relação com o grande público lhe permaneceu inacessível.

Projeta-se então, no cinema, a figura de Glauber Rocha. É a erupção do chamado Cinema Novo, movimento que englobava, de forma pouco descriminada, tudo o que se fez de melhor – em matéria de ficção ou documentário – no moderno cinema brasileiro. Opondo-se ao populismo das chanchadas e ao cosmopolitismo de produções que imitavam modelos estrangeiros, defendia a realização de obras autenticamente nacionais, que colocassem em discussão a

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Design do Caos A Tropicália de Rogério Duarte Eduardo Ramuski “O valor pejorativo atribuído a esse apelido o magoara duplamente: chamavam de caótico exatamente o que nele era mais lógico e construtivo, e desprezavam o Caos que ele, em outro nível, era capaz de amar.” Caetano Veloso

expressão cultural e artística a elas se referem continuamente. Depois poderemos desenvolver outras coisas, mas, este é um passo fundamental. O surrealismo para os povos latino-americanos é o Tropicalismo.

Esta relação antropofágica é de liberdade. É uma procura estética política que se move debaixo do signo da individualização do inconsciente coletivo, e para isto existe o aproveitamento de elementos típicos da cultura popular utilizados criticamente.

Existe um surrealismo francês e um outro que não o é. Entre Breton e Salvador Dali tem um abismo. E o surrealismo é coisa latina. Lautreaumont era uruguaio e o primeiro surrealista foi Cervantes. Neruda fala de surrealismo concreto. É o discurso das relações entre fome e misticismo. O nosso não é o surrealismo do sonho, mas a realidade. Buñuel é um surrealista e seus filmes mexicanos são os primeiros filmes do Tropicalismo e da antropofagia.

O cinema do futuro é ideogramático. É uma difícil pesquisa sobre os signos (símbolos). Para isto não basta uma ciência, mas é necessário um processo de conhecimento e de autoconhecimento que investe toda a existência e sua integração com a realidade. O mito é o ideograma primário e nos serve, temos necessidade dele para conhecermo-nos e conhecer. A mitologia, qualquer mitologia, é ideogramática e as formas fundamentais de

O bahiano Rogério Duarte nasceu em 10 de Abril de 1939, vindo de uma família de intelectuais. Teve uma infância doentia e foi alfabetizado em casa pelo avô. Autodidata, descobriu cedo a paixão pela leitura e desde pequeno freqüentava bibliotecas públicas.Após enfrentar alguns desapontamentos com o ensino tradicional, Rogério pouco tempo depois abandonou os estudos sem concluir o ensino médio.

Rogério Duarte ajudou a definir a estética visual do movimento e conseguiu ser ao mesmo tempo popular e erudito, rompendo as regras do bom design. O designer da Tropicália, preferiu inovar na utilização das cores e na complexidade de suas capas. Representou toda a pluralidade de elementos da música e da estética do tropicalismo nas capas de disco. O cartaz de cinema é um elemento de grande destaque da obra de Rogério Duarte. Assim como a capa de disco, ambos representam um poder de comunicação forte para a divulgação do movimento Tropicália. A peça gráfica, símbolo da síntese entre o racionalismo e a exuberância tropical da cultura popular brasileira, traz a foto em preto e branco de Corisco em contraste com o fundo de cor vermelha e vibrante que antecede a estética que será vista mais adiante com o surgimento do movimento Tropicália.

Rogério Caos foi o apelido deformador dado pelo dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha na época em que ele era coordenador de Artes Visuais da União Nacional dos Estudantes (UNE). Devido ao choque que a complexidade de suas idéias causavam entre os membros do partido, acabavam não sendo aceitas, não encontrando espaço. Este apelido era uma forma de manter Rogério Duarte afastado, estereotipado como “porra louca e caótico” , e o marcou profundamente.

Trechos de Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981

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Rogério Duarte teve papel importante como um dos teóricos do design brasileiro. Em 1965, escreveu o que seria, um dos primeiros textos brasileiros sobre design, o artigo Notas sobre o desenho industrial, publicado na revista Civilização Brasileira. Nele, discute as origens do design, critica a ESDI e a influência demasiada do formalismo da escola de ULM no design brasileiro.

Com o profundo conhecimento que tinha do design gráfico, não foi difícil que incorporasse a tipografia suíça e ainda sentisse a necessidade de transgredir: “Alguns professores tentavam nos impor um formalismo racionalista europeu sem levar em conta nos¬sa singularidade e individualidade como cultura e nação”, relata. Fez questão de aplicar o rigor técnico e funcional, mas, ao mesmo tempo, não deixou de pinçar elementos da cultura popular brasileira a serem mantidos nos projetos.

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“Panis et Circencis” Noemi Jaffe Caetano assumiu seu lapso de forma até algo orgulhosa: “Sempre cri numa espécie de organicidade da assimilação de informações, e faço questão de tratar com naturalidade a assimilação de cultura, retendo dos livros, das aulas, das canções, somente o que me for congenial, e transmitindo somente o que já estiver em mim incorporado. Uma vez disse a Maria Ester Stockler, a propósito das referências presentes no filme que dirigi já nos anos 1980 (O cinema falado): ‘Só tem ali o que sai na urina’”. Talvez não seja mesmo tão importante a diferença entre “do circo” e “das coisas do circo”, e sim o fato de ter ocorrido o escorregão. Afinal, hoje, pode-se dizer que um dos procedimentos discursivos básicos do Tropicalismo tenha sido justamente colapsar o

O título da canção “Panis et circencis” parte de um lapso. Ou de dois, melhor dizendo. Caetano Veloso, no seu livro Verdade tropical, diz que se lembrava da expressão com “i” - circencis, quando na realidade, o correto é com “se”- circenses. Ele também pensava que a expressão queria dizer algo como “do pão e do circo”, quando, na verdade, seu significado é “do pão e das coisas do circo”. É muito significativo que o título dessa canção, que é também o subtítulo desse discomanifesto - Tropicália ou Panis et circencis –, tenha derivado de um lapso. O lapso não é exatamente um erro. É, na etimologia, um escorregão da memória. E colapso, poderíamos deduzir, meio poética e meio cientificamente, seria então um lapso coletivo da memória.

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discurso convencional. (...) Permitir a saturação, o excesso e o desperdício, porque a economia e o controle lógicos, a essa altura do campeonato, estavam muito mais localizados na “sala de jantar”, no mundo da produtividade e da funcionalidade. Quarenta e dois anos depois de feita a canção e o disco-manifesto, é o caso de se pensar: e será que essa letra e o arranjo antropófago de Rogério Duprat ainda fazem sentido? Diria que fazem muito sentido, sim. Talvez as pessoas da sala de jantar já não sejam as mesmas, nem estejam fazendo as mesmas coisas, nem tampouco o “eu” precise ir tanto atrás de luz: de uma “canção iluminada de sol”, de um “luminoso punhal”, e de “folhas que sabem procurar pela luz”. Há realmente mais luz agora e os “eus” não precisam ser como raízes que sabem “procurar, procurar”, pois tantos deles já vieram à superfície da terra. Atualmente, pode-se dizer que pão e circo não são mais suficientes para calar as “pessoas na sala de jantar”. Nem o poder mais quer tanto calálas, nem elas são mais tão facilmente caláveis. É até mais difícil fixá-las em tipos únicos. Elas se espalharam mais, estão distribuídas por todas as classes e lugares e muitos dos frequentadores das salas de jantar de antigamente já abandonaram seus postos. Outros foram para lá e alguns, tendo saído, acabaram voltando. Mas a canção “Panis et circencis” se sustenta vivamente como lembrança e como possibilidade. Infelizmente, não faltam novas “salas de jantar”. Felizmente também, não faltarão pessoas e canções, que, como essa, são iluminadas de sol.

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