Mary balogh amantes 02

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Mary Balogh

Série Amantes 2

Amante de Ninguém

Tradução/Pesquisa: GRH Revisão Inicial : Dani Paim Revisão Final e Formatação:Ana Paula G.

Comentário da Revisora Dani

A mocinha é teimosa, ele é fofo. O romance entre os personagens principais é praticamente impossível, passei grande parte do livro curiosa para saber como a autora iria resolver a situação deles.

Comentário da Revisora Ana Paula G.

Achei o livro muito fofo.Por dois motivos: a mocinha é uma cortesã...bem, foi

uma cortesã...mas não é daquelas que ficam se lastimando.Fez o que achou que deveria fazer para salvar sua família.O mocinho é ...virgem! Muito lindo...ele não


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queria transar por transar...Envolvente, romântico, com um pouco de drama...mas muito lindo! Vale a pena!

Resumo

Viola Thornhill nunca imaginou como a previsão da cigana seria correta "Cuidado com um forasteiro alto, bonito e de cabelos escuros...". Viola achou que tivesse encontrado a paz em Pinewood Manor, a casa que lhe foi legada pelo falecido conde de Bamber, porque este confiava nela e acreditava que merecia outra chance. Mas o Senhor Ferdinand Dudley Trellick viajou a Trellick com o objetivo de tomar posse da mesma casa, que ganhou em um jogo de cartas do jovem Bamber. Nem Ferdinand nem Viola estão dispostos a desistir do que eles consideram deles, e embarcar em uma convivência que muitas surpresas lhes trarão.

Capítulo Um O pitoresco povoado de Trellick, protegido no vale de um rio em Somersetshire, costumava ser um remanso de paz. Entretanto, nesse dia em concreto não era. No meio da tarde, todos seus habitantes, além de todos os vizinhos da comarca que se estendia vários quilômetros à volta, pareciam estar no prado do povoado, desfrutando da diversão. O pau de maio (Maypole)1 que se elevava no centro do lugar, com as coloridas fitas balançando na brisa, proclamava a natureza da festa. Celebravam as festividades de Primeiro de

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Maio2. Mais avançada à tarde, os jovens dançariam ao redor do pau com os pares que tivessem escolhido, tal como costumavam a fazer ano após ano com grande vigor e entusiasmo. Enquanto isso no prado se celebrava as corridas e outras competições, daí que estivesse tão movimentado. Dispostos em torno do prado, os comerciantes ofereciam seus produtos: deliciosos manjares, vistosas bagatelas ou estimulantes jogos de habilidade, força ou sorte. O tempo colaborava, já que havia sol e nenhuma única nuvem no céu azul. As mulheres e as meninas tinham abandonado os xales e os casacos que usavam pela manhã. Alguns homens e a maioria dos meninos usavam somente a camisa porque muitos tinham participado das extenuantes competições. Haviam tirado mesas e cadeiras do salão paroquial para poder servir o chá e os bolos sem perder nenhum detalhe das celebrações. E, do outro lado do prado do povoado, a estalagem Cabeça do Javali também havia disposto mesas e bancos para comodidade daqueles que preferissem a cerveja ao chá. Alguns forasteiros que passavam pelo povoado a caminho de algum destino desconhecido se detiveram um momento para observar o festejo e inclusive, em alguns casos, participar antes de retomar o caminho. Um de ditos forasteiros cavalgava devagar até o prado do povoado pelo caminho principal enquanto Viola Thornhill servia o chá às senhoritas Merrywether. Se o homem não tivesse ido a cavalo, Viola não o teria visto por cima das cabeças dos convivas. O caso foi que elevou a vista, olhou-o um instante e decidiu observá-lo com mais atenção. Era evidente que se tratava de um cavalheiro. Mais concretamente de um cavalheiro vestido muito na moda. A jaqueta de montar azul escuro parecia ter sido moldada a sua figura. A camisa que usava debaixo era de um branco imaculado. A calça de couro preto se amoldava as longas pernas como uma segunda pele. As botas de montar reluziam, e com certeza era obra do melhor dos sapateiros. Mas não foi tanto a roupa como o homem que a usava o que atraiu a atenção de Viola e provocou sua fascinação. Era um homem jovem, magro, moreno e bonito. Enquanto o olhava, ele jogou para trás a cartola. E o viu sorrir.

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O 1º dia do mês de maio é conhecido como May Day. É quando os dias se tornam mais quentes e as flores e arvores começam a florescer. Costumam dizer que é a época para o amor e romance. É quando as pessoas celebram a chegada do verão com diferentes costumes, expressando a alegria e a esperança depois de um longo inverno. A celebração do tradicional May Day inclui Morris Dancing, a coração da rainha do May Day e dançar em volta do Maypole ou Pau de maio.


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—Senhorita Thornhill — disse a senhorita Prudence Merrywether —, não deveria estar servindo o chá. Deveríamos ser nós quem o servisse a você. Certamente leva todo o dia correndo de um lado para outro. Viola a tranquilizou com um sorriso amável. —Mas estou desfrutando — assegurou —. Não é verdade que tivemos muita sorte com este dia tão bom? Quando voltou a olhar, o forasteiro havia desaparecido de sua vista, embora não tivesse ido embora. Um dos moços que trabalhava de cavalariço nos estábulos da estalagem levava o cavalo dele pelas rédeas. —Senhorita Vi — disse uma voz conhecida a suas costas, e ela se virou com um sorriso para falar com a mulher gordinha e baixa que encostou uma mão no ombro dela —, a corrida de sacos está a ponto de começar e a necessitam para que você dê a largada e entregue os prêmios. Eu servirei o chá. —Seria tão amável, Hannah? — Viola lhe entregou o bule e se apressou para o prado, onde um grupo de crianças estava colocando as pernas em seus respectivos sacos e atando-o à cintura. Viola ajudou aos mais atrasados e depois os acompanhou até a linha mais ou menos reta traçada no chão e que indicava o ponto de partida. Os participantes avançaram a saltos. Os adultos se congregaram ao redor do prado para observar e animar as crianças. Viola havia saído de casa cedo nessa manhã com o aspecto elegante de uma dama: um vestido de musselina, um xale e um chapéu de palha que cobria o cabelo recolhido com uma trança a modo de diadema. Inclusive usava luvas. Entretanto, fazia muito que havia descartado todos os acessórios de sua indumentária. Inclusive o cabelo, cujas mechas tinham insistido durante toda a manhã em escapar das forquilhas com todas as idas e vindas, ficou livre e a longa trança caía solta pelas costas. Sentia-se acalorada e feliz. Não recordava ter se divertido tanto na vida. —Preparados — gritou enquanto se colocava na lateral do percurso —, preparados… Já! Mais da metade dos participantes caiu de bruços no chão depois do primeiro salto, com as pernas e os pés enredados no saco. Todos fizeram o esforço de levantar-se, animados pelas benevolentes gargalhadas e os gritos de apoio de seus familiares e vizinhos. Mas era inevitável que uma menina completasse o percurso saltando como um gafanhoto e cruzasse a linha de chegada antes que alguns de seus desafortunados companheiros de corrida se recuperassem da queda. Enquanto ria com alegria, Viola se descobriu olhando o belo e moreno forasteiro, que se encontrava na linha de chegada e cujo sorriso aumentava seu já de por si extraordinário atrativo. Olhou-a com franca admiração da cabeça aos pés antes que ela afastasse a vista, mas Viola


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descobriu com surpresa que a admiração com a qual a observava a divertia, inclusive lhe provocava mais euforia que repulsão. Apressou-se na entrega dos prêmios. Depois devia correr para a estalagem, onde formaria parte do jurado do concurso de empanadas junto com o reverendo Prewitt e o senhor Thomas Claypole. —Comer empanada dá muita sede — afirmou o vigário algo mais de meia hora depois, rindo entre dentes e dando tapinhas no abdômen após ter provado todas as empanadas e declarado a ganhadora —. E se não estiver muito equivocado, você não descansou nenhum um pouco durante todo o dia, senhorita Thornhill. Agora mesmo vá à esplanada da igreja e sente-se à sombra. A senhora Prewitt ou alguma das outras damas lhe servirá uma xícara de chá. O senhor Claypole ficará encantado de acompanhá-la, não é certo, senhor? Viola teria preferido economizar a companhia do senhor Claypole, quem depois de lhe propor casamento ao menos doze vezes ao longo do ano parecia se achar com certo direito sobre ela e com o privilégio de poder lhe falar com franqueza sobre um sem-fim de temas. Thomas Claypole era um homem honrado, isso era o melhor que podia dizer-se dele. Era um cidadão modelo, administrava a propriedade com prudência e era um filho responsável. Em seus melhores momentos era uma companhia aborrecida. Nos piores, era insuportável. —Desculpe-me, senhorita Thornhill — disse logo que estiveram sentados a uma das mesas, à sombra de um vetusto carvalho, depois que Hannah lhes serviu o chá —, mas suponho que não a incomodará que como amigo lhe fale com sinceridade. De fato, acredito que posso me ver como algo mais que seu amigo. —Diga, senhor, que crítica tem a fazer a um dia tão perfeito como este? — replicou ela enquanto apoiava o cotovelo na mesa e o queixo na mão. —Sua disposição para organizar a festa com o comitê do vigário e o árduo trabalho que realizou para assegurar-se de que tudo funcione bem são admiráveis — respondeu ele enquanto os olhos de Viola, e sua atenção, voavam para o forasteiro, a quem podia ver bebendo cerveja em uma das mesas da estalagem —. Ganhou todo o meu respeito. Entretanto, em certo modo me alarmou que com o passar do dia de hoje tenha sido quase impossível distingui-la de qualquer moça do povoado. —Ah, é mesmo? — Viola soltou uma gargalhada —. Que comentário mais maravilhoso. Embora acredite que você não pretendia que fosse uma adulação, equivoco-me? —Está com a cabeça descoberta e o cabelo solto — assinalou o senhor Claypole —. Com margaridas nele!


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Havia se esquecido desse detalhe. Um dos meninos a presenteou com um ramalhete de margaridas que havia colhido a primeira hora da manhã perto do rio e ela as colocou no cabelo, justo em cima da orelha esquerda. Tocou as flores com cuidado. Sim, seguiam no lugar. —Acredito que é seu chapéu de palha o que está abandonado no último banco da igreja — continuou o senhor Claypole. —Ora! — exclamou ela —. Então foi ali onde o deixei, não é? —Deveria usá-lo para proteger sua cútis dos danos raios do sol — recriminou com suavidade. —Deveria, sim — conveio Viola, que apurou o chá e se levantou —. Se me desculpar, vejo que a pitonisa 3acaba de abrir por fim a barraca. Devo ir e verificar se tem tudo o que precisa. Entretanto, o senhor Claypole não teria reconhecido o comentário como a sutil indireta de que o tinha despachado mesmo que tivesse lhe dado um soco no nariz. De modo que também ficou em pé, fez uma reverência e ofereceu um braço. Viola o aceitou com resignação. Na realidade, era consciente de que a pitonisa estava muito ocupada com o negócio. Não obstante, o que a decidiu a levantar-se foi ver que o forasteiro se aproximou da atração de tiro ao alvo que tanto furor fez entre os jovens a primeira hora da tarde. O homem estava falando com o ferreiro, Jake Tulliver, quando Viola e o senhor Claypole se aproximaram. —Estava a ponto de fechar porque ficamos sem prêmios — explicou Jake, elevando a voz para que ela o ouvisse —, mas este cavalheiro quer tentar. —Bom — replicou ela com voz alegre —, nesse caso teremos que cruzar os dedos para que não ganhe, não acha? O forasteiro virou a cabeça para olhá-la. Certamente era alto, uma cabeça mais alto. E os olhos eram muito escuros. Outorgavam ao belo rosto um ar perigoso. Viola sentiu que o pulso acelerava. —Ah! — exclamou ele, que acrescentou com confiança —: Ganharei, senhorita. —Ah, sim? — perguntou Viola —. Enfim, isso não será absolutamente surpreendente. Outros também ganharam, quase sem exceção. Daí a vergonhosa falta de prêmios para entregar. Suponho que os alvos estejam muito perto. Ano que vem levaremos isso em conta, senhor Tulliver. —Mesmo que os coloquem o dobro de distancia que estão agora, acertarei — afirmou o forasteiro.

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Os gregos davam o nome de Pitonisas a todas as mulheres que tinham a profissão de adivinhas, porque o deus da adivinhação, Apolo, era cognominado de Pítio, quer por haver matado a serpente-dragão Píton, quer por ter estabelecido o seu oráculo em Delfos, cidade primitivamente chamada Pito. A Pitonisa era a sacerdotisa do oráculo de Delfos.


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Viola arqueou as sobrancelhas ante semelhante alarde e olhou os castiçais (os mais velhos que tinham encontrado na sacristia), que caíram como moscas inclusive antes de serem golpeados pela bola que lançavam os participantes. —Está seguro? — replicou ela —. Muito bem, então. Demonstre. Deve derrubar ao menos quatro dos cinco e só dispõe de cinco lançamentos. Se o conseguir, devolveremos o dinheiro. É o melhor que podemos lhe oferecer. A arrecadação que obtivermos hoje será usada para as obras de caridade do vigário, assim não podemos conceder prêmios em dinheiro. —Dobrarei o preço normal para participar — se ofereceu o forasteiro com um sorriso que lhe outorgou um aspecto temerário e juvenil —. E acertarei os cinco castiçais que se disporão ao dobro da distância atual. Mas insisto em obter um prêmio, senhorita. —Poderíamos lhe oferecer o capitel da igreja sem medo de despojar o templo — repôs ela —. Afinal, é impossível. —Ah, mas é possível sim! — assegurou ele —. Sempre e quando o prêmio sejam as margaridas que tem sobre a orelha. Viola as tocou e riu. —Um prêmio muito valioso, é claro que sim — replicou —. Muito bem, senhor. O senhor Claypole pigarreou. —Permita-me assinalar que as apostas são inadmissíveis em uma festa essencialmente eclesiástica, senhor — assinalou. O forasteiro olhou Viola com expressão risonha, quase como se acreditasse que era ela quem tinha falado. —Nesse caso, nos asseguraremos de que a igreja se beneficie da aposta — disse —. Vinte libras irão à igreja, ganhe ou perca. As margaridas da dama serão para mim se ganhar. Afaste os alvos — ordenou a Jake Tulliver, enquanto colocava algumas notas na bancada. —Senhorita Thornhill — disse o senhor Claypole ao ouvido depois de aferrá-la pelo braço —, isto não está bem. Você está sendo alvo de muita atenção. Viola olhou ao redor e, efetivamente, viu que as pessoas que aguardavam a vez para falar com a pitonisa e que haviam escutado a conversa se aproximaram deles. E dita atenção atraía a de muitos outros. Um bom número de pessoas caminhava depressa para eles atravessando o prado. O forasteiro estava tirando a jaqueta e arregaçando a camisa. O ferreiro estava colocando os castiçais na nova posição. —Este cavalheiro doou vinte libras aos recursos do vigário — anunciou Viola alegremente a crescente multidão —. Se derrubar os cinco castiçais com cinco tiros de bola, ganhará… minhas margaridas. — E assinalou as flores enquanto falava, rindo com a multidão.


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O forasteiro, entretanto, não riu. Estava testando o peso da bola na mão, muito concentrado, e observando com os olhos entrecerrados os castiçais que pareciam estar a uma distância impossível de alcançar. Era improvável que ganhasse. Viola duvidava de que chegasse a derrubar embora sequer. Entretanto, um acabou no chão enquanto ela refletia a respeito e a multidão, encantada, prorrompeu em aplausos. Jake Tulliver devolveu a bola ao forasteiro, que voltou a concentrar-se. O silêncio se fez entre a multidão, a qual Viola juraria que tinha dobrado seu tamanho. Um segundo castiçal cambaleou, esteve a ponto de voltar ao lugar, mas acabou golpeando o chão. Ao menos, pensou Viola, o cavalheiro não ficaria em ridículo. Somente de camisa estava ainda mais bonito. Parecia muito… enfim, muito viril. E desejava com todas as forças que ganhasse a aposta. Embora tivesse proposto uma tarefa quase impossível. Voltou a concentrar-se de novo. O terceiro castiçal caiu. O quarto não o fez. A multidão gemeu ao uníssono. Viola se sentiu decepcionada, por absurdo que parecesse. —Senhor — disse —, acredito que conservarei minhas flores. —Não tão depressa, senhorita. — O forasteiro voltava a sorrir enquanto estendia a mão para recuperar a bola —. A aposta consiste em derrubar os cinco castiçais com cinco lançamentos, certo? Acaso afirmei que cada lance de bola deva derrubar um só castiçal? —Não. — Viola se pôs a rir ao compreender o que queria dizer —. Mas só resta um tiro e dois castiçais em pé. —Ah, mulher de pouca fé — murmurou ele ao tempo que lhe piscava o olho, e Viola sentiu um agradável comichão no estômago. O forasteiro se concentrou uma vez mais e aqueles que tinham entendido que não tinha admitido ainda sua derrota se dedicaram a silenciar à multidão, enquanto o coração de Viola pulsava de forma ensurdecedora. Assombrada, arregalou os olhos, e a multidão estalou em vivas quando a bola golpeou um castiçal, que virou para o lado enquanto caía e derrubava o quinto com um som muito satisfatório. O cavalheiro deu a volta, saudou com uma reverência à audiência e sorriu a Viola, que estava aplaudindo e rindo, consciente de que esse tinha sido o momento mais emocionante de todo o dia. —Acredito que perdeu esse ramalhete, senhorita — disse ele, assinalando as margaridas —. E penso reclamar o prêmio em pessoa.


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Ficou quieta enquanto os dedos dele liberavam o ramalhete de margaridas de seu cabelo. O olhar risonho do forasteiro não abandonou em nenhum momento o dela. Nesse instante percebeu que tinha olhos muito escuros. A pele estava bronzeada pelo sol. O calor corporal e a colônia almiscarada dele a envolveram. O forasteiro levou as margaridas aos lábios, fez uma ligeira reverência e prendeu os caules das flores em uma das casas da camisa. —O objeto de uma dama junto a meu peito — murmurou ele —. Que mais posso pedir deste dia? Entretanto, Viola não pôde replicar ao evidente flerte. A animada voz do reverendo Prewitt o impediu. —Bravo, senhor! — exclamou o reverendo enquanto se separava da multidão com a mão direita estendida —. Você é um homem muito decente, se me permite dizer. Venha à esplanada da igreja para que minha esposa lhe sirva uma xícara de chá e, enquanto, falo de todas as obras benéficas que vão se favorecer de sua generosidade. O forasteiro olhou Viola com um sorriso e certa relutância antes de afastar-se com o vigário. —Foi um imenso alívio, senhorita Thornhill — disse o senhor Claypole uma vez que agarrava Viola pelo braço uma vez mais, enquanto a multidão se dispersava para as atrações —, que o reverendo Prewitt tenha podido encobrir a vulgaridade desta cena, já que a converteu no alvo da aposta. Uma circunstância absolutamente decente. Talvez agora… Viola não lhe deu a oportunidade de terminar a frase. —Senhor, acredito que sua mãe esteja lfe fazendo gestos nos últimos dez minutos — disse. —Por que não me avisou antes? — O senhor Claypole desviou a vista para a igreja e se afastou sem olhar atrás. Viola olhou Hannah, que estava perto, arqueou as sobrancelhas e soltou uma gargalhada. —Senhorita Vi — disse Hannah, meneando a cabeça —, é pecaminosamente bonito. E o dobro de perigoso, se me permitir isso. Era evidente que não estava falando do senhor Claypole. —Só é um forasteiro que está de passagem, Hannah — assinalou ela —. Fez uma doação muito generosa, não é verdade? Vinte libras! Devemos nos sentir agradecidos de que se deteve em Trellick. Agora vou para que me leiam a sorte. Entretanto, as pitonisas eram todas iguais, pensou quando se afastou da barraca após um momento. Por que não tentavam ser um pouco originais ao menos? Essa em concreto era uma cigana famosa por poder predizer o futuro com muita precisão. —Cuidado com um forasteiro alto, bonito e de cabelo escuro — disse a mulher depois de consultar a bola de cristal —. Pode destruí-la… se você não conquistar seu coração antes.


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Alto, bonito e de cabelo escuro, nada menos! Viola sorriu ao menino que a parou para lhe mostrar o pião novo. Que tópico mais lamentável! E nesse momento voltou a ver o forasteiro, que se afastava da esplanada da igreja para os estábulos da estalagem. Isso queria dizer que partia. Que continuava seu caminho para aproveitar a luz do dia. Um forasteiro alto, bonito e de cabelo escuro, pensou. E começou a rir. O sol começava a descer pelo oeste, da estalagem chegavam os acordes dos violinistas enquanto afinavam seus instrumentos. Um par de homens comprovava as fitas do pau de maio para assegurar-se de que não estavam enredadas. Observou tudo, envolvendo-se dos sons, com certa tristeza. Dançar ao redor do pau de maio sempre era o ponto alto e mais alegre das celebrações de Primeiro de Maio. Entretanto, era uma atividade que ela não participava. Não se considerava uma ocupação apropriada para as famílias de classe alta do povoado ou dos arredores. Uma dama podia olhar, mas nunca participar. Não importava. Olharia e desfrutaria do espetáculo, tal como fez no ano anterior, seu primeiro de Maio em Trellick. De momento, esperavam-na para jantar na vicária. Quando Viola voltou a sair da vicária, havia escurecido e as fogueiras brilhavam em boa parte do prado do povoado, iluminando o lugar para poder dançar. Os violinistas estavam tocando e os jovens já giravam ao redor do pau de maio, dançando com alegria e entusiasmo. Rechaçou o convite do reverendo Prewitt e de sua esposa para passear pelo prado. Em troca, dirigiu-se à deserta esplanada da igreja para desfrutar do espetáculo a sós. Era uma noite primaveril muito cálida. Havia coberto os ombros com o xale embora não fosse necessário. Certamente o chapéu estava no último banco da igreja. Hannah, sua donzela e anteriormente preceptora, desfez a trança e escovou o cabelo para prendê-lo com uma fita à altura da nuca. Assim era mais cômodo. O senhor Claypole se escandalizaria se a visse desse jeito, mas por sorte tinha acompanhado a mãe e a irmã de volta a casa ao anoitecer. Os violinistas deixaram de tocar e os bailarinos se dispersaram pelo prado para recuperar o fôlego e escolher novos pares de dança. A lua estava quase cheia, observou Viola quando jogou a cabeça para trás. O céu estava coalhado de brilhantes estrelas. Tomou uma funda baforada do fresco ar campestre, fechou os olhos e agradeceu em silêncio. Quem teria pensado dois anos antes que viveria em um lugar assim? Que pertenceria a um lugar como esse, que seria aceita e bastante querida. Sua vida poderia ser muito diferente nesse momento se…


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—Caramba, o que faz aqui escondida quando deveria estar dançando? — perguntou uma voz. Viola abriu os olhos de repente. Não o tinha visto aproximar-se nem tampouco o ouviu. O viu entrar nos estábulos pela tarde e supôs que havia reatado a marcha fazia muito. Disse a si mesma que não estava decepcionada. Afinal, por que estaria? Só era um forasteiro atraente que havia roçado sua vida e que paquerou com ela por um ramalhete de margaridas silvestres. Entretanto, ali estava diante dela, esperando a resposta com o rosto escurecido pelas sombras. Esperando sua resposta! De repente, entendeu o que acabava de lhe dizer. «… quando deveria estar dançando.» Seria o final perfeito para um dia perfeito. Girar ao redor do pau de maio. Dançar com um belo desconhecido. Nem sequer queria saber quem era. Queria manter o mistério para poder recordar desse dia com um prazer absoluto. —Estive esperando o par adequado, senhor — respondeu. E depois, com total descaramento, acrescentou em voz baixa —: Estive esperando você. —Ah, sim? — Estendeu uma mão —. Pois aqui estou. Viola deixou cair o xale ao chão e aceitou a mão. O forasteiro tomou com força antes de afastá-la do lugar. Depois tudo foi como um conto de fadas. O prado iluminado pelas titilantes fogueiras, o aroma de madeira queimada que flutuava no ar. Os jovens já levavam os pares para o pau e pegavam suas respectivas fitas. Entretanto, o forasteiro conseguiu duas e entregou uma a ela enquanto lhe dava de presente um sorriso na escuridão. E a seguir os violinistas começaram a tocar uma alegre toada e começou o baile, os passos enérgicos e complicados; a rotação no sentido das agulhas do relógio; os giros e os passos agachados; o trançado das fitas que iam cruzando para se descruzarem milagrosamente momentos depois; o ritmo alegre e constante que corria pelas veias; as estrelas que giravam no céu; o crepitar das fogueiras, que arrojavam misteriosas sombras sobre os rostos e que pouco depois iluminavam a intensa alegria que irradiavam; e os espectadores nos confins do prado, e cujas palmas os animavam ao ritmo que marcavam os violinos e os bailarinos. No centro do conto, esse bonito forasteiro de pernas longas que seguia só de camisa e que ainda levava o ramalhete de margaridas, já murchas, dançando com suma elegância, energia e alegres gargalhadas. Sem perder um detalhe de sua euforia. Como se o universo girasse em torno deles da mesma maneira que eles giravam em torno do pau de maio. Viola ficou sem fôlego quando a música terminou, e tão contente que acreditava estar a ponto de explodir de felicidade. Embora também estivesse triste, porque esse dia mágico havia


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terminado. Hannah estaria ansiosa por retornar a casa. Tinha sido um dia tão ocupado para ela como para Viola. Não queria que sua acompanhante se sentisse obrigada a ficar mais tempo… embora esse generoso impulso ficou relegado ao ponto, ao menos de momento. —Parece-me que lhe viria bem um copo de limonada — sugeriu o forasteiro enquanto colocava uma mão na base das costas e se inclinava para ela com um sorriso. Já não se servia chá na esplanada da igreja. Entretanto, tinham deixado duas mesas no exterior, com um enorme recipiente a transbordar de limonada e uma bandeja de copos em cada uma. Não muitos se aproximaram para beber. A maioria das pessoas de mais idade já havia voltado para casa e os mais jovens preferiam a cerveja que servia na estalagem. —Certamente — conveio. Não falaram enquanto cruzavam o prado e se dirigiam ao caminho para a esplanada da igreja, em direção à mesa que se dispôs sob a sombra do carvalho, onde Viola se resguardou do sol depois do concurso de empanadas. O forasteiro lhe serviu um copo de limonada e a observou enquanto ela o bebia e agradecia a fresca acidez. A suas costas, ocultos pelo grosso tronco do carvalho, os violinistas voltavam a tocar, e a música se mesclava com as vozes e as gargalhadas. Frente a ela via a luz da lua refletida no rio, que se afastava do povoado serpenteando para perderse depois da igreja. Era uma imagem que estava se esforçando para memorizar. Quando terminou de beber, o forasteiro pegou o copo e o deixou na mesa. Esteve a ponto de perguntar se ele não tinha sede. Mas se viram envolvidos em um feitiço, embargados por uma tensão que poderia romper-se com palavras. E Viola não desejava rompê-la. Não tinha desfrutado de uma infância normal e comum… ao menos não após cumprir os nove anos. Não teve a oportunidade de fugir entre as sombras para desfrutar de um inocente e clandestino encontro com um pretendente. Não teve oportunidade de apaixonar-se nem de paquerar. A seus vinte e cinco anos, de repente se sentia como a moça em que teria se convertido se sua vida não tivesse mudado para sempre fazia um século. Gostava da ideia de ser essa moça, embora fosse por um breve lapso de tempo. O forasteiro lhe passou um braço pela cintura e a aproximou do corpo dele. Com a mão livre, pegou a ponta da trança e deu um suave puxão, o necessário para obrigá-la a jogar a cabeça para trás. A luz da lua que se filtrava através dos galhos da árvore lhe iluminava o rosto. Viu-o sorrindo. Por acaso sempre sorria? Ou só estava aproveitando a oportunidade que lhe oferecia esse dia entre desconhecidos aos quais não voltaria a ver para escapar de uma realidade muito mais séria? Fechou os olhos quando o forasteiro inclinou a cabeça e a beijou.


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Não durou muito. Não foi nem por indício um beijo lascivo. Embora os lábios do forasteiro a obrigaram a entreabrir os seus, não tentou apoderar-se de sua boca. Com a mão na cintura a segurava com força enquanto que com a outra retinha a fita do cabelo. Viola não se deixou arrastar pela paixão, embora soubesse que podia deixar-se levar se quisesse. Não esbanjaria semelhante momento dessa forma. O que fez foi saborear e memorizar com ternura cada sensação. Sentiu as fortes e atléticas coxas embainhadas na calça de couro contra a suavidade de suas pernas; o duro abdômen contra seu ventre; o firme torso contra seus seios. Sentiu o úmido roce dos lábios e o quente fôlego na bochecha. Aspirou a mescla de colônia, couro e homem, e saboreou a cerveja daquela boca e algo mais que não soube identificar e que devia ser a própria essência dele. Ouvia a música, as vozes, as risadas, o fervo do rio e o ulular de um mocho… mas eram sons muito longínquos. Enterrou os dedos no abundante e sedoso cabelo, e com a outra mão apalpou os desenvolvidos músculos do ombro e braço. «Proteja-se de um forasteiro alto, bonito e de cabelo escuro.» Apurou ao máximo o breve e clandestino romance juvenil. E depois, quando ele elevou a cabeça e a soltou, Viola aceitou o fato de que o dia havia terminado. —Obrigado pelo baile. — O forasteiro pôs-se a rir —. E pelo beijo. —Boa noite — se despediu ela em voz baixa. O forasteiro a olhou em silêncio um momento. —Boa noite, moça — replicou ele antes de pôr-se a andar em direção ao prado do povoado.


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Capítulo Dois Trellick era um povoado muito bonito. Já havia se dado conta no dia anterior, desde o trecho do caminho que discorria com o passar do vale do rio. Essa manhã, enquanto tomava uma xícara de café junto à janela da estalagem Cabeça do Javali, lorde Ferdinand Dudley reparou nas casinhas caiadas, com os telhados de palha e coloridos jardins, que se localizavam a ambos os lados do prado. A beira do rio se erigia a igreja de pedra, com o alto capitel e a ampla esplanada, em cujo centro se elevava um antigo carvalho. A vicária, com os muros cinzentos cobertos pela hera, encontrava-se junto ao templo. Não podia ver a água de onde se encontrava, nem tampouco via a fileira de lojas junto à estalagem, mas sim vislumbrava o bosque do outro lado do rio, um precioso marco rústico para a igreja e o povoado. Perguntou-se onde seria Pinewood Manor exatamente. Sabia que devia estar bastante perto, dado que o advogado de Bamber comentou que Trellick era o povoado mais próximo. Entretanto, a que distância se encontrava? Seria uma propriedade muito grande? Que aspecto teria? Tratar-se-ia de uma casinha como as que tinha diante? Uma construção maior, tal como sugeria seu nome? Um montão de ruínas? Ninguém parecia saber, muito menos Bamber, a quem tampouco dava a impressão de se importar muito. Ferdinand esperava um montão de ruínas. Poderia ter perguntado o caminho no dia anterior, é obvio. Afinal, esse era o motivo de que tivesse entrado no povoado. Mas não o fez. Quando chegou, a tarde estava muito avançada, por isso se convenceu de que seria melhor ver Pinewood Manor pela primeira vez pela manhã. A alegria da festa local com a qual se deparou era responsável em parte por essa decisão, claro estava, igual à moça com a incitante trança e com cujo risonho olhar se encontrou através do prado depois da corrida infantil de sacos. Sentiu vontade de ficar e desfrutar… e de averiguar mais sobre ela. Apenas duas semanas antes nem sequer tinha ouvido falar de Pinewood Manor. Mas ali estava, a ponto de ver uma casa ou ruínas enquanto se perguntava como chegaria até lá. «Uma perda de tempo», havia predito lorde Heyward, seu cunhado, referindo-se à viagem. Claro que Heyward não era muito dado ao otimismo, sobre tudo quando se tratava de qualquer


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empreendimento dos irmãos de Angeline. Não tinha muito boa opinião dos Dudley, apesar de ter se casado com uma. Não deveria ter beijado aquela mulher a noite anterior, pensou com inquietação. Não tinha por costume paquerar com moças inocentes. Além disso, suspeitava que pudesse ser algo mais que uma moça qualquer. E se depois de tudo Pinewood Manor estivesse muito perto e não se encontrasse em ruínas? E se decidia ficar uma temporada? Talvez resultasse ser a filha do vigário. Era uma possibilidade bastante plausível, já que a moça era uma das organizadoras da festa e a tinha visto sair da vicária. Não havia perguntado quem era. Nem sequer sabia o nome dela. Maldita fosse sua imagem, quem dera não fosse a filha do vigário! E tomara que Pinewood Manor não estivesse muito perto. Esse beijo roubado podia acabar sendo um motivo de rubor. É obvio, a moça era bonita o bastante para tentar um santo, e os Dudley nunca tinham procurado a santidade. A escura juba ruiva e as feições perfeitas, com aquele rosto oval, convertiam-na em uma beldade embora só a olhasse do pescoço para cima. Entretanto, se acrescentasse o resto da imagem… Ferdinand soprou e se afastou da janela. «Voluptuosa» era a primeira palavra que lhe ocorria. Era alta e magra, mas com curvas generosas nos lugares adequados. Não só viu com os próprios olhos, mas sim comprovou com o próprio corpo. Essa lembrança bastou para lhe provocar uma confusão muito incômoda. Dirigiu-se para o hospedeiro para pedir indicações sobre Pinewood Manor. Depois, foi em busca de seu ajudante de quarto, que havia chegado em plena noite com a carruagem que transladava sua bagagem, uma hora depois que seu lacaio aparecesse com o tilburi 4. Após uma hora, recém barbeado e com um traje de montar limpo e as botas tão reluzentes que poderia usar como espelho, Ferdinand cruzava o rio através de uma ponte de pedra com três olhos situado atrás da vicária. Conforme lhe assegurou o hospedeiro, Pinewood Manor estava pertíssimo. De fato, o rio delimitava a propriedade por dois de seus lados. Ferdinand não tinha pedido mais detalhes. Queria vê-lo em pessoa. De repente, percebeu que quase todas as árvores que havia na outra margem do rio eram pinheiros. Daí o nome de Pinewood Manor, como não. Entre o bosque e o rio discorria um atalho que seguia para a direita até perder-se de vista depois de uma curva do rio, que rodeava o povoado. Tinha um aspecto muito prometedor, mas não queria se alegrar antes do tempo. Não importava, disse a si mesmo. Embora se cumprissem as agourentas predições do Heyward, no fundo sua situação seguiria sendo a mesma. Somente teria perdido um par de 4

Um tipo de carro antigo, com dois assentos, sem boléia, com capota, de duas rodas e puxado por um cavalo.


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semanas da temporada social londrina e a chegada à cidade de seu irmão Tresham, com a esposa e os filhos. O ânimo de Ferdinand seguiu melhorando conforme avançava pelo serpenteiem caminho, protegido do sol pelas copas das árvores; de fato, era bem mais uma avenida de entrada grande o bastante para acomodar à carruagem mais grandiosa, e não apresentava indícios de descuido nem de desuso. Pôs-se a cantar, como fazia nas vezes que estava sozinho, oferecendo uma serenata às árvores e ao céu: —Ao chegar a primavera os moços se alegram. La-la-la-la-la, a-la-la-laaa. A-la-la-la-la-la-la. E cada um uma moça encontra. Entretanto, tanto a canção como o movimento se viram interrompidos em seco assim que saiu a uma clareira banhada pelo sol e se encontrou aos pés de um extenso jardim. Estava dividido pelo caminho, que se bifurcava para a esquerda antes de chegar à casa, que se encontrava muito perto. Casa, pensou, e assobiou baixo. Certamente era muito mais que uma casa. Poderia considerar uma mansão, embora esse talvez fosse um termo exagerado, admitiu para si mesmo ao recordar a grandiosidade de Acton Park, o solar onde havia crescido. Mesmo assim, Pinewood Manor era uma impressionante construção de pedra localizada em uma propriedade de considerável tamanho. Inclusive os estábulos e a cocheira para os que prosseguia o caminho eram bastante grandes. De relance, a esquerda, viu um par de homens que cortavam a grama com foices. Foi nesse momento quando reparou no aspecto cuidado da propriedade. Um dos trabalhadores o olhou com curiosidade, enquanto apoiava os braços no comprido cabo da foice. —Aqui é Pinewood Manor? — perguntou Ferdinand enquanto assinalava com a fusta. —Sim, senhor — respondeu o homem, que o saudou levando a mão à boina em sinal de respeito. Ferdinand reatou a marcha com certa sensação de euforia. Também retomou a canção quando considerou que se encontrava longe o bastante dos dois homens para que não o ouvissem, embora possivelmente não cantou com a mesma emoção de antes. —E se vão ao prado dançar — seguiu, por onde havia parado —. La-la-la-la-laaa. Manteve o tom alto enquanto notava que o prado não chegava até os degraus de entrada, mas terminava um pouco antes, diante de uma sebe baixa que delimitava o que parecia ser um jardim. E a menos que se equivocasse, contava inclusive com uma fonte. Que funcionava.


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Por que diabos se comportou Bamber com tanta despreocupação com uma propriedade aparentemente tão próspera? Encontraria a casa quase vazia apesar da prometedora fachada? Certamente estaria cheia de umidade e muito danificada pela falta de uso, mas se esse era o único problema, podia dar-se por satisfeito. Por que deixar que a possibilidade de semelhante insignificância estragasse o bom humor? Terminou o verso da canção com um gorjeio: —La-la-la-la-laaa. Diante da porta principal havia um terraço de ladrilhos, conforme viu a caminho aos estábulos. O jardim, que consistia em atalhos de cascalho, sebes e pulcros canteiros de flores, encontrava-se abaixo, aos pés dos três degraus. Ao desmontar junto aos estábulos se surpreendeu quando um cavalariço saiu de uma das cavalariças. O conde de Bamber nunca tinha vivido nessa propriedade perdida em meio de Somersetshire, nem sequer a tinha visitado, sempre e quando houvesse dito a verdade. Inclusive tinha assegurado desconhecer como era. Entretanto, parecia ter gasto dinheiro em sua manutenção. Por que se não havia dois jardineiros cortando o prado e um cavalariço nos estábulos? —Há criados na casa? — perguntou ao moço, tomado pela curiosidade. —Sim, senhor — respondeu enquanto preparava o cavalo para levar. — O senhor Jarvey o atenderá se bater na porta. Grande demonstração de pontaria com a bola, senhor, se me permitir a dizer. Eu só pude derrubar três castiçais, e estavam muito mais perto quando fiz. Ferdinand aceitou a adulação com um sorriso. —O senhor Jarvey? —O mordomo, senhor. Havia um mordomo? Muito curioso, certamente. Ferdinand se despediu com um gesto cordial da cabeça e cruzou o terraço para a porta dupla, na qual bateu. —Bom dia, senhor. Ferdinand esboçou um sorriso alegre ao ver o criado de aspecto respeitável que saiu a seu encontro e que o olhava com expressão educada. —Jarvey? — disse Ferdinand. —Sim, senhor. — O mordomo lhe fez uma reverência e abriu mais a porta antes de afastar-se para deixá-lo entrar. A julgar por seu olhar, sabia que tinha diante um cavalheiro. —Encantado em conhecê-lo — disse Ferdinand enquanto entrava na casa e dava uma olhada ao redor com supremo interesse. Encontrava-se em um vestíbulo quadrado, com tetos altos e piso ladrilhado. As paredes estavam decoradas com paisagens emolduradas em tons dourados e o busto de um romano de gesto sério colocado em um pedestal de mármore adornava um nicho justo em frente da porta. À direita havia uma escada de carvalho com um intrincado corrimão e à esquerda várias portas


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conduziam a outras estadias. Certamente, o aspecto do vestíbulo era um bom presságio para o resto da casa. Não só tinha um desenho amplo e agradável, além de estar muito bem decorado, mas também estava limpo. Tudo reluzia como os jorros do ouro. O mordomo tossiu com dissimulação quando Ferdinand pôs-se a andar para o centro do vestíbulo enquanto seus passos ressonavam nos ladrilhos; uma vez ali, girou sobre si mesmo com a cabeça ligeiramente inclinada. —No que posso ajudá-lo, senhor? —Pode me preparar o dormitório principal para esta noite — respondeu Ferdinand, sem lhe prestar muita atenção — e que tenham o almoço preparado para dentro de uma hora. É possível? Há cozinheiro? Um pouco de frios e pão bastarão se não tiver nada mais. O mordomo o olhou sem ocultar seu assombro. —O dormitório principal, senhor? — perguntou —. Peço desculpas, mas não me informaram de sua chegada. Ferdinand soltou uma risada, sem ofender-se, e se concentrou na essência da questão. —Já imagino — repôs —. Mas tampouco me informaram de sua presença. Suponho que o conde de Bamber não tenha escrito nem ordenou que o façam. —O conde? — O mordomo parecia mais assombrado ainda —. Nunca se misturou nos assuntos de Pinewood Manor, senhor. O conde… Típico de Bamber. Não saber nada desse lugar, nem sequer sobre a servidão. Não ter avisado de que lorde Ferdinand Dudley estava a caminho. Claro que tampouco lhe deu a impressão de que soubesse que tinha que avisar a alguém. Que desastre de homem! Ferdinand levantou uma mão. —Nesse caso, deve ser um criado dedicado em corpo e alma — disse — se tiver conservado a casa e a propriedade tão bem quando nunca veio para comprovar a situação. Pagava o conde as faturas sem fazer perguntas? Estou seguro de que já quase considera a casa de sua propriedade, em cujo caso desejará que vá ao inferno. Verá, isso está a ponto de mudar. Permita que me presente: sou lorde Ferdinand Dudley, irmão mais novo do duque de Tresham e novo proprietário de Pinewood Manor. De repente, essa verdade tomou outra aparência para ele. A propriedade era dele. E existia na realidade. Não só era um nome. Havia uma casa e um extenso jardim, e certamente também havia granjas. Tinha passado a formar parte da aristocracia latifundiária. O mordomo o olhou com tensa incredulidade. —O novo proprietário, senhor? — perguntou —. Mas… —Caramba, asseguro que a mudança de titularidade é completamente legal — repôs Ferdinand com secura e a vista cravada no lustre que tinha sobre a cabeça —. Há cozinheiro? Se não


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for assim, comerei no Cabeça do Javali até que haja um. Enquanto isso, ordene que preparem o quarto principal enquanto dou uma olhada por ai. Quantos criados há na casa? O mordomo não respondeu a pergunta. Em troca, escutou-se outra voz. Uma voz de mulher. Uma voz rouca que provocou um calafrio em Ferdinand, já que a reconheceu na hora. —Quem é, senhor Jarvey? — perguntou dita voz. Ferdinand virou a cabeça a toda pressa. A viu aos pés da escada, com a mão esquerda sobre o reluzente corrimão. Nesse dia estava totalmente diferente, embelezada com um vestido matinal verde escuro de corte império, que se amoldava as magníficas curvas nos lugares estratégicos; além disso, usava um severo coque, que afastava o cabelo do precioso rosto. Esse dia era impossível passar por cima que se tratava de uma mulher, não de uma jovenzinha. E que era uma dama, não uma moça do povoado. Por um instante lhe resultou familiar, uma lembrança distinta ao acontecido no dia anterior, mas a situação não lhe permitiu refletir a respeito. —Lorde Ferdinand Dudley, senhorita. — O mordomo, rígido e muito correto, pronunciou seu nome como se fosse um feto de Satanás. Pelo amor de Deus! Bamber não havia dito nada que a casa estivesse habitada. Teria esquecido? Durante a última meia hora, todos os indícios estiveram golpeando-o na cara como um punho gigante, mas como era tolo, não tinha reconhecido nenhum. A casa estava habitada. E dita habitante era, nada mais e nada menos, que a mulher a quem havia beijado a noite anterior. Talvez também estivesse habitada pelo marido dela. De repente, imaginou um encontro ao amanhecer com pistolas e grama por café da manhã. Nesse momento ela desceu o último degrau e se aproximou dele com rapidez, lhe estendendo a mão direita em sinal de recebimento. Sorria. Que bonita era, pelo amor de Deus! Umedeceu os lábios, que de repente ficaram muito secos. Nenhum marido apareceu furioso atrás dela. —É você! — ouviu-a exclamar. Ato seguido, pareceu assimilar o que o mordomo havia dito e seu sorriso fraquejou —. Lorde Ferdinand Dudley? Aceitou a mão que lhe estendia e fez uma reverência enquanto fazia ressonar os calcanhares, como um soldado ao bater continência. —Encantado — murmurou. Maldita fosse sua imagem!, Acrescentou para si mesmo. —Supus que teria dado continuidade a viagem esta manhã — comentou ela —. Não esperava voltar a vê-lo. Está indo para muito longe? Foi muito amável ao me fazer uma visita antes de ir. Alguém lhe indicou onde vivo? Entre ao salão. O senhor Jarvey nos trará um lanche. Ia sair para passear, mas me alegro muitíssimo de que tenha chegado antes que eu saísse.


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«Onde vivo», repetiu Ferdinand. Sua mente captou essas palavras ao voo. Vivia ali. Acreditava que tinha ido visitá-la devido à intensa conexão que experimentaram no dia anterior. Por Deus, que má sorte teve! Conseguiu esboçar um sorriso com toda a dor de seu coração, fez outra reverência e lhe ofereceu o braço. —Será um prazer — replicou em vez de limitar-se a dizer como estavam as coisas e terminar de uma vez. Isso o ensinaria a evitar as festas rurais e às moças bonitas, pensou quando ela o segurou pelo braço e o conduziu à escada. Tentou desterrar da mente o momento em que a viu dançando com evidente alegria ao redor do pau de maio no prado do povoado com um sorriso deslumbrante e o rosto iluminado pela luz das fogueiras, e a abundante juba agitando-se contra as costas, por debaixo da fita que segurava. Também tentou desterrar da mente o beijo que tinha iniciado sem pensar, durante o qual colou a voluptuosa figura contra ele. Maldita fosse sua imagem!

Capítulo Três


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Tinha ido vê-la. Seguia tão alto, atlético e elegante como no dia anterior, embora usasse outro traje de montar. Estava tão bonito e sorridente como recordava, e era um aristocrata! Lorde Ferdinand Dudley. Recordou que o braço ao qual se aferrava com delicadeza a estreitou com força a noite anterior. Recordou o que sentiu quando se beijaram na boca. Tinha ido vê-la! Era absurdo, além de pouco desejável, imaginar que tivesse ido cortejá-la. Tratava-se de um simples forasteiro de passagem pelo povoado que havia dançado com ela e a beijado, e que depois descobriu sua identidade e estava lhe fazendo uma visita de cortesia. Não havia nada mais, estava segura. Talvez também sentisse, igual a ela, o romântico feitiço da dança ao redor do pau de maio e do que aconteceu depois, tal e como ocorreu a ela. Tinha ido vê-la uma vez mais antes de ir embora. Tinha ido vê-la! Viola conduziu lorde Ferdinand Dudley até o salão e o convidou a que tomasse assento em uma das poltronas colocadas junto à lareira de mármore. Ela se sentou na poltrona em frente, olhando-o com um sorriso. —Como descobriu minha identidade? — perguntou, contente porque ele teve o trabalho de descobrir. Lorde Ferdinand pigarreou como se sentisse incômodo. Que agradável resultava saber que podia incomodar um aristocrata! Seus olhos o olharam com radiante alegria. —Pedi ao dono da Cabeça do Javali que me indicasse o caminho até Pinewood Manor — respondeu ele. Ora! Então já conhecia sua identidade no dia anterior. Ela, em troca, ignorava a dele e nem sequer se expôs a possibilidade de descobri-la. Entretanto, a alegrava que tivesse ido apresentar-se antes de prosseguir caminho. Alegrava-a que o encontro do dia anterior tivesse significado algo para ele, como havia significado para ela. —A festa foi um êxito terminante — comentou. Queria que lorde Ferdinand falasse dela, que mencionasse o precioso baile. —Certamente. — Voltou a pigarrear e ruborizou. Antes que pudesse continuar falando, não obstante, a porta do salão foi aberta e apareceu uma criada com a bandeja do café, que colocou diante de Viola, e depois procedeu a despedir-se com uma reverência. Viola serviu duas xícaras e se levantou para deixar uma delas na mesinha situada junto a lorde Ferdinand, que a observou em silêncio.


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—Enfim, senhorita — comentou enquanto ela voltava a sentar-se —, Bamber tampouco escreveu a você? —O conde de Bamber? — Olhou-o, surpreendida. —Senhorita, rogo que me desculpe — seguiu ele —, mas Pinewood Manor já não é propriedade do conde. Sou o novo dono. Há duas semanas. —Que é o novo dono? — O que estava acontecendo?, Perguntou-se —. Mas, milord, isso é impossível. A proprietária de Pinewood Manor sou eu. Há dois anos. Lorde Ferdinand colocou a mão em um dos bolsos internos da jaqueta de montar e tirou uma folha de papel dobrada que lhe ofereceu. —Aqui está a escritura da propriedade. Agora figura a meu nome. Sinto muito. Viola olhou o papel sem fazer gesto de pegá-lo. Só atinou a pensar no absurdo engano que havia cometido. Lorde Ferdinand não tinha ido vê-la. Ao menos não tinha ido vê-la pelo que aconteceu no dia anterior. A aposta com as margaridas, a dança ao redor do pau de maio e o beijo compartilhado sob o antigo carvalho não tinham significado nada para ele. Foi vê-la com a intenção de expulsá-la de sua própria casa. —É um pedaço de papel sem valor algum — replicou com os lábios repentinamente tensos —. O conde de Bamber fugiu com o dinheiro que você pagou pela propriedade e agora estará rindo a suas custas em algum lugar seguro. Sugiro que vá atrás dele para arrumar este assunto com ele. — Sentiu os primeiros indícios da ira… e do medo. —Não há nada que arrumar — assegurou lorde Ferdinand —. A legalidade do documento é inquestionável, senhorita. Assim certificaram o advogado do conde de Bamber e o de meu irmão, o duque de Tresham. Sempre investigo a fundo a autenticidade de meus lucros. —De seus lucros? É obvio! Viola conhecia muito bem esse tipo de homem. Era o irmão do duque de Tresham, e certamente que adoeceria de todos os defeitos e vícios de qualquer irmão mais novo: tédio, vadiagem, esbanjamento, indiferença e arrogância. O mais provável era que também estivesse arruinado. Entretanto, no dia anterior decidiu deixar-se seduzir por um rosto bonito e um corpo viril, e sentir-se adulada pelo interesse que lhe demonstrou. Era um jogador da pior índole. Dos que apostavam forte sem preocupar-se sequer pelas consequências que teria seu vício. Tinha ganhado uma propriedade que nem sequer pertencia a seu oponente. —Às cartas, sim — apostilou lorde Ferdinand —. Conto com muitas testemunhas que confirmarão que ganhei a propriedade honestamente. Além disso, insisti em que se investigasse a


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fundo a legalidade da escritura de propriedade. Sinto muitíssimo a inconveniência que lhe supõe tudo isto. Desconhecia que a casa estivesse ocupada. Inconveniência! Viola ficou em pé de um salto com as bochechas rubras e uma expressão furiosa. Como se atrevia esse homem…? —Pode levar a escritura ao sair e jogá-la ao rio — disse —. Carece de validade legal. Pinewood Manor é de minha propriedade desde que a herdei faz dois anos. Talvez o conde de Bamber não goste da ideia, mas assim são as coisas. Que você tenha um bom dia, milord. Lorde Ferdinand Dudley ficou em pé, mas não fez gesto de sair do salão nem de sua vida, tal como teria feito um cavalheiro decente. Limitou-se a ficar diante da lareira, e a Viola pareceu mais corpulento se fosse possível, dada sua intransigência e seriedade. A falsa cordialidade brilhava por sua ausência. —Ao contrário, senhorita — replicou —. Você quem terá que partir. É obvio, concederei o tempo suficiente para que recolha seus pertences e procure alojamento, posto que Bamber não teve a deferência de pô-la sobre aviso. São parentes, não é verdade? Suponho que deveria transladar-se a Bamber Court, a menos que lhe ocorra outro lugar. É pouco provável que o conde lhe negue o alojamento, embora acredito que continue em Londres. Entendi que é a mãe dele quem vive na propriedade de forma permanente. Sem dúvida, a receberá com os braços abertos. Essas palavras lhe gelaram o sangue nas veias. Viola soprou pelo nariz. —Lorde Ferdinand Dudley, quero que fique clara uma coisa — disse —. Esta é minha casa. Você é um intruso; indesejado, por certo apesar… enfim, face ao de ontem. Estou convencida de que é um jogador e um oportunista. Ontem fui testemunha de ambos os defeitos, mas ignorava que se tratasse de hábitos arraigados. Não me resta dúvida de que também possui outros da mesma índole. Quero que parta imediatamente. Não penso me mover daqui. Estou em minha casa. Que tenha um bom dia. Lorde Ferdinand a olhou com esses olhos tão escuros que eram quase negros e que lhe pareceram insondáveis. —Senhorita, me instalarei na casa logo que você tenha acabado de recolher seus pertences e parta — replicou —. Aconselho que não se atrase muito. Estou seguro de que não gostará de passar a noite sob o mesmo teto que um cavalheiro solteiro, jogador e oportunista, entre outros defeitos da mesma índole.


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Havia dançado a noite anterior em torno do pau de maio com esse homem frio, insensível e obstinado? E a experiência lhe pareceu a mais maravilhosa de sua vida? De verdade o tinha beijado e acreditado que a lembrança desse beijo a acompanharia para sempre? —Não penso permitir — sentenciou —. Como se atreveu a me deixar em evidência ontem ao apostar por… por minhas margaridas! Como se atreveu a me arrastar ao prado do povoado para dançar em torno do pau de maio! Como se atreveu a me manusear e a m-me beijar como se fosse uma vulgar leiteira! Lorde Ferdinand franziu o cenho e Viola compreendeu com certa satisfação que por fim o tinha irritado. —Ontem? — resmungou —. Ontem? Acusa-me de tê-la agredido quando foi você quem paquerou comigo desde que posou os olhos em minha pessoa? —E como se atreve a ter o descaramento de hoje invadir minha casa e minha intimidade! É um… um janota! Um libertino sem escrúpulos! Um jogador insensível e dissoluto! — Sabia que tinha perdido o controle da situação e de seu temperamento, mas não importava —. Conheço muito bem os de sua índole e não vou permitir que faça isso. Fora daqui! — exclamou, assinalando a porta com um dedo —. Volte para Londres, com os de sua mesma estirpe, ali é onde pertence. Aqui não o necessitamos. Viu-o arquear as sobrancelhas com gesto altivo, depois do que levantou uma mão e passou os dedos pelo cabelo enquanto suspirava. —Senhorita — disse —, talvez fosse conveniente discutir este assunto como duas pessoas civilizadas em vez de como duas crianças mimadas. Sua presença na casa me pegou de surpresa. É imperdoável que Bamber não a tenha informado que a propriedade já não lhe pertence. Você deveria ter sido a primeira em inteirar-se. Mas, desculpe-me por favor pelo que vou perguntar, sabe o conde que você vive aqui? Refiro-me a que… enfim, é que não fez a menor alusão a sua pessoa. Viola o olhou com desdém. Não havia nada que discutir, nem de forma civilizada nem de nenhuma outra. —É-me indiferente se ele souber ou não — respondeu. —Bom, em todo caso deveria ter informado a ambos — prosseguiu ele —, e assim penso dizer quando o vir. Trazer as notícias assim de repente nos pôs em uma situação muito incômoda. Aceite minhas desculpas, senhorita. Seu parentesco com Bamber é próximo? Têm uma relação afetuosa? —Se esse fosse o caso, seria um triste engano da minha parte — respondeu Viola —. Um homem de palavra não aposta o que não lhe pertence.


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Lorde Ferdinand deu um passo para ela. —Por que afirma que Pinewood Manor é seu? — perguntou —. Disse que herdou, não é verdade? —Depois da morte do conde de Bamber — respondeu ela —. O pai do atual. —Presenciou a leitura do testamento? — quis saber lorde Ferdinand —. Ou lhe informaram depois dos termos do mesmo? —O conde me deu a palavra dele — respondeu Viola. —O falecido conde? — Lorde Ferdinand tinha franzido o cenho —. Prometeu lhe deixar Pinewood Manor em herança? E você não assistiu à leitura do testamento? Não recebeu nenhuma carta do advogado? — Meneou a cabeça devagar —. Receio que a enganaram, senhorita. Viola tinha entrelaçado as mãos, que estavam frias e suarentas. O coração trovejava nos ouvidos. —Não estive presente durante a leitura do testamento, milord — respondeu —, mas confiava na palavra do falecido conde de Bamber. Quando vim à propriedade, faz dois anos, prometeu-me que mudaria seu testamento. Passou mais de um mês até a data da morte dele. Sei que nem mudou de opinião nem deixou o assunto para outro momento. Nenhum representante do atual conde se pôs em contato comigo. Não é essa uma prova de que diz muito bem que a propriedade me pertence? —Nesse caso, por que você não tem a escritura? — assinalou lorde Ferdinand —. Por que me asseguraram tanto o advogado do conde de Bamber como o do meu irmão que a propriedade pertencia ao conde antes de apostá-la e de perdê-la? Viola sentiu um nó muito desagradável no estômago, mas não se atreveu a deixar-se levar pelo pânico. —Nunca me ocorreu pedi-la — respondeu com secura —. A escritura de propriedade só é um pedaço de papel. Confiava na palavra do falecido conde de Bamber. Sigo confiando nela. Pinewood Manor é minha. E não tenho intenção de seguir discutindo o tema com você, lorde Ferdinand. Não é necessário. Deve partir. Lorde Ferdinand lhe lançou um olhar penetrante enquanto os dedos tamborilavam de forma rítmica sobre q coxa. Estava claro que não partiria docilmente. Acaso o tinha esperado?, Perguntouse Viola. Desde que o viu pela primeira vez no dia anterior soube que era um homem perigoso. Alguém acostumado a conseguir o que quer, deduziu. Além disso, era o irmão do duque de Tresham. O duque tinha fama de ser um homem desumano a quem ninguém ousava contradizer.


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—Podemos solucionar esta ofensa de uma forma muito singela — o ouviu dizer —. Pediremos uma cópia do testamento do falecido conde. Mas em seu lugar, eu não albergaria muitas esperanças, senhorita. Em caso de que o falecido conde lhe fizesse essa promessa… —Em caso? Está pondo em dúvida? — Viola deu um passo à frente sem pensar e acabou quase roçando-o na ponta dos pés. Lorde Ferdinand levantou uma mão para acalmá-la. —Em caso de que o fizesse, temo que não manteve a palavra. Estou seguro disso. Antes de sair de Londres comprovei que Bamber fosse o legítimo proprietário de Pinewood Manor quando apostou a propriedade e a perdeu. Agora é minha. —Não tinha direito de apostá-la! — gritou Viola —. Porque não lhe pertencia. É minha. A herdei.

—Compreendo sua inquietação — disse ele —. Foi uma grande irresponsabilidade por parte

do Bamber. Por parte dos dois. Do pai, por fazer uma promessa que não manteve; e do filho, por esquecer que você estava aqui. Se soubesse de sua existência, poderia tê-la avisado com tempo antes de vir em pessoa. Mas a desconhecia, de modo que aqui me tem, ansioso por explorar minha nova propriedade. Temo que terá que partir. Não fica outra alternativa razoável, não é verdade? Aqui não podemos viver os dois. Mas lhe darei uma semana de prazo. Será suficiente? Alojar-me-ei na estalagem de Trellick durante esse tempo. Você tem algum outro lugar aonde ir? Pode ir a Bamber Court? Viola apertou as mãos com mais força. Sentiu que cravava as unhas nas palmas. —Não tenho a menor intenção de ir a nenhum lugar — replicou —. Até que não veja esse testamento e comprove que não estou incluída, este é meu lugar. Esta é minha casa. Meu lar. Lorde Dudley suspirou, e Viola percebeu que estavam muito perto, de modo que se sentiu incômoda. Entretanto, não pensava retroceder. Jogou a cabeça para trás e o olhou aos olhos. Nesse instante a assaltou a lembrança de ter estado ainda mais perto dele a noite anterior. De verdade era o mesmo homem? «Proteja-se de um forasteiro alto, bonito e de cabelo escuro. Pode destruí-la.» —Se não tem nenhum lugar onde ficar — seguiu ele com o que poderia ter interpretado como amabilidade se as palavras não tivessem sido tão brutais —, a enviarei a Londres em minha carruagem. A casa de minha irmã, lady Heyward. Não, pensando bem, Angie é muito maluca para ajudá-la de forma prática. Melhor enviá-la com minha cunhada, a duquesa de Tresham. Oferecerá alojamento e a ajudará a procurar algum emprego respeitável e apropriado. Ou algum familiar disposto a acolhê-la.


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Viola soltou uma gargalhada desdenhosa. —Talvez a duquesa esteja disposta a ajudá-lo, milord — sugeriu —. Refiro-me a ajudá-la a buscar um emprego respeitável. Pelo que entendi os jogadores costumam encontrar-se com os bolsos vazios. Além disso, por regra geral costumam ser cavalheiros que não têm nada importante que fazer com suas vidas. Lorde Dudley arqueou as sobrancelhas e a olhou com certa surpresa. —Vejo que tem uma língua afiada — comentou —. Quem é você? Já a vi antes? Refiro-em se a vi antes do dia de ontem, claro está. Era muito possível. Embora na vizinhança de Pinewood Manor ninguém a conhecesse. Esse sempre foi o grande encanto do lugar. Entretanto, no caso de lorde Ferdinand Dudley levou um susto ao descer a escada, embora nesse momento lhe parecia ridículo, quando escutou que o senhor Jarvey apresentava o bonito forasteiro do dia anterior com esse nome. Um aristocrata que possivelmente tivesse passado grande parte da vida em Londres e que certamente vivia vários anos na capital. Segundo seus cálculos, lorde Ferdinand Dudley rondava os trinta. —Sou Viola Thornhill — respondeu —. E nunca o tinha visto antes do dia de ontem. Se fosse assim, recordaria. Viu-o assentir com a cabeça, embora sua expressão continuasse sendo pensativa. Era evidente que tratava de recordar onde a tinha visto antes. Poderia ter oferecido algumas possibilidades, embora na realidade era certo que ela não o tinha visto até o dia anterior. —Bom — o escutou dizer com brutalidade enquanto meneava a cabeça —, voltarei para Trellick, senhorita Thornhill. Você é solteira, não é verdade? Viola assentiu em silêncio. —Ficarei alojado na estalagem durante sete noites, embora terá que perdoar minha presença na propriedade durante o dia. Se precisar de ajuda para organizar seu traslado, estarei ao seu dispor. E passou junto a ela de caminho à porta destilando arrogância masculina, energia e poder. Os sonhos do dia anterior se converteram em um pesadelo nessa manhã. Observou-o afastar-se com ódio. —Lorde Ferdinand — disse ao vê-lo segurar a maçaneta da porta —, acredito que não entendeu o que lhe disse faz um momento. Não vou a nenhum lugar até ter revisado esse testamento. Ficarei em minha casa, em meu lar. Não vou ceder à pressão nem às ameaças. Se fosse um cavalheiro, nem sequer teria sugerido isso. Quando se virou para olhá-la, Viola percebeu que tinha conseguido enfurecê-lo. Os olhos dele pareceram muito negros. Tinha franzido o cenho. Soprava pelo nariz, de forma que este


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parecia mais afilado e quase aquilino, e os lábios estavam apertados. Resultou mais imponente que fazia apenas uns instantes. Entretanto, olhou-o com atitude desafiante. —Como se fosse um cavalheiro? — ouviu-o perguntar em voz tão baixa que Viola sentiu um calafrio nas costas provocada pelo medo —. Senhorita, se você fosse uma dama, teria a elegância de aceitar o que lhe aconteceu, do que não sou culpado. Não sou o responsável por que o falecido conde faltasse à promessa que lhe fez, nem tampouco o sou de que o filho dele decidiu jogar esta propriedade em vez de dinheiro em uma partida de cartas. O caso é que Pinewood Manor é minha. E embora até faz um instante estava disposto a me sacrificar em consideração a seus sentimentos e devido à incômoda situação em que se encontra, já não penso fazê-lo. Instalar-me-ei aqui imediatamente. E será você a passar a noite no Cabeça do Javali. Não obstante, como cavalheiro que sou, permitirei que a acompanhe uma donzela e notificarei que me enviem a conta. —Dormirei aqui, em minha casa e em minha cama — sentenciou ela, sem que seu olhar fraquejasse. A tensão do enfrentamento crepitava no ar. Lorde Ferdinand Dudley entrecerrou os olhos. —Nesse caso compartilhará a casa comigo — disse —. Com um homem que acusou de não ser um cavalheiro. Tenha em conta que além de ser um jogador dissoluto, é possível que também adoeça de uma ânsia sexual desenfreada. É possível que ontem à noite viu uma muito pequena amostra do que sou capaz de fazer quando estou excitado. Está segura de que deseja arriscar tanto sua pessoa como a reputação? Se não estivesse tão furiosa, Viola se teria rido a gargalhadas. Aproximou-se dele caminhando com longas e furiosas pernadas até encontrá-lo bastante perto para golpeá-lo no peito com o dedo indicador enquanto falava, como se brandisse uma faca. A ira fazia que lhe tremesse a voz. —Caso tente sequer me tocar com más intenções — advertiu —, é muito possível que você acabe perdendo os anseios sexuais desenfreados de vida. Advirto. Não me converterei na amante de ninguém. Não serei a vítima envergonhada de nenhum homem que a submete com ameaças e agressões. Sou proprietária de mim mesma e também sou proprietária de Pinewood Manor, milord. Ficarei aqui esta noite e todas as noites do resto de minha vida. Se de verdade acredita ter algum direito sobre a propriedade, suponho que também ficará. Mas lhe garanto que dentro de pouco arderá com vontade de partir. Sendo um libertino e um janota, não acredito que seja capaz de suportar mais de uma semana no campo sem morrer de tédio. Suportarei sua presença durante


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essa semana. Mas não permitirei pressões nem ameaças de índole sexual sem tomar represálias, e lhe asseguro que não gostará nem pingo de ditas represálias. Não consentirei que me expulsem da minha própria casa. — Golpeou-o uma última vez no peito, um peito admiravelmente musculoso —. E agora, se me desculpar, abandonarei esta estadia para retomar o plano que você interrompeu: um passeio em busca de ar fresco. Lorde Ferdinand Dudley continuou olhando-a alguns instantes com a mesma expressão furiosa, talvez um pouco surpreso também?, Antes de afastar-se para abrir a porta e convidá-la com um florido gesto e uma fingida reverência a que saísse ao corredor. —Nada mais longe de minha intenção que retê-la contra sua vontade — replicou ele —. Mas em resposta lhe garanto que dentro de uma semana, ou duas no máximo, será obrigada a abandonar sua impulsiva determinação de compartilhar a casa com um libertino solteiro. Ordenarei que procurem o maldito testamento. Viola fez ouvidos surdos ao impropério adotando uma fria urbanidade enquanto saía do salão. Lorde Ferdinand Dudley tinha em seu poder a escritura de propriedade, pensou enquanto subia a escada a caminho do seu dormitório. Havia cometido um engano tremendo. Carecia de provas escritas que o refutassem, já que só tinha a palavra de um homem que estava morto há vários anos. Entretanto, e por absurdo ou estranho que parecesse, o único pensamento que insistia em alojar-se em sua mente era que esse homem, lorde Ferdinand Dudley, ignorava que ela vivia em Pinewood Manor. Não tinha feito a menor tentativa para averiguar a identidade dela. Não se importou até esse extremo. O dia anterior não significou nada para ele. Muito bem, pois para ela tampouco!

Capítulo Quatro Viola não saiu para passear depois de tudo. Ficou sentada um bom tempo no batente acolchoado da janela do dormitório. Por sorte, o dela não era o principal. Ao menos não iriam brigar pelo quarto nem insistiria em compartilhar a mesma cama. Sempre tinha preferido essa estadia, com o alegre papel pintado, as cortinas e biombos de estilo chinês, e com vista à parte de trás da


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casa, não à parte dianteira. Dalí ela via a horta da cozinha e as estufas, a longa avenida que discorria do outro lado e a colina salpicada de árvores que se elevava a quase um quilômetro de distância. Pinewood Manor era dela. Ninguém mais tinha demonstrado o menor interesse na propriedade até que ficou sobre uma mesa de jogo. Lorde Ferdinand perderia o interesse assim que a novidade de ter ganhado passasse. Era um homem da cidade, um dandi, um janota, um jogador, um libertino… e certamente coisas muito piores. Assim que voltasse para Londres, esquecer-se-ia de Pinewood Manor para sempre. Assim que voltasse para Londres… Viola ficou em pé, alisou as rugas do vestido, endireitou os ombros e saiu do quarto em direção à cozinha. —Sim, é certo — disse em resposta às expressões curiosas e preocupadas que se cravaram nela nada mais entrar. Todos estavam ali: o senhor Jarvey; o senhor Paxton, o administrador; Jeb Hardinge, o encarregado dos estábulos; Samuel Dey, o criado; Hannah; a senhora Walsh, a cozinheira; Rose, a criada; e Tom Abbott, o jardineiro chefe. Certamente que tiveram uma reunião —. Embora não acredito nele de maneira nenhuma. Lorde Ferdinand Dudley assegura ser o novo proprietário de Pinewood Manor. Mas não tenho intenção de partir. De fato, tenho intenção de convencer lorde Ferdinand de que se ele vá. —O que pensou, senhorita Vi? — perguntou Hannah —. Já sabia nada mais ao vê-lo que esse homem nos traria problemas. Muito bonito, isso é o que lhe passa. —Não será muito difícil convencer um almofadinha da cidade de que a vida de latifundiário não lhe convém, não é verdade? —Me ocorrem algumas coisas sem quebrar muito a cabeça, senhorita Thornhill — disse Jeb Hardinge. —E a mim — acrescentou a senhora Walsh com gesto sério. —Pois vamos escutar essas ideias — sugeriu o senhor Paxton — e vejamos se podemos traçar um plano. Viola se sentou à mesa da cozinha e os convidou a fazer o mesmo. Pouco tempo depois, percorria a pé a distância que a separava do povoado. Sentia-se muito inquieta para acomodar-se em uma carruagem quando podia caminhar ao passo que lhe marcavam seus buliçosos pensamentos. Que distintos podiam ser os dias. O sonho do dia anterior foi muito bonito enquanto durou. Mais que bonito. Passou meia noite acordada relembrando o baile ao redor do pau de maio, um momento durante o qual se sentiu mais viva que nunca. E evocando o beijo e o tato do duro corpo abraçado ao dela.


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Era uma tola por permitir-se sonhar, pensou enquanto aumentava os passos. Ao menos a pitonisa não esteve tão errada. Deveria ter prestado mais atenção. Deveria ter estado mais atenta. Sua primeira parada foi na vicária, e descobriu que tanto o reverendo como a senhora Prewitt se encontravam em casa. —Minha querida senhorita Thornhill — disse a senhora Prewitt quando a governanta a convidou a entrar à sala de estar —, que maravilhosa surpresa. Estava segura de que hoje ficaria em casa, exausta. O vigário a olhou com um sorriso. —Senhorita Thornhill — a saudou —. Acabo de fazer as contas dos lucros da festa. Certamente que a alegrará saber que ultrapassamos em quase vinte libras a arrecadação do ano passado. Ouviu a quantidade? Verá, querida, sacrificou suas margaridas por uma boa causa. O reverendo e a esposa puseram-se a rir pela brincadeira enquanto Viola se sentava. —Foi uma doação muito generosa — disse a senhora Prewitt —, sobre tudo se tivermos em conta que o cavalheiro era um forasteiro. —Veio me ver esta manhã — informou Viola. —Ora! — O vigário esfregou as mãos — Fez isso? —Assegura ser o legítimo dono de Pinewood Manor. — Viola apertou as mãos sobre o regaço —. Que irritante, não acham? Seus interlocutores a olharam sem compreender em um primeiro momento. —Mas tinha a impressão de que Pinewood Manor pertencesse a você — comentou a senhora Prewitt. —E assim é — assegurou Viola —. Quando o falecido conde de Bamber me trouxe para cá faz quase dois anos, modificou o testamento para que fosse minha durante o resto de minha vida. Entretanto, o atual conde tinha a escritura e decidiu apostar recentemente em uma partida de cartas, em um antro de jogo. E perdeu. — Não sabia onde se celebrou a partida de cartas, mas preferiu supor que foi no antro de jogo mais infame e vulgar que existisse. —Valha-me Deus! — exclamou o vigário, olhando-a com preocupação —. Mas Seu ilustríssimo não podia apostar uma propriedade que não lhe pertence, senhorita Thornhill. Tomara que o cavalheiro não tenha tido uma decepção ao descobrir o engano. Pareceu-me muito agradável. —Em uma partida de cartas? — Para sua satisfação, a senhora Prewitt estava mais escandalizada que o marido — Isso quer dizer que ontem enganou a todos. Devo confessar, senhorita Thornhill, que me pareceu muito atrevido da parte dele que a tirasse para dançar ao redor do pau de maio quando não tinham sido apresentados formalmente. Deve ter levado uma tremenda impressão quando o viu aparecer esta manhã para reclamar a propriedade.


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—Não permiti que me altere muito — assegurou Viola —. Certamente risquei um plano para convencê-lo de que a vida em Pinewood Manor resultará incomoda. Se não se importarem, poderiam me ajudar… Pouco tempo depois voltava a estar ao ar livre e continuava com a ronda de visitas que havia planejado. Por sorte, todo mundo se encontrava em casa, embora talvez isso fosse de se esperar tendo em conta a agitação do dia anterior. Deixou por último a visita às senhoritas Merrywether, que escutaram sua história com crescente assombro e indignação. A senhorita Faith Merrywether assegurou que lorde Ferdinand Dudley a desagradou desde que o viu. Tinha demonstrado um comportamento muito descarado. E nenhum cavalheiro que se apreciasse de ser tirava a jaqueta havendo damas pressente, mesmo que fosse para participar de algum tipo de exercício em um dia quente. Era muito bonito, reconheceu uma ruborizada senhorita Prudence Merrywether, e tinha um sorriso encantador, mas sabia por experiência que os cavalheiros bonitos e simpáticos nunca tinham boas intenções. Certamente, as intenções de lorde Ferdinand Dudley não eram nada boas se pretendia expulsar a querida senhorita Thornhill de Pinewood Manor com uma mão na frente e outra atrás. —Ah, mas não irá me expulsar! — assegurou Viola —. Será o contrário. Eu me livrarei dele. —O vigário e o senhor Claypole farão tudo o possível para ajudá-la, não me cabe a menor duvida — repôs a senhorita Faith Merrywether —. Enquanto isso, senhorita Thornhill, deve vir viver aqui. Não nos incomodará absolutamente. —Agradeço muitíssimo o oferecimento, mas não tenho a menor intenção de abandonar Pinewood Manor — replicou Viola—. De fato, planejei… Não obstante, a descrição do plano teve que ser postergada até um momento mais conveniente. A senhorita Prudence se escandalizou tanto pela mera ideia de que retornasse à casa quando havia um homem solteiro que a irmã desta, que possuía mais caráter, mandou chamar uma criada a fim de que procurasse as plumas para queimar e um pouco de amônia com a intenção de evitar que a irmã desmaiasse. Viola contemplou a cena apertando os pulsos. —É impossível saber o que tentará esse libertino — advertiu a senhorita Faith Merrywether uma vez superada a crise e enquanto a senhorita Prudence, que continuava muito branca e estava recostada nas almofadas, bebia um pouco de chá açucarado — se consegue ficar a sós sem criados à vista. Inclusive poderia tentar lhe roubar um beijo. Não, não, Prudence, não comece de novo. A


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senhorita Thornhill não voltará para Pinewood Manor. Ficará aqui. Ordenaremos que tragam as suas coisas. E fecharemos as portas de agora em diante, inclusive durante o dia. Com chave. —Estarei perfeitamente em Pinewood Manor — assegurou Viola —. Não devem esquecer que estou rodeada dos meus leais criados. Hannah está comigo toda a vida. Além disso, lorde Ferdinand partirá logo. Está a ponto de descobrir que a vida rural não lhe cai bem. As duas podem me ajudar se… Em geral, pensou Viola quando empreendeu o caminho de volta a casa, as visitas dessa tarde tinham ido muito bem. Ao menos todos os habitantes do povoado com quem mantinha uma estreita relação tinham ouvido sua versão da história antes que ele pudesse contar a dele. E aqueles com quem não falou logo se inteirariam por seus próprios meios. As notícias e os rumores voavam, ou isso lhe parecia em muitas ocasiões. Quanto às famílias que viviam no campo, teria a oportunidade de falar com algumas nessa mesma noite, quando assistisse ao jantar que os Claypole celebravam em Crossings. Lorde Ferdinand Dudley jantaria sozinho em Pinewood Manor. Viola sorriu com malícia. Entretanto, pensar nesse homem só conseguiu lhe recordar que já não podia aproximar-se de seu lar com essa alegria que estava acostumado a lhe levantar o ânimo. Seu olhar voou pelo prado e cravou na casa enquanto se perguntava se ele estaria de pé junto a uma das janelas, observando-a. Perguntou-se se encontraria com ele nada mais ao entrar na casa, fosse ao vestíbulo, na escada ou no corredor superior. Resultava intolerável saber que um desconhecido havia invadido seus domínios privados. Entretanto, não podia fazer nada para mudar a situação, ao menos de momento. E não podia permitir que seus passos fraquejassem. Tinha que preparar-se para um jantar. Acabava de pisar no terraço da parte mais próxima aos estábulos poucos minutos depois, decidida a não entrar nas pontas dos pés e assustada em sua própria casa, quando congelou ao vêlo chegar da direção contrária. Ambos se detiveram em seco. Seguia usando o traje de montar. Não levava chapéu. Resultava uma presença perturbadoramente masculina em um lugar que ela havia convertido em seu reduto feminino. E era evidente que estava se acomodando. Devia ter se aproximado do rio e saído para dar um passeio, para inspecionar o horta da cozinha ou as estufas. Saudou-a com uma tensa reverência. Ela fez uma genuflexão igualmente tensa, antes de entrar na casa sem voltar a olhá-lo. Não soube se ficou plantado no lugar ou se foi atirar-se à fonte, e tampouco importava.


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—Senhor Jarvey — disse ao ver que o mordomo perambulava pelo vestíbulo com expressão perdida, algo estranho nele —. Que Hannah suba a minha habitação, por favor. Continuou escada acima, repetindo a cada passo que se andava mais depressa era porque ficava pouco tempo para partir para Crossings. Quem dera não fosse tão bonito, pensou. Nem tão jovem. Quem dera não tivesse paquerado com ele no dia anterior. Claro que tampouco havia paquerado. Tinha sido seu dever como membro do comitê organizador da festa mostrar-se amável com todo mundo, fossem aldeãos ou forasteiros. Só foi sociável. Suspirou enquanto percorria depressa o corredor do andar superior em direção a seu dormitório. Ao pão, pão e ao vinho, vinho, disse-se. Tinha paquerado com ele. Quem dera não o tivesse feito. Negou-se a que sua mente pensasse sequer no beijo. Entretanto, recordava a dureza das coxas contra as dela, a cálida suavidade dos lábios entre abertos sobre sua boca, e embora mantivera as lembranças afastadas da mente, ainda cheirava a colônia dele.

—E cada um uma moça encontra. Ferdinand apertou os dentes com força após cantar esse verso, enquanto pegava ao azar um livro encaderno em couro da estante. Entoou a canção de boa vontade quando chegou à casa pela primeira vez, fazia algumas horas. Entretanto, e tal como era habitual com certas toadas, ficou na mente e se descobriu cantando-a ou cantarolando-a em qualquer momento após, até que já não pudesse mais. Era uma canção ridícula, por certo, com os intermináveis estribilhos sem sentido. E não estava de humor para canções nem muito menos. Sentia-se alterado. E também irritado. Consigo mesmo porque tinha permitido que lhe aguasse a festa e com ela porque a aguou. E com Bamber… não, com mais de um Bamber. Porque estava furioso com dois Bamber, com o pai e com o filho. Que tipo de chefe de família foram? O primeiro a enviou a Pinewood Manor com uma promessa que se esqueceu de cumprir (ou que não teve intenção de cumprir desde o primeiro momento) e o segundo ignorava por completo a existência. Por sua parte, ele tinha permitido que ela seguisse na teimosia e o colocasse na vergonhosa situação de ter que compartilhar a casa com uma jovem solteira. Muito bonita, além disso, embora isso não tivesse a menor relevância. Deveria tê-la expulsado. Ou ficado na Cabeça do Javali até que chegasse o ditoso testamento para convencê-la de que ela não tinha direito algum sobre a propriedade.


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Ferdinand passou as mãos pelo cabelo e olhou as cartas que descansavam sobre a escrivaninha, lacradas e preparadas para serem enviadas pela manhã. Talvez devesse partir e conseguir o testamento em pessoa. Ou melhor, ainda, talvez devesse partir e enviar o testamento com um mensageiro de confiança, acompanhado por uma carta formal onde informaria a ela que devia ir embora. Retornaria uma vez que ela já não estivesse. Entretanto, seria uma covardia partir com o rabo entre as pernas e deixar que outro fizesse o trabalho sujo em seu nome. Ele não fazia as coisas assim. Os Dudley não faziam as coisas assim. Se ela era teimosa, ele podia ser ainda mais. Se ela estava disposta a pôr em perigo a reputação ao viver com ele sem uma acompanhante, que se preparasse para as consequências. Sua consciência não ia se preocupar com esse assunto. Deveria deitar-se antes que ela voltasse do jantar, pensou. Não o apetecia encontrá-la essa noite, nem em nenhum outro momento. Mas pelo amor de Deus, nem sequer era meia-noite! Deu uma olhada à biblioteca, decorada com um gosto impecável, e seu olhar percorreu as macias poltronas colocadas junto à lareira, a elegante escrivaninha e a reduzida embora magnífica coleção de livros, que estavam livres de pó, notou. Era um sinal de que gostava de ler? Não queria saber. Mas o agradava a biblioteca. Poderia sentir-se como em casa nesse lugar. Assim que ela se fosse. Nesse momento, enquanto devolvia o livro a seu lugar ao dar-se conta de que sua mente estava muito distraída para ler essa noite, recordou que não quis jogar a mão de cartas em que Bamber apostou a propriedade. Nunca gostou dos jogos de cartas. Preferia os passatempos mais físicos. Agradavam-lhe os desafios temerários que abundavam nos livros de apostas dos diferentes clubes para cavalheiros, sobre tudo os que requeriam que realizasse alguma façanha física perigosa ou atrevida. Aquela noite no Brookes’s apostou até o limite que se auto-impôs, e depois ficou em pé para partir. Havia prometido ir a uma festa. Entretanto, nesse preciso momento comunicaram a Leavering, que o tinha acompanhado ao clube, que sua esposa estava em trabalho de parto e que poderia dar a luz a qualquer momento, e Bamber, que demonstrava uma atitude insultante e desagradável porque estava bêbado (como era habitual nele, maldito fosse sua imagem), começou a acusar o iminente pai de dar uma desculpa muito lastimosa para partir com os lucros sem dar tempo a ele, ao pobre conde bêbado, de recuperar o dinheiro. A sorte dele estava mudando, declarou Bamber. Tinha um palpite.


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Ferdinand segurou o amigo pelo braço quando percebeu que a situação estava a ponto de ficar muito feia e que começavam a chamar a atenção de outros. Ofereceu-se para ocupar o lugar do Leavering e jogou quinhentas libras sobre a mesa. Poucos minutos depois protestava pelo recibo assinado que Bamber deixou sobre a mesa em vez de deixar dinheiro em espécie. O recibo representava uma propriedade desconhecida para todos os presentes na sala de jogos, porque não era nem o solar do Bamber e nenhum de seus melhores imóveis. Tratava-se de um lugar chamado Pinewood Manor em Somersetshire. Um lugar que certamente não se aproximaria sequer às quinhentas libras que Ferdinand havia depositado sobre a mesa, advertiu-lhe outro dos jogadores. Ferdinand não teria aceitado que um homem apostasse sua casa; nenhum cavalheiro que se apreciasse de sê-lo faria. Entretanto, parecia que Pinewood Manor era uma propriedade secundária e pequena. De modo que aceitou a aposta… e ganhou. E no dia seguinte descobriu graças ao advogado do Bamber e ao do Tresham que Pinewood Manor existia de verdade e que realmente era dele. Quando foi ver Bamber assaltado pelo remorso para lhe oferecer um acordo econômico em troca da devolução do imóvel, o conde, que tinha uma ressaca impressionante devida à farra da noite anterior, anunciou que não podia falar porque a cabeça ia explodir. E insistiu que se fosse. Acrescentou que podia ficar com Pinewood Manor, uma propriedade que ele não sentiria falta, já que nem a tinha visto na vida nem recebido um penny em caráter de rendas conforme tinha entendido. De modo que Ferdinand partiu com a consciência tranquila para o campo, para descobrir e inspecionar a nova propriedade. Nunca havia possuído terras, nem tinha esperado possuir. Era filho de um duque, certo, e também muito rico, além disso, já que seu pai havia deixado uma herança muito generosa e tanto sua mãe como a irmã desta tinham lhe legado suas nada desdenháveis fortunas ao morrer. Entretanto, era um filho mais novo. Tresham tinha herdado Acton Park e o resto das propriedades vinculadas ao título. Ora Por Deus!, Pensou Ferdinand de repente enquanto levantava a cabeça e aguçava o ouvido. Tinha escutado o estalo da fechadura da porta principal, que alguém estava abrindo. Ressonaram vozes no vestíbulo. Mais de uma. Mais de duas. Ou todos os criados haviam subido de suas estadias para recebê-la ou chegava acompanhada por alguém. A meia-noite? O primeiro impulso foi ficar na biblioteca até que todos se fossem. Entretanto, o mordomo sabia que estava ali e um Dudley não podia permitir que dissessem que se escondeu em vez de


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deixar claro desde o começo que era o amo e senhor de seus domínios. Cruzou a biblioteca com passo firme e abriu a porta. Havia cinco pessoas no vestíbulo: Jarvey, uma mulher gordinha e baixa que parecia uma governanta, Viola Thornhill e dois desconhecidos, um homem e uma mulher. Embora o homem não fosse um completo desconhecido. Era o tipo estirado que no dia anterior expressou seu rechaço por apostar no transcurso de uma festa organizada pela vicária. Todos o olharam. Viola Thornhill o fez por cima do ombro, com as sobrancelhas arqueadas e os lábios entre abertos. Usava uma capa de seda verde, com o capuz estendido sobre os ombros de forma muito favorecedora, e o cabelo recolhido em um coque no cocuruto sem mais adornos. Maldição! Onde demônios a tinha visto antes dessa viajem ao fim do mundo? —Boa noite. — Saiu ao vestíbulo —. Seria tão amável de nos apresentar, senhorita Thornhill? A governanta subiu a escada. O mordomo se fundiu com a parede. As três pessoas restantes o olharam com patente hostilidade. —Apresento-lhe à senhorita Claypole — disse Viola Thornhill enquanto assinalava à mulher alta e magra de idade indeterminável —. E seu irmão, o senhor Claypole. Não acrescentou quem era ele. Claro que certamente fora desnecessário. Sem dúvida alguma tinha sido o assunto principal de conversa durante o jantar. Ferdinand fez uma reverência. Nenhum dos visitantes se moveu. —Isto é inaceitável, senhor — disse Claypole com pomposa severidade —. É muito inadequado da sua parte, um cavalheiro solteiro, que ocupe a casa de uma dama solteira e virtuosa. A mão direita do Ferdinand se fechou em torno do cabo dourado do monóculo e o levou a um olho. —Estou de acordo com você — comentou com secura depois de uma eloquente pausa —. Ou estaria se os fatos fossem os corretos. Mas receio que estão tergiversados, querido amigo. É a dama solteira e virtuosa que ocupa minha casa. —Um momento, senhor… — Claypole deu um passo para ele com atitude agressiva. Ferdinand deixou cair o monóculo e elevou a mão. —Tranquilize-se — aconselhou —. Não convém tomar esse caminho, asseguro. E muito menos na presença das damas. —Não há motivos para que saia em minha defesa, senhor Claypole — disse Viola Thornhill —. Agradeço muitíssimo sua companhia no caminho de volta a casa na carruagem, mas… —Nada de mas, Viola — a interrompeu a senhorita Claypole com voz alta —. Esta escandalosa situação requer um ato de decoro irrepreensível. Dado que lorde Ferdinand Dudley escolheu ficar em Pinewood Manor em vez de partir à estalagem como exige a decência, ficarei aqui


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como sua acompanhante. Indefinidamente. Todo o tempo que seja necessário. Humphrey me enviará amanhã um baú com meus pertences. Parte da tensão abandonou o corpo de Claypole e seu rosto perdeu o intenso rubor. Saltava à vista que se deu conta de quão estúpido seria chegar as vias de fato. Ferdinand se dirigiu à irmã deste.

—Agradeço, senhorita — disse —, mas sua presença será totalmente desnecessária. Não

posso responder pela reputação da senhorita Thornhill, mas sim por sua virtude. Não tenho a menor intenção de me aproveitar dela assim que fiquemos sozinhos… em companhia de um nutrido grupo de criados, é obvio. A senhorita Claypole pareceu mais alta ainda enquanto aspirava o ar entre dentes. —Sua vulgaridade não conhece limites — repôs ela —. Muito bem, senhor, estou aqui para proteger a reputação da senhorita Thornhill e também a virtude. Não me ocorreria pôr a mão no fogo por você. Hoje nos informaram (a minha mãe, a meu irmão e a mim) que ontem à noite a obrigou a dançar ao redor do pau de maio. Nem lhe ocorra negá-lo. Há um sem-fim de testemunhas. —Bertha… — interveio Viola Thornhill. Ferdinand levou o monóculo ao olho uma vez mais. —Nesse caso — replicou —, não cometerei perjúrio ao negá-lo, senhorita. Agora bem, seu irmão e você já estavam de partida, não é verdade? —Não abandonarei esta casa a menos que me expulsem à força — afirmou a dama. —Não me você tente, senhorita — disse Ferdinand em voz baixa antes de dirigir-se a Claypole —. Boa noite, senhor. Terá a amabilidade de levar a senhorita Claypole com você quando se for?

—Senhorita Thornhill — disse Claypole enquanto pegava uma mão desta —, compreende

agora a tolice de insistir em retornar? Não tinha razão minha mãe? Bertha é sua amiga. Eu tenho a honra de me considerar algo mais. Volte conosco a Crossings até que este assunto seja esclarecido. —Agradeço de novo, mas não irei de minha própria casa, senhor — sentenciou ela —. E não deve preocupar-se por mim, Bertha. Conto com Hannah e com o resto dos criados. Não preciso de uma dama de companhia. —Menos mal — repôs Ferdinand com secura —. Porque não vai ter uma. Não nesta casa. Ela o olhou com as sobrancelhas arqueadas antes de lhe dar as costas de novo para despedir-se de seus acompanhantes. —Isto é muito escandaloso… — começou Claypole. —Boa noite! — Ferdinand se dirigiu à porta principal, abriu enquanto Jarvey o olhava sem saber o que fazer e assinalou a escuridão do exterior com uma mão.


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Partiram a contra gosto, mas se foram. Não ficou mais alternativa a menos que o senhor Claypole quisesse recorrer à violência. Talvez a irmã tivesse se encantado que o fizesse, pensou Ferdinand, mas a ele certamente que não. —Suponho que seja seu pretendente — comentou uma vez que fechou a porta e se virou para Viola Thornhill, que estava entregando a capa ao mordomo. —Supõe? — replicou ela —. Obrigada, senhor Jarvey, não vou necessitar mais seus serviços esta noite. Ferdinand poderia ter discutido a ordem, dado que Jarvey era seu criado, mas dessa forma só conseguiria parecer petulante. —Claypole é um imbecil e um covarde — disse —. Em seu lugar, eu teria feito mingau a qualquer homem que insistisse em não aceitar a presença de uma acompanhante nesta casa. E depois a teria levado arrastada, quisesse partir ou não. —Que reconfortante é saber que compartilho a casa com um cavernícola. Suponho, milord, que teria me arrastado pelo cabelo, brandindo um porrete na outra mão. Que imagem mais masculina. Quem dera não tivesse tirado a capa, pensou ele. O vestido de noite que levava debaixo, de um verde mais escuro, não era indecente nem muito menos. Caía vincado de debaixo do peito, e o decote, embora baixo, teria parecido quase modesto em um salão de baile londrino. Entretanto, o vestido não ocultava nem um pouco as incitantes curvas femininas. E sabia de primeira mão o que era ter essas curvas junto ao corpo, droga! Por Deus! Deveria ter ficado no Cabeça do Javali, e mandar ao espaço a teimosia. —Insiste em compartilhar casa com um homem que tem as coisas muito claras. E não é apropriado que fique aqui comigo. Esse imbecil ao menos tinha razão nisso. Ela havia atravessado o vestíbulo em direção à escada. Voltou-se com um pé no primeiro degrau. —Ora, lorde Ferdinand — disse —, está pensando em aproveitar-se de mim depois de tudo? Devo correr para meu dormitório? Nesse caso, agradeço levar um pouco de vantagem. Era muito desbocada. Já havia notado disso. —Senhorita, se quisesse apanhá-la, asseguro que você não chegaria nem ao primeiro patamar da escada — advertiu. Ela o olhou com um sorriso doce. —Desfrutou do jantar? Era uma pergunta muito estranha dadas as circunstâncias, até que compreendeu o motivo. Os dois tinham saído essa noite. Ela assistido a um jantar, um fato que Ferdinand supôs um considerável alívio até que o mordomo informou que na despensa só ficavam os restos da vitela de


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dois dias, dado que não esperavam que a senhorita Thornhill jantasse em casa nessa noite e que todos tinham jantado no povoado no dia anterior, como muito bem sabia ele. Além disso, acrescentou que embora a vitela tivesse bom aspecto e cheirava bem, e embora talvez o sabor estivesse bom, deveria ter presente que fez muito calor para a época do ano. Segundo a cozinheira, seguiu o mordomo, a comida nunca se mantinha suficientemente fresca na despensa. E ninguém sabia por onde entravam as moscas. Ferdinand comunicou a decisão de jantar no Cabeça do Javali. A comida da estalagem não lhe resultou tão apetitosa como a do dia anterior, e o serviço não foi tão rápido nem tão agradável, mas o atribuiu ao cansaço do pessoal por ter que trabalhar depois de um dia de festas. Nesse momento, e com essa singela pergunta, Viola Thornhill o ajudou a ver a luz. Que parvo foi ao não ter se dado conta antes. Parecia que já levava a macula de inimigo público número um, tanto em Pinewood Manor como no povoado, não é mesmo? —Muitíssimo — respondeu —. E você? Ela sorriu outra vez e se dispôs a subir a escada sem dizer nada mais. A luz das velas fazia brilhar o cetim do vestido, ressaltando dessa forma o rebolado de seus quadris. Maldita fosse sua imagem! Fazia muito calor para o mês de maio.


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Capítulo Cinco Ferdinand poderia ter a impressão de não ter fechado o olho em toda a noite se não o tivessem despertado de forma tão brusca antes inclusive que amanhecesse. Levantou-se da cama como impulsionado por uma mola encravada no colchão que o catapultou de repente até o chão, onde aterrissou de pé ao lado da cama. —Maldita seja! — exclamou enquanto passava os dedos de uma mão pelo cabelo alvoroçado —. Que demônios está acontecendo? — Não sabia o que o despertou. Em um primeiro momento nem sequer sabia onde estava. E depois voltou a escutar o alvoroço. Atravessou o dormitório em direção à janela, que estava aberta, abriu as cortinas e olhou. O amanhecer mal tingia de cinza o horizonte. O frio da noite o fez tiritar e pela primeira vez na vida desejou ter colocado uma camisa de dormir para deitar-se. Ali estava! Furioso, o observou passear diante da casa como se fosse o dono do universo. Um galo! —Vá embora! —ordenou, e a ave assustada abandonou a arrogante complacência para afastar-se correndo, embora acabou recuperando a dignidade. Có-có-cócó-ri-có Ferdinand também se afastou correndo, mas à cama, depois de fechar a janela e de fechar as cortinas. Quando se deitou a meia-noite foi incapaz de conciliar o sonho. Em parte, é obvio, pela ideia de que estava compartilhando a casa com uma jovem solteira (quem casualmente era a beleza sensual personificada), uma situação que nem sequer contava com o mínimo de respeitabilidade que teria devotado uma acompanhante, cuja presença ele havia rechaçado. Entretanto, em grande parte se devia ao silêncio. Tinha vivido em Londres toda a vida de adulto, desde que voltou de Oxford fazia já sete anos, quando contava com vinte. Não estava acostumado ao silêncio. Resultava inquietante. Por que permitiam que um galo brincasse de correr tão perto da casa?, Perguntou-se de repente. Acaso ia despertá-lo todas as noites? Porque, afinal, não podia dizer que fosse de dia… Cavou o travesseiro, que devia ser o travesseiro mais incômodo e cheio de caroços que existia sobre a face da terra, e tentou colocar a cabeça em uma posição que lhe permitisse conciliar logo o sono. Cinco minutos depois continuava acordado.


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Recordando a imagem dessa mulher embelezada com o resplandecente vestido de noite de cetim. Recordando a proximidade do corpo voluptuoso quando a abraçou atrás do carvalho do povoado. E recordando o fato de que dormia muito perto de sua habitação. De repente, descobriu que era o peso das mantas o que o impedia de conciliar o sono de novo. Afastou-as, virou o travesseiro e o cavou a murros, tentando encontrar um vão fofo e cômodo para sua cabeça. Falhou estrepitosamente e começou a tiritar por culpa do frio, que sentia nos lados e na parte dianteira do corpo. As mantas estavam fora de seu alcance a menos que se sentasse para puxá-las. Maldição!, Exclamou para si mesmo. Já não poderia voltar a dormir. E ela era a culpada. Por que não foi embora como teria feito qualquer mulher decente, ou ao menos por que não aceitou a semana de prazo que lhe deu antes de perder os estribos? Se assim fosse, nesse momento estaria dormindo como os anjinhos no Cabeça do Javali, em Trellick. Maldita fosse essa mulher, pensou em um arranque de desconsideração. Teria que aprender quem era o amo e senhor de Pinewood Manor, e quanto antes o fizesse, melhor. Nesse mesmo dia. Quando chegasse o dia, claro. Fez uma careta enquanto dava uma olhada pelo dormitório, onde não encontrou nem o mais tênue raio de luz. Sentou-se na beira do colchão e passou as mãos pelo cabelo. Em seu dia a dia habitual nem sequer teria deitado a essas horas. Entretanto, ali estava: levantando-se. Para fazer o que, pelo amor de Deus?, Perguntou-se. Para tomar o café da manhã? Os criados, esses que o mandaram a noite anterior de forma deliberada para jantar na estalagem do povoado, teriam bem merecido que descesse e pedisse o café da manhã a gritos. Embora seria muito provável que lhe servissem um prato de vitela fria e em mal estado. E se lesse? Não estava de humor. E se escrevesse algumas cartas? Claro que a noite anterior tinha escrito um par de notas para Tresham e Angie que seriam enviadas essa manhã junto com a carta dirigida ao Bamber. Levantou-se, se espreguiçou e bocejou até que rangeram as mandíbulas… depois do que começou a tiritar. Sairia para cavalgar e despertaria antes de voltar e pôr todo mundo na linha. Afinal, gostava muito das cavalgadas matutinas, disse-se com relutância, embora isso não fosse totalmente certo. De qualquer forma, pensou enquanto se encaminhava ao closet, a cavalgada não poderia qualificar-se como «matutina». Ainda era de noite, pelo amor de Deus!


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Sem chamar o ajudante de câmara, encontrou o traje de montar em um dos armários, vestiu-se e desceu sem deter-se sequer para barbear-se. Ao sair comprovou que o sol ainda não aparecia, mas já não estava tão escuro e via-se uma luz cinzenta. Perfeita para seu estado de ânimo. Encaminhou-se para os estábulos com a fervorosa esperança de encontrar alguns cavalariços sonolentos com quem gritar. O galo tinha acordado Viola apesar de seu dormitório se encontrar na parte posterior da casa. Mas claro, como estava esperando-o, mal pregou o olho. Parecia impossível que qualquer pessoa da casa, sobre tudo se o quarto estava orientado para a fachada dianteira, tivesse conseguido continuar dormindo com semelhante gritaria. Após dez ou quinze minutos riu entre dentes com malícia ao escutar primeiro que se abria uma porta no outro extremo do corredor e depois os passos de botas que se afastavam em direção à escada. Voltou a adormecer após um momento. —Lorde Ferdinand estava saindo pela porta, feito uma fúria, menos de um quarto de hora depois do primeiro canto do galo — informou Hannah mais tarde, enquanto a ajudava a vestir-se, e lhe trançava o cabelo antes de recolher. — Parecia que soltava fumaça pelas orelhas quando saiu para cavalgar. Partiu a todo galope, soltando pestes pela boca, saberá Deus aonde. Senhorita Vi, será melhor que não cruze com ele. Deixe que a servidão se encarregue de tudo esta manhã. —Mas Hannah, estou desejando ver quão furioso está — assegurou Viola —. Não perderia isso por nada do mundo. Talvez decida voltar para Londres antes do meio-dia e assim nos livraremos dele. Hannah suspirou enquanto colocava o pente e a escova na penteadeira. —Quem dera fosse tão fácil, minha menina — disse. O mesmo desejava Viola. Era consciente do vazio imenso que sentia na boca do estômago por muito que tentasse evitar. Sem dúvida, o assunto com lorde Ferdinand Dudley não era algo banal. Estavam em jogo seu lar, seus ganhos, a paz que tanto havia lhe custado conseguir e sua muito própria identidade. Um momento depois se encontrava sentada à mesa do café da manhã, comendo, quando lorde Ferdinand entrou na sala de jantar. Embora estivesse esperando-o e se preparou para a invasão de sua intimidade, sentiu que o coração ameaçava sair do peito. Se a situação era inevitável, por que não podia ser com um ancião, com um homem feio ou ao menos com um homem carente


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de atrativo? Por que tinha que ver-se afligida por essa virilidade que parecia invadir a estadia até o ponto de deixá-la sem ar? Saltava à vista que acabava de chegar da cavalgada matutina. A calça de montar de veludo se aderiam as longas e musculosas pernas como se fossem uma segunda pele. As botas reluziam como se as tivessem escovado a noite anterior. A jaqueta era marrom, muito bem confeccionada, e debaixo usava uma camisa branca. Viola tinha passado muitos anos em Londres para reconhecer o sumo da elegância masculina; um dandi, como o chamariam seus congêneres. O cabelo estava alvoroçado pelo chapéu e pelo ar, e muito boa cor no rosto graças ao exercício. Também sorria e parecia estar de muito bom humor, um detalhe irritante para ela. —Bom dia, senhorita Thornhill — a saudou enquanto executava uma reverência —. Faz uma manhã preciosa. Fui acordado por um galo que começou a cantar justo debaixo da minha janela, assim saí a cavalgar para contemplar o amanhecer. Havia me esquecido quão emocionante pode chegar a ser a vida no campo. — esfregou as mãos enquanto dava uma olhada pela estadia. Era evidente que estava morto de fome. Entretanto, o aparador estava vazio. Igual à mesa, salvo pelos pratos e a xícara de Viola. Não havia criados à espera para servir o café da manhã. Lorde Ferdinand já não parecia estar tão contente. —Bom dia, milord — replicou ela com um sereno sorriso —. E pensar que faz um momento passei na ponta dos pés diante de sua porta, acreditando que o ar do campo o tivesse feito dormir mais que a cama. Faz um pouco de frio, não é mesmo? Ordenarei que acendam o fogo e que lhe tragam o café da manhã. Tomei a liberdade de pedir alguns pratos que espero que sejam de seu agrado. — ficou em pé e puxou o cordão que ficava pendurado junto ao aparador. —Obrigado. — Lorde Ferdinand se sentou à cabeceira da mesa, que ela havia deixado vazia para ele, já que não queria estragar a manhã com uma discussão sobre o protocolo de precedência. Viola ainda tinha ovos, salsichas e uma torrada no prato, um café da manhã bem mais copioso do que o habitual, consistente em café e torradas. Pegou a faca e o garfo para seguir comendo, e mastigou devagar para saborear cada bocado, embora de repente tudo lhe parecia insípido. —A avenida que discorre pela parte posterior da casa deve ser maravilhosa para passear e para montar a cavalo — comentou lorde Ferdinand —. A grama está muita bem cuidada e as árvores que a flanqueiam estão tão retas como duas fileiras de soldados em um desfile. Não lhe


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parece uma maravilha da natureza que possam albergar um exército de pássaros cujos gorjeios escutamos sem poder ver um só intérprete até que algum decida voar de um galho a outro? —Sempre gostei de passear por esse lugar — afirmou ela. —Da colina se desfruta de uma vista magnífica da campina — seguiu lorde Ferdinand —. Teria me encantado subir quando era pequeno. Recorda-me um pouco às colinas de Acton Park, onde cresci. Teria imaginado que era o rei do castelo e o teria defendido contra os invasores. Me engano. — Sorriu e Viola recordou contra vontade o belo forasteiro da festa —. Suponho que meu irmão teria sido o rei e eu, o leal mão direita. Mas as mãos direitas de um rei têm uma vida muito emocionante, sabe? Lutam contra os dragões e contra os vilãos, enquanto o rei se limita a ocupar o trono com cara de aborrecido e arrogante, dando ordens a torto e a direito, e rogando pragas. —Pelo amor de Deus! Isso é o que fazia seu irmão? — Viola esteve a ponto de soltar uma gargalhada. —Os irmãos mais velhos podem ser abomináveis. Entretanto, Viola não tinha o menor desejo de escutá-lo falar sobre sua infância nem sobre sua família. Não queria ver esse sorriso de menino travesso. Queria vê-lo feito um energúmeno. Queria escutá-lo rogar pragas. Porque com essa atitude lhe resultava muito mais ameaçador. Seria consciente disso? Era deliberado seu comportamento? Como se fosse um gato brincando com um camundongo? Não obstante, tamborilava com os dedos sobre a mesa e não parava de olhar para a porta, claros sinais de que não estava tão relaxado nem tão contente como aparentava. Viola levou o garfo à boca para seguir comendo. —Parece que na cozinha fazem as coisas com calma — comentou ele depois de um breve silêncio —. Terei que falar com Jarvey. Como se atrevia!, Pensou Viola. O senhor Jarvey era seu mordomo. O falecido conde de Bamber o contratou para que trabalhasse sob as ordens dela. Mas uma discussão não fazia parte do plano que havia esboçado para lutar com esse homem. —Acha que demoram muito? — Olhou-o fingindo uma alegre surpresa —. Sinto muito. A cozinha está situada um pouco longe e a escada é muito inclinada. O senhor Jarvey já não é um homem jovem e às vezes tem problemas com as pernas. A cozinheira também é um pouco lenta… e distraída. Mas é difícil encontrar bons criados no campo, sabe? Assim o melhor é conservar os que se tem, embora não estejam à altura da servidão da cidade. Enquanto falava a porta foi aberta e apareceu o mordomo com uma bandeja descoberta em uma mão e um enorme copo de cerveja na outra. Viola observou ambos os objetos com assombro. Como a senhora Walsh conseguiu amontoar semelhante quantidade de comida na bandeja sem que


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transbordasse pelos lados? Onde teria encontrado um copo tão grande e tão feio? O senhor Jarvey deixou tudo na mesa e Viola comprovou que havia ovos, salsichas, rins e bacon, além de várias torradas precariamente colocadas na lateral da bandeja. O prato principal era um grosso filé de vitela que mal passaram pelo fogo antes que o colocassem no prato, já que nadava em um suco avermelhado. Viola desviou o olhar para o rosto de lorde Ferdinand, que em um primeiro momento pareceu ficar atônito. —Estava segura de que gostaria de desfrutar de um copioso café da manhã campestre depois de sua vigorosa cavalgada, milord — explicou… e recordou muito tarde que supostamente acreditava que ele estaria dormindo pelo efeito relaxante do ar do campo. —Sim, certamente. — esfregou as mãos, como se adorasse o que via. Seria certo que achava apetecível semelhante café da manhã? Viola conteve o fôlego enquanto aguardava que provasse. Entretanto, devia ocupar-se de outro detalhe sem demora. —Senhor Jarvey — disse —, importar-se-ia de acender o fogo? Lorde Ferdinand está gelado. O mordomo colocou mãos à obra com grande agilidade, sob o olhar do aludido. Viola esperava que lorde Ferdinand passasse por cima a evidente ausência de moléstias nas pernas do Jarvey. E depois o observou de relance enquanto levava uma parte de rim à boca. Teria começado a rir de boa vontade quando o ouviu soltar os talheres de repente contra o prato. —A comida está fria — disse, surpreso. —Ai, meu Deus! — Viola o olhou contrita —. Estou tão acostumada que me esqueci de comentar. Suponho que a cozinheira preparou a comida faz um bom tempo e esqueceu, outra vez, de mantê-la aquecida no forno até que você descesse para tomar o café da manhã. Foi isso o que aconteceu, senhor Jarvey? Leve para que a esquentem e volte a trazê-la quando estiver pronta. Importar-se-ia de esperar meia hora ou assim, milord? O fogo começou a crepitar na lareira e o mordomo se endireitou para aproximar-se da mesa. —Não, não — recusou lorde Ferdinand, fazendo um gesto com a mão —. Não importa. Na realidade, não necessito um café da manhã tão copioso. Com as torradas basta. Por sorte, as torradas são boas até frias. Geralmente prefiro café à cerveja. Importar-se-ia de recordar amanhã, Jarvey? — Pegou uma torrada e deu uma dentada. O pão rangeu de tal forma que Viola soube que estava frio como um bloco de gelo e tão torrado que se caísse de forma acidental acabaria desfeito em migalhas. Desviou o olhar para a lareira enquanto levava o guardanapo à boca, preparada para o que iria acontecer a seguir, até que escutou lorde Ferdinand tossir.


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—Valha me Deus! — exclamou ela. A lareira não queimava e havia muita fumaça —. Certamente que há outro ninho de pássaro. Acontece muito frequentemente. E normalmente demoramos dias em encontrar a um limpador que venha limpá-la. — Tossiu contra o guardanapo e notou que os olhos começavam a arder —. É que no povoado não há limpador de chaminé, sabe? E a cidade mais próxima fica a quase treze quilômetros de distância. —Esperemos que o ninho esteja vazio neste momento — comentou lorde Ferdinand, que ficou em pé de um salto e correu para o outro extremo da estadia para abrir primeiro uma janela e depois outra —. Em caso contrário, suponho que poderemos jantar ave assada. Viola captou um tom estranho na voz dele que a alertou. Lorde Ferdinand estava a par de tudo. Sabia o que estava acontecendo. Entretanto, não parecia disposto a perder os estribos tal e como ela esperava que acontecesse. Seguiria o jogo, possivelmente com a teoria de que um alarde de bom humor a irritasse mais que as caras feias e os gritos. Evidentemente, estava certo. Mas não se importava. Ao menos sabia que havia captado a fundo a situação a que enfrentaria: encontravase sozinho, talvez com seu reduzido número de criados, contra toda a servidão da casa, disposta a lhe fazer a vida o mais incômoda possível. Viola se perguntou que opinião teria sobre o travesseiro. —Às vezes acredito que as poucas vantagens de viver no campo ficam eclipsadas pelas desvantagens — comentou enquanto começava a tiritar muito apesar dele, já que a brisa fresca que entrava pelas janelas agitou seu guardanapo e envolveu seu corpo como se fosse uma capa de gelo —. Obrigada, senhor Jarvey, pode partir. Teremos que nos conformar com a esperança de que o dia seja quente o bastante, de modo que a ausência do fogo nos suponha no máximo um leve desconforto. O mordomo se encaminhou para a porta. —Não vá ainda, Jarvey — ordenou lorde Ferdinand, que seguia perto da janela —. Procura um cavalariço forte ou um jardineiro. Alguém que não tenha medo de altura e que possivelmente esteja familiarizado com o telhado e as chaminés. Suponho que haverá alguém que cumpra esses requisitos. De fato, estou tão seguro de que o terá que eu adoraria apostar. Assim que acabar a cerveja subirei com ele, para ver se podemos resgatar os pobres pássaros sem lar. A menos que para eles também seja muito tarde, claro, porque o ninho já não tem solução. Os olhos de Viola ardiam e escorriam uma barbaridade. A alma caiu aos pés ao compreender que lorde Ferdinand seria um oponente formidável. Enfim, depois veria quem se proclamava ganhador dessa guerra. Porque seu bando o superava em número. E ela também era uma digna oponente. Porque se perdesse, ela levaria a pior parte. A ideia fez que o estômago revolvesse.


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—Cairá e se machucará — predisse antes de sofrer um ataque de tosse que a obrigou a cobrir a boca com o guardanapo. Que diabos Eli teria colocado na chaminé? E o que importava a ela se lorde Ferdinand sofresse uma queda? —Senhorita, não é necessário que se preocupe comigo — replicou ele enquanto o mordomo saía da estadia com discrição —. Uma de minhas façanhas mais famosas, ocorrida durante a etapa mais maluca de minha vida, produziu-se após apostar que seria capaz de percorrer uma longuíssima Rua de Londres de um extremo a outro sem pisar no chão. O interesse de semelhante provocação aumentou dado que era uma noite chuvosa, sem lua e com muito vento, e porque fui obrigado a fazê-lo em uma hora. Consegui em quarenta e três minutos. —Suponho que o fez montado a cavalo — repôs ela com mais brutalidade do que pretendia. —Acha que nesse caso teria demorado quarenta e três minutos? — Riu entre dentes —. Nem pensar! O tipo que ideou a aposta havia considerado essa possibilidade com antecipação. Não me permitiu usar nenhum meio de transporte que não fossem meus próprios pés. Fiz pelos telhados. —Milord, ganhou minha mais fervorosa admiração — replicou Viola, que ficou em pé sem fazer a menor tentativa por dissimular o desprezo que sentia. —Aonde vai? — interrogou-a lorde Ferdinand. Ela arqueou as sobrancelhas e o olhou com frieza através da fumaça que começava a limparse. —Não tenho por que lhe dar contas de meus movimentos, milord — respondeu, e depois desejou ter escolhido outras palavras. Porque viu que os olhos dele a percorriam, despindo-a à medida que desciam, ou isso lhe pareceu. Furiosa, apertou os dentes e o fulminou com o olhar. —Senhorita Thornhill, possivelmente gostaria de dar um passeio comigo — a convidou — uma vez que tenha me encarregado da chaminé. —Quer que lhe mostre a propriedade? — perguntou ela com incredulidade —. São meus domínios privados e só têm acesso a eles meus convidados. —Entre os quais não me encontro — apostilou ele. —Exato. —Mas eu não sou um convidado, não é mesmo? — particularizou lorde Ferdinand com esse tom de voz tão suave que parecia envolvê-la apesar de sua determinação de não deixar-se acovardar. —Se quer percorrer os caminhos da propriedade, busque alguém que o acompanhe — soltou antes de voltar-se para a porta.


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—Para que me abandone em algum ponto perto de um touro furioso? — repôs ele —. Ou em um lance de areias movediças junto ao rio? Não a convidei para desfrutar de uma visita guiada. Quero falar com você e acredito que fazê-lo fora da casa é a melhor opção. Temos que deixar de joguinhos, senhorita Thornhill, e tomar uma decisão com respeito a seu futuro, que não transcorrerá em Pinewood Manor, por certo. É absurdo pospor o inevitável. Embora insista em ficar até que chegue uma cópia do testamento do falecido conde, terá que lutar com a realidade posterior a esse momento. Convém estar preparada. Saia para passear comigo. Viola o olhou por cima do ombro. Tinha começado convidando-a para acabar lhe dando uma ordem. Uma reação típica desse tipo de homem. Os simples mortais só existiam para cumprir sua vontade. —Tenho tarefas pendentes — aduziu —. Depois darei um passeio pelo atalho do rio. Se quiser me acompanhar, não o impedirei, lorde Ferdinand. Mas se comportará como um convidado. Não me dará ordens. Nem agora nem nunca. Ficou claro? O aludido cruzou os braços diante do peito e se apoiou no batente da janela com atitude relaxada e elegante. Tinha os lábios franzidos e a seus olhos aparecia algo parecido à ironia, ou se tratava de desprezo? —Não tenho problemas de ouvido — respondeu. Viola compreendeu que não se estenderia mais, de modo que saiu da sala de jantar. Enquanto o fazia, chegou à conclusão de que as travessuras que tanto a servidão como ela haviam ideado só conseguiu desafiá-lo, obrigando-o a continuar a teimosia e reforçando a decisão de ficar. No fundo era previsível, é obvio. Os joguinhos e os desafios deviam alegrar os aborrecidos dias de um dandi londrino. Enfim, depois veria como reagia após enfrentar tudo o que tinham preparado para esse dia. Que mais poderia ocorrer?, Pensava Ferdinand, que seguia apoiado no batente da janela sem tentar sequer apagar o fogo. Não demoraria em extinguir-se por si só e, além disso, nessa posição estava bastante afastado da fumaça. Depois do que tinha acontecido com o jantar a noite anterior, deveria ter estado mais atento e captado a importância da aparição de um galo fugido do galinheiro e de um café da manhã frio e mal cozido. Entretanto, foi necessário que a fumaça de uma chaminé entupida lhe abrisse os olhos. Ou melhor dizendo, que os irritasse. Essa mulher pensava que podia espantá-lo.


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A vigorosa cavalgada dessa manhã havia dissipado a fúria de que o tivessem despertado a uma hora tão inoportuna. E uma torrada, embora fria e um pouco queimada, sempre bastou para tomar o café da manhã. As chaminés entupidas só eram um desafio. E estava acostumado a levar bastante bem as brincadeiras, como a da ameaça da vitela estragada e das moscas que enfrentou a noite anterior. De fato, tentava-lhe a ideia de subir ao carrossel e pôr em marcha umas quantas brincadeiras próprias para convencer à senhorita Viola Thornhill de que no fundo não era nada cômodo compartilhar alojamento com um homem solteiro. Podia deixar a casa cheia de barro, ou criar o caos por onde passasse, fazer-se com uns quantos cães mal educados, vagar pela casa meio vestido, deixar de barbear-se… Enfim, poderia ser imensamente irritante se o propunha. O problema estribava em que a situação não era um jogo. E o pior de tudo: essa manhã se compadecia dela. E se sentia culpado, pelo amor de Deus! Como se fosse o vilão da história. As absurdas travessuras dessa manhã e do dia anterior demonstravam até que ponto Viola Thornhill estava desesperada. Não lhe pareceu absolutamente interessada em aceitar a oferta de enviá-la a Jane, a duquesa de Tresham, sua cunhada. Não deu saltos de alegria ante a possibilidade de transladar-se a Bamber Court. Não sugeriu nenhuma alternativa própria. Parecia decidida a não enfrentar a realidade. Que outra coisa ele poderia sugerir? Teria que encontrar uma solução. Mas algo estava muito claro: não teria estômago para expulsá-la a força nem para obrigá-la a abandonar a propriedade por ordem de um juiz ou de um oficial. Nesse aspecto sempre tinha sido o membro mais fraco dos Dudley, concluiu com certa inquietação. Mas maldita fosse sua imagem, essa mulher lhe dava pena! Era uma jovem inocente que não demoraria em ver-se privada de uma vida segura e cômoda pela força. Ferdinand decidiu desentender-se no momento de seu dilema e se afastou do batente da janela. Precisava fazer as coisas de forma ordenada. Posto que não havia café quente que o tentasse a sentar-se de novo à mesa (e, além disso, a presença do filé de vitela estava revolvendo o estômago), tinha chegado a hora de subir ao telhado. Depois de descer à cozinha para combinar o menu do dia com a senhora Walsh, Viola foi à biblioteca, onde pretendia passar a manhã pondo em dia a contabilidade da propriedade. Não obstante, na escrivaninha havia uma carta que devia ter chegado com o correio matutino. A pegou e examinou a letra. Sim! Era de Claire. Sentiu a tentação de quebrar o selo para lê-la sem demora,


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mas a casa já não era somente dela, recordou. Esse homem podia entrar quando menos o esperasse e fazer alguma de suas impertinentes perguntas, tal como aconteceu durante o café da manhã. «Aonde vai?», havia perguntado. Era humilhante, como pouco. Guardou a carta sem abrir no bolso do vestido matinal. Disporia de mais intimidade se ela se afastasse da casa. Entretanto, o exterior não lhe pareceu especialmente íntimo quando saiu pela porta principal, onde não viu nenhum criado ocupando seu posto. O jardim das sebes, entretanto, estava transbordando de gente: o mordomo, o encarregado dos estábulos, o jardineiro chefe com os dois ajudantes, um lacaio, Rose, Hannah e dois criados que não conhecia e que deviam trabalhar para lorde Ferdinand. Todos estavam plantados frente à casa, olhando para cima. Rose protegia os olhos com uma mão, um gesto inútil já que tinha os dedos totalmente separados. Não, pensou Viola, corrigindo a primeira impressão enquanto os observava com mais demora. Não estavam olhando para cima. Estavam olhando para o telhado, claro! —Sigo sem entender por que não mandou chamar um limpador — escutou dizer um dos jardineiros —. Não tem sentido limpar uma chaminé de cima. —Eli cairá e acabará partindo a cabeça, já o verá — predisse o outro, encantado com a morbidez da situação. —Sim. E queimará o cabelo. Viola desceu correndo para juntar-se a eles. De verdade lorde Ferdinand tinha subido ao telhado? Não foi uma lorota? Tinha subido com Eli, o aprendiz das cavalariças? Não queria olhar. Não suportava lugares latos e não imaginava como os outros a suportavam. —Já chega de tolices! — ordenou o jardineiro chefe a seus subordinados —. Irão distraí-los. Viola se virou para olhar para cima… e os joelhos afrouxaram. A janela do apartamento de cobertura estava aberta, a fim de chegar até o balcãozinho. Entretanto, desde esse ponto era impossível alcançar as chaminés. O resto do telhado era muito inclinado e estava coberto por telhas cinza de ardósia, que pareciam tão lisas como a casca de um ovo e muito escorregadias. Lorde Ferdinand Dudley e Eli se encontravam no balcão. O primeiro com os braços nos quadris e a cabeça inclinada para trás enquanto examinava o telhado. Havia tirado a jaqueta de montar e o colete. —Jeb — sussurrou Viola —, por onde Eli entupiu a chaminé, por cima ou por baixo? A principio ela supôs que o tinha feito por baixo. Jamais teria permitido que Eli subisse ao telhado e corresse semelhante risco.


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—Os panos teriam pegado fogo se o tivesse feito por baixo, senhorita Thornhill — respondeu o encarregado dos estábulos —. Subiu ao telhado depois de prender o galo. E desceu jurando que não voltaria a subir na vida, mas lorde Ferdinand o obrigou. Enfim, ainda não se moveram do balcãozinho. De modo que não tinham por que cochichar e murmurar. —Eli! — gritou Viola, colocando as mãos junto à boca para que a ouvissem melhor —. Desça agora mesmo antes que quebre o pescoço. E não me importo que lorde Ferdinand diga o contrário. Ambos a olharam. Viola imaginou o precária que lhes pareceria sua posição dali de cima. Dali debaixo parecia espantosa. —Desça agora mesmo! — voltou a gritar —. Lorde Ferdinand, você também! Face à distância, Viola viu que o aludido colocava uma mão no ombro de Eli e lhe dizia algo que não escutaram de baixo. Depois, lorde Ferdinand passou uma perna por cima do corrimão baixo que separava o balcão do telhado. E começou a subir usando as mãos e os pés, deixando Eli onde estava. Rose gritou e o senhor Jarvey a repreendeu em voz baixa. Viola teria sentado de boa vontade no banco que rodeava a fonte se tivesse sido capaz de percorrer os dois metros que a separavam dele. De modo que ficou de pé, com as mãos cobrindo a boca. Que tolo! Que imbecil! Ia cair e quebrar todos os ossos do corpo, e ela levaria o peso de sua morte na consciência pelo resto da vida. Certamente era isso o que ele pretendia. Em troca, o viu chegar até o cavalete sem contratempos. Levantou-se quando ficou junto à lareira pela qual subia a fumaça da sala de jantar e de outras estadias, e olhou. Chegava-lhe ao peito!

Que homem mais tolo! Que idiota! —Não servirá de nada — murmurou Jeb Hardinge —. Não poderá chegar até os panos. E nesse momento Rose chiou, o mordomo a repreendeu e lorde Ferdinand Dudley se aferrou

a beira da chaminé para tomar impulso e sentar-se nela, depois do que introduziu as pernas pelo buraco. —Não parará até se matar — comentou Hannah. —Devo admitir que é um tipo excelente — apostilou o lacaio, embora Viola mal prestou atenção. Lorde Ferdinand Dudley estava desaparecendo pelo interior da chaminé. Não. Já havia desaparecido! Cairia e morreria. Ficaria entupido e sofreria uma morte lenta e espantosa. Se sobrevivesse, ela o mataria com as próprias mãos.


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Passaram uns dois minutos, que lhe pareceram muito duas horas, antes que reaparecesse. Ou ao menos de que aparecesse uma versão enegrecida de lorde Ferdinand. Tinha o rosto tão escuro como o cabelo. A camisa era cinza. Levantou um punhado de panos enegrecidos que levava na mão e sorriu a seus espectadores. Apesar da distância os dentes luziam branquíssimos. —Resulta que não era um ninho de pássaros depois de tudo — gritou ele —, mas um misterioso objeto voador que sem dúvida caiu da lua. — Soltou os trapos, que descenderam cada um pelo telhado e acabaram no terraço. Como ia descer?, Perguntou-se ela. Fez após um instante, saltando descuidadamente como se estivesse deslizando-se por uma suave colina coberta de erva em direção a um prado. Quando chegou ao corrimão do balcão onde o esperava Eli, saltou com agilidade e se virou para saudar com uma mão. O aprendiz ria a gargalhadas enquanto aplaudia. —Tem guelra. Terá que reconhecê-lo — disse Jeb Hardinge. —É um tipo excelente — repetiu o lacaio de antes. —Poderia ter obrigado Eli a fazer, tal como ameaçou — acrescentou o jardineiro chefe —, mas ele o fez. Não encontrarão muitos aristocratas tão magnânimos. —Na realidade — replicou um dos criados que Viola não conhecia enquanto observava seu senhor desaparecer junto com Eli pela janela do apartamento de cobertura —, lorde Ferdinand é incapaz de ficar de braços cruzados para deixar que outro se divirta. Isto não foi nada. Lembro uma ocasião… Entretanto, Viola não pensava escutar mais. —Senhor Jarvey — o interrompeu com frieza antes de pôr-se a andar com passo firme e decidido para o terraço —, não lhe parece que já é hora de que voltem para o trabalho? Todos tinham parado para admirar boquiabertos semelhante temeridade. Estava conquistando-os. Um sujeito excelente… O que faltava! Entrou na casa feita uma fúria e subiu ao andar onde estavam situados os dormitórios. Teria seguido até o apartamento de cobertura, mas lorde Ferdinand já havia descido e estava com Eli, pisando no limpo e valioso tapete do corredor. Seria raro se ficasse um minúsculo pedacinho de fuligem na chaminé. Lorde Ferdinand a tinha limpo com sua pessoa. —Foi um alarde temerário e de péssimo gosto! — gritou, sem deter-se até estar a poucos passos dele —. Poderia ter se matado! Viu-o sorrir de novo. Como era possível que conseguisse parecer tão bonito e viril inclusive nessas circunstâncias? O simples fato de que o conseguisse a enfureceu ainda mais. —E olhe como está deixando o tapete!


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—Pode retornar ao estábulo, moço — disse lorde Ferdinand ao Eli —. E caso volte a pôr um pé nesse telhado, dar-te-ei uma sova assim que desça. Entendido? —Sim, milord. E enquanto uma indignada Viola observava a cena, Eli esboçou um sorriso descarado e deu de presente a lorde Ferdinand um olhar de pura adoração masculina como se fosse seu herói, depois do qual se virou e desceu correndo a escada. —Esta noite poderá jantar aquecida e cômoda, senhorita — comentou lorde Ferdinand, olhando-a de novo —. E agora, se me desculpar, devo ir confrontar a ira do meu ajudante de câmara. O estado das minhas botas não lhe fará nem pingo de graça. —Fez de propósito — o acusou com os olhos entrecerrados e os punhos apertados a ambos os lados do corpo —. Se assegurou de que todos soubessem o que ia fazer. Assegurou-se de contar com uma nutrida audiência. Arriscou sua vida e integridade física para que todos o contemplassem boquiabertos e o pontuassem de ser um sujeito excelente. —Não! — exclamou ele com um brilho risonho nos olhos — Foi isso o que disseram? —A vida só é um jogo para você! — gritou Viola —. Certamente se alegra de ter me encontrado aqui e de que me negue a ir embora. Com certeza se alegra de que todo mundo esteja tratando de incomodá-lo. —Devo lhe confessar que sou capaz de resistir a qualquer coisa salvo a um desafio — repôs ele —. Senhorita Thornhill, quando você me jogou a luva, a recolhi. O que esperava? —Mas isto não é um jogo! — estava cravando as unhas nas palmas das mãos de forma dolorosa. Esses olhos quase negros a observavam desde o enegrecido rosto. —Não, não é — conveio —. Mas enfim, não fui eu quem planejou as travessuras nem quem as pôs em marcha, não é verdade, senhorita? Em caso de que haja algum jogo, não pode querer que me mantenha à margem. E sempre jogo para ganhar. Conviria a você recordar. Conceda-me uma hora mais ou menos. Preciso de um banho. Depois daremos o passeio que combinamos esta manhã. — voltou-se e se afastou pelo corredor. Viola o observou até que a porta de seu dormitório se fechou atrás dele. Efetivamente, comprovou, havia uma mancha de fuligem no tapete ali onde lorde Ferdinand tinha estado. «Sempre jogo para ganhar.» «Tem guelra.» «É um sujeito excelente.» Estava a ponto de começar a gritar como uma louca. Ou de começar a chorar. Ou de cometer um assassinato.


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Não fez nenhuma das três coisas. Deu meia volta e voltou para o andar de baixo. Sairia para ler a carta. Iria ao caminho do rio. Se lorde Ferdinand quisesse passear, que fosse procurá-la. Porque não pensava esperá-lo como se fosse uma menina obediente.

Capítulo Seis A senhorita Thornhill lia quando a encontrou. Ao menos Ferdinand a viu dobrar uma carta, certamente a mesma que tinha visto antes sobre a escrivaninha da biblioteca. Estava sentada sobre a grama, na beira do rio que discorria pela parte norte da propriedade, com as pernas cobertas pelo leve vestido de musselina e penteada com o pulcro coque. A seu redor havia margaridas, ranúnculos e trevos. Era a personificação da beleza e da elegância, fundida com o ambiente. Ferdinand se sentia péssimo. Diziam que o falecido conde de Bamber era um sujeito decente, embora não o tivesse conhecido pessoalmente. Entretanto, era evidente que o homem tinha sido tão imoral como o filho. Ela não levantou a cabeça quando se aproximou, embora certamente que o tinha escutado. Estava colocando a carta no bolso. Acaso acreditava que ia tirar das mãos dela para lê-la? Voltou a zangar-se. —Esconde-se de mim, senhorita Thornhill? A aludida virou a cabeça para olhá-lo. —Quando não há nem uma só árvore atrás da qual me ocultar? — perguntou ela a sua vez —. Se decidisse me esconder de você, milord, não me encontraria. Ferdinand se colocou ao lado dela enquanto ela cravava a vista mais à frente do rio e rodeava as pernas dobradas com os braços. Teria preferido passear com ela, mas não parecia disposta a ficar em pé. Não podiam manter uma conversa razoável olhando-a de cima. De modo que se sentou não muito longe dela, com uma perna estendida para frente enquanto abraçava a outra, que tinha dobrado.


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—Teve um dia inteiro, com sua correspondente noite, para pensar — disse ele —. Teve a oportunidade de falar com seus amigos e vizinhos. Embora tenha pedido que nos mandem uma cópia do testamento, acredito que a esta altura já deve ter se dado conta de que Pinewood Manor nunca foi sua. Tomou uma decisão sobre seu futuro? —Fico aqui — declarou ela —. É meu lar. Aqui é meu lugar. —Seus amigos tinham razão ontem à noite — replicou —. Sua reputação corre grave perigo enquanto permanecer aqui comigo. Escutou-a soltar uma suave gargalhada enquanto pegava uma margarida. Ato seguido, quebrou o caule com o polegar e tomou outra margarida para engastá-la com a primeira. —Se lhe preocupar o decoro — repôs ela —, talvez você deva partir. Não tem direito algum sobre Pinewood Manor. Ganhou em uma partida de cartas em um antro de jogo. Sem dúvida alguma, estava tão bêbado que nem sequer se inteirou até o dia seguinte. —O antro de jogo era o Brookes’s — precisou ele —. Um clube para cavalheiros muito respeitável. E terá que ser muito tolo para jogar bêbado. Eu não o sou. Ela riu de novo, uma gargalhada rouca e desdenhosa, e a grinalda adquiriu outra margarida. —O testamento demorará uma semana em chegar — continuou ele —. Sempre e quando Bamber decida enviá-lo ou mandar uma cópia, é obvio. É possível que se desentenda de minha petição. Deve compreender que não posso permitir que continue aqui eternamente. — Bem sabia Deus que sua reputação ficaria feita pedacinhos, se por acaso não já estava. Esperariam que a ressarcisse. E sabia muito bem o que isso implicava. Acabaria casado com ela se não tivesse muito cuidado. A mera ideia do casamento bastou para lhe provocar suores frios, por muito quente que fosse o ensolarado dia de maio —. Por que está tão segura de que o falecido conde queria lhe deixar Pinewood Manor? — perguntou —. Salvo pelo fato de que parece que prometeu fazê-lo, claro. —Pelo fato de que prometeu fazê-lo — corrigiu ela. —De acordo, prometeu — aceitou—. Por que ia prometer algo assim? Era sobrinha ou prima preferida dele? —Ele me amava — respondeu ela em voz baixa, embora com veemência, enquanto arrancava de repente um punhado de margaridas que deixou na grama a seu lado antes de seguir com a grinalda. —Isso nem sempre quer dizer que… —E eu o amava — o interrompeu —. Talvez nunca tenha amado nem o tenham amado, lorde Ferdinand. Mas o amor implica confiança. Eu confiava nele. Sigo fazendo-o. E sempre o farei. Disse que Pinewood Manor seria minha e não me cabe a menor duvida de que é.


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—Mas e o testamento? — Franziu o cenho com a vista cravada nas mãos dela. Tinha os dedos finos e delicados —. Se esse documento provar que não manteve a palavra, terá que aceitar que a defraudou. —Jamais! — Deixou as mãos quietas e virou a cabeça para fulminá-lo com o olhar —. Somente demonstrará que alguém o modificou. Talvez que o tenha destruído. Nunca perderei a fé nele porque nunca deixarei de amá-lo nem de saber sem a menor sombra de dúvida que ele me amava.

Ferdinand guardou silêncio, aturdido pela paixão com a qual tinha falado do amor que

professavam mutuamente o falecido conde de Bamber e ela. Pelo amor de Deus, que tipo de relação tinham mantido? —É uma acusação muito grave — disse —. A de que alguém tenha modificado o testamento, quero dizer. —Sim — conveio Viola —. É. — A grinalda se fez mais longa. Na realidade, não queria saber mais coisas sobre ela. Não queria vê-la como pessoa mais do que já a via. Bastante mal se sentia por ela tal e como estava a situação. Passou um par de minutos contendo a curiosidade. Algumas mechas ruivas lhe roçavam a nuca de forma incitante. —Cresceu no campo? — perguntou muito a seu pesar. —Não. — Deu a impressão de que não ia acrescentar nada mais, para alívio de Ferdinand, mas ao final o fez —: Cresci em Londres. Passei toda a vida ali até que vim viver aqui faz quase dois anos. —A mudança deve ter sido uma tremenda impressão — comentou. —Sim. — Tinha despojado de margaridas a grama que tinha ao redor. Nesse instante segurava os extremos da grinalda —. Mas adorei desde o primeiro instante. —Seguem vivos seus pais? — Mas no caso de que assim fosse, por que demônios não viviam com ela? Ou por que não vivia ela com os pais? —Minha mãe sim. —Era muito jovem quando morreu seu pai? — quis saber. Viu-a estender a grinalda sobre o regaço, com os extremos pendurando sobre a grama a cada lado das pernas, depois do que procedeu a colocar cada margarida com muito cuidado de forma que ficassem todas para cima. —Minha mãe se casou com meu padrasto quando eu tinha nove anos — respondeu ela —. Morreu quando eu tinha dezoito… em uma briga em um antro de jogo. Acusaram-no de trapacear, e estou segura de que a acusação tinha fundamentos. — A voz dela não transmitia emoção alguma.


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—Ora — disse Ferdinand. Que outra coisa podia dizer? Ele ganhou a propriedade que ela considerava como dela em uma partida de cartas. Isso deve ter parecido uma cruel ironia do destino. —Eu o odiava — continuou ela enquanto continuava meticulosamente com a tarefa —. Nunca compreendi por que minha mãe o adorava. —Recorda de seu verdadeiro pai? — quis saber, atraído sem remédio pelo interesse que despertava a vida dela. —Certamente que sim. — A voz se tornou mais rouca, como se tivesse esquecido-se de sua presença. Suas mãos soltaram a grinalda —. O queria com loucura. Costumava esperar sua chegada e sair a seu encontro, às vezes inclusive à rua antes sequer dele poder entrar em casa. Minha mãe chamava minha atenção, dizendo que deveria me comportar como uma senhorita, mas ele me segurava no alto, me fazia girar e dizia que era a melhor boas vindas que qualquer homem poderia desejar. — A lembrança lhe arrancou uma breve gargalhada. Ferdinand guardou silêncio. Quase estava contendo o fôlego, ansioso por saber mais, mas consciente de que ela deixaria de falar se recordasse quem era seu interlocutor. —Costumava me sentar sobre seus joelhos enquanto falava com minha mãe — continuou ela —. Esperava com paciência, porque sabia que chegaria minha vez. Embora não prestasse atenção em mim, sentia a sólida segurança de sua presença e o aroma do rapé que sempre usava. E brincava com meus dedos sem dar-se conta, com aquelas mãos grandes e firmes. Quando por fim me atendia, escutava todas as insignificantes tolices que eu lhe contava como se não houvesse nada mais interessante no mundo, e me pedia que lhe lesse meus livros. Às vezes lia ele, mas após um instante começava a trocar as palavras de meus contos preferidos até que me zangava e o corrigia. E nesse momento o via piscar um olho a minha mãe. Chamava-me «minha princesa». Entretanto, havia morrido antes que ela cumprisse nove anos. A idílica infância tinha acabado. Ferdinand não sabia por que sentiu pena dela. O que lhe contava ocorreu fazia muito tempo. —É importante que o amem quando criança, não é verdade? —comentou. Nesse momento, ela virou a cabeça para olhá-lo. —Alguém deve amá-lo — replicou —. Você tinha seus pais, não é certo? E um irmão com quem brincar. E uma irmã. —Brigávamos com uma veemência da que só são capazes os Dudley — respondeu com um sorriso —. Mas nos convertíamos em aliados cada vez que havia alguém a quem atormentar alheio


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a nosso trio. E sempre havia alguém, normalmente um tutor, às vezes um guarda florestal ou algum habitante eminente do povoado, que de algum jeito conseguia provocar nossa ira. —Desfrutou de uma casa no campo onde crescer — acrescentou ela — e de pais que o queriam e que queriam um ao outro. Que hipótese mais ingênua, pensou ele. —Sim, queriam um ao outro, certamente — repôs —. Quando um deles estava em Acton Park, o outro se encontrava em Londres. Alternavam-se. Mal passavam algumas horas em mútua companhia. Embora suponha que deveria estar agradecido de que passassem essas poucas horas juntos ao menos três vezes ao longo de seu matrimônio. Do contrário, nem meus irmãos nem eu existiríamos. — Observou-a engastar com supremo cuidado os extremos da grinalda —. Meus pais tinham uma relação muito civilizada — prosseguiu —. A verdade é que se tratava de um matrimônio típico entre a alta sociedade. —Que cínico parece — replicou —. O magoava a separação tácita entre seus pais? —Por que ia magoar? — deu um encolher de ombros —. Quando nosso pai não estava em casa, éramos muito felizes. Quando pequeno ele foi tão rebelde quanto nós, de modo que era impossível enganá-lo. E também era impossível escapar da vara que tinha apoiada contra a escrivaninha do escritório. Agradeci muitíssimo que meu irmão fosse seu preferido e que, portanto, recebesse mais castigos que eu. —Sua mãe era mais carinhosa? — quis saber Viola. —Ela se aborrecia conosco — respondeu —. Ou talvez fosse o campo o que a aborrecia. Não a víamos muito, ao menos meus irmãos não a viam. Eu era seu preferido. Quando fiquei grande o bastante, levava-me com ela a Londres. —Deve ter se divertido muito — repôs ela. Foi péssimo. Essas visitas a Londres foram as culpados de que perdesse a inocência sendo tão jovem. A essa altura de sua vida, tinha a impressão de que sempre soube que seu pai tinha amantes. Intuiu de algum jeito, embora estava seguro de que Tresham e Angie não sabiam. Não sabiam que a parente pobre que vivia na casinha do charco não era parente deles, e sim uma das amantes do pai. Por esse motivo tinham proibido visitá-la, é obvio, embora a casinha ficasse ao pé das adoradas colinas e muito perto do charco onde costumavam a banhar-se no verão apesar de ser categoricamente proibido. O que não soube até que foi a Londres com a mãe, a quem adorava, era que ela também tinha amantes. Uma legião de paqueras que se congregavam em seu quarto de vestir pela manhã e de noite, e que observavam todos seus movimentos salvo as etapas mais íntimas do asseio pessoal


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antes de acompanhá-la a todas as festas e veladas que abundavam na temporada social londrina. E também tinha um bom número de preferidos com quem compartilhava a cama, embora nunca em casa. Sua mãe jamais foi vulgar. A infidelidade conjugal, tanto por parte dos homens como das mulheres, era algo comum na alta sociedade, tal como aprendeu muito novo ainda. Os votos que o casal trocava durante a cerimônia nupcial eram uma farsa. Os matrimônios eram alianças econômicas e dinásticas. Ferdinand não queria nem ouvir falar do assunto. Revolvia-lhe o estômago só pensar em casamento. E diferente da ingênua e inocente senhorita Viola Thornhill, não acreditava no amor nem na confiança. Certo que amava Tresham, a mulher e os filhos deste. Amava Angie e inclusive apreciava Heyward. Mas não era um amor cego, como o amor e a confiança da senhorita Thornhill. Talvez depois desse fiasco, o coração dela se endureceria e aprenderia a não confiar em ninguém salvo em si mesma. —Sim, me diverti muito — concluiu. Depois foi como se não tivessem nada mais que dizer. Ferdinand ficou sentado olhando-a. Estava zangado consigo mesmo. Tinha ido procurá-la para falar do futuro, para alcançar algum tipo de resolução firme a fim de que partisse. Em troca, tinham falado de suas respectivas infâncias. Soprava uma leve brisa que agitava as mechas da nuca feminina. Sentiu o absurdo impulso de afastá-las com a mão e de colocar os lábios sobre aquela pele, embora se conteve. —O que pensa fazer com a grinalda de margaridas? — perguntou ao tempo que ficava em pé. Ela a olhou como se notasse a presença dele pela primeira vez. —Ora! — exclamou. Estendeu uma mão e a ajudou a levantar-se. Tirou-lhe a grinalda e a colocou na cabeça. —Minha moça da festa — murmurou enquanto inclinava a cabeça para beijá-la nos lábios. Separou-se dela quase imediatamente, mas já era muito tarde, é obvio. Que tolice acabava de cometer em um arranque irrefletido? A viu ruborizar enquanto o fulminava com o olhar e se resignou a receber o bofetão que sabia que chegaria. Não se defenderia, dado que agiu mal. Entretanto, Viola deixou as mãos quietas. —Lorde Ferdinand — disse ela com voz fria e tremula —, pode ser que tenha motivos para acreditar que Pinewood Manor lhe pertence. Mas eu não faço parte do lote. Sou a proprietária de minha pessoa. Acredito que já disse isso antes, mas repetirei se por acaso não acreditou da primeira vez: não sou amante de ninguém. Sou dona de mim mesma. —Ato seguido, deu meia volta e se


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afastou. Não partiu pelo caminho do rio, mas sim o atravessou, subiu inclinada borda oposta e desapareceu. Maldita fosse sua imagem!, Pensou Ferdinand. Que demônios lhe ocorreu? Tinha ido deixar clara sua postura, defender sua posição, a livrar-se dessa mulher, mas acabou beijando-a e murmurando algo tão vexatório que não queria nem recordar as palavras exatas. «Minha moça da festa», havia dito. A frase bastava para que ficasse se retorcendo uma semana inteira. Por Deus, que transformação havia sofrido diante de seus olhos! Passou de uma moça alegre com a grinalda de margaridas no cabelo a converter-se em uma dama de gesto severo e gélido. De repente, desejou ser tão decidido e desumano como sem dúvida alguma seria Tresham em semelhante situação. A senhorita Thornhill não teria partido esse dia, o teria feito no dia anterior! Como demônios ficaria livre dela? Pôs-se a andar pelo atalho do rio, frustrado por não ter solucionado as coisas e preocupado por todo o resto. Precisava sentar-se em algum lugar tranquilo para pensar durante várias horas. Para traçar um plano. E depois levá-lo a cabo. Entretanto, nada mais pôr um pé na casa soube que não conseguiria o que necessitava, ao menos não durante um bom tempo. O vestíbulo parecia abarrotado de pessoas, que se viraram ao uníssono ao vê-lo entrar e o olharam espectadores. —Jarvey? — Ferdinand vislumbrou o mordomo e arqueou as sobrancelhas com um gesto inquisitivo. —O senhor Paxton o espera na biblioteca, milord — disse Jarvey —. E há várias pessoas que solicitam que os receba. —Paxton? —O administrador de Pinewood Manor, milord — precisou Jarvey. Antes de dirigir-se à biblioteca Ferdinand deu uma olhada a todas as pessoas que o olhavam em silêncio e que esperavam ser recebidas. —Pois será melhor que vá vê-lo sem demora —repôs. Viola perambulou pelo atalho até que se sentiu calma o bastante para arriscar-se a tropeçar com alguém. Tinha falado com ele quase como se fossem amigos. Permitiu que a beijasse. Sim, tinha permitido. Assim que lhe tirou a grinalda das mãos e a colocou na cabeça, soube de algum modo que faria. Poderia ter impedido. Mas não o fez. Esteve lutando contra os estragos que aquela atração dele causava a sua respiração, coração e nervos durante todo o tempo que o teve sentado a seu lado, ou melhor meio recostado.


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Não queria achá-lo atraente. Queria odiá-lo. De fato, odiava-o. Voltou a pensar com muito esforço na carta enquanto colocava a mão no bolso e a apertava com os dedos. A resposta era não, de novo. Agradecemos muitíssimo seu convite. Temos muitíssimas vontade de voltar a vê-la depois de tanto tempo. Dois anos é muito. Mas mamãe pediu que comunique em seu nome nosso mais sincero pesar e que explique por que não podemos ir. Acredita que devemos muito a nosso tio, sobre tudo agora que teve a amabilidade de mandar Ben ao colégio. Considera necessário ficar aqui e ajudá-lo em tudo o possível. Mas sente muitíssimo a sua falta, Viola. Todos sentimos falta de você. Isso dizia a carta que sua irmã lhe escreveu. Viola se sentia perdida. O que a afetava não era tanto o fato de estar sozinha, já que tinha aprendido a controlar essa sensação distraindo-se com um sem-fim de atividades e com as amizades da localidade, mas sim a terrível solidão. Nunca iriam visitá-la. Por que mantinha viva a esperança de que algum dia o fizessem? Seu maior desejo ao mudar-se a Pinewood Manor era que logo passasse o aborrecimento de sua mão e se esquecesse da azeda discussão que mantiveram pelo fato de ter aceitado o presente do conde. Desejava que a mãe fosse viver com ela, acompanhada dos meio-irmãos: Claire e os gêmeos, Maria e Benjamin. Entretanto, sua mãe não estava preparada para perdoá-la, ao menos não até o ponto de ir a Pinewood Manor. Sua mãe e as crianças, embora Claire já tivesse quinze anos e os gêmeos, doze, careciam de casa própria. O padrasto de Viola tinha morrido quando ela estava com dezoito anos e a família só deixou dívidas que o tio Wesley, o irmão de sua mãe, pagou. Levou todos para viver à casa de postas de sua propriedade e ali estavam após. A carta continuava: Agora estou trabalhando. O tio Wesley está me ensinando a levar os livros de contas, como você fazia. Disse que pode ser que me deixe servir no salão de café agora que tenho quinze anos. Me alegro de trabalhar para ele, mas o que eu gostaria de fazer de verdade é ser preceptora como você, Viola, e ajudar a manter à família com meu salário. Tanto a mãe como o tio estavam naquele momento muito orgulhosos dela, recordou Viola. Seu tio Wesley teve uma desilusão quando anunciou a decisão de abandonar a estalagem, mas compreendeu o desejo de ajudar à família. E depois, quando comunicou a notícia fazia já dois anos,


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a mãe não entendeu por que estava tão ansiosa por abandonar um posto respeitável, interessante e muito bem pago para aceitar esmola. «Esmola», assim chamou o presente que supunha Pinewood Manor… E sua irmã continuava: Eu gosto de ajudar. O tio Wesley é muito generoso, de verdade. As mensalidades do colégio do Ben são muito caras. Além disso, comprou livros novos a Maria, que está aprendendo com mamãe e parece ainda mais aplicada que eu, e também lhe comprou roupa nova. Comprou sapatos para mim, embora os velhos ainda aguentavam o bastante. Entretanto, seu tio Wesley sabia que o dinheiro para a educação do Ben e para muitos dos gastos de sua família procedia das rendas de Pinewood Manor. A princípio, o tio se negou a formar parte do engano. Não queria levar o mérito que não lhe correspondia. Entretanto, Viola lhe escreveu uma carta pouco depois de chegar a Somersetshire para suplicar a colaboração dele. Sua mãe nunca aceitaria nada procedente de Pinewood Manor. Mas ela precisava seguir ajudando a família. Claire, Ben e Maria deviam ter a oportunidade de levar uma vida digna. A carta concluía assim: Que Deus a abençoe, minha queridíssima Viola. Já que nós não podemos ir a Pinewood Manor, viria você a Londres nos visitar? Por favor… Entretanto, não tinha sido capaz de obrigar-se a voltar. A mera ideia lhe provocava calafrios. Alterada pelo encontro com lorde Ferdinand e alterada também pela carta, Viola sucumbiu a um muito estranho arranque de auto-compaixão e escutou um ruído estranho procedente de sua garganta. Engoliu com determinação. Sentia muitíssima falta de sua família. Levava dois anos sem vê-los, desde a espantosa discussão com sua mãe. Seu único consolo era que podia ser de ajuda enquanto vivesse ali. Mas como continuar ajudando-os se Pinewood Manor já não era sua? Do que viveria? O pânico lhe provocou um nó tremendo na boca do estômago enquanto retornava à casa. Detestava lorde Ferdinand com todas suas forças. Não só tentava lhe arrebatar Pinewood Manor. Tiraria-lhe tudo. Além disso, odiava a si mesma por não ter virado a cabeça com frieza junto ao rio fazia um momento. Poderia ter entrado na casa pela porta dos fundos, dado que era a entrada mais próxima ao atalho. Não obstante, deu a volta e entrou pela frente. Queria comprovar se puseram em marcha os


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planos dispostos para o resto do dia. Uma parte dela esperava encontrar o vestíbulo deserto. Mas não foi assim. Estava cheio de gente. Havia muitas mais pessoas do que havia esperado. Ficaria algum jornaleiro ou arrendatário que não estivesse presente? Viola esboçou um radiante sorriso quando os homens a saudaram levando uma mão à boina ou com uma hesitante reverencia e as poucas mulheres, com uma genuflexão. Todos lhe devolveram o sorriso, em sinal de cumplicidade. —Bom dia — os saudou com voz cantante. Que hora seria? Quando lorde Ferdinand acabasse de falar com todos os que esperavam audiência para pedir alguma coisa ou para elevar as queixa ao novo proprietário de Pinewood Manor, a manhã teria chegado ao fim. E antes que pudesse recebê-los, teria que aguentar o sermão e os conselhos que sem dúvida alguma o senhor Paxton havia preparado durante mais de meia noite. O senhor Paxton podia ser tremendamente chato quando se propunha. Lorde Ferdinand teria muita sorte se pudesse comer algo antes que os outros começassem a chegar pela tarde para saudar o novo vizinho. O reverendo Prewitt falaria do coro da igreja e do sermão do próximo domingo, enquanto que a senhora Prewitt comentaria sobre o grupo de costura das mulheres e os novos genuflexórios que estavam bordando. O professor o aborreceria com as goteiras do telhado e com a necessidade de instruir em algo proveitoso os alunos de maior idade ao mesmo tempo em que ensinava a ler os mais novos. As senhoritas Merrywether falariam do concurso de flores que se celebraria no verão e das tentativas de certos habitantes do povoado por criar novas variedades. A senhora Claypole, o senhor Claypole e Bertha… enfim, os Claypole, seriam fiéis a seu modo de ser. O senhor Willard tinha um touro que segundo ele estava melancólico pela morte (à mãos do açougueiro) de sua vaca preferida. O senhor Willard podia falar longa e tediosamente, e com grande detalhe, do gado, algo que sem dúvida faria. O senhor Codaire era capaz de fazer dormir qualquer um falando de estradas, de pedágios e de novos métodos de pavimentação. Por sorte para Viola, o pobre homem sabia e tinha afirmado que seria um tema de conversa apropriado para entreter lorde Ferdinand Dudley quando fosse de visita com sua família. A senhora Codaire acabava de ler um livro de sermões que estava convencida de que lorde Ferdinand adoraria escutar parafraseado. E as senhoritas Codaire, de dezesseis e dezessete anos, tinham sugerido acompanhar os pais e soltar risadinhas a todo momento. Tendo em conta que as moças não necessitavam mais incentivo que a presença de um jovem bonito, Viola


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estava segura de que conseguiriam irritar todos os adultos que se encontrassem no salão de Pinewood Manor, sobre tudo lorde Ferdinand Dudley. A essa mesma hora do dia seguinte, pensou Viola esperançosa enquanto entrava em seu quarto, onde tinha planejado passar uma tranquila tarde lendo, lorde Ferdinand Dudley estaria já a caminho de Londres após se dar conta de que a vida no campo o enlouqueceria em uma semana. Embora aos olhos da lei seguisse sendo o proprietário, supôs, era muito possível que não voltasse jamais. Se tentasse ficar com as rendas, desentender-se-ia das petições até que deixasse de fazê-las. A essa mesma hora do dia seguinte voltaria a desfrutar de seu lar. E a essa mesma hora do dia seguinte os porcos teriam aprendido a voar, pensou com um suspiro. Viola não saiu do quarto até a hora do jantar. Preparou-se para comer com ele, consolandose com a ideia de que ao menos poderia desfrutar das queixa e lamentos dele. Entretanto, a mesa estava preparada para um só comensal e o mordomo se encontrava atrás da cadeira que ela estava acostumada ocupar à cabeceira da mesa, à espera de ajudá-la a sentar-se. —Onde está lorde Ferdinand? —perguntou. —Disse que jantaria no Cabeça do Javali, senhorita. —Suponho que teve bastante conversa formal para um dia — comentou com um sorriso aliviado, preparando-se para desfrutar da comida, o que era uma grata surpresa. —Suponho que sim, senhorita — conveio o senhor Jarvey com um sorriso ladino enquanto começava a encher a terrina de sopa. —Acredita que desfrutou do dia? — sentia-se como se tivessem lhe tirado um peso de cima. —A verdade é que me pareceu de bastante bom humor cada vez que entrava no salão para anunciar outra visita — respondeu o senhor Jarvey —. Sorria, falava e recebia os recém chegados como se não lhe ocorresse uma melhor maneira de passar a tarde. Mas estou convencido de que só era uma fachada para que eu não me desse conta de que estávamos incomodando-o. —Sim — repôs Viola —, certamente tem razão. — Entretanto, teria preferido ouvir que parecia cansado, irritado, nervoso ou zangado —. Você falou com o senhor Paxton? —Lorde Ferdinand exigiu ver os livros de contas e logo quis saber quem os mantinha em tão bom estado, senhorita — respondeu o mordomo —. O senhor Paxton me disse que fez muitas perguntas, e que foram mais pertinentes do que esperava. Lorde Ferdinand levou os livros a habitação dele quando partiu. Disse que queria estudá-los com atenção. E em vez de fazer entrar à biblioteca uma a uma a todas as pessoas que aguardavam a vez, colocou uma cadeira no meio do


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vestíbulo, acredite que o fez, e se sentou para falar com todos de uma vez. Eu estava presente e a alegrará saber que não tem a mínima ideia de agricultura nem de gado. De fato, é um completo ignorante. —De verdade? — perguntou Viola, chateada pelo fato de que lorde Ferdinand tivesse encontrado o modo de não ver-se afligido pela quantidade de pessoas, mas também agradada porque sua presença no vestíbulo tivesse permitido ao mordomo presenciar seu desconforto e incompetência. —De verdade — reiterou o mordomo —. Isso sim, sabe como escutar e também sabe que perguntas fazer. Além disso, é simpático. Fez todo mundo rir mais de uma vez. Eu inclusive sorriu ao escutar a piada sobre o libertino da cidade e o pastor do campo. Parece que… —Obrigada, senhor Jarvey — o cortou com secura —. Não estou de humor para piadas. —Como quiser, senhorita. — O mordomo recuperou seus gestos mais formais enquanto retirava a terrina de sopa vazia. Viola se sentiu culpado por mostrar-se tão áspera. Mas era o cúmulo! Esse homem estava ganhando todo mundo? Por acaso não se davam conta de que era um encantador de serpentes consumado que faria qualquer coisa para puxar do tapete que ela tinha sob os pés para que não ficasse mais alternativa que partir? A mera ideia acabou com o pouco apetite que tinha. Talvez essa noite ficaria até tarde na estalagem e se embebedaria sem remédio. Talvez ficaria em ridículo e demonstraria sua verdadeira forma de ser. Talvez quando ela saísse essa noite do ensaio do coro escutaria o alvoroço no Cabeça do Javali. Que satisfatório seria. Porque outros membros do coro o ouviriam também. Entretanto, essa cruel e frágil esperança se fez pedacinhos uma hora depois quando Viola deixou o cavalo e a calesa no estábulo da vicária antes de entrar na igreja. Chegava um pouco tarde. Outros membros do coro já estavam ali. Assim como lorde Ferdinand Dudley.

Capítulo Sete Ferdinand não demorou muito em compreender o que acontecia: tinham planejado seu dia com esmero, começando com o canto do galo ao raiar a alvorada. Possivelmente a culminação seria


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um espantoso jantar em Pinewood Manor. Se o café da manhã foi uma amostra do engenho da cozinheira na hora de servir pratos aptos para revolver o estômago, conviria jantar no Cabeça do Javali embora ali tampouco o acolhessem com os braços abertos. O estranho, refletia enquanto dava boa conta de um filé e de uma empanada de rins em uma das salas de jantar privadas da estalagem, era que quase tinha desfrutado do dia. Quase, embora não totalmente. Porque aí estava Viola Thornhill, um espinho que tinha cravado na consciência, aguando a festa. Entretanto, a cavalgada matinal foi muito entretida uma vez que tanto o corpo como a mente se adaptaram ao fato de ter se levantado antes que saísse o sol. Além disso, a conversa com Paxton e a apressada olhada aos livros de contas da propriedade lhe resultaram interessantes. Estava desejando aprender mais. Pelo pouco que tinha visto, era evidente que ao longo desses dois anos a propriedade passou de ser um negócio dilapidado, abandonado e carregado de dívidas a justamente o contrário. Saltava à vista que Paxton era um administrador responsável. Também tinha desfrutado muito conversando com os agricultores e com os arrendatários da propriedade, separando os problemas reais das queixa sem importância, tomando nota das distintas personalidades e identificando os líderes e os seguidores. Tinha desfrutado brincando com eles e observando como se derretia a hostilidade inicial. Paxton, é obvio, foi um osso muito mais duro de roer. Era leal à senhorita Thornhill. Sempre tinha evitado as visitas de cortesia, mas as desse dia lhe pareceram muito amenas. Sobre tudo porque cada uma das pessoas que se aproximaram de Pinewood Manor o fez com o rápido propósito de aborrecê-lo mortalmente. Não obstante, sempre o fascinaram os avanços na construção de estradas. E uma conversa sobre ganhos podia desviar-se para um bate-papo sobre cavalos, que era um de seus temas preferidos. As damas que conformavam o grupo de costura se mostraram muito interessadas em escutar que, quando era pequeno, convenceu uma babá que o ensinasse a tecer com as agulhas, de maneira que após uma semana já tinha um cachecol que ia se estreitando porque não parava de minguar pontos, mas que resultou tão longo como a habitação infantil uma vez acabada e estendida no chão. Quanto ao aluno da escola do povoado que tinha solicitado aulas de latim… Enfim, Ferdinand havia se licenciado em Oxford após estudar latim e grego. De modo que podia oferecer seus serviços como professor.


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Todas as pessoas que conheceu nesse dia se propôs odiá-lo desde o primeiro momento. Muitas certamente ainda o faziam e era muito possível que nunca superassem os preconceitos. Sua hostilidade era um tributo a Viola Thornhill, que parecia ter ganhado o respeito e inclusive o carinho das pessoas durante os dois anos que vivia em Pinewood Manor. Entretanto, Ferdinand não pensava ceder ao desespero. Nunca teve dificuldades para relacionar-se com todo tipo de pessoas, e sempre foi um homem sociável. Preferia pensar que ia desfrutar muito da vida campestre. O vigário havia comentado que o coro ensaiava essa noite. A esposa dele inclusive o convidou a participar, embora ficou muito claro por sua forma de dizer que não esperava que aceitasse. Mas por que não?, Pensou enquanto afastava o pudim que tinham levado de sobremesa. Ainda não queria retornar a Pinewood Manor. Porque isso implicaria ou uma conversa com a senhorita Thornhill no salão ou a necessidade de escapulir a uma estadia onde ela não estivesse. E ele jamais tinha fugido de ninguém. Tampouco queria passar outra noite bebendo no botequim. Iria ao ensaio do coro. O ensaio não acontecia na igreja, descobriu logo que abriu a porta e entrou. Entretanto, alguém estava esmurrando um piano e decidiu seguir o som, para o qual teve que descer uma inclinada escada de pedra que conduzia ao salão paroquial, uma estadia lôbrega com umas quantas janelas situadas na parte superior de três das quatro paredes. Descobriu quinze ou vinte pessoas conversando em distintos grupos. Nenhuma delas parecia prestar atenção a pianista, uma mulher muito magra de idade indeterminável e com o cabelo loiro muito claro e encrespado, que lia as partituras através de pequenos óculos de aros metálicos. Era uma das irmãs solteiras que o tinham visitado durante a tarde junto com o vigário e a esposa deste, recordou Ferdinand. Qual era o sobrenome dela? Merryfield? Merryheart? Merrywether! Isso. Enquanto a irmã dela falava longa e demoradamente sobre o cultivo de flores de concurso, a pianista se desculpou cada vez que podia se interpor na conversa, aduzindo que era impossível que lorde Ferdinand estivesse interessado nesses assuntos tão rústicos e que estaria desejando retornar à cidade. —São quatro vozes — estava dizendo, falando consigo mesma com grande nervosismo quando Ferdinand a olhou —. Ai, Meu deus!, Seremos capazes de conseguir quatro vozes? Talvez alguém teria respondido se nesse preciso instante não notassem sua chegada, momento no qual todos guardaram silêncio. —Como verá, senhor, aceitei seu convite — comentou Ferdinand, dirigindo-se ao vigário, enquanto caminhava para ele com a mão estendida.


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O reverendo Prewitt parecia um pouco agoniado, mas também contente. —O agradeço muito, milord — replicou —. Sabe cantar? Entretanto, Ferdinand não teve a chance de responder. Os membros do coro se agitaram, inquietos, e todas os olhares se cravaram em um ponto situado atrás dele. Ao virar-se, viu que se tratava de Viola Thornhill que descia a escada com o assombro pintado na cara. Também fazia parte do coro? Saudou-a com uma reverência sem afastar a vista dela e algo lhe disse que já a conhecia de muito antes de ir a Pinewood Manor. Estava seguro de tê-la visto em algum lugar. Nesse momento ostentava um porte régio com o queixo alto e uma expressão controlada e séria. Uma imagem muito distinta da risonha moça que dançou ao redor do pau de maio. —Lorde Ferdinand — o saudou ao descer o último degrau —, não esperava encontrá-lo aqui. —Espero que tenha tido um bom dia, senhorita — replicou ele —. A esposa do vigário foi muito amável de me convidar a participar do ensaio do coro. — Viu-a olhar para o clérigo com uma expressão que raiava a recriminação. Enquanto isso, ele se virou para a pianista —. Senhorita Merrywether, estava dizendo quando entrei que a peça que vão interpretar esta noite consta de quatro vozes. Supõe isso um problema? —Bom, não é exatamente um problema, milord — lhe assegurou a aludida quase sem fôlego e arrependida por tê-lo incomodado com um assunto tão corriqueiro —. Mas verá, é que o senhor Worthington é nosso único tenor. E não digo que não tenha boa voz, porque a tem. Uma voz magnífica. Mas é que… enfim, não gosta de cantar sozinho e não o culpo, de verdade. Tampouco eu gostaria de fazê-lo. Claro que eu não sou tenor, porque sou uma mulher, mas… —Distrai-se facilmente com as vozes baixas e acaba mudando de tom — concluiu sem rodeios uma mulher bojuda que Ferdinand não tinha visto antes. Todos estalaram em gargalhadas. —Nunca nos consideramos cantores profissionais — acrescentou o vigário —, mas suprimos as carências musicais com nosso entusiasmo. —E com muito volume — apostilou alguém mais, provocando outro novo coro de gargalhadas. —O menos que podemos fazer é cantar ao Senhor com alegria e força — repôs o vigário com bom humor. —Não gostará de nos escutar — assegurou Viola Thornhill ao Ferdinand. Ele a olhou com um sorriso e se ofereceu voluntário. —Eu sou tenor — disse com sinceridade. Tinha cantado no coro da universidade e a experiência lhe resultou muito grata —. Ninguém me acusou de ter um talento prodigioso, mas


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nunca vi que me olhassem especialmente espantados enquanto me escutavam cantar. O que acham do senhor Worthington e eu unirmos nossas vozes e ver se somos capazes de nos manter firmes ante o assalto das vozes baixas? O senhor Worthington, um homem ruivo, quase calvo e muito sardento, era um dos arrendatários que tinha acampado em seu vestíbulo essa manhã. —Milord, não é necessário que se incomode por nós — respondeu com firmeza Viola Thornhill —. Estou segura de que deseja… Ferdinand não esperou a escutar o que desejava. —Não é nenhum incomodo — declarou em voz bem alta —. Não há nada que gosto mais que uma velada musical, sobre tudo se participar dela em vez de me limitar a escutar. Entretanto, devo perguntar a fim de não pecar de presunçoso: estão realizando audições? A pergunta fez que a maioria do coro estalasse em gargalhadas. Até a senhorita Merrywether soltou uma risadinha. —Milord, jamais rechaçamos alguém que queria nos acompanhar — respondeu o vigário —. Comecemos, então. Certamente que não era um grupo particularmente harmônico. Alguém com voz de contralto carecia por completo de ouvido, embora cantasse a pleno pulmão; uma das sopranos cantava com um potente vibrado; as vozes baixas pareciam albergar a crença de que sua função principal era silenciar o resto do coro; e, efetivamente, o senhor Worthington adoecia da tendência a unir forças com ditas vozes baixas quando não interpretava uma melodia de sua invenção. A senhorita Merrywether tocava com muita força, e o diretor do coro diminuía ou aumentava o ritmo de forma imprevisível e desconcertante. Apesar de tudo, era música. Ferdinand se entreteve imaginando as reações de seus amigos se pudessem vê-lo nesse momento. Certamente que lhe colocariam uma camisa de força e o levariam arrastado a um manicômio como se estivesse totalmente louco. Tresham o atravessaria com um de seus famosos olhares. Ou não. Seu irmão havia voltado a tocar o piano nos últimos anos, desde que casou para ser mais exato, em vez de ocultar o talento como fez durante toda a vida. Seu pai os educou com a crença de que para um Dudley não havia maior pecado que algo remotamente feminino. A música, a arte ou o mais leve interesse intelectual eram aniquilados com a ajuda da infame vara de bétula quando resultava necessário. Ferdinand desfrutou muito, tanto da música como da companhia. E lhe resultou óbvio que tinha conseguido moderar a hostilidade de alguns dos vizinhos com os quais estaria obrigado a


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relacionar-se ao longo dos anos vindouros. Parecia que, vários dos membros masculinos do coro estavam acostumados a tomar uma cerveja no Cabeça do Javali as noites de ensaio. O senhor Worthington o convidou a unir-se ao grupo. —Cantar resseca a garganta — acrescentou a modo de explicação e de desculpa. —Certamente, e eu adoraria aceitar — respondeu Ferdinand —. Mas você veio andando, senhorita Thornhill? Importar-se-ia se a levo antes a Pinewood Manor em meu tílburi? —Obrigada, milord, mas trouxe a calesa — respondeu ela com secura e Ferdinand compreendeu que estava furiosa. Devia sentir-se traída por seus amigos, que não estavam demonstrando a ele o desprezo que merecia. De modo que partiu a compartilhar umas cervejas com os outros seis membros do coro e descobriu que a vida rural era muito distinta à vida da cidade. Mais igualitária. Mais cordial. Mais de seu agrado. Uma conclusão estranha, tendo em conta que levava anos, desde que voltou de Oxford, desfrutando de qualquer diversão que lhe punha diante e mantendo uma existência despreocupada e alegre em Londres. Quem dera não estivesse no meio Viola Thornhill. Embora soasse estranho, ele também se sentia indignado pelo fato de que os amigos dela só tivessem precisado de um dia para fazer um vão em suas vidas. Porque, afinal de contas, a senhorita Thornhill e ele não poderiam conviver. Alguém, um dos dois, teria que partir e esse alguém, é obvio, seria ela. Daí que os amigos dela devessem estar furiosos com ele. Deveriam estar convertendo sua vida em um inferno. —Com certeza não se divertiu durante o ensaio do coro — disse Viola —, não é verdade, Hannah? —Não sei, senhorita Vi — respondeu a aludida enquanto deslizava a escova pelo cabelo de sua senhora do cocuruto até as pontas, que chegavam por debaixo da cintura —. A verdade é que não sei. —Pois eu sim sei — replicou Viola com firmeza —. Os cavalheiros como ele não desfrutam visitando o tipo de gente que faz parte do coro, Hannah. Nem muito menos desfrutam cantando hinos religiosos com um coro como o nosso. Seguro que estava morto de aborrecimento. De fato, acredito que no fundo foi estupendo que decidisse assistir ao ensaio. Depois da experiência é possível que compreenda que este cantinho de Somersetshire não tem nada que oferecer a um libertino londrino sofisticado e dissoluto. O que você acha?


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—O que acho, senhorita Vi — respondeu Hannah —, é que esse homem é tão simpático como bonito, e que sabe tirar partido para ambas as qualidades. E acredito que é um homem perigoso, porque jamais claudicará. Se você não estivesse aqui quando ele chegou, o mais provável é que voltaria por onde veio após uma semana. Mas aqui está você, desafiando-o. Entende-me? Isso é o que eu acho. A análise da Hannah era tão parecida a sua que Viola não acrescentou nada. Limitou-se a suspirar enquanto sua donzela afastava o cabelo do rosto com a escova para fazer a trança que costumava dormir. —Senhorita Vi — seguiu Hannah, que estava a ponto de acabar com a trança —, o problema é que me parece que lorde Ferdinand se fixou em você no outro dia no povoado. De fato, estou segura de que o fez porque apostou para ficar com suas margaridas e depois a tirou dançar ao redor do pau de maio. E à manhã seguinte se apresentou aqui como se fosse obra do destino, sem saber que esta era sua casa. E agora, como você está fazendo tudo o possível por afugentá-lo, decidiu aceitar o desafio e provar que é um digno rival. Acredito que está divertindo-se muito com esta provocação. Porque está duelando contra você, senhorita Vi. Talvez devesse mudar suas táticas e em vez de tentar afugentá-lo… —Hannah! — Viola a interrompeu de modo que não acabou a frase —. O que está sugerindo? Que enrole esse homem para que se apaixone por mim? Em que sentido me ajudaria isso a me liberar dele, em caso de que pudesse fazê-lo ou de que desejasse fazê-lo? —Não estava pensando em que se livrasse você dele precisamente — apontou Hannah enquanto amarrava uma fita no extremo da trança de Viola. —Não me diga que… —Senhorita Vi — repôs Hannah, que se virou para levar o vestido e o resto dos objetos que Viola tirou —, o assunto é que me nego a aceitar que sua vida tenha acabado. Ainda é jovem. Ainda é preciosa, carinhosa, amável e… E sua vida não acabou, ponto. —Sim acabou, Hannah. — A voz de Viola tremia —. Embora aqui ao menos consegui levar uma existência tranquila. Esse homem está decidido a me expulsar. E se conseguir, não ficará nada. Nada. Não terei vida, nem lar, nem sonhos. Não terei renda. — Engoliu de forma compulsiva. O pânico tinha provocado um nó na boca do estômago. —Se se apaixonar por você, não a expulsará — disse Hannah —. Já está meio apaixonado. Se você se propuser, se apaixonará totalmente. —Os cavalheiros não alojam as amantes em suas propriedades campestres — replicou Viola com brutalidade.


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—Não estou dizendo que seja a amante dele, senhorita Vi. Viola se virou sem levantar do tamborete e olhou a criada com incredulidade. —Acha que se casaria comigo? Hannah, falamos de lorde Ferdinand Dudley. Um cavalheiro. O filho de um duque. Eu sou uma bastarda! E isso é o mais suave que pode dizer-se de mim. —Não se altere — aconselhou Hannah com um suspiro —. Coisas mais estranhas ocorreram. Se casasse com você, seria um homem afortunado. —Ai, Hannah! — Viola soltou uma trêmula gargalhada —. Sempre sonhando. Mas, enfim, se algum dia decido procurar marido, fixaria em um homem muito distinto de lorde Ferdinand. Porque ele é o exemplo de tudo o que desprezo em um cavalheiro. É um jogador. Um jogador contumaz que gosta de apostar muito bem. Conseguirei sobreviver de algum modo sem ter que me sacrificar dessa forma. E ainda não me rendi. Se ele quer livrar-se de mim, terá que me tirar daqui arrastada. Melhor ainda que para então já não resulte tão simpático… — acrescentou com mordacidade. —Certamente — conveio Hannah, empregando a voz serena que usava em outra época, quando Viola era uma menina e ocorriam coisas que ela interpretava como o fim do mundo. Aquela foi a melhor época de sua vida. O mundo era um lugar estável e seguro. O amor era real e parecia eterno —. E agora à cama, senhorita Vi. Não há nada que uma boa noite de sono não solucione. Viola riu e abraçou a criada. —Pelo menos tenho a você, a melhor amiga que se poderia desejar — disse —. Muito bem, irei à cama e dormirei como uma boa menina, e amanhã todos meus problemas se solucionaram. Ou melhor, lorde Ferdinand sai tão bêbado do Cabeça do Javali que se esquece de Pinewood Manor e parte direto a Londres. Ou melhor caia do cavalo e quebre o pescoço. —Senhorita Vi! — exclamou Hannah com um tom de reprovação na voz. —Mas não foi a cavalo ao povoado — recordou Viola —. Usou o tílburi. Melhor, porque assim a queda será maior. Após um momento, estava deitada com os olhos bem abertos e cravados no dossel em penumbra, enquanto se perguntava como era possível que a vida pudesse mudar de forma tão drástica em apenas dois dias. Já era mais de meia-noite quando Ferdinand voltou para Pinewood Manor. A casa estava às escuras. Tanto que deveria indigná-lo!, Pensou com um sorriso. A senhorita Thornhill provavelmente esperava que chegasse em casa cambaleando e desafinando enquanto cantava a bem alto alguma toada escandalosa cujos versos mal se balbuciava. Entretanto, a certeza de que o


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assunto não era um jogo não demorou para lhe apagar o sorriso dos lábios. Desejou que a realidade fosse muito mais inofensiva. Porque a senhorita Thornhill era uma rival interessante. O senhor Jarvey seguia levantado. Enquanto Ferdinand entrava pela porta principal, a qual ainda não tinha sido trancada, o mordomo apareceu no vestíbulo levando um candelabro cujas sombras conferiam a seu rosto um aspecto um tanto sinistro. —Ah, Jarvey! — saudou-o enquanto lhe entregava o chapéu e a vara —. Estava me esperando, não é? E suponho que Bentley também. —Sim, milord — respondeu o mordomo —. Direi a ele que subida imediatamente a sua habitação. —Diga a ele que vá à cama — o corrigiu Ferdinand, que pôs-se a andar para a biblioteca —. E você também. Já não necessitarei de nenhum dos dois por esta noite. Uma vez que entrou na biblioteca e fechou a porta, percebeu que ignorava por que razão estava nela. Talvez porque só fosse meia-noite e parecia ridículo deitar-se tão cedo. Retirou a jaqueta e a jogou sobre o respaldo de uma poltrona. O colete não demorou para segui-la. Depois afrouxou a gravata e a tirou. Por fim se sentia cômodo o bastante para sentar-se em uma poltrona com um livro… se tivesse vontades de ler, claro. Porque era muito tarde para fazê-lo. Aproximou-se da licoreira situada em um canto da estadia e abriu a porta de vidro para servir uma taça de brandi. Depois do primeiro gole percebeu que não gostava. Bebeu três jarras de cerveja no Cabeça do Javali. Nunca tinha sido um bebedor solitário. De fato, tampouco era um grande bebedor. Evitava as ressacas matinais na medida do possível, já que tinha sofrido várias na juventude. Devia haver uma solução para os problemas da senhorita Thornhill, pensou enquanto se deixava cair em uma das poltronas colocadas frente à lareira. Desejava poder ajudá-la encontrar uma saída a fim de que não se agarrasse com unhas e dentes à esperança de que o testamento a salvaria. Ou de que alguém tivesse manipulado o documento. Por que se preocupava com os problemas dela?, Perguntou-se Ferdinand. Deveria não se importar. Porque ditos problemas não tinham nada a ver com ele. Compreendeu que estava provocando uma dor de cabeça, o que era muito injusto tendo em conta que só tinha bebido três jarras de cerveja no transcurso de duas horas e meia. A senhorita Thornhill tinha amigos em Trellick. As pessoas a apreciavam. Se não estava equivocado, e saberia com certeza quando analisasse a fundo os livros de contas da propriedade e falasse de novo com Paxton, Pinewood Manor tinha prosperado e funcionava perfeitamente graças a ela. Também participava das atividades da comunidade. Deveria ficar em Trellick. Poderia ficar se casasse com o idiota e aborrecido do Claypole.


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Poderia ficar se… Ferdinand contemplou o quadro em penumbra que descansava sobre o suporte da lareira. Não! Definitivamente não. Nem pensar! De onde demônios teria saído essa ideia? Entretanto, o mesmo demônio que meteu a ideia na cabeça seguiu falando. «É jovem, bonita e desejável», dizia-lhe. Igual às centenas de jovenzinhas que tinham posto os olhos nele durante os últimos seis ou sete anos. E jamais se expôs a possibilidade de casar com alguma delas. «É jovem e inocente.» A mulher que contraíra matrimônio com ele seria a cunhada de um duque. Teria acesso à alta sociedade. Casaria-se com um homem muito rico. A frescura da juventude e a inocência desapareceriam em um abrir e fechar de olhos, assim que degustasse os prazeres da sociedade e outros homens, mais interessantes que Claypole, demonstrassem sua admiração. Não seria diferente de qualquer outra mulher casada nas mesmas circunstâncias. «Acredita no amor. Confia no amor, embora as aparências indiquem que a traíram.» Tanto o amor como a confiança se esfumariam, junto com a inocência. «A deseja.» Ferdinand fechou os olhos e estendeu os dedos sobre os braços da poltrona. Começou a respirar de forma profunda e rítmica. A senhorita Thornhill era inocente. E estava vivendo em sua casa sem a companhia de uma acompanhante. Isso bastava para ser motivo de falatórios sem necessidade de demonstrar abertamente que a desejava. «Tem um corpo provocante.» Uma provocação seria que renunciasse a sua liberdade só para possuir dito corpo. «Se casar com ela, solucionarão seus problemas e se livrará do peso na consciência.» Maldito fosse Bamber!, Pensou. E maldito fosse o pai do Bamber. E maldito fosse Leavering por ter engravidado a esposa quando o fez, porque se não fosse assim teria jogado a mão de cartas em que se apostou Pinewood Manor. Maldito fosse o Brookes’. Não a pediria matrimônio embora isso fosse o mais cavalheiresco. A mera ideia fez que levasse uma mão ao pescoço para afrouxar a apertadíssima gravata… Momento no qual descobriu que a tinha tirado antes de sentar-se. Sim, estava de um humor de cães. Decidiu ir à cama, de modo que ficou em pé. Sabia que não poderia fechar o olho, embora tivesse ordenado ao Bentley que procurasse outro travesseiro e que, se não encontrasse, colocasse um pedaço de mármore no lugar, porque possivelmente o mármore fosse mais cômodo que o travesseiro que dormiu na noite anterior. Entretanto, não tinha outra coisa que fazer salvo ir à cama.


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Apagou as velas após decidir que lhe bastaria a luz da lua que se filtrava pelas janelas para subir ao dormitório. Pegou a jaqueta e o colete com um dedo, e os jogou ao ombro antes de sair da biblioteca. Esperava fervorosamente levantar-se pela manhã com ideias mais sensatas.

Capítulo Oito O corredor do andar de cima estava mais escuro que o vestíbulo e a escada. Só havia uma janela no extremo mais afastado. Entretanto, absorto como estava Ferdinand com as coisas, não lhe ocorreu arrepender-se de não ter pegado uma vela até que topou com uma mesa e cravou a ponta na coxa. —Ai! — exclamou em voz alta, depois do que soltou alguns impropérios altos e deixou cair a jaqueta e o colete para esfregar a perna com ambas as mãos. Não obstante, e face à escuridão quase absoluta que o rodeava, viu outro desastre iminente: um vaso que balançava sobre a mesa estava a ponto de encontrar-se com um destino fatal. Grunhiu, lançou-se por ele e soltou um grito de júbilo por tê-lo apanhado a tempo. Esfregou de novo a perna dolorida, mas mal teve tempo para aliviar a dor. Sem saber muito bem como, um quadro enorme com uma moldura pesada caiu da parede ao chão com um ensurdecedor estrépito, muito maior porque arrastou em sua queda o vaso, que se fez pedacinhos, e à mesa, que derrubou.


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Ferdinand soltou um impropério muito vulgar e malsoante ao ver o desastre que o rodeava, embora não o visse por completo devido à escuridão. Afastou-se do destroço e esfregou a perna. De repente, fez-se a luz, que iluminou a cena e o cegou em um primeiro momento. —Está bêbado! — exclamou com frieza a pessoa que segurava a vela. Ferdinand levou uma mão aos olhos para proteger-se do brilho. Típico de uma mulher ter chegado a essa conclusão. —Como uma Cuba — conveio com secura —. Vejo tudo triplicado. E a você o que importa? Cravou o olhar no desastre que o rodeava e que já podia ver com total nitidez enquanto esfregava a coxa. O quadro parecia pesar uma tonelada, mas entrou no desastre e arrumou para devolvê-lo à parede. Depois, endireitou a mesa e a deixou no lugar. Não parecia ter sofrido dano algum. Mas no caso do vaso se limitou a fazer uma careta, já que ficou em pedacinhos. A vela da senhorita Thornhill o estava deslumbrando. Ela havia se aproximado mais da cena do desastre. Quando a olhou, zangado ainda embora também um tanto morto de calor, viu-a com claridade pela primeira vez. Pelo amor de Deus! Não parou para vestir-se nem colocar uma bata. Claro que seu aspecto não tinha nada de indecoroso. A camisola de algodão branco a cobria do pescoço aos tornozelos e as mangas cobriam até os pulsos. Não usava gorro de dormir, mas tinha o cabelo recolhido em uma grossa tranca que caía pelas costas. Não podia dizer que estivesse indecente nem muito menos, embora sim ia descalça. De fato, parecia a personificação da castidade. Mas apesar de tudo, só era uma camisola, de modo que era impossível não imaginar o que havia debaixo ou, mais concretamente, o que não havia. Nada absolutamente, supunha. Sentiu que subia a temperatura de repente e começou a esfregar com mais força a coxa dolorida. —O que me importa? — inquiriu ela, repetindo a pergunta com voz indignada e irritada —. É muito tarde. Estava tentando dormir. —Grande tolice pôr uma mesa aqui, no meio do corredor — replicou ele, evitando olhá-la a todo momento, de modo que percebeu a que jaqueta e o colete estavam no chão. Só usava a camisa, a calça e as meias. Mãe do amor formoso! Era o que lhe faltava. Os dois sós em plena noite em um corredor em penumbra diante das portas de seus respectivos dormitórios… e com um semfim de pensamentos lhe rondando a cabeça quando não deveriam fazê-lo. Porque eram pensamentos luxuriosos. Ela ia armada com a indignação, ao menos de momento. Certamente não sabia nem o que era a luxúria.


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—A mesa estava junto à parede, lorde Ferdinand — assinalou com gélida formalidade —. O quadro estava pendurado na parede. A única tolice dadas as circunstâncias, cometeu você por perambular pelo corredor bêbado e sem levar uma vela. —A mãe que…! — exclamou —. Suponho que esse vaso valia seu peso em ouro. —Como pouco — replicou ela —. Também era horroroso a não poder mais. Ao escutar o comentário a olhou com um sorriso, mas logo desejou ter mantido a vista afastada. Seu rosto, um oval perfeito de maçãs do rosto afiados, nariz reto, olhos grandes e lábios suaves que suplicavam ser beijados, era o típico rosto que parecia mais formoso com o cabelo afastado, sem cachos e sem distrações. O habitual coque lhe conferia um porte régio. A trança dessa noite lhe outorgava um ar juvenil, uma aura de inocência e pureza. Subiu um pouco mais a temperatura, por isso se obrigou a concentrar-se nos tristes restos do vaso. —Onde há uma vassoura? — perguntou. Talvez recuperasse a compostura enquanto varria. Entretanto, ela fez o pior que podia fazer. Olhou-o aos olhos e pôs-se a rir de boa vontade. —Quase estou tentada de dizer — repôs —. Seria impagável vê-lo usar uma vassoura. Mas será melhor que deixe. É mais de meia-noite. Um fato que estava se esforçando, em vão, para esquecer. —E o que faço então? — perguntou com o cenho franzido. —Acredito que deveria deitar-se, lorde Ferdinand — respondeu Viola. Se fizesse explodir os miolos, parte do calor teria escapado de seu corpo sem provocar danos e teria se salvado. Mas nada voou, é obvio. E em vez de seguir seu conselho e escapar em direção ao santuário de seu dormitório com a vista cravada na maçaneta da porta a cada passo que dava, Ferdinand cometeu o engano de olhá-la de novo aos olhos para comprovar que sua mente por fim se precaveu da tensão que crepitava entre eles desde que saiu do quarto. Não se deu conta de que lhe tirava o castiçal da mão, mas certamente foi sua mão que o deixou sobre a mesa. Depois se virou para segurar o queixo dela com essa mesma mão e o suave roce daquela pele lhe provocou um calafrio que percorreu todo seu corpo. —Deveria fazê-lo? — perguntou —. Mas quem vai me levar? Nesse último momento poderia ter respondido sua própria pergunta e partir a toda pressa para deitar-se. Ou ela poderia tê-lo ajudado a recuperar a prudência soltando algum comentário sarcástico sobre sua suposta embriaguez antes de fazer uma saída soberba. Ou poderia ter repetido o sermão que jogou nessa mesma manhã sobre a santidade de sua pessoa. Ou poderia ter dado a volta sem mais e sair fugindo com os pés descalços, lhe deixando a vela como único troféu. Nenhum deles tomou o caminho mais singelo, nem o mais lógico.


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Em troca, a senhorita Thornhill fez algo totalmente inesperado: mordeu o suave lábio inferior. E a bruxuleante luz da vela Ferdinand teria jurado que o brilho de seus olhos se devia às lágrimas. As palavras que pronunciou a seguir confirmaram essa impressão. —Quem dera tivesse ido depois desse dia e dessa noite. Quem dera nunca tivesse descoberto seu nome. —Diz a sério? — esqueceu-se do perigo. Esqueceu-se do decoro. Inclusive se esqueceu de que estavam enredados em um conflito impossível de resolver. Tinha diante a sua preciosa moça da festa, a que usava margaridas no cabelo, mas que nesse momento tinha lágrimas nos olhos… por culpa dele —. Por que? Viu-a titubear antes de dar um encolher de ombros. —Teria sido uma lembrança agradável — respondeu. Se estivesse pensado com normalidade, teria deixado passar essa resposta. Mas não estava pensando absolutamente. —Esta lembrança? Inclinou a cabeça, capturou os lábios femininos e se deixou levar pelas sensações. Inocência absoluta, doçura e beleza. Os excitantes aromas do sabão, limpeza e a mulher. E as lembranças da luz do fogo, dos violinos e dos brilhantes laços coloridos que se entrelaçavam. E do risonho e precioso rosto da mulher a quem tinha levado atrás de um carvalho para beijá-la. Essa mulher. Foi um beijo breve que interrompeu para levantar a cabeça e olhá-la aos olhos. A luz da vela bailava sobre o rosto como fez a luz do fogo no prado do povoado. Ela devolveu o olhar. Já não havia lágrimas. Nesse instante elevou uma mão e o acariciou na bochecha com a ponta dos dedos, incitando o desejo e lhe provocando uma miríade de calafrios que pareceram concentrar-se em sua virilha. Entretanto, a ânsia que o afligia não era puramente carnal. Porque ela não era uma beleza qualquer com a qual se encontrou a sós em uma situação provocadora. Era Viola Thornhill, a mulher simpática, risonha e maravilhosa que dançava levada pela alegria, como se tivesse reunido toda a música e todo o ritmo do universo em seu corpo; era a parente do Bamber a quem tinham prometido Pinewood Manor para depois ser traída; era a menina que tinha ido ao encontro do pai e que lhe contado os segredos de sua infância. —Sim — sussurrou ela quando por fim respondeu à pergunta que a essas alturas quase não recordava ter formulado —. Queria guardar essa lembrança. —Quando tem em frente o homem de verdade que pode lhe proporcionar outros? De momento, esqueceu-se de que ela recordaria sua relação posterior aos festejos de maio com uma amargura que duraria toda a vida.


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Colocou as mãos na cintura dela e a aproximou um pouco mais. Ela não o afastou. Ao contrário, puxou-o pelos cotovelos e se arqueou para ele, colando as coxas, o ventre e os seios contra ele. O corpo dela era todo curvas suaves e incitantes. Abraçou-a com força pela cintura e ela jogou os braços ao seu pescoço. As dúvidas que pudesse albergar a respeito de se estava ou não nua debaixo da virginal camisola branca ficaram claras. E também ficou muito claro que ela participava voluntariamente no que estava passando. Quando a beijou nessa ocasião separou os lábios e lambeu a pele úmida e cálida que encontrou do outro lado. Um desejo doce e descarnado se apoderou dele. Doce porque sabia com uma clareza meridiana, fruto de sua integridade moral, que não levaria o beijo longe o bastante para manchar a inocência dela. Não lhe arrebataria a virgindade. Descarnado porque a desejava sem medida e com desespero. Ansiava tê-la sob seu corpo em uma cama, sim. Até tal ponto que tinha uma dolorosa ereção. Ansiava afundar-se nela, levá-la ao êxtase e alcançá-lo. Entretanto, essa ânsia ia muito mais à frente do simples instinto animal; desejava… a desejava, sim. —Que doce — murmurou quando afastou os lábios dos dela, enquanto deixava um caminho de beijos sobre os olhos fechados, têmporas e bochechas antes de apanhar o lóbulo de uma orelha entre os dentes e esfregá-lo com a língua. Depois enterrou o rosto no calor de seu pescoço. Abraçou-a mais forte ainda, levantando-a até que ficou nas pontas dos pés. —Sim — murmurou ela a sua vez, com voz rouca, enquanto esfregava a bochecha contra seu cabelo e afundava nele os dedos de uma mão —. Sim, muito doce. Abraçaram-se um bom tempo. Ferdinand fez gesto de soltá-la justo quando ela colocava as mãos nos ombros para afastá-lo, não com violência, mas sim com firmeza. —Deite-se, lorde Ferdinand — disse antes que ele pudesse falar —. Sozinho. Entretanto, não estava zangada. Em sua voz detectou um desejo que se parecia muito ao que ele sentia. Sabia que uma parte dela, a mais frágil, queria que protestasse. —Não estava pensando nisso — assegurou em voz baixa —. Não estava pensando em seduzi-la. Sua virtude está a salvo comigo. Mas seria melhor para os dois que não voltássemos a nos encontrar nestas circunstâncias. Afinal de contas, só sou um homem. Ela pegou o castiçal. —Ordenarei que recolham o cacos pela manhã — disse —. Deixe-os onde estão. Não se virou a olhá-lo enquanto retornava ao dormitório com a trança balançando qual pêndulo as costas. Era uma mulher muito tentadora. Fazia muito que ele tinha perdido a fé na inocência, na pureza e na fidelidade, inclusive no amor. Perdeu antes de chegar à puberdade. Nunca esteve apaixonado nem tinha desfrutado mais


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que de amizades superficiais com as mulheres. A função da mulher era proporcionar sexo e filhos. Ele não queria filhos. Mas talvez depois de tudo, pensou quando ela fechou a porta do dormitório e o corredor ficou na escuridão de novo, existissem qualidades como a bondade, a inocência e a integridade. Talvez inclusive existisse o amor. E a fidelidade. E talvez só estivesse cansado, murmurou enquanto localizava sua roupa à mortiça luz da lua para recolhê-la antes de pôr-se a andar para o quarto. Tinha sido um dia muito comprido e incrivelmente ocupado. Havia um modo de que os dois ficassem em Pinewood Manor, pensou ao entrar no quarto e fechar a porta. Mas não refletiria sobre essa possibilidade esta noite. Nem no dia seguinte tampouco, se fosse sensato. Estava encantado com seu celibato. «Sim, muito doce», acabava de murmurar ela com a voz rouca pela paixão e a bochecha apoiada contra a cabeça dele. Sim, certamente doce. Encaminhou-se com passo firme ao quarto de vestir. Viola enfrentou à ausência de lorde Ferdinand Dudley em Pinewood Manor à manhã seguinte com uma mescla de alívio e desilusão. Durante a longa noite que praticamente passou acordada, foi incapaz de decidir como enfrentá-lo durante o café da manhã. Ausentou-se para ir a cavalo com o senhor Paxton à granja que abastecia à propriedade. Parecia que estava interessado no funcionamento das coisas, ao menos de momento. Viola considerou que sua ausência, devido a semelhante motivo, era uma intrusão em toda regra. Ela se propôs a conseguir desde o começo que Pinewood Manor fosse uma empresa eficiente e próspera, e se envolveu pessoalmente na tarefa. Tinha ido bastante bem, graças à ajuda e aos conselhos do senhor Paxton. Havia desfrutado muito dessa tarefa. Nesse dia não havia que pôr em marcha nenhum plano. Só o da tarde, que já lhe parecia muito patético e exposto ao fracasso. E para aumentar a depressão que a embargava, o quente e maravilhoso clima que os tinha acompanhado até então havia desaparecido de Somersetshire. Uma leve garoa umedecia as janelas e as nuvens cinza que ocultavam o céu escureciam a sala de jantar. Seu problema radicava em que não sabia do que era mais culpada. Rendeu-se ante o inimigo, havia permitido que a abraçasse e a beijasse. E em parte… enfim, muito mais que em parte,


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aconteceu porque estava muito bonito só de camisa e com a calça de seda justa amoldando-se as longas e fortes pernas, e porque se sentiu incrivelmente só e desamparada. Como desculpar o fato de ter cedido ao desejo que lhe provocava um homem assim? Entretanto, preferia acusar-se de ter sucumbido à luxúria desatada antes que ao outro. Porque embora se deixou levar até certo ponto pela emoção de estar entre os braços dele, na realidade só tinha sido assim, até certo ponto. Uma parte de si mesma havia observado o momento de forma desapaixonada enquanto se arqueava contra ele, enquanto colava os seios contra o duro torso, as coxas contra as pernas e o ventre contra a dura ereção. Era consciente do efeito que estava provocando, do poder que tinha sobre ele. Poderia tê-lo seduzido e o levado à cama quase sem esforçar-se. Entretanto, embora a parte apaixonada de sua pessoa desejasse precisamente isso, jazer sob o corpo dele e sentir o prazer que lhe brindaria esse corpo limpo e jovem, a parte calculista havia sopesado a possibilidade de levá-lo por um atalho distinto: o do amor e inclusive o do casamento. Envergonhava-se muitíssimo dessa parte de sua pessoa. —Sim — disse quando o mordomo se aproximou dela —, pode recolher, senhor Jarvey. Não tenho fome. Dirigiu-se à biblioteca e se sentou a escrivaninha. Escreveria uma carta a sua mãe. Ao menos, não teria que temer que a interrompessem em toda a manhã. Como era possível que se deixasse sequer tentar pela possibilidade de conseguir que se apaixonasse por ela? Ele a aborrecia com todas suas forças. Além disso, era impossível. Talvez não a parte de que se apaixonasse por ela, mas sim a do casamento. Entretanto, o que lhe revolvia o estômago não era essa consideração tão prática, mas as conotações morais de tentar enganar um homem para que se casasse com ela. Pegou a pluma da escrivaninha, comprovou a ponta e a molhou na tinta. «Cuidado com um forasteiro alto, bonito e de cabelo escuro. Pode destruí-la… se você não conquistar antes o coração dele», recordou. Por que vieram a sua cabeça as palavras da vidente nesse preciso momento? Não faria, disse para si mesma com determinação. Não faria absolutamente nada para conquistar a admiração dele… nem a luxúria. Entretanto, e se não tivesse que fazer nada? E se a evidente atração por ela se convertesse por própria vontade em algo muito mais profundo? E se…? Não, nem sequer então, pensou enquanto escrevia «Queridas mamãe, Claire e Maria» com um arabesco no cabeçalho de uma folha em branco. Obrigou-se a concentrar-se na carta.


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Não estava bêbado, pensou após escrever cinco palavras. Tinha saboreado a cerveja em sua boca, certo, mas não estava bêbado. E havia dito que não tinha intenção de seduzi-la, que estava a salvo com ele. E o pior de tudo era que acreditou. Que seguia acreditando. Não, não ia se distrair, disse-se, reatando a escrita. E não ia permitir que esse homem lhe caísse bem. Não obstante, pela tarde comprovou que não havia o menor perigo de que isso acontecesse. Porque lorde Ferdinand era, de fato, o homem mais detestável que havia conhecido na vida. Algo mais de um ano antes lhe ocorreu a ideia de criar um grupo de costura para as mulheres do povoado e dos arredores. Embora os homens se reunissem em determinados eventos e lugares, as mulheres careciam de semelhante oportunidade. Desde que ela o organizou, o grupo se reunia no salão paroquial. Entretanto, dois dias antes teve a ocorrência de convidar o grupo a reunir-se no salão de Pinewood Manor. Em seu momento pensou que não haveria nada mais efetivo para conseguir que um malandro da cidade voltasse para Londres ao descobrir um nutrido grupo de mulheres costurando e conversando no salão que ele considerava de sua propriedade. —Foi uma ideia maravilhosa, senhorita Thornhill — comentou a senhora Codaire ao tempo que estendia os novelos de linha ao redor —. Independente de seu objetivo principal, é um lugar de reunião muito mais adequado que o salão paroquial. Sem ânimo de ofender, senhora Prewitt. —Não se preocupe, Eleanor — replicou a esposa do vigário sem incomodar-se. —Embora deva dizer — acrescentou a senhora Codaire — que lorde Ferdinand me pareceu um cavalheiro muito agradável quando vim ontem com o senhor Codaire e com minhas filhas. —Insistiu em me acompanhar a casa ontem à noite depois do ensaio do coro — atravessou a senhorita Prudence Merrywether quase sem fôlego —. Teria preferido ir sozinha, porque não me ocorria nenhuma só frase inteligente que dizer ao irmão de um duque, e teria estado mais calada que em missa se não tivesse me perguntado qual é a melhor terra para plantar roseiras. Mas foi muito considerado da sua parte dele pensar em minha segurança, embora seja uma tolice acreditar que pode acontecer algo em Trellick. Além disso, quem ia querer me assaltar quando não sou nem jovem, nem bonita nem rica? —Só era uma estratagema, Prudence — assinalou a irmã desta, para satisfação de Viola —. Quer congraçar-se com todos. Pois eu não tenho intenção de cair em suas redes. —Muito certo, senhorita Merrywether — disse a senhora Claypole —. Nenhum cavalheiro que se aprecie de ser insistiria em viver em Pinewood Manor antes que a senhorita Thornhill tivesse oportunidade de mudar-se. É muito escandaloso e o culpo por inteiro desta situação. Carece por completo de classe.


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—Faz duas noites se negou redondamente que eu ficasse aqui na qualidade de acompanhante de nossa querida Viola — acrescentou Bertha —. Foi muito mal educado. —Sorri muito — comentou a senhora Warner —. Me dei conta durante os festejos de Primeiro de Maio. —Embora tenha um sorriso muito bonito — repôs a senhorita Prudence, que ruborizou. A senhorita Faith Merrywether, que era mais organizada que a maioria das demais, já estava costurando. —Se lorde Ferdinand não gostar de nos ver hoje aqui, senhorita Thornhill — começou —, e aparece nos dando ordens para irmos embora, diremos que estamos aqui para servir de acompanhantes a nossa amiga e que pensamos ficar até bem entrada a tarde. —Sempre foi mais valente que eu, Faith — reconheceu a senhorita Prudence com um suspiro —. Mas tem razão. Sempre tem razão. Não tema, senhorita Thornhill. Se lorde Ferdinand se atrever a repreendê-la diante de nós… Enfim, devolveremos a repreensão. Ai, Por Deus, quem dera nos atrevamos a fazê-lo! Depois disso, todas colocaram mãos à obra e durante meia hora a estadia se encheu das típicas conversas femininas: o tempo, a saúde de todo o mundo, conselhos para a casa, as novas tendências de moda que tinham visto nas revistam chegadas do muito mesmo Londres e a seguinte reunião. Até que em dado momento a porta do salão foi aberta e entrou lorde Ferdinand. Ia de ponto em branco, notou Viola ao levantar a vista do genuflexório nupcial que estava confeccionando, com uma jaqueta de corte perfeito em cor verde, calça de cor creme e botas altas de montar, além da clássica camisa branca. Acabava de se pentear, de modo que o cabelo estava brilhante e lustroso. Alguém o tinha avisado, compreendeu. Entretanto, em vez de esconder-se em alguma parte até que as senhoras se fossem, subiu a seu dormitório para trocar de roupa e desceu para apresentar-se ante elas representando a personificação do bom humor. —Caramba! — Saudou todas as pressente com uma elegante reverencia —. Boa tarde, senhoras. Dou-lhes as boas-vindas a Pinewood Manor a todas aquelas a quem não conheci ontem. Viola deixou de lado seu trabalho e ficou em pé. —O grupo de costura vai se reunir aqui esta semana — aduziu —. Deve compreender que quando se tem o privilégio de possuir uma casa deste tamanho, terá que estar preparado para usála em altares do bem comum e para ceder um pouco de intimidade. Lorde Ferdinand a olhou com uma expressão muito risonha. —Certamente — conveio. —Acredito que a biblioteca esteja desocupada — assinalou ela com ênfase.


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—Está — corroborou ele —. Acabo de passar por ali em busca de um livro do qual me falaram muito bem. Levava um livro na mão, reparou Viola nesse momento. —O titulo é Orgulho e preconceito —continuou ele—. Alguém ouviu falar dele? —Eu sim — respondeu a senhora Codaire —. Mas não o li. Viola o leu, mais de uma vez. Em sua opinião era o melhor livro que tinha lido na vida. Lorde Ferdinand entrou no salão e olhou ao redor com um sorriso encantador. —O que acham de eu ler em voz alta enquanto costuram? — ofereceu-se —. Os homens não são nem tão diligentes nem tão habilidosos com as mãos, como compreenderão, mas talvez sirvamos para algo depois de tudo. Viola o fulminou com o olhar, indignada. Como se atrevia a levar seu encanto a esse reduto feminino em vez de escapulir da casa e zangar-se como faria qualquer homem decente? —Seria um grande detalhe, o asseguro, lorde Ferdinand — disse a senhorita Prudence Merrywether —. Nosso pai costumava ler em voz alta, sobre tudo durante as noites escuras que teriam sido particularmente tediosas sem nada que fazer. Lembra-se, querida Faith? Lorde Ferdinand não necessitou mais estímulos. Sentou-se no único assento que ficava livre, uma banqueta situada quase aos pés de Viola, voltou a dar de presente um sorriso enquanto as damas retomavam a costura, abriu o livro e começou a ler: —«É uma verdade mundialmente reconhecida que todo homem solteiro e possuidor de uma grande fortuna necessita uma esposa…» Três ou quatro das mulheres puseram-se a rir, e ele prosseguiu com a leitura, sem dúvida sabendo que mais de três ou quatro estavam pensando em quão bem essa frase inicial se ajustava a ele. Certamente não tivesse uma grande fortuna, mas sim possuía Pinewood Manor. E ela, Viola, tinha conseguido que prosperasse. Olhou-o com expressão amarga vários minutos antes de retomar a costura. Lorde Ferdinand lia bem. Não só tinha uma dicção perfeita e mantinha o ritmo e a expressividade, mas sim também levantava a vista de vez em quando para revelar o que lhe provocava o texto com seus gestos. Sua atitude delatava que estava desfrutando tanto do livro como da audiência… e a audiência estava desfrutando dele. A Viola bastou um olhar pelo salão para comprovar. Odiava-o com todas suas forças! Depois de ler durante mais de meia hora, atrasou-se para falar do livro com as damas e para tomar o chá com elas enquanto examinava e admirava o trabalho. Quando o grupo de costura por fim se despediu até a semana seguinte, tinha todas comendo na mão, salvo às mais teimosas.


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Inclusive acompanhou Viola ao terraço para despedir-se das demais. Havia parado de chover, mas as tristes nuvens seguiam escurecendo o céu. Viola teria começado a chorar, e talvez o teria feito se não fosse porque se negava a dar a satisfação de saber que havia ganhado a partida… outra vez. —Que senhoras mais simpáticas — comentou lorde Ferdinand olhando-a aos olhos quando ficaram a sós no terraço —. Encarregarei-me de que recebam um convite para que se reúnam aqui todas as semanas. —Eu também. — Viola se virou com brutalidade e retornou à casa, deixando-o no terraço.

Capítulo Nove Ferdinand teria desfrutado muito da semana transcorrida em Trellick se não fosse por Viola Thornhill. Não tinha previsto desenvolver um sentimento de posse tão forte por Pinewood Manor.


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Embora no passado considerou a possibilidade de empreender alguma carreira após completar os estudos universitários (no exército, na Igreja ou no corpo diplomático), não gostava de nada especialmente. Entretanto, o resultado de não fazer nada foi previsível: aborrecimento, participação em um sem-fim de temeridades impulsivas e a impressão de carecer de um propósito na vida. Não obstante, só percebeu tudo isso quando chegou a Pinewood Manor e descobriu que a vida de um latifundiário rural lhe caia como uma luva. Mas havia Viola Thornhill. Evitava na medida do possível que se repetisse outro encontro como o da noite que quebrou o vaso. E também evitava, com mais determinação se possível, qualquer pensamento sobre o matrimônio. Essa seria uma solução, mas suporia um custo muito alto. E assim seguiram vivendo juntos em Pinewood Manor. Começou a devolver as visitas dos vizinhos. Continuou travando amizade com eles e tentou de não dar muitas voltas à decepção que lhe provocava quão fácil resultava na maioria dos casos. Deveriam ser mais leais à senhorita Thornhill. Sentia uma profunda antipatia pelos Claypole, tão aborrecidos e pomposos como eram, e estava certo de que lhe teriam caído mal independente das circunstâncias. Entretanto, ganharam seu respeito com a altiva e fria urbanidade da qual faziam ornamento. Claypole se via como o pretendente da senhorita Thornhill; a senhorita Claypole, como a amiga; e a senhora Claypole adorava os dois filhos. Para eles, Ferdinand era, simples e sinceramente, o inimigo. Decidiu familiarizar-se com a rotina da propriedade. Contava com escassos conhecimentos e uma experiência nula, já nunca foi latifundiário. Não obstante, estava decidido a aprender em vez de deixar tudo nas mãos de um administrador. Além disso, talvez ficasse sem administrador em breve. Paxton era um trabalhador leal à senhorita Thornhill. Deixou muito claro uma manhã, quando foi vê-lo com o livro de contas sob o braço no escritório, que ficava sobre os estábulos. —A contabilidade está muito bem feita — comentou Ferdinand depois de trocar as saudações de rigor com o administrador. —É ela que a faz — replicou William Paxton com brutalidade. Ferdinand se surpreendeu, embora deveria ter suposto que essa letra pequena e pulcra era de uma mulher. Entretanto, não foi uma surpresa agradável saber que a senhorita Thornhill participava ativamente no manejo da propriedade. E a coisa piorou. —Você fez muito bem — seguiu Ferdinand —. Notei que a propriedade melhorou muito durante os dois últimos anos.


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—Ela o fez bem — o corrigiu o administrador com tanta veemência que lhe tremeu a voz —. Ela obrou o milagre. Ela me diz o que fazer e quando fazê-lo. Costuma a me pedir conselho e geralmente me escuta quando lhe ofereço algum, mas não precisa. Poderia dirigir tudo sem mim. Tem a cabeça no lugar, tanto como qualquer homem que eu conheça. Se ela se for, eu também irei, o digo para que saiba. Não ficarei para ver como este lugar acaba outra vez arruinado e destroçado. —Mas por que vai arruinar-se? — perguntou ele. —Todos o vimos apostar de forma imprudente no povoado, apesar de que tinhas todas as chances de perder — respondeu Paxton, que nem sequer tentou dissimular a animosidade que destilava sua voz —. E todos sabemos que conseguiu Pinewood Manor graças a outra aposta arriscada. —Mas não perdi — assinalou Ferdinand — em nenhum dos dois casos. Eu não gosto de perder. Resulta-me deprimente. Entretanto, Paxton estava decidido a amotinar-se. —A outra manhã na granja do imóvel prometeu muitas coisas — recordou o administrador —. A propriedade ainda não pode se permitir tal. Ela entende. Faz as coisas de forma gradual. —Os granjeiros precisam de casas novas, não emendar os danos já reparados — replicou Ferdinand —. A propriedade não cobrirá os gastos. Correrão por minha conta. Paxton o olhou com receio. Era evidente que além de carregar a macula de jogador esbanjador, também carregava a de aristocrata pobre, pensou Ferdinand. —Entretanto — acrescentou —, necessitarei o conselho e a ajuda de um bom administrador. Foi Bamber quem o contratou? —O falecido conde — respondeu o homem, assentindo com a cabeça —. Mas me deixou muito claro que trabalharia às ordens da senhorita Thornhill, não às dele. De modo que Viola Thornhill não tinha sido a única a quem deram a entender que o falecido conde pensava deixar a propriedade a ela. Paxton, igualmente aconteceu com os Claypole, também ganhou o respeito do Ferdinand durante dita semana. Envolveu-se em várias atividades da comunidade. O coro da igreja era uma delas. A escola, outra. O telhado da escola tinha goteiras, informaram durante uma visita ao professor. Entretanto, o fundo destinado à melhora do povoado ainda não era suficiente, face à generosa doação realizada pela senhorita Thornhill. Ferdinand contribuiu com a quantidade que faltava e se fizeram as gestões pertinentes para que o trabalho fosse feito. A fim de não interromper as aulas, Ferdinand ofereceu Pinewood Manor como escola temporária. E informou a Viola Thornhill durante o jantar.


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—Mas como vai ajuda? — quis saber ela —. Não há dinheiro suficiente. Tinha pensado que dentro de quatro ou cinco meses… — Entretanto, apertou os lábios e não concluiu a frase. —Poderia permitir-se esse gasto? — sugeriu ele —. Já doei o que faltava. Ela o olhou em silêncio. —Posso permitir isso — assegurou Ferdinand. —É obvio que pode se permitir — A voz tinha um tom irritado —. Se permitirá qualquer coisa para causar uma boa impressão, não é verdade? —Por acaso não posso fazê-lo só porque acredito na educação? — particularizou. A senhorita Thornhill soltou uma gargalhada desdenhosa. —E as aulas ocorrerão aqui enquanto reparam o telhado? —Incomoda-lhe o acerto? — quis saber ele. —Surpreende-me de que me pergunte isso sequer — respondeu ela —. Pinewood Manor é sua… segundo você. —E segundo a lei — acrescentou Ferdinand. Esperava que Bamber aceitasse o pedido de lhes remeter uma cópia do testamento. Inclusive havia enviado outra carta, urgindo-o a que não se atrasasse. A situação em que estavam imersos era ridícula e impossível. E definitivamente perigosa. Estava comprometendo o bom nome dessa mulher ao viver com ela. Mas não se tratava só disso. O problema era que lhe subia a temperatura cada vez que a olhava. De fato, nem sequer tinha que olhá-la. As noites em particular supunham um calvário. Assim que chegasse o testamento e comprovasse por si mesma que Bamber não lhe deixou nada, ela não teria mais alternativa que partir. E ele não via o momento de que isso acontecesse. Para Viola foi uma semana próxima ao desespero. Uma semana em que se viu obrigada a abandonar, um a um, todos os cômodos preconceitos negativos que albergava sobre lorde Ferdinand. O tomou por um esbanjador a quem não preocupava o bem-estar da propriedade nem o do povo. Os atos dele demonstraram que se equivocava em ambos os aspectos. O considerou um esbanjador sem dinheiro, o filho mais novo de um duque que apostava sem conhecimento e que possivelmente tivesse dívidas imensas. Entretanto, estava disposto a construir casas novas para os arrendatários da granja, conforme lhe informou o senhor Paxton. Do próprio bolso. E também ia pagar a metade do custo da reparação do telhado da escola. Não o afugentaria nem com absurdas travessuras nem iria embora por aborrecimento. Viola suspeitava que à maioria dos vizinhos gostava dele. E era óbvio que estava granjeando a amizade


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destes. Em outras circunstâncias, pensou a contra gosto, poderia inclusive ter chegado a combinar com ele. Parecia um bom homem. E tinha senso de humor. Claro que era um vagabundo e um cabeça oca. Aferrou-se a essa ideia depois de ver-se obrigada a desprezar todas as demais. Entretanto, teve que abandoná-la também antes que a semana chegasse ao fim. A manhã combinada, o professor ordenou as crianças em fila e assim caminharam do povoado até Pinewood Manor, onde teriam aulas no salão. Tal como costumava fazer, Viola ajudou os menores a praticar a caligrafia. Não obstante, assim que começou a aula de história que era comum para todos, desceu à biblioteca para ver se havia chegado alguma carta. A biblioteca se encontrava ocupada. Lorde Ferdinand estava sentado a um lado da escrivaninha com um dos alunos de mais idade em frente. —Sinto muito — disse, sobressaltada. —Não foi nada — replicou ele, que ficou em pé com um sorriso. Com esse sorriso deslumbrante que começava trazer consequências tanto a seu estômago como as horas de sono —. Jamie vai chegar atrasado à aula de história. Assim vá, moço. O menino passou junto a Viola correndo, mas a saudou com uma inclinação de cabeça. —Que fazia aqui? — quis saber ela. —Aprendendo um pouco de latim — respondeu lorde Ferdinand —. Poderia pensar que o filho de um granjeiro que algum dia ocupará o lugar do pai não vai servir de muito, mas os desejos do intelecto não entendem justificações. —Latim? — Ela estava a par da inteligência e das ambições escolar do Jamie, embora o pai deste não as via com bons olhos e tampouco podia permitir-se. — Mas quem vai ensiná-lo? Lorde Ferdinand deu um encolher de ombros. —Seu humilde servidor, aqui presente — respondeu —. Algo vergonhoso admiti-lo, não é verdade? Enfim, especializei-me em latim em Oxford. Em latim e em grego. Se seguisse com vida, meu pai teria se envergonhado de mim. Os cavalheiros iam a Oxford ou a Cambridge para estudar, salvo que se decantassem por uma carreira militar. Entretanto, quase todos iam com o propósito de relacionar-se com seus pares e divertir-se… ou isso ela achava. —Suponho que foi bem — comentou com mais brutalidade do que pretendia. —Formado com honra em ambas as línguas. — Lorde Ferdinand esboçou um sorriso tímido. Formado com honra. Em latim e em grego. —Tenho o cérebro tão cheio de pó procedente dos livros que se me golpear a cabeça, verá como me sai pelas orelhas e pelo nariz — brincou. —E por que esteve esbanjando o tempo subindo nos telhados pelas noites e apostando? —Loucuras de juventude? — sugeriu, olhando-a aos olhos com uma expressão risonha.


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Viola não queria que fosse inteligente, estudioso, rico, generoso, afável e responsável. Queria que fosse um homem desenfreado, amalucado e empobrecido. Queria ter motivos para desprezá-lo. Bastante ruim era já que fosse um homem bonito e simpático. —Sinto muito — o ouviu dizer com acanhamento. Viola se virou sem dizer uma palavra e saiu da biblioteca. Voltou ao salão e escutou uma lição sobre Oliver Cromwell, o exército dos parlamentares e o Protetorado. À lição de história devia seguir a outra de música. Normalmente também ajudava nessa aula. Entretanto, a porta do salão foi aberta justo quando a aula de história chegava ao fim, e o professor deu umas palmadas para que todos o atendessem. Viola virou a cabeça e viu que lorde Ferdinand estava na porta. —Hoje não teremos a habitual aula de música — anunciou o professor, que franziu o cenho de forma ameaçadora quando alguém cometeu a imprudência de aplaudir —. Felix Winwood, só será por hoje. Lorde Ferdinand Dudley sugeriu uma aula de exercício esportivo, já que temos a nossa disposição o terreno de Pinewood Manor e o sol brilha. —Vamos jogar um partido de críquete — acrescentou lorde Ferdinand —. Alguém se habilita? Foi a pergunta mais tola que Viola tinha ouvido na vida. —Estes meninos nem sequer sabem o que é o críquete — protestou. Lorde Ferdinand a olhou. —Por isso será uma aula de exercício esportivo — replicou ele —. Irão aprender. —Não temos os equipamentos necessários — assinalou Viola. —Paxton tem tacos de beisebol, bolas e paus entre as coisas dele — informou lorde Ferdinand —. Parece que, só servem para acumular pó. Foi buscar. —Mas o que faremos enquanto os meninos jogam críquete? — perguntou uma das meninas com voz lastimosa. —Como diz? — perguntou a sua vez lorde Ferdinand com um sorriso —. As meninas não podem sustentar um taco de beisebol ou agarrar uma bola ou correr? A minha irmã ninguém disse isso, embora suponha que seja melhor assim. Se alguém se atrevesse a dizer, teria acabado com um olho roxo e o nariz torcido. Um minuto depois as crianças desciam em fila de dois pela escada, em direção ao prado, com lorde Ferdinand na vanguarda e o professor na retaguarda. Viola desceu atrás deles. Até as crianças estavam ficando do lado desse homem. —Lorde Ferdinand esteve na cozinha esta manhã, senhora — disse o senhor Jarvey do fundo do saguão —. Enrolou à senhora Walsh para que faça bolachas. Antes que as crianças partam, comerão chocolate com bolachas.


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—Enrolou-a? —Sorriu e o pediu por favor — respondeu o mordomo com mordacidade. Isso seria típico de lorde Ferdinand. Não estaria contente até ter conseguido que a servidão por completo o adorasse e idolatrasse. —Senhorita Thornhill, é um cavalheiro perigoso — acrescentou o mordomo —. Levo dizendo desde o começo. —Obrigada, senhor Jarvey. — Viola se afastou para a porta principal, totalmente aberta. Estavam no prado, mais à frente do jardim das sebes. A gritaria e o revoo eram consideráveis, mas a ordem se impôs ao caos após um momento, sem que o senhor Roberts se visse obrigado a intervir com sua voz de professor autoritário. Lorde Ferdinand Dudley tinha congregado as crianças a seu redor. Estava explicando algo enquanto gesticulava com os braços. Todos prestavam atenção. Deveria ter imaginado que se davam bem com as crianças, pensou Viola com amargura. Afinal de contas, era comunicativo. Ela também saiu, atraída por seu magnetismo. Quando desceu os degraus que conduziam ao jardim das sebes e entrou um dos sinuosos atalhos de cascalho em direção ao extremo que confinava com o prado, tinham separado as crianças em grupos. O senhor Roberts estava lançando a bola a um grupo cujos membros se encontravam muito dispersos para praticar o momento da recepção. Uma vez que apanhavam a bola, a devolviam ao professor tão rápido como podiam e tentando não desviar muito o arremesso. O senhor Paxton, grande traidor!, Liderava o grupo que praticava o rebate. Lorde Ferdinand Dudley se encarregava de demonstrar a outro grupo como praticar o lançamento para derrubar os paus. Viola o observou adiantar-se vários passos para lançar a bola rente ao chão para os paus do alvo, que caiu uma e outra vez. Estava de novo somente de camisa, com a calça de montar e as botas, percebeu. A mesma calça de couro preta que usava no dia que o viu em Trellick pela primeira vez. Instruía seu grupo com paciência e amabilidade, embora nenhuma das crianças demonstrava possuir o menor vislumbre de talento para o jogo. E então a viu. —Ora, senhorita Thornhill! — aproximou-se dela com a mão direita estendida —.Permitame ajudá-la a passar sobre a sebe. Veio para unir-se à aula? Precisamos de outro adulto. Importarlhe-ia ocupar o lugar do professor enquanto ele ensina os rebatedores e Paxton coloca os alvos no terreno de jogo para começar a partida? Viola não possuía experiência em esportes. Mas a alegria da cena a tinha conquistado. Aceitou a mão que ele estendia e passou por cima da sebe com um sorriso radiante antes de pensar sequer em reagir de outro modo. Após alguns minutos estava lançando a bola e embora lamentasse


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em silêncio que seus arremessos não chegassem tão longe como os do senhor Roberts, desfrutou muito tanto do ar fresco como do exercício. —Obterá melhores resultados se lançar a bola por cima do ombro — ouviu que dizia uma voz a suas costas. —Mas nunca fui capaz de fazer esse movimento — replicou ela, dirigindo-se a lorde Ferdinand Dudley. Para demonstrar suas palavras, jogou o braço dobrado para trás e lançou com todas as forças. A bola saiu disparada para cima e riscou um pequeno arco antes de cair ao chão a menos de quatro metros de distância. Lorde Ferdinand riu entre dentes. —O movimento de seu braço não é o adequado — disse —. O fará melhor se não mantiver o braço junto ao torso e se não tencionar os músculos como se estivesse a ponto de realizar um grande desdobramento de força. Este tipo de lançamento não depende da força, mas sim do movimento e da precisão. —Ora! — exclamou ela com desdém. Percebeu de forma distraída que as crianças corriam para o senhor Paxton, que estava a ponto de lhes explicar as regras básicas do jogo. —Assim — seguiu lorde Ferdinand, que fez uma primeira demonstração sem a bola e depois com ela. A bola saiu disparada de sua mão e aterrissou a uma boa distância. Depois de afastar-se para recuperá-la, voltou e a estendeu —. Tente. Viola tentou e conseguiu lançá-la a uns quatro metros e meio. —Ora! — voltou a exclamar. —Melhor — reconheceu ele —. Mas soltou a bola muito tarde. E tem o cotovelo muito rígido. Permita-me ajudá-la. — colocou-se atrás dela e lhe sustentou o braço direito suavemente à altura do cotovelo para demonstrar como devia fazer o movimento —. Relaxe os músculos — aconselhou —. Não deve esticar o braço. — O corpo dele irradiava calor por causa do exercício, e a energia que demonstrava a contagiou de algum jeito —. Da próxima vez abra a mão como se tivesse a bola nela para lançar — disse e riu entre dentes —. Se mantiver tanto tempo a bola na mão, acabará jogando-a aos pés. Tem que lançar justamente quando sua mão estiver no ponto mais alto. Sim, já vai captando. Tente sozinha, com a bola. Após um momento, Viola ria encantada ao ver que a bola saía disparada de sua mão e riscava um amplo arco no ar antes de cair ao chão. Girou para celebrar seu triunfo com ele e percebeu que a olhava com um brilho risonho nos olhos… a escassos centímetros de distância. Enquanto o via afastar-se para recuperar a bola, Viola voltou de repente para a realidade.


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Decidiu não participar da alegre e enérgica partida que celebraram a seguir. Manteve-se na lateral, animando os rebatedores e a seus competidores com o mesmo entusiasmo. Depois de alguns minutos, lorde Ferdinand ocupou o posto de lançador ao ver que nenhum menino era capaz de lançar a bola com a força necessária para chegar até o rebatedor. Lançou a bola com suavidade, não para derrubar os paus do alvo, mas para dar a cada menino a chance de rebater. Animou a todos os participantes entre gargalhadas e com grande entusiasmo, ao contrário do professor e o senhor Paxton, mais propensos às críticas. Viola observava lorde Ferdinand mesmo sem querer. Sua vitalidade era evidente. E a amabilidade, genuína. Admitir resultou amargo. Antes que acabasse a hora da lição, viu que por fim saía da casa uma procissão de serventes. Entretanto, como a partida havia terminado, as crianças se sentaram na grama e desfrutaram do excepcional luxo de um chocolate quente com bolachas. Lorde Ferdinand se sentou com as pernas cruzadas no centro do numeroso grupo de crianças e ficou conversando animadamente com eles enquanto comiam. Quando a jornada escolar chegou ao fim, as crianças se afastaram pela avenida caminhando de forma ordenada em fila de dois, precedidos pelo senhor Roberts enquanto os criados levavam as xícaras e os pratos vazios ao interior. O senhor Paxton desapareceu em direção a seu escritório. Lorde Ferdinand estava colocando a jaqueta quando Viola se virou para entrar na casa. —Senhorita Thornhill — a chamou —, gostaria de me acompanhar a dar um passeio? Gostaria de andar pela avenida em direção à colina? Faz um dia estupendo para esbanjá-lo dentro de casa. Levavam evitando-se desde a noite que se beijaram. Viola estava dividida entre a atração que sentia por ele e a tentação de enrolá-lo para que se apaixonasse por ela. Nenhum dos dois tinha mencionado o incidente após. Os pedaços do vaso quebrado haviam desaparecido quando ela se levantou a manhã seguinte. Outro ocupava seu lugar sobre a mesa. Seria estupendo que pudessem continuar evitando-o. Entretanto, era impossível eternizar a situação, já que conviviam em uma casa cuja propriedade disputavam. Muito temia que quando alguém tivesse que partir, seria ela. Não conseguiria provar que o testamento estava manipulado ou que o perderam. Lorde Ferdinand a observou com um olhar risonho. Outro de seus dons: a capacidade de sorrir mantendo um gesto sério. —Será um prazer — respondeu —. Vou pôr um chapéu.


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Capítulo Dez Fazê-la participar da aula de críquete foi um engano. Como também o foi lhe ensinar a lançar uma bola por cima do ombro e colar-se a ela por trás para demonstrar o movimento correto do braço. De repente, teve a sensação de que estavam no meio de uma onda de calor em julho. Entretanto, a risada e a exuberante alegria dela quando por fim conseguiu lançar a bola como deveria foram muito mais perigosas que o magnetismo sexual. Porque se virou para olhá-lo com um sorriso deslumbrante e lhe custou a própria vida não agarrá-la no ar e fazê-la girar enquanto riam a gargalhadas. E ainda por cima acabava de convidá-la a dar um passeio com ele. Saiu da casa com um chapéu de palha na cabeça que se ajustava ao coque de uma forma muito favorecedora. Amarrou as fitas de cor turquesa claro, a mesma cor do vestido, com um enorme laço sob a orelha esquerda. Estava muito bonita, pensou. Falaram de trivialidades até que chegaram o caminho que discorria atrás da casa. Converteuse em sua zona preferida da propriedade. Era ampla, achava-se coberta de grama e a flanqueavam fileiras de tílias. A terra estava suave e a grama, fresca sob os pés. Os insetos zumbiam entre as folhas e os pássaros trilavam nas árvores. Ela caminhava com as mãos entrelaçadas as costas. Mal podia ver seu rosto, oculto sob as abas do chapéu. O pior do assunto, pensou, era que sentiria muita falta dela quando se fosse. —Leva um tempo ajudando o professor do povoado — comentou —. Onde estudou?


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—Minha mãe me ensinou — respondeu ela. —Conforme comentou Paxton, esteve encarregando-se dos livros de contas — seguiu. —Sim. —E assumiu um papel ativo na gestão da propriedade. —Sim. Era consciente de que ela não ia proporcionar informação a respeito desse tema. Talvez a respeito de nenhum tema. Entretanto, olhou-o justo quando esse pensamento se formava em sua cabeça. —Por que quer Pinewood Manor, lorde Ferdinand? — quis saber —. Porque a ganhou e acredita que é sua? Não é uma propriedade muito grande e está longe de Londres e do tipo de vida que parece ter desfrutado na cidade. Também está bastante afastada de qualquer centro intelectual. O que pode haver aqui para você? Ferdinand inspirou fundo para encher-se dos aromas da natureza enquanto refletia sobre a resposta. —A sensação de plenitude — respondeu —. Nunca sentei ciúmes de meu irmão mais velho. Sempre soube que Acton Park e todas as propriedades passariam à mãos do Tresham e que eu seria outro de tantos filhos menores sem terras. Pensei em várias profissões, inclusive o mundo acadêmico. Meu pai, se fosse vivo, teria insistido em que fizesse uma carreira militar em algum prestigioso regimento de cavalaria. É o que sempre fazem os filhos mais novos dos Dudley. Nunca soube o que quero fazer com o resto de minha vida… até agora. Verá, agora sei. Quero ser um latifundiário. —É rico? — perguntou ela —. Deve ser. Ferdinand não tomou como uma pergunta impertinente. —Sim — respondeu. —Muito rico? —Sim. —E não poderia comprar terras em outra parte? — Ela tinha a cabeça inclinada e olhava para o lado contrário, de modo que não podia ver o rosto dela. —Em vez de ficar em Pinewood Manor, quer dizer? — perguntou a sua vez. Por estranho que parecesse, comprar terras e sentar a cabeça era algo que alguma vez se expôs —. Mas por que fazêlo? E o que faço com esta propriedade? Vendê-la? Doá-la? —Já é minha — repôs ela. Suspirou ao escutá-la. —Tomara dentro de alguns dias possamos resolver por fim este assunto sem que fique a menor duvida — replicou —. Até então, quanto menos digamos a respeito, melhor. Por que tem


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tanto apego a Pinewood Manor? Me disse que cresceu em Londres. Não sente falta da cidade e a suas amizades? De sua mãe? Não seria mais feliz lá? Produziu-se um silêncio tão prolongado que Ferdinand acreditou que não responderia. Quando falou, a senhorita Thornhill o fez em voz baixa e olhando para outro lado. —Porque ele me deu — respondeu isso —. E porque a diferença entre viver aqui e viver em Londres é a diferença entre o céu e o inferno. Isso o surpreendeu, e o inquietou muito. —Sua mãe continua vivendo em Londres? — perguntou. —Sim. Não pensava dar mais explicações após esse monossílabo, ele percebeu. Entretanto, ir viver com sua mãe parecia outra solução. Quase tinham chegado ao final do caminho. Em frente tinham a íngreme encosta da colina. —Subimos? — perguntou Ferdinand. —É obvio. — Nem sequer titubeou. Recolheu a barra do vestido com ambas as mãos e começou a subida com a cabeça encurvada e a vista cravada no terreno para ver onde pisava. Parou para tomar fôlego antes de chegar ao topo, de modo que lhe ofereceu a mão e ela a aceitou. Ajudou-a a subir até que se detiveram na clareira de grama que se estendia no topo. Ferdinand cometeu o engano de não soltar a mão dela imediatamente. Após alguns minutos, teria sido mais incômodo soltá-la que seguir com as mãos entrelaçadas. Sentiu que lhe dava um apertão nos dedos. —Quando era pequeno e subia ao topo da colina mais alta de Acton Park — disse ele —, sempre imaginava que estava no topo do mundo. Era o amo e senhor de tudo o que via. —A imaginação é o dom e a magia da infância — replicou ela —. Quando se é criança é muito fácil acreditar na eternidade. Nos finais felizes. —Sempre acreditei que os finais felizes podiam alcançar-se através de façanhas e empreendimentos honráveis. — Soltou uma gargalhada —. Se matasse um par de dragões, todos os tesouros do universo seriam meus. Não acredita que a infância é uma etapa brilhante? Embora depois cheguem a desilusão e o cinismo. —É? — perguntou ela enquanto contemplava os extensos campos, o rio e a casa, justamente no centro da avenida —. Se não houvesse ilusões, não haveria desilusão. Claro que tampouco teríamos lembranças felizes com as quais nos consolar e suportar a dor da realidade. Percebia o quente e suave roce de sua mão nos dedos. Uma leve brisa agitou a aba do chapéu e as fitas que penduravam por debaixo da orelha. Ansiava beijá-la e se perguntou se estava


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apaixonado por ela. Ou o que sentia era a ternura provocada pela pena? Ou se tratava de luxúria? Entretanto, não se sentia muito excitado pela luxúria nesse momento. Ela virou a cabeça para olhá-lo. —Desejava odiá-lo — confessou —. Queria que fosse o homem dissoluto e espantoso que acreditava que era. —E não sou? Respondeu com outra pergunta. —O jogo é sua única debilidade? Claro que embora o seja, segue sendo muito perigosa. É o vício que roubou a saúde e a felicidade a minha mãe, e também o que destruiu minha vida. Meu padrasto era um jogador compulsivo. —Nunca aposto mais do que posso perder — respondeu em voz baixa —. O jogo não é um impulso irrefreável para mim. Só joguei contra Bamber aquela noite porque avisaram a um amigo de que a mulher dele acabava de entrar em trabalho de parto. Ouviu-a soltar uma gargalhada, embora não pareceu um som alegre. —Isso quer dizer que tenho que me despedir de minha última ilusão? — Era uma pergunta retórica. Ferdinand a olhou aos olhos antes de levar a mão dela aos lábios. —O que vou fazer com você? Ela não respondeu, claro que tampouco tinha esperado resposta. Inclinou a cabeça enquanto o coração pulsava desbocado, nem tanto por saber que ia beijá-la mas sim pelo que parecia que estava a ponto de dizer e que era incapaz de refrear muito a seu pesar. Só havia uma solução possível à situação com a qual se encontrou em Pinewood Manor, e nesse preciso instante a achava muito atraente. Talvez tivesse chegado o momento de confiar de novo, inclusive de amar de novo, de dar um salto de fé. —Senhorita Thornhill… — começou. Entretanto, ela soltou a mão e lhe deu as costas. —Ai, Deus! — exclamou —. Certamente que o almoço leva uma eternidade pronto. Esqueci a hora que era quando me convidou a dar um passeio. Suponho que foi pelo chocolate e as bolachas. Alegro-me de que lhe ocorresse preparar um lanche. Algumas das crianças percorrem um bom trecho desde suas casas até o povoado. Não queria que a beijasse. Não queria escutar nenhum tipo de declaração. Ficou muito claro. Talvez mudasse de opinião assim que soubesse que não ficava mais alternativa que abandonar Pinewood Manor. Não obstante, Ferdinand admitiu que sentia certo alívio. Muitíssimo alivio, de fato. Não desejava casar. Sempre foi cortante ao afirmar que nunca o faria. E a pena não era um motivo forte o bastante para mudar de ideia. Porque tinha que ser pena o que o


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impulsionou a agir dessa forma. Não podia ser amor. «Amor» era uma palavra que o pai sempre utilizou com desdém, porque era coisa de mulheres. Sua mãe usou o termo muito frequentemente. Para ela, conforme aprendeu Ferdinand em seus impressionáveis anos de formação, o amor era egoísmo, manipulação e afã possessivo. Devia evitar a todo custo ficar a sós com Viola Thornhill no futuro. Livrou-se por pouco. Entretanto, uma parte dele a olhava com certo desejo. Sentiria falta dela quando se fosse de Pinewood Manor. Era a única mulher a quem esteve a ponto de amar. —O que acha de voltarmos para casa? — sugeriu —. Necessita que a ajude? — A costa que descia até o caminho parecia inclusive mais íngreme de cima. —Claro que não — respondeu ela, que recolheu a saia até os tornozelos com ambas as mãos e começou uma hesitante descida. Ferdinand se adiantou e se virou perto do final para vê-la descer. O fazia correndo com passos pequenos, embora de repente começou a avançar mais depressa e a rir a gargalhadas. Colocou-se diante dela e a freou quando terminou de descer a tropicões. Levantou-a no ar, segurando-a pela cintura, e deu uma volta completa antes de deixá-la no chão. Os dois riam a gargalhadas. Ali, era muito débil, sim, pensou um instante depois enquanto a beijava, primeiro com suavidade e depois com paixão. Era um homem incapaz de controlar suas emoções e comportamento. Entretanto, ela não resistiu como fez no topo da colina. Aferrou-se a seus ombros e lhe devolveu o beijo. Afastaram-se após um momento, sem olhar-se aos olhos, a risada já esquecida, e puseramse a andar um junto ao outro para a casa, sem falar. A cabeça do Ferdinand voltava a ser um torvelinho. Deveria fazê-lo ou não? Ela queria que o fizesse ou não? Arrepender-se-ia ou não? Amava-a? Sua mente ficou encalhada nessa pergunta. Sabia muito pouco do amor, do verdadeiro amor, em caso de que existisse. Como reconhecê-lo? Gostava, respeitava-a, admirava-a, desejava-a, sentia pena … Ah, sim, sentia pena. Sentir pena não era amor. Ao menos isso o deixava claro. Mas era pena a emoção que preponderava quando pensava nela? Ou havia algo mais? O que era o amor? Seguia meditando a respeito quando rodearam a casa para entrar pela porta principal. Jarvey se encontrava no vestíbulo, com expressão solene. —Tem visita, lorde Ferdinand — anunciou o mordomo —. De Londres. Espera-o na salinha.


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Por fim! Deveria ser o advogado do Bamber em pessoa? Já podiam resolver o assunto da propriedade de uma vez por todas. Mas quando virou para a salinha, a porta foi aberta e sua visita saiu ao vestíbulo. —Tresham! — exclamou, pondo-se a andar para seu irmão acompanhado pelas pegadas de suas botas sobre o chão e com a mão direita estendida —. Que demônios faz aqui? Seu irmão lhe estreitou a mão, arqueou as sobrancelhas e pegou a haste do monóculo com a mão livre. —Caramba, Ferdinand, não sou bem-vindo? — perguntou. Entretanto, Ferdinand não deixaria se intimidar por essa arrogância ducal, capaz de conseguir que quase qualquer mortal sobre a face da terra pusesse-se a tremer de medo. Apertou a mão do irmão e lhe deu uma palmada no ombro. —Veio sozinho? — quis saber —. Onde está Jane? —Em Londres com os meninos — respondeu o duque de Tresham —. Nosso caçula não tem nem dois meses, como recordará. Afastar-me deles é difícil para mim, Ferdinand, mas você parecia mais em apuros que eu. Em que confusão se colocou agora, por certo? —Em nenhuma confusão — assegurou ele sem perder o sorriso —. Mas quando Bamber perdeu a propriedade, não me ocorreu que talvez houvesse alguém vivendo aqui. Afastou-se e se virou para fazer as apresentações. Viu que Tresham estava observando Viola Thornhill, que se encontrava do outro lado do vestíbulo, e que inclusive levava o monóculo ao olho para vê-la melhor. —Senhorita Thornhill, apresento meu irmão, o duque de Tresham — disse ele. Ela o saudou com uma genuflexão quase imperceptível ao tempo que seu gesto se tornava inexpressivo. —Excelência — murmurou. —Apresento à senhorita Viola Thornhill — continuou Ferdinand. —Ora! —Tresham pronunciou a palavra com uma leve arrogância. Inclinou a cabeça, mas não lhe fez uma reverência—. A seus pés, senhorita. Isso!, Pensou Ferdinand, indignado. Se tivesse se comportado assim desde a primeira manhã, ela teria ido após uma hora. Mas também se sentia chateado. Estavam falando de sua casa e de seu problema. Não precisava que Tresham se apresentasse e congelasse a pobre mulher com um simples olhar. Antes que pudesse intervir para criar um ambiente mais descontraído, percebeu que a senhorita Thornhill esboçava um sorriso. Era uma expressão desconcertante e lhe conferia um aspecto muito distinto ao habitual.


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—Se me desculparem… — disse ela, que partiu escada acima com as costas muito reta e o queixo alto: a personificação da dignidade. Tresham a olhava com os olhos entrecerrados. —Caramba, Ferdinand! — resmungou —. O que você andou fazendo? Viola foi direto a sua habitação e puxou a campainha para chamar Hannah. Colocou-se junto à janela e cravou o olhar no caminho pela qual tinham passeado fazia alguns minutos. Sentia-se completamente gelada. Assim que soube quem era lorde Ferdinand Dudley, pensou que se parecia com o irmão. Em uma ocasião coincidiu com o duque de Tresham. Os dois tinham sido convidados a um jantar, faria quatro ou cinco anos. Ambos os irmãos eram altos, magros, de cabelo escuro e de pernas longas. Entretanto, até aí chegava a semelhança, pode comprovar por fim ao vê-los juntos. Lorde Ferdinand era bonito e tinha uma expressão aberta e risonha. O duque, em troca, não. Seu gesto era frio, sério e arrogante. Com razão sentiam medo dele. Ferdinand a tinha abraçado ali ao longe, pensou com a vista cravada na colina, a beijou e esteve por um fio de lhe pedir que se casasse com ele. Embora o tivesse interrompido antes que pudesse dizer outra coisa que não fosse seu nome, estava convencida de que isso era o que esteve a ponto de ocorrer, por presunçosa que parecesse em acreditar nisso. Por um instante, a tentação foi tremenda. Teve que recorrer a toda sua força de vontade para afastar a mão e lhe dar as costas. «Pode destruí-la… se você não conquistar antes o coração dele.» Não pode fazer. E ali, justo naquele lugar, pensou baixando o olhar, desceu a colina correndo e rindo até ir parar nos braços dele, e depois o beijou com toda a paixão que havia reprimido apenas alguns minutos antes. Foi um desses momentos mágicos, como o momento da aposta durante a festa, a dança ao redor do pau de maio e o beijo atrás do carvalho. Outra minúscula lembrança que entesourar para consolar-se no futuro. Embora o consolo estaria tingido de dor. Teria sido muito fácil conquistar seu coração. E muito mais fácil perdê-lo. A porta foi aberta a suas costas. —Hannah — disse —, o duque de Tresham acaba de chegar de Londres. —Sim, senhorita Vi. — Hannah não parecia surpreendida. —Reconheceu-me. —Sério, minha menina? Viola inspirou fundo e muito devagar. —Deveria começar a fazer minha bagagem — seguiu —. Sim, acredito que deveria fazê-lo, Hannah.


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—Aonde iremos? — perguntou a criada. Inspirou fundo de novo. Entretanto, isso não evitou que a voz tremesse ao responder. —Não sei, Hannah. Tenho que pensar. —Vamos à biblioteca — disse Ferdinand, encabeçando a marcha. Sentia-se um pouco envergonhado pelo fato de que o tivessem pegado retornando à casa depois de dar um passeio com Viola Thornhill como se fosse o mais normal do mundo compartilhar casa com uma dama solteira e desfrutar de uma boa convivência com ela. Serviu uma taça ao irmão.

Tresham a aceitou e bebeu um gole. —Mete-se nas confusões mais incríveis — afirmou. Ferdinand voltou a irritar-se. Era três anos mais novo que o irmão e Tresham sempre foi

ditatorial, sobre tudo desde que herdou o título e as responsabilidades que o acompanhavam quando tinha dezessete anos, mas ele já não era um menino a quem podiam criticar e repreender, muito menos em sua própria casa. —O que se supõe que deveria fazer? — perguntou —. Expulsá-la a chutes? Está convencida de que Pinewood Manor lhe pertence, Tresham. Bamber… bom, o falecido Bamber prometeu. —Foi para cama com ela? —quis saber seu irmão. —Se fui… Pelo amor de Deus! — Ferdinand apertou os punhos aos lados —. Pois claro que não estou NE deitando com ela! Sou um cavalheiro. —Precisamente por isso. — Tresham voltava a ter o monóculo na mão. Se o levasse ao olho, pensou Ferdinand, arrepender-se-ia. —Foi muito impulsiva ao ficar aqui comigo, sim — reconheceu —. Mas isso denota também que confia em minha condição de cavalheiro. É inocente, Tresham. Não penso manchá-la. — Recordou a ingenuidade dos beijos que tinham compartilhado. Seu irmão deixou a taça em uma das prateleiras da livraria e suspirou. —Já vejo que não a conhece — comentou —. Não a reconheceu. Eu imaginava . E Tresham sim a conhecia? Ferdinand o olhou absorto, paralisado pelo mau pressentimento do desastre que se aproximava. —Pareceu-me familiar desde o começo — comentou —. Mas não consigo me lembrar. —Talvez se tivesse se apresentado com o verdadeiro nome, a memória não aprontado com você, Ferdinand. Em certos círculos londrinos a conhece como Lilian Talbot. Ferdinand ficou cravado no lugar um instante antes de atravessar a estadia a grandes pernadas e colocar-se junto à janela. Ficou ali de pé, de costas à estadia, enquanto recordava por fim.

Uma noite, fazia já vários anos, estava no teatro em Londres, no pátio de poltronas com

alguns amigos. A representação já tinha começado, mas de todas as formas se produziu um notável


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alvoroço procedente dos camarotes e dos espectadores do pátio de poltronas, em sua maioria homens. O amigo que se sentava a seu lado cravou o cotovelo no flanco e assinalou com o polegar o grupo que chegava tarde a um dos camarotes. Lorde Gnass, um ancião que seguia sendo um afamado libertino, estava tirando a capa de cetim vermelho da acompanhante feminina, gesto que expôs um reluzente vestido dourado… e as voluptuosas curvas escassamente cobertas da mulher que o usava. —Quem é? — perguntou Ferdinand enquanto levava o monóculo ao olho, tal como fizeram um bom número de cavalheiros pressente. —Lilian Talbot — respondeu o amigo. Não precisou mais explicação. Lilian Talbot desfrutava de uma considerável fama embora raramente fosse vista em público. Dizia-se que era mais bonita e mais desejável que Vênus, que Afrodite e que Helena de Tróia juntas. E quase tão inalcançável como a lua. Ferdinand comprovou que o que se dizia dela não eram exageros. Independente do glorioso corpo, possuía um rosto de beleza clássica e o cabelo de um escuro tom vermelho que havia recolhido em uma elegante cascata de cachos no cocuruto, alguns dos quais caíam lhe roçando o pescoço, longo e fino. A mulher se sentou, colocou um braço nu no parapeito aveludado do camarote e cravou o olhar na representação como se não fosse consciente de que quase toda a audiência estava pendente dela. Lilian Talbot era a cortesã mais aclamada, mais cara e mais demandada de toda Londres. Entretanto, parte de seu atrativo residia em que ninguém, nem sequer o aristocrata com maior título, fortuna e posição da alta sociedade pode convencê-la que fosse seu amante. Só concedia seus favores ao mesmo homem durante uma só noite. Os rumores era que era tudo o que se podiam permitir. Lilian Talbot. Conhecida também como Viola Thornhill. «Não sou a amante de ninguém.» —A vi uma vez no teatro — disse Ferdinand com a vista cravada na fonte do jardim de sebes, embora sem vê-la na realidade —. Nunca me apresentaram. A você sim? —Uma vez — respondeu Tresham. Uma vez?, Pensou. —Foi…? —Não — respondeu o irmão com frieza, sem esperar que terminasse a pergunta —. Preferia me satisfazer com amantes de longa temporada antes de fazê-lo com cortesãs de uma só noite que reportavam sensação e prestígio. Que demônios faz aqui?


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—É parente do Bamber — respondeu Ferdinand, que apoiou ambas as mãos no batente da janela —. O falecido conde devia afeiçoar-se muito a ela. Enviou-a aqui e prometeu que legaria Pinewood Manor no testamento. O duque soltou uma gargalhada desdenhosa. —Deve tê-lo agradado estupendamente se estava disposto a lhe dar um presente tão extravagante depois de uma noite — comentou —. Certamente que também lhe pagou uma soma escandalosa por seus serviços. Mas recuperou a prudência a tempo. Por isso vim, Ferdinand. Vai esperar sentado até o dia do julgamento que Bamber mova um dedo. Visitei seu advogado e o convenci de que me deixasse ver o testamento. Não há menção alguma a Viola Thornhill nem a Lilian Talbot. E o conde atual não ouviu falar da primeira, embora talvez sim da segunda. Certamente que não tinha nem ideia de que estava vivendo aqui. Não há a menor duvida de que Pinewood Manor é sua. Me alegro por você. Parece uma propriedade bastante decente. Não era um parente, mas um cliente satisfeito. «Me amava.» Ferdinand recordava sua rouca voz junto à borda, como se a estivesse escutando nesse momento. «E eu o amava.» Pinewood Manor tinha sido o presente impulsivo de um homem agradecido e atordoado a quem acabavam de dar prazer, e muito, na cama. «Nunca perderei a fé nele porque nunca deixarei de amá-lo nem de saber sem o menor indício de dúvida que ele me amava.» Parecia que inclusive a cortesã mais experiente podia ter lapso de ingenuidade. Bamber havia mudado de opinião. Ela se equivocou ao confiar nele. —Pode lhe ordenar que se vá sem mais demora — seguiu o duque —. Suponho que já está fazendo a bagagem… sabe que o jogo acabou. Percebeu que a reconheci. Ficarei eternamente agradecido de não ter trazido Angeline. Queria vir porque Jane tinha que ficar com o bebê, mas faz muito que tomei o costume de aguentar o incessante bate-papo de nossa irmã em pequenas dose. Além disso, acredito que Heyward lhe disse que não antes que eu e, por algum motivo que não consigo entender, porque certamente não é por medo, Angeline o ouviu. Entretanto, Ferdinand não estava prestando atenção. «Porque ele me deu », disse ela fazia apenas uma hora quando lhe perguntou diretamente por que lhe tinha tanto apego a Pinewood Manor. A cortesã mais famosa de toda Londres se apaixonou por um de seus clientes… e cometeu o engano garrafal de acreditar que ele a correspondia. —Aonde irá? — perguntou, falando mais consigo mesmo que com o irmão. Se não era parente do Bamber, suas opções se reduziam drasticamente.


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—Que se dano, pelo que a mim diz respeito — respondeu Tresham. Ferdinand apertou com mais força o batente da janela. —Pelo amor de Deus, Ferdinand! — exclamou seu irmão —, não terá se afeiçoado a essa mulher, não é verdade? Isso seria o cúmulo… meu irmão cativado a uma puta! Ferdinand se aferrou ao batente da janela como se a vida dependesse disso. —Enquanto permanecer nesta casa essa mulher está sob meu amparo, Tresham — replicou sem virar-se —. E não voltará a empregar essa palavra para se referir a ela nem jogará na cara enquanto estiver aqui, ou terá que responder ante mim. —Valha me Deus! — exclamou o duque de Tresham depois de um breve e eloquente silêncio.

Capítulo Onze Viola se arrumou com supremo cuidado essa noite e escolheu um vestido de seda azul claro, com corte império e amplo decote como ditava a moda, mas sem ser excessivamente descarado nem tampouco recatado. Era um dos vestidos a senhora Claypole havia exaltado. Disse a Hannah que recolhesse o cabelo em um elegante coque. Não usava joias, só um xale sobre os ombros. Ignorava se lorde Ferdinand e o duque de Tresham iam jantar em casa. Ignorava se a expulsariam a chutes da sala de jantar onde se encontravam. Mas não era uma covarde. Não pensava esconder-se em seu dormitório. Nem tampouco partiria sem protestar no caso de que tentassem livrar-se de sua companhia durante o jantar. Afinal, seguia vivendo ali com a ideia de que esse era seu lugar, de que eles eram os usurpadores. Ainda não haviam mostrado uma prova do contrário.


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Os dois estavam na sala de jantar, embelezados com os respectivos fraques e camisas brancas. Como se fossem dois tétricos adoradores de Satanás. Ao vê-la entrar ficaram em pé e fizeram uma reverência. Jantaram os três em uma desconcertante interpretação de urbanidade. Os cavalheiros se esforçaram por mostrar-se educados, assegurando-se de que tinha tudo o que necessitava e de que não escolhiam um tema de conversação de que pudesse sentir-se excluída. Em outras circunstâncias, pensou Viola, inclusive teria desfrutado. Mas as circunstâncias eram as que eram. Encontrava-se a sós com dois cavalheiros, algo muito escandaloso. Um deles sabia quem era… ou quem tinha sido. Era impossível advertir se o outro também estava informado. Mas logo o faria. Mais tarde, Viola não soube muito bem o que tinham servido de jantar nem de quantos pratos se compunha. Só teve a impressão de que a senhora Walsh superou a si mesma em deferência à presença do duque em Pinewood Manor. O jantar lhe resultou interminável e ficou em pé assim que pôde. —Os deixo com o vinho, cavalheiros — disse —. Se me desculparem, retiro a minha habitação. Assim boa noite. Dói um pouco a cabeça. Agrada o dormitório que lhe atribuíram, excelência? Tem tudo o que necessita? —Tudo, muito obrigado — assegurou o aludido. —Senhorita Thornhill — a chamou lorde Ferdinand Dudley enquanto tirava uma folha dobrada do bolso da jaqueta —, teria a amabilidade de ler isto quando puder? O testamento?, Pensou. Não obstante, era uma única folha. O testamento do conde de Bamber seguro que consistia em um grosso dossiê. —Sim. — Pegou o documento. Não era o testamento, descobriu ao chegar a habitação. Nem sequer era uma carta. Era uma espécie de declaração, escrita com uma caligrafia angulosa e tinta preta. Nela se assegurava que embora não pudesse realizar uma cópia do testamento do conde de Bamber e nenhuma pessoa alheia ao ilustríssimo podia ver o documento, concederam a oportunidade ao duque de Tresham de lê-lo em sua totalidade, depois de ter sido aceito o fato de que era parte interessada. A declaração assegurava que não ficava a menor duvida de que no testamento não se fazia menção alguma a Pinewood Manor, me Somersetshire, nem à senhorita Viola Thornhill. O documento contava com a assinatura do duque, realizada com a mesma caligrafia que o resto da declaração, e por George Westinghouse, o advogado do falecido conde de Bamber. Viola dobrou a folha e a sustentou no regaço um bom tempo com a vista cravada à frente. Era impossível que o conde tivesse mudado de opinião. E tampouco a teria esquecido. Era


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consciente de seu grave estado de saúde. Não esperava viver mais de um par de meses. Não a tinha esquecido. Não ia perder a fé nele, outra vez não. Deviam ter mudado o testamento sem o conhecimento dele. Entretanto, para ela era impossível provar, é obvio. E isso queria dizer que tinha perdido Pinewood Manor. Que triste ficaria se inteirasse! Nesse mesmo instante se sentia tão triste por ele como por ela, e também se sentia intumescida. Ele achou que ela estaria a salvo, com a vida resolvida. Estava muito contente, quase feliz, quando se despediu dela para sempre, porque ambos sabiam que era para sempre. Uma lágrima escorregou pela bochecha de Viola e umedeceu o vestido. O duque de Tresham só ficou até primeira hora da tarde do dia seguinte. Queria ver a casa, os campos e a granja que abastecia à propriedade, algo que Ferdinand lhe mostrou pela manhã, já que estava ansioso por retornar a Londres com sua família. O bebê tinha cólica, explicou, e Jane necessitava seu apoio durante as dificultosas noites. Ferdinand escutou a explicação com certa fascinação, mas sem comentar nada. Acaso não era trabalho de a babá ficar acordada pelas noites se o menino estava inquieto? De verdade permitia Tresham que um menino lhe tirasse o sono? Era possível que um matrimônio aparentemente por amor continuasse sendo sólido depois de quatro anos? Tratando-se do Tresham, nada mais e nada menos? Era possível que seguisse apaixonado pela esposa? Que seguisse sendo fiel a Jane? Ela era fiel a ele? Inclusive nesse momento, depois de ter dado a Tresham dois filhos (o herdeiro e seu substituto, falando claramente). Jane era uma mulher bonita, e com bastante gênio. De verdade existia o amor conjugal eterno? Inclusive em sua própria família? Entretanto, já era muito tarde para interessar-se pela resposta. Um dia muito tarde. No dia anterior tinha sido Viola Thornhill, íntegra, preciosa, inocente. Esse dia era Lilian Talbot, bonita, experiente… e podre até o mais fundo de seu frio coração. —Quem dera tivesse me deixado lhe dizer umas quantas coisas esta manhã, Ferdinand — disse o duque uma vez que estiveram junto a sua carruagem—. Falta a você o caráter necessário para levar a cabo tarefas desagradáveis. E está emocionalmente envolvido. A estas alturas eu já a teria expulsado daqui. —Pinewood Manor é minha, Tresham — afirmou Ferdinand com firmeza —. E tudo o relacionado com a propriedade, problemas incluídos.


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—Aceita meu conselho e não permita que passe outra noite aqui. — Seu irmão soltou uma breve gargalhada —. Mas os Dudley nunca aceitam conselhos, não é verdade? Nos veremos em Londres antes que acabe a temporada social? —Não sei — respondeu Ferdinand —. Provavelmente. Ao melhor não. —Uma resposta contundente, certamente — replicou Tresham com ironia enquanto entrava na carruagem. Ferdinand se despediu com a mão e observou como a carruagem desaparecia entre as árvores. Continuando, entrou na casa com passo firme. Já era hora de livrar-se da intrusa. Já era hora de endurecer o coração e de comportar-se como um homem. Como um Dudley. O mordomo se encontrava no vestíbulo, aguardando suas ordens. —Jarvey — disse Ferdinand com seriedade —, que a senhorita Thornhill desça à biblioteca agora mesmo. — Entretanto, deteve-se ao colocar a mão na maçaneta da porta, quando o mordomo já estava no segundo degrau —. Jarvey, peça à senhorita Thornhill que desça à biblioteca assim que seja possível. —Sim, milord. Colocou-se diante da janela, olhando o exterior, até que escutou que a porta era aberta e fechada a suas costas. Nem sequer estava seguro de que estivesse na casa. Virou-se para olhá-la. Usava um muito singelo vestido de passeio de musselina. O cabelo estava recolhido no habitual coque. Olhou-a da cabeça aos pés. Talvez Tresham se equivocou e sua própria cabeça estivesse aprontando. —Boa tarde, senhorita Talbot — disse. Ela não respondeu imediatamente. Mas sua tola esperança morreu na hora. Os lábios dela esboçaram um sorrisinho. A mesma expressão que usava no teatro… e no vestíbulo na tarde anterior, quando a apresentou ao Tresham. —Dirige-se a mim com um nome que não me corresponde — repôs ela. —Sabia muito bem onde a tinha visto antes — replicou ele, percorrendo-a de novo com o olhar, mas com raiva nessa ocasião. Como se atrevia a olhá-lo assim? Tinha sido amável com ela. Claro que ela desprezaria a amabilidade. Pelo amor de Deus!, Pensou ao dar-se conta pela primeira vez de que esteve compartilhando casa com Lilian Talbot. —Justamente o contrário. — Arqueou as sobrancelhas —. Onde me viu, lorde Ferdinand? Porque não foi em alguma cama, certamente. Acredito que recordaria. É obvio, apesar de que diz ser rico, certamente não poderia ter se permitido pagar meus honorários, não é verdade?


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Seus olhos o percorriam enquanto falava, lhe dando a estranha sensação de que o tinha despido com o olhar e não gostava do que via. Sentia-se como se tivesse retrocedido uns dez anos no tempo, quando de repente se converteu em um moço desajeitado, muito fraco para sua altura e com os dentes muito grandes para sua boca. —No teatro — respondeu —. Com lorde Gnass. —Claro, com lorde Gnass — repôs ela —. Ele sim podia permitir-se pagar meus honorários e gostava de alardear disso. Mal acreditava na transformação que tinha sofrido diante de seus próprios olhos. —Suponho que Viola Thornhill é um apelido — comentou com secura —. Com razão Bamber nunca tinha ouvido falar de você. Suponho que ninguém de Pinewood Manor nem dos arredores conhece sua verdadeira identidade. —Viola Thornhill é meu verdadeiro nome — replicou ela —. Lilian Talbot morreu faz dois anos. Está decepcionado? Tinha a esperança de desfrutar de seus favores antes de me expulsar? Sempre fui muito cara para você, lorde Ferdinand. E continuo sendo, não importa a quanto ascenda sua fortuna. Estava observando-o com aquele sorrisinho sensual e desdenhoso ao mesmo tempo. Tanto a expressão como as palavras lhe revolveram o estômago. Mas muito a seu pesar, seu corpo começou a excitar-se. —Não penso gastar nem um penny da minha fortuna em conseguir os favores de uma puta — assegurou. Certamente teria se envergonhado imediatamente de suas palavras se ela tivesse demonstrado algum indício de mortificação ou de raiva. Entretanto, a expressão de sua cara se voltou mais risonha —. Não poderia me tentar — acrescentou. Nesse momento, ela se aproximou e se deteve um passo fora de seu alcance… porque ele deu um involuntário passo atrás e descobriu que tinha os calcanhares colados à parede. Lilian Talbot o olhava com as pálpebras entre abertas, de forma sensual. E quando falou após alguns instantes o fez com uma voz que encaixava perfeitamente com dita expressão. —Isso se parece muito a uma provocação — disse —. Sou muito habilidosa, milord, muitíssimo. E você é um homem muito viril. Ferdinand tinha a impressão de que essa mulher havia acabado com todo o ar da estadia, deixando muito pouco a seus pulmões. —Gostaria de fazer uma aposta? — perguntou ela. —Uma aposta? Sentia-se muitíssimo incomodo, embora não retrocederia outro passo mesmo que pudesse fazê-lo. Já estava apanhado contra a janela, como um imbecil exímio. Como demônios se pôs em


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semelhante posição? Era ele quem tinha mandado chamá-la. Daria um bom sermão e depois ia ordenar que se fosse antes do anoitecer. —Para ver se posso seduzi-lo — explicou ela —. Ou não. Dá igual como queira chamá-lo. Deitar-me com você. Lhe dar prazer. Satisfazer suas fantasias sexuais mais sombrias e secretas. A raiva o deixou sem fala. Essa era a mesma mulher de quem sentiu pena? A quem chegou a apreciar? Da qual se acreditou inclusive apaixonado? Com quem esteve considerando a possibilidade do matrimônio? De verdade era tão inocente? Tão ingênuo? Era tão simples manipulálo? Porque por fim se dava conta de que foi argila entre as mãos dela desde o primeiro momento. Ela tinha compreendido em seguida que não poderia expulsá-lo e portanto ideou outra solução a seus problemas. Conseguiu seu propósito com humilhante facilidade. Humilhante para ele, é obvio. Se Tresham não tivesse aparecido e a tivesse reconhecido, sabe-se o que teria proporcionado o resto do dia. A essas alturas inclusive poderia estar comprometido com ela. Poderia encontrar-se na vicária para que lessem as primeiras admoestações no domingo. Nesse instante havia tornado a mudar de tática com suma facilidade, mas nessa ocasião interpretava um papel apropriado para suas habilidades. Ganhou muito bem a vida deitada. Era famosa pela beleza, pelos sedutores encantos e pela habilidade nas artes sexuais. A inteligente argúcia de conceder só uma noite de favores a seus clientes fez que fosse muito solicitada, mais que qualquer outra cortesã que perdurasse na lembrança. Ouviu-a soltar uma gargalhada rouca. —Posso seduzi-lo, sabe? — aproximou-se outro passo e colocou um dedo no peito dele, que subiu pela gravata em direção à garganta. Ferdinand lhe agarrou o pulso com força e a obrigou a afastar a mão. Fervia de raiva, de desilusão e de asco. —Acredito que não — replicou —. Prefiro escolher minhas companheiras de cama sem ter que pagar. —Caramba, mas se adora as apostas! — repôs ela —. Sobre tudo se forem fortes. —Se sugerir que aposte Pinewood Manor, está esbanjando o tempo — assegurou —. Irá perder. —Mas segundo você, já perdi — assinalou ela, que virou e atravessou a estadia para acariciar com as pontas dos dedos a escrivaninha —. Parece que já ganhou, não? —E tanto que ganhei — afirmou, fulminando-a com o olhar —. E você me distrai do verdadeiro propósito pelo qual mandei chamá-la.


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—Ah, mas mudou a ordem no último momento por um pedido, lorde Ferdinand. O senhor Jarvey me disse. Gosta de pensar que é um cavalheiro, não é verdade? E se considera mais fraco que seu irmão, a quem não se importa o que outros pensem dele. Era incrivelmente perspicaz. Claro que compreender os homens devia ser algo obrigatório em sua profissão. —Quero que vá antes que anoiteça — disse —. Não me importo se tem tempo suficiente para fazer a bagagem ou não. Irá. Hoje. Ela seguia olhando-o por cima do ombro. —O que acontece, lorde Ferdinand? — perguntou com um tom peralta na voz, embora ele se preparou para enfrentar lágrimas ou recriminações —. Tem medo aceitar uma aposta? Tem medo de perder? Converter-se-á no bobo dos clubes de cavalheiros se correr a voz de que tem medo de perder para uma mulher. Para uma puta! —Não use essa palavra para descrever você — a corrigiu antes de poder morder a língua. O sorriso dela se alargou enquanto se virava para olhá-lo de frente sem deixar de acariciar a escrivaninha com os dedos. —Me conceda uma semana — disse —. Se não puder seduzi-lo nesse tempo, jamais voltarei a questionar a autenticidade desse testamento. Partirei e não voltarei a incomodá-lo nem a incomodar sua consciência… porque sou uma moléstia para sua consciência, não é verdade? Se você perder, é obvio… — Deixou a frase no ar e o desarmou por completo com um sorriso deslumbrante —. Se você perder, terá que ir. Também terá que renunciar a qualquer direito sobre Pinewood Manor e me ceder isso . Por escrito. Com testemunhas. —Que tolice! — exclamou. Entretanto, de repente lhe pareceu que seria muito fácil ganhar a aposta. Em questão de uma semana ele (e sua consciência) teria se liberado dela para sempre. —Mas antes que se vá, lorde Ferdinand, desfrutará de uma noite de prazer delicioso, tanto que passará o resto da vida desejando repeti-la —disse em voz baixa, com esse tom rouco. Apesar do asco que lhe produziram essas palavras, sentiu uma involuntária onda de puro desejo. Se fosse vestida como uma rameira (como naquela ocasião no teatro), poderia resistir a ela sem problemas. Era de esperar que uma rameira cara falasse dessa forma. Entretanto, usava um vestido de cor branca virginal. Levava o cabelo recolhido em um coque prático e elegante. Era Viola Thornhill, pelo amor de Deus. E estava falando de deitar-se com ele. —Nunca decepciono — assegurou ela, que afastou a mão da escrivaninha e levou o índice à boca para umedecer a ponta e passar pelo lábio inferior.


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Ferdinand teve a impressão de que o pouco ar que ficava desaparecia da estadia, deixando-o ofegante, de modo que teve que dissimular. —Pelo amor de Deus! — exclamou, perdendo os estribos —. Quero que vá. Hoje. Não, agora mesmo. —Não seria melhor que me fosse calada depois dessa semana ao invés de fazê-lo gritando, esperneando e chorando como uma Madalena hoje mesmo? — perguntou ela —. E me detendo no povoado para chorar um pouco mais, é obvio. —Sabem? — Olhou-a com o cenho franzido e pela primeira vez se atreveu a dar uns passos para frente—. Sabem quem é? —Quem sou? Claro que sabem — respondeu ela —. Sou Viola Thornhill de Pinewood Manor. Sabem que sou parente do conde de Bamber. —Acreditam uma mentira, vamos — replicou, indignado —. Não sabem que é uma puta. —No presente? — Soltou uma gargalhada —. Não, não sabem isso. E acabo de lhe entregar uma arma incrível. Se revelar meu terrível secreto, lorde Ferdinand, não me resta a menor duvida de que o seguirão como uma turfa indignada para me expulsar de Somersetshire sem considerações. Fulminou-a com o olhar, cego pela raiva. —Sou um cavalheiro! — recordou —. Não vou por aí contando esse tipo de coisas. Seu segredo está a salvo comigo. —Obrigada — replicou ela com fingida despreocupação —. É uma promessa, milord? —Que me crucifiquem! — exclamou —. Acabo de dizer. Um cavalheiro não tem necessidade de fazer promessas. —E entretanto seria um modo muito simples de livrar-se de mim de uma vez por todas, não é verdade? —Isso já consegui — repôs —. Suponho que seja a declaração assinada por Tresham e pelo Westinghouse que lhe dei ontem à noite. Bamber mudou de ideia, se acaso alguma vez teve a intenção de te dar de presente Pinewood Manor de forma permanente. Suponho que pareceu um presente muito extravagante pelos serviços que lhe prestou. Ela ficou muito calada, com o dedo ainda apoiado no lábio inferior, olhando-o fixamente enquanto desaparecia o sorriso desdenhoso. Entretanto, devolveu a mão a escrivaninha e esboçou outro sorriso. —Nunca saberá a menos que consiga fazer-se com esses serviços, lorde Ferdinand — replicou com contundência —. Terá que aceitar minha palavra quando lhe digo que Pinewood Manor não é uma aposta muito extravagante nem muito menos. Sou muito boa em meu trabalho,


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muito boa. É obvio, você está convencido de que pode resistir a mim. Talvez possa. Ou talvez não. Seria uma provocação interessante. Será visto como um covarde para sempre se rechaça o desafio. Vamos. — aproximou-se dele com a mão direita estendida —. Selemos a aposta com um aperto de mãos. —Vai perder — advertiu em voz baixa em vez de repetir a ordem de que partisse antes do anoitecer. —Talvez. Ou talvez não. — Ela manteve a mão estendida —. De verdade tem medo de perder para uma mulher? Depois de ter ganhado Pinewood Manor em uma partida de cartas, teme perdê-la agora em uma aposta de amor? —Amor? — perguntou sem dissimular o asco. —Um eufemismo — admitiu ela —. Luxúria, se preferir. —Não tenho medo de perder nada contra você — disse. —Muito bem. — Soltou uma gargalhada e por um desconcertante momento pareceu a Viola Thornhill com quem estava mais familiarizado —. Não tem nada a temer. Será a aposta mais fácil de ganhar que aceitou na vida, lorde Ferdinand. —Droga! — Agarrou-lhe a mão com tanta força que a viu fazer uma careta de dor —. Aceito a aposta. A vai perder, asseguro isso. Fica uma semana aqui. Em seu lugar, eu empregaria o tempo com cabeça e começaria a fazer a bagagem e a traçar planos para o futuro. Não vai ficar mais de uma semana. É uma promessa. —Ao contrário, milord — o contradisse ela enquanto saltava a mão —. É você quem partirá… amanhã depois de ter deitado comigo e após transferir a escritura de propriedade de Pinewood Manor e de assinar todos os documentos necessários. — deu a volta e saiu da biblioteca. Ferdinand ficou onde estava, com a vista cravada na porta pela qual ela tinha saído. A que demônios acabava de aceitar? A passar outra semana com Viola Thornhill sob o mesmo teto? Não… com Lilian Talbot. Acabava de fazer uma aposta com Lilian Talbot. Acabava de apostar se seria capaz de seduzilo em uma semana e estavam apostando Pinewood Manor. Seu gênio o traiu, como era habitual. Assim como sua incapacidade para resistir a uma aposta. Ganharia, é obvio, como sempre. O problema era que não queria compartilhar casa com Lilian Talbot. Sobre tudo porque era quase idêntica a Viola Thornhill, a quem esteve a ponto de propor matrimônio no dia anterior. Menos mal que teve a sorte de livrar-se, pensou de repente. Entretanto, não lhe parecia uma sorte. Em certo modo, sentia-se desolado.


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Viola subiu a escada agradecida pelo fato de que o mordomo não se encontrasse no vestíbulo quando o atravessou. As mãos tremiam, percebeu quando as levantou com os dedos estendidos. Tinha acreditado que Lilian Talbot estava morta, desterrada para sempre no esquecimento. Mas a ressuscitou com suma facilidade. Com que rapidez trouxe tudo o que levava dentro para que ele não visse a profunda dor que lhe provocava enfrentar o passado. Tinha-a chamado «puta» antes de repreendê-la por usar ela mesma a palavra. Tinha começado… Sim, porque era uma tolice negar… Tinha começado a se apaixonar um pouquinho dele. Tinha chamado-a de «puta». Hannah seguia no quarto de vestir, guardando suas coisas no enorme baú que Viola tinha levado consigo de Londres dois anos antes. —O que aconteceu? — perguntou com brutalidade —. O que queria? —O que esperávamos — respondeu ela —. Me deu o prazo até o anoitecer para partir. —Estaremos prontas muito antes — replicou Hannah com seriedade —. Suponho que saiba… O duque disse? —Sim. — Viola se sentou no tamborete da penteadeira, de costas ao espelho —. Mas não vamos, Hannah. Nem agora nem nunca. —Que sentido tem, senhorita Vi? — perguntou a donzela —. Leu para mim o documento ontem à noite. Não há um só tribunal neste país que vá acreditar em você. —Não vamos — sentenciou Viola —. Vou ganhar Pinewood Manor. Disponho de uma semana para fazê-lo. —Como? — Hannah se endireitou e se afastou do baú meio cheio, com expressão suspicaz —. Como, minha menina? Não voltará para o trabalho, não é? —O convenci para que aceite uma aposta — explicou Viola —. Uma aposta que tenho intenção de ganhar. Não se preocupe pelos detalhes, Hannah. Volta a pendurar os vestidos no armário. Enrugarão aí dentro. E que devolvam o baú ao sótão. Ficamos. —Senhorita Vi… —Não, Hannah. — Olhou-a com os dentes apertados e um olhar decidido —. Não! Este é meu lugar. Ele queria que estivesse aqui. Não vou me render só porque alguém fez uma trapaça. Lorde Ferdinand Dudley aceitou minha aposta e vai se ater às condições da mesma. Disso ao menos posso estar segura. É um cavalheiro… dos pés à cabeça. É uma aposta que não posso perder. Hannah se colocou diante dela com a cabeça inclinada.


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—Acredito que não me interessa saber o que traz entre mãos — disse —, mas sim sei que precisa de um tempo. Está mais branca que a parede. Dê a volta para que possa lhe escovar o cabelo.

Esse sempre foi o remédio da Hannah para todos os problemas. Viola não recordava

nenhuma só ocasião em que sua antiga babá não a tivesse acalmado lhe escovando o cabelo. Girou no tamborete e sentiu as peritas mãos da Hannah enquanto lhe desfazia o coque e as tranças. No dia anterior, pensou Viola enquanto fechava os olhos, tinha deslocado colina abaixo até os braços dele e ele a fez girar e a beijou com uma paixão febril igual a que ela sentia. Nesse dia, fazia alguns minutos, a chamou de «puta» e lhe ordenou que se fosse de Pinewood Manor. No dia seguinte ou no seguinte talvez, o levaria à cama e o satisfaria com as frias artes sexuais que tinha aprendido e que praticou até alcançar a perfeição. Faria essas coisas com lorde Ferdinand Dudley. Iria fazê-las com ele. Teria que fazer outra vez. E depois teria que viver com as consequências o resto de sua vida. Em Pinewood Manor. Seria dela… indiscutivelmente e para sempre. Entretanto, ficaria algum sonho para o futuro?


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Capítulo Doze Durante os dois dias seguintes, Ferdinand começou a pensar que a semana podia passar mais depressa, e com menos apuros, pelo que supôs depois de fazer a desenquadrada aposta. Acaso ela se arrependeu. Porque se tinha pensado ganhar, adotou uma estratégia certamente estranha. Quase não a via. A primeira noite estava convidado a um jantar. Ao voltar, descobriu que ela também tinha saído e que ainda não havia retornado. Foi à cama e levou um livro. Escutou-a caminhar pelo corredor uma hora depois. Não diminuiu o passo ao chegar à altura de sua porta. À manhã seguinte a viu um instante durante o café da manhã. Quando entrou na sala de jantar após retornar de uma cavalgada matutina, ela estava acabando de comer. Luzia seu aspecto habitual, arrumada e singela. Informou-lhe que estaria todo o dia fora, visitando os doentes e aos anciões como costumava a fazer uma vez à semana. Ferdinand pensou de repente que ninguém esperaria esse tipo de comportamento da Lilian Talbot. Entretanto, alegrou-lhe que não fosse à escola para ajudar com as lições, porque ele tinha combinado ir esse dia para dar outra aula de latim ao Jamie, o futuro erudito. Tinha a intenção de passar depois pela casa do menino para falar com seu pai e ver que acerto podiam chegar com respeito a sua futura educação. Jamie precisava assistir a um bom internato. Ele estava disposto a correr com todos os gastos, mas antes tinha que vencer o orgulho paterno. Seria melhor chamá-lo «bolsa de estudo» em vez de «ajuda econômica». —Assistirá amanhã de noite ao baile? —perguntou Viola Thornhill antes de partir. Se celebraria um baile no salão da estalagem. Era o tema de conversa lá por onde ia. Ferdinand havia decidido assistir. Participar da vida cotidiana do povoado era importante para ele. —Sim, certamente — respondeu —. Se quiser, a levo em minha carruagem. —Obrigada. — Sorriu —. Mas jantarei em Crossings e chegarei ao baile com os Claypole. Os Claypole, pensou Ferdinand, sofreriam um ataque ao coração se soubessem a verdade sobre ela.


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Não voltou a vê-la em todo o dia. Ele jantou em casa, mas ela não. Ele assistiu ao ensaio do coro, mas ela não. Quando retornou, descobriu que Viola se demorou na casa de um dos agricultores para cuidar dos cinco meninos pequenos enquanto a mãe dava a luz ao sexto. Ferdinand sabia que a sentiriam falta dela quando partisse de Pinewood Manor. Seus vizinhos o tratavam com cordialidade. Alguns inclusive com afeto. Entretanto, era consciente de que muitos seguiam ressentidos pelo fato de que tivesse aparecido para expulsar a senhorita Thornhill. Essa noite não a ouviu chegar. Adormeceu com o livro aberto e a vela acesa. Durante o café da manhã, que ela saltou, Ferdinand descobriu que tinha retornado às quatro da madrugada. Quando voltou para casa depois de tratar vários assuntos com Paxton, ela já havia ido à escola. Viu-a pela tarde, já que o grupo de costura se reuniu novamente no salão. Estava sentada, costurando, quando ele entrou para conquistar às damas e ler outro capítulo de Orgulho e preconceito. Viola Thornhill seguiu costurando enquanto lia, com a cabeça inclinada sobre o bastidor como se ele não existisse. O sol que entrava pelas janelas arrancava brilhos dourados e acobreados das tranças ruivas. Levava um de seus singelos e bonitos vestidos de musselina. Se Tresham não o houvesse dito, pensou, teria sido incapaz de pôr em duvida o que viam seus olhos. Como era possível que essa mulher fosse a voluptuosa cortesã que apareceu no camarote do Gnass com um sorriso arrogante e desdenhoso? Como era possível que fosse a mulher que o obrigou a apostar fazia dois dias? A noite do baile jantou sozinho. Viola Thornhill partiu com a senhora Claypole e sua filha. Depois dessa noite só ficariam cinco dias, pensou. E depois seria livre. Ela iria e nunca voltaria a vêla. Cinco dias mais. A ideia não o alegrou tanto como deveria. Durante seus anos como cortesã, os homens (aristocratas, ricos, poderosos e influentes) tinham açoitado implacavelmente Lilian Talbot. Viola Thornhill não sabia como conquistar um homem que estava decidido a resistir. E não por falta de desejo. Porque sabia que lorde Ferdinand a desejava. Tinha beijado-a em quatro ocasiões distintas. A noite que rompeu o vaso esteve a ponto de dar um passo mais. Assim compreendia que a dificuldade para seduzi-lo não estribava na falta de desejo. Mas em seu amor pelas apostas, em sua determinação de ganhar a todo custa. Com ele não podia usar os recursos mais óbvios. Porque não funcionariam. Resistiria. A melhor maneira de proceder, decidiu depois do primeiro dia, era convencê-lo de que na realidade


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não estava fazendo nada. Seria melhor confundi-lo com a ilusão de que era Viola Thornhill, convencê-lo de que Lilian Talbot estava bem morta e enterrada. Seria melhor enrolá-lo deixando-se ver muito pouco, quando na realidade esperava que o assediasse com sua presença e seu atrativo sexual. Ela seria a ganhadora da aposta. Estava decidida. Sua determinação se afiançou ainda mais após receber uma carta da Maria, em que lhe contava o muito que Ben desfrutava do colégio, quão disposto estava a estudar para converter-se em advogado quando fosse mais velho e o muito que agradeciam ao tio Wesley que corresse com os gastos do colégio. Já não haveria mais dinheiro. Os ganhos de Pinewood Manor pertenciam a lorde Ferdinand Dudley. O pouco dinheiro que ela tinha levado consigo o investiu na propriedade e em sua família. Os benefícios que o imóvel tinha obtido ao longo desses dois anos tinham sido reaplicados em melhoras… e em sua família. O tio Wesley seguiria cuidando-os, é obvio. Não os jogaria à rua. Mas Ben teria que deixar o colégio e não contariam com dinheiro para quão extras faziam a vida mais cômoda. Não haveria mais dinheiro a menos que ganhasse a aposta. E estava resolvida a ganhá-la. A noite do baile jantou em Crossings. O senhor Claypole a levou a um lado antes de partir para o povoado e voltou a lhe propor matrimônio. Em um primeiro momento Viola se sentiu tentada, como nunca antes. Mas lhe aconteceu logo. Casar-se com Thomas Claypole não solucionaria seus problemas. Levaria uma vida cômoda e segura ao lado dele como sua esposa, mas não pagaria a educação do Ben nem a ajudaria a manter a sua família. Além disso, ignorava a verdade sobre ela e não pensava enganá-lo para casar com ele. Recusou a proposta. Pouco depois ia na carruagem com os Claypole a caminho ao baile. Lorde Ferdinand estaria lá, pensou. O veria durante várias horas seguidas. Desejava, desejava-o com todas suas forças!, Não queria ter sido obrigada a fazer essa aposta com ele. Mas não teve alternativa. Os bailes de povoado sempre eram muito alegres. A orquestra só interpretava contradanças, que se dançavam em círculo ou em fileiras. Algumas lentas e outras, rápidas e briosas, mas de passos complicados e precisos que todos conheciam após muitos anos de prática. Ferdinand dançou todas as peças. Como também o fez Viola Thornhill. Entre peça e peça, conversou com os vizinhos. Entretanto, escutava a voz rouca e musical de Viola e sua risada, embora


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estivessem em extremos opostos da estadia. Não compartilharam mesa, mas sabia que ela só havia comido meio bolinho com manteiga e uma xícara de chá. Não a convidou a dançar, mas percebeu a elegância e a agilidade com que executava os passos, e imaginou com a fita do pau de maio na mão. Em uma semana teria ido. Durante o próximo baile que se celebrasse no povoado poderia prestar toda a atenção às moças tão bonitas com quem estava dançando essa noite. Odiava esse estado de alerta constante, a tensa espera enquanto aguardava que ela fizesse o movimento, o que estava obrigada a fazer se queria ter a menor oportunidade de ganhar a aposta antes que se esgotasse o tempo. Desejava com todas as forças que o tivesse assediado com todos seus truques o primeiro dia. Porque então estava tão zangado que teria resistido todos com facilidade. Estava falando com o reverendo Prewitt e a senhorita Faith Merrywether quando ela o tocou no braço. Ao baixar a vista o surpreendeu que seus dedos não o tivessem queimado a manga do fraque. Olhou-a ao rosto e descobriu que estava ruborizada pelo exercício do dança. —Milord — a ouviu dizer —, o senhor Claypole tem que levar a mãe mais cedo para casa. O calor a afetou e se encontra um pouco enjoada. —A senhora Claypole não é de constituição forte — comentou a senhorita Merrywether como se desaprovasse a situação —. Tem sorte de contar com um filho tão atento. Viola Thornhill, entretanto, seguia olhando Ferdinand. —Iam me acompanhar para casa — seguiu ela —, mas o senhor Claypole acreditou mais sensato evitar todo esse rodeio para ir a Crossings. —Senhorita Thornhill, estaria encantado de levá-la em minha carruagem — se ofereceu o vigário —, mas estou seguro de que lorde Ferdinand fará a gentileza de lhe ceder espaço na dele. A expressão de Viola se tornou mortificada enquanto esboçava um sorriso de desculpa. —Fará? Ferdinand fez uma reverência. —Será um prazer, senhorita — respondeu. —Mas ainda não — assinalou ela —. Não quero obrigá-lo a deixar o baile cedo. Ainda resta uma peça. A tinha prometido ao senhor Claypole. —Eu mesmo dançaria com você — comentou o reverendo com uma gargalhada —, se tivesse alguns anos a menos, mas confesso que estou sem fôlego e que me falham as pernas. Lorde Ferdinand se encarregará de que não acabe convertida em um floreiro, senhorita Thornhill, não é assim, milord? O rubor de suas bochechas se intensificou. —Talvez lorde Ferdinand tivesse outro par em mente — repôs ela. Ferdinand só via a cor de suas bochechas, e o brilho de seus olhos depois de passar toda a noite dançando. Só via seu cabelo, penteado essa noite com cachos em vez de com o coque, mas


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ainda recolhido e com algumas mechas soltas junto às têmporas e o pescoço. Só via a leve capa de suor em suas bochechas e no decote, por cima do vestido. «Estive esperando o par adequado, senhor», recordou de novo a voz rouca e sedutora com a qual pronunciou essas palavras a noite que a convidou a dançar ao redor do pau de maio. «Estive esperando você.» —Eu sim que havia me resignado a ser um floreiro — replicou ele enquanto ele oferecia o braço —, porque acreditava que já não poderia dançar com você. Colocou-lhe uma mão no antebraço e Ferdinand a acompanhou para as filas de bailarinos que já se formaram para começar a contradança chamada «Roger de Coverley». A dança necessitava de grande concentração e energia. Não teriam podido falar nem que tivessem a intenção de fazê-lo. Ela ria a gargalhadas cada vez que lhes chegava a vez de girar entre as fileiras e de guiar o resto dos bailarinos para um extremo, onde os casais entrelaçavam as mãos e formavam um arco sob o qual passavam os demais. Ferdinand não podia deixar de olhá-la. Compreendeu que ainda estava meio apaixonado por ela. Talvez mais. Como não estaria? O que devia lhe dizer de caminho a casa era que esquecesse a espantosa aposta. Deveria casar com ela e assim ambos ficariam em Pinewood Manor para sempre. E seriam felizes para sempre. Entretanto, tinha sido Lilian Talbot. E a cortesã seguia morando em seu interior. Comprovou com os próprios olhos fazia somente dois dias. De modo que não podia limitar-se a esquecer tudo e fingir que era Viola Thornhill, tal como a conheceu durante a primeira semana de sua estadia em Trellick. Ela o tinha enganado. De repente, viu-se embargado por uma entristecedora onda de tristeza. Felizmente, a música chegou ao fim após poucos minutos. Embora fosse a última peça, por desgraça. De modo que não demorou muito em ajudá-la a subir à carruagem. O que pensariam os vizinhos da situação de Pinewood Manor?, Perguntou-se. Claro que dentro de pouco já não teria que preocupar-se com isso, não é? Cinco dias mais. Viola começava a odiar-se. Ou talvez seria mais exato dizer que começava a odiar-se de novo. Tinha contado com dois anos para superar, mas ao longo dos últimos dias tinha descoberto que a ferida provocada pelo desprezo que sentia para si mesma não havia chegado a fechar de tudo e que, sob a superfície, seguia aberta. Resultava muito fácil interpretar outro papel, esconder-se no mais recôndito de sua alma e fingir que era outra pessoa. O problema era que nessa ocasião a pessoa que fingia ser se parecia


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tanto a si mesma que às vezes se sentia confusa. Usava seu papel de Viola Thornhill para acabar com as defesas de lorde Ferdinand. Mas ela era Viola Thornhill! O senhor Claypole tinha decidido levar a mãe cedo a casa, embora sua intenção foi acompanhar Viola de passagem à dele. Ela recusou recorrendo a uma mentira. Disse que havia combinado voltar para Pinewood Manor na carruagem de lorde Ferdinand Dudley. Porque queria dançar com ele. Queria que recordasse a noite da festa. Entretanto, o papel que interpretava e a realidade tinham acabado mesclando-se. Havia desfrutado muito do momento e ao mesmo tempo havia se sentido muito mal. Uma vez sentada na carruagem, manteve-se em silêncio até que as rodas estralaram sobre a ponte. —Alguma vez se sentiu sozinho? — perguntou em voz baixa. —Sozinho? — Parecia assombrado pela pergunta —. Não, absolutamente. Apreciei a solidão em ocasiões, mas isso não é o mesmo que sentir-se sozinho. A solidão pode ser agradável. —Como? — quis saber ela. —Pode-se empregar o tempo para ler — respondeu ele. A surpreendeu descobrir que lorde Ferdinand Dudley gostava de ler. De algum modo não parecia encaixar com seu caráter. Entretanto, tampouco encaixava que se licenciou na Universidade de Oxford com honra tanto em latim e como em grego. —E se não houver livros? — perguntou. —Pode-se pensar — respondeu ele —. De fato, levo muitos anos sem pôr em prática. Tampouco é que tenha passado muito tempo em solidão. Antes sim era habitual, quando vivia em Acton Park. Ocorria o mesmo a Tresham. Às vezes era como uma conspiração tácita: ele ia a sua colina favorita e eu ia à minha. Fazíamos às escondidas. Os Dudley só podem nos apresentar como bagunceiros, jamais como pensadores ou filósofos que analisamos os mistérios da vida e do universo. —Isso é o que fazia? — quis saber Viola. —Na realidade, sim. — Riu baixo —. Costumava a ler muito, embora o fazia às escondidas quando meu pai estava em casa. Não queria filhos intelectuais. Entretanto, quanto mais lia, mais me surpreendia do pouco que sabia. Dedicava muito tempo a observar o céu, frustrado por minha pequenez. Sobre tudo pela pequenez de meu cérebro. E depois reparava em uma fibra de erva e me dizia que se fosse capaz de entendê-la, talvez então pudesse abranger os grandes mistérios. —E por que passou tantos anos sem fazê-lo? — perguntou ela. —Não sei. — Entretanto, refletiu sobre a pergunta antes de seguir falando —. Talvez porque estive muito ocupado. Ou talvez porque na universidade compreendi que jamais poderia saber


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tudo, assim retrocedi no intento. Talvez tenha estado no lugar inapropriado. Londres não convida à reflexão… nem ao conhecimento. A escuridão no interior da carruagem se atenuou ao deixar atrás um arvoredo. A conversa não tinha tomado o rumo que Viola pretendia. À medida que falava com ele aumentava sua convicção de que lorde Ferdinand Dudley não era o mesmo homem que chegou a Pinewood Manor. Tomara lhe caísse mal. Porque a simpatia que sentia para ele dificultava muito as coisas. —E você? Alguma vez se sente sozinha? —Não, absolutamente — respondeu. Por que demonstrava essa relutância a admitir a solidão? Era quase como se fosse algo vergonhoso. —Uma resposta apressada — assinalou lorde Ferdinand —. Muito apressada. —A solidão pode ser um bálsamo para a alma — disse —, sobre tudo se têm em conta outras alternativas. Há piores torturas que a solidão. —Há? A tênue luz Viola viu que tinha o rosto voltado para ela. —O pior da solidão é que nos obriga a enfrentar a nos mesmos — aduziu —. Embora isso também possa ser o melhor, dependendo do caráter de cada qual. Se for forte, conhecer-se a fundo pode ser a melhor fonte de sabedoria. —Você é forte? — perguntou ele em voz baixa. Viola tinha acreditado ser. Esteve convencida de que era. —Sim — respondeu. —O que aprendeu sobre você mesma? —Que sou uma sobrevivente — respondeu. A carruagem se deteve com suavidade graças à suspensão de molas de suspensão, e a portinhola foi aberta quase imediatamente. O lacaio de lorde Ferdinand desdobrou os degraus. O senhor Jarvey os esperava quando entraram. Pegou a capa de Viola, junto com a capa e o chapéu de lorde Ferdinand, e desapareceu com os objetos. —Gostaria de tomar uma taça na biblioteca antes de ir de dormir? — sugeriu lorde Ferdinand. Possivelmente pudesse conseguir seu objetivo essa noite se propunha, pensou Viola. Tomariam uma taça na biblioteca enquanto prosseguiam com a conversa e depois ele a acompanharia ao andar de cima. Poderia deter-se ao chegar à porta do dormitório de lorde Ferdinand para agradecer que a tivesse levado a casa. Poderia aproximar-se dele para que a beijasse antes sequer de compreender o perigo que estava correndo. Após uma hora tudo teria acabado. No dia seguinte teria se livrado dele. Pinewood Manor seria dela. Sentiu a ardência das lágrimas na garganta e nos olhos, e negou com a cabeça.


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—Estou muito cansada — aduziu —. Obrigada por me trazer para casa. Boa noite. Não se aproximou dele. Nem lhe ofereceu a mão. Entretanto, descobriu que ele a tinha pego e que a levava aos lábios enquanto seus olhos escuros a olhavam com um sorriso nos lábios que aliviava um pouco sua escuridão. —Obrigado pela dança — disse —. Embora será a dança do pau de maio que jamais esquecerei. Viola fugiu sem deter-se sequer para pagar um castiçal da mesa do vestíbulo. O fez de forma deliberada? Tinha-o obrigado a segurar sua mão, a olhá-la e a sussurrar que jamais a esqueceria? Era o que se propôs fazer. Era exatamente o que tinha esperado conseguir. Mas não o fez, não foi? Limitou-se a ser ela mesma. Ou tinha sido a Viola Thornhill disposta a enrolá-lo a fim de que quando acabassem na cama nem sequer fosse consciente de que perderia a aposta com Lilian Talbot? Já não sabia quem era Viola e quem era a cortesã. Já não sabia se queria ganhar a aposta ou não. Aterrava-a acabar na cama com ele, temia o momento de senti-lo em seu interior enquanto lhe proporcionava um prazer tão prolongado e intenso que o faria esquecer o engano. Até que ponto teria que esconder Viola Thornhill na pessoa da Lilian Talbot para chegar a essa situação? Viola Thornhill, a verdadeira Viola, queria fazer amor com ele. Era uma experiência desconhecida para ela, uma que nem sequer imaginava que pudesse acontecer. A união física de um homem e uma mulher era um ato feio, degradante. Entretanto, acabava de descobrir que seus sonhos não tinham morrido. E ditos sonhos começavam a forjar-se em torno de lorde Ferdinand de uma forma que nada tinha a ver com a aposta. O que deveria fazer, pensou enquanto fugia pelo corredor às escuras, era voltar para a biblioteca e comunicar que a aposta ficava anulada, que partiria de Pinewood Manor no dia seguinte. Não obstante, seguiu até seu dormitório e fechou a porta com firmeza para proteger-se da tentação.


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Capítulo Treze Durante os dois dias seguintes Viola retomou suas atividades diárias com sua habitual energia e o alegre sorriso, embora tanto seus pensamentos como as emoções fossem caóticos. Talvez, refletia em ocasiões, deveria ir a alguma parte que não fosse Londres e procurar emprego. Entretanto, Hannah e sua família teriam que arrumar-se sozinhas. Por que ela tinha que se encarregar de toda a responsabilidade? Não obstante, a ideia de deixar a família a sua sorte provocava um sentimento de culpa entristecedor. Podia ganhar Pinewood Manor com essa aposta e a vida voltaria para a normalidade… mas não suportava a ideia de seduzir lorde Ferdinand, enojava-a e fazia que odiasse a si mesma. Era um homem decente. Ficar em Pinewood Manor não só era uma questão econômica. Tratava-se de seu lar, de sua herança. Era incapaz de fazer-se à ideia de abandoná-lo. Faltavam dois dias para decidir se ganhava a aposta ou abandonava Pinewood Manor, já tinham passado três dias desde o baile, quando o assunto se complicou enormemente com a chegada de outra carta de Claire. Encontrou-a na escrivaninha da biblioteca depois de voltar de um passeio matutino pelo caminho. A pegou com alegria e a levou a jardim das sebes. Depois de


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comprovar que o banco que rodeava a fonte estava seco, sentou-se. Tinha chovido no dia anterior, embora nesse dia o sol brilhava de novo. Todo mundo estava bem, dizia Claire. Trabalhava todos os dias para seu tio. O que mais gostava de era servir café no salão destinado a tal fim, onde conhecia muitos viajantes e podia falar com eles e com os aldeãos que acudiam regularmente. Um cavalheiro em particular tinha começado a frequentar a estalagem. Era muito agradável e sempre lhe agradecia o serviço com uma generosa gorjeta. A princípio não o tinha reconhecido, já que levava muitos anos sem vê-lo, mas sua mãe e o tio Wesley sim. Viola pegou a folha de papel com ambas as mãos e de repente lhe acelerou o coração. Pressentiu o que estava a ponto de ler antes inclusive de que seus olhos se posassem nas palavras. A carta continuava da seguinte maneira: É o senhor Kirby, o cavalheiro que costumava frequentar a estalagem quando você trabalhava aqui e que teve a amabilidade de recomendá-la para o posto de preceptora na casa de seus amigos. Mamãe e o tio Wesley se alegraram muito ao vê-lo de novo. Viola fechou os olhos com força. Daniel Kirby. Pelo amor de Deus, que fazia de novo na estalagem de seu tio? Abriu os olhos e seguiu lendo. Perguntou por você. Inteirou-se que deixou seu emprego, mas não sabia que estava vivendo no campo. Ontem me deu uma mensagem para você. Deixe-me ver se me lembro bem, porque quero dizer sem me esquecer de nada. Fez que o repetisse. Disse que espera que volte logo para a cidade de visita. Que descobriu outro documento que estava seguro de que seria de seu interesse. Disse que você saberia a que se referia. Também disse que se não a interessa vê-lo, me mostraria. O que é muito irritante? Porque agora morro de vontade de saber o que há no documento. Mas se negou a me dizer por muito que lhe supliquei. Limitou-se a rir e zombar. Assim, como pode ver, querida Viola, não somos os únicos que desejamos voltar a vê-la… Viola deixou de ler. «Outro documento.» Sim, claro que sabia a que se referia. Tinha «descoberto» outra nota promissória, embora tinha jurado que já havia cobrado todas, que todas as dívidas estavam saldadas. Eram as numerosas faturas sem pagar de seu padrasto, notas promissórias por dívidas de jogo em sua maioria, que o senhor Kirby havia comprado após a morte. Dela


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Depois que a família de Viola se mudou à estalagem, Daniel Kirby se converteu em um cliente assíduo do Cavalo Branco. Era um homem muito amável, muito educado, muito generoso. Um dia contou a Viola que podia lhe encontrar um trabalho muito mais interessante de que desempenhava. Tinha amigos, recém chegados à cidade, que necessitavam uma preceptora para os quatro filhos. Preferiam alguém com uma recomendação pessoal antes de ir a uma agência ou procurar nos anúncios dos jornais. Se ela quisesse, podia organizar uma entrevista, ofereceu-se. Se ela quisesse… As notícias a encheram de alegria. Igual à sua mãe. O tio Wesley não protestou. Embora perderia uma trabalhadora na estalagem, agradava-lhe que a sobrinha conseguisse um trabalho mais apropriado para sua posição social e educação. Foi à entrevista acompanhada do senhor Kirby. Mas de repente se encontrou em uma casa desvencilhada situada nos bairros baixos de Londres, diante de uma mulher de cabelo laranja e face maquiada com um ar aterrador e grotesco ao mesmo tempo. Sally Duke ia lecioná-la para a nova profissão, explicou o senhor Kirby… que não ocultou que tipo de profissão seria. Viola se negou, é obvio. Ainda recordava o pânico, o medo de encontrar-se prisioneira e de não poder escapar. Entretanto, o senhor Kirby lhe assegurou com a habitual afabilidade que era livre de partir se quisesse, mas que sua mãe, as irmãs e o irmão se enfrentariam a uma longa temporada no cárcere de devedores se não pudessem saldar todas as dívidas. Quando lhe disse o montante total, Viola sentiu que descia todo o sangue aos pés, de modo que a cabeça ficou gelada, apitaram os ouvidos e a habitação começou a dar voltas. Tinha dezenove anos. Sua mãe estava em depressão e em um colapso físico depois da morte do marido. Claire contava com nove anos e os gêmeos, seis. O tio Wesley já havia pagado umas algumas dívidas, que pareciam uma insignificância ao lado dessas… Era impossível que o tio pudesse as saldar. E o senhor Kirby, é obvio, sabia. Viola não encontrou outra solução que aceitar as exigências. Acordaram que oitenta por cento do que ganhasse serviria para reduzir as dívidas. Teria que viver com os outros vinte por cento. De modo que lhe correspondia trabalhar duro e lavrar uma reputação para que seu vinte por cento lhe permitisse subsistir. Mais adiante, uma vez que começou a trabalhar, descobriu que desse oitenta por cento que ficava o senhor Kirby, só vinte se usava para reduzir a dívida. Os outros sessenta por cento era a cota que o senhor Kirby cobrava por acolhê-la em sua casa, buscar clientes e proteger seus interesses. Em resumidas contas, converteu-se em uma boneca. Entretanto, utilizou o escasso poder que tinha


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para insistir em trabalhar unicamente uma noite ao mês e em negar-se a ser a amante exclusiva de um só homem. Em pouco tempo se converteu na cortesã mais solicitada de toda Londres. Por algum estranho milagre conseguiu ocultar tudo a sua família. Só se atreveu a desafogarse com Hannah, pouco depois de inteirar-se de qual seria seu futuro. Sua criada insistiu em acompanhá-la embora sua mãe advertiu que a uma preceptora não permitiriam ter donzela pessoal. Sua família seguia acreditando que tinha trabalhado como preceptora durante os quatro anos anteriores a seu traslado a Pinewood Manor. Sua mãe pôs o grito no céu quando se inteirou de que ia abandonar um trabalho tão respeitável para aceitar um presente. As dívidas não se reduziram de forma significativa em quatro anos. Os juros se comeram a maior parte de seus pagamentos. Sabia que o senhor Kirby a reteria em seu poder durante todos os anos que pudesse estar em ativa, mas não via a forma de solucionar a situação. Parecia que estava apanhada pelo resto da vida. E então foi quando encontrou com o conde de Bamber. E ele descobriu a verdade… contou uma noite, enquanto estavam sentados no luxuoso sofá de sua sala de estar. O conde lhe passou um braço pelos ombros, convidando-a a que apoiasse a cabeça no seu. Viola relatou tudo o que levava calado durante quatro largos anos, e ele lhe deu um beijo na bochecha e disse que era uma boa garota e que a queria. Uma boa garota. A queria. As palavras foram como um oásis no meio do deserto. Um bálsamo para sua afligida alma. A queria. Alguém a queria. Era uma boa garota. Tinha vinte e três anos e era uma veterana em sua profissão. Mas era uma boa garota e alguém a queria. Ele a queria. O conde visitou Daniel Kirby e o convenceu para que lhe mostrasse todas os notas promissórias que ficavam. Depois, pagou todas e conseguiu um documento assinado diante de testemunhas no qual se assegurava que não ficavam mais. Ato seguido, perguntou a Viola se gostaria de viver em Pinewood Manor. Estava muito longe, no meio do um nada, segundo as próprias palavras do conde, e talvez inclusive se encontrasse em ruínas. As rendas, acrescentou, não eram grande coisa. Mas se ela quisesse, a mandaria à propriedade e também enviaria um bom administrador para que pusesse tudo em ordem, e a um bom mordomo que se encarregasse de arrumar a casa e de contratar à criadagem. A propriedade seria dela. A deixaria em seu testamento. Viola enterrou o rosto em seu pescoço e rodeou a protuberante barriga com um braço. Pela primeira vez em quatro anos se sentia a salvo, querida e estranhamente limpa. —Sim, sim — respondeu —. Ai, sim, por favor! Mas não quero deixá-lo. — Sabia que o conde estava muito doente. Ele deu uns tapinhas na bochecha com seu enorme mão e a beijou na têmpora.


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—Irei a minha casa campestre para morrer — repôs em voz baixa —. Ali está minha esposa. A pena, o amor, a gratidão e a felicidade brotaram em forma de muitas lágrimas, molhando a gravata e a gola da camisa do conde. Passos de botas sobre o chão de pedra fizeram que Viola voltasse ao presente com um sobressalto. Estava sentada no banco do jardim das sebes de Pinewood Manor, com a carta de Claire agarrada entre ambas as mãos. Lorde Ferdinand caminhava para a casa dos estábulos. O traje de montar aumentava com acréscimo seu atrativo, pensou. Ao perceber a presença dela, deteve-se e tocou a aba do chapéu com a vara. Viola correspondeu à saudação levantando um pouco a mão. Ele não desceu os degraus para reunir-se a ela, mas sim continuou para casa, e isso a fez soltar um enorme suspiro de alívio. Claire se encontrava em um perigo terrível. O significado da mensagem era evidente. Daniel Kirby queria que voltasse ao trabalho. Tinha quase vinte e cinco anos, muitos para uma cortesã, mas se retirou no ápice da carreira. Ainda a recordariam. Sem dúvida alguma haveria uma fila de futuros clientes, ao menos durante um tempo, se corresse a voz de que ia voltar para a cidade… e o senhor Kirby se encarregaria de que se corresse a voz. Poderia ganhar muitíssimo mais dinheiro para ele, ao menos durante um par de anos, pelo que Claire conseguiria como principiante, já que cabia a possibilidade de que nunca fosse tão bem como a irmã depois da instrução. Viola engoliu em seco, e engoliu uma vez mais. Durante alguns minutos teve que esforçar-se, e muito, para não vomitar. A ideia de que Claire… Se não voltasse, utilizaria Claire. Essa era a chantagem ao qual a submetia aquele homem. Manteve ao menos um dos notas promissórias. Teria que saldar a dívida retornando ao trabalho. A menos que conseguisse Pinewood Manor. A propriedade estava prosperando. Posto que investiu a maioria dos lucros em melhorias, passariam anos antes que pudesse se considerar uma mulher rica, no hipotético caso de que isso acontecesse. Entretanto, não havia obrigação de reaplicar os lucros. Eram seus para gastá-los como quisesse. Podia usá-los para pagar a dívida. Os pagamentos seriam infinitos, é obvio, mas pouco podia fazer a respeito. Podia… Mas Pinewood Manor não era sua. Era de lorde Ferdinand. A menos que… Viola fechou os olhos e enrugou a carta. Sim, a menos que…


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Ferdinand teria jantado no Cabeça do Javali se não fosse porque haviam dito que Viola Thornhill passaria a noite com as senhoritas Merrywether. Estava contando os dias que faltavam: dois. Era teimoso como uma mula. Sabia. Tinha tomado uma decisão, embora a tortura continuaria durante dois dias mais cada vez que a visse brevemente (como nessa manhã no jardim de sebes) e com encontros ainda mais breves. Desejava-a a todas as horas, mas estava decidido a ganhar a aposta, a poder jogar na cara dela ao menos sua vitória. E ela estava fazendo-o de tolo, é obvio. Não havia voltado a ver a Lilian Talbot desde o dia da aposta. Só tinha visto viola Thornhill. Como pensava seduzi-lo dessa maneira? Arrumou-se para o jantar embora fosse comer sozinho, mais que nada porque levava toda a vida fazendo-o. Entrou na sala de jantar cantarolando, mas se deteve em seco. Viu-a junto ao aparador, falando com Jarvey. A mesa estava posta para dois comensais. Usava um vestido de seda dourado sem joias nem adornos. O objeto em si era de um desenho tão singelo que soube a simples vista que também era muito caro. Ressaltava sobre as curvas de tal forma que qualquer outro adorno teria resultado supérfluo. O lustroso cabelo brilhava como o cetim vermelho, penteado para trás e com as tranças recolhidas na nuca. Era a personificação da beleza e elegância. Ferdinand diminuiu o passo. Por um instante inclusive lhe alterou o ritmo da respiração. Viua sorrir e não teve muito claro se tratava de Viola Thornhill ou Lilian Talbot. Suspeitava que usava um dos vestidos da última. Mas o sorriso era muito doce. —Acreditava que fosse jantar com as senhoritas Merrywether — disse. —Não. De modo que já não ficava mais alternativa que ajudá-la a sentar-se, ocupar seu lugar e aproveitar a situação na medida do possível. Conversaram com urbanidade de vários temas. Ela explicou que havia organizado o grupo de costura para proporcionar um desafogo social às mulheres da comunidade e acrescentou com um sorriso que embora se relacionavam dessa maneira, às mulheres também gostavam de sentir-se úteis. Ele contou histórias sobre Tattersall’s e os leilões de cavalos que se celebravam no estabelecimento todas as semanas. Falaram do tempo. Ela contou que o caminho do rio estava tão cheio de arbustos e mato quando chegou a Pinewood Manor que a princípio acreditou que era um prado silvestre. Quando descobriu que havia um caminho bem delimitado, ordenou aos jardineiros que se encarregassem de limpá-lo e inclusive mandou alguns agricultores da granja para que lhes dessem uma mão. Ele falou de Oxford e de


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quão impressionado o deixaram as bibliotecas e as conversas com homens que não ocultavam sua erudição. —É um milagre que não ficasse ali e se convertesse em professor, em conferencista ou reitor — comentou ela. —Não. — pôs-se a rir —. Quando por fim terminei os estudos, jurei não voltar a abrir um livro na vida. Queria viver. Falaram do tempo. Ela contou que seu único dispêndio desde que se mudou a Somersetshire era a compra de livros. Encomendava-os em Londres e Bath. Vários livros se somaram à biblioteca nos últimos dois anos, incluído o exemplar de Orgulho e preconceito que ele estava lendo às damas. Ele falou do livro, de modo que se encetaram em uma breve, mas apaixonada discussão sobre seus méritos. Falaram do tempo. Quando Viola se levantou ao final do jantar e anunciou que o deixaria sozinho para que desfrutasse do porto, Ferdinand soltou um suspiro aliviado. Tinha passado outro dia. Era lindíssima e sua companhia, agradável, inteligente e interessante. Resultava muito simples relaxar ao lado dela e esquecer que dentro de dois dias não voltaria a vê-la. A ideia lhe pareceu muito deprimente. Saiu da sala de jantar depois de dez minutos, sem ter provado o porto, e se encaminhou à biblioteca. Entretanto, Jarvey o deteve. —Levei uma bandeja com chá ao salão, milord — disse o mordomo —, a pedido da senhorita Thornhill. Esperava que se reunisse com ela? Claro que seria infantil não fazê-lo. —Pediu que informasse — acrescentou o mordomo. Estava servindo uma xícara de chá quando ele entrou na estadia. Viu-a elevar a vista, sorrir e encher outra xícara. —Não demorou muito com o porto — comentou ela, que pegou a xícara e se sentou em uma das poltronas junto a lareira. Ferdinand percebeu que o fogo estava aceso, embora não fazia frio. Quase tinha anoitecido e as velas estavam acesas. O fogo conferia um ambiente acolhedor à estadia. Sentou-se do outro lado da lareira. Ela não falou. Limitou-se a beber o chá enquanto contemplava as chamas com ar sonhador. Parecia relaxada e elegante ao mesmo tempo. —Por que se converteu em cortesã? — perguntou, e teria se encantado morder a língua assim que pronunciou as palavras.


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Nesse momento ela o olhou à cara e sua expressão mudou tão devagar e de forma tão sutil que Ferdinand demorou um momento em notar. Só era consciente de um profundo desconforto. —Por que todo mundo trabalha? — replicou ela —. Por dinheiro, é obvio. Levava vários dias dando voltas e voltas a essa pergunta. Nunca tinha refletido muito sobre as putas e a razão que as motivava a exercer sua profissão. Entretanto, quando pensava nelas, chegava à conclusão de que a exerciam por dois motivos: por amor ou por dinheiro. O que a tinha impulsionado? Acabava de lhe responder. Entretanto, tinha sido a cortesã mais famosa de Londres muito tempo e cobrado uma fortuna. Certamente que depois do primeiro ano não necessitava continuar trabalhando por dinheiro. Devia ter ganhado mais que de sobra para retirar-se e viver comodamente. —Para que precisava do dinheiro? — quis saber. Aquele sorriso, percebeu de repente, não era o de Viola Thornhill. —A pergunta típica de um aristocrata — repôs ela —. Tinha que comer, milord. A comida é necessária para a sobrevivência. Não se deu conta? —Mas deve ter conseguido uma fortuna — insistiu. —Sim — conveio ela —. Isso mesmo. —Você gostava? Refiro-me a sua profissão. — Por fim compreendia que estava falando com Lilian Talbot… porque o brilho travesso de seus olhos tinha um tom zombador. Sua voz tinha adquirido um tom rouco e aveludado. Ouviu-a soltar uma gargalhada e viu como passava um dedo pelo decote do vestido, começando sobre um ombro. —Todo mundo anseia o sexo, seja-se homem ou mulher — disse —.não lhe parece um sonho feito realidade trabalhar em um ofício e ganhar a vida com o que mais se desfruta nesta vida? É muitíssimo melhor que ganhar uma miséria fazendo camas e limpando bacias. Sentiu-se ligeiramente escandalizado. Nunca tinha escutado que uma dama empregasse a palavra «sexo» nem que falasse sem disfarces de anseios sexuais. —Mas com tantos homens distintos? — Franziu o cenho. —Isso faz parte do atrativo — confessou ela —. Assegura-se que não há dois homens iguais, que cada um tem dons únicos. Dou-lhe minha palavra de que é verdade. Tinha detido o dedo ao chegar ao decote. Enganchou o dedo no tecido do vestido e Ferdinand sentiu de repente uma incômoda tensão na virilha. —O desafio de minha profissão consistia em satisfazer as necessidades individuais de cada cliente — continuou ela —.Dar tanto prazer a cada homem que se visse obrigado a me suplicar mais. De modo que nunca me esquecesse.


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Quem tinha dado pé a essa conversa?, Perguntou-se ao tempo que se reclinava na poltrona como se assim pudesse pôr mais distancia entre eles. E por que o fogo estava aceso em uma noite tão quente? Ela parecia estar pensando exatamente o mesmo. —Faz muito calor aqui, não é verdade? — perguntou e, ato seguido, introduziu o dedo um pouco mais pelo decote para afastar a seda do vestido da pele e depois continuou movendo o dedo por debaixo do tecido até chegar a um ombro. O percurso desse comprido dedo o hipnotizou. Quando a olhou aos olhos, viu que ria dele, sabendo do efeito que o ardil tinha provocado. —Deveria ter dito a minha criada que me recolhesse o cabelo em um coque para não ficar na nuca — disse ela levantado os braços para enterrar os dedos nas tranças de seu pescoço. Continuando, fechou os olhos e jogou a cabeça para trás. Nesse momento Ferdinand compreendeu que estava soltando as tranças muito devagar. Viua tirar as forquilhas e as deixar com cuidado na mesinha auxiliar colocada perto da poltrona. As duas tranças se soltaram e caíram pelas costas. Viu-a pegar uma e deslizá-la por cima do ombro antes de proceder a desfazê-la. Seu abundante e ondulado cabelo se estendeu pelo peito até chegar à cintura enquanto passava a segunda trança por cima do outro ombro para desfazê-la. Quando terminou, sacudiu a cabeça, de modo que a rodeou uma ondulada cascata de cabelo. Ferdinand tinha a boca seca. Não tinha afastado os olhos dela. Nenhum dos dois pronunciou uma só palavra em vários minutos. —Assim está melhor — comentou ela, olhando-o com as pálpebras entre abertas. A expressão sagaz e zombadora havia desaparecido —. Também está com calor? Por que não tira a gravata? Não me importa. Só estamos nós dois. Disse ao senhor Jarvey que não nos incomodem. Estava tão aturdido que nem sequer sabia o que acontecia. Pelo visto, ela tinha decidido que essa seria a noite e se pôs mãos à obra. Tinha a intenção de deitar-se com ele ao longo da seguinte hora e desterrá-lo da propriedade assim que amanhecesse. Face à evidente sensualidade de seus olhos, percebeu que seu olhar estava vazio. Tratava-se de trabalho. Para ela era uma questão de negócios. E era uma trabalhadora experimente. E muito boa. Tão boa como disse que seria. Nem sequer o havia encostado ainda. Estava sentada a certa distância dele. Tinha toda a roupa posta, igual a ele. Entretanto, ele usava meias de seda, por isso teria sido uma estupidez tentar ocultar sua excitação. Como faria? Colocando uma almofada no regaço? Nem sequer tentou. Ela não tinha baixado a vista, mas estava muito seguro de


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que era muito consciente do efeito que a voz e os gestos teriam sobre qualquer homem com sangue nas veias. Poderia ter enfrentado-a. Poderia ter ficado em pé de um salto, por mais excitado que estivesse, e sair do salão. Sempre teve um controle excepcional sobre suas paixões. Entretanto, enquanto levava as mãos à gravata e a desatava, pensou que talvez fosse uma de suas habilidades seduzir inclusive um homem que sabia que estava sendo seduzido e que tinha jurado que era impossível que cedesse à tentação. Embora talvez fosse melhor assim. Havia decidido lhe deixar Pinewood Manor e partir, tanto figurada como literalmente, e comprar outra propriedade em outra parte. Daria o que lhe correspondia, porque o falecido conde jamais deveria ter feito uma promessa que depois não manteve. Um cavalheiro não se comportava dessa maneira. O problema era que ela podia rechaçar seu presente. Era impossível predizer como reagiria quando dissesse. Talvez devesse deixá-la ganhar a aposta. E a desejava. Já não podia distinguir o desejo da dor. Sua ereção pugnava contra os limites do tenso tecido das meias. —Abra a gola da camisa — disse ela enquanto se recostava na poltrona e apoiava a cabeça no respaldo, dando a impressão à luz das velas de que já estava deitada sobre um travesseiro, rodeada pelo ondulado mar de seu cabelo —. Assim se refrescará. Duvidava-o muito, mas acatou a sugestão e introduziu uma mão sob a camisa. Tinha o torso úmido. Ela o olhava enquanto umedecia os lábios com um sugestivo movimento da língua. —Alguma vez lhe disseram que é belo? —perguntou. Ninguém disse. Sentia-se envergonhado. A que homem gostava que o chamassem de «belo»? Tinha a sensação de que Jarvey tinha entrado às escondidas para avivar as chamas. —Porque saiba que é — seguiu ela —. Incrivelmente belo. Inclusive vestido. Ferdinand se levantou de um salto e cortou a distância que os separava com grande rapidez. Estendeu uma mão e ela a aceitou, permitindo que a pusesse em pé de um puxão para apanhá-la entre os braços. —Bruxa! — exclamou enquanto a beijava com os lábios separados. Entretanto, ela afastou a cabeça e colocou os dois índices sobre os lábios. —Que impaciente — reprovou —. Queria fazer amor com palavras durante uma hora pelo menos, mas não posso fazê-lo se me toca. Não gosta de fazer amor com palavras? —Acredito que o melhor irmos à cama — disse ele —. Quero ação, não palavras. Admito minha derrota. Você ganhou. Pagarei uma fortuna por você. Pinewood Manor em troca de passar uma noite em sua cama. Prometeu que nunca me arrependerei. Pois cumpra sua promessa.


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Tentou beijá-la de novo, mas ela tomou seu rosto entre as mãos para mantê-lo afastado e o olhou aos olhos. Nesse momento aconteceu algo extraordinário. Lilian Talbot desapareceu lentamente para ser substituída por Viola Thornhill. Ferdinand tentou abraçá-la outra vez. Desejavaa com desespero. Entretanto, ela escapou de seus braços, deu meia volta e saiu correndo a tropicões para a porta. —Viola… — a chamou. Mas ela já havia transpassado a porta, partindo antes que pudesse dizer mais alguma coisa.

Capítulo Quatorze Viola não deixou de correr até que esteve em seu dormitório, com as costas apoiada na porta fechada. Poderia ter ganhado a aposta em uma hora. De fato, ele tinha vacilado abertamente. Mas não foi capaz de fazê-lo. Não sabia por que. Lorde Ferdinand só era um homem mais. Uma noite mais de trabalho. Não foi capaz de fazê-lo. Afastou-se da porta e entrou no quarto de vestir enquanto tirava o vestido de seda dourada. Estendeu a mão para pegar sua camisola, mas a deixou suspensa no ar antes de tocá-la. Não suportava a ideia de deitar-se e tentar dormir sabendo de que ele não demoraria para subir a seu dormitório, situado muito perto do dela. Colocou um dos vestidos matinais a toda pressa. Jogou uma capa grossa sobre os ombros e no último momento lhe ocorreu levar a manta dobrada que descansava na parte superior do armário. O mais duro era sair outra vez do dormitório. Colou a orelha à porta e aguçou o ouvido. Não escutou nada. Abriu a porta uma fresta e olhou. Não havia ninguém. Correu pelo corredor com o coração na garganta, preparada para voltar para o quarto se o encontrasse na escada. Não foi assim, de modo que desceu voando e se deteve ao chegar ao salão, cuja porta olhou com temor. Seguia fechada. Continuou descendo até o vestíbulo, que por sorte estava deserto, abriu os fechos da porta principal tão rápido e tão silenciosamente como pôde, e saiu ao exterior. Fechou da mesma forma, com muito cuidado para tentar não fazer ruído. Menos de um minuto depois atravessou o terraço e desceu ao prado até ocultar-se atrás das árvores que se elevavam junto ao rio. Só então se deteve. Teve que fazê-lo. A luz da lua não se


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filtrava entre os galhos e se viu impelida a procurar o caminho quase a provas, de cabeça. Embora a escuridão fosse quase aterradora, obrigou-se a seguir pelo atalho dizendo-se que essa noite era preferível enfrentar os duendes e os espíritos a ficar em Pinewood Manor. Após um momento, saiu do arvoredo e a luz da lua a iluminou. Seu reflexo reluzia na superfície da água. Sentou-se exatamente no mesmo lugar onde fez a grinalda de margaridas uma semana antes, embora parecia ter passado dez anos. A noite estava fria, mas se cobriu com a capa e com a manta. Estava tiritando. Sentou-se afligida pelo desespero mais absoluto. Já não ficava o menor raio de esperança. Levantou os joelhos, os abraçou e apoiou a cabeça nelas. Não ficavam forças para lutar e não sabia quando encontraria a necessária para levantar do chão. Embora não teria que esforçar-se muito, pensou de repente, para caminhar os poucos passos que a separavam da água. Era um rio profundo e de forte corrente. Só teria que… Entretanto, procurar refúgio no esquecimento não era uma opção. Se morresse, Claire teria que ocupar seu lugar… Escutou o rangido de um galho e levantou a cabeça com brutalidade. —Não se assuste — disse uma voz —. Sou eu. Preferiria que fosse um duende ou um espírito. Quem dera fosse! —Vá embora — disse com voz exausta enquanto apoiava de novo a testa nos joelhos. Ele não falou. Nem partiu. Sem olhá-lo, Viola sentiu que se sentava a seu lado na borda. —Como descobriu que eu estava aqui? — perguntou. —A vi da janela do salão — respondeu ele. E a tinha perseguido, impulsionado pelo desejo insatisfeito. Mas não estava com sorte. Lilian Talbot havia morrido. Certamente teria que ressuscitá-la em breve, mas não seria nessa noite. Nem nesse lugar. E jamais com ele. Afundou-se no silêncio, igual a ele. Cedo ou tarde partiria, pensou, e ela poderia seguir desfrutando em seu desespero. Um desespero tão imenso que a assustava. Porque jamais se compadeceu de si mesma, nem nos piores momentos. De repente, todos os músculos de seu corpo se esticaram. Ele havia posto a mão na cabeça e seu roce foi tão delicado que em um primeiro momento acreditou que era fruto de sua imaginação. Não obstante, depois sentiu a carícia dos dedos, leve como uma pluma, enquanto lhe massageava o couro cabeludo. —Silêncio — o ouviu dizer, apesar de não ter aberto a boca. Não se atreveu a mover-se. Não queria mover-se. As carícias eram maravilhosas, muito reconfortantes. Ela sempre foi a encarregada de dar prazer. Nenhum de seus clientes se incomodou em satisfazê-la. Por que o fariam? Além disso, a gratificação pessoal não entrava em seus esquemas enquanto trabalhava. Decidiu desfazer-se do desespero e aceitar o efêmero dom que lhe dava de o


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presente. Quando ele deixou de acariciá-la para colocar o cabelo do outro lado do pescoço, estava relaxada por completo. E nesse momento sentiu os lábios dele na nuca. Foi um roce delicado, morno e fugaz. Deveria sentir-se ameaçada, entre outras coisas porque se aproximou mais a ela; em troca, sentia-se imensamente reconfortada. —Sou Viola Thornhill — disse sem levantar a cabeça. Não teve intenção de falar. Entretanto, pensou que seria bom ele saber, no caso de tivesse ido até ali com a ideia de retomar o que deixaram pela metade no salão. —Sim. — A voz dele foi apenas um sussurro pronunciado contra sua orelha —. Sim, eu sei, Viola.

O repentino desejo que a assaltou foi tão doloroso e agudo como o desespero que o tinha

precedido. Levantou a cabeça e se virou para olhá-lo. Os separavam apenas alguns centímetros de distância, mas não podia ver sua expressão na escuridão. —Eu sei — ouviu que repetia, depois do que a beijou nos lábios. Viola abraçou os joelhos enquanto se deixava beijar. Não participou do momento salvo para relaxar os lábios e a mandíbula. Manteve a distância, tão mental como emocionalmente, tal como fez na noite da festa, mas por uma razão diferente: para observar. E para entesourar esse beijo como se fosse um presente. Porque assim o sentia. Não foi um beijo impaciente nem feroz, como o do salão. Beijava-a devagar, com infinita ternura, com os lábios separados e acariciando-os com a língua antes de introduzi-la entre eles lentamente, para explorar o interior de sua boca e torturá-la, o que lhe provocou um golpe de sensações que desceram pela garganta em direção aos seios. Uma das mãos dele segurou seu rosto e depois afastou o cabelo da têmpora. Viola tinha pouca experiência com a ternura. Sentia-se indefesa ante ela. —Viola — sussurrou ele quando por fim afastou a cabeça. —Sim. Formulou-se uma pergunta que tinha obtido resposta. Entretanto, já não mantinha distância, já não era uma observadora. Esse monossílabo era fruto de um profundo desejo, do desejo de estar com alguém tenro e carinhoso, com alguém que pediu usando seu nome, com alguém que não lhe exigia que trabalhasse para ele. Nesse momento a tocou para instigá-la a levantar de modo que ambos ficaram de joelhos, frente a frente. Ele desabotoou sua capa, que caiu ao chão. Ela levantou os braços para que ele passasse o vestido pela cabeça. Não se apressou a lhe tirar a regata. Em troca, pôs as mãos na cintura e ela percebeu que elas tremiam. Ato seguido, inclinou a cabeça para beijá-la atrás do lóbulo de uma orelha, na base do pescoço e na curva de um seio.


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Então foi quando voltou a levantar os braços para que lhe tirasse a regata. O desejo físico era virtualmente algo desconhecido para ela. Não obstante, nesse momento o sentia na tensão dos mamilos e na palpitante dor que se instalou entre suas coxas e nas vísceras. Estava colada a ele dos joelhos à cintura, de modo que sentia a dureza da ereção através da seda da calça.

Não faria nada, salvo render-se. Sabia perfeitamente o que tinha que fazer para levá-lo

direto ao êxtase, mas não faria nada. Essa noite era Viola Thornhill, não a outra mulher. Entretanto, não sabia o que fazer para satisfazer seu próprio desejo. Por favor, por favor, por favor. —Por favor — disse em voz alta. Ele estava sugando um mamilo, mas ao ouvi-la levantou a cabeça para olhá-la aos olhos. —Sim — sussurrou em resposta —. Deixa que estenda sua capa na grama. E que dobro minha jaqueta como um travesseiro. — A tirou enquanto falava. Viola permaneceu de joelhos, observando-o enquanto ele dispunha a improvisada cama, depois do que ficou em pé para despir-se, momento em que ela se deitou para esperá-lo. Era muito mais bonito sem a roupa, concluiu à medida que tirava o colete, a camisa e por último a calça de seda. De todas as formas não disse nada, não fez a menor tentativa por tocá-lo. Deixou as mãos apoiadas no chão, a ambos os lados do corpo. Ele tirou a cueca e se ajoelhou a seu lado. Era muito bem dotado. Um detalhe que percebeu face à escuridão reinante. A dor palpitante da virilha se intensificou. Não queria esperar mais. Tomara não quisesse demorar o momento com mais preliminares. —Viola — o ouviu dizer enquanto se inclinava para beijá-la nos lábios —, quero estar dentro de você. Agora mesmo. —Sim. — Separou as pernas, que descansavam sobre a capa, e ele ficou em cima. Colocou-se entre suas coxas, obrigando-a a suportar todo seu peso. E pesava muito. Tanto que quase não podia respirar. Sentia a dureza do chão contra as costas. Nunca o fez em outro lugar que não fosse uma cama, mas a alegrava que a experiência fosse totalmente distinta. Alegrava que o solo fosse duro. Alegrava ver as estrelas. Alegrava escutar o fervor da água do rio. Nesse momento lhe pôs as mãos sob o traseiro, de modo que levantou os joelhos para apoiar os pés no chão. Penetrou-a com uma investida forte e profunda. E se manteve imóvel um momento, depois do que moveu as mãos para apoiar-se nos antebraços e assim liberá-la em parte de seu peso. Depois a olhou aos olhos e a beijou nos lábios com suavidade.


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O desejo a torturava das coxas até a garganta. Ansiava rodeá-lo com as pernas, estreitar com força a dureza do membro e colocar as mãos em suas costas para poder arquear-se e esfregar os mamilos contra seu torso. Não obstante, manteve-se imóvel, relaxada. —Me diga que você gosta — sussurrou ele. —Eu gosto. —Quero acabar agora — disse com a voz tensa e quase sem fôlego —. Tenho que fazê-lo. Mas quero que você desfrute. —Desfrutarei. — Levantou as mãos da capa e as colocou com suavidade nas nádegas —. Estou desfrutando. E nesse momento ele gozou de forma avassaladora. Tudo tinha acabado em um abrir e fechar de olhos. Mas Viola não se importou. O desejo tinha alcançado um ponto insuportável, de modo que gritou e as estrelas que brilhavam sobre suas cabeças se transformaram em milhões de feixes de luz. Ouviu-o gritar nesse mesmo instante, em pleno êxtase. A paz e a quietude que a embargaram depois a fizeram esquecer quão incômodo era o duro chão com o peso dele em cima. Escutou a água do rio chapinhando contra a borda e viu como as estrelas se recompunham no firmamento, enquanto tratava de aferrar-se a esse instante com unhas e dentes. Até que o ouviu respirar fundo e suspirar, depois do que se separou dela e se estendeu de costas a seu lado. Viola pensou que tudo havia acabado, mas o que fez foi colocar a manta sobre eles e lhe passar um braço sob o pescoço, como um travesseiro. A proximidade fez que aspirasse seu aroma: uma mescla de suor, colônia e homem. E isso a relaxou. Ele estava suarento e irradiava calor. Chegou à conclusão de que podia adormecer se quisesse concentrar-se no momento e não permitir que sua mente divagasse por volta do dia seguinte ou para um futuro mais distante. O presente é, afinal, o único momento que podemos viver, disse a si mesma. Estava a ponto de adormecer quando caiu na conta de um detalhe que a deixou espantada. Lorde Ferdinand Dudley era virgem. Ferdinand não dormiu, pensando que havia fracassado de forma estrepitosa. Se tivesse calculado o tempo, coisa que graças a Deus não fez, teria confirmado a humilhante verdade: que mal durou um minuto do princípio ao fim. Menos de um minuto entre a penetração e o orgasmo. Estava envergonhado. Não tinha imaginado o que se sentiria ao afundar-se no úmido e ardente interior. Tinha suposto o que podia sentir, mas suas expectativas ficaram muito curtas em comparação com a realidade.


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Quis ser tenro com ela. Quis que Viola sentisse que estava fazendo algo por ela, que não se tratava só de satisfazer seu próprio desejo. Quis fazê-la sentir como uma mulher, não como uma puta.

Em troca, tinha durado menos que um colegial sem experiência. Viola tinha a cabeça apoiada no vão que ficava entre seu ombro e o pescoço. Parecia estar

adormecida, um sinal que resultava prometedor. Beijou-a no cocuruto e enterrou a mão livre na preciosa e abundante juba. Face à vergonha, sentia certo alívio. Tinha vinte e sete anos. Sempre soube, desde que era um menino, que jamais poderia casar-se porque entre os membros de sua classe social não existia o que se conhecia por «fidelidade conjugal». E a ideia da infidelidade conjugal sempre o enojou. Entretanto, durante sua etapa universitária descobriu com grande espanto que apesar de ter um desejo sexual saudável, não podia satisfazê-lo com uma puta. Tentou em várias ocasiões. Visitou bordéis com seus amigos e acabou pagando à moça em questão só pelo tempo que passaram falando. A ideia de compartilhar esse ato físico sem o componente emocional o deixava frio. A ideia de fazê-lo com uma puta, que carecia de sentimentos, provocava calafrios. De modo que começou a pensar que lhe acontecia algo mau. Ao menos tinha descoberto por fim que era capaz de fazê-lo. Em menos de um minuto. Fez uma careta. Pelo amor de Deus! Seguro que tinha batido algum recorde. Desejou poder satisfazê-la mais plenamente. Viola precisava de consolo e ele o ofereceu. Tinha sido algo mais que sexo. Sim, estava seguro. —Mmmm — a ouviu murmurar com um comprido suspiro enquanto se espreguiçava contra ele. Ferdinand sentiu que o desejo voltava a afetá-lo e sorriu ao vê-la jogar a cabeça para trás para olhá-lo. A lua iluminava seu rosto. —Viola. —Sim. Embora esperava que recriminasse sua incompetência como amante, parecia quase feliz. Começava a ter outra ereção. Ela devia notar porque estava colada a seu corpo, mas não se afastou. Ansiava voltar a afundar-se nela, voltar a experimentar essa sensação, comprovar se era capaz de prolongar a experiência mais de um minuto. E então Viola se moveu. Ajoelhou-se a seu lado. Sentiu-se ridículo. Era evidente que com uma vez teve suficiente. —Deite-se de costas — a ouviu dizer.


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A princípio, Ferdinand se assustou. A luz da lua ressaltava sua gloriosa beleza: seios firmes e voluptuosos; cintura estreita; quadris muito femininos; pernas torneadas; e a juba que caía solta pelas costas e que parecia um halo escuro em torno do rosto. Entretanto, a luz da lua também iluminava o rosto dela. E não havia nem rastro do sorriso desdenhoso que tanto temeu ver. Não estava interpretando o papel de cortesã. Obedeceu e se deitou de costas. Viola se colocou escarranchada sobre seus quadris e se inclinou sobre seu torso, apoiando-se nas mãos que colocou a ambos os lados de sua cabeça. O cabelo dela o rodeou como uma fragrante cortina. Sentiu o roce dos mamilos no peito enquanto o beijava com paixão e sua ereção ficou mais dolorosa. Devolveu-lhe o beijo após colocar as mãos na face externa das coxas. Não sabia que outra coisa fazer. Não sabia onde tocá-la nem como. Se fosse uma mulher sem experiência, como ele, poderia ter indagado para aprender o que mais gostava. Entretanto, temia cometer alguma estupidez. Viola se levantou, separou as coxas e, depois de acariciá-lo com suavidade usando as duas mãos, guiou seu membro para o interior do corpo dela e o acolheu lentamente até tê-lo dentro por completo. Ferdinand tomou ar muito devagar, tentando não perder o controle. Ato seguido, ela jogou a cabeça para trás e começou a mover-se enquanto acariciava o abdômen com os dedos, seguindo um ritmo que compassava os batimentos de seu próprio coração. Ferdinand levantou os joelhos para plantar os pés no chão e se moveu com ela. Era impossível que houvesse maior deleite sensual. Embora o palpitante desejo o instigava a mover-se até derramar-se em seu interior, também se sentia poderoso, alheio a esse desejo, capaz de controlá-lo. Queria que esse momento durasse muito, muitíssimo. Toda a noite. Queria que fosse eterno. Queria passar a eternidade com ela. Observou-a. Viola tinha os olhos fechados e os lábios separados. Compreendeu que ela também estava desfrutando, e essa certeza o alegrou. Estava se redimindo. Escutou os rítmicos sons que produziam seus corpos ao mover um contra o outro. Escutou a respiração alterada de Viola e a própria, e se perguntou como seria capaz de manter as pernas separadas durante tanto tempo sem sentir alguma moléstia. Começou a massagear as coxas e ela levantou a cabeça para olhá-lo com um sorriso. Em certo modo, esse foi o momento mais íntimo de todos. E depois Viola fez algo que o obrigou a aferrar-se com força a suas coxas. Esticou os músculos internos, aprisionando-o com o corpo justo quando a penetração era mais profunda,


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relaxou-os enquanto se retirava e voltou a repeti-lo. Ferdinand jamais havia experiente uma agonia tão deliciosa. O ritmo de seus movimentos aumentou até alcançar uma cadência frenética que ela interrompeu de repente, detendo-se quando ele esperava que se movesse, e relaxando os músculos quando supostamente devia aprisioná-lo. Ferdinand se derramou nela de repente e caiu ao precipício. Procedente de algum lugar do vasto universo, escutou o eco do grito de Viola. Acompanhado por duas palavras: —Meu amor. Pronunciadas com sua própria voz. Quando Ferdinand despertou, estavam agasalhados com a manta e a capa. Tinha os pés gelados, embora o resto de sua pessoa estava muito aquecido. Contava com Viola como manta. Ainda estava sobre ele. E seguia em seu interior. Uma mecha de seu cabelo fazia cócegas no nariz. —Está acordada? — perguntou. —Não — respondeu com voz sonolenta. —Enfim… — comentou ele e riu entre dentes —. Ganhou a aposta e de que maneira, não foi? Soube que havia cometido um engano assim que acabou de pronunciar a última palavra. Viola não se esticou. Não se moveu nem replicou. Entretanto, sabia que havia dito o que não devia. Voltou a tentar, com um tom de voz mais suave. —Pinewood Manor é sua — disse —. Não poderia lhe arrebatá-la. Entregarei a escritura de propriedade pela manhã. Encarregar-me-ei de todos os trâmites legais quando estiver em Londres e então será sua de forma oficial. É sua casa, Viola. Para o resto de sua vida. O pesadelo acabou. — Beijou-a no cocuruto. Ela se manteve em silêncio. —Renunciarei a todo direito sobre a propriedade — seguiu Ferdinand —. Ganhá-la em uma aposta jogando cartas não pode comparar-se com a promessa que lhe foi feita, não acha? —Mas para você ganhar uma aposta é mais importante que qualquer outra coisa — repôs ela, falando por fim —. Esta a perdeu. Eu ganhei. Sabia que teria mais probabilidades de seduzi-lo como Viola Thornhill que como Lilian Talbot. Entretanto, esta noite poderia ter conseguido com qualquer uma delas, não é sim? Não tinha a menor oportunidade. Foi uma aposta absurda desde o começo. As dúvidas o assaltaram de repente… Entretanto, tinha-a ferido. Disse o que não devia. Fizeram amor, Deus! Nem sequer tinha pensado no assunto da aposta. E ela tampouco o fez, estava com toda certeza. —Não estava pensando na aposta quando vim buscá-la, Viola — reconheceu.


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—Isso demonstra como é tolo. — separou-se dele enquanto falava e ficou de joelhos para levantar-se. Inclinou-se para recolher a roupa e depois começou a vestir-se —. Contava com uma semana. Não necessitava um prazo tão longo. Poderia ter me deitado com você a qualquer momento durante os últimos cinco dias; lorde Ferdinand, perdeu a aposta — sentenciou. Olhou-o enquanto afastava o cabelo do rosto para que a visse bem —. Se sente enganado? Ou sente que o prazer que lhe proporcionei esta noite compensa com acréscimo pela perda de Pinewood Manor? Droga! Droga! Era Lilian Talbot quem o olhava enquanto colocava o vestido sobre os ombros. Seus lábios esboçavam esse espantoso sorriso desdenhoso. E a voz se converteu em uma aveludada carícia.

—Acreditava que estávamos fazendo amor — replicou com brutalidade. Ela riu baixo. —Pobre lorde Ferdinand — disse —. Só foi uma ilusão. Na realidade, só foi uma estupenda

transa. Estupenda para você, refiro-me. Os homens costumam acreditar que suas proezas sexuais são capazes de derrubar as defesas inclusive da puta mais cínica. E para que seu orgulho não se ressinta é necessário dar a impressão de que se experimentou tanto prazer como o que se proporcionou. O fiz bem? —Viola… — replicou Ferdinand com brutalidade. —Sou uma puta muito cínica — recordou ela —. Foi absurdo da sua parte relacionar-se comigo. Tinha sido uma atuação? Em todo momento? E por culpa de sua ridícula inexperiência pensou que estavam fazendo amor? Seria certo? Ou só tratava de dissimular a dor que lhe ocasionou ao dizer que havia ganhado a aposta? Porque não lhe deixou acrescentar que nessa mesma manhã havia tomado a decisão de lhe entregar Pinewood Manor sem condições. Observou-a afastar-se sem tentar sequer chamá-la ou segui-la. Já havia feito uma besteira. Certamente que faria outra se tentasse retificar. Mal tinha experiência com a suscetibilidade feminina. Assim pensou que ela acharia engraçado a menção da absurda aposta. Esperava lhe arrancar uma gargalhada. Droga! No que esteve pensando? Pela manhã teria que ficar de joelhos para lhe pedir perdão, pensou com ironia. Melhor seria que se passasse o resto da noite compondo um discurso que a abrandasse e que o ajudasse a arrumar a besteira que fez. Embora no fundo não importava a opinião que tivesse dele. Afinal de contas seria questão de minutos lhe entregar a escritura junto com uma nota que assinaria antes de tomar o café da manhã. Seu ajudante de câmara seria testemunha da assinatura. Partiria depois do


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café da manhã. Ou possivelmente inclusive partisse antes e tomasse o café da manhã no Cabeça do Javali. A opinião que tivesse dele não importava nem um pouco. Não. A opinião dela era muito importante, droga. E a ideia de partir no dia seguinte e de não voltar a vê-la nunca mais lhe provocava um ataque de pânico e um nó no estômago. Droga! Jamais tinha acreditado possível apaixonar-se. Nunca quis fazê-lo. Por que o destino lhe pregou a ridícula brincadeira de fazê-lo se apaixonar por uma famosa cortesã? Porque estava apaixonado até as sobrancelhas. Maldita fora sua imagem uma e mil vezes!

Capítulo Quinze Viola tinha esquecido a capa e a manta. Mas o frio ar noturno não a afetou enquanto percorria o atalho do rio, atravessava o bosque e cruzava o prado e o terraço. «Ganhou a aposta e de que maneira, não é verdade?», havia dito ele. E a tinha ganho. Salvo que a aposta consistia em seduzi-lo. E o que ocorreu não tinha nada a ver com a sedução. Claro que para ele sim. Para ele o que ocorreu somente foi sexo. O que esperava? «Meu amor», tinha sussurrado ao ouvido.


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E o que? Era o tipo de tolices que soltavam os homens em pleno clímax. Sim, Sally Duke tinha acertado. Jamais devia equiparar o sexo e o amor. Não importava quanto apaixonado fosse o homem na cama, para ele o sexo só era uma gratificação física e a mulher, o instrumento que lhe proporcionava prazer. Viola se dirigiu às estadias dos criados assim que entrou na casa. Ia lhe entregar a escritura de propriedade de Pinewood Manor pela manhã. Seus lucros, seu pagamento pelos serviços que havia prestado em duas ocasiões junto ao rio. Já não deveria seu lar ao falecido conde, mas a lorde Ferdinand Dudley, um cliente satisfeito. Não! Bateu na porta da Hannah e a abriu com a esperança de que sua donzela não começasse a gritar.

—Não se assuste — sussurrou —. Sou eu. — Exatamente as mesmas palavras que ele havia

dito fazia umas horas, recordou com um coice. —Senhorita Vi? — Hannah se ergueu na cama como impulsionada por uma mola —. O que passa? O que lhe fez esse homem? —Hannah — sussurrou —, vamos. Tem que se vestir e recolher suas coisas. Se terminar antes que eu e quiser, pode vir me ajudar. Mas faça em silêncio. —Vamos? — perguntou Hannah —. Quando? Que horas são? —Não tenho a menor ideia — admitiu Viola —. Uma da madrugada? Duas? O carro de postas passa pelo povoado muito cedo e não se detém menos que haja passageiros esperando ao pé do caminho. Devemos estar ali. —O que aconteceu? — Hannah a observou face à penumbra —. Ele lhe fez mal? Disse…? —Não me fez mal — assegurou Viola —. Não temos tempo para bate-papos, Hannah. Devemos pegar o carro de postas. Não posso ficar aqui nem um dia mais. Levaremos só o que possamos carregar. Não quero que ninguém descubra que estamos indo embora. Partiu antes que Hannah pudesse fazer mais pergunta e correu para seu dormitório. Não o viu por nenhuma parte. Talvez tivesse ficado no rio. Talvez estivesse dormindo de novo. Talvez seus serviços tinham sido assim bons, pensou com amargura. Não iria chorar, disse a si mesma. Não havia nada sobre a face da terra que merecesse derramar uma só lágrima, muito menos seu ridículo coração. Era surpreendente o quão rápido alguém podia se afeiçoar com um lugar, pensou Ferdinand. Encontrava-se junto à janela de seu dormitório, com a vista cravada no jardim das sebes, no prado e no bosque. Por cima das copas das árvores se via o capitel da igreja de Trellick.


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Não queria partir. Entretanto, tinha a bagagem feita e o traje de montar posto. Bentley acabava de barbeá-lo. Enquanto tomava o café da manhã, embora não tinha nem pingo de fome, carregariam a carruagem que partiria para Londres com Bentley. Seu lacaio o acompanharia a cavalo. Ele levaria as rédeas do tílburi.

Talvez devesse ter partido antes. Certamente ela não queria voltar a vê-lo e quase era

melhor que não voltasse a vê-la. Embora ainda devesse lhe pôr nas mãos a escritura de propriedade junto com a carta que havia escrito, em que assegurava ao mundo em geral que a presenteava com Pinewood Manor, se por acaso sofresse uma morte repentina nos próximos dias. Precisava explicar que mesmo que não tivesse acontecido a noite anterior, teria lhe dado a casa de todas maneiras e que também teria ido embora de qualquer maneira para não voltar a incomodá-la. Não queria partir. Doía pensar que só a veria uma vez mais. Porque ela tinha sido sua primeira companheira de cama, ou isso queria acreditar. Porque não se imaginava fazendo-o com outra mulher depois dela. Mas não estava seguro de que essa fosse a verdade. Afastou-se com passo firme da janela e desceu para tomar o café da manhã. Era cedo, mas ela estava acostumada levantar-se muito cedo. Levou uma decepção ao não vê-la na sala de jantar. Preparou-se para encontrar-se com ela nessa estadia. Havia planejado como a olharia e o que diria. Obrigou-se a comer-se duas torradas e a beber uma xícara de café. Fez tempo com uma segunda xícara, mas seguia sem descer. Talvez estivesse evitando-o, pensou. Isso era o que acontecia. Talvez devesse partir sem mais. Em troca, depois de sair da sala de jantar ficou a andar de um lado para outro no vestíbulo, repicando com as botas contra o chão ladrilhado durante mais de meia hora. Sua carruagem, os criados e a bagagem fazia muito que tinham partido. Deitou-se tarde. Eram mais das duas da manhã quando voltou para casa, pouco depois dela. Que sem dúvida tinha preferido dormir até tarde. Ou, o que era mais provável, estava se escondendo em seu dormitório até que ele se fosse. A noite anterior lhe disse que partiria nesse dia, não foi? Tinha a ofendido com a ridícula brincadeira e não o perdoaria. Enfim, já não podia esperar mais, pensou ao final. A manhã estava muito avançada e não podia continuar perdendo tempo. Entrou na biblioteca. Deixaria a escritura de propriedade e a carta na escrivaninha. Sabia que ela comprovava o correio todas as manhãs. Diria a Jarvey que se assegurasse de que o fizesse.


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Viu que já havia uma carta sobre a escrivaninha, limpa salvo por esse pedaço de papel. Isso queria dizer que já tinha chegado o correio matutino? Estava dirigida a ele, comprovou ao pegá-la… e reconheceu a letra pequena e pulcra que se refletia nos livros de contas. Que demônios?, Pensou. Tinha escrito uma carta porque não era capaz de enfrentá-lo essa manhã? Desdobrou-a. O conteúdo da missiva era o seguinte: Ontem à noite concedemos nossa mútua vitória no salão. Ficamos empatados. Nossa aposta não tinha sentido. O que ocorreu depois não teve nada a ver com uma aposta. Pinewood Manor é sua. Estou partindo. A carta não estava assinada. Ferdinand pôs-se a andar para a porta. —Jarvey! — gritou. Por uma vez o mordomo não estava rondando no vestíbulo, embora apareceu em seguida. Certamente todos os habitantes da casa tinham escutado seu grito —. Vá em busca da senhorita Thornhill agora mesmo. O mordomo se dirigiu à escada, mas Ferdinand soube que era uma tolice. Não teria deixado a carta sobre a escrivaninha antes de deitar-se. A teria deixado ali, tal como ele ia fazer, justo antes de abandonar a casa. —Pare! — ordenou, e o mordomo se virou no primeiro degrau —. Deixe. Procure a criada dela. E que venha Hardinge dos estábulos. Não, esqueça, irei eu mesmo falar com ele em pessoa. — Não esperou para ver a reação do Jarvey a ordens tão conflituosas e confusas. Saiu a toda pressa para os estábulos. Só faltava sua carruagem. Os outros cavalos seguiam ali. E o cavalariço parecia tão desconcertado como Jarvey quando lhe perguntou por Viola Thornhill. Como ocorreu ao jovem Eli. Maldita mulher! Maldita fosse sua imagem! A menos que tivesse passado algum detalhe por alto na carta (algo muito difícil, tendo em conta que era a missiva mais parca que tinha lido na vida), não lhe indicava qual era seu destino. Partiu sem mais. Com toda probabilidade a Londres. —Para algum carro de postas em Trellick? — perguntou. —Costumava a deter-se no Cabeça do Javali, milord — respondeu Hardinge —, mas havia tão poucos passageiros que agora se limita a passar ao longe e só se detém no caminho principal se tiver que subir algum passageiro. —Ou se vai algum passageiro a pé no caminho, não é verdade? —Isso, milord. Droga!


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Tinha escapado. Escorregou de entre os dedos. O castigou da pior maneira possível pelo que lhe disse a noite anterior… Era uma brincadeira, pelo amor de Deus! Tirando a importância do acontecido entre eles dizendo que era a ganhadora da aposta. E ela o castigou ao desaparecer sem deixar rastro, lhe concedendo uma propriedade que já não desejava. Como tampouco ela a desejava, pelo que parecia. Saberia alguém nesse ditoso lugar aonde poderia ter ido? Como demônios ia encontrá-la para lhe estampar a escritura na boca? E depois lhe daria uma boa palmadas, claro estava. Pelo amor de Deus!, Foi uma brincadeira. Fizeram amor… ao menos ele via assim. Não podia falar em nome dela, mais que nada porque sua experiência era quase inexistente. Mas seguro que não teria se ofendido tanto por algo tão tolo se ela não tivesse feito amor também. Se tivesse um mínimo senso de humor, teria rido muito antes que ele fizesse essa ridícula piada. Teria burlado dele por ter perdido uma aposta, coisa que raramente tinha acontecido… e com uma mulher, para cúmulo. Poderia ter se aproveitado desse detalhe para rir dele. Entretanto, não se brincava com uma mulher depois de fazer amor, supôs com uma careta enquanto voltava para a casa. Certamente fosse muito mais sensato lhe sussurrar tolices ao ouvido. Recordaria para a próxima vez. A próxima vez… ah! O guarda do carro de postas que viajava na parte posterior fez soar o sino de lata em sinal de que ia acontecer algo: estavam se aproximando de uma estalagem para trocar de cavalos, alguém estava a ponto de passar junto a eles em uma ou outra direção, havia um rebanho de cabras ou de vacas ou qualquer outra coisa obstruindo o caminho, ou se aproximavam de um pedágio. O som soou a intervalos frequentes durante o longo e incômodo dia. Dormir era impossível. Cada vez que Viola fechava os olhos, despertavam em seguida com um sobressalto. —O que acontece agora? — resmungou Hannah, que ia sentada a seu lado —. Na seguinte parada vou dizer um par de coisas a esse homem, ora que o farei. Outro passageiro lhe deu razão. E outro expressou seu desejo de que o som significasse que se aproximavam de uma estalagem onde poderia comer algo, porque morria de fome. Na última parada só tinham concedido dez minutos. O chá e a comida que tinha pedido não chegaram a tempo. O homem seguiu com uma enxurrada de queixas. Viola olhou pela janela. Não via nenhuma cidade nem nenhum povoado no horizonte. Mas sim viu outra carruagem que tentava passar junto a eles, adiantá-los, de fato. O caminho não era


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muito largo nesse lance e o chofer nem se afastou a um lado nem diminuiu a marcha para deixar passar a outra carruagem. Isso acontecia com muita frequência, pensou ela enquanto continha o fôlego e se encolhia sem pensar, como se dessa forma deixasse mais espaço ao tílburi. Os caminhos estavam cheios de choferes desconsiderados e de cavalheiros impulsivos e impaciente às rédeas de suas carruagens de corridas. Esse tílburi em particular passou voando. De fato, não roçou com o carro de postas por uns centímetros. O cavalheiro dirigia as rédeas com suma mestria e uma desconsideração quase criminosa por sua própria segurança e pela dos passageiros do carro de postas. Viola cravou o olhar no assento do tílburi. Seu condutor olhou por volta do interior do carro de postas nesse preciso momento e seus olhos se encontraram durante um instante. Em um abrir e fechar de olhos o tílburi e o condutor desapareceram. Viola se afastou da janela com rapidez e fechou os olhos. —Imbecil! — exclamou alguém —. Poderia ter matado a todos. Que diabos fazia no caminho que ia a Londres? Por acaso não leu sua carta? A teria visto? Pois claro que a tinha visto. Manteve os olhos apertados com os pensamentos e as emoções convertidos em um torvelinho. Levava todo o dia recordando a noite anterior e tentando com desespero ao mesmo tempo não fazê-lo. Mas isso a deixava com as reflexões sobre o futuro e o que este lhe proporcionava… O guarda fez soar o sino uma vez mais e um passageiro soltou um impropério. Hannah o repreendeu e recordou que havia damas presente. O chofer diminuiu a marcha. Nessa ocasião havia uma casa de postas à vista. O primeiro que viu Viola quando a carruagem entrou no atestado pátio foi o tílburi que os tinha adiantado pelo caminho dez minutos antes. Um cavalariço estava trocando os cavalos. —Hannah! — Viola agarrou a donzela pelos pulsos quando desdobraram os degraus e os passageiros começaram a descer para aproveitar ao máximo o pouco tempo que lhes permitiam —. Fique aqui, por favor. Não precisa de nada, não é verdade? Esperaremos a seguinte parada. Hannah se surpreendeu, mas antes que pudesse questionar o estranho pedido, alguém apareceu na portinhola e estendeu uma mão a Viola. —Me permita — disse lorde Ferdinand Dudley. Hannah vaiou ao vê-lo. —Não — replicou Viola —. Obrigada. Não temos descer.


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Entretanto, não tinha diante o cavalheiro afável e sorridente com quem estava familiarizada. Era o aristocrata sério, zangado, arrogante e ditatorial que encontrou durante a primeira manhã em Pinewood Manor. Seus olhos pareciam muito negros. —Hannah, faça o favor descer — disse ele —. Entra no salão de café e pede algo para comer. Não tem por que correr. Terá tempo de sobra para comer. O carro de postas continuará sem vocês. —Certamente que não — repôs Viola muito zangada —. Fique onde está, Hannah. —Se quiser discutir comigo no meio do pátio da estalagem diante de um montão de gente, por mim estupendo — disse ele com seriedade —. Mas não vai seguir caminho no carro de postas. Sugiro irmos ao salão privado que reservei e que briguemos ali. Hannah, por favor… A aludida aceitou a mão sem discutir, desembarcou do carro de postas e desapareceu em direção à estalagem sem olhar sequer a Viola. —Venha. — Voltou a estender a mão. —Nossa bagagem… — começou ela. —Já a desceram — assegurou ele. Nesse momento, a fúria se apoderou dela. —Não tem direito de fazer isso — protestou enquanto lhe afastava a mão e descia ao pátio de pedras sem a ajuda dele. Comprovou que, efetivamente, a bagagem da Hannah e a dela estavam no chão —. Está me oprimindo. Isto é… — Notou a cara sorridente de um interessado cavalariço e fechou a boca. Não era o único que tinha deixado de trabalhar com a evidente esperança de presenciar uma discussão. —As esposas fugitivas precisam de mão dura — comentou lorde Ferdinand alegremente, claramente para que os homens desfrutassem ainda mais. Agarrou-a pelo braço com força e a obrigou a andar para a estalagem enquanto ela suportava as gargalhadas masculinas que deixaram atrás. —Como se atreve? — perguntou. —Menos mal que a alcancei antes que chegasse a Londres — replicou ele —. Por que demônios fugiu desta maneira? Conduziu-a por um comprido corredor de tetos baixos até uma estadia situada na parte posterior da estalagem. A lareira estava acesa. No centro da habitação havia uma mesa com uma toalha branca e talheres para dois. —Agradeceria que moderasse a linguagem — disse —. E meus movimentos não são de sua incumbência. Nem tampouco meu destino em Londres. Desculpe-me, mas tenho que ir a busca da Hannah e ordenar que voltem a subir nossa bagagem ao carro de postas antes que vá sem nós.


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Não lhe prestou atenção. Fechou a porta do salão e ficou apoiado nela, com as longas pernas cruzadas à altura dos tornozelos e os braços também cruzados diante do peito. Já não parecia tão sério. —Tão tola foi a brincadeira que fiz? — perguntou —. Refiro a meu comentário de que ganhou a aposta. Porque asseguro que foi uma brincadeira. —Não foi uma brincadeira — replicou Viola enquanto se colocava do outro lado da mesa —. Disse que hoje me entregaria a escritura de Pinewood Manor. E não me venha com que o faria por seu bom coração ou porque ditava sua consciência. —Mas é verdade — assegurou ele. —Tão boa fui? — Olhou-o com expressão desdenhosa e furiosa. —Decidi ontem — continuou ele —, muito antes que soubesse se era boa ou não. Viola soltava faíscas pelos olhos. —Mentiroso! Ferdinand a olhou em silencio durante tanto tempo que sua fúria evaporou, lhe provocando um calafrio que subiu pela coluna. —Se fosse um homem — disse ao final —, a desafiaria pelo que acaba de dizer. —Se fosse um homem — replicou ela —, aceitaria a provocação. O viu colocar a mão no bolso da jaqueta e tirar um dossiê de documentos que lhe estendeu. —É sua — disse ele —. Venha por ela. Podemos comer primeiro e logo pagarei uma habitação para que sua donzela e você passem a noite aqui. Depois alugarei uma carruagem que as leve de volta a casa pela manhã. —Não. — Viola ficou onde estava —. Não quero. —Pinewood Manor? —Não quero. Lorde Ferdinand a olhou em silencio antes de cruzar a pernadas a distância que o separava da mesa e jogar o documento com força sobre ela. —Droga! — exclamou —. Isto é o cúmulo. Que demônios quer? —Modere sua linguagem! — repetiu ela. O que queria era rodear a mesa, lançar-se a seus braços e desafogar todas as penas entre soluços. Mas como não era uma opção viável, olhou-o com frieza —. Quero que vá e que me deixe tranquila. Quero que leve esses documentos com você. E se não ser muito tarde, quero subir ao carro de postas. —Viola — disse ele com uma repentina doçura que quase fez pedacinhos ao autocontrole —, aceite Pinewood Manor. É sua. Nunca foi minha. Não realmente. Estou seguro de que o falecido conde queria que fosse sua, mas se esqueceu de modificar o testamento. —Não esqueceu — assegurou, convencida disso —. É impossível que se esquecesse. O modificou. O duque de Tresham leu um testamento errado.


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—Pois muito bem. — Viola o viu dar um encolher de ombros e soube que não o tinha convencido —. Precisamente por isso deveria pegar a escritura e voltar para casa. Eu seguirei caminho a Londres e transferirei a propriedade legalmente. Vou dizer ao hospedeiro que estamos preparados para o jantar. —Não! — Ele já tinha dado um par de passos para a porta. Nesse momento se virou para olhá-la com certa exasperação —. Não — repetiu ela —. Se aceitar, seria um presente. Ou o prêmio de uma aposta ganha. Não penso aceitar de nenhuma das maneiras. As coisas mudariam para sempre. Foi um presente do conde. —Pois muito bem — repetiu, claramente furioso —. Deixe-me arrumar esta ofensa. —Não. Lorde Ferdinand passou uma mão pelo cabelo, de modo que o despenteou e conseguiu sem querer um aspecto muitíssimo mais bonito que de costume. —Então, o que quer? — perguntou ele. —Já disse. —O que vai fazer em Londres? Olhou-o com um sorriso, embora sentisse todos os músculos da face muito tensos. —Isso não é de sua incumbência — soltou. Ele a olhou com os olhos entrecerrados e sua expressão se tornou ameaçadora. —Se pensa voltar para seus dias de puta — disse ele —, certamente que é de minha incumbência. Foi muito feliz em Pinewood Manor até que eu apareci. Não penso ter você como um peso sobre minha consciência cada vez que a veja pela cidade acompanhando todos os lorde Gnass deste mundo. Para isso, melhor se casar comigo. O coração deu um pulo e por um instante o olhou totalmente estupefata. E ele não parecia menos surpreso. Viola se obrigou a sorrir de novo. —Acredito que é melhor que não me case com você — replicou —. O duque de Tresham o despedaçaria. —Não me importo nem um pouco com o que diga Tresham — repôs ele —. Ou o que digam outros. Casarei com quem quiser me casar. —A menos que a interessada se negue. — Manteve o sorriso, embora sentiu que a invadia uma enorme tristeza —. E esta interessada se nega. Lorde Ferdinand, você acredita saber o pior de mim, mas não sabe tudo. Verá, sou bastarda. Minha mãe se casou com meu padrasto como primeiro casamento. Thornhill é seu sobrenome de solteira. Não lhe convém casar-se com uma bastarda que, além disso, é uma puta.


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—Não faça isso. — Olhou-a com o cenho franzido —. Não sorria assim nem use essas palavras para falar de você. —Mas é a verdade — insistiu —. Vamos, admita que se sente aliviado por minha negativa. Falou sem pensar. Espantar-lhe-ia que aceitasse. —Claro que não — replicou ele, mas o fez sem convicção. Viola voltou a sorrir. —Não vai voltar a trabalhar de puta — sentenciou ele. —Que vulgar! — exclamou —. Nunca fui uma puta. Era uma cortesã. A diferença é abismal. —Não faça isso — repetiu ele —. Tem dinheiro? Ela se esticou. —Isso não é da… —E não me diga que não é de minha ditosa incumbência — a interrompeu —. Não tem dinheiro, não é verdade? —Tenho dinheiro suficiente — assegurou. —Suficiente para que? — quis saber ele —. Para os bilhetes até Londres? Para algumas refeições? E pouco mais, pensou ela. —Se não voltar a Pinewood Manor e se não se casar comigo — continuou ele —, só fica uma alternativa. Sim, sabia. Entretanto, tinha a sensação de que carregava com todo o peso do universo sobre os ombros uma vez mais. De verdade tinha esperado que tentasse convencê-la de que aceitasse uma dessas duas opções? —Terá que se converter em minha amante — concluiu ele.


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Capítulo Dezesseis Viajavam para Londres na carruagem do Ferdinand. Outros membros da comitiva o faziam a cavalo ou no tílburi. Estavam sentados um junto ao outro, tão separados como o permitia o interior do veículo, olhando por suas respectivas janelas. Não se dirigiram a palavra desde fazia uma hora. Começava a anoitecer. Ferdinand não se sentia como imaginava que deveria sentir um homem com uma nova amante. Claro que ela não tinha aceitado a ocupar dita posição. E também se negou taxativamente a voltar para Pinewood Manor. Tinha insistido em pagar pela habitação da estalagem e tentou comprar seu bilhete e da criada para o carro de postas que sairia em direção a Londres. Isso aconteceu depois do café da manhã. Ferdinand a ameaçou recorrendo de novo ao conto da esposa fugitiva se o tentasse. Ameaçou-a colocando-a sobre os joelhos e lhe dar uma boa palmada no traseiro, consciente de que não haveria homem ou mulher na estalagem que não o aplaudisse. Ela se vingou olhando-o com gesto glacial e assegurando que se pusesse um só dedo em cima, explicaria a todo mundo os motivos pelo qual havia abandonado o marido. Assegurou que ele não gostaria de comprovar quão imaginativa podia chegar a ser, mas que se gostasse, levaria uma surpresa. Não obstante, acrescentou, aceitaria que a acompanhasse a Londres em sua carruagem posto que foi o culpado de que perdesse o carro de postas do dia anterior, cujo bilhete tinha pagado. —Suponho que não analisou tudo isto a fundo, não foi? — perguntou nesse momento —. Suponho que não sabe aonde vai levar-me. Não podemos ir a um hotel. Não seria respeitável. Não pode me levar a seus aposentos de solteiro. Seus vizinhos considerariam um escândalo. Eu não tenho nenhum lugar onde me alojar em Londres há dois anos. —Equivoca-se — assegurou ele —. É obvio que sei aonde levar você. Será minha amante, e viverá com todo o luxo que a posição merece. De momento, me ocorreu o lugar perfeito onde passar esta noite e alguns dias mais. —Suponho que será a casa onde aloja suas amantes — aventurou ela.


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—Pois não — replicou Ferdinand —. Não tenho por costume manter amantes. Prefiro… Enfim, não importa. — Viola havia se virado para olhá-lo com uma expressão um tanto zombadora. Era uma perita em compor dita expressão e sempre conseguia irritá-lo, porque obtinha que se sentisse como um torpe colegial —. A casa é do Tresham. —De seu irmão? — perguntou ela arqueando as sobrancelhas —. A casa onde instala as amantes dele? Não estará ocupada? —É a casa onde instalava as amantes — particularizou ele —. Antes de seu matrimônio. Não sei por que não a vendeu; mas conforme entendi, a conserva. —Quanto tempo o duque está casado? — perguntou Viola. —Quatro anos — respondeu. —E está seguro de que a casa não está ocupada? — insistiu ela. Melhor seria que não estivesse, pensou. Porque se estivesse, encarregar-se-ia de que Tresham acabasse com o nariz incrustado na cabeça. Claro que não era habitual que um homem desafiasse o irmão a duelo por ter sido infiel a sua cunhada. Entretanto, até esse momento não foi consciente do muito que dependia do Tresham para recuperar sua fé no amor e no matrimônio. Porque o de seu irmão foi certamente um matrimônio por amor. Embora seria capaz de suportar o passar do tempo? Tresham sempre trocou de amante a uma velocidade espantosa. —No fundo não está seguro, não é mesmo? — perguntou Viola —. Será melhor que me deixe em um hotel barato mas limpo, lorde Ferdinand. Depois poderá partir a Pinewood Manor ou ficar em Londres para continuar com sua vida cotidiana e me esquecer. Não sou responsabilidade sua.

—Sim é — a contradisse —. Joguei cartas com Bamber e pus sua vida de pernas para o ar. —

Para não mencionar a própria. —Se não tivesse sido você — replicou ela —, teria sido outro. Não sou responsabilidade sua. Deixe-me em um hotel para que possa organizar minha vida. Não ficarei jogada na rua. Tenho trabalho. —Trabalhando como puta? — Olhou-a com o cenho franzido —. Poderia levar outra vida muito melhor. Poderia fazer muitas outras coisas. —Mas a prostituição é muito lucrativa — particularizou ela com um tom de voz zombador e aveludado. Como odiava que falasse assim! —Será minha amante — insistiu ele com obstinação —. Combinamos ontem, já disse isso. E repito hoje. Não penso escutar mais protestos da sua parte.


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—Combinou tudo de forma unilateral — assinalou Viola —. Minha opinião não conta? Talvez por minha condição de mulher? Acaso não existo? Sou um objeto? Um brinquedo? Lorde Ferdinand, você não quer uma amante. E eu jamais fui. Nunca tive dono. —Não é necessário que repita que não é a amante de ninguém — repôs Ferdinand —. Porque agora é. E será durante um tempo. É minha amante. Olhe-me. Viola cravou o olhar em seu queixo e sorriu enquanto apoiava as costas no canto do assento. —Aos olhos. Olhe-me aos olhos. —Para que? — perguntou ela com uma gargalhada. —Porque é dessas pessoas que não gostam que as pontuem de covardes — respondeu —. Droga, olhe-me aos olhos! Obedeceu. —E agora me diga: de verdade prefere se prostituir cada noite com um homem diferente do que ser minha amante? —Seria o mesmo — respondeu ela. —Não seria. — Ferdinand não entendia por que estava discutindo com ela. Viola insistia em que não era responsável por sua pessoa. Por que não atuava em consequência? —. Ser a amante de um homem é um emprego respeitável. E não acredito que resulte desagradável ser minha amante, não é? Faz duas noites não se importou. Inclusive acho que desfrutou. —Me dou muito bem fingindo que desfruto, lorde Ferdinand — replicou ela. Ferdinand virou a cabeça. Sim, é obvio que se dava muito bem. Certamente se mostrou torpe, desajeitado e ignorante até um ponto vergonhoso. O que sabia ele sobre dar prazer a uma mulher, muito menos a uma cortesã experiente e habilidosa? E por que estava pressionando uma mulher assim a fim de que aceitasse trabalhar para ele regularmente? Como a manteria interessada ou despertar seu interesse sequer? Claro que um homem não estava obrigado a chegar a esses extremos com a amante. Era ela que recebia dinheiro. Seria ela a obrigada a mantê-lo interessado. Entretanto, não se acreditava capaz de compartilhar semelhante intimidade com uma mulher que o fazia porque estavam pagando. Viola lhe tocou o braço nesse momento. —Mas não tive que fingir faz duas noites — assegurou. Enfim… Por absurdo que parecesse, o comentário o agradou muitíssimo, embora fosse possível que tivesse dito só por amabilidade. —Ficará alojada na casa do Tresham da qual falei até que encontre um lugar apropriado — disse ele. —Muito bem — conveio ela em voz baixa —.Leve-me a essa casa. Mas ficarei nela sozinha enquanto continuarmos com esta relação. Ambos seremos livres para pôr fim quando quisermos.


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Pensar no momento de pôr fim à relação antes sequer de tê-la começado o deixou gelado, mas não discutiu. É obvio que Viola devia ser livre para partir quando se cansasse dele. Da mesma forma que ele seria livre para partir quando se cansasse dela. Supunha que isso aconteceria algum dia. Entretanto, não se imaginava cansando-se de Viola Thornhill na vida. Seguro que se devia a sua inocência e inexperiência. —Trato feito — disse, e estendeu uma mão para segurar uma dela e lhe dar um forte apertão. Viola não o devolveu, mas tampouco retirou a mão —. Será minha amante e contará com meu amparo. Só fica combinar sua retribuição. Não suportava a ideia de ter que lhe pagar para que se deitasse com ele. Mas, droga!, Lhe ofereceu Pinewood Manor e a tinha rechaçado. Lhe propôs matrimônio e o rechaçou. Que alternativa ficava? —Agora não — respondeu ela, que virou a cabeça para olhar pela janela —. Podemos tratar desse assunto amanhã. Deveria haver um momento concreto que marcasse o início de sua relação. Deveria abraçála e beijá-la apaixonadamente. Não obstante, já tinham chegado a Londres. De fato, estariam em Dudley House em questão de minutos. Decidiu esperar até entrar na casa do Tresham. Na outra casa, claro. Ali a beijaria. Não. Ali a levaria a cama e consumaria sua nova relação: empregador e empregada; homem e amante. Que deprimente era a ideia! Seguia sem estar totalmente convencido. A carruagem dobrou ao chegar a Grosvenor Square e se deteve as portas de Dudley House. —Espere aqui — disse a Viola soltando a mão dela enquanto o chofer abria a portinhola e desdobrava os degraus. —Ferdinand! — A duquesa de Tresham saiu correndo a recebê-lo logo que entrou no salão depois que o mordomo o anunciou —. Que maravilhosa surpresa! — Agarrou-o pelas mãos e o beijou em uma bochecha. —Jane — Ferdinand lhe devolveu o apertão e a olhou de cima abaixo —, está tão preciosa como sempre. Recuperou-se por completo do parto? Ela começou a rir. Seguia tão loira, tão bonita e com tão bom tipo como estava quatro anos antes, quando a conheceu. —Jocelyn me advertiu de que os Dudley são uma tortura para suas mães inclusive antes de nascer — comentou a cunhada —. Naquele tempo disse isso para me espantar, mas tinha toda a razão do mundo. Não obstante, sobrevivi ao calvário em duas ocasiões.


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Seu irmão também se encontrava no salão, notou Ferdinand nesse momento. Tinha um diminuto bebê apoiado contra um ombro enquanto lhe dava tapinhas nas costas. —Tresh, jamais pensei que viveria para ver este dia — comentou com um sorriso enquanto se aproximava para conhecer o novo sobrinho, que tinha os olhos abertos, embora parecia estar a ponto de dormir. —Sim, Ferdinand, os Dudley não param de atormentar os pais depois de abandonar o ventre materno, como suponho que recordará muito bem — replicou seu irmão —. Não lhe faça isso com o dedo, peço por favor. Acredito que está a ponto de dormir depois de ter passado uma hora mugindo até me deixar surdo. Os prazeres do campo perderam brilho? Acreditava que por fim tinha encontrado sua vocação. Assim o disse a Jane quando voltei de Somersetshire. —Ferdinand — atravessou sua cunhada —, o que seu irmão quer dizer é que nos alegramos em vê-lo. Fica para jantar conosco. Sentaremos a comer assim que Christopher estiver em sua habitação. Nicholas já está dormido. Tem que vir a vê-lo amanhã. —Não vim para ficar — se desculpou ele —. Tresh, queria falar uma coisa com você, se não se importar. —Em privado? — perguntou seu irmão —. Algo que não é apropriado para que minha duquesa escute? Valha-me Deus! Por certo, se livrou daquela mulher? Espero que não o tenha convencido de que lhe pagasse uma boa soma de dinheiro como suborno. —A senhorita Thornhill já não está em Pinewood Manor — respondeu Ferdinand com tensão. —Nesse caso, estou orgulhoso de você — disse seu irmão —. Sobre tudo se não lhe ofereceu dinheiro como suborno. Jane, vou deitar Christopher. E Ferdinand pode me acompanhar para me contar seu segredo. —Jane, se não se importa — disse ele enquanto fazia uma reverência a cunhada —, me despeço já e voltarei amanhã em uma hora decente. —Ferdinand, pode vir à hora que quiser — replicou ela com um sorriso afetuoso —. Quero que me conte isso tudo sobre Pinewood Manor. —Enfim, fale — insistiu Tresham quando chegaram à escada —. Em que confusão se colocou agora? E não perca tempo tentando me convencer de que não está metido em uma confusão. Sua cara sempre foi um livro aberto. —Eu gostaria de te pedir emprestada a casa — respondeu Ferdinand sem mais preâmbulos —. Refiro-me a sua outra casa, claro está. Se ainda é tua, que acredito seja. E se não estiver ocupada.


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—Está ocupada por duas pessoas — particularizou o irmão —. O senhor e a senhora Jacobs, o mordomo e a governanta. Não há nenhuma amante, se for a isso que se refere, que acredito que sim. Estou casado. E agora deixa ver se adivinho, embora espere estar muito equivocado. Você sim tem uma amante. Lilian Talbot, por acaso? —A senhorita Thornhill — o corrigiu Ferdinand. Tinham chegado à porta da habitação infantil, mas Tresham não fez gesto de entrar —. Necessita um lugar onde viver. Nega-se a aceitar Pinewood Manor e não serei o responsável a que volte a exercer a prostituição. —Nega-se a aceitar Pinewood Manor. — Tresham afirmou, não perguntou —. Ferdinand, suponho que ao final conquistou seu coração e lhe ofereceu a propriedade como presente. Entretanto, é muito orgulhosa para aceitar. Bom para ela. —Ela ganhou — explicou —. Fizemos uma aposta. Mas se negou a aceitar o que lhe correspondia. E depois fugiu. O que queria que fizesse? Um cavalheiro não perde uma aposta e fica com o prêmio combinado. Não seria honrável. O bebê, que a essas alturas já tinha fechado os olhos, gemeu e começou a mover-se, mas Tresham lhe deu uns tapinhas nas costas para tranquilizá-lo. —Não vou perguntar pelas condições da aposta — disse —. E peço por favor que não me ilumine a respeito. Tenho a horrível suspeita de que não iria gostar. Ela fugiu, você a perseguiu e agora é sua amante. Mas não tem um lugar onde alojá-la. Tudo tem sentido, sim — acrescentou com secura. —Preciso da casa para algumas noites — precisou o irmão —. Até que encontre algo por minha conta. —Ferdinand, se te interessa um conselho — replicou Tresham —, que estou seguro de que não vai interessar porque é um Dudley, lhe dê uma boa soma de dinheiro e deixa que parta. Não passará fome. Será assediada por uma horda de possíveis clientes assim que se corra a voz de que voltou para a cidade. Retorna a Pinewood Manor para não ter que escutar aqueles que se gabem de tê-la possuído. Acredito que encontrou seu lugar em Pinewood Manor. Surpreendeu-me descobrilo, mas assim é. —Só quero seu consentimento para usar a casa durante alguns dias — replicou Ferdinand com os dentes apertados —. Os dois criados que mencionou me deixarão entrar? —Farão se escrevo uma nota — respondeu seu irmão —. Coisa que farei assim que deixar Christopher aos cuidados da babá. Já se deitou com ela, Ferdinand? Não, não responda. Segue enrabichado dela? —Nunca disse…


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Entretanto, seu irmão abriu a porta da habitação e não se deteve para escutá-lo. Ferdinand o seguiu. As crianças dormiam na mesma estadia. Nicholas em uma cama e o bebê, em um berço. Ferdinand se aproximou de Nicholas enquanto o irmão deixava Christopher no berço. A babá entrou a toda pressa procedente da estadia contigua e os saudou com uma reverência. Enquanto olhava o cabelo alvoroçado de seu sobrinho, Ferdinand pensou que apenas alguns anos atrás era impensável que alguém pudesse domesticar Tresham. Certamente era impossível imaginá-lo com um bebê nos braços ou inclinado sobre um berço tal como estava nesse momento, agasalhando a diminuta forma do filho com uma manta. As aparências indicavam que seu irmão mais velho era um homem feliz com a família. Ferdinand sentiu uma inesperada pontada de inveja enquanto se despedia da babá lhe dando boa noite, depois do que saiu da habitação infantil diante do irmão. Então, por que demônios seu irmão não tinha vendido a casa? Saberia Jane da existência desta?

—Me acompanhe um instante à biblioteca — disse Tresham — para que escreva essa nota.

Onde a deixou? —Está lá fora, na carruagem — respondeu. Seu irmão não replicou. Viola não se moveu da carruagem, embora depois que lorde Ferdinand desaparecesse no interior da mansão do duque de Tresham esteve tentada a sair. O tílburi se deteve depois da carruagem, e Hannah esperava nele com o lacaio de lorde Ferdinand. Teria sido muito fácil chamar a criada, recolher as bolsas de viagem e perder-se agasalhadas pela crescente escuridão. Ou talvez não. Talvez acabaria descobrindo que no fundo só era uma espécie de prisioneira. Talvez algum dos criados de lorde Ferdinand as repreendesse, tentasse detê-las e alertasse à servidão da mansão. É obvio, ninguém poderia retê-la muito tempo contra sua vontade. Entretanto, poria lorde Ferdinand em ridículo diante de seus criados e dos do duque. Talvez inclusive diante do duque em pessoa. E não pensava lhe fazer algo assim. De repente, caiu em conta de que poderia estar em Pinewood Manor se quisesse. Sozinha. Como proprietária indisputável da propriedade. Que tola era por escolher partir a Londres. Não obstante, Pinewood Manor tinha perdido o poder de lhe proporcionar paz e segurança. Depois de ler pela primeira vez a carta de Claire, pensou que as rendas da propriedade serviriam para saldar a dívida com Kirby embora Pinewood Manor se arruinasse no processo. Não obstante, acabou


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chegando à conclusão de que esse homem não aceitaria dito acordo. A queria de volta, trabalhando para ele porque assim ganharia uma fortuna. Em caso de não ir ao chamado dele, a castigaria usando Claire. Lorde Ferdinand lhe pagaria muito bem para ser amante dele. Não cabia a menor duvida. Mas também sabia que Daniel Kirby não aceitaria parte desse dinheiro. Queria controlar sua carreira. Tinha analisado a situação a fundo, junto com todas as alternativas possíveis, durante o trajeto a Londres. Entretanto, olhasse por onde o olhasse, a conclusão sempre era a mesma, só havia uma: devia retomar sua vida de cortesã. Além disso, não suportava a ideia de ser a amante de lorde Ferdinand. Não queria fazer com ele o que tinham feito à beira do rio como parte de suas obrigações. Não queria ganhar dinheiro deitando-se com ele. Com Ferdinand não, Por Deus! A portinhola da carruagem se abriu, interrompendo o curso de seus pensamentos. Ele ocupou de novo o assento, a seu lado. Viola virou a cabeça, mas a escuridão reinante no interior do veículo a impediu de vê-lo com claridade. De todas as formas, estremeceu ao vê-lo e desejou ter tido coragem de fugir com Hannah enquanto ele seguia dentro da casa. Não suportava essa situação. —Estaremos ali em uns minutos — assegurou ele enquanto a carruagem ficava em movimento —. Deve estar muito cansada depois de uma viagem tão longa. —Sim. Lorde Ferdinand segurou a mão dela, que rodeou com seus fortes dedos. Entretanto, não fez gesto de aproximá-la dele nem de beijá-la, nem sequer tentou conversar. A tensão de seus dedos não relaxou em nenhum momento. Viola se perguntou se estava arrependido do acordo ao qual acreditava que tinham chegado. Perguntou-se se o duque de Tresham tentou convencê-lo de que o revogasse. Embora não importava. Nada importava. No dia seguinte lorde Ferdinand poderia voltar para Pinewood Manor. Aquele era o lugar dele. Embora lhe doesse admiti-lo. Não demoraria para esquecê-la. No dia seguinte ela poria em marcha seu futuro. De modo que só contava com essa noite. Fechou os olhos e apoiou a cabeça no fofo respaldo do assento. Sim, se daria de presente essa noite. A casa onde o duque de Tresham alojava as amantes ficava em uma vizinhança tranquila e respeitável. O criado que abriu a porta depois que lorde Ferdinand bateu também parecia o tipo de pessoa que trabalhava em uma casa respeitável. Igual a esposa, que saiu ao vestíbulo para averiguar


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quem tinha chegado e os saudou com uma reverência, primeiro a lorde Ferdinand e logo a ela, uma vez que se realizaram as apresentações e lorde Ferdinand lhes explicou que Viola se alojaria na casa alguns quantos dias. Ambos a olharam tal como se acostumou a que a olhassem: como se fosse uma dama digna de respeito. Claro que os tinham ensinado a comportar-se dessa forma. O duque de Tresham não teria tolerado criados que tratassem suas amantes como a vulgares vigaristas. —Mostrarei a casa à senhorita Thornhill — anunciou lorde Ferdinand, dirigindo-se ao mordomo —. Ordene que subam as bolsas ao dormitório e acompanhe a criada dela até os aposentos, se for tão amável. —Esteve aqui antes? — perguntou Viola enquanto ele a convidava a entrar a uma estadia situada a esquerda. —Não — admitiu —. Mas não é uma casa muito grande, assim não acredito que irei me perder. A sala de estar em que entraram estava elegantemente decorada em suaves tons cinza e lavandas. Era uma estadia muito feminina, embora lhe faltasse calor. Depois de examinar o lugar com olho crítico, Viola decidiu que era um bom lugar para que uma amante recebesse seu cliente antes de retirar-se ao dormitório. A estadia contigua não era tão elegante, mas sim muito mais acolhedora. Contava com algumas poltronas macias dispostas perto da lareira, assim como uma elegante escrivaninha e uma cadeira. Também havia um piano e uma estante cheia de livros. Diante de uma das poltronas viu um bastidor vazio e apoiado contra uma das paredes, um cavalete. As amantes do duque de Tresham, ou ao menos uma delas, tinham mantido sua própria personalidade. Que estranho que precisamente ela se surpreendesse ao descobrir algo semelhante. Havia algo nessa estadia que indicava que tinham vivido nela, que inclusive tinham sido felizes. Talvez, ser a amante fixa de um homem fosse preferível ao tipo de vida que tinha levado durante quatro anos, pensou. Talvez outorgasse a possibilidade de manter algum tipo de relação. Entretanto, quem quer que fosse a mulher que tinha sido feliz nessa estadia foi embora. O duque casou com sua duquesa. —Eu gosto deste gabinete — disse —. Nota-se que alguém o converteu em lar. Lorde Ferdinand também estava observando tudo, detendo-se em cada objeto, com o cenho levemente franzido. Entretanto, não fez comentário algum. Convidou-a a entrar na sala de jantar e depois subiram ao andar de cima. O dormitório foi uma surpresa total. Embora fosse uma estadia opulenta, decorada com cetim, veludo e com um grosso tapete no chão, não parecia o típico ninho de amor. Os homens


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sempre queriam tons vermelhos como molduras para seus deleites sensuais. No dormitório da Lilian Talbot preponderava a cor escarlate. O quarto que tinha diante estava decorado em tons verdes, cremes e dourados. Chegou à conclusão de que nessa estadia não se sentiria como uma cortesã, mas sim como uma mulher desfrutando de seu amante. Alegrou-se que fosse esse lugar o lugar onde ia passar suas últimas horas com lorde Ferdinand. Não seria uma cortesã, porque ele não pagaria, mas a habitação a ajudaria a vê-lo como um amante em vez de como um cliente. A porta que devia comunicar com o quarto de vestir e que ao entrar viu entre aberta se fechou desde a estadia contigua. Viola se virou para observar lorde Ferdinand. Estava no vão da porta com as mãos às costas e as longas pernas um tanto separadas. Pareceu-lhe muito bonito, poderoso e ligeiramente perigoso. E muito incômodo. Porque a situação, compreendeu Viola nesse momento, era nova para ele. —Servirá até que encontre outro lugar? — perguntou. —Sim, servirá — respondeu ela. Esses olhos escuros deixaram de olhá-la. —Deve estar muito cansada — comentou. —Sim, muito — admitiu. —Nesse caso já vou — disse —. Voltarei amanhã para comprovar que está cômoda. Suponho que o resto de sua bagagem chegará dentro de alguns quantos dias. Ontem enviei uma mensagem a Pinewood Manor. Lorde Ferdinand a deixaria em consideração ao cansaço que devia sentir depois de dois dias de viagem. Não esperava essa reação da parte dele. Que fácil fazia as coisas. Essa podia ser a última vez que se veriam, despedindo-se após uns minutos, antes de poder mudar de opinião. Mas não suportava a ideia de ficar só essa noite. Era muito cedo. Não teve a oportunidade de reunir coragem. No dia seguinte estaria preparada, mas essa noite… Cortou a distância que os separava e colocou as pontas dos dedos no torso. Ele não se moveu enquanto o olhava com um sorriso e arqueava o corpo até que estiveram colado dos quadris aos joelhos. —Estou muito cansada — repetiu — e pronta para ir à cama. E você? Viu-o ficar vermelho. —Não faça isso — disse, carrancudo —. Não faça, ouviu? Se quisesse uma puta, iria a um bordel. Não quero Lilian Talbot. Quero você. Quero Viola Thornhill. Viola compreendeu que tinha adotado sua outra personalidade de forma inconsciente, a fim de se proteger do sofrimento. A ideia de que Lilian Talbot lhe resultasse repulsiva, de que fosse Viola Thornhill quem o excitasse, a quem queria como amante, era estranha, pensou, e um pouco


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atemorizante. Separou-se dele e deixou cair os braços a ambos os lados do corpo. Se não colocasse a costumeira máscara, suas emoções ficariam a flor de pele. —Vamos ser sinceros um com o outro — disse lorde Ferdinand —. Tem que recorrer ao artifício, aos truques e aos jogos só porque vamos cercar uma relação sexual? Sabe, não é mesmo? Suponho que ficou vergonhosamente patente que foi minha primeira mulher. Deixe-me ser o primeiro homem de Viola Thornhill. Procuremos um pouco de consolo nesta relação, além de prazer. E inclusive um pouco de companhia. Acha que seria possível? Entretanto, Viola só atinou a menear a cabeça porque as lágrimas lhe provocaram um nó na garganta e empanaram os olhos. —Não sei — sussurrou. —Lilian Talbot não me interessa — seguiu ele —. Com ela me sentiria torpe e inadequado, entende? E sujo. É você ou nada. Toma ou deixa. Tinha chegado a hora da verdade. Tinha chegado a hora de lhe dizer que o enganou na carruagem ao obrigá-lo a concordar que eram livres para pôr fim à relação a qualquer momento. Tinha chegado a hora de lhe dizer que tinha a intenção de exercer dita liberdade pela manhã. Juntou-se de novo a ele e enterrou o rosto em sua gravata. —Ai, Ferdinand — disse.


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Capítulo Dezessete Ferdinand tinha a sensação de estar metido em um lago onde não dava pé. O instinto o convidava a afastar-se da borda para analisar a situação de uma distância segura. Se voltasse para seus aposentos, poderia assimilar o que estava acontecendo. Não era muito tarde. Poderia trocar de roupa e ir ao White’s, procurar alguns amigos, descobrir quais eram os entretenimentos dessa noite e escolher um ou dois. A vida voltaria a tomar um curso conhecido e cômodo. Assim era como se sentiam os homens com as amantes a princípio? Como se suas almas ansiassem a união, o consolo, a paz? O amor? Sofriam todos os homens a ilusão de que a mulher escolhida era sua alma geme? Devia ser muito inocente para sentir o que estava sentindo. Entretanto, sabia com uma claridade meridiana que o que ocorreu duas noites antes entre Viola e ele na borda do rio de Pinewood Manor havia confirmado o que sempre intuiu sobre si mesmo: preferia ser celibatário durante toda a vida antes de manter relações sexuais por simples desafogo. Abraçou-a e a beijou na boca quando ela jogou a cabeça para trás para olhá-lo. —Quer que fique? — perguntou. Entretanto, antes que pudesse responder a silenciou lhe colocando um dedo nos lábios —. Deve ser sincera. Jamais me deitarei contigo a menos que você também o deseje. Viola sorriu sob o dedo que a tinha silenciado. —E se nunca o desejo? —Nesse caso, procurarei outra alternativa para solucionar sua situação — respondeu —. Mas não vai retomar sua antiga vida. Não permitirei. O alegrou ver que o sorriso que lhe deu de presente foi o de Viola, não o dessa outra mulher. Um sorriso que parecia cheio de tristeza. —Acaso é assunto seu? — perguntou ela. —Certamente que sim — respondeu Ferdinand —. É minha mulher.


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Não a amante. Sua mulher. Porque era distinto. O disse sem pensar, mas sabia que as palavras eram certas. Sentia-se responsável por ela. Não tinha nenhuma obrigação legal nem nenhum direito a protegê-la nem de exigir obediência. Entretanto, era sua mulher. —Fica comigo — disse Viola —. Não quero ficar sozinha esta noite. E o desejo. Ferdinand esteve a ponto de dizer que podia confiar nele. Passou a maior parte da vida sem confiar em ninguém salvo em si mesmo, sabendo de que inclusive os seres queridos e mais próximos podiam defraudá-lo a qualquer momento e converter a terra que pisava em areias movediças. Tinha crédulo só em si mesmo e jamais fez algo que pudesse considerar realmente vergonhoso ou desonroso. De modo que podia confiar nele. Seria como o Rochedo de Gibraltar com tal de protegê-la. Mas de que forma dizer sem parecer um menino jactancioso e ridículo? Teria que demonstrar que podia confiar nele, simples e sinceramente. E isso só conseguiria com o passar do tempo. Enquanto isso, ela disse que o desejava. E Por Deus que ele a desejava também. O desejo levava todo o dia correndo pelas veias, como aconteceu no dia anterior, quando saiu a procura dela. Estreitou-a com força e a beijou com ânsia. Ela devolveu o abraço e o beijo. Entretanto, Ferdinand recordou de repente que apenas meia hora antes Viola estava sentada na carruagem e que não se detiveram para descansar na última casa de postas. —Vá ao quarto de vestir e fique cômoda — disse —. Volte dentro de dez minutos. Ela sorriu muito devagar. —Obrigada — replicou. Um quarto de hora mais tarde, Ferdinand agradeceu ter lhe dado esse tempo. Estava sentado na beira da cama, cujos lençóis já tinha afastado, quando ela retornou. Só vestia a calça de montar. Ela apareceu com uma camisola, talvez a mesma da noite que ele quebrou o vaso. Era branca, virginal e a cobria do pescoço até os pulsos e tornozelos. Estava descalça. Soltou o cabelo e o tinha escovado, de modo que brilhava como se fosse cobre brilhando. Caía pelas costas até lhe roçar quase o traseiro. Nem nua teria parecido mais desejável. Nem sequer envolta no brilho das cortinas vermelhas que tinha esperado encontrar no dormitório. Quando se aproximou dele, Ferdinand separou as pernas e estendeu as mãos para que se colocasse entre suas coxas, junto ao colchão. Aferrou-a pela estreita cintura e apoiou a cabeça entre os seios. A camisola cheirava a limpo. Igual a ela. Nesse momento descobriu que o perfume feminino mais excitante era o aroma de sabão e mulher. Sentiu que ela passava os dedos por seu cabelo com delicadeza. —Quer que me dispa? — perguntou ela—. Não estava segura.


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—Não. — Ferdinand se levantou e afastou os lençóis —. Deite-se. Deixe-me vê-la antes de apagar a vela. —Quer apagá-la? — perguntou Viola enquanto se deitava e colocava a camisola sobre os joelhos. —Sim. Não se tratava de que não quisesse vê-la. Nem muito menos o fazia porque se sentisse envergonhado ao despir-se. Afinal, estiveram nus à luz da lua fazia somente duas noites. Ignorava por que queria a escuridão. Por que queria que Viola ficasse com a camisola. Talvez porque ambas as coisas aumentavam a fantasia, a ilusão de que não eram um homem e a amante mantendo uma relação sexual para desfrute dele, e sim um casal que procurava carinho e consolo no corpo um do outro, na cama que compartilhavam todas as noites. Apagou a vela e se deitou junto a Viola depois de tirar a calça de montar e a cueca. Passou uma mão sob a cabeça dela, e ela se colocou de lado e procurou sua boca para beijá-lo. —Ferdinand, faça amor comigo — disse —. Como fez há duas noites. Por favor. Ninguém mais fez amor comigo. Só você. Foi o primeiro. Ferdinand deslizou as mãos por suas curvas, por cima da camisola. —Não sei como lhe dar prazer — confessou —. Mas aprenderei se for paciente comigo. Agradá-la é o mais importante do mundo para mim. —Já o faz — assegurou ela —. Nada nem ninguém me deu prazer como faz você. Como está fazendo agora. Suas carícias são maravilhosas. Cheira maravilhosamente. Ferdinand riu baixo. Lavou-se, mas não levava as colônias consigo. Compreendeu que a Viola não importava sua inexperiência. Talvez isso fosse mais excitante para Viola Thornhill que a mestria. Porque era com Viola Thornhill com quem estava fazendo amor. Por estranho que parecesse, tinha chegado virgem a ele. Sentia-se abençoado, e um tanto incômodo. Mas desterrou essa emoção. Só poderia protegê-la se a empregava como amante. Como não parecia molesta por sua falta de experiência, Ferdinand relaxou e decidiu que tampouco o incomodaria. Explorou-a com as mãos para gravar na memória todas as curvas de sua mulher enquanto o desejo convertia seu sangue em lava ardente e lhe provocava uma dolorosa ereção. Começou a descobrir os lugares, alguns totalmente inesperados, que ao acariciá-los arrancavam suaves gemidos ou ofegos. Começou a conhecê-la. E depois deslizou uma mão sob a camisola e subiu por uma das suaves coxas em direção a virilha. Estava molhada e quente. Ela separou as coxas e apoio as mãos nele enquanto a explorava com os dedos, enquanto descobria as dobras e os segredos, enquanto a penetrava. O desejo o


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torturou até um ponto quase insuportável quando sentiu que aprisionava seus dedos com os músculos internos. E nesse momento encontrou, quase por instinto, uma pequena protuberância que começou a esfregar. Soube imediatamente que tinha descoberto possivelmente a zona mais erógena de todas. Notou-a estremecer-se enquanto se aferrava aos flancos e gritava, presa do que só podia ser um orgasmo. Uma vez que relaxou, Ferdinand soltou uma breve gargalhada. —Tão bom sou? — perguntou. Ela riu também. Ao falar o fez com voz trêmula, sem fôlego. —Deve ser —respondeu —. O que fez? —É um segredo — aduziu —. Descobri que possuo talentos ocultos. De fato, resulta que sou um amante excelente. Riram juntos enquanto ele se erguia sobre um cotovelo para colocar-se sobre ela. Não haviam fechado as cortinas da janela. De modo que distinguia o rosto dela, emoldurado pelo halo escuro do cabelo sobre o travesseiro. —Com um ego enorme — acrescentou ela. —Sobre o enorme não discuto — replicou, esfregando o nariz contra o dela. Viola estalou a língua. —Concluso para sentença. A risada foi inesperada. E inesperadamente gratificante. —Me conceda um momento — disse Ferdinand — e demonstrarei que digo a verdade. Não tirou a camisola por completo. A fantasia resultava mais erótica que a nudez. Colocou-se sobre ela e se acomodou entre suas coxas. —Demonstre-me isso então — o desafiou —, para ditar sentença. Acredito que só está fanfarronando. Penetrou-a com uma investida poderosa e certeira. E teve que lutar contra o impulso de seguir movendo-se para alcançar o clímax. Entretanto, dessa vez ia prevenido. Resultou um pouco mais fácil. Queria tomar seu tempo. Queria dar tempo a Viola para que desfrutasse com ele. —Não — a ouviu dizer com uma voz surpreendentemente normal —. Não estava fanfarronando. Descarada. Desbocada. Bruxa. Mulher. Ferdinand se apoiou nos antebraços e a olhou com um sorriso. —Cinco minutos? — perguntou —. Ou dez? Quanto acha que sou capaz de aguentar? —Não aposto quando não tenho esperanças de ganhar — respondeu ela —. Quanto à pergunta de quanto o acho capaz de aguentar. Vamos ver… A soma das duas opções, acredito. Quinze minutos. — pôs-se a rir.


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Ferdinand começou a mover-se nesse momento, apoiando quase todo o peso nela. Suas investidas adotaram uma cadência lenta enquanto gozava das sensações, dos aromas, dos sons de seus corpos unidos, da certeza de que Viola desfrutava dessas mesmas coisas e do que estavam fazendo juntos. Juntos. Essa era a chave. Unidos. Em um só ser. Dois corpos unidos da forma mais íntima, encetados na imensamente prazenteira dança do sexo. Mas não só eram dois corpos. Não eram um homem qualquer com uma mulher qualquer. —Viola… — sussurrou ao ouvido. —Sim. Beijaram-se com paixão, sem interromper o ritmo de seus corpos. Entretanto, ela compreendeu, sem sombra de dúvida!, O que quis dizer ao pronunciar seu nome. E o devolveu após alguns instantes. —Ferdinand… —Sim. Voltaram a beijar-se. E depois ele enterrou o rosto no fragrante e sedoso cabelo, enquanto intensificava o ritmo das investidas até sentir que todos os músculos de seu corpo se esticavam e o aproximavam mais e mais e mais… Um bom momento depois, enquanto percebia que estava estendido sobre ela como um peso morto e se afastava, pensou que tudo se resumia em um antes e em um depois. E no conhecimento de que entre ambos conceitos existia uma experiência sem nome, inexprimível e inexplicável, que levava consigo a paz, o esgotamento e a certeza de ter espiado o paraíso e tê-lo esquecido por completo durante a eternidade desse instante atemporal. Tinham experimentado juntos. Não a ouviu de forma consciente, mas sabia que Viola havia gritado. Assim como ele. Embora carecia de experiência, o instinto lhe dizia que haviam compartilhado algo raro e precioso. Tiveram um vislumbre juntos do paraíso. Seus amigos o levariam arrastado a um manicômio e o trancaria se alguma vez lhe ocorresse soltar semelhantes bobagens diante deles, pensou. As conversas de seus conhecidos a respeito das mulheres eram bem mais mundanas e vulgares. Desceu a camisola de Viola e a aproximou de seu corpo. Beijou-a no cocuruto. —Obrigado — disse. A noite foi a melhor das agonias. Depois de fazer amor descobriram que estavam famintos, de modo que se vestiram e desceram para dar conta do jantar frio que Ferdinand havia ordenado preparar nada mais ao chegar. Era tarde quando acabaram de comer e de conversar. Viola supôs


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que Ferdinand partiria. Entretanto, ele estendeu um braço por cima da mesa para lhe cobrir uma mão com a sua e perguntou se queria que ficasse. Respondeu que sim. Dormiram juntos. E fizeram amor duas vezes mais, uma quando voltaram para a cama e outra antes de levantar, pela manhã. Entretanto, o mais doloroso foi dormir com ele. Despertou em várias ocasiões, sobressaltada, e cada vez que o fez o encontrava a seu lado, às vezes de costas a ela, mas quase sempre abraçando-a, enredados nos lençóis. Estar juntos dessa forma lhe resultou inclusive mais íntimo que o sexo. E muito mais tentador. Doía a cabeça quando se sentou à mesa para tomar o café da manhã. Ferdinand usava a roupa do dia anterior e não estava tão arrumado como de costume. Ainda tinha o cabelo alvoroçado, embora tivesse se penteado. Estava sem barbear-se. Estava muito bonito. —Hoje tenho que fazer algumas coisas — estava dizendo —, entre elas ir para casa trocar de roupa, um detalhe importante. — Sorriu e esfregou o queixo com uma mão —. E para me livrar desta barba. Embora seja possível que possa passar esta tarde por aqui. Temos que combinar a quantidade de dinheiro que receberá e assim nos esquecermos do assunto e não voltarmos a mencioná-lo. Essa parte de nosso acordo me resulta um pouco desagradável, não acha? —Mas é essencial. — Viola sorriu e o observou para memorizar sua imagem. Esses gestos nervosos e a atitude um pouco infantil, tão típicos dele. O pronto sorriso, embora a princípio lhe pareceu artificial. A segurança em si mesmo, que em ocasiões podia confundir-se com arrogância inerente a seu status social e a sua educação. E a aura de temeridade e perigo que o liberava de parecer um molengo. —Suponho que Jane, a duquesa, convidar-me-á para jantar esta noite — seguiu —. Prometi a ela que passaria hoje por sua casa para ver os meninos. Ontem à noite estavam dormidos. E se não for Jane, será Angie. Lady Heyward, minha irmã. Irá me buscar assim que descubra que voltei para a cidade. Viola manteve o sorriso. Ferdinand tinha família. Uma família a cujos membros amava mais do que pensava. Seu tom de voz deixava claro que estava desejando voltar a vê-los. A distância que os separava era um abismo infranqueável. Como amante ocuparia um lugar periférico na vida dele e realizaria um serviço desprezível, embora essencial. E só durante uma semana ou alguns meses, até que se cansasse dela. Sua família, entretanto, seria para sempre. Essas reflexões reforçaram a decisão que havia tomado. —Mas não demorarei muito. — Ferdinand estendeu um braço por cima da mesa, tal como fez a noite anterior, e segurou uma mão dela com um gesto carinhoso —. Não permitirei que me


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enrolem para acompanhá-los ao baile, à velada ou ao concerto ao qual tenham planejado assistir esta noite. — Deu um apertão —. Mal posso esperar. —Eu também. — Sorriu. —De verdade, Viola? — Esses olhos escuros a olharam de forma penetrante —. De verdade que não é só um trabalho para você? De verdade…? —Ferdinand… — Levantou suas mãos unidas e colocou o dorso da do Ferdinand na bochecha. A demonstração de insegurança e de vulnerabilidade, tão diferentes à imagem que oferecia ao mundo, romperam-lhe o coração —. É impossível que duvide sequer. Não depois de ontem à noite. Por favor, não se torture. Jamais. —Não. — Ferdinand riu entre dentes —. Não o farei. Mas não gosto deste acerto, Viola, e não me importa dizer isso. Deveria voltar para o campo, deveria voltar a ser a senhorita Thornhill de Pinewood Manor. Ou deveria ser minha esposa. Lady Ferdinand Dudley. Deveria ser. Não me importa que seja órfã de pai ou que fizesse o que fez para poder comer. Não me importa o que pensem as pessoas. De todas as formas, sou o tipo de homem que todo mundo espera ver metido em algum apuro. —Ferdinand, casar comigo seria muito mais que um apuro — replicou ela, apesar do nó que tinha na garganta. —Façamos — disse ele com entusiasmo —. Assim sem mais. Comprarei uma licença especial e…

—Não! — Viola virou a cabeça para lhe beijar o dorso da mão antes de soltar e ficar de pé. —É o que fizeram Tresham e Jane — se apressou a acrescentar ele enquanto a imitava e se

levantava —. Saíram uma manhã e se casaram enquanto Angie e eu ideávamos a forma de convencê-lo para que a pedisse em casamento. Anunciou as bodas naquela mesma noite, durante um baile. Acredito que não se arrependeu. Acredito que são felizes. Ser a esposa do Ferdinand. Poder voltar a Pinewood Manor com ele… —Em nosso caso não funcionaria, meu amor — assegurou em voz baixa, e se sobressaltou ao compreender que tinha pronunciado o apelido afetuoso em voz alta —. Deve ir. Tem coisas que fazer. —Sim. — Agarrou-lhe as mãos e as levou aos lábios, primeiro uma e logo a outra —. Eu gostaria de tê-la conhecido faz seis ou sete anos, Viola. Antes de… enfim, antes. O que fazia naquele tempo? —Certamente estava servindo café na estalagem do meu tio — respondeu —. E você estava nas poeirentas profundidades de alguma biblioteca de Oxford, estudando os declínios latinos. Vá.


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—Até mais tarde, então. — Não havia soltado as mãos dela. Inclinou-se para frente e lhe deu um beijo fugaz nos lábios —. Poderia se converter em um vício. Lhe advirto. — Sorriu enquanto se virava para sair da sala de jantar. Viola pensou que era apropriado que a última imagem que tivesse dele fosse quase idêntica à primeira. Ou quase à primeira. Porque também estava sorrindo dessa maneira quando seus olhares se cruzaram no povoado, depois da corrida de sacos. Naquele tempo era um belo forasteiro. Nesse momento era o amor de sua vida. Seguiu de pé junto à mesa da sala de jantar até que ouviu que fechava a porta principal. Aferrou-se ao respaldo da cadeira com os olhos fechados. Depois respirou fundo e foi em busca da Hannah.

Capítulo Dezoito Era meia amanhã quando Ferdinand se encaminhou aos escritórios de Selby e Braithwaite. Por sorte, Selby ficou livre e pôde atendê-lo cinco minutos depois que chegasse. —Milord — o saudou o advogado, que o recebeu na porta do escritório e lhe estreitou a mão com afabilidade —, voltou para Londres para desfrutar do resto da temporada social, não é? Espero que Pinewood Manor tenha resultado de seu agrado. Inteirei-me pelo duque dos pequenos


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inconvenientes que se encontrou ao chegar, mas confio em que já tenha solucionado tudo. Sente-se e me diga no que posso ajudá-lo. Matthew Selby, um homem de meia idade, amável e de cabelo encrespado, era a viva imagem do respeitável pai de família. Também era um dos advogados mais tenazes de toda Londres. —Selby, pode me ajudar transferindo a propriedade de Pinewood Manor à senhorita Viola Thornhill. Quero que se faça legalmente e por escrito para que não fiquem dúvidas sobre o assunto. —É a dama que você encontrou residindo na propriedade — precisou o advogado com o cenho franzido —. Sua Excelência mencionou seu nome. Não tem direito legal sobre a propriedade, milord. Embora Sua Excelência insistiu em visitar os escritórios do Westinghouse e Filhos em pessoa, eu também realizei minha própria investigação, dado que o tenho por um bom cliente. —Se ela tivesse algum direito legal, esta conversa seria desnecessária, não lhe parece? — replicou Ferdinand —. Prepare os documentos necessários para que eu os assine. Quero que se faça hoje. Selby tirou os óculos, que costumava usar a meia altura sobre o nariz, e olhou Ferdinand com preocupação paternal, como se fosse um menino incapaz de tomar uma decisão racional por conta própria. —Se me permitir o atrevimento, milord — disse o homem —, não deveria consultar o assunto com o duque de Tresham antes de tomar uma decisão apressada? Ferdinand o atravessou com o olhar. —Tresham tem algum direito sobre Pinewood Manor? — perguntou —. É meu tutor legal? —Peço desculpas, milord — disse Selby —, mas acredito que poderia ajudá-lo a tomar uma decisão acertada. —Está de acordo que Pinewood Manor é minha? — insistiu Ferdinand —. Acaba de dizer. Investigou o assunto e descobriu que não há dúvida alguma a respeito. —Nem a mais remota, milord. Mas… —Nesse caso, estou em meu direito de dar de presente Pinewood Manor — o interrompeu Ferdinand —. E vou dar de presente. À senhorita Viola Thornhill. Quero que prepare a papelada, Selby, para ficar tranquilo sabendo que tudo está em ordem. Não quero que dentro de dois anos apareça de repente alguém em Pinewood Manor dizendo que ganhou a dita propriedade em uma partida de cartas e chute de lá. Agora bem, prepare os documentos ou vou a outra parte? Selby o olhou do outro lado da escrivaninha com expressão de recriminação enquanto colocava de novo os óculos. —Já me encarrego eu, milord — respondeu.


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—Bom. — Ferdinand se acomodou na cadeira e cruzou as pernas à altura dos tornozelos —. Pois faça-o. Esperarei aqui mesmo. Enquanto o fazia, seus pensamentos voaram a Pinewood Manor e a Trellick. O coro ensaiaria sem ele essa semana. Jamie não receberia suas aulas de latim. As senhoras teriam que forçar a vista costurando no pessimamente iluminado salão paroquial em vez de fazê-lo no salão de Pinewood Manor. A construção das casas dos arrendatários sofreria um atraso… E recordou certo lugar na beira do rio onde a água redemoinhava, e onde as margaridas e os ranúnculos cresciam entre a grama. Recordou a ladeira de uma colina pela qual uma mulher tinha descido correndo entre gargalhadas. Recordou uma moça com margaridas no cabelo. Bom, disse para si mesmo ao sair do escritório do advogado. Já não tinha sentido seguir pensando nisso, já não tinha nada a ver com ele. Nessa ocasião Viola deveria aceitar o presente. Não ficaria outra alternativa. Entregaria a escritura essa tarde. É obvio, pensou enquanto seus passos fraquejavam e perdiam o ritmo, isso queria dizer que já não estaria obrigada a ser sua amante. Claro que só foi um oferecimento desesperado da parte dele. Na realidade, não queria que Viola Thornhill fosse sua amante. Queria que… Enfim, queria-a sem mais. Mas teria que se arrumar sem ela, não é? Assim eram as coisas. É obvio… —Pensando na morte da bezerra, Ferdinand? Levantou a vista e viu que o irmão percorria a rua em direção contrária a lombos do cavalo. —Tresham — o saudou. —Está muito abatido, além disso — comentou o duque —. Suponho que ela não aceitou as condições. Não vale a pena ficar assim pelas mulheres de sua classe, acredite. Gostaria de passar um momento no salão de boxe do Jackson e testar seus punhos comigo? Dar murros costuma a ser um remédio maravilhoso para o orgulho ferido. —Onde está Jane? — perguntou Ferdinand. Seu irmão arqueou as sobrancelhas. —Angeline a levou às compras — respondeu ele —. Suponho que isso significa um chapéu novo no mínimo. Para nossa irmã, é obvio. Pergunto-me por que Heyward a agrada pagando as faturas. Acredito que tem um chapéu para cada dia do ano… trocando várias vezes ao dia. Ferdinand fez uma careta. —Tomara que Jane refreie seu péssimo gosto — comentou —. Nossa irmã nasceu com o grave problema de falta de estilo. —Hoje usava uma monstruosidade de tons púrpura — assinalou o irmão —, com uma pluma de cor amarela canário de um metro de altura ondeando ao vento. Cometi o engano de olhá-lo


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através do monóculo. Não sabe quanto agradeci que fosse minha duquesa quem se mostraria com ela em público e não eu. —Compreendo você — acrescentou Ferdinand com veemência e seguiu sem dar-se tempo a refletir. Tresham não era a pessoa mais indicada para contar essas coisas, embora não era de sua incumbência —. Venho dos escritórios do Selby. Cedi Pinewood Manor à senhorita Thornhill. Seu irmão o atravessou com um olhar inescrutável. —É imbecil, Ferdinand — disse ao final —. Mas devemos ver o lado positivo. Dessa forma retornará à propriedade e sairá de sua vida. Enfim, não é muito conveniente apaixonar-se pela amante. Sobre tudo de uma com tanta notoriedade. Nesse momento se fez a luz na cabeça do Ferdinand. A estadia que viu a noite anterior, onde descansavam o piano, o cavalete… e o bastidor. Algo nela o desconcertava. Tresham tocava piano. Também pintava. Entretanto, ditos talentos tinham permanecido reprimidos e ocultos até que Jane começou a obrar sua magia. Seu pai havia educado os filhos na crença de que a arte e a música eram afeições efeminadas. Tinha conseguido que o primogênito se envergonhasse de seu talento. Inclusive a essas alturas Tresham raramente tocava para alguém que não fosse Jane. E só pintava quando ela o acompanhava, sentada em silencio na mesma estadia, bordando em seu bastidor. Tinha uma maravilhosa habilidade com a agulha. Aquela habitação! —Mas você o fez — repôs enquanto olhava o irmão com os olhos entrecerrados —. Se apaixonou por sua amante, Tresham. Casou com ela. De repente, encontrou-se sendo objeto de um dos famosos olhares do Tresham. —Quem lhe disse isso? — A voz de seu irmão sempre era mais grave e mais agradável quanto mais furioso estava. —Certa estadia de certa casa — respondeu ele. Entretanto, não só era por essa habitação. Também havia o dormitório, com a inesperada elegância em tons verdes e cremes. Apostaria a cabeça que Jane era a responsável por dita estadia. Tinha um gosto delicioso para o desenho e a cor. Foi a amante do Tresham. Por fim compreendia por que o irmão não tinha vendido a casa. —Será melhor que alugue a casa, Tresham — disse enquanto o irmão seguia olhando-o com os lábios apertados —. Estou convencido de que não será durante muito tempo. Certamente volte para Pinewood Manor assim que saiba que é dela, tanto se gosta como se não. Então poderá relaxar. Seu irmãozinho estará a salvo das garras de uma mulher infame. Diferente de você. Todo mundo acreditava que sua amante era uma assassina.


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—Pelo amor de Deus, Ferdinand! — Tresham apoiou um braço na sela e começou a golpear a bota com a vara —. Tem vontade de morrer? Deixa que te dê um conselho, irmãozinho. Ponha uma pistola entre meus olhos e puxa o gatilho se preferir, mas não manche o bom nome de minha duquesa. Não penso permitir isso. —E eu, droga, não penso permitir que manche o da senhorita Thornhill — repôs Ferdinand. Seu irmão se endireitou. —A que vem tudo isto? — quis saber —. Tanto o incomodará que se vá? A vida ficaria muito vazia sem ela, sim. Perderia muito o estímulo. Entretanto, supôs que seguiria adiante como facilmente pudesse. Não se podia morrer de uma enfermidade tão ridícula como um desengano amoroso. Além disso, desde quando sentia algo assim por ela? Desde que se deitaram juntos? Certamente só foi um caso típico de luxúria. Nada sério. —O assunto é que não deixo de pensar que se não tivesse cedido a propriedade esta manhã ou se não lhe dou a escritura, seguiria sendo minha amante — confessou —. E a tentação é muito forte. Mas seria errado. Seria, Tresh. Não me importa o que tenha feito no passado. Seguro que tinha seus motivos. Mas, verá, agora é a senhorita Thornhill de Pinewood Manor. É uma dama. E não posso suportar porque já a manchei e porque quero seguir fazendo-o embora seu lugar seja lá. E que me parta um raio, mas tampouco suporto a ideia de que ela vá embora. E caso te ocorra soltar um comentário jocoso pelas bobagens que estou dizendo, puxo-o do cavalo e o deixo sem dentes com um soco. Juro-lhe isso. Seu irmão o olhou com expressão pensativa um momento antes de desmontar e colocar-se junto a ele. —Venha o clube do Jackson — disse — e me dê uma surra se assim se sentir melhor… e se puder, claro. Embora prefira que não toque nos dentes, por favor. Que estranho, não sabia que estivesse procurando esposa, Ferdinand. Embora aí esteja a essência da questão. Talvez deveria supor que quando por fim caísse, faria de forma estrepitosa. Passou muito tempo, a tarde já estava bem avançada, antes que Ferdinand retornasse à casa. Tinha acompanhado Tresham a dele depois de manter um combate de boxe que acabou em empate. Angie estava em Dudley House, de modo que tiveram que suportar o bate-papo de sua irmã e se viram obrigados a contemplar seu novo chapéu. Continuando, esteve lutando com o sobrinho sobre o tapete, depois que Tresham foi buscá-lo à habitação infantil para que tomasse o chá com eles. Angie e Jane tentaram convencê-lo de que jantasse com uma delas. Ao final ganhou Angie, embora lhe assegurou que não a acompanharia ao baile de lady Grosnick mais tarde…


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Segundo sua irmã, Heyward ia acompanhá-la, mas Ferdinand já sabia o pouco que dançava seu irritante marido, o que queria dizer que não dançaria absolutamente, enquanto ele era um excelente bailarino e ser seu par a converteria na inveja de todas as damas presentes. Quando por fim chegou à casa, não estava muito seguro de como agir. Dava a escritura da propriedade sem preâmbulos e dizia que Pinewood Manor era dela o quisesse ou não? Ou reservava a notícia até a noite? Talvez poderiam deitar-se essa tarde. Seria desonroso? Maldita fosse a honra! Podia converter-se em um desmancha-prazeres espantoso e em uma peso sobre a consciência. —Diga à senhorita Thornhill que cheguei — ordenou ao Jacobs quando este o deixou entrar —. Onde está? —Não se encontra na casa, milord — respondeu o mordomo enquanto pegava seu chapéu e bengala. Droga! Não tinha pensado na possibilidade de que tivesse saído. Claro que fazia uma tarde maravilhosa. Sem dúvida desejou dar um passeio ao ar livre. —Esperarei — anunciou —. Disse quando voltaria? —Não, milord. —Acompanhava-a a criada? — Ferdinand franziu o cenho. Estavam em Londres. Não ia permitir que saísse à rua sem uma acompanhante. —Sim, milord. Entrou na estadia onde se encontrava o piano e deu uma olhada ao redor. Como era possível que não notou a verdade assim que viu a habitação pela primeira vez?, Perguntou-se. Era de Jane e Tresham (quando estava com Jane) sem sombra de dúvidas. Um lugar estranhamente acolhedor, embora o bastidor, o cavalete e o suporte de livro para as partituras estivessem vazios. Adoraria passar algum tempo com Viola nessa estadia. Nela se sentiria como sua companheira além de como amante. Falariam, leriam e desfrutariam da companhia. Sentir-se-ia quase como uma esposa. Entretanto, ele não queria uma esposa, recordou-se… nem tampouco uma amante. Queria que Viola retornasse a Pinewood Manor como proprietária. Embora isso significasse não voltar a vêla, só porque era o que ela queria. Saiu da estadia, desorientado, e perambulou pela casa até subir a escada e entrar no dormitório. Uma vez ali, sentou-se na cama e passou uma mão pelo travesseiro sobre o qual repousou a cabeça de Viola a noite anterior. Quem dera… Teve que engolir para desfazer o nó que tinha na garganta antes de continuar com o pensamento: quem dera retornasse a sua casa. Talvez transcorrido um tempo poderia ir ao povoado, hospedar-se no Cabeça do Javali, ir vêla, cortejá-la…


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Entrou no quarto de vestir adjacente. Parecia vazio. Certo que ela só se levou uma bolsa de viagem de Pinewood Manor, mas deveria haver um pente, uma escova ou qualquer outro objeto sobre a penteadeira. Só havia uma folha de papel apoiado contra o espelho. Atravessou a estadia com passo hesitante, consciente do que era. Seu nome estava escrito no exterior com a conhecida e pulcra caligrafia. Era tão parca como a anterior. Combinamos que podemos terminar nossa relação a qualquer momento. Decidi terminá-la agora. Volte para Pinewood Manor. Acredito que ali poderá encontrar a satisfação que leva procurando toda sua vida de adulto. Que seja feliz. VIOLA De modo que ao final tinha escapado. Nesse momento compreendeu que essa foi a intenção dela desde o começo. Depois de analisar tudo, recordou que nunca aceitou explicitamente ser sua amante, só conveio em acompanhá-lo até essa casa e depois conseguiu sua promessa de que poderia ir quando quisesse. Havia desaparecido na imensidão de Londres. A noite anterior não havia significado nada para ela. Ele não significava nada para ela. Preferia a vida de cortesã. A escolha dela carecia de sentido para ele. Mas era necessário que tivesse? Não ia aprender nunca? Enrugou a carta e a jogou ao chão. —Droga! — exclamou em voz alta. E depois se surpreendeu e se envergonhou, quase tanto como se houvesse testemunhas presente, quando lhe escapou um soluço, seguido de outro, e se viu incapaz de reprimir a dor que o consumiu. —Droga! — exclamou entre soluços —. O que quer de mim? O silêncio que recebeu em resposta foi eloquente: «Nada de nada», disse. Viola voltava para casa. A casa, à estalagem de seu tio para ver a mãe e as irmãs. E para encontrar-se com Daniel Kirby e chegar a algum tipo de acordo a respeito de seu futuro. Entretanto, embora se negasse a passar pela agonia da esperança, pensava lutar com unhas e dentes até o final. Bolsa em mão e acompanhada por Hannah, foi primeiro a direção contrária à estalagem. Tinha que visitar alguém.


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Sentou-se e esperou com teimosia durante três horas na suja sala de espera dos escritórios dos advogados Westinghouse e Filhos, antes que a recebesse o sócio mais jovem para lhe assegurar que no testamento do falecido conde de Bamber não aparecia o nome da senhorita Viola Thornhill. —Bom, Hannah — disse ao partir —, tampouco esperava que dissessem o contrário, na verdade. Mas tinha que escutar com meus próprios ouvidos. —Aonde vamos agora, senhorita Vi? Hannah não tinha gostado do destino da noite anterior. Mas nessa manhã tampouco havia gostado que partissem. Queria que suplicasse a lorde Ferdinand para obter sua compaixão, que contasse tudo, que rogasse que lhe emprestasse o dinheiro para pagar Daniel Kirby. Ferdinand estava quase totalmente apaixonado por ela, segundo sua criada. Inclusive poderia lhe propor matrimônio se jogava bem as cartas. Jamais! Não ia suplicar que lhe desse dinheiro, não pensava afligi-lo com seus problemas e se negava a seduzi-lo para que se casasse com ela, porque ele se arrependeria o resto da vida. —Vamos ver o conde de Bamber — disse em resposta à pergunta da Hannah. Era meia tarde quando por fim chegaram. A probabilidade de que não se encontrasse em casa era muito alta. Talvez nem sequer a recebesse em caso contrário. Era escandaloso que uma dama visitasse um cavalheiro solteiro, embora fosse acompanhada da criada. O olhar que lhe deu o mordomo do conde ao abrir a porta confirmou seus temores. Certamente não teria conseguido nem pôr um pé no vestíbulo se não fosse porque o conde em pessoa chegou em casa justo quando ela discutia com o criado. —A quem temos aqui? — perguntou o conde enquanto subia os degraus para colocar-se atrás dela, percorrendo-a com o olhar. Era um homem baixo, gordinho, de cabelo loiro e tez corada. Não se parecia absolutamente ao pai. —Sou Viola Thornhill — respondeu ela, virando-se para olhá-lo. —Que me crucifiquem. — Franziu o cenho —. A ditosa mulher em pessoa e em minha porta. Estou muito farto de escutar seu nome. Não penso deixar que me incomode. Assim vá. Fora! —Minha mãe foi sua preceptora em outro tempo — recordou ela. Por um instante, Viola acreditou que ia ordenar de novo que se fosse, mas seu rosto adotou uma expressão muito estranha. —Hillie? — perguntou ele —. Só tive uma precptora, antes de ir ao colégio. Chamava-se Hillie. —Rosamond Thornhill — repôs Viola —. Minha mãe. Os olhos avermelhados do conde mudaram de expressão quando por fim atou cabos.


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—Será melhor que entre — a convidou a contra gosto antes de entrar na casa em primeiro lugar e dirigir-se a um salãozinho. Hannah os seguiu e ficou em silencio junto à porta uma vez que o conde a fechou. —Quem demônios é você? — quis saber ele. —Minha mãe foi a amante de seu pai durante dez anos — respondeu —. Também era meu pai. O conde a olhou com expressão séria. —O que quer de mim? — exigiu saber —. Se tiver vindo me pedir dinheiro… —O vi pouco antes de morrer — disse —. Estava decidido a assegurar meu futuro. Me enviou a Pinewood Manor. Disse que era uma de suas propriedades menores e que não estava vinculada ao título. Afirmou não tê-la visto em pessoa. Mas acreditava que se encontrava em uma recôndita paragem da Inglaterra, um lugar adequado, e que me podia oferecer uma vida acomodada se a administrasse bem. Ia modificar o testamento para que fosse minha. —Pois não o fez — replicou ele —. Grande ocorrência… —Ele me queria — o interrompeu —. Sempre me amou. Nunca duvidei de seu carinho quando era menina, antes que minha mãe se casasse. Duvidei depois porque de repente não voltou para me ver nem a me escrever. Mas foi por culpa de minha mãe, conforme descobri mais tarde. Cortou toda relação com ele e se negou inclusive a que me visitasse. Destruiu todas as cartas e os presentes que me mandou. Encontrei com ele por acaso no parque. Mas isso não importa. Seguro que não lhe interessam os detalhes. Você convenceu o senhor Westinghouse para que eliminasse a nova cláusula do testamento? O vulgar impropério que soltou o conde a convenceu de que ele não era o vilão da obra. —Fora daqui — ordenou ele —, antes a que a expulse. —Poderia ter redigido um novo testamento com outros advogados? — perguntou, fazendo caso omisso da furiosa ordem —. Verá, não só está em jogo Pinewood Manor. Há outro documento, um que me assegurou ter registrado oficialmente com seu advogado para que nunca se pudesse pôr em dúvida a questão. Saldou algumas notas promissórias para me liberar de uma obrigação e para evitar que minha mãe fosse ao cárcere de devedores. Fez que o homem em posse de ditas notas promissórias assinasse um recibo onde reconhecia que todas as dívidas estavam saldadas, que não havia mais e que rechaçava empreender ações em caso de aparecessem mais faturas sem pagar com data anterior à assinatura do acordo. —Que demônios! — exclamou o conde de Bamber. —Esse homem descobriu novas dívidas — continuou Viola — e exige seu pagamento. —E espera que eu…?


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—Não! — interrompeu-o —. Meu pai me resgatou… da vida de prostituição que me obrigavam a exercer para pagar as dívidas. Encarregou-se de me proporcionar um futuro para que pudesse viver em paz, com segurança, o resto de minha vida. Não lhe peço nada, milord. Salvo que não negue a meu pai seu último desejo. Esse recibo é de vital importância para mim. Seu pai me queria. Sou sua filha tanto como você, embora eu tenha nascido fora do casamento. O conde a olhou fixamente durante um bom momento, depois do qual passou uma mão pelo cabelo e afastou a vista para cravá-la na lareira. —Droga! — exclamou ele —. Por que me ocorreria ir ao Brookes’s aquela noite? Essa ditosa propriedade não me deu mais que problemas após. Pois não mudou o testamento, assim claramente o digo. E não há recibo algum. Westinghouse teria me dito. Ao menos teria reconhecido seu nome, não? —E não há possibilidade de que o fizesse com outros advogados? O conde começou a tamborilar com os dedos sobre o suporte da lareira que tinha diante. —Pergunto-me se minha mãe sabia de Hillie — resmungou —. E de você. Com certeza que sim. Minha mãe sempre sabe tudo. Viola esperou. —Sinto — disse o conde ao final, e se virou para ela com brutalidade —. Não posso ajudá-la. E tampouco posso mandá-la de volta a Pinewood Manor mesmo que quisesse… Algo que não gostaria especialmente. Por que faria? Só é a bastarda de meu pai. Pinewood Manor é do Dudley. Vá suplicar lhe a ele. Esperam-me para jantar. Assim tem que ir. Não havia nada mais a dizer. Viola partiu com Hannah. Parecia que não havia maneira de livrar-se de seu inevitável futuro. Empreenderam o longo de retorno a casa.


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Capítulo Dezenove —Nunca o vi tão desanimado, Ferdinand — se queixou lady Heyward —. Pensava que várias anedotas que nos contar sobre Pinewood Manor e suas duas semanas no campo. Em troca, limitate a responder a nossas perguntas com respostas totalmente irrelevantes. —Não sei, Angie — replicou ele, irritado —, talvez é porque tentar conversar estando você presente é impossível. Além disso, o jantar é estupendo e merece que o saboreemos. Felicite a sua cozinheira de minha parte, certo? —Que injusto! — exclamou sua irmã —. Não é verdade que é injusto, Jane? É verdade ou não que lhe fiz suficientes perguntas para que se lançasse a falar sobre Pinewood Manor? E não é verdade que guardei silêncio depois a fim de lhe conceder o tempo necessário para que respondesse? —Na realidade, não há nada que… — começou Ferdinand. —É obvio que deve haver muito que contar! — interrompeu-o —. Quem eram seus vizinhos? O que…? —Angie — disse Ferdinand com firmeza —, Pinewood Manor já não me pertence. Não vale a pena falar sobre a propriedade. —Jocelyn me disse que cedeu legalmente a propriedade à senhorita Thornhill, Ferdinand — atravessou a duquesa de Tresham —. O admiro muitíssimo por ter realizado um gesto tão honrável. —Fez isso, Ferdie? — Sua irmã o olhava atônita, com os olhos muito abertos. —Devolveu Pinewood Manor à senhorita Thornhill — particularizou Jane —, porque acreditava que ela tinha mais direito à propriedade que ele. Estou muito orgulhosa de você, Ferdinand. Jocelyn me disse que é um lugar precioso.


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—Acha que foi um gesto sensato, Ferdinand? — perguntou lorde Heyward —. Poderia ter se convertido em uma propriedade muito próspera e conveniente para você. —Por fim entendo tudo! — exclamou Angeline —. Ferdinand está apaixonado! —Pelo amor de Deus! — replicou ele. —Está apaixonado pela tal senhorita Thornhill — insistiu sua irmã —. Que maravilha! E por isso fez o magnífico gesto de lhe devolver Pinewood Manor. Mas deve retornar. Seguro que se lance a seus braços e se desfaça em lágrimas nada mais ao vê-lo. Tenho que estar presente para ser testemunha disso. Me leve contigo. Heyward, posso ir? De todas as formas, você passa o dia inteiro na Câmara dos Lordes, e sabe que será um alívio não ter que me acompanhar pelas noites a nenhum ato social durante algumas semanas. Teremos tempo para organizar uma fastuosa bodas em Saint George antes que acabe a temporada social. E depois celebraremos um esplêndido baile aqui. Jane, deve me ajudar. Tresh e você me privaram da oportunidade de lhes organizar suas bodas ao casarem uma manhã sem mais companhia que a do secretário e sua criada. Que desperdício. No caso do Ferdinand, faremos muito melhor. —Angie! — repreendeu-a o aludido com firmeza —. Deixe-o já. — Seu olhar se encontrou com o do irmão, sentado do outro lado da mesa. Tresham se limitou a arquear as sobrancelhas, apertar os lábios e a seguir comendo do prato. —Querida, acredito que está envergonhando seu irmão — disse Heyward. —Homens! — exclamou Angeline —. Sempre se envergonham assim que se mencionam o amor ou o matrimônio. Jane, não é verdade que são criaturas das mais ridículas? —Eu não me canso de repetir — conveio a duquesa enquanto olhava com ironia Tresham, que não mordeu o anzol —. Mas, Ferdinand, quem é a senhorita Thornhill? Jocelyn me disse que é muito bonita. —Essa foi, é obvio — assinalou Tresham —, a primeira pergunta que me fez nada mais ao chegar em casa. —Não foi a primeira, tolo! — protestou. —É a mulher mais exasperante que conheci na vida — respondeu Ferdinand —. Me convenceu de que fizesse uma aposta com ela. Apostamos Pinewood Manor. E ela ganhou. E depois se negou a aceitar a propriedade. Assim que a dei de presente. Ela fugiu. Segui-a e a interceptei antes que chegasse a Londres. Hoje ordenei ao Selby que fizesse a mudança na escritura de propriedade, mas quando fui comunicar a ela, resulta que havia voltado a desaparecer. Parece que realmente não a quer. —Extraordinário! — comentou Jane.


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—Nesse caso, terá que voltar amanhã e dizer ao Selby que deixe as coisas como estavam — aconselhou Heyward —. De todas as formas, Ferdinand, deveria ter pedido conselho ao Tresham ou a mim. Adoece de uma forte tendência à impulsividade. Os Dudley levam no sangue. —As pessoas são impulsivas quando estão apaixonadas — aduziu Angeline —. Ferdie, deve encontrá-la. Deve procurá-la por toda Londres. Contrata um investigador da Bow Street. Que romântico! —Não desejo encontrá-la — replicou ele. —Não sabe onde possa estar? — perguntou Jane. —Não — respondeu Ferdinand com brutalidade —. E não quero saber. Pinewood Manor é dela. Se não quer a propriedade, que faça com ela o que quiser. Por mim, pode cair em pedaços. E então recordou algo. Um comentário pronunciado com a voz de Viola. «Certamente estava servindo café na estalagem do meu tio.» Havia perguntado o que a teria encontrado fazendo se tivesse conhecido-a fazia seis ou sete anos, antes de converter-se em cortesã. Naquele momento não deu maior importância à resposta. —Acredito que o tio dela gerencia uma estalagem — disse. Angie lhe perguntou com avidez que tipo de estalagem era, em que parte de Londres poderia encontrar-se e o nome do tio de Viola. Sua irmã, e Jane em menor medida, pareciam obstinadas em ver uma relação romântica que devia ter um final feliz. Após alguns minutos sua paciência chegou ao limite. —Não há motivos para buscá-la — sentenciou —. Lhe ofereci Pinewood Manor, mas se negou a aceitá-la. Propus matrimônio, mas me rechaçou. Ofereci… amparo e fugiu. Prefere retomar sua antiga profissão. —E qual é? — quis saber Angeline. Ferdinand era consciente do olhar áspero do irmão. —Era uma cortesã — respondeu —. Uma cortesã de êxito até que se foi a Pinewood Manor faz dois anos. Além disso, é filha ilegítima. De modo que já pode esquecer do assunto, Angie, e deixar seus dotes de casamenteira para outros. Troquemos de assunto, parece-lhes bem? —Pobre mulher! — exclamou Jane em voz baixa —. Me pergunto o que a terá obrigado a voltar para a antiga vida. —Eu — respondeu Ferdinand. —Não. — Sua cunhada negou com a cabeça e franziu o cenho —. Não, Ferdinand. Não o faz por você. —Uma dama com um passado escandaloso e um turvo segredo — comentou Angie, que levou as mãos ao peito —. Que intriga mais irresistível! Ferdie, pode estar seguro de que o quer tanto como você a quer. Por que se não ia fugir de você em duas ocasiões?


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Mulheres!, Pensou Ferdinand enquanto Heyward se lançava a oferecer um monólogo longo e aborrecido sobre o discurso que tinha pronunciado nesse mesmo dia na Câmara dos Lordes. Quanto mais velho ficava, menos compreendia às mulheres, refletia Ferdinand. Angie e Jane deveriam ter sofrido síncopes ao inteirar-se da verdade. O tio dela era hospedeiro. Nem sequer se atrevia a imaginar o número de estalagens que haviam espalhadas por toda Londres. Seria tio por parte de mãe ou por parte de pai? Que possibilidade tinha de que tivesse o mesmo sobrenome dela? O homem gerenciava uma estalagem fazia seis ou sete anos. Seguiria fazendo-o? Viola não queria que a encontrassem. Até voltar a reaparecer como Lilian Talbot, supunha. E ele não queria encontrá-la ela. Tinha-o enganado e rechaçado em muitas ocasiões. Quantas pousadas existiria? Não perderia tempo procurando-a, não é? «Pergunto-me o que a terá obrigado a voltar para a antiga vida.» As palavras de Jane se repetiam uma e outra vez em sua cabeça. Um carro de postas saiu estralando da estalagem O Cavalo Branco, ocasionando um grande bulício. Viola e Hannah se mantiveram afastadas para deixá-lo dobrar a esquina antes de entrar no pátio do estabelecimento. O hospedeiro se encontrava na porta, gritando a um cavalariço que estava bastante afastado dele. Entretanto, assim que se virou e as viu, seu cenho franzido foi substituído por um sorriso de orelha a orelha. —Viola! — exclamou, abrindo os braços. —Tio Wesley! Viola não demorou para estar rodeada pelos fortes braços do tio, que a esmagou contra seu peito.

—Veio — disse ele após afastar-se para olhá-la à face —. Mas por que não nos avisou que

quando chegaria? Poderíamos ter ido te buscar. Olá, Hannah. Rosamond e as meninas vão se alegrar muitíssimo. Claire! — gritou, aparecendo ao interior do estabelecimento —. Venha ver o que tenho aqui. A irmã de Viola saiu correndo após um momento. Estava preciosa, notou. Converteu-se em uma beleza esbelta e voluptuosa, com um precioso cabelo loiro. Não demoraram para estar uma nos braços da outra, rindo enquanto se abraçavam. —Sabia que viria! — exclamou sua irmã —. E Hannah também veio contigo! Vamos para cima. Mamãe vai alegrar-se muitíssimo. E Maria. — Agarrou Viola pela mão e se virou para a porta


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da estalagem. Não obstante, deteve-se antes de entrar para olhar, nervosa, o tio —. Posso subir com ela, tio Wesley? Agora que o carro de postas se foi tudo está tranquilo. —Para cima as duas — respondeu seu tio com alegria —. Fora daqui. Claire a conduziu aos aposentos privados da família, situados no andar mais alto. Mais concretamente a salinha de sua mãe, que estava costurando acomodada junto à janela. Maria estava sentada à mesa e tinha um livro aberto diante. Após um momento tudo foram gritos, chiados, risadas, abraços e beijos. —Sabíamos que viria! — gritou Maria uma vez que recuperaram a prudência —. Espero que agora viva aqui conosco. Maria tinha passado de menina a jovem cuja beleza começava a prometer. —Deve estar cansada — comentou sua mãe enquanto a tirava do braço e a conduzia até um canapé onde ambas se sentaram —. Chegou direto de Somersetshire? Tomara tivéssemos sabido que chegava hoje, assim teríamos ido esperá-la. Maria, querida, sei boa e desça correndo para buscar chá e algumas massa. Maria a obedeceu sem pigarrear, embora o fez a contra gosto, já que não queria perder nem um instante da chegada da irmã maior. —É maravilhoso voltar e ver todos outra vez — disse Viola. No momento se deixaria agasalhar pelo lar e a família, como se fossem um casulo protetor onde refugiar-se das ameaças do mundo exterior. E das lembranças. Perguntou-se se Ferdinand já teria voltado à casa e se teria descoberto sua fuga. —Agora tudo ficará bem. — Sua mãe lhe deu uns tapinhas em uma mão. —Mas parece que estivessem me esperando — comentou ela com estranheza. Sua mãe lhe deu um apertão na mão. —Chegaram os rumores de que Pinewood Manor não era seu depois de todo — lhe explicou —. Sinto muitíssimo, Viola. Sabe que me neguei a que o aceitasse das mãos do Bamber quando estava tão bem trabalhando como preceptora, mas sinto muito que a enganasse. Face à amarga discussão que mantiveram antes que partisse a Pinewood Manor, Viola possuía a suficiente experiência sobre a vida para não julgar com dureza a mãe. Enquanto trabalhava como preceptora do conde de Bamber, sua mãe ficou grávida. Dela. O conde a instalou em Londres, onde a manteve como amante durante dez anos antes que ela se apaixonasse perdidamente por Clarence Wilding, com quem se casou. Sua vida se transtornou por completo, de forma drástica. Já não teve mais contato com o pai, a quem adorava. Em troca, recebia a impaciência e o desprezo do padrasto. Às vezes, quando estava bêbado e sua mãe não o escutava, chamava-a «bastarda». Teve que perguntar a Hannah o que significava.


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Demorou treze anos em descobrir toda a verdade a respeito do acontecido. Fez quando voltou a encontrar-se com o pai, uma tarde que ela passeava pelo parque e o reconheceu conduzindo uma carruagem que ela deteve de forma impulsiva. Seu pai não a tinha abandonado. Havia tentado vê-la. Lhe escreveu e lhe enviou presentes. Enviou o dinheiro de sua manutenção. Quis inscrevê-la em um bom internato e consertar um matrimônio respeitável para ela. Entretanto, todos os presentes e o dinheiro haviam sido devolvidos. E assim foi como o conde de Bamber descobriu a verdade sobre a filha e sobre a vida que levava, e os motivos que a tinham empurrado a fazê-lo. Seu pai combinou um encontro com Daniel Kirby e se encarregou de pagar as restantes dívidas do homem que tinha lhe arrebatado a amante e a filha. E depois entregou a Viola o precioso presente que supunha uma nova vida. Deu-lhe de presente Pinewood Manor. Sua mãe ficou furiosa. A princípio Viola se sentiu muito tentada a culpá-la. Que direito tinha de mantê-la separada de seu pai? Não obstante, para então a vida lhe ensinou que o coração humano era um órgão complexo que guiava frequentemente às pessoas na direção equivocada, mas sem má intenção. Além disso, reconheceu que sua mãe reagia dessa forma porque ignorava a verdade poro completo. Na realidade, acreditava que Viola desempenhava o respeitável trabalho de preceptora. Fazia muito que havia perdoado a mãe. —Não me enganou, mamãe — a contradisse —. Mas como descobriu sobre Pinewood Manor? —Disse-nos o senhor Kirby — respondeu sua mãe. A simples menção desse nome lhe provocou um nó no estômago. —Recorda-o? Estou segura de que recorda. Costuma vir frequentemente à estalagem tomar café, não é verdade, Claire? É um homem muito simpático. Desci em um par de ocasiões para conversar com ele. Disse-nos que sentia muito sua perda. E nos deixou perplexos, claro. Então nos explicou que o irmão do duque de Tresham ganhou a propriedade do conde e que ia a Somersetshire reclamá-la. Como se chama o irmão? Não recordo. —Lorde Ferdinand Dudley — esclareceu Viola. Daniel Kirby estava informado da situação. É obvio que estava! Seu ofício era estar a par de tudo. Isso explicava por que havia encontrado uma nova nota. Sabia que voltaria a Londres. Sabia que podia voltar a chantageá-la. —Como é lorde Ferdinand, Viola? — quis saber Claire.


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Bonito. Alegre. Amigável, simpático, incrivelmente atraente. Atrevido e elegante. Amável. Honrável. Inocente. Por estranho que parecesse, inocente. —Não lidei o suficiente para ter criado uma impressão duradoura — respondeu. Maria voltou nesse momento com uma bandeja que deixou em uma mesa próxima ao canapé. —Enfim — comentou sua mãe enquanto servia o chá —, agora está em casa, Viola. Esse tempo de sua vida faz parte do passado e é melhor que o esqueça. Talvez o senhor Kirby possa te ajudar de novo. Conhece muita gente influente. E seus antigos senhores certamente estarão dispostos a te dar uma boa carta de recomendação, embora os deixou de uma forma tão inoportuna. Viola negou com a cabeça quando Maria lhe ofereceu as massas. Tinha o estômago revolto. Porque isso era, precisamente, o que ia ocorrer. Daniel Kirby não demoraria em ir procurá-la e acabariam acordando o reatamento de sua antiga carreira. Entre ambos ideariam uma cortina de fumaça para evitar que sua família descobrisse a verdade. Talvez, pensou enquanto provava o chá e escutava o bate-papo de Maria sobre as últimas notícias do Ben, devesse contar a verdade. Nesse mesmo instante. Antes que sua vida voltasse a converter-se em um vigamento de mentiras e enganos. Mas não podia fazê-lo. Suas vidas ficariam arruinadas. O tio Wesley levava anos ajudando-as. A mulher dele morreu muito jovem um ano depois de casar-se, durante o parto do primeiro filho, e ele não voltou a contrair matrimônio. A família da irmã se converteu na família dele. Tinha-os apoiado com alegria, sem queixar-se. Viola não suportava a ideia de vê-lo destruído. E tinha que pensar em Claire, Maria e Ben, quem devia dispor de um futuro cheio de perspectivas agradáveis. Sua mãe não gozava de boa saúde. Não poderia suportar semelhante carga. Não, não podia fazê-lo.


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Capítulo Vinte Ferdinand se encontrava já no segundo dia de busca. Ia de estalagem em estalagem e estava convencido de que também seria infrutífero. Passar-se-ia mais de uma semana procurando-a até que por fim a visse (no teatro ou no parque) ou tivesse notícias através de seus conhecidos. Lilian Talbot havia voltado, correria o rumor, tão bonita, tão incitante e tão cara como sempre. Lorde Tal teve a sorte de adquirir seus serviços em primeiro lugar e lorde Qual seria o segundo… Se fosse esperto, repetia-se uma e outra vez, voltaria para o escritório do Selby, faria migalhas dos documentos da cessão da propriedade de Pinewood Manor e depois retornaria a esse lugar… e viveria ali o resto de seus dias. Nunca tinha sido muito esperto. Havia chegado ao Cavalo Branco no pior momento, pensou ao entrar no pátio pavimentado. Um carro de postas estava se preparando para partir. Havia pessoas, cavalos e bagagem por toda parte, assim como muito ruído e animação. Entretanto, um dos cavalariços reconheceu que era um cavalheiro e se apressou a aproximar-se para perguntar se podia cuidar de seu cavalo. —Talvez — respondeu Ferdinand enquanto se inclinava na sela —. Mas não estou seguro de estar na estalagem correta. Procuro um hospedeiro com nome de Thornhill. —Está ali, senhor —indicou o moço, assinalando para o grupo de pessoas formadas redemoinhos perto do carro de postas —. Está ocupado, mas posso chamá-lo se quiser. —Não. — Ferdinand desmontou e deu ao moço uma moeda —. O esperarei lá dentro. O hospedeiro era grande, tanto pela altura como pela corpulência. Estava conversando com o chofer. Chamava-se Thornhill. Isso queria dizer que sua busca havia terminado tão rápido?, Perguntou-se. Agachou-se para passar pela porta e se encontrou em um vestíbulo escuro com vigas de madeira. Uma moça magra e bonita com uma bandeja de pratos sujos lhe fez uma genuflexão e teria ido se não tivesse falado.


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—Procuro à senhorita Viola Thornhill — disse. A moça o olhou à cara. —A Viola? — perguntou —. Está no salão de café, senhor. Quer que vá procurá-la? —Não — respondeu. A cabeça quase dava voltas. Estava ali? —. Como chego até o salão? A moça lhe ofereceu as indicações precisas e o observou afastar-se. Ainda devia faltar bastante para que saísse o carro de postas, pensou ao chegar à porta. O salão de café seguia meio cheio. Entretanto, viu viola imediatamente, sentada no extremo mais afastado da estadia, de face para ele. Do outro lado da mesa se sentava um homem, com quem estava falando. Ferdinand os observou, dividido entre o alívio, a raiva e a incerteza. Não tinha chegado a decidir o que faria se a encontrasse. Podia aproximar-se da mesa nesse momento, se quisesse, deixar os documentos junto ao prato dela, lhe fazer uma reverência e partir sem dizer nada. Assim poderia retomar sua vida com a consciência tranquila. Não obstante, aconteceram duas coisas antes que tomasse essa decisão. O homem virou a cabeça para olhar pela janela. Ferdinand não podia ver a face toda, mas sim viu o suficiente para dar-se conta de que o conhecia. Não pessoalmente, mas poucos cavalheiros de sua categoria não reconheceriam Daniel Kirby. Era um cavalheiro, sim, mas não pertencia à alta sociedade. Rondava por lugares como Tattersall’s, o clube de boxe do Jackson e várias pistas de corridas; lugares frequentados por homens. Embora tivesse um rosto gordinho de expressão jovial, todo mundo sabia que era uma criatura rasteira. Era um prestamista, um chantagista e muitas coisas mais. Se pudesse ganhar dinheiro por métodos turvos, Daniel Kirby estava metido. E Viola Thornhill estava falando com ele. A segunda coisa que aconteceu foi que ela desviou o olhar de seu interlocutor e o cravou em Ferdinand durante um momento. E embora a viu deixar de falar um instante, sua expressão não mudou. Não viu surpresa, raiva, vergonha, nem nenhuma outra emoção em sua cara. Depois voltou a olhar Kirby e seguiu falando como se nada tivesse acontecido. Não queria que Kirby soubesse que ele estava ali, concluiu Ferdinand. Havia transcorrido muito pouco tempo, percebeu, ao virar e ver que a moça seguia plantada onde a deixou, com a bandeja nas mãos. —Vive a senhorita Thornhill aqui? — perguntou. —Sim, senhor — respondeu ela. —E sua mãe também? —Sim, senhor.


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—Como se chama? —Minha mãe? — Ela franziu o cenho. —Sua mãe? — Olhou-a com mais atenção —. A senhorita Thornhill é sua irmã? —Minha meio-irmã, senhor — respondeu a moça —. Sou Claire Wilding. Nem sequer sabia que tinha uma irmã. Essa moça era magra, baixa e loira. Ferdinand tomou uma decisão impulsiva. —Pode perguntar à senhora Wilding se quer me receber? — pediu enquanto tirava um de seus cartões de visita do bolso da jaqueta. A moça cravou a vista no cartão enquanto ele o deixava sobre a bandeja. —Sim, milord. — Fez outra genuflexão e ruborizou —. Perguntarei. Falava com um acento refinado, notou, igual a Viola. Era evidente que também sabia ler. A vida não podia piorar, pensou Viola quando Daniel Kirby partiu. Quando seu tio subiu ao andar superior para anunciar sua chegada, fez sorrindo. Sua mãe também sorriu e insistiu em descer com Viola para saudar o cavalheiro. A conversa se centrou nos negócios assim que ambos ficaram a sós, é obvio. As condições eram as mesmas que anteriormente. Viola não cedeu sem protestar, certo, embora soubesse que era inútil. Quando mencionou o documento que o senhor Kirby havia assinado e que entregou a seu pai, ele a olhou com expressão amável, mas também vazia. —A que recibo se refere? — perguntou —. Não recordo nada disso. —Não, claro que não. É normal que não se lembre — replicou com frieza. Ele ficou de lhe encontrar aposentos. Faria correr a voz de que havia voltado para a cidade. Conseguiria clientes. Concedeu-lhe uma semana de férias para que a passasse com a família enquanto ele se encarregava dos preparativos. —Afinal de contas — disse ele —, a sua família estranharia se encontrasse um posto de preceptora tão rápido. E não queremos que sua família se inquiete, não é verdade? Entretanto, a entrevista com Daniel Kirby não foi ao que parecia ruim o suficiente para essa manhã, porque aconteceu outra coisa espantosa enquanto falava com ele. Levantou a vista, consciente de que havia alguém na porta, e por um momento se esqueceu do que estava dizendo. Durante o breve instante que demorou para recuperar a compostura, só atinou a pensar que a tinha encontrado, que a procurou, que podia correr de volta para os braços dele e que ele a manteria a salvo para sempre. Depois, recuperou-se da surpresa e afastou a vista. Quando voltou a olhar pouco depois, ele tinha ido. Sentiu um alívio enorme. E teve a impressão de que a engolia um profundo abismo.


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Levantou-se da mesa vazia. Havia prometido ajudar no escritório com as contas que tanto Claire detestava. Mas antes, pensou, passaria um momento a sós em sua habitação. Como a tinha encontrado? Por que foi à estalagem? Por que foi embora sem dizer uma palavra? Voltaria? Hannah estava em sua habitação, pendurando a roupa limpa e engomando o vestido de viagem. —Sua mãe me pediu que lhe dissesse que se reúna com ela assim que aquele homem partisse — disse a criada. Viola suspirou. —Comentou o que queria, Hannah? —Não — respondeu a criada, embora Viola suspeitasse que sabia muito bem. Voltou a suspirar. Certamente sua mãe queria fazê-la partícipe de quão contente estava porque o senhor Kirby tivesse prometido lhe buscar um trabalho, pensou Viola enquanto abria a porta da salinha e entrava. Lorde Ferdinand Dudley estava sentado junto à lareira. —Olhe quem veio para me ver, Viola — disse sua mãe enquanto ficava em pé e se aproximava dela a toda pressa —. Embora não necessita que o apresente. Ferdinand ficou em pé e lhe fez uma reverência enquanto sua mãe se virava para sorrir com calor.

—Senhorita Thornhill — a saudou. —Lorde Ferdinand acaba de chegar de Somersetshire — explicou sua mãe — e quis deter-se

a me saudar. O que foi muito cortês, Viola? Esteve contando a Maria e a mim o muito que apreciam em Pinewood Manor. Viola o olhou em silêncio, indicando quão molesta estava. —Foi muito amável ao passar por aqui, milord — disse. Como me encontrou? Por que me procurou?, Queria perguntar. —Sente-se de novo — disse sua mãe ao convidado enquanto puxava Viola para que se acomodasse com ela no divã —. Viola, expliquei por que não podia se reunir conosco imediatamente. — Olhou a visita uma vez mais—. Verá, milord, meu pai era um cavalheiro, mas perdeu a fortuna com desastrosos investimentos, de modo que meu irmão teve que lavrar seu futuro, igual a mim. Eu também fui preceptora. O pai de Viola era um cavalheiro. Igual a meu falecido esposo. Sua mãe estava à defensiva, pensou Viola.


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—Qualquer pessoa que visse a senhorita Thornhill organizando a festa do povoado não duvidaria de que é uma dama, senhora — repôs lorde Ferdinand, olhando Viola com uma expressão risonha. E seguiu descrevendo a Maria e a sua mãe a festa de Primeiro de Maio que se celebrou em Trellick. Após alguns instantes ambas riam a gargalhadas e exclamavam encantadas. A capacidade para deslumbrar quase qualquer pessoa era um de seus dons, é obvio. Um detalhe que a tinha irritado muitíssimo em Pinewood Manor. E que nesse momento também a irritava. —Alegra-nos que Viola esteja em casa de novo — comentou sua mãe ao final —. Claro que certamente volte a dar aulas logo. O senhor Kirby prometeu ajudá-la a encontrar um trabalho decente, como já fez antes. Viola observou Ferdinand, mas não deu a impressão de reconhecer o nome. —Nesse caso voltei para a cidade bem a tempo, senhora — comentou ele —. Do contrário, não teria visto a senhorita Thornhill se houvesse posposto minha visita para mais adiante. —Sim, certamente — conveio sua mãe. —Perguntava-me se poderia me fazer o favor de me conceder alguns minutos a sós com sua filha, senhora — disse. Viola meneou a cabeça de maneira quase imperceptível, mas ninguém a estava olhando. Sua mãe ficou em pé sem titubear. —É obvio, milord — replicou, muito agradada —. Venha, Maria. Vamos ver se podemos dar uma mão lá embaixo. Sua mãe acreditava que tinha ido cortejá-la, pensou Viola ao ver que lhe lançava um olhar muito eloquente quando esteve de costas ao convidado, antes de partir com Maria. O tic tac do relógio que estava no suporte da lareira soava muito forte. Viola estendeu as mãos sobre o regaço e cravou o olhar nelas. —Como me encontrou? — perguntou. —Disse que seu tio era hospedeiro — respondeu ele. De verdade disse isso? —Comecei a te buscar ontem pela manhã — seguiu Ferdinand —. Comecei pelas casas de postas com a frágil esperança de que seu tio seguisse no negócio e de que se chamasse Thornhill. Nesse momento o olhou. —Por que? Ele ficou em pé quando a mãe dela se levantou. Nesse momento estava diante da lareira, com as mãos entrelaçadas à costas. Parecia muito alto e poderoso. Ela se sentia em desvantagem. Viu-o inspirar fundo antes de soltar o ar muito devagar. —Suponho que a principal razão é esta — disse enquanto levava a mão ao bolso da jaqueta e tirava um dossiê de documentos.


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—Quantas vezes tenho que dizer que não quero? —perguntou. —Pinewood Manor é sua — seguiu ele —. Me encarreguei de que transfiram a propriedade legalmente. É sua queira ou não, Viola. Ofereceu-lhe os documentos, mas ela não fez gesto de agarrá-los. Era muito tarde. Daniel Kirby se inteirou de que ele havia ganhado Pinewood Manor e chegou à conclusão de que se seu pai não havia modificado o testamento, tampouco teria guardado o recibo onde se afirmava que não havia mais dívidas. De modo que a considerava de novo em suas garras. Pinewood Manor já não poderia ajudá-la. Ele se asseguraria de que as rendas não bastassem para cobrir os pagamentos das dívidas. Lorde Ferdinand se aproximou da mesa e soltou os papéis, junto aos livros de Maria. —É sua — repetiu ele. —Muito bem — disse, com a vista cravada uma vez mais nas mãos —. Completou sua tarefa com êxito. Já pode ir. —Viola — disse ele em voz baixa, e o ouviu suspirar, exasperado. Em um abrir e fechar de olhos, viu as pontas das botas quase coladas às pontas de seus sapatos. Depois, ele ficou em cócoras e segurou ambas as mãos dela. Não ficou mais alternativa que olhá-lo aos olhos, que estavam à mesma altura que os seus. —Tanto me odeia? — perguntou ele. Essa pergunta quase lhe partiu o coração. Não tinha se dado conta até esse preciso momento do muito que o amava. Não só estava loucamente apaixonada por ele, mas sim o amava com toda a alma. —Tanto custa acreditar que prefiro ser livre a ser sua amante? — perguntou a sua vez. —Ofereci Pinewood Manor — recordou ele —. Disse o muito que significava para você porque o falecido conde de Bamber lhe deu isso. O queria mais que a mim? Devia ser velho o bastante para ser seu pai. Teria achado graça das palavras em outras circunstâncias. —Tolo! — exclamou, mas não com maldade —. Ferdinand, o conde de Bamber era meu pai. Acredita que teria aceitado semelhante presente de um amante? Ele apertou as mãos dela com força e a olhou sem acreditar. —Bamber era seu pai? Viola assentiu com a cabeça. —Não o via desde que minha mãe se casou com Clarence Wilding. Levava anos com achaques. Não vinha a Londres frequentemente. Naquele momento veio para consultar um médico, mas já não havia remédio. Sabia que estava morrendo. Estarei eternamente agradecida pelo dia que o reconheci no Hyde Park e gritei seu nome antes de poder morder a língua. Explicou-me por que


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passaram tantos anos sem que eu soubesse dele. E tentou me recompensar por essa ausência, fazer por mim o que teria feito se o matrimônio de minha mãe não nos tivesse separado. Já era muito tarde para consertar um matrimônio decente, levava trabalhando quatro anos. Mas me deu Pinewood Manor e a oportunidade de começar uma nova vida. Foi um presente maravilhoso, Ferdinand, porque procedia de meu pai. Foi um presente de amor em estado puro. Ele inclinou a cabeça e fechou os olhos. —Com razão se negava a acreditar que havia esquecido de mudar o testamento… — disse. —Sim. Ferdinand levou uma mão aos lábios e depois a outra. —Me perdoe — suplicou —. Me comportei como um tolo desde que me apresentei em Pinewood Manor. Deveria ter partido imediatamente. Assim seguiria sendo feliz. —Não. — Olhou-o com expressão ansiosa —. Comportou-se de forma muito razoável tendo em conta as circunstâncias. Poderia ter me jogado a rua no primeiro dia. —Volta para casa — a insistiu —. Volta para Pinewood Manor. Não porque eu quero que o faça, mas sim porque era o que queria seu pai. Seu lugar é lá. —Talvez o faça — disse. —Não, droga! — ficou em pé e a puxou para obrigá-la a fazer o mesmo —. Seu rosto me diz que só está dando voltas. Não tem intenção de voltar, não é verdade? Porque provém de mim. O que me leva a pergunta de antes. Tanto me odeia? —Não odeio você. — Fechou os olhos. Foi um engano. Ele se aproximou, abraçou-a e a beijou com os lábios separados. Foi incapaz de afastar-se dele, embora nem sequer a segurava com força. Jogou os braços ao pescoço e permitiu que caíssem todas as defesas com as quais se protegeu os dias anteriores. Devolveu-lhe o beijo com todo o desejo, com toda a paixão e com todo o amor que albergava no coração. Durante instantes, o impossível pareceu possível. Mas a paixão carecia da capacidade de manter a raia a realidade durante muito tempo. —Ferdinand — disse enquanto afastava a cabeça, embora seguiu abraçando-o —, não posso ser sua amante. —Não, claro que não — conveio ele —. Esse posto já não está disponível. De todas as maneiras, foi um engano. Não fui feito para ter amantes. Sou incapaz de me deitar com uma mulher e seguir com minha vida como se não existisse. Quero que se case comigo. —Porque sou a filha do falecido conde de Bamber? — perguntou enquanto colocava as mãos nos ombros. Ele estalou a língua.


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—A filha ilegítima. Esqueceu esse detalhe — replicou com ironia —. Não, claro que não quero me casar contigo por isso. Já lhe pedi em outra ocasião, muitíssimo antes de saber quem era seu pai. Quero me casar contigo, e pronto. Sinto sua falta. Não havia dito que a amava, mas tampouco era necessário. Via em seu olhar, distinguia-o no abraço, percebia-o em sua voz. Por um instante, Viola sentiu uma tentação quase irresistível. Porque sabia que com uma só palavra, com um sim, podia mudar sua vida por completo. A amava. Queria casar-se com ela. Podia contar-lhe tudo; de fato, já estava a par do pior. Sabia sem lugar a dúvidas que ele pagaria todas as dívidas do Clarence Wilding e livraria sua família da ameaça de ruína. Ela mesma ficaria livre das garras do Daniel Kirby e de uma vida de prostituição. Entretanto, ela também o amava. Não podiam casar-se sem sacrificar tudo o que era valioso para ele: a família, sua posição e amigos. Talvez nesse momento acreditasse que não importava; afinal, sempre demonstrou uma impulsividade muito perigosa na hora de aceitar qualquer provocação, e quanto mais escandaloso, melhor. Mas esse desafio não poderia ganhar. Seria infeliz durante o resto da vida. E portanto, ela também seria. —Ferdinand — disse, e se escondeu detrás do sorriso desdenhoso que se converteu em algo natural para ela quando queria escapar da dor —, nego-me a me casar contigo porque não quero me casar, nem contigo nem com nenhum outro. Por que faria quando posso ter qualquer homem que quiser, quando quiser, e seguir desfrutando de minha liberdade? Não aceitei me converter em sua amante. Deitei contigo a noite que chegamos a Londres porque parecia necessitar com desespero. E devo admitir que foi agradável. Mas ainda não sabe, e perdoa que lhe diga, como agradar uma mulher na cama. Sentir-me-ia inquieta após algumas semanas se ficasse contigo. Levava certo tempo inquieta em Pinewood Manor. Fez-me um favor ao se apresentar ali e me obrigar a fazer o que estive desejando: retomar minha carreira profissional, é obvio. Essa vida me resulta emocionante. —Não faça isso. — Agarrou-a pelos braços com tanta força que Viola soube que lhe deixaria marcas. Também a fulminou com os olhos, que de repente pareciam muito negros —. Droga, Viola. Não confia em mim? Se me amasse, confiaria. Acreditava que me queria. —Ai, Ferdinand! — Sorriu e acrescentou em voz baixa —: Mas que tolo é. Separou-se dela e recolheu o chapéu e a bengala da cadeira situada junto à porta. —Sabe? Poderia ter confiado em mim. — Olhou-a quando tinha a mão na maçaneta —. Se alguém está ameaçando-a com algo, poderia ter me contado. Os Dudley sabem como proteger suas


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mulheres. Mas não posso te obrigar, não é verdade? Não posso te obrigar a me querer se não o quer. Adeus. A porta já se fechava quando Viola estendeu um braço para ele. Cobriu a boca com a outra mão para não chamá-lo. Sentia uma dor tremenda na garganta, quase insuportável. Sim que sabia quem era Daniel Kirby. «Poderia ter confiado em mim… Poderia ter me contado. Os Dudley sabem como proteger suas mulheres.» Não sabia onde vivia Ferdinand. Não saberia onde encontrá-lo se mudasse de opinião. Graças a Deus que não sabia. Porque assim não teria que lutar contra a tentação.

Capítulo Vinte e Um Ferdinand não acabava de assimilar a imagem do irmão como pai de família. Entretanto, quando o mordomo de Tresham o conduziu até a habitação infantil de Dudley House e entrou depois que o anunciasse, surpreendeu-se. Descobriu o irmão sentado no chão, construindo um castelo com blocos de madeira cujo equilíbrio parecia muito precário, acompanhado do filho de três anos e com o bebê deitado em uma manta no chão, fora do alcance dos blocos de madeira, agitando os bracinhos e as pernas. Não havia nem rastro da babá. Nem de Jane. Parecia que, a chegada de um tio era mais interessante que um castelo, ao menos durante alguns minutos. Nicholas atravessou a habitação correndo e Ferdinand o segurou nos braços para lançá-lo ao teto.


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—Olá, molequinho! — disse enquanto apanhava o menino, que não parava de chiar —. Minha Mãe, o peguei, que milagre. Pesa uma tonelada. —Outra vez! Ferdinand voltou a lançá-lo para cima e fez um espetáculo fingindo que tropeçava e gritando que caía quando estava a ponto de apanhar o menino. Depois o deixou no chão e se agachou para fazer cócegas na barriga do bebê. —Onde está Jane? — perguntou. —Na casa de lady Webb, sua madrinha — respondeu Tresham, se por acaso Ferdinand tivesse esquecido quem era a dama —. Angie a acompanhou, por isso estou aqui. A única amostra de bom senso que demonstrou nossa irmã em toda a vida é o carinho que sente por Jane. Ferdinand, isso de que durante a temporada social esteja mal visto que os casais saiam juntos ou que passem dois minutos juntos ao chegar a qualquer lugar é totalmente exasperante. Assim que puder, levarei a minha duquesa de volta a Acton Park. Isso era no que se converteu seu irmão?, Pensou Ferdinand, olhando-o com certa fascinação. Em um homem que passava grande parte do tempo com os filhos e que resmungava quando não estava com a esposa? Ainda não se arrependia de ter se casado depois de quatro anos de matrimônio? —Necessito informação — comentou Ferdinand com uma ligeireza deliberada —. E acredito que você poderá me ajudar. —Adeus! — exclamou o irmão ao ver que o castelo se derrubava de repente —. Fui eu, Nick? Ou foi você? Voltou a encostar o dedo? Sim que fez, vagabundo. — Agarrou o filho antes que pudesse escapar e começou a cair com ele pelo chão, lhe provocando um ataque de risada. Ferdinand observou a cena com certo desejo. —Agora sim. — Tresham ficou em pé e se sacudiu a roupa, embora sua aparência fosse tão imaculada como sempre —. O que acontece, Ferdinand? —Suponho que conheça o Kirby — respondeu —. Sabe onde posso encontrá-lo? Refiro-me a seu domicílio. Seu irmão deixou de sacudir a roupa e o olhou, surpreso. —Kirby? — perguntou —. Ferdinand, pelo amor de Deus, se o que quer é uma mulher, há outras formas muito mais simples de… —Era ele quem dirigia a carreira da Lilian Talbot? — quis saber. O duque o olhou muito sério. —Nick, recolhe os blocos e leve-os ao lugar — disse —, antes que volte a babá. — Olhou o bebê, que parecia muito tranquilo, e atravessou a estadia para deter-se frente à janela. Ferdinand se aproximou dele.


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—Esta manhã os vi falando — informou —. Refiro ao Kirby e a Viola Thornhill. E depois a mãe dela me disse que vai ajudar a filha a conseguir um emprego de preceptora, como fez no passado. A mulher parece acreditar de verdade. —Nesse caso — replicou Tresham enquanto aferrava o cabo do monóculo, embora não o levou ao olho —, suponho que sua pergunta sobre se era ele quem dirigia a carreira dela é retórica, não? —Preciso encontrá-lo — disse como resposta —. Preciso perguntar de forma não muito educada com o que a está chantageando. —Não te ocorreu pensar que talvez seja ela quem se pôs em contato com ele porque deseja voltar a trabalhar? — perguntou seu irmão. —Sim — respondeu Ferdinand com brutalidade. Cravou o olhar no carro de quatro portas do irmão, com o brasão ducal, que acabava de deter-se na porta da casa. A cunhada e sua irmã estavam desembarcando da carruagem —. Mas não é isso. Viola sabe que Pinewood Manor é dela, mas se nega a voltar. Tresham, era feliz no campo. Deveria tê-la visto no dia que a conheci. Estava organizando uma corrida de sacos no prado do povoado, ruborizada e muito risonha, penteada com uma singela trança que caía pelas costas e com um ramalhete de margaridas aqui. — Assinalou a parte superior da orelha esquerda —. Era feliz, droga! E agora insiste em que não me quer. —Uma conclusão que não tinha nada a ver com o anterior, detalhe no que não pareceu reparar. —Querido Ferdinand… — Seu irmão parecia genuinamente preocupado. —Está mentindo — o interrompeu ele —. Que me parta um raio se não está mentindo, Tresham! Sua conversa se viu interrompida de repente quando a porta da habitação infantil foi aberta e entraram Jane e Angeline. Durante alguns minutos houve muito alvoroço e confusão, enquanto pegavam os meninos para abraçá-los e Nicholas contava com emoção a mãe e a tia que havia construído um castelo tão alto que chegava ao céu e que o tio Ferdie o jogou tão alto que quase o deixou cair. Enquanto isso, o bebê começou a chorar a pleno pulmão. Por sorte, a babá apareceu ao resgate dos adultos, de modo que puderam refugiar-se no salão para tomar chá. —Bom, Ferdie — disse Angeline assim que ficaram acomodados —,já a encontrou? —Refere-se à senhorita Thornhill? — precisou ele com receio. Não sabia se Heyward ia gostar que desse informação a sua esposa sobre uma das cortesãs mais notórias de Londres —. Sim. No Cavalo Branco, uma casa de postas. O tio dela é o dono. A mãe e as meio-irmãs também vivem ali. —Esplêndido! — exclamou sua irmã —. São muito vulgares?


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—Absolutamente — respondeu com tensão —. Thornhill é um cavalheiro por nascimento. Igual era Wilding, o padrasto da senhorita Thornhill. —Clarence Wilding? — precisou Tresham —. Recordo. Morreu em uma briga, se a memória não me falha. —Sim, mas era um cavalheiro de todas as formas — assinalou Ferdinand, e ao falar compreendeu que se pôs à defensiva, tal qual fez a senhora Wilding quando falou com ela —. A senhorita Thornhill é a filha natural do falecido conde de Bamber. Tresham arqueou as sobrancelhas. Angeline parecia eufórica. —Ai, Ferdinand! — exclamou Jane — Isso explicaria por que estava em Pinewood Manor. Agora me alegro mais que nunca de que tenha lhe devolvido a propriedade. —A filha de um conde! — gritou Angeline —. Esplêndido! Ferdie, não haverá nada irreprochável se decide casar com ela. Os mais puritanos talvez façam cara feia ao ter que relacionar-se com os filhos naturais dos aristocratas, mas são gente muito respeitável com quem contrair matrimônio. Além disso, a senhorita Thornhill foi reconhecida pelo pai antes que este morresse. Cedeu-lhe a propriedade, e estou segura de que essa era sua intenção, embora se esquecesse de incluí-la no testamento. Assim agora que a devolveu, ninguém poderá criticar o assunto. A conhecerão como a senhorita Thornhill de Pinewood Manor, até que se converta em lady Ferdinand Dudley, é obvio. Jane, temos que começar a… —Angie! — interrompeu-a Ferdinand com brutalidade —. Sua condição de filha ilegítima não é o pior que a aristocracia pode esgrimir contra ela. Embora pouco me importa e defenderei sua honra ante qualquer um que tente insultá-la. Mas esse não é seu caso. Ou não o será quando Heyward lhe deixar as coisas claras. —Ora! — burlou-se ela —. Heyward não me controla. Além disso, ele não é tão estirado. —Ferdinand — Jane se inclinou para frente em sua poltrona —, sente algo por ela, não é verdade? Vai casar com ela? Se o fizer, não o repudiaremos. Não é verdade, Jocelyn? —Ah, não? — replicou seu irmão, lhe dirigindo um de seus olhares mais sérios. Jane reagiu fulminando-o com o dela. Ferdinand sempre ficou fascinado ao ver que Jane não só não se deixava acovardar pelo gesto sério de seu irmão, que obtinha que até o homem mais forte se pusesse a tremer, mas sim o enfrentava sem intimidar-se absolutamente. Fazia já um tempo que havia chegado à conclusão de que Tresham casou com ela por esse motivo. —Gaba-se de ser um Dudley e me faz essa pergunta? — gritou sua cunhada —. Eu não repudiarei Ferdinand, embora você o faça. E tampouco repudiarei à senhorita Thornhill se decide casar-se com ela. A senhorita Thornhill não é culpada das circunstâncias de seu nascimento. E quem


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sabe por que escolheu a carreira que escolheu. As mulheres se convertem em cortesãs, em amantes e em putas por muitos motivos. Mas jamais o fazem por escolha pessoal. Nenhuma mulher escolheria livremente semelhante desonra. Se a senhorita Thornhill ganhou o respeito, a admiração e o amor do Ferdinand, merece sem o menor indício de dúvida o reconhecimento desta família. Ao menos terá o meu se não contar com o de outros. —Certamente que o terá, meu amor! — exclamou Tresham antes de olhar o irmão —. Ferdinand, já o tem. Somos Dudley. E se a sociedade nos diz que algo é impossível, nos sentimos obrigados a demonstrar que a opinião da sociedade não nos importa nem um pouco. —E estalou os dedos, produzindo um satisfatório som. —Bravo, Tresh! — aclamou Angeline —. O Cavalo Branco, disse, Ferdinand? Jane, temos que visitar a senhora Wilding e à senhorita Thornhill. Estou desejando vê-la, você não? Se Ferdinand se fixou nela, deve ser muito bonita. Heyward diz que nunca se relacionou com mulheres levianas, um comentário que não deveria ter feito em minha presença, mas faz muito que o convenci de que não sou uma tenra florzinha e de que não desmaiarei a toa. Jane, o que vamos fazer é convidá-las a uma grande recepção para apresentá-las em sociedade. Ferdie poderá anunciar seu comprom… —Angie! — Ferdinand ficou em pé —. Deixa estar, certo? Não quer casar comigo. Por estranho que parecesse, sua irmã ficou muda. Olhou-o em silêncio e boquiaberta. Mas não demorou para recuperar-se. —Por que não? — quis saber. —Porque não quer — repetiu ele —. Porque prefere conservar sua liberdade e viver a vida livre. Porque não se importa comigo. Porque não me quer. — passou os dedos de uma mão pelo cabelo —. Que me crucifiquem, mas me resulta incrível estar discutindo minha vida pessoal com minha família! —Vai voltar para Pinewood Manor? — perguntou Jane. —Não — respondeu —. Tampouco fará isso. Vai retomar a antiga vida, já que tanto lhes interessa. Acabou a discussão! Para sempre. Vou. Obrigado pelo chá, Jane. — Nem sequer o tinha provado. —Angeline — disse Jane, embora seguia olhando- em vez da cunhada —, eu gosto de sua ideia. Amanhã pela manhã iremos ao Cavalo Branco. Acredito que não devemos demorar mais a visita. Não me proíba de ir, Jocelyn. Porque nesse caso o desafiarei. —Meu amor — replicou ele com um tom de voz enganosamente doce —, não penso tolerar que se diga que sou um desses patéticos homens que não controlam as mulheres. Só dou ordens quando tenho certa certeza de que serão obedecidas.


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Ferdinand não escutou mais. Tinha saído do salão e acabava de fechar a porta. Entretanto, não obteve a resposta que necessitava, percebeu enquanto descia a escada. Teria que procurar ele mesmo o Kirby. Seguro que não era tão difícil. Esperava que Kirby se mostrasse relutante a falar. De fato, esperava que esse tipo necessitasse grande doses de persuasão. À manhã seguinte Viola estava no pequeno escritório do Cavalo Branco, pondo em dia os livros de contas e assegurando-se de que as cifras batiam. Pôs-se um de seus vestidos matinais mais simples, um que havia deixado na estalagem quando partiu fazia tantos anos. Não podia dizer que estivesse fora de moda, porque na realidade nunca esteve. Disse a Hannah que a penteasse com um coque.

Queria sentir-se, embora só fosse pelo resto dessa semana, como a secretária e contadora

de seu tio. Não queria analisar o futuro nem o passado. Manteve a mente totalmente concentrada nas cifras que tinha diante. Entretanto, a mente era um instrumento estranho. Podia concentrar-se em uma tarefa mecânica enquanto divagava de uma forma muito pouco disciplinada sobre qualquer tema. Mais concretamente sobre seu encontro com Daniel Kirby. Sobre o molesto enfrentamento com Ferdinand. Sobre tudo o que ocorreu depois. Sua mãe voltou para sala assim que ele partiu. Assim como fizeram Maria, Claire e seu tio Wesley. Todos eles muito sorridentes. —E então? — perguntou sua mãe. —Trouxe-me a escritura de propriedade de Pinewood Manor — comunicou ela enquanto assinalava o documento que descansava sobre a mesa —. Transferiu a propriedade. Segundo ele, sempre foi mais minha que dele. —E nada mais? — insistiu sua mãe, bastante desiludida. —Ai, Viola, que bonito é! — exclamou Maria. —Me propôs matrimônio — disse ela —. O rechacei. É obvio, não pôde explicar os motivos que a levaram a fazê-lo, de modo que se viu obrigada a deixar que sua mãe chegasse à conclusão de que o rechaçou movida por sua condição de filha ilegítima. Sua mãe não pôde evitar chorar. Não entendia por que dava tanta importância a um fato que a lorde Ferdinand Dudley não parecia importar absolutamente. —Mamãe — disse ela ao final —, não o amo. —Que não o ama? Que não o ama? — repetiu sua mãe, elevando a voz —. Rechaçou um aristocrata, o filho de um duque, quando podia ter se casado com ele e ter a vida assegurada? Quando podia ter ajudado suas irmãs? Como pode ser tão egoísta?


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—Como é que não o quer se é tão bonito? — lamentou-se Maria. —Cale-se, Maria — a repreendeu Claire com brutalidade —. Mamãe, seque as lágrimas. Vou trazer um chá. —Ai! — exclamou sua mãe depois de assuar o nariz —. A egoísta sou eu. Viola, me perdoe. Sempre nos mandou dinheiro com seu salário de preceptora. Foi muito boa conosco. —E seguiu fazendo-o, Rosamond — acrescentou seu tio Wesley, e seguiu falando apesar de que lhe fez gestos com a cabeça para que guardasse silêncio —. Não sou eu quem está pagando a mensalidade do colégio do Ben, sabe? É Viola quem o faz. E também pagou outras coisas que você acha que saíram que meu bolso. Chegou o momento de que saiba. Sobrinha, não tem por que se casar com um aristocrata que você nem sequer gosta. E tampouco tem que trabalhar de novo como preceptora se não quiser. A estalagem manterá a minha irmã e a seus filhos, da mesma forma que teria mantido Alice e nossos filhos se ela não tivesse morrido. E todos acabaram chorando, salvo seu tio, que escapuliu pela escada traseira. Ninguém voltou a mencionar Ferdinand até que o fez Hannah, que ainda se encontrava em seu dormitório quando Viola retornou. —E então? — perguntou —. Veio para levá-la de volta para aquela casa? Ou entrou em razão e lhe propôs algo melhor? —Algo melhor, Hannah — respondeu Viola —. Me deu Pinewood Manor. Possivelmente algum dia, quando o senhor Kirby já não puder me tirar mais dinheiro e diga que as dívidas já estão saldadas, possamos voltar. Você e eu. Todos necessitamos esperança. Lorde Ferdinand Dudley me deu esperança. —E não propôs convertê-la em uma mulher decente? — perguntou Hannah —. Confesso que esperava muito mais dele. —Uma mulher decente… — repetiu Viola entre gargalhadas —. Hannah, ele me propôs matrimônio e o rechacei. Não, não me olhe com cara tão feia. Você sabe melhor que ninguém por que o rechacei, por que nunca poderei me casar com ele nem com outro homem. Jamais lhe faria algo assim. —Por que não, minha menina? — replicou Hannah. Apesar de ser uma pergunta retórica, respondeu-a de todas formas. —Porque o amo, por isso — confessou, chorando —. Porque o amo, Hannah. — E soluçou entre os braços de sua antiga babá, que eram muito reconfortantes, mas que de algum modo tinham perdido a mágica capacidade de solucionar tudo. Tinha somado bem essa coluna de cifras em questão, pensou ao voltar ao presente, com a cabeça inclinada sobre o livro de contas. De fato, tinha-a somado três vezes e sempre obteve o


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mesmo resultado. O problema era que já não tinha mais papeis que organizar, e não queria que acabasse. Queria abstrair-se no trabalho. Não obstante, a porta foi aberta de repente e apareceu o rosto da Maria, ruborizada e emocionada. —Viola — disse —, mamãe a chama. Enviou-me para te buscar. —Por que? — Viola receou imediatamente. —Não posso dizer — Maria soltou uma risadinha, dando-se importância —. É um segredo. Viola suspirou, exasperada. —Ele não terá voltado, não é verdade? — perguntou a sua irmã —. Maria, se for isso, digame. Não quero voltar a vê-lo, assim já pode ir dizer a mamãe. —Não penso responder — sentenciou sua irmã. Enquanto subia a escada, Viola pensou de repente que talvez fosse Daniel Kirby quem estava com sua mãe. Mas se esse fosse o caso, Maria não estaria tão emocionada. —Nem imagina — ouviu dizer a suas costas, já que ia atrás dela. Ao entrar na sala, viu duas damas com sua mãe, que estava tão emocionada como Maria. Duas damas imponentes, embelezadas à última moda. Uma com um estilo discreto e elegante, e a outra mais atrevida e vistosa. —Viola — disse sua mãe, que ficou em pé igual às duas desconhecidas —. Aproxime-se para saudar estas senhoras, que foram tão amáveis de me visitar e me pedir que as apresente. Maria havia entrado da estadia, mas ela seguia no vão da porta. —Apresento a minha primogênita, Viola Thornhill — disse sua mãe —. Sua Excelência, a duquesa de Tresham, e lady Heyward, Viola. — Assinalou em primeiro lugar à dama elegante e loira, e depois à outra. Mais tarde, Viola não recordou se as tinha saudado ou não com uma genuflexão. Sim recordava que de alguma forma conseguiu aferrar-se a maçaneta da porta, que estava atrás dela, como se o sua vida dependesse disso. Ambas as damas a olhavam muito sorridentes. A duquesa foi a primeira em falar. —Senhorita Thornhill — disse —, espero que nos desculpe por termos nos apresentado sem avisar nem a você nem a sua mãe. Ferdinand nos falou tanto de você que estávamos desejosas de conhecê-la. —Eu sou a irmã dele — acrescentou lady Heyward —. E você é tão bonita como imaginava. E mais jovem do que acreditava. Saberiam?, Pensou Viola. Saberiam? Saberia Ferdinand que tinham ido vê-la? Saberia o duque de Tresham? —Obrigada — replicou ela —. São muito amáveis por visitar minha mãe.


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—Sua Excelência nos convidou a tomar o chá em Dudley House amanhã pela tarde, Viola — informou sua mãe —. Venha aqui e sente-se. Saberiam? —Na realidade, senhora Wilding — atravessou a duquesa —, nós gostaríamos de levar a senhorita Thornhill para dar um passeio. Faz um dia precioso para passar dentro de casa. Pode prescindir dela durante uma hora? —Estou pondo em dia a contabilidade de meu tio — protestou Viola. —É obvio que posso prescindir dela! — afirmou sua mãe —. Corre para pôr um de seus preciosos vestidos. Não sei de onde tirou o pano velho que usa. O que vão pensar de você Sua Excelência e lady Heyward? —Por favor, nos acompanhe — pediu a duquesa com um afável sorriso. —Sim, por favor — acrescentou lady Heyward. Parecia que não ficava mais alternativa que ir trocar de roupa. Dez minutos depois Viola estava sentada em um luxuoso cabriolé ao lado de lady Heyward, com a duquesa sentada em frente, de costas aos cavalos. Por favor, ao parque não, suplicou em silêncio. Entretanto, o cabriolé se dirigiu ao Hyde Park. —A incomodamos e inquietamos — disse a duquesa —. Por favor, não culpe Ferdinand, senhorita Thornhill. Ele não nos enviou. Disse-nos que rechaçou sua proposta de matrimônio. —Depois de ver a estalagem de meu tio, certamente que entenderão quão inadequado teria resultado dito matrimônio — repôs Viola, que uniu suas mãos enluvadas no regaço para não movêlas por causa dos nervos. —Sua mãe é uma dama da cabeça aos pés — comentou a duquesa — e sua irmã menor é encantadora. Não conhecemos à outra. Acredito que também tem um meio-irmão que está no colégio, não é verdade? —Sim — respondeu ela. —Verá, é que tínhamos muita curiosidade — aduziu lady Heyward — para conhecer a dama que conquistou o coração do Ferdinand. Porque você o conquistou, senhorita Thornhill. Sabia? Ou ele esqueceu dizer, como acostumam fazer os cavalheiros? Podem ser tão absurdos, não é, Jane? São capazes de elaborar uma proposta de matrimônio muito decente enumerando todas as vantagens da união em questão, mas se negam a mencionar o único que verdadeiramente importa. Eu rechacei Heyward a primeira vez que me propôs matrimônio, embora fez o ridículo de fincar um joelho no chão e tudo, meu pobre. Todo mundo pensa que é um pedante estirado, ao menos isso é o que dizem Tresham e Ferdie, mas só porque não se parece com eles em nada. Não é um estirado,


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ao menos quando se ganha sua confiança, mas a primeira vez que me propôs matrimônio não fez a menor alusão ao amor. Nem sequer tentou me roubar um beijo. Imagina que irritante me resultou? Como iria aceitá-lo, embora estivesse perdidamente apaixonada por ele? Enfim, o que estava dizendo? —Perguntava pelos motivos que me levaram a rechaçar Ferdinand — recordou Viola. O cabriolé acabava de entrar no parque e o coração pulsava muito depressa. É obvio que essa não era a hora de moda para sair para passear, um momento do dia em que a flor e nata da aristocracia se congregava no parque e para o que faltavam várias horas, mas de todas as formas poderiam reconhecê-la —. Embora o tenho em grande estima, existem razões de peso, acredite. Entre elas, e não a menos importante, minha condição de filha nascida fora do matrimônio de minha mãe. Ao melhor se perguntaram por que meu sobrenome é diferente ao dele. É o sobrenome de solteira dela. —É a filha natural do conde de Bamber — disse lady Heyward enquanto segurava a mão de Viola —. Não tem nada do que envergonhar-se. Os filhos naturais não podem herdar os títulos de seus pais e as posses vinculadas ao mesmo, certo, mas, salvo por esse detalhe, é tão respeitável ser um filho natural como ser um filho legítimo. Isso não a impedirá de casar-se com o Ferdinand. O ama?

—Existe um motivo que tira a importância dessa pergunta — respondeu Viola, virando a

cabeça para ocultar o rosto com a aba do chapéu de palha —. Não posso me casar com ele. E não explicarei. Levem-me de volta à estalagem de meu tio, por favor. Não lhes convém que as vejam comigo. O duque e lorde Heyward se sentirão muito molestos. —Senhorita Thornhill, não se preocupe — a tranquilizou a duquesa —. Vou confessar algo que muito poucos conhecem. Angeline também está a ponto de escutar pela primeira vez. Antes de me casar com Jocelyn fui amante dele. Lady Heyward soltou a mão de Viola. —Alojou-me na casa que Ferdinand a levou a noite de sua volta a Londres — seguiu a duquesa —. Jocelyn continua a mantendo. Temos por costume passar uma tarde ou duas nela sempre que vamos à cidade. Guarda muitas lembranças bonitas. Ali foi onde aprendemos a ser felizes juntos. Mas isso não muda o fato de que fui amante dele. Uma prostituta, se preferir. —Jane! — exclamou lady Heyward —. Que maravilhosamente romântico! Por que não me contou isso antes?


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Então elas sabiam, pensou Viola. Que atrevimento da parte de ambas convidá-la para passear em uma carruagem aberta como essa. —Sempre foi uma questão de orgulho afirmar que jamais seria a amante de ninguém —disse Viola, afastando de novo o olhar —. Excelência, você conheceu um homem. Durante os quatro anos que estive trabalhando, eu conheci tantos que perdi a conta. De fato, nunca pretendi lembrar, nem quis fazê-lo. Era um trabalho. Uma situação muito distinta da sua. Eu era bela. Meus serviços eram muito demandados. Poderiam me reconhecer a qualquer momento. Levem-me de volta a casa, por favor. —Senhorita Thornhill — disse a duquesa, que se inclinou para frente e segurou a mão de Viola —, somos três mulheres. Entendemos certas coisas que os homens não entenderão jamais, nem sequer os homens que amamos. Entendemos que nós não achamos prazenteira a simples natureza do ato que aos homens proporciona tanto prazer, a menos que se trate mais de uma experiência emocional que física, a menos que exista algum tipo de vínculo sentimental com o par em questão. Entendemos que nenhuma cortesã começa sua carreira por vontade própria e com alegria. Sabemos que nenhuma mulher pode encontrar satisfatório esse tipo de vida. E também sabemos, ao contrário dos homens, que a mulher, a pessoa, é um ente além do trabalho que realize para ganhar a vida. Entendo que se encontre incômoda conosco. Possivelmente também esteja irritada. Mas sei, ou melhor pressinto, que nos daríamos muito bem se você permitisse. Ama Ferdinand? Viola virou a cabeça com brutalidade para fulminar à duquesa com o olhar enquanto escapava de suas mãos. —É obvio que o amo — respondeu —. É obvio! Por que se não ia rechaçá-lo? Não seria a cereja do bolo que uma puta nascida bastarda se casasse com o irmão de um duque? Pois esta puta nascida bastarda não vai fazê-lo. Só posso fazer uma coisa para demonstrar o muito que o amo. Uma só coisa! Rechaçá-lo. Posso fazê-lo acreditar que a ideia de retomar minha antiga vida me resulta mais emocionante que a possibilidade de me casar com ele. Se vocês o amam tanto como eu, me levem para casa e contem a ele o recebimento tão frio e desdenhoso que lhes demonstrei. Tenho sentimentos. Tenho sentimentos e já não posso suportar mais esta situação! Me levem para casa.

A duquesa virou a cabeça para dar novas instruções ao chofer e depois se dirigiu a Viola uma

vez mais.


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—Sinto muito — se desculpou —. Angeline e eu somos um par de intrometidas. Mas verá, nos duas queremos muito ao Ferdinand e nós não gostamos de vê-lo tão abatido. E me dói muito ver que você está sofrendo tanto como ele. Escolhemos o parque de forma deliberada. Queríamos que nos vissem com você. Queremos fazê-la respeitável. Viola soltou uma gargalhada amarga. —Não entendem nada. Lady Heyward lhe tocou o braço. —Sim entendemos — a contradisse —. Entendemos tudo. Mas Jane se expressou mal, senhorita Thornhill. Não vamos fazê-la respeitável. Vamos fazer que a respeitem. Se por acaso não sabe, nós, os Dudley, nunca fomos respeitáveis. Eu jamais fui uma tola. Tresham passava a vida em duelos antes que Jane interviesse a tempo e fosse a culpada de que atirassem em uma perna dele. E o duelo sempre era por uma mulher, por certo. Ferdie não resistia a participar das provocações mais escandalosas e perigosas. Claro que jamais quisemos ser respeitáveis. Que aborrecimento! Mas nos respeitam, isso sim. Ninguém se atreveria a nos virar a cara. Se nos der a oportunidade, poderíamos conseguir que a respeitassem também. Seria muito emocionante. Organizaríamos um grande baile e… —Obrigada — a interrompeu Viola em voz baixa mas firme —. As duas são muito amáveis, mas não. Não pronunciaram uma só palavra mais até que chegaram ao pátio da estalagem. O chofer da duquesa desceu da boleia e ajudou Viola a apear. —Senhorita Thornhill — disse a duquesa com um sorriso —, por favor, venha amanhã tomar o chá com sua mãe. Acredito que se rechaçar o convite, ela levará uma desilusão. —Estou encantada de ter conhecido por fim à senhorita Thornhill de Pinewood Manor — disse lady Heyward. —Obrigada. — Viola entrou na estalagem antes que o cabriolé abandonasse o pátio. Tinha um novo plano. Lhe ocorreu de repente depois de sair do parque. Era um plano que a enchia de esperança e de desespero ao mesmo tempo. Mas antes de pô-lo em marcha, precisava perfilar alguns detalhes.


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Capítulo Vinte e Dois Ferdinand levantou no dia seguinte mais tarde do que pretendia. Claro que passou a maior parte da noite na rua, arrastando John Leavering e alguns amigos mais de festa em festa (e não precisamente o tipo de festa que estava acostumado a assistir) e inclusive a dois dos antros de jogo mais famosos. Entretanto, não encontrou o Kirby por nenhuma parte. Sua intenção era passar o dia em Tattersall’s e em um par de lugares mais que Kirby frequentava. Decidiu que deveria armar-se de paciência, embora não era uma virtude que gostasse de cultivar. Se Kirby estava medindo clientes para Viola, teria que fazê-lo nesses lugares que ele pensava controlar. Estava acabando o café da manhã quando o mordomo anunciou que tinha visita e lhe estendeu um cartão. —Bamber? — Ferdinand franziu o cenho. Bamber levantado antes do meio-dia? Que extraordinário! —. Faça-o entrar, Bentley. O conde entrou na sala de jantar após alguns instantes, tão mal-humorado como sempre e com pior aspecto que nunca. Tinha o cabelo alvoroçado e os olhos avermelhados. Não havia se barbeado. Seguro que ainda não se deitou, mas a roupa que usava não era a apropriada para as veladas noturnas. Ia vestido com roupa de viagem. —Ora, Bamber! — Ferdinand ficou em pé e lhe estendeu a mão direita. O conde a desdenhou. Aproximou-se da mesa enquanto levava uma mão ao bolso do capote. Dele tirou um maço de documentos que soltou sobre a mesa com brutalidade. —Aí tem! — disse —. Dudley, em má hora fui aquela noite ao Brookes’S. Quem dera não tivesse posto um pé naquele lugar, digo isso de verdade. Mas o fiz e não há volta atrás. Maldito seja por todos os problemas que me ocasionou — acrescentou enquanto colocava a mão em um bolso interior —. Isto porá um fim a todos os problemas, e espero não voltar a escutar nenhuma só palavra mais sobre o assunto durante o resto de minha vida. Nem seu nem de ninguém. Ferdinand se sentou de novo. —O que é isto? — perguntou, assinalando os papéis e o dinheiro. Bamber pegou um dos documentos e o desdobrou, depois do qual o plantou debaixo do nariz de Ferdinand. —Isto é uma cópia do codicilo que meu pai acrescentou ao testamento algumas semanas antes de morrer e que deixou em York, nas mãos do advogado de minha mãe. Tal como poderá comprovar por você mesmo, legou Pinewood Manor a essa moça, a sua bastarda. A propriedade


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nunca foi minha assim tampouco é sua, Dudley. — Deu golpezinhos ao dinheiro —. E isto são quinhentas libras. A quantidade que depositou na mesa ao apostar contra Pinewood Manor. É o pagamento de minha dívida. Está satisfeito? É obvio que é uma mínima fração do valor da propriedade. Se deseja mais… —É suficiente — o interrompeu Ferdinand, que pegou o documento para lê-lo. Seus olhos se atrasaram em quatro palavras concretas: «minha filha, Viola Thornhill». O falecido conde de Bamber havia reconhecido publicamente a paternidade. Ferdinand olhou Bamber com curiosidade —. Acaba de voltar de Yorkshire? Parece ter passado toda a noite viajando. —É claro que sim — lhe assegurou o conde —. Dudley, posso ser um tipo desenfreado. Com fama de dissoluto. Mas me nego a que me impliquem em alguma fraude ou em uma conspiração. Assim que a moça me disse que se encontrou com meu pai pouco antes que ele morresse… —A senhorita Thornhill? —Teve a desfaçatez de apresentar-se em minha casa — informou Bamber —.Vê-la me deixou espantado. Nem sequer sabia que existia. De qualquer forma, assim que ela me disse, soube que se meu pai quis modificar o testamento, não pôde fazê-lo durante a semana que passou aqui. Recordo porque lhe pedi que fosse ver o Westinghouse e Filhos para aumentar minha atribuição. Pelo amor de Deus, tinha que me manter com mera caldeirinha, e o bom do Westinghouse sempre me soltava um sermão cada vez que ia pedir uma antecipação do seguinte pagamento. Ao que ia, meu pai me disse que tinha ido falar com Westinghouse no dia anterior, mas que não pôde vê-lo porque não se encontrava na cidade. Acredito que a mãe dele, que vivia em Kent ou em algum lugar igualmente inconveniente, tinha morrido e ele teve de ir ao enterro. Meu pai partiu de Londres nesse mesmo dia. Às vezes recorria ao advogado de minha mãe para questões de pouca importância. Assim pensei que podia ter arrumado este assunto com ele. E o outro assunto que mencionou a moça. De fato, pareceu-me mais preocupada com esse assunto que pelo testamento. —Deu uns tapinhas em outro papel que seguia dobrado. —Por que não saíram antes à luz? — quis saber Ferdinand. —Corking não é um homem muito despachado — respondeu Bamber à ligeira —. Esqueceu. —Que se esqueceu? — Ferdinand o olhou sem acreditar. O conde apoiou ambas as mãos na mesa e o olhou a sua vez com os olhos entrecerrados. —Esqueceu — repetiu, enfatizando cada palavra —. Minhas perguntas o fizeram recordar. Deixemos assim, Dudley. Esqueceu. Ferdinand o entendeu imediatamente. O advogado de York trabalhava principalmente para a condessa de Bamber. O falecido conde havia recorrido a ele desesperadamente porque


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Westinghouse não se encontrava em Londres e sabia que não ficava muito tempo de vida para deixar solucionado o futuro da recém recuperada filha. A condessa descobriu a existência do codicilo e convenceu o advogado de que guardasse silêncio. Desconhecia, entretanto, quem tomou a decisão de não queimar os documentos. O caso era que agradecia sobremaneira o fato de que quem quer que fosse não tivesse estado disposto a cometer semelhante maldade. —Não sei onde encontrar à moça — seguiu Bamber —. E, a verdade, tampouco tenho intenção de me incomodar em procurá-la. Não sinto a menor obrigação por ela, embora seja minha meio-irmã. Mas não vou tirar dela o que lhe pertence por direito. Suponho que você sabe onde está. Poderia levar a ela? —Sim — respondeu Ferdinand. Ignorava o conteúdo do outro documento e tampouco sabia por que para Viola era mais importante que o testamento. Alegrar-se-ia muitíssimo quando comprovasse que a confiança que havia depositado no Bamber estava justificada. De modo que não estava em dívida com ele por ter recuperado Pinewood Manor, pensou com ironia. —Bem — disse Bamber —. Vou, então. Vou para casa dormir. Espero não voltar a escutar os nomes Pinewood Manor nem Thornhill na vida. Nem Dudley, já postos. Por certo, Corking enviou uma cópia do codicilo a Westinghouse. — E se virou para partir. —Espera! — exclamou Ferdinand, ao que lhe acabava de ocorrer uma ideia —. Sente-se e tome um café, Bamber. Ainda não acabei contigo. —Maldita seja minha imagem! — replicou o conde, irritado, enquanto afastava uma cadeira da mesa e se deixava cair nela de forma muito pouco elegante —. Hoje mesmo colocaria fogo no Brookes’s e contemplaria como arde até os alicerces se servisse de algo. O que quer agora? Ferdinand o olhou com expressão calculadora. Viola se sentia muito exposta enquanto se aproximava da porta principal de Dudley House, em Grosvenor Square. Aterrava-lhe a ideia de que se abrisse e aparecesse a duquesa, ou de que estivesse olhando por alguma das numerosas janelas orientadas à praça. Nada mais chamar e escutar o golpe da aldrava, assustou-se pela possibilidade de que a duquesa se encontrasse no vestíbulo. Um mordomo com ares de grandeza abriu a porta. Seus olhos a examinaram antes de transladar-se para a rua, momento no qual comprovou que não havia carruagem, nem acompanhante. Nem sequer uma criada. O homem voltou a olhá-la.


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—Quero ver sua Excelência — disse Viola. Sentia-se tão ofegante como se tivesse corrido um quilômetro rua acima. Tremiam-lhe as pernas. O mordomo arqueou as sobrancelhas e a olhou como se ocupasse o lugar de uma barata no escalão social. A probabilidade de que o duque tivesse saído de casa a essas horas não era a maior de suas preocupações. —Se for tão amável de informar de que Lilian Talbot deseja falar com ele… — acrescentou, enfrentando o olhar do homem com uma confiança que estava longe de sentir. Recordou-se que ainda usava a roupa que pôs para passear pelo parque. Era a roupa de uma dama, a roupa que Viola Thornhill pôs para as visitas a seus vizinhos —. Acredito que aceitará me ver. —Entre — disse o mordomo depois de uma pausa tão longa que Viola temeu encontrar-se com a porta no nariz a qualquer momento —. Espere aqui. Supôs que a acompanharia a algum saguão para esperar. Entretanto, nessas circunstâncias a duquesa podia aparecer por qualquer das portas que davam ao vestíbulo. Ou podia descer pela magnífica escada pela qual subia o mordomo nesse momento. Ficou justo ao lado da porta, com a única companhia de um criado embelezado com a correspondente libré. Embora lhe pareceu que a espera se prolongou durante uma hora, passariam cinco minutos no máximo até que o mordomo reapareceu pela escada. —Por aqui — disse com o mesmo tom gélido de voz que havia usado antes. Conduziu-a até uma porta situada à direita de Viola que procedeu a lhe abrir. Ao entrar foi evidente que se tratava de um salão saguão. Uma estadia de planta quadrada, elegantemente decorada com cadeiras situadas ao longo das paredes —. Sua Excelência a atenderá em seguida. — E partiu, fechando a porta ao sair. Passaram outros cinco minutos antes que o duque aparecesse. Viola se expôs em mais de uma ocasião a possibilidade de fugir, mas não podia fazê-lo depois de ter chegado tão longe. Levaria o plano até as últimas consequências. Se o duque de Tresham era o homem que ela pensava que era, aceitaria a proposta. Quando escutou que a porta era aberta, virou-se e afastou o olhar da janela.

Sentiu uma estranha sensação ao vê-lo entrar na estadia. Seu aspecto era tão austero, tão

imponente, tão… aterrador como foi em Pinewood Manor. Entretanto, tinha um bebê pequenino nos braços. Levava-o contra o peito, com a cabeça apoiada em um ombro. Estava chupando um punho e não parava de queixar-se e de fazer ruídos. O duque lhe esfregava as costas, com uma dessas mãos de dedos tão longos.


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—Senhorita… Talbot? — disse, arqueando uma sobrancelha. Viola fez uma genuflexão e levantou o queixo. Não se deixaria avassalar. —Sim, excelência. —No que posso ajudá-la? — perguntou ele. —Quero lhe fazer uma proposta — respondeu. —Ah, sim? Embora o duque falasse em voz baixa, Viola sentiu um nó nas vísceras. —Não é o que acha — se apressou a acrescentar. —Devo me sentir adulado… ou destroçado? — replicou ele, que colocou uma mão na cabecinha do bebê ao notar que o menino começava a mover-se em busca de uma posição mais cômoda. Viola percebeu que havia ternura em sua mão. Embora não havia nem rastro de dita emoção em seu rosto. —Não sei se sabe que lorde Ferdinand Dudley me devolveu Pinewood Manor — começou —, ou que me propôs casamento. O duque voltou a arquear as sobrancelhas. —Preciso saber? — perguntou —. Meu irmão tem vinte e sete anos, senhorita… Talbot. Viola titubeou antes de seguir. —E não sei se sabe que a duquesa e lady Heyward visitaram minha mãe esta manhã e depois me levaram para passear pelo parque. E que a duquesa convidou a minha mãe e a mim a tomar o chá aqui amanhã. Não desejo lhes causar o menor problema — assegurou. Dois dos largos dedos de Sua Excelência esfregavam com delicadeza o pescoço do bebê. —Não tem por que se preocupar— o ouviu dizer —. Não tenho por costume castigar a minha mulher a chicotadas. E minha irmã é responsabilidade de lorde Heyward. —Sou consciente de que minha presença em Londres é um motivo de vergonha para você — acrescentou Viola. —Ah, sim? —Esta manhã me viram em seu cabriolé — assinalou —. Talvez tenham me visto entrar em sua casa. Poderiam me ver amanhã quando vier com minha mãe. E poderiam me reconhecer. O duque pareceu sopesar suas palavras um instante. —A menos que leve uma máscara, suponho que é uma possibilidade muito factível — conveio. —Estou disposta a retornar a Pinewood Manor — assegurou ela —. Estou disposta a viver ali o resto de meus dias e rechaçar qualquer tentativa por parte de lorde Ferdinand para se manter em contato comigo, seja por carta ou em pessoa. Jurarei… por escrito se você assim o exigir.


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Seus olhos eram tão escuros como os de seu irmão, pensou durante o silêncio que seguiu a suas palavras. Não, eram mais. Porque os de Ferdinand sempre delatavam certa emoção. Os desse homem pareciam tão frios como a morte. —Uma oferta extremamente magnânima por sua parte — replicou o duque ao final —. Suponho que leva alguma contraprestação acrescentada, não é? Quanto quer, senhorita Talbot? Estou seguro de que sabe que sou um dos homens mais ricos da Inglaterra. Viola lhe comunicou a soma de dinheiro sem lhe oferecer explicação ou desculpa algumas. O duque entrou na estadia e se virou, colocando-se de perfil para ela. Viola percebeu que o bebê, que tinha os olhos azuis, quase tinha dormido. A massagem estava relaxando-o. —Parece que, você não sabe quão rico sou — repôs Sua Excelência —, senhorita Talbot. Poderia ter pedido muitíssimo mais. Mas já é muito tarde, não é verdade? —Estou pedindo um empréstimo — particularizou ela —. O devolverei. Com juros. O duque se virou de novo para olhá-la e seus olhos lhe pareceram menos inexpressivos pela primeira vez desde que começou a entrevista. Tal parecia que havia despertado seu interesse. —Nesse caso, estou assegurando a respeitabilidade de meu sobrenome e de minha família a um custo incrivelmente reduzido. Surpreende-me você — confessou. —Mas em troca terá que fazer algo por mim — acrescentou ela. —Ah! — O duque inclinou a cabeça para comprovar se o filho estava dormido. Depois voltou a olhá-la —. Sim, não me resta a menor dúvida. Continue. —O dinheiro servirá para saldar uma dívida — explicou —. Quero que você a pague em meu nome. Você, em pessoa. Quero que obrigue o credor a assinar um recibo onde se faça constar que a dívida foi saldada e que não fica nem uma só nota promissória mais. Quero que depois me envie uma cópia ao Cavalo Branco, assinada por ele e por você. —De quem está falando? — O duque havia voltado a arquear as sobrancelhas. —Do Daniel Kirby — respondeu —. O conhece? Posso lhe dar seu endereço. —Se for tão amável… — disse ele em voz baixa —. Se me permite perguntar, por que não paga você se lhe der o dinheiro? Viola titubeou. —Porque nesse caso não será suficiente — respondeu —. Descobrirá outras notas promissórias ou afirmará que me confundi no cálculo dos juros. Se for você, a quantidade será a correta. É um homem poderoso. Sua Excelência a olhou em silencio durante um bom tempo enquanto seu filho dormia placidamente apoiado em seu ombro. —Sim — disse ao final —, acredito que sou. —Fará? — perguntou ela. —Farei.


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Viola fechou os olhos. Não esperava que o duque aceitasse. Tampouco tinha muito claro se seria um alívio ou uma decepção que não o fizesse. E de fato ainda não se decidiu. Ainda não se permitiu pensar no futuro, quando tivesse que cumprir sua parte do acordo. —Nesse caso, esperarei na estalagem de meu tio a que me faça chegar o recibo — disse depois de lhe dar o endereço do Daniel Kirby —. Excelência, deseja que acordemos agora as condições de devolução do empréstimo? O juro que lhe resulta aceitável? Quer que firme algum documento agora mesmo? —Acredito que não será necessário, senhorita Talbot — respondeu ele —. Não me cabe a menor duvida de que saldará sua dívida ao seu devido tempo. Afinal, sei onde vai passar o resto de seus dias, não é certo? E eu, tal como assinalou recentemente, sou um homem poderoso. Viola sentiu um calafrio. —Sim. Obrigada — disse —. Partirei a Pinewood Manor no primeiro carro de postas que saia para lá uma vez que tenha o recibo em minhas mãos. —Estou seguro de que o fará — replicou o duque. Viola atravessou a estadia depressa e abriu a porta. O mordomo estava no vestíbulo. Abriulhe a porta principal e após alguns instantes, ela descia os degraus respirando ar fresco. Tinha sido muito fácil. Acabava de evitar o que até então lhe parecia um futuro iniludível. Sua mãe e seu tio Wesley estavam salvos. E Claire também estava. Apressou-se a cruzar o lugar com a cabeça encurvada, deixando que o calor do sol a alagasse. Por que a vida lhe parecia mais erma que nunca? Por que sentia frio inclusive na alma? A duquesa de Tresham olhou no interior do salão saguão antes de entrar. —Foi? — perguntou, embora fosse desnecessário que o fizesse —. Por que veio sozinha para falar contigo, Jocelyn? Por que usou um nome falso? — A duquesa estava olhando pela janela da habitação infantil enquanto amamentava o bebê e viu a chegada de Viola Thornhill. E avisou o marido, que estava lendo um conto ao primogênito. —Lilian Talbot era seu nome profissional — explicou ele. —Ah! — A duquesa franziu o cenho. —Convenceu-me que lhe pague certa quantidade de dinheiro em troca de partir a Pinewood Manor durante o resto de sua vida e de que não voltemos a saber nada dela. —E aceitou? —Certamente! Mas resulta que é um empréstimo, sabe? — disse, a modo de resposta —. Assim não nos deixará na ruína mais absoluta, Jane. Vai devolver o dinheiro.


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—E ela acredita que isto é o melhor para Ferdinand? — perguntou Jane —. É um gesto tão nobre que raia ao ridículo. —Informou-me, e se desculpou por isso, de que Angeline e você a levaram esta manhã ao parque — seguiu ele —. Mas prometi não açoitar você, assim pode ficar tranquila. —Jocelyn! — exclamou sua esposa, que inclinou a cabeça —. Se propôs aterrar a pobre mulher. Não estará dizendo tudo isto a sério, não é verdade? Não irá romper o coração do Ferdinand… —Enfim, é o efeito que suscito nas pessoas — aduziu ele —. Jane, você é a única pessoa que me desafiou na vida. Casei-me contigo para obrigá-la a me obedecer, mas ambos sabemos o bem que me deu. Jane sorriu muito apesar de si. —Vejo que Christopher está dormido — comentou —. Como o faz, Jocelyn? Sinto-me ofendida. Sou a mãe, mas o único que faz quando eu o tenho nos braços é retorcer-se e chorar se tento embalá-lo para que durma. —É muito esperto e sabe que comigo não vai conseguir comida — respondeu ele —. Assim que o único que pode fazer para aliviar o aborrecimento é tirar uma sonequinha. Os Dudley não cometem o engano de esbanjar energia negativa. Ficamos dormidos e a guardamos para futuras travessuras. Christopher será um traste, muitíssimo pior que Ferdinand e eu juntos… mais Angeline. Acredito que Nick é mais obediente. Jane começou a rir, embora não demorou para recuperar a seriedade. —De verdade vai permitir que a senhorita Thornhill volte para Pinewood Manor? — perguntou —. Ferdinand poderia inclusive desafiar você a duelo se descobrir o que fez. —Isso suporia uma mudança refrescante — repôs Jocelyn —. Faz quatro anos que ninguém me desafia. Esqueci a emoção tão particular que se sente quando vê que apontam com uma pistola. Será melhor que vá a procura dele para lhe dar a oportunidade de que o faça. —Jocelyn, um pouco de seriedade — o repreendeu Jane. —Nunca disse nada mais a sério na vida — assegurou ele —. Tenho que ir procurar o Ferdinand. Devo confessar que a posição de cabeça de família nunca me resultou tão interessante. Leve a este descarado, Jane? Se não me equivocar, molhou-me a manga. Para não mencionar as babas que levo no ombro… Deu um beijo fugaz em Jane enquanto ela tirava o bebê dormido dos braços dele.


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Ferdinand passou boa parte da tarde procurando Daniel Kirby, sem êxito, antes de concluir que, como era habitual nele, estava e deixando levar pelo ímpeto em vez de canalizar a fúria e empregá-la de uma forma medida e efetiva. Porque devia haver uma forma efetiva de usá-la. Não obstante, ia necessitar ajuda. Não teve que analisar muito a situação antes de decidir que seu irmão seria a melhor opção. De modo que pôs rumo a Grosvenor Square. Os duques não estavam em casa, informou o mordomo do Tresham com cara de estaca. A duquesa se encontrava em uma festa ao ar livre organizada por lady Webb. Sua Excelência tinha saído sem mais. —Maldição! — exclamou Ferdinand em voz alta ao tempo que se golpeava repetidamente o cano da bota com a vara—. Nesse caso, terei que ir procurá-lo. Por sorte, não teve que ir muito longe. O tílburi do Tresham dobrou a esquina de Grosvenor Square quando ele subia no cavalo. —Justo o homem ao que procurava! — exclamou seu irmão —. E resulta que estava na porta de minha casa. —Esteve me procurando? — Ferdinand desmontou ao tempo que Tresham desembarcava de um salto do tílburi e estendia as rédeas ao lacaio. —Percorri toda Londres — respondeu seu irmão, que o convidou a entrar a sua casa lhe pondo uma mão em um ombro e dirigindo-o para os degraus. Uma vez dentro, conduziu-o até a biblioteca, fechou a porta e serviu taças de licor —. Tenho que confessar uma coisa, Ferdinand. Por certo, minha duquesa ache bastante provável que acabe me cruzando o rosto com uma luva assim que lhe contar isso. Ofereceu-lhe uma das taças ao Ferdinand, que embora estivesse desejando contar sua notícias, sentiu-se intrigado pelas palavras do Tresham. —O que é? — perguntou. —Aceitei pagar uma certa soma de dinheiro à senhorita Thornhill para que parta a Pinewood Manor e jamais volte a entrar em contato contigo — respondeu seu irmão. —Por Deus! — A fúria do Ferdinand encontrou por fim um oponente disponível —. Deveria ter feito caso à advertência de Jane. Tresham, vou matar você por isso. Seu irmão se sentou em uma poltrona situada junto à lareira e cruzou uma perna sobre a outra, descansado a panturrilha coberta pelo cano da bota sobre a coxa. Não parecia absolutamente preocupado.


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—Na realidade — replicou —, foi a própria senhorita Thornhill quem sugeriu o acerto. E será um empréstimo, não um presente. Devolverá até o último penny com juros. A parte do acerto que lhe será de grande interesse não é essa, mas o pedido adicional que me fez. —Enfim, pois não me interessa — disse Ferdinand, soltando a taça —. Não quero escutá-la. Não me importa a soma com a qual a chantageou, e não me interessam as promessas que tenha feito. Devolverei o ditoso dinheiro e depois irei liberá-la da promessa. Pode não quer voltar a me ver, mas será livre para dizer sim, se essa for sua intenção, em vez de ver-se obrigada a dizer que não. Droga, Tresham. Depois de hoje não voltarei a falar contigo durante toda a vida. Estou tão enojado que nem sequer gostaria de te matar, droga! — virou-se para a porta. —Quer que deixe o dinheiro nas mãos do Kirby — seguiu seu irmão, fazendo caso omisso da grosseria —. E que o obrigue a assinar uma declaração escrita em que confirme que todas as dívidas foram saldadas de uma vez por todas. Jane tinha razão, sabe? Esse canalha a obrigou a trabalhar durante anos para pagar certas dívidas. E ao inteirar-se de que voltou para Londres, sem dúvida descobriu outras notas promissórias… as mesmas que aceitei pagar em nome dela, daí o empréstimo. Conto tudo isto a você com grande relutância, Ferdinand, e o faço porque me parece egoísta desfrutar com exclusividade do prazer de pôr Kirby em seu lugar. Ocorreu-me que ao melhor considera com mais direito que eu de ser o primeiro em lhe apertar… as porcas. Ferdinand virou a cabeça para olhar o irmão por cima do ombro em silêncio. Depois meteu a mão no bolso e tirou o segundo dos documentos que Bamber havia deixado essa manhã na mesa de sua sala de jantar. A princípio resistiu a lê-lo, já que considerava que pertencia a Viola, mas foi incapaz de resistir a quebrar o selo. Nesse momento atravessou a estadia e o entregou ao irmão, que o leu do começo ao fim. —De onde tirou isto? — perguntou Tresham. —Do Bamber — respondeu Ferdinand —. Foi entregue ao advogado da condessa, com sede em York, junto com um codicilo que modificava parte do testamento do falecido conde e no qual deixava como herança Pinewood Manor a sua filha. O advogado, sem dúvida animado pela condessa, esqueceu de forma muito conveniente a existência de ambos os documentos até que Bamber apareceu para recordá-lo e voltou para Londres esta manhã e passou por minha casa. —Assim que o falecido conde de Bamber saldou todas as dívidas faz dois anos — comentou Tresham, que voltou a olhar o papel —. Todas. Ferdinand, aqui há um detalhe muito interessante: os notas promissórias estão em nome do Clarence Wilding. Posto que conheci esse tipo até certo ponto, suponho que eram quantidades consideráveis. E, sem dúvida, tinham alcançado dimensões


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astronômicas quando Kirby as adquiriu e ele deve ter acrescentado juros do duzentos ou trezentos por cento. Está a senhora Wilding a par destas dívidas? Sabe? —Não acredito que esteja — respondeu Ferdinand —. Parecia acreditar sinceramente que Kirby encontrou trabalho como preceptora a Viola e que agora ia encontrar outro emprego desempenhando as mesmas funções. —Nesse caso, ela teve que carregar com todo o peso das dívidas apesar da sua juventude — disse Tresham —. Acredito recordar que tem meio-irmãs ou meio-irmãos menores que ela, não é verdade? —Sim, três. Naquela época seriam crianças — respondeu Ferdinand —. Viola era uma dama por nascimento e por educação. Sua ilegitimidade não deveria ter suposto uma grande barreira para obter um futuro decente. Afinal, seu pai era um conde. Poderia ter conseguido um bom matrimônio. Kirby a privou dessa oportunidade e, em troca, enviou-a direto ao inferno. —Ferdinand, tenha presente que estou fazendo um grande sacrifício ao reconhecer sua precedência neste assunto. Oferecer-me-ia a ser seu padrinho para o duelo, mas não acredito que este tipo ganhou o direito a um desafio honorável, não acha? Entretanto, me permita ajudar. Uma bala entre as sobrancelha seria uma opção muito rápida. Além disso, suportaria um sem-fim de molestas complicações e poderia se ver obrigado a passar os próximos dois anos percorrendo o continente. Pegue a taça de novo, sente-se e vamos ver se entre ambos pomos em marcha um castigo apropriado. —Nem a morte seria apropriada para o que esse homem fez — replicou Ferdinand com ferocidade —. Mas é o melhor substituto que me ocorre. —Caralho! — exclamou seu irmão em voz baixa —. Mas também devemos pensar no melhor para sua Viola. Se cometer um engano, correrá o risco de que se tranque atrás das portas de Pinewood Manor e não volte a sair jamais. Ferdinand pegou sua taça e se sentou.


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Capítulo Vinte e Três Viola lia à manhã seguinte enquanto sua mãe ensinava aritmética a Maria. Na realidade, tinha o livro aberto sobre o regaço e inclusive se lembrava de passar a página de vez em quando, mas notava as mãos geladas, e o coração e a cabeça pareciam a ponto de explodir. Tudo o que precisava estava no pedaço de papel que tinha entre as mãos. Pela tarde um carro de postas partia de outra estalagem ao oeste. Poderia partir. Hannah já havia feito a bagagem. Sua mãe teria uma decepção, é obvio. Estava emocionada pela ideia de tomar chá em Dudley House. Acreditava que lorde Ferdinand voltaria a lhe pedir em casamento e que nessa ocasião ela teria o bom julgamento de aceitar. Entretanto, iria defraudá-la. Sem dúvida alguma Sua Excelência iria ver Daniel Kirby ao longo dessa manhã. Ou talvez tivesse ido no dia anterior, mas havia esperado até esse dia para lhe mandar o documento assinado. Estava segura de que não a deixaria na estacada, já que a alternativa era ter Lilian Talbot por cunhada. Passou a página com uma mão fria e suarenta. E nesse momento a porta da sala foi aberta e apareceu Claire, com uma carta na mão. Viola ficou em pé de um salto, deixando cair o livro ao chão. —É para mim? — perguntou com voz alta. —Sim. Trouxe-a um mensageiro. — Claire estava sorrindo —. Talvez seja do senhor Kirby, Viola. Talvez encontrou um emprego. Viola tirou a carta da irmã. Seu nome estava escrito no exterior com letra angulosa, a do duque, que já conhecia pelo documento que leu em Pinewood Manor. —Irei lê-la em minha habitação — disse, e saiu a toda pressa antes que pudessem protestar. Tremiam as mãos quando se deixou cair na cama e rompeu o selo. Hannah e ela montariam no carro de postas dessa tarde.


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Jamais voltaria a vê-lo. Sobre seu regaço caíram dois documentos. Não prestou atenção já que se dispôs a ler a breve nota escrita na folha que fazia as vezes de envelope. Felicidades. Ambos os documentos foram registrados no escritório de um advogado de York pouco antes que o falecido conde do Bamber morrer. F. DUDLEY Depois de tudo, era a letra do Ferdinand. Pegou o primeiro documento que descansava sobre seu regaço e o abriu. Ai, Deus! Ai, Deus! Ai, Deus! Tremeu tanto a mão que teve que aferrar o papel também com a outra. Era o recibo que seu pai havia obrigado Daniel Kirby assinar, onde assegurava que pagaram todas as dívidas do falecido Clarence Wilding. As assinaturas de ambos estavam bem legíveis. Assim como as assinaturas das duas testemunhas. Era livre. Todos eram livres. Entretanto, também tinha que ler o outro documento. Soltou o que acabava de ler na cama e desdobrou a segunda folha. Manteve a vista cravada nela até que nublou e escapou uma lágrima que caiu sobre o papel. Nunca havia duvidado dele. Nem sequer um momento. Mas era muito doce, muito, ter entre as mãos a prova de que sua confiança era justificada. Pai. Ai, papai, papai!, Pensou. Estava chorando a lágrima viva quando a porta do dormitório foi aberta e sua mãe colocou a cabeça, embora em seguida foi a seu lado. —Viola? — disse —. Ai, querida, o que acontece? É uma carta da duquesa? Mudou de ideia sobre esta tarde? Não importa, de verdade que não. Ai, Deus!, O que acontece? Sua mãe estava a seu lado, abraçando-a, mas Viola lhe estendeu o codicilo anexo ao testamento de seu pai. —Me amava — disse entre soluços —. Me amava! Sua mãe leu o documento antes de deixá-lo de novo no regaço de Viola. —Sim, claro que sim — conveio em voz baixa —. A adorava. Muito depois que nossa relação se danificasse, vinha a casa só para vê-la. Acredito que a amava mais que ninguém no mundo. Quando me casei com seu padrasto, neguei-me a manter qualquer tipo de relação com ele. Estava apaixonada e era muito orgulhosa. Desentendi-me de suas necessidades. Foi meu amante, sim, mas também era seu pai. Há uma diferença abismal… agora sei. Suponho que me zanguei contigo por aceitar Pinewood Manor porque me sentia culpada. Sinto muitíssimo. Pode me perdoar? Me alegro


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de que tivesse razão e de que te deixou Pinewood Manor como afirmava. Alegro-me de verdade, Viola. Viola tirou um lenço do bolso do vestido e o levou aos olhos, mas de momento ao menos parecia incapaz de parar de chorar. —O que é isto? — perguntou sua mãe de repente com voz muito estranha. O recibo, pensou Viola, que baixou a mão a toda pressa, mas já era muito tarde. O documento estava nas mãos de sua mãe, que o lia com expressão desolada e os olhos muito abertos. —Bamber pagou as dívidas do Clarence? — perguntou sua mãe —. Que dívidas? Ao senhor Kirby? — Levantou a vista e a cravou no rosto da filha. Viola não sabia o que dizer. —Me explique isto. — Sua mãe se sentou a seu lado. —Não queria preocupá-la — aduziu Viola —. Estava muito doente depois da morte de meu padrasto. E não teria sido justo para o tio Wesley lhe acrescentar outra carga. Eu… tentei pagar as faturas por minha conta, mas havia muitas. Meu… meu pai teve a amabilidade de pagá-las por mim. Não insista, mamãe, suplicou em silêncio. —Cuidou das dívidas do Clarence, Viola? — perguntou sua mãe —. Dívidas de jogo? Com o salário de uma preceptora? E ajudava a nos manter? —Necessitava muito pouco para mim — respondeu Viola. Por favor, não insista, suplicou de novo. Entretanto, sua mãe ficou muito pálida. —O que fez durante todos esses anos? — quis saber —. Não foi preceptora, não é? E ele não era nosso amigo, não é verdade? —Mamãe… — Viola colocou uma mão no braço de sua mãe, mas ela a afastou e a olhou com cara de espanto. —O que fez? — perguntou a voz em grito —. Viola, o que a obrigou a fazer? Viola meneou a cabeça e mordeu o lábio enquanto sua mãe cobria a boca com uma mão tremula. —Ai, minha menina! — exclamou —. O que fez por todos nós? O que fez durante quatro anos? —O tio Wesley teria ficado arruinado — assinalou Viola —. Por favor, entenda. Os meninos teriam acabado no cárcere de devedores contigo. Mamãe, por favor, entenda. Não me odeie. —Odiá-la? — Sua mãe a abraçou com força e a balançou —. Viola, minha preciosa menina. O que fiz com você? Passou muito tempo antes que Viola se afastasse para limpar o nariz.


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—Acredito que me alegro de que saiba — disse —. É espantoso esconder um segredo tão terrível à família. Mas já terminou tudo, mamãe. Já não tem nenhum poder sobre mim… nem sobre Claire.

—Claire? — perguntou sua mãe. —A teria utilizado se eu não retornasse a Londres — explicou —. Mas agora está a salvo,

mamãe. O recibo assinado apareceu. E Pinewood Manor me pertence. Vou voltar. Uma vez que tenha me instalado de novo, talvez possa vir com os meninos viver comigo. Bem está o que bem acaba, como se costuma dizer. —De onde saíram esses documentos? — quis saber sua mãe. —Lorde Ferdinand Dudley me enviou — respondeu isso Viola —. Deve ter ido buscá-los. —Ai, meu bem. — Sua mãe lhe tocou o braço —. Ele sabe tudo? E mesmo assim a aprecia? Seguro que você sente algo por ele. Viola ficou em pé e deu as costas a mãe. —Agora entende por que é impossível um matrimônio com ele, mamãe — disse —. Além disso, não voltará a me pedir, enviou os documentos mediante mensageiro. —E tinha assinado a nota como «F. Dudley». Sua mãe suspirou. —Pois ele é quem perde — repôs —. Bamber… seu pai estava a par de tudo, Viola? —Sim. —De modo que a liberou da carga e te entregou Pinewood Manor para que pudesse começar de novo — disse sua mãe —. Sempre foi um homem generoso. Não posso negar. Minhas queixa devem ter parecido muito cruéis. Venha a sala tomar uma xícara de chá comigo. Entretanto, Viola meneou a cabeça. —Tenho que escrever uma carta, mamãe — aduziu —. Hannah e eu partiremos a Pinewood Manor esta tarde. Primeiro tinha que escrever ao duque de Tresham. Se a carta chegasse a tempo, economizaria o esforço dele e ela economizaria o dinheiro. De todas as maneiras, a carta lhe asseguraria que pensava manter sua parte do acordo. Ia voltar para casa. Daniel Kirby se acomodou no alto assento do tílburi que levava muito tempo sendo a inveja da metade dos cavalheiros da alta sociedade e sorriu ao homem que tinha ao lado. —Sempre soube que tinha bom olho para o melhor, excelência — comentou. —O melhor em carruagens esportivas? — precisou o duque de Tresham. —Nisso também. — Kirby se pôs a rir.


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—Ora. — Sua Excelência sacudiu as rédeas e os cavalos se dirigiram a rua ao trote, afastando-se dos aposentos do Kirby em seguida —. Estava falando de mulheres. Sim, sempre tive um bom olho para o melhor. —Justo o que obterá com a senhorita Talbot — lhe assegurou o homem —. Os dois anos de ausência aumentaram seu atrativo. Mas talvez seu irmão tenha lhe informado desse fato, excelência, dado que a encontrou em Pinewood Manor. —Certamente — replicou o duque. —Dentro de uma semana estará preparada para receber visitas continuou Kirby. Aferrou-se ao corrimão que havia ao lado quando o tílburi entrou no Hyde Park —. É obvio, deve saber que é cara, mas terá que estar disposto a pagar pelo melhor do melhor. —Sempre fui dessa opinião — admitiu Sua Excelência. Kirby soltou outra risada. —E haverá um custo adicional por ser seu primeiro cliente — acrescentou —. Valerá a pena, excelência. Obterá um prestígio considerável entre seus conhecidos por ser o primeiro em deitar-se com a encantadora Lilian Talbot depois de dois anos. —Sempre é agradável aumentar o prestígio pessoal por uma boa causa — comentou Tresham —. A senhorita Talbot está… ansiosa por retornar ao trabalho? —Trabalho! — Kirby soltou uma sonora gargalhada —. Diz que é um prazer, excelência. Começaria nesta mesma noite se deixasse. Mas queria entregar a alguém… digamos que especial para sua primeira vez. —É certo que me considero especial — replicou o duque —.Valha me Deus! Pergunto-me o que passa aí na frente. Diante deles havia um nutrido grupo de pessoas reunidas a um lado do caminho pelo qual eles transitavam. Era muito estranho, certamente, já que todos iam a pé e essa zona em concreto, meio oculta pela arvoredo e isolada do resto do parque, não era muito frequentada. Conforme se aproximavam, ficou patente que o grupo estava formado por homens em sua totalidade. Um deles, um pouco afastado do resto e apoiado no tronco de uma árvore com os braços cruzados diante do peito, ia embelezado de forma surpreendente. Usava uma camisa branca e calça de montar de couro, do mesmo material que as botas, mas em caso de ter levado colete, jaqueta e chapéu ao parque, não havia nem rastro de ditos objetos nesse momento. —Uma briga? — sugeriu Kirby, com voz aguda pelo interesse. —Se for assim, parece que só há um opositor — comentou Tresham —. E, valha me Deus!, Acredito que é meu irmão. — Diminuiu a marcha dos cavalos até que se detiveram por completo junto ao relaxado Ferdinand Dudley.


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—Caralho! — exclamou este com um sorriso —. Justo o homem a quem queria ver. —A mim? — perguntou Kirby enquanto destacava o peito com um dedo quando ficou patente que lorde Ferdinand não olhava o irmão. Observou ao nutrido grupo, que havia ficado em silêncio—. Queria me ver, milord? —Representa Lilian Talbot, não é verdade? — perguntou Ferdinand. Daniel Kirby esboçou um sorriso jovial, um tanto tímido. —Se queria me ver por esse assunto — comentou —, terá que ficar na fila, após Sua Excelência aqui presente, milord. —Deixe-me ver se o entendo — seguiu Ferdinand —. Leva a carreira da Lilian Talbot, cujo nome real é Viola Thornhill. —Milord, eu gosto de proporcionar certa intimidade ao não revelar seu nome — replicou Kirby. —Filha natural do falecido conde de Bamber — acrescentou Ferdinand. Produziu-se um murmúrio entre os espectadores, para quem esse detalhe parecia ser uma novidade. Kirby começou a inquietar-se. —Bamber — disse Ferdinand, elevando a voz —, é verdade? É Lilian Talbot a senhorita Viola Thornhill, a filha natural de seu pai? —Assim a reconheceu — respondeu o conde de Bamber desde não muito longe. —Eu não… — protestou Kirby. —A senhorita Thornhill levava uma vida tranquila e respeitável com seus meio-irmãos na estalagem de seu tio até que você comprou as dívidas do Clarence Wilding, seu padrasto, equivocome? — perguntou Ferdinand. —Não sei a que vem tudo isto — disse Kirby —, mas… Estava a ponto de apear quando o duque de Tresham o segurou pelo braço, sem fazer pressão, e o homem mudou de opinião. —Ofereceu-lhe a oportunidade de salvar a sua família do cárcere de devedores? — quis saber Ferdinand. —Um momento — replicou Kirby, indignado —, tinha que recuperar o dinheiro de algum jeito. Era uma quantidade considerável. —E por isso criou a Lilian Talbot — disse Ferdinand — e a obrigou a trabalhar enquanto ficava com os lucros. Durante quatro anos. Deve ser uma dívida astronômica. —Era — assegurou Daniel Kirby, mais indignado se possível —. E só fiquei com uma mínima parte dos lucros. Ela vivia rodeada de luxos. E desfrutava de seu trabalho. Aqui há homens que podem testemunhar. —Que vergonha! — exclamaram vários dos cavalheiros presente. Ferdinand levantou uma mão para sossegá-los.


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—Nesse caso, a senhorita Thornhill deve ter levado uma tremenda decepção quando Bamber, seu pai, descobriu a verdade, pagou todas as dívidas, obrigou você a assinar um recibo no qual se creditava dito pagamento e entregou Pinewood Manor a ela, uma propriedade em Somersetshire, onde poderia levar uma vida de acordo com sua educação e bom berço. —Não houve tal recibo — o contradisse Kirby —. E se ela afirmar que… Entretanto, Ferdinand levantou a mão de novo. —Não o aconselho que minta — advertiu —. O recibo apareceu. Tanto Bamber como eu o vimos… e Tresham também. Quando ganhei Pinewood Manor do Bamber em uma partida de cartas, supôs que o falecido conde a tinha enganado, não é verdade? Supôs que o recibo assinado tivesse queimado ou perdido. Uma hipótese muito absurda. Bamber descobriu que seu pai sim mudou o testamento. A senhorita Thornhill é a proprietária e senhora de Pinewood Manor. A suas costas se ouviu um sonoro aplauso. —Descobriu mais dívidas quando acreditava sumida na pobreza — continuou Ferdinand —. Tentou obrigá-la a prostituir-se de novo, Kirby. O murmúrio que se escutava a suas costas cresceu em intensidade e tomou uma aparência ameaçadora. —Não… —Tresham? — interrompeu-o Ferdinand com frieza. —Ia desfrutar de seus serviços dentro de uma semana — respondeu o duque —. Pagando honorários muito acima da tarifa habitual, dado que parece incrementaria meu prestígio e me faria… especial ao me converter em seu primeiro cliente depois de dois anos de ausência. Ferdinand apertou os dentes. —Estava a ponto de rechaçar a oferta quando vi esta curiosa reunião — prosseguiu Tresham —. Como é de esperar, a duquesa me tiraria o fígado sem preocupar-se em me matar antes. Os espectadores prorromperam em gargalhadas. Mas Ferdinand não riu. Estava observando fixamente o nervoso Daniel Kirby, com um olhar ameaçador, uma expressão furiosa e os lábios apertados. —Kirby, aterrorizou e arruinou uma dama — disse — cujo único pecado foi querer a sua família e estar disposta a sacrificar sua honra e sua própria pessoa pela liberdade e a felicidade de seus seres queridos. Pois aqui tem a seu paladino. —Olhe — disse Daniel Kirby enquanto procurava entre os presentes uma cara amiga ou uma via de escape —, não quero problemas. —A verdade é que me importa um nada o que queira, Kirby — replicou Ferdinand —. Porque esta manhã se encontrou com um problema, embora seja seis anos muito tarde para a senhorita Thornhill. Desça do tílburi. Vai receber seu castigo.


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—Excelência — disse Kirby, que olhou com expressão assustada Tresham —, devo pedir que me proteja. O acompanhei de boa fé para uma entrevista. —E conseguiu uma entrevista — repôs o duque enquanto desembarcava de um salto e jogava as rédeas a seu lacaio, que viajava na parte traseira da carruagem. — Desce por seus próprios meios ou rodearei o tílburi e o descerei eu. Terá cinco minutos para se despir de cintura para cima antes de brigar. Não, não faça essa cara de susto. Não vamos nos lançar sobre você como uma manada de lobos. Certo que a ideia tem seu atrativo, mas, verá, alguns somos cavalheiros e estamos sujeitos a nosso ditoso sentido da honra. O prazer deste encontro vai recair por completo em lorde Ferdinand Dudley, quem se erigiu como paladino da dama. Os espectadores expressaram sua conformidade a gritos enquanto Daniel Kirby permanecia onde estava. Escutaram-se vivas e gargalhadas quando o duque de Tresham rodeou o tílburi e Kirby se apressou a apear por seus próprios meios. Ferdinand tirou a camisa pela cabeça e a jogou ao chão. Kirby olhou espantado seu musculoso e forte torso e voltou a afastar a vista. Embora ninguém o tocou, a ameaçadora presença do nutrido grupo de cavalheiros o obrigou a colocar-se no prado, onde se apressaram a delimitar uma zona de grama que faria as vezes de quadrilátero. —Dispa-se, Kirby — ordenou Ferdinand com secura —, ou eu irei despi-lo e não me deterei na cintura. Será uma briga justa. Se me derrubar, poderá ir. Ninguém o deterá. Não vou matá-lo, mas sim vou te dar uma surra que o deixará a beira da morte… com os punhos. Se achar que cair ao chão o salvará, equivoca-se, porque não servirá de nada. Estará inconsciente quando por fim terminar contigo. Assim vou dizer o que tenho que dizer agora. Depois que tenha se recuperado da surra o suficiente para viajar (dentro de uma ou duas semanas, mais ou menos), irá e interporá um oceano entre você e eu. Dito oceano permanecerá entre ambos durante o resto de sua vida. Se alguma vez souber de sua volta, o buscarei e o castigarei de novo… com outra surra que o deixará ainda mais perto da morte. Não vou perguntar se me entendeu. É uma barata rasteira, mas também é esperto… esperto o bastante para escolher uma moça jovem, vulnerável e carinhosa como vítima. Isto é por ela, para lhe devolver a honra diante de todas estas testemunhas. Tire a camisa. Daniel Kirby, um homem baixinho, rechonchudo, muito pálido e tremulo, não demorou para colocar-se no centro do quadrilátero, delimitado pela presença repreensiva e hostil dos espectadores. Os tremores eram visíveis quando Ferdinand pôs-se a andar para ele. O homem fincou de joelhos e juntou as mãos.


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—Não sou um lutador, sou um homem pacífico — assegurou —. Deixe-me ir. Partirei de Londres antes que acabe o dia. Nunca voltará para me ver. Jamais lhe causarei problemas. Mas não me bata. Aiiii! Ferdinand havia estendido um braço para lhe agarrar o nariz entre os dedos indicadores e polegar. Girou a mão e elevou o braço até que teve Kirby nas pontas dos pés diante dele, agitando as mãos com desespero e com a boca aberta, ofegando em busca de ar. Os espectadores estalaram em gargalhadas. —Pelo amor de Deus, homem — disse Ferdinand, com asco —, fica de pé e me lance um soco embora seja. Demonstre um pouquinho de dignidade. Soltou-lhe o nariz e por um instante ficou imóvel diante do competidor, ao alcance de seus punhos e com os braços aos lados, sem defender-se. Entretanto, Kirby se limitou a cobrir o nariz ferido com ambas as mãos. —Sou um homem pacífico — repetiu com um chiado. De modo que seria um castigo puro e duro. Um castigo que seria consumado de forma metódica e calculada. Teria sido muito simples deixá-lo inconsciente com alguns socos. E teria sido muito simples ter pena de um homem cuja força e condições físicas subtraíam qualquer possibilidade de ganhar essa briga. Entretanto, Ferdinand não se permitiu o luxo nem da fúria nem da debilidade que era a pena. O que estava fazendo não era pelos espectadores nem por ele mesmo. Não o fazia por esporte. O fazia por Viola. Tinha afirmado ser o paladino dela. Pois a vingaria da única maneira que podia, por inadequada que fosse: com sua força bruta. Viola era sua dama, e ia brigar por ela. Um estranho silêncio reinava entre os espectadores e Ferdinand tinha os nódulos de ambas as mãos em carne viva quando por fim decidiu que tinha dado ao Daniel Kirby a surra que havia prometido. Só então jogou o braço direito para trás e deu um gancho no queixo com a força necessária para deixá-lo inconsciente. Ficou de pé com a vista cravada no corpo gordinho que jazia a seus pés, com os punhos ainda apertados e com a mente perdida em um abismo de dor vizinha ao desespero enquanto os homens que o rodeavam, amigos e conhecidos, seus pares, começavam a aplaudir. —Se alguém — disse sem levantar a vista, e se fez um silêncio imediato para escutar o que tinha a dizer — tem alguma dúvida de que a senhorita Viola Thornhill é uma dama que merece ser honrada, respeitada e admirada, que o diga agora.


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Ninguém disse nada até que Tresham rompeu o silêncio. —Minha duquesa enviará em um par de dias os convites a uma recepção em Dudley House — anunciou —. Esperamos que a convidada de honra seja a senhorita Thornhill de Pinewood Manor, Somersetshire, filha natural do falecido conde de Bamber. Uma dama a quem desejamos ter a honra de apresentar em sociedade. —E eu espero acompanhá-la a dita recepção, Tresham — disse o conde de Bamber por surpresa —. Uma vez que é minha meio-irmãs. Ferdinand deu meia volta e se aproximou do lugar onde havia deixado a roupa aos cuidados de seu amigo John Leavering. Vestiu-se em silêncio. Embora ouvia um murmúrio animado procedente de quem havia presenciado o castigo, ninguém se aproximou dele. Seu mau humor, tão impróprio dele, era evidente para todos. Não obstante, seu irmão lhe deu um apertão no ombro enquanto colocava o colete. —Hoje estou mais orgulhoso de você que nunca, Ferdinand — disse em voz baixa —. E sempre tive orgulho de você. —Tomara pudesse matar a esse mal nascido — replicou Ferdinand enquanto colocava a jaqueta—. Pode ser que me sentisse melhor se o tivesse matado. —Fez algo muito melhor que isso — assegurou seu irmão —. Devolveu a vida a alguém que merecia, Ferdinand. Não há nenhum homem aqui presente que não esteja disposto a ajoelhar-se para beijar os pés de Viola Thornhill. Apresentou-a como a uma dama que sacrificou tudo por amor. —Não fiz absolutamente nada — o contradisse Ferdinand, olhando os nódulos em carne viva —. Passou quatro anos sofrendo, Tresham. E voltou a sofrer nas últimas semanas. —Pois você terá que passar toda a vida aliviando a dor desses quatro anos — disse Tresham —. Quer que acompanhe ao Cavalo Branco? Ferdinand negou com a cabeça. Seu irmão lhe deu outro apertão no ombro, com força e a modo de consolo, antes de afastar-se.


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Capítulo Vinte e Quatro O guarda acabava de fazer soar o som de lata, a última advertência aos viajantes atrasados para que subissem ao carro de postas antes que abandonasse a estalagem e pusesse rumo ao oeste. Entretanto, só ficava um passageiro por subir. O guarda fechou a portinhola da carruagem com força e ocupou seu lugar na boléia da parte traseira. A senhora Wilding se afastou do veículo com o lenço nos lábios. Maria se aferrava a seu braço livre. Claire levantou uma mão para despedir-se e esboçou um sorriso valente. Viola, que estava sentada junto a janela, o devolveu. Despedidas eram muito difíceis. Tinha tentado convencêlas para que ficassem no Cavalo Branco, mas insistiram em acompanhá-la. Voltaria a vê-las, é obvio, talvez logo. Sua mãe havia declarado com firmeza que seu lugar era na casa de seu irmão, e que devia ficar com ele. Entretanto, aceitou visitar Pinewood Manor no fim de ano. Maria e Claire poderiam ficar todo o tempo que quisessem com ela, acrescentou. E Ben talvez desejasse passar parte das férias estivais no campo. Entretanto, o momento do adeus era difícil de todas as formas. Partia de Londres para sempre. Jamais voltaria a ver Ferdinand. Essa mesma manhã ele lhe enviou valiosos documentos, mas não achou apropriado entregá-los pessoalmente. Acompanhavaos uma nota que havia assinado com um direto «F. Dudley». O duque de Tresham não se pôs em contato com ela. Claro que não importava. Se já havia pagado ao Daniel Kirby, devolveria o empréstimo.


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Ia para casa, recordou-se enquanto o guarda fazia soar de novo a buzina de forma ensurdecedora desde seu assento para indicar aos transeuntes da rua que se afastassem. Tinha sido feliz em Pinewood Manor e o seria de novo. As lembranças não demorariam em desvanecer e voltaria a sanar. Só necessitava tempo e paciência. Ai, mas as lembranças estavam muito frescas e a deixavam em carne viva! Por que não tinha ido vê-la? Embora não fosse o que ela desejava, por que não foi? Por que lhe enviou os documentos com um criado? Ferdinand… A carruagem começou a mover-se e o repico dos cascos dos cavalos sobre os paralelepípedos se impôs ao resto dos sons. Sua mãe estava chorando. Igual a Maria. Mas também sorriam enquanto agitavam as mãos a modo de despedida. Viola esboçou um sorriso decidido e levantou a mão a sua vez. Assim que a carruagem se dirigisse a rua e deixasse de vê-las, sentir-se-ia melhor. Entretanto, acabava de fazer o giro para sair do pátio quando se deteve de supetão e se escutou uma gritaria procedente da rua. —Que o Senhor nos ampare! — exclamou Hannah, que estava sentada junto a Viola —. O que passa agora? O homem acomodado frente a elas e de costas ao chofer colou o rosto no vidro para dar uma olhada ao exterior. —Há uns cavalos e uma carruagem cruzadas justo frente à entrada da casa de postas — anunciou ao resto de seus companheiros de viagem —. O homem vai ter problemas, sim, senhor. Estará surdo? Mais lhe conviria está-lo, pensou Viola, ao perceber que sua família já não estava olhando-a, mas sim observava o motivo do atraso. Do interior da carruagem se escutavam os abafadiços impropérios que lançavam o chofer, o guarda e vários dos passageiros que viajavam nos assentos superiores, e que iam dirigidos ao desafortunado que se deteve na rua, impedindo a saída do carro de postas apesar do aviso do guarda. E nesse momento se ouviu uma gargalhada jovial e outra voz que se impôs às demais. —Vamos, vamos — disse a voz com alegria —. Podem fazer muitíssimo melhor, meus amigos. Nem sequer apitam meus ouvidos. Tenho algo que consultar com uma de suas passageiras. Viola nem sequer teve tempo de surpreender-se antes que a portinhola fosse aberta. —Pelos cabelos — comentou lorde Ferdinand Dudley enquanto olhava ao interior e estendia uma mão para ela —. Venha, Viola. —O que faz aqui? — perguntou ela —. Como se atreve a…?


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—Venho do Cavalo Branco. — Ferdinand sorriu —. Aterrorizei metade da população de Londres obrigando meus cavalos a galopar pelas ruas. Desça. Viola uniu as mãos com firmeza no regaço e o fulminou com o olhar. —Vou para casa — anunciou —. Você está atrasando a partida do carro de postas e está nos colocando em evidência. Por favor, milord, feche a porta. Se antes não lhe apitavam os ouvidos pelos insultos do chofer, deviam estar apitando nesse momento. Outros homens se somaram aos gritos, indignados. Só os passageiros que viajavam no interior se mantiveram em silêncio, atentos como estavam a interessante cena que se desenvolvia diante deles. —Não vá — disse Ferdinand —. Ainda não. Temos que falar. Viola negou com a cabeça enquanto uma das passageiras informava a outros, sussurrando com grande emoção, que o cavalheiro era um aristocrata. —Não há nada mais que dizer — sentenciou ela —. Por favor, vá embora. Estão se zangando muitíssimo. —Que se zanguem — replicou Ferdinand —. Desça e fale comigo. —Vá com ele, bonita — lhe aconselhou a mulher, falando já em voz alta —. É um cavalheiro muito bonito. Se me pedisse, eu iria com ele encantada. Os que a escutaram estalaram em gargalhadas, celebrando a brincadeira. —Vá embora! — exclamou Viola, zangada e envergonhada. —Viola, por favor. — Ferdinand já não sorria. Estava a persuadindo de forma desavergonhada com esses olhos escuros que pareciam atravessá-la —. Por favor, meu amor, não vá. Outros passageiros contiveram o fôlego à espera de sua resposta. Hannah lhe roçou o braço. —Senhorita Vi, será melhor descermos — disse —. Antes que nos expulsem. O chofer e alguns homens mais seguiam vociferando de forma ameaçadora. O guarda havia descido de seu assento para aproximar-se com atitude agressiva de lorde Ferdinand. —Se insistir em ficar onde está — disse o citado, sorrindo de novo —, seguirei o carro de postas e a acossarei em todos os pedágios e em cada parada que faça daqui a Somersetshire. Posso me converter em uma tremenda moléstia quando me proponho. Me dê a mão e desça. Ele conseguiu que fosse impossível permanecer na carruagem, decidiu Viola. Como ia olhar à cara de seus companheiros de viagem durante as longas horas que duraria o trajeto? Como olharia o chofer e o guarda durante as paradas que fizessem com o passar do itinerário? Estendeu o braço devagar, até que sua mão descansou sobre a do Ferdinand. Ele a aferrou com força e imediatamente a ajudou a descer. Viola se encontrou no pátio da casa de postas enquanto os passageiros que


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ocupavam o interior, mais alguns dos que viajavam em cima, além de um importante número de espectadores congregados em torno do carruagem, prorrompiam em aplausos e vivas. —Desça a bagagem da dama e o de sua criada se for tão amável, amigo meu — disse Ferdinand ao guarda com um sorriso enquanto colocava uma moeda de ouro na mão. Assim que olhou o guinéu, o aborrecimento do guarda se evaporou e fez o que haviam dito. Enquanto isso, Ferdinand se dispôs a ajudar Hannah a apear e depois estendeu o braço em direção ao chofer, a quem deu outra moeda para apaziguá-lo. Seus cavalos, cujas cabeças segurava o lacaio, e o tílburi seguiam bloqueando a porta do pátio. Viola observou em silêncio como afastavam o tílburi, depois do que o carro de postas abandonou o pátio e se dirigiu a rua, sem ela dentro. Os cavalariços e o resto dos espectadores começaram a dispersar-se. —Senhora — disse Ferdinand a sua mãe —, dá-me permissão para levar a senhorita Thornhill para dar um passeio de carruagem? Viola não queria passear com ele. Nesse momento o odiava. A essas alturas já deveria ter acontecido o pior. Deveria estar a caminho de casa. —É obvio, milord — respondeu sua mãe com voz afável —. Hannah voltará conosco ao Cavalo Branco. Viola percebeu, conforme as olhava de uma em uma, que todas sorriam como se estivessem presenciando o começo de um final feliz. Até Hannah sorria. Acaso não entendiam sua situação? Ferdinand lhe ofereceu o braço. Ela o aceitou sem mediar palavra e saiu com ele à rua, onde a ajudou a subir ao alto assento do tílburi antes de rodear a carruagem para ocupar seu posto. Uma vez acima, aceitou as rédeas que lhe estendia o lacaio. —Estou muito zangada contigo — comunicou Viola assim que ficaram em marcha. —Ah, sim? — Ferdinand virou um instante a cabeça para olhá-la—. Por que? —Não tinha direito de evitar que fizesse o que havia decidido fazer — respondeu — e o que quero fazer. Esta manhã me mandou documentos muito importantes com um criado e assinou a nota com um muito direto «F. Dudley». E agora de repente precisa falar comigo com tanta urgência que me obriga a descer do carro de postas. —Ah, sim, esta manhã — replicou ele —. Esta manhã tinha um compromisso muito importante, por isso não pude entregar pessoalmente. Mas me ocorreu que tinha direito de ver esses documentos antes o possível. Só me deu tempo de escrever uma breve nota. De verdade assinei assim? Ofendi você? —Absolutamente — respondeu ela —. Por que iria me ofender? Ele se limitou a lhe dar de presente um sorriso.


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—Não há nada mais que falar — recordou Viola —. Já enviei uma carta agradecendo que tenha entregado os documentos. Por certo, de onde o tirou? —Bamber me entregou — respondeu Ferdinand —. Foi a Yorkshire para entrevistar o advogado da condessa. Parece que seu pai usava os serviços dele de vez em quando. Fez antes de morrer porque Westinghouse não estava em Londres quando você partiu para Pinewood Manor. O advogado de York não mencionou os papéis depois da morte do conde, embora certamente seu mau proceder estivesse instigado pela condessa. Bamber não sabia onde encontrá-la para lhe entregar de modo que veio me ver. —Teria parecido do mais lógico que ele também mantivesse a boca fechada a respeito — replicou com brutalidade —. Afinal, não pode ter muita simpatia por mim. —É um sujeito dissipado — reconheceu Ferdinand —, mas não é desonesto. —Bom, pois já está tudo dito. — Virou a cabeça para não olhá-lo —. Poderia ter me explicado isso tudo por carta, sem necessidade de me ver outra vez. Queria partir nesse carro de postas. Queria ir para casa. Não queria vê-lo de novo. —Temos que conversar — replicou ele, e depois guardou silêncio. —Aonde vamos? — quis saber Viola alguns minutos depois. —A algum lugar onde possamos conversar — respondeu Ferdinand. Sua pergunta tinha sido retórica. Estava claro que iam em direção à casa do duque de Tresham… a casa em ele que alojava as amantes. O tílburi se deteve ali pouco depois e Ferdinand desceu de um salto, depois rodeou o veículo para ajudá-la a apear. —Não o farei — disse ela com firmeza assim que seus pés tocaram o chão. —Deitar-se comigo? — precisou ele, sorrindo —. Não, certamente que não, Viola. Ao menos não o fará hoje. Temos que conversar. A sós. Precisamente nesse lugar, onde passaram uma noite de delirante felicidade. Nesse momento o odiou com uma fúria avassaladora. Ferdinand a levou a estadia que mais gostava da casa, o gabinete com o piano e os livros, onde Jane e Tresham deviam ter passado muito tempo. Ajudou-a a despojar do chapéu e demais objetos, e depois a observou enquanto se sentava com grande elegância na poltrona colocada ao lado da lareira. O rosto dela estava muito pálido e inexpressivo. Não o olhou nenhuma só vez desde que entraram na casa. —Por que não confiou em mim? — perguntou Ferdinand. Manteve-se a certa distância dela, com as mãos unidas à costas. Viola tinha perdido peso desde a festa do povoado. Entretanto, estava


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tão preciosa como sempre. Ou talvez a ele parecesse porque era incapaz de olhá-la de forma objetiva —. Por que foi ao Tresham? Nesse momento foi quando o olhou, depois de levantar a cabeça com brutalidade. —Como sabe? —Ele me contou — respondeu —. Viola, pensava que ele não me contaria. Ela o olhou fixamente. —Agora que penso, sim. É uma reação lógica. É lógico que iria contar que estava disposta a negociar com ele, a aceitar dinheiro em troca de me negar a casar contigo. Sim, é lógico que achasse satisfatório te pôr a par do calculista e mercenária que sou. Viu o documento que o conde de Bamber te entregou? Que desilusão levou… e o quanto apavorado deve estar pela possibilidade de que ao final acabe aceitando uma proposta matrimonial tua. Seguia zangada, compreendeu Ferdinand. A essa altura tinha descoberto que Viola Thornhill não se deixava dominar facilmente. Não o perdoaria logo de cara por tê-la obrigado a desembarcar do carro de postas. —Por que não confiou em mim? — insistiu —. Por que não me pediu dinheiro, Viola? Estou seguro de que sabe que teria ajudado. —Não queria que me ajudasse — respondeu ela —. Não queria que soubesse por que tive que trabalhar para o Daniel Kirby. Queria que acreditasse que fui Lilian Talbot porque eu gostava de ser e porque eu gostava de fazer o que ela fazia. Queria que esquecesse a ridícula ideia de que podíamos nos casar. Ainda quero. Fui Lilian Talbot, embora odiasse cada minuto daquela vida. E sigo sendo a mesma que fui. Quem dera o duque de Tresham não tivesse contado nada a você. Não, tomara não tivesse ido a ele nem tivesse esperado outro dia para partir. O documento que me entregou me libertou. Mas não sou livre para viver aqui nem para me relacionar com pessoas como você. —Pois eu acredito que jamais serei digno de você — replicou ele, e suas palavras obtiveram que Viola o olhasse surpreendida, embora não o interrompeu —. Quando descobri de pequeno a vida que levavam meus pais, a mesma que levava a maioria de suas amizades, senti-me tão desiludido com o amor que me separei dele para sempre e me refugiei no cinismo. Além de meus estudos, não fiz nada de proveito em todos estes anos. Nem entreguei amor, é obvio. Você, ao contrário de mim, se agarrou ao amor com todas suas forças apesar do incomensurável padecimento que suportava. E continua se aferrando a ele. Está decidida a não me fazer sofrer, não é verdade? Viola virou a cabeça.


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—Não me faça parecer uma Santa — disse —. Fiz o que tinha que fazer. Mas de todas as formas sou uma puta. —Acredito que só fiz uma coisa de proveito em toda minha vida de adulto — se corrigiu Ferdinand. —Sim. Devolveu-me Pinewood Manor antes de saber que de todas as formas era minha — apostilou ela —. Jamais o esquecerei. —Kirby não voltará a incomodá-la jamais — assegurou ele. —Não. Ferdinand reparou no estremecimento que acompanhou a direta réplica. —Viola, o teria matado pelo que fez a você — assegurou em voz baixa —. Teria me encantado matá-lo. —Não! — Nesse instante se levantou e cortou a distância que os separava. Colocou-lhe uma mão no antebraço e, olhando-o com grande seriedade, disse —: Ferdinand, não se meta em problemas por minha culpa. Já não tem poder sobre mim. Ferdinand cobriu a mão dela com a sua. —Ah, mas eu não disse que foi tudo bem para ele —comentou. Viola cravou o olhar na mão dele e depois olhou a outra, momento em que seus olhos se arregalaram. —Ai, Ferdinand! O que fez? —O castiguei — respondeu —. Não há um castigo adequado para o que fez com você, nem sequer a morte. Mas acredito que demorará alguns dias em poder levantar da cama. E quando se levantar, partirá deste país para sempre. Viola elevou a mão dele e a levou a bochecha, contra a qual esfregou seus machucados nódulos. —É muito feio que me alegre — repôs —, mas me alegro. Obrigada. Embora espere que ninguém descubra, sobre tudo o duque de Tresham. Não deveriam associá-lo a mim de maneira nenhuma. Claro que tampouco importa. Partirei amanhã e ninguém voltará a saber de mim jamais. Ferdinand, hoje não queria vê-lo, mas depois de tudo me alegro de que me interceptou a tempo. Recordarei sempre este último momento contigo. —Na realidade, Tresham sabe — confessou ele —. Foi ele quem levou Kirby ao parque, onde eu o esperava. Viola o olhou, espantada. —Sabe? Ao parque? —Com cinquenta e tantas testemunhas cuidadosamente escolhidas — acrescentou —. A esta altura é possível que o episódio esteja na boca de toda a alta sociedade.


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Viola se afastou dele, pálida de repente. Depois tentou passar a seu lado ao fugir para a porta, mas ele a agarrou pelo braço e impediu. —A estas horas todo mundo falará de sua coragem e de sua devota generosidade para com sua família — precisou Ferdinand —, quando ainda era uma menina. Todo mundo saberá que o vilão que se aproveitou de você foi humilhado e castigado de forma pública. Todo mundo saberá que os poderosos e influentes Dudley, liderados pelo próprio duque de Tresham, ficaram do seu lado e se entregaram em corpo e alma a limpar seu nome e a celebrar seu heroísmo. Todo mundo saberá que lorde Ferdinand Dudley se auto proclamou seu paladino. —Como pode fazer isso? — gritou —. Como pode? Como pode me expor tão publicamente ao…? — Foi incapaz de concluir porque não lhe ocorria uma palavra adequada. Olhou-o soltando faíscas pelos olhos. —Não se dá conta de que era a única forma? — perguntou Ferdinand em voz baixa —. Tresham vai convidar à alta sociedade a uma recepção em Dudley House. Quer que seja a convidada de honra. Viola, assistirá todo mundo. Todos quererão vê-la. Mas o que quererão ver é a nossa versão de você. Verão a verdadeira Viola Thornhill. Causará sensação. —Não quero causar sensação — soltou ela de muito má maneira —. Ferdinand, fui uma cortesã durante quatro anos. Sou filha ilegítima. Sou… —Bamber espera poder acompanhá-la à recepção e apresentá-la à alta sociedade como sua meio-irmã — a interrompeu. —O que? — Viola o olhava sem acreditar —. O que? —Também estava no parque — lhe disse. —Como também estariam doze ou treze de meus antigos clientes. — Olhou-o, indignada. —Sim. — Ferdinand inspirou devagar enquanto sopesava a ideia em sua mente. Não importava —. Mas nenhum deles deixará entrever esse fato de nenhuma maneira, Viola. Será reconhecida como a meio-irmã do conde do Bamber. Será a protegida do duque de Tresham. Será minha esposa… ou isso espero. Ferdinand vislumbrou o momento exato em que a ira a abandonou e foi substituída pelo desejo, que a fez separar os lábios e outorgou um brilho luminoso a seus olhos. —Ferdinand — disse em voz baixa —, não pode ser, meu amor. Não deve fazê-lo. — Lhe encheram os olhos de lágrimas. Ele se apoderou de suas mãos. O que estava a ponto de fazer talvez pudesse parecer ridículo, mas sentia a entristecedora necessidade de render homenagem a coragem dela, a lealdade e ao inesgotável amor. Viola o superava em tudo com acréscimo. Fincou um joelho no chão e apoiou a testa no dorso de suas mãos.


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—Meu amor — disse —, me conceda a honra de se casar comigo. Se de verdade não me quiser, entenderei. Enviarei você a Pinewood Manor em minha própria carruagem o dia posterior à recepção. Mas eu a amo. Sempre a amarei. E meu sonho é me casar contigo e poder viver juntos em Pinewood Manor onde criaremos a nossa família. Viola escapou de suas mãos e ele esperou seu rechaço. Mas depois as sentiu na cabeça, como se o estivesse benzendo. —Ferdinand — a ouviu dizer —, ai, meu amor! Nesse momento se inclinou e a agarrou nos braços com um grito triunfal, que a fez rir a gargalhadas. Deu várias voltas com ela no alto e depois se aproximou da poltrona da lareira, onde se sentou e a colocou no regaço. Viola apoiou a cabeça entre o pescoço e o ombro dele. —É obvio que todo mundo esperará o anúncio de nosso compromisso durante a recepção do Tresham — assinalou ele —. Angie insistirá em celebrar uma fastuosa festa em Saint George, seguida de um pomposo banquete com no mínimo de quinhentos convidados. Tudo isso precedido a noite anterior por um grande baile. —Ai, não — se negou Viola, cujo horror era sincero. —Uma ideia horripilante, não é verdade? — conveio Ferdinand —. Desta vez insistirá ainda mais porque Tresham truncou todos seus grandiosos planos ao casar-se com Jane em segredo mediante uma licença especial. —Podemos nos casar em segredo? — suplicou ela —. Em Trellick, possivelmente? Ele riu baixo. —Não conhece minha irmã — respondeu —, embora suponha que não demorará para conhecê-la. —Ferdinand — disse e jogou a cabeça para trás para olhá-lo aos olhos —, está seguro? Está seguro de verdade e…? Só havia uma forma de lutar com essas tolices. Silenciou-a beijando-a na boca. Após um momento Viola o rodeou no pescoço com os braços e suspirou, rendida. Ferdinand se descobriu pensando em todo tipo de bobagens. Como, por exemplo, que era o homem mais feliz do mundo.

Capítulo Vinte e Cinco


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Viola estava sentada no luxuoso carro de quatro portas do conde de Bamber, com sua mãe a um lado e o conde no assento em frente. Iam de caminho a Dudley House. Tinha sido uma semana muito ocupada. A duquesa de Tresham tinha ido ao Cavalo Branco ao dia seguinte que Ferdinand a impediu de partir no carro de postas. Entregou-lhes um convite formal para que assistissem à recepção que iam celebrar seu marido e ela. Ficou vinte minutos e demonstrou muito interesse por Claire, que nesse momento estava trabalhando no andar de baixo. Sua Excelência mencionou de passagem que sua madrinha, lady Webb, estava pensando em contratar os serviços de uma dama de companhia para que vivesse com ela. Acrescentou que lady Webb passava a metade do ano em Londres e a outra metade em Bath. A duquesa se perguntava se Claire se interessaria pelo posto. No dia seguinte, Claire acompanhou a mãe, prévio convite expresso, a casa de lady Webb, e ficaram encantadas uma com a outra. Claire começaria no novo trabalho após duas semanas, e levava dias delirante de felicidade. —É um gesto muito amável por sua parte, milord — disse a mãe de Viola ao conde. Seu meio-irmão estava muito elegante com a roupa de gala, que lhe conferia um porte poderoso e refinado. Devia ser uns oito ou nove anos mais velho que ela, supôs Viola. Não havia perguntado a sua mãe como passou de preceptora do moço a amante do pai dele. Essa era a vida secreta e íntima de sua mãe. —Absolutamente, senhora — replicou ele, que inclinou a cabeça com gesto tenso. Ele também tinha ido vê-las ao longo da semana. Tratou a antiga preceptora com certo distanciamento, mas não se mostrou descortês. Com Viola foi escrupulosamente amável. Pediu a ambas a honra de as acompanhar à recepção do duque de Tresham. Viola se perguntou nesse momento por que o fazia. Sua mãe tinha sido a amante do pai dele, e ela era o fruto dessa relação ilícita. Entretanto, ele respondeu a pergunta enquanto a formulava. —Meu pai queria que a senhorita Thornhill fosse reconhecida como uma dama. Não penso contrariar seus desejos de modo algum. —É uma dama — replicou sua mãe —. Meu pai… Entretanto, Viola não prestou atenção. Estava nervosa. Sim, é obvio que estava. Seria uma tolice negar. Até sem seu passado escarlate, e embora fosse a filha legítima do Clarence Wilding, jamais teria aspirado a assistir a uma festa da alta sociedade. Embora seu padrasto e a mãe pertenciam a boas famílias, não ocupavam um posto o suficientemente alto no escalão social para relacionar-se com a flor e nata da sociedade.


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Não obstante, negava-se a se deixar levar pelos nervos. Decidiu pensar que Ferdinand e sua família sabiam o que estavam fazendo. Em certo modo, era um alívio que tudo tivesse saído à luz. Adeus aos segredos. Adeus aos medos mais profundos. E adeus às dúvidas. Usava um vestido de cetim branco, com uma delicada prega e uma cauda curta, mas nenhum outro adorno. Ao longo da semana teve que suportar as tediosas provas do vestido, levadas a cabo por uma das costureiras mais prestigiosas de Londres. O vestido, igual aos sapatos, luvas e o leque prateados que tinha escolhido para a ocasião, foram muito caros, mas o empréstimo que pediu ao tio Wesley até que pudesse enviar o dinheiro de Pinewood Manor se converteu em um presente. Sua mãe havia contado tudo e seu tio se zangou com ela, mas foi um aborrecimento tingido de lágrimas e de abraços carinhosos. Doeu que ela se encarregasse sozinha das dívidas do padrasto em vez de ir a ele. Mal viu o Ferdinand em toda a semana. Fez uma visita formal para pedir sua mão a seu tio e a sua mãe, embora ela já tivesse vinte e cinco anos e não fosse necessário. Desde aquele dia só o tinha visto uma vez, muito brevemente. Apertou com força o leque, e sorriu. No dia seguinte voltaria para casa. A carruagem chegou a Grosvenor Square e se deteve diante das portas de Dudley House. Parecia a senhorita Thornhill de Pinewood Manor, pensou Ferdinand enquanto a observava ao longo da velada. Era a elegância personificada com o vestido branco enganosamente singelo. Usava a habitual trança no cabelo, mas recolhidas em um complicado coque. Movia-se com régia elegância. Em caso de que estivesse nervosa, como sem dúvida estava, dissimulava bem. Manteve distância. Todos os presentes em Dudley House (o salão principal, assim como os salões adjacentes, estavam a transbordar com a flor e nata da alta sociedade) saberiam o que fez por ela no Hyde Park uma semana antes. De modo que se negava a que comentassem que a senhorita Thornhill passou toda a noite agarrada a ele, que sem seu apoio não poderia ter feito o que claramente estava fazendo às mil maravilhas. Estava se acotovelando com a alta sociedade. Estava conversando com damas que em outras circunstâncias teriam lhe dado as costas e teriam recolhido as saias por temor a roçá-la. Estava conversando e rindo com cavalheiros a quem tinha conhecido com essa outra personalidade que já havia morrido. E estava fazendo sozinha.


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Certo que Bamber, que fez alarde de uma educação impecável como nunca antes fez, manteve-se ao lado dela durante a primeira hora a fim de apresentá-la pessoalmente a todos os convidados como sua meio-irmã. E Jane, Angie, Tresham e inclusive Heyward se asseguraram de que um deles sempre estivesse no grupo que se reunia a seu redor. Entretanto, ela se comportava como a senhorita Thornhill de Pinewood Manor. Sentisse o que sentisse por dentro, parecia estar a confortável. Ferdinand a observou, primeiro com certa ansiedade e depois com orgulho. O dia que a impediu de partir de Londres não tinha muito claro que acabasse aceitando participar do arriscado plano que Tresham e ele haviam ideado. Talvez a seu modo, pensou, Viola gostava tanto das provocações impossíveis como ele. E nada podia ser mais impossível que sua aparição dessa noite. Não obstante, ali estava Viola, e o plano havia funcionado. Sim, sabia que ela não queria relacionar-se com a alta sociedade depois dessa noite. Sabia que desejava retornar a casa, a Pinewood Manor, e retomar a vida que levava ali. Mas primeiro fez o esforço de assistir, e por fim saberia que a alta sociedade a tinha aceito e que podia voltar quando quisesse. —Muito bem, Ferdie. — Sua irmã se aproximou sem que ele percebesse —. Agora sei por que sempre elogiaram a beleza dela. Se fosse alguns anos mais jovem e ainda seguisse procurando marido, não me cabe a menor duvida de que a odiaria. — Soltou uma alegre gargalhada —. Heyward dizia que estava louco, que estavam os dois, Tresh e você, e que este ardil nunca funcionaria. Mas funcionou, tal como eu disse… e é obvio que Heyward se alegra de que assim tenha sido. Diz que sempre soube que quando por fim se apaixonasse, seria por uma mulher totalmente inadequada, mas que teria que apoiá-lo porque é meu irmão. —Muito magnânimo da parte dele. — Sorriu. —Enfim, sim é — conveio ela —. Já sabe que não há ninguém tão estirado como Heyward. Acredito que por isso decidi me casar com ele a primeira vez que o vi. Era totalmente distinto de nós. O fato de que sua amalucada irmã, que era incapaz de fechar a boca, e um sujeito estirado como Heyward se casaram por amor sempre foi uma fonte inesgotável de risadas para o irmão e para ele. —Ferdie — disse e lhe colocou uma mão no braço —, tenho que lhe contar embora Heyward me advertiu de que não o fizesse porque é vulgar falar destes assuntos em um ato público. Mas só contarei isso a você, claro. Já sussurrei a Jane e ao Tresh. Ferdie, estou grávida… Hoje visitei um médico e é um fato confirmado. Depois de seis anos.


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Sua irmã tinha os olhos cheios de lágrimas, notou Ferdinand quando a olhou e colocou a mão em cima da dela. —Angie — disse. —Tomara — replicou ela —… tomara possa dar ao Heyward um herdeiro, embora diga que não se importa que seja uma menina sempre que nos duas saiamos de tudo sem problemas. —É obvio que não se importará — assegurou Ferdinand enquanto levava a mão dela aos lábios —. Afinal a ama. —Sim. — Procurou o marido com o olhar e lhe deu de presente um sorriso deslumbrante enquanto ele a olhava a sua vez com expressão resignada, pois sabia perfeitamente, como não, que ela estava estendendo a abafadiça notícia da futura paternidade —. Sim, me ama. Sua irmã seguiu tagarelando. Ao longo da velada se celebrou um banquete formal, durante o qual Ferdinand se sentou ao lado da senhora Wilding e de lady Webb, que tinha tomado à mãe de Viola sob a asa ao longo de quase toda a velada. Viola estava sentada no outro extremo da estadia com Bamber, Angie e Heyward. Entretanto, ambos eram muito conscientes um do outro. Seus olhares se encontraram a metade do jantar e se sorriram, embora fosse mais um olhar risonho que um sorriso como tal. Estou muito orgulhoso de você, dizia ele com os olhos. Estou delirante de felicidade, dizia ela com os dela. Amo você, pensou Ferdinand. E eu a você, disse Viola para si mesma. E nesse momento Tresham lhe tocou o ombro e inclinou a cabeça para lhe falar ao ouvido. —Quer fazer o anúncio? — perguntou —. Ainda quer que eu o faça? —É sua casa e sua recepção — respondeu Ferdinand —. E você é o cabeça da família. Seu irmão lhe deu um apertão no ombro, endireitou-se e pigarreou. O duque de Tresham nunca precisava fazer nada mais para reclamar a atenção de um nutrido grupo de pessoas. A estadia ficou sumida no silêncio imediatamente. —Tenho que fazer um anúncio — disse Sua Excelência —. Suponho que a maioria, se não todos, já terão meio que adivinhado. Escutou-se um murmúrio enquanto todos os olhos se cravavam em Ferdinand e Viola. Ele a olhava. Viola estava ruborizada e tinha a vista cravada no regaço. —Terão meio que adivinhado — repetiu Tresham —. Lorde Ferdinand Dudley me pediu faz alguns dias que anunciasse seu compromisso com a senhorita Viola Thornhill esta noite. Escutaram-se vivas e alguns aplausos. Viola estava mordendo o lábio inferior. Tresham elevou uma mão para silenciar os convidados.


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—Tinha preparado um discurso apropriado para felicitar meu irmão e para dar uma calorosa boas-vindas à família a minha futura cunhada. Mas já sabem que os Dudley nunca se comportam como deveriam. Escutaram-se gargalhadas em qualquer parte. —Minha irmã e minha duquesa já estavam planejando um fastuoso casamento em Saint George, um banquete de bodas e um baile — prosseguiu —. Seria o evento mais divulgado da temporada social. —Como que seria, Tresh? — perguntou Angie, com um tom suspicaz—. Ferdie não terá… —Sim, temo que fez isso — a interrompeu Tresham —. Esta manhã me informaram, uma hora depois do sucesso, que Ferdinand e a senhorita Thornhill se casaram mediante uma licença especial, com o ajudante de quarto e a criada de quarto da senhorita Thornhill como únicas testemunhas. Damas e cavalheiros, tenho a imensa honra de lhes apresentar meu irmão e minha cunhada, lorde e lady Ferdinand Dudley. Viola reuniu a coragem necessária para levantar a vista enquanto o duque falava. Seu olhar voou pela estadia até Ferdinand, que estava muito bonito e muito elegante vestido de gala, de preto e branco, e a quem queria de todo coração. Seu marido. Quanto tinha desejado estar com ele ao longo de todo o dia. Mas teve que preparar-se para a recepção e ele tinha assuntos que atender para poder partir com ela a Pinewood Manor à manhã seguinte. E não queriam que ninguém se inteirasse, com a exceção do duque e de sua mãe, a quem contaram depois do breve e maravilhoso casamento celebrada a primeiríssima hora da manhã. Como desejou ao longo de toda a noite aproximar-se dele, que ele se aproximasse. Entretanto, ela tinha insistido em que essa noite devia confrontar sozinha, como Viola Thornhill, e ele lhe deu razão. Não se esconderia atrás de ninguém. A velada foi muito dura, mas havia sentido a presença dele, poderosa e reconfortante, a cada passo, de modo que a tinha suportado, por ela e por ele. Ferdinand havia se arriscado muito ao casar-se com ela nessa manhã antes de ter ciência certa que a alta sociedade não a rechaçaria e não daria as costas a ele. Nesse momento o olhou do outro lado da estadia e ficou em pé quando ele pôs-se a andar para sua mesa, com os olhos escuros muito brilhantes, e um braço estendido. Aceitou a mão que lhe estendia e ele a levou aos lábios.


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Só nesse instante foi consciente do ruído que os rodeava, das vozes, os aplausos e as gargalhadas. Entretanto, o ruído desapareceu por completo uma vez mais. O duque de Tresham, seu cunhado!, Não havia terminado de falar. —Não nos deixaram muito tempo — disse —, mas minha duquesa é uma dama com muitos recursos… É obvio, compartilhei o segredo com ela. E contamos com uma servidão muito diligente. De modo que os convidamos a reunir-se conosco no salão de baile depois do jantar. Mas antes… — Arqueou as sobrancelhas e olhou o mordomo, que se encontrava na porta, e o homem se fez a um lado para deixar passar dois criados que levavam um bolo nupcial branco e prateado de três andares. —Que diabos…! — exclamou Ferdinand enquanto agarrava a mão de Viola para colocar no braço—. Deveria ter imaginado que seria um engano comentar nada antes desta noite. — Tinha uma expressão risonha nos olhos quando a olhou —. Espero que não se importe muito, meu amor. Durante a seguinte meia hora se sentiu muito afligida para saber se importava ou não. Sua mãe se aproximou para abraçá-los, igual fizeram Jane e Angeline, que insistiram que tinham que se chamar de você a partir desse momento, pedido ao qual também se somou o duque. Lorde Heyward e o conde de Bamber a abraçaram e estreitaram a mão do Ferdinand. Pouco depois Jane insistiu que tinha chegado o momento de cortar o bolo e reparti-lo em bandejas de prata para que todos os convidados tivessem a oportunidade de felicitá-los e lhes desejar o melhor. Precisamente o que quiseram evitar casando-se em segredo. Entretanto, foi maravilhoso. Pouco a pouco os convidados abandonaram a sala de jantar até que só Jane, Angeline e a mãe de Viola ficaram com os recém casados. Angeline se queixava amargamente de que seus dois irmãos tivessem arruinado seus planos de organizar uma fastuosa boda. Mas suas queixa se mesclaram com lágrimas, abraços e frases onde assegurava que na vida tinha sido tão feliz. —Além disso — acrescentou —, se tiver uma filha, poderei organizar o casamento mais fastuoso que se viu jamais. Então saberá o que Tresh e você perderam, Ferdie. —Deveríamos nos reunir com os outros — sugeriu ele, olhando a Viola com um sorriso tão tenro que o coração deu um tombo. —Por que temos que ir ao salão de baile? — quis saber ela. —Uma pergunta que tentei não me fazer — respondeu ele com uma careta —. Embora antes há um assunto de vital importância que deveria ter me encarregado assim que Tresham fez o anúncio, meu amor. — tirou a aliança do bolso do fraque e a colocou no dedo… onde esteve por um muito breve período de tempo essa manhã. Continuando, beijou a aliança —. Para sempre, Viola.


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O salão de baile era grande, impressionante e entristecedor, comprovou ela. Os convidados se agrupavam ao redor da pista de dança. Havia uma orquestra sobre o estrado no extremo mais afastado da estadia. Três enormes lustres penduravam do teto com todas as velas acesas. As paredes, as janelas e as portas estavam adornadas com montões de flores brancas, frondosas plantas e prateados chapeados. Escutou-se outra salva de palmas quando Viola e Ferdinand apareceram na porta. O duque de Tresham se encontrava no estrado, esperando que se fizesse o silêncio. —Um baile improvisado, damas e cavalheiros — disse —, para celebrar um casamento. Ferdinand, se for tão amável, acompanhe a sua esposa durante a primeira valsa para abrir o baile. Ferdinand virou a cabeça e olhou Viola enquanto a orquestra começava a tocar. Parecia envergonhado e contente ao mesmo tempo… e também parecia que a situação o divertia. —Caramba, o que faz aqui escondida quando deveria estar dançando? — murmurou. Viola se surpreendeu ao reconhecer as palavras, mas ao recordar onde e quando as havia dito antes lhe devolveu o sorriso. —Estive esperando o par adequado, senhor — replicou. E em voz baixa acrescentou —: Estive esperando você. Aceitou a mão que ele oferecia para que a conduzisse à pista de dança, onde a rodeou pela cintura com um braço. Ato seguido, começou a guiá-la através dos animados passos da valsa enquanto os convidados os observavam. Ferdinand a olhava com expressão risonha. E nesse momento recordou algo mais da noite da festa de maio, algo que aconteceu no prado de Trellick. «Cuidado com um forasteiro alto, bonito e de cabelo escuro. Pode destruí-la… se você não conquistar o coração dele antes.»

FIM

Série Amantes

1 – Mais que uma Amante 2 – Amante de Ninguém 3 – The Secret Mistress


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