A literatura comparada neste início de milênio: Tendências e perspectivas ALÓS, Anselmo Peres. A literatura comparada neste início de milênio: Tendências e perspectivas. Disponível em: <http:// publicacoes.fatea.br/index.php/angulo/article/view/1007/787>. Acesso em dezembro, 2015.
Anselmo Peres Alós Doutor em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor da Universidade Federal de Santa Maria.
RESUMO: Este artigo pretende, através de uma revisitação das origens do método comparatista, mapear o estado da arte desse campo disciplinar, a partir da evolução de diferentes compreensões teóricas e epistemológicas do fazer comparatista.
PALAVRAS-CHAVE: literatura comparada – teoria literária – historiografia literária – epistemologias comparatistas.
RESUMEN: Este artículo busca, a través de una revisitación de los orígenes de la metodología comparatista, mapear el estado del arte de ese campo disciplinar a partir de la evolución de distintas comprensiones teóricas y epistemológicas del hacer comparatista.
PALABRAS-CLAVE: Literatura comparada – teoría literaria – historiografía literaria – epistemologías comparatistas.
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REMONTANDO AOS PRIMÓRDIOS O nascimento da Literatura Comparada como campo diferencial nas investigações literárias data do final do século XIX e inícios do século XX, com a intenção de, a partir da aproximação das diferentes histórias literárias nacionais, construir uma história da literatura universal (CARVALHAL, 1994). Se é verdade que a prática comparatista remonta aos inícios do século XIX, com o trabalho levado a cabo por Madamme de Stäel em De l’Alemmagne, com intenções de compreender e divulgar a literatura, a filosofia e a cultura alemãs na França, também é mister salientar que o projeto mais amplo de construção de uma historiografia cosmopolita de alcance universal nasce com Goethe e a formulação da categoria Weltliteratur (ALÓS e SCHMIDT, 2009). O comparatismo não se limita a uma simples metodologia de abordagem do fenômeno literário ou de corpora de obras específicas; trata-se de um campo disciplinar com uma longa tradição institucional. Basta mencionar, neste sentido, a criação dos departamentos de Literatura Comparada dentro das universidades estadunidenses, como em Columbia, em 1899, e Harvard, em 1904 (COUTINHO, 2006). Mesmo com a sua institucionalização, a literatura comparada estabeleceu, desde os seus primórdios, tensas relações com outras abordagens consolidadas dos estudos literários. O campo de atuação da história, da crítica e da teoria literária, e as relações dos comparatismo com estes campos, de forte tradição em função das abordagens herdeiras dos estudos filológicos, sempre foi tensa, uma vez que buscava sedimentar suas especificidades e sua autonomia em um espaço no qual sempre foi considerada secundária. Com relação à tradição de investigação da historiografia literária, por exemplo, a literatura comparada foi vista durante longo tempo como disciplina-meio, e não como disciplina-fim. Ao longo do século XX, tornou-se quase um lugar comum a afirmação de três grandes subdivisões ou tendências dentro dos estudos comparatistas, as quais convencionalmente são referenciadas como as grandes “escolas” do comparatismo: a francesa, a americana e a soviética (CARVALHAL, 1994; 2004). Ainda que estas correntes não sejam estanques nem respeitem à risca suas denominações marcadamente geográficas (René Etiemble, apesar de francês, aproxima-se muito da escola comparatista americana, por exemplo), cabe aqui uma breve retomada dessa taxionomia que já não dá conta das práticas comparatistas realizadas na contemporaneidade. Sob a rubrica de “escola francesa”, aloca-se uma perspectiva de trabalho que enfatiza sobretudo as questões de estudo de fontes e influências, seja de um determinado autor sobre outro, seja de uma literatura nacional sobre outra. Tania Franco Carvalhal refere-se a esta modalidade de estudos subdividindo-a em três modalidades, de acordo com a ênfase dada ao longo da investigação comparatista: a) estudos cronológicos, quando a ênfase recai em textos literários, autores ou literaturas nacionais que funcionam como fontes, influenciando outros textos, autores ou literaturas nacionais; b) estudos doxológicos, quando se preocupam com o destino de determinadas obras literárias fora da tradição nacional na qual foram produzidas, bem como das opiniões cristalizadas pela crítica, em um determinado país, com relação a um determinado autor estrangeiro;
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c) estudos mesológicos, quando o objetivo do exercício comparatista é a compreensão dos fatores intermediários que funcionam como pontos de contato entre duas ou mais literaturas nacionais, tais como a circulação de traduções de obras estrangeiras em uma determinada literatura nacional (CARVALHAL, 2004). A denominação “escola americana” passa a circular com maior destaque no cenário comparatista internacional a partir da polêmica instaurada pelo trabalho “The Crisis of Comparative Literature”, apresentado no II Congresso Internacional da ACLA (American Comparative Literature Association), em Chapell Hill, no ano de 1958, por René Wellek. No comparatismo de orientação americana, a necessidade de se dar conta de “duas nações e duas línguas distintas” como conditio sine qua non para caracterizar um estudo literário como um estudo de natureza comparatista passa a ser questionado, e emergem propostas como a de estudos que contemplem duas literaturas nacionais, mas apenas uma língua (como estudos de aproximação da literatura brasileira com a portuguesa e a moçambicana), ou estudos que deem conta de uma única nação e duas línguas (como, por exemplo, um estudo hipotético sobre a poesia paraguaia escrita em castelhano e em guarani). A interdisciplinaridade passa a ser acolhida no interior do comparatismo, seja através de estudos que aproximam diferentes linguagens artísticas (envolvendo, por exemplo, literatura e cinema, literatura e pintura, literatura e escultura) ou diferentes campos disciplinares (estudos que dão conta de um determinado corpus de obras literárias, concomitantemente, a partir do ponto de vista dos estudos literários e de outro campo de estudos, como a antropologia, a filosofia, a sociologia ou a psicologia). A escola “soviética”, que tem entre seus principais expoentes fundadores Victor Zhirmunsky e Dionyz Ďurišin, costuma julgar a literatura como produto da sociedade na qual é produzida, buscando sempre estabelecer correspondências entre a evolução da literatura e a evolução da sociedade na qual é produzida, ao longo da história (ZHIRMUNSKY, 1994). O princípio subjacente a este tipo de investigação é o de que para cada mudança ocorrida no funcionamento social de uma determinada nação correponde uma mudança no continuum da literatura, seja no campo das formas, seja no campo dos temas abordados. É inegável aqui o impacto do estudo “Da evolução literária”, de Iuri Tynianov, na estruturação desta corrente comparatista. Segundo Tynianov, há uma correspondência entre o que ele denomina como sendo a “série social” (o conjunto de acontecimentos e relações de causa e consequência no campo da estrutura social ao longo do tempo) e a “série literária”, ou seja, o conjunto de interrelações, fenômenos e mudanças no campo da evolução de uma determinada literatura ao longo do tempo (TYNIANOV, 1971).
DA CONSOLIDAÇÃO E INSTITUCIONALIZAÇÃO DO COMPARATISMO A literatura comparada não é apenas um método ou abordagem de análise literária. A partir da segunda metade do século XX, o comparatismo consolida-se não apenas como estratégia de aproximação do fenômeno literário, mas como um campo disciplinar institucionalizado. Um estudo comparatista
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strictu sensu demandava do investigador o conhecimento de pelo menos duas línguas distintas e e de duas tradições literárias nacionais distintas. Entretando, um dos grandes e espinhosos debates ao longo da história do comparatismo foi o que tentava – e tenta, aonda hoje – chegar a um ponto pacífico com relação aos métodos e ao objeto de investigação deste campo disciplinar. Em defesa das abordagens interdisciplinares, Henry H. H. Remak define a literatura comparada como “a comparação de uma literatura com outra ou outras, e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana” (REMAK, 1961, p. 3). De acordo com Alfred Owen Aldridge, por sua vez, “a Literatura Comparada pode ser o estudo de qualquer fenômeno literário do ponto de vista de mais de uma literatura nacional ou em conjunto com outra disciplina intelectual, ou até mesmo várias” (1969, p. 1). Estas redefinições do campo de atuação comparatista surgem como tentativa de dar conta dos problemas levantados por Wellek em “The Crisis of Comparative Literature”. Mesmo em trabalhos recentes, como no livro de Susan Bassnett, a questão da definição dos limites e da definição do objeto do comparatismo são retomados. A autora afirma que, ao fim e ao cabo, o que se pode afirmar com segurança é que a Literatura Comparada “envolve o estudo de textos entre culturas, que ela é interdisciplinar e que ela está voltada para os padrões de relações entre as literaturas no tempo e no espaço” (1993, p. 1). Como resultado destas discussões, o comparatismo sob a rubrica de “escola americana” passa a se organizar em torno de cinco modalidades relativamente bem diferenciadas, as quais, ao serem recuperadas, permitem que melhor se compreenda o estado da arte do comparatismo no cenário da academia contemporânea: 1) Estudos dos gêneros literários, suas formas e sua evolução ao longo do tempo. Sob a rubrica generalista de estudos de poética desdobram-se abordagens específicas e frutíferas, tais como em teoria dos gêneros literários e a narratologia. A narratologia configura um exemplo pertinente para mostrar como uma abordagem inicialmente restrita ao âmbito dos estudos literários acaba estendendo-se a estudos em outros campos, como a teoria fílmica (AUMONT, 1995) e a análise cultural (BAL, 1994, 1997 e 2000). 2) Estudos de temas ou de mitos literários – método que remonta à Stoffgeschichte1 de orientação germanófila – , de suas recorrências, transformações e deformações ao longo do tempo e do espaço, isto é, do tratamento dado a determinados conteúdos como elementos constituintes das obras literárias. Dentro da tematologia, merece destaque um campo específico: a imagologia, que se preocupa em investigar como os textos literários de uma determinada literatura nacional projetam uma imagem de identidade nacional, e como outras literaturas nacionais recebem e absorvem essas representações. 3) Estudos interartes ou interdisciplinares, isto é, aqueles que aproximam uma determinada obra ou um determinado corpus de obras literárias a uma obra ou corpus de obras artísticas de outra natureza, tal como a música, a pintura, a escultura ou o cinema: Na fase clássica da disciplina, havia, sem dúvida, uma penetração em áreas distintas do conhecimento, mas o locus de per-
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tencimento do estudo era deixado claro. Hoje essas fronteiras foram lançadas por terra e o sentido da interdisciplinaridade se amplia de tal modo que tende a generalizar-se, sendo muitas vezes substituído pela ideia de cultura (COUTINHO, 2006, p. 50).
Uma das evoluções das investigações neste campo, originadas dos estudos de recepção, influências de traduções de obras estrangeiras em uma determinada literatura nacional, abriu margem para o campo dos estudos de traduções semióticas. Neste campo a adaptação de um romance para o cinema, por exemplo, é considerada como uma prática de tradução em chave ampla. 4) Os estudos que se focam no diálogo entre a literatura comparada e outras abordagens do fenômeno literário: a historiografia, a teoria e a crítica literária. O trabalho de René Wellek e Austin Warren com o volume Theory of Literature (1949, p. 29-56) é um dos trabalhos pioneiros no estabelecimento destas relações. 5) Os estudos que dão conta de eras, períodos ou movimentos literários, dedicando mais atenção às características gerais que se fazem presente em uma determinada época do que à análise de obras individuais. Esta vertente está fortemente ligada aos pressupostos operantes na historiografia literária, apontando para uma vocação mais cosmopolita, ao colocar em confronto tradições literárias distintas2. O relatório redigido por Charles Bernheimer, acerca do estado da arte do comparatismo nas universidades estadunidenes, no seio da American Comparative Literature Association (ACLA), e publicado no volume coletivo por ele organizado, intitulado Comparative Literature In The Age of Globalization, bem como as discussões que se produziram em seu entorno, marcaram o ano de 1993 como o momento da virada multiculturalista nos estudos de literatura comparada. Como em todas as grandes viradas, esta reformulação dos rumos epistemológicos da disciplina resultou em ganhos e em perdas. Dos ganhos, o maior deles foi uma fertilização do campo comparatista, a partir da abertura institucionalizada para os estudos culturais, marcando uma tomada de consciência com relação ao papel político da literatura no campo mais amplo dos debates acadêmicos das ciências humanas. Das perdas, a maior delas foi uma fragilização ainda maior da identidade institucional da literatura comparada como campo de investigação, ao assumir seu interesse por objetos de estudo tradicionalmente restritos a outros campos disciplinares, tais como a antropologia e a sociologia3. O impacto deste relatório foi tal que a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), em seu VI Encontro Internacional, ocorrido em 1998, na Universidade Federal de Santa Catarina, faz da proposta epistemológica lançada por Bernheimer em 1993 o tema central do evento: “Literatura Comparada = Estudos Culturais?”. O impacto dos estudos culturais britânicos, na tradição de nomes como Raymond Williams e Stuart Hall, ao revalorizar manifestações culturais das classes subalternizadas, e dando atenção para a cultura popular, impacta de maneira intensa os estudos literários, e uma das principais consequências é o questionamento das categorias de análise mais basilares para a história da literatura comparada, tais como as de nação, língua nacional e literariedade (este último, uma espécie de “porwww.fatea.br/angulo
to seguro” teórico para os estudos literários em cena desde o advento do formalismo russo). Na América Latina, merece destaque o questinamento feito à noção de literaridade por Antonio Cornejo Polar com a sua defesa da heterogeneidade (simultaneidade do oral e do escrito) como traço distintivo das literaturas andinas. Um dos traços diferenciadores do pensamento de Cornejo Polar é a sua insistência no fato de que o ponto de partida para o historiador das literaturas latino-americanas é a sua interpretação pessoal daquilo que conta como “literatura” em sua interpretação e avaliação da herança literária. Para ele, a literatura não é apenas um reflexo ou produto da sociedade na qual foi gendrada, mas uma força produtiva que contribui para o delineamento do perfil cultural desta mesma sociedade. Em outras palavras, a literatura não é apenas uma manifestação cultural de caráter derivativo, mas é também produtiva. Outro traço importante de seu pensamento é a insistência na diferença irredutível que existe entre a temporalidade da tradição popular e a da tradição letrada das elites latino americanas, fortemente marcadas pela herança do pensamento iluminista que guiou o processo de formação das nações latino-americanas. Isto é de grande monta para que se compreenda a questão da marginalização das literaturas dos povos originários da América Latina (sejam as tradições orais, independentemente da língua que utilizam, sejam as manifestações literárias escritas em línguas autóctones, tais como o aimará e o quéchua. Para ele, a tradição latino-americana forma uma totalidade marcada por uma natureza contraditória entre seus diferentes setores e subsistemas, dos quais o confronto mais visível é o embate entre as tradições orais autóctones e a tradição escrita trazida pelos europeus: De fato, como literaturas produzidas por classe e etnias dominadas, [as literaturas latino-americanas de expressão autóctone] estão atomizadas e não-comunicantes: formam, na realidade, verdadeiros arquipélagos, e não está claro se constituem sistemas independentes ou se, em alguns casos, são subsistemas que convergem para um determinado eixo unificador (CORNEJO POLAR, 2000, p. 29).
A importância de se recontextualizar o potencial semiótico da literatura ao produzir sentidos em diferentes contextos históricos coloca o comparatista, já de antemão, em uma postura de leitura dupla, levando em conta simultaneamente o contexto de produção e o de recepção de uma obra: “a História Literária passa a ser a história da produção e recepção de textos, e, para o historiador, esses textos constituem ao mesmo tempo documentos do passado e experiências do presente” (COUTINHO, 2003, p. 77). Cornejo Polar, em outros termos, coloca a mesma questão, ao afirmar que “reconhecer um passado como nosso próprio passado supõe um certo modo de definir o presente e de identificar a índole do futuro” (CORNEJO POLAR, 2000, p. 52). Tomar a chegada dos espanhóis, por um lado, ou a tradição pré-colombiana, por outro, como ponto de origem das tradições literárias da América Latina denuncia dois posicionamentos bastante distintos com relação à valoração da tradição herdada e ao que se projeta como possibilidade para o futuro. Partindo do caminho já aberto pelo comparatista palestino Edward W. Said em Orientalism (1978), Cornejo Polar salienta que a Europa, ao mesmo tempo em que “inventa” a Ângulo 130 - Literatura Comparada v.I, jul./set., 2012. p. 007 - 012
América, “inventa-se” também a si mesma (e até com maior eficácia do que “inventa” a América). Imaginar o outro é um gesto interpretativo bastante produtivo na tarefa de figurar a si mesmo. Não se deve, em nenhum momento, subestimar o poder da imagem sobre aquilo que é imaginado: [...] cada sujeito decide a história que lhe corresponde, à qual pertence e à qual se deve. [...] muitos hispanistas imaginam que as nações andinas começaram com a conquista, e todos os indigenistas encontram as raízes nacionais muito antes, na época pré-hispânica (CORNEJO POLAR, 2000, p. 57).
O PRESENTE E O FUTURO DO COMPARATISMO Como resultado destas reflexões e indagações ao longo do desenvolvimento da Literatura Comparada entendida como campo disciplinar, os cânones revelam-se como os maiores esteios de uma tradição euro/falocêntrica e racista, que privilegiou certas vozes em detrimento de outras na construção dos paradigmas de referência e de valoração estética. O texto literário passa a ser avaliado em suas relações com outras manifestações culturais, sem o privilégio concedido pela literariedade, e os critérios valorativos/judicativos passam a oscilar a partir do locus de enunciação do investigador comparatista. Isso não implica na falência da crítica literária, da história da literatura, ou do próprio comparatismo, mas sim na tomada de consciência de os valores que entram em cena nestes campos disciplinares e não são absolutos. Como consequência salutar, são problematizados os pressupostos paradigmáticos da teoria da literatura, fazendo com que o trabalho de produção de conhecimento acerca dos fenômenos literários redefinam-se como um exercício metacrítico (isto é, “uma crítica da crítica”). A problematização das visões lineares e teleológicas da História faz-se presente nas discussões sobre periodização e historiografia literárias, para se pensar a tradição literária não como o mero acúmulo da produção de tetos ao longo da história, mas como um processo constante de reescritura do passado a partir de problemas do presente, estabelecendo, nos estudos comparatistas, uma verdadeira dialética entre passado e presente4. A relativização dos processos de constituição dos cânones nacionais abre um espaço importante para grupos minoritários que dele se viram excluídos ao longo da história. Assumindo suas próprias vozes e reivindicando tradições culturais próprias, estes grupos passal a lutar pela constituição de outros cânones, ou então, pela flexiblização dos parâmetros do cânone com vistas a abrir espaço para outras obras. As críticas feministas passam a dedicar esforços aos trabalhos de “arqueologia literária”, recuperando a produção das mulheres deixadas à margem da historiografia literária “oficial” e canônica. Um importante exemplo deste trabalho no contexto brasileiro é dado pelos dos volumes da antologia Escritoras brasileiras do século XIX (MUZART, 1999, 2004 e 2009), nos quais são resgatados dos arquivos esquecidos os nomes de mais de cento e cinquenta escritoras brasileiras deixadas à margem dos manuais de historiografia literária brasileira, todos eles sintomaticamente escritos por homens. Discutir e relativizar o cânone viabiliza o abalo de tradi-
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ções e sistemas de valores instituídos pelos centros de poder. A literatura comparada articula, no presente, um importante papel nestas discussões. Enquanto as nações periféricas relativizam os critérios estéticos impostos pelas metrópoles, os países centrais são assolados pelas reivindicações de grupos subalternizados, nos quais mulheres, negros e homossexuais reivindicam parâmetros alternativos para a avaliação da produção cultural em um importante gesto de descolonização do imaginário. Tais discussões não deslocam apenas nossa compreensão acerca de noções como “literatura”, “identidade” e “valor estético”, mas contribuem para uma discussão mais ampla sobre o universal e o particular, instaurando novas possibilidades éticas que invocam a alteridade como conceito-chave na crítica cultural. Redimensionar os regimes de representação das comunidades humanas, preocupação comum à Literatura Comparada e aos Estudos Culturais neste início de século, é o primeiro passo para que se construam novas possibilidades de relacionamento no campo social. Atrevo-me aqui a afirmar que o papel do comparatismo no cenário atual dos estudos literários e culturais pode ser definido como o de viabilizar a constituição de um espaço pós-disciplinar permeado simultaneamente pelo saber e pelo poder articulados sobre a diferença cultural.
NOTAS Stoffgeschichte é um termo de origem alemã, de difícil tradução para outras línguas, em especial para as línguas latinas. Trata da história de um determinado tema (como o amor ou os oceanos) ou mito (como o de Narciso ou o de Don Juan) ao longo do tempo, em diferentes tradições literárias. A tradução mais recorrente para esta ideia, no campo dos estudos comparatistas, seria “tematologia”. A sistematização dessas cinco áreas de estudo comparatista dentro da era clássica da “escola americana” e sua importância para a compreensão do campo dos estudos comparatistas no presente é apresentanda por Eduardo Coutinho (2006, p. 45). 2
A importância dada aqui a este relatório institucional não deve ser lida como um ato de subserviência ao colonialismo cultural estadunidense, mas sim como o reconhecimento da envergadura da ACLA, uma importante associação comparatista que em muito contribuiu para a constituição da Associação Internacional de Literatura Comparada. 3
Para evidenciar isto, pode-se pensar, como exemplo ilustrativo, no trabalho de reescritura do romance Robinson Crusoe (de Daniel Defoe) por Michel Tournier em Vendredi ou les limbes du Pacifique, no qual a missão colonialista de Crusoe sobre a ilha deserta (e sobre a subjetividade de Sexta-Feira) é explicitada. 4
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