Pelos caminhos vilma avila vianna

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Pelos caminhos Haicais

Vilma Avila Vianna



Um vulto vestindo túnica, caminhando devagar pela estrada com a ajuda de um bastão, deixando-se ficar quieto de quando em vez para observar a paisagem ao redor. Esta é a imagem que surge quando penso em haicai – antigo poema japonês. Um andarilho. De seu olhar atento nascem os três versos perfeitos em sabedoria e contemplação. Talvez por isto sinto-me inspirada ao viajar. A vista despoluída do quotidiano permite ver o que se resguarda experimentar o significado de um detalhe no entorno, no ar ou nas águas, atentar para as sutilezas do simples. Perceber o comum é condição necessária a um haijin para fazer vir à tona um haicai. Esse pequeno poema prescinde de títulos, rimas ou metáforas, porque privilegia a beleza das coisas simples, a tranquilidade, a solidão, as mudanças propiciadas pelas diferentes estações do ano, a linguagem natural e espontânea. Tudo e qualquer coisa pode ser um bom motivo. Nas viagens e passeios por espaços desconhecidos instintivamente mantemos um olhar atento e alargado observando o trivial, o muito pequeno, quase invisível, de maneira a gravar o novo com precisão e calma. E muitas vezes, ainda no turbilhão do dia a dia nas cidades, podemos sustentar esse olhar se nos tornarmos apenas passageiros. Então surge um haicai.

Pelotas, 2014.


Pelotas, RS

Tarde de verĂŁo no adeus do sol que se vai cĂŠu afogueado

um grilo na sala canta no ar condicionado novo inquilino


escolhe o presente distraída em meio às flores dia das mães

pássaro se banha nas águas frias do outono visto outro casaco

no galho curvado dois periquitinhos verdes dia da criança


agenda lacrada encerra os sonhos que vĂŞm com o Ano Novo

na calma da noite brilham no escuro as estrelas feliz Ano Novo

pĂĄssaros aos pares pulam alegres na figueira figos maduros


Patagônia

nas águas escultura flutua ao sol do verão iceberg azul


plana soberano um condor da Patagônia no arrebol de verão

cavernas no gelo os glaciares eternos resistem ao sol

“não tire os sapatos” diz o aviso no ônibus rumo ao acampamento


ágeis nas estepes balançam os pelos franjados bando de guanacos

verão luminoso descansam as sombras no pasto condores no céu

águas corredeiras descem claras nas montanhas atritam as pedras


bem empertigados pinguins da Patag么nia curiosos, curiosos


Amaz么nia

Gira gira gira volteia a casa flutuante boto cor de rosa


olhar astucioso com um pequeno graveto macaco faz som

penteio os cabelos numa trança com orquídeas minha mãe no espelho

enfeitam as margens serenas do Rio Negro araras vermelhas

por cima das copas barco navega o Rio Negro cheia do Iguapé


No galho mais alto urubu folha na รกrvore outono em Manaus


BrasĂ­lia

ergue-se na aridez no cĂŠu de nuvens de outono prendedor de roupa


pena pequenina sumida em meio às flores onde a andorinha?

céu claro de abril na catedral de Brasília um anjo flutua

canário do mato ninhando em velha mangueira última do campo


manh達 enevoada chafariz irrompe alto espalha-se em gotas


S達o Paulo

carros pequeninos ao longe nas elevadas hora do pique


dia abrasador até os livros empoeiram deixados na estante

verão avançado montado na galeria presépio resiste

avenida paulista carros espalhados no asfalto rebrilham ao sol


por trรกs dos bambus รกguas deslizam ruidosas refrescam os ares

chuva esperada no interior do mercado esplendor nos vitrais


Foz do Iguaรงu

รกguas soberanas descem com estrondo o vazio dispersam a neblina


acompanham o vento pequenas aves vermelhas bandeiras de outono

nas águas de março rio desce sinuoso encontra o abismo

cerração da noite vibrante terra vermelha gruda nos sapatos


apoiado Ă s grades tucano de peito branco todos querem ver


Porto Alegre/Gramado

aderidos ao tronco fungos na รกrvore de inverno salpicos de rosa


um vento de outono no entardecer do Guaíba o sol se recolhe

nariz na janela e as duas mãos que acenam partida do ônibus

presente de páscoa cestos multicoloridos vendidos na estrada

herói nacional sobre a cabeça de bronze um pombo descansa dedilhando o vazio folhas vermelhas se soltam ao sabor do vento


em fila indiana marcham gingando os gansos terminou o banho


manhĂŁ de segunda no jardim margaridinhas iniciam a semana

correm alteradas dos pingos grossos da chuva formiguinhas pretas

manhã de finados crianças brincam na praça acompanham o vento


dia prolongado uma lufada de vento tapete de flores

junto ao cemit茅rio vento assobia e canta homenagem p贸stuma


cores da Quaresma balangam serenamente frente a igreja cinza


três gansos brancos oscilam na relva seca bicos e pés laranja

ponte de madeira no apoio do ipê- roxo que tranquilidade


Londres

Inverno gris bolas enfeitam os galhos perdida as folhas


moderna Babel primavera em Oxford múltiplos sotaques

anfitriões perfeitos os narcisos florescentes recebem a estação

nas termas de Bath romanos ainda se banham caprichos da história


final de semana um cortejo de bagagens para o aeroporto

aves migratórias no saguão do aeroporto aguardam o voo

domingo de Ramos na Igreja da esquina café após missa

sábado de folga sobre a cadeira na grama criança e a pomba


desenho em mosaico no lugar da árvore morta veraneio em Londres no chão um mosaico ao sol do verão retrata origem da árvore


Alasca

verão – noites brancas cargas aguardam no cais na calma do azul


verde e amarelo embaixo do gelo fino botĂľes de narciso

de vez em quando sobre os seixos comportados lâminas de gelo

galerias se soltam estrondo ecoa no imenso a foto ĂŠ perfeita


Edimburgo

么nibus coloridos enquanto a chuva n茫o vem liberam os turistas


um íbis vermelho sobre o gramado escocês atraso estival

matizam as vitrines grossos tartãs multicores cinzento verão

todos no café aguaceiro de verão perturba a feira


expõe as raízes ao vento frio da Escócia árvore tombada

verão na agenda as garotas de Edimburgo sandálias na chuva de kilt na esquina ignora a chuva incessante tocador de gaita


Taim

entre os aguapés garça moura espera a presa silenciosa e imóvel


trepadeira antiga na primavera florida encobre o telhado

no banho de sol solitário jacaré um tronco na areia

casa destelhada na parede ainda em pé firma-se uma antena

suaves garças brancas a vontade entre o gado lençóis ao vento


Ponta del Este

recolhidas as velas veleiros ao sabor do mar dia do trabalho


Descem até o chão ao vento cálido estival pássaros do hibisco

manhã de calor pássaro acalma a sede na flor da palmeira

tórrida manhã até as formigas se guardam embaixo da folha correm alteradas dos grossos pingos da chuva bando de formigas


projetam as sombras casas brancas de ver達o encontram as ondas


tabuleta avisa “aqui solo corre el vento” calma de verão

cadeira de praia junto às ondas que se agitam farol majestoso


esperam impacientes pescador limpar sardinhas ruidosas gaivotas


CambarĂĄ do Sul

pedra do segredo na tarde outonal confirma perfeito equilĂ­brio


lagoa dos Patos envolta no céu brumoso colcha de retalhos

coleando nos campos estrada traz os turistas volta à natureza

quaresmeira em flor pontoa os verdes pastos um toque rosado

rasgadas com fúria montanhas formaram cânions fundas cicatrizes


Pantanal

Filhote a salvo o ninho de tuiuiĂş na ĂĄrvore mais alta


na tarde que esfria onça atravessa o rio de volta pra casa

revoada de pássaros ponte quebra com um crac e rompe o silêncio


à espera do peixe jacaré bocarra aberta última armadilha

manobra arriscada ariranha açula a onça resguarda os filhotes


deitado na rede micuins por companhia noite sem dormir

um grito no escuro lรก fora na mata virgem morcego escondido


aproveita o sol famĂ­lia de capivara macho na espreita

no pano de copa tuiuiĂş colo vermelho pantanal em casa


SĂŁo JosĂŠ do Norte, RS

caminhos de espuma indicam o rumo a tomar descanso na praia


fim de veraneio carros aguardam na fila barca vagarosa

balanรงam no mar as pequenas algas verdes presente de Natal

praia do mar verde veraneiam lado a lado crianรงas e gaivotas


caminhos de espuma deixam os navios no mar balneário cheio

barcos ancorados num varal improvisado três calções de banho


nas pedras cobertas os biguรกs enfileirados aproveitam a fresca


Lagoa do Peixe

anu branco atento topete alto na espera migalhas de p達o


cavalo encilhado paciente atado Ă cerca tarde calorenta cebolas colhidas nos campos verdes molhados arranjadas em fila seca no jardim flores coloridas brotam na areia do campo

ovo de avestruz branco em meio ao capim alto chocando sozinho luz na flor de cactos amarela aveludada de noite ĂŠ estrela


sacos pretos recolhem do tronco a seiva que escorre a vida que flui dobra as longas pernas cegonha pescoรงo seco pra lรก e pra cรก


hรก vida no tronco fungos alaranjados sobem fortes e viรงosos


Sobre a autora Vilma Avila Vianna, capixaba, radicada em Pelotas. Professora da UFPEL. Autora de contos, crônicas e poesias. Participa do Centro Literário Pelotense e do Grupo Literário da Bibliotheca. Autora do livro de poesias “Haicai”. Coautora dos livros de contos “Contando”, “A Quatro mãos”, “Contando Pelotas – 200 anos”. Premiada em concursos literários. Participa de Antologias e Coletâneas. Colabora nos jornais da região.

Fotos da autora.



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