Semana Santa 2009

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Belém, sexta-feira, 21 de março de 2008

ESPECIAL VOL. 4, ANO I1 MARÇO 2008

O que aconteceu no mundo após a ressurreição de Jesus? Conheça a história dos primeiros missionários cristãos A formação das comunidades e dos Evangelhos

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Suplemento da edição 294 do Voz de Nazaré. Não pode ser vendido separadamente.

ESPECIAL


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Belém, SEXTA-FEIRA, BELÉM, sexta-feira, 21 DE de MARÇO março DE de 2008

jesus cristo e as origens do cristianismo A morte e a ressurreição

A morte na cruz ~ e a ressurreiçAo

de Jesus constituem o

Paixão - Dieric Bouts

ponto central da mensagem

Museu da Capela Real - Granada

do Novo Testamento e

o filho de deus venceu a morte

representam para os cristãos e definitivo. Na verdade, todo o Novo Testamento e toda a teologia cristã têm como objetivo desenvolver o significado do “evento Jesus Cristo”. Jesus Cristo é o centro da profissão de fé cristã. Jesus é o ser humano histórico, que viveu na Palestina no tempo do imperador Tibério e que morreu crucificado sob Pôncio Pilatos; Cristo expressa o papel salvífico no plano divino dessa mesma pessoa. A profissão de fé da comunidade cristã primitiva inclui também sua transcendência divina, pois ela acredita que Jesus ressuscitou glorioso e é Senhor do mundo e da história.

e revolucionou a história da humanidade A prática de Jesus de Nazaré crucificação era a pena capital infligida Roma e a primeira perseguição aos levantara profunda hostilidade entre aos delinqüentes, escravos, criminosos cristãos, sob o imperador Nero (64 seus contemporâneos (Mc 3,31), e revoltosos. No letreiro colocado na d.C.), o historiador romano Tácito especialmente entre as autoridades cruz estava escrito o motivo oficial da (55-125) dá a seguinte explicação judaicas (Mc 3,22), pois consideravam condenação: “Jesus de Nazaré, rei dos à palavra ‘cristãos’: “Este nome lhes absurdas, irreverentes e ultrajosas as judeus” (INRI). A execução ocorreu vêm de Cristo, condenado ao suplício posições tomadas por Ele com relação numa sexta-feira, vigília da Páscoa pelo procurador Pôncio Pilatos, às tradições hebraicas, sobretudo hebraica, quando era procurador da sob o império de Tibério” (Annales acerca das normas de pureza ritual e Judéia, Pôncio Pilatos (26-36 d.C.), quase 15,44,2-5). da observância do sábado. certamente no 7 de abril do ano 30. O corpo de Jesus foi enterrado Quanto às autoridades romanas da A história de Jesus não está por Nicodemos, escriba fariseu, Palestina, Jesus podia aparecer como registrada em crônicas nem nas secretamente discípulo de Jesus, e por um perigoso líder revolucionário atas oficiais dos arquivos romanos, José de Arimatéia, pessoa influente em reivindicando a realeza sobre seu povo nem tampouco em alguma obra de Jerusalém e admirador de Jesus. José contra as prerrogativas do imperador história judaica. As fontes não bíblicas de Arimatéia cavara na colina rochosa, (Jo 19,12.15). que o mencionam são escassas e perto do Calvário, um túmulo em Com efeito, em ocasião de uma viagem resumidas. Evocando o incêndio de forma de gruta. Foi aí que depositaram a Jerusalém para a festa Especial Páscoa - Caderno extra do Jornal Voz de Nazaré Fundador: Pe. Florence Dubois, bta Presidente: Dom Orani João Tempesta, Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará Diretor Geral: Dom Carlos Verzeletti, Bispo Diocesano de Castanhal, Pará Diretora administrativo e financeiro: Marluce da Páscoa, Jesus foi preso, Guerreiro Milhomem Diretor de Comunicação: João Bosco Gomes Jornalista responsável e edição: Felipe Melo (DRT/PA – 1769) Textos: Pe. Giovanni processado e condenado Martoccia Revisão: Vladiana Alves Editoração eletrônica e Edição de Arte: Henrique Corrêa (DRT/PA – 1783) Fotos: Luiz Estumano e de domínio público Redação: (91) 4006-9200/ 4006-9238/ 4006-9239/ 4006-9244/ 4006-9245 Impressão: Gráfica do jornal O Liberal Tiragem: 5 mil exemplares à morte de cruz. A Site: www.fundacaonazare.com.br E-mail: voz@fundacaonazare.com.br EXPEDIENTE

um acontecimento único


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Este nome (cristãos) lhes vêm de Cristo, condenado ao suplício pelo procurador Pôncio Pilatos, sob o império de Tibério Tácito (55-125) Historiador romano

o corpo de Jesus e fecharam o túmulo com uma grande mó de pedra que se rolava diante da entrada (Mc 15,43-47 e par.) A época de Jesus foi a mais fortemente agitada pelas esperanças messiânicas. Desde Herodes, o Grande, violentos ou pacíficos, políticos ou não, os movimentos messiânicos não pararam de aparecer, até provocar a destruição de Jerusalém no ano 70 pelos romanos e o aniquilamento do Estado judaico na Palestina. O grupo mais conhecido entre os movimentos messiânicos de revolta nessa época é o dos zelotas. Fundada por Judas Galileu, a seita dos zelotas era um partido religioso que fazia da espera messiânica um programa político. Outros, como João Batista e seu movimento, anunciavam apenas a vinda iminente do Messias, sem caráter político manifesto nem uso de violência. Eles confiavam na intervenção definitiva de Deus para ver o reino messiânico e o fim da dominação romana. Assim, surgiu também a seita que viu em Jesus o Messias e que, depois de sua morte na cruz, esperava sua volta gloriosa. Devido à grande confusão que reinava na Palestina, ficava difícil para os estrangeiros distinguir entre os movimentos políticos e os de caráter apocalíptico, mesmo porque eles tinham muito em comum e seus partidários aderiam freqüentemente aos novos líderes que iam surgindo. No grupo de Jesus, com efeito, havia

zelotas, fariseus, cobradores de impostos, mulheres, discípulos do Batista. Não surpreenderia, portanto, se os romanos ignorassem o verdadeiro significado do projeto de Jesus, sua pregação, seus gestos simbólicos, suas curas, e o tivessem condenado à morte como um perigoso revolucionário. De fato, eles reprimiram muitos movimentos messiânicos que pregavam ódio contra Roma e recusavam pagar os impostos, crucificando, ou matando de qualquer outra forma, todos seus líderes. É difícil também determinar exatamente o papel desempenhado pelas autoridades judaicas, que a tradição cristã primitiva, entretanto, considerou principais responsáveis pela morte de Jesus.

É provável, ao que tudo indica, que, preocupadas em manter o status quo, tenham denunciado Jesus como revolucionário e colaborado para sua condenação. De fato, Jesus foi morto na cruz como profeta messiânico, do mesmo modo que outros agitadores. Mas o movimento escatológicomessiânico surgido com Jesus não morreu. A tradição comum dos Evangelhos relata as experiências pascais de alguns discípulos, principalmente as mulheres, que atestaram terem encontrado Jesus ressuscitado. Entretanto, Jesus ressuscitado não é logo reconhecido. Ele leva a pessoa a um ato de fé, através de um gesto simbólico – a partilha do pão como no caso dos discípulos de Emaús –, ou por suas palavras – como com Madalena –, ou também por um “sinal” – como a pesca no mar de Tiberíades (Lc 24,30s; Jo 20,16; 21,4s). Os discípulos são convidados a reconhecer Jesus de Nazaré nessa personagem misteriosa. Madalena, reconhecendo Jesus, quer tocá-lo e retê-lo. Ela crê que ele ficará ainda na terra como antes. Não será assim. Mas Jesus não abandona os seus, ele estará sempre com eles; sua presença será diferente, mas também real.

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PADRE GIOVANNI MARTOCCIA é missionário da Pia Sociedade São Francisco Xavier. Mestre em Bíblia pelo Studium Biblicum Franciscano de Jerusalém, atualmente, ele é professor de Sagradas Escrituras no Instituto Regional para a Formação Presbiteral, em Belém, e pároco de Nossa Senhora do Rosário, no município de Colares, Pará. Italiano, ele tem 57 anos, 29 dedicados ao sacerdócio e está no Brasil desde 1995. Foi colaborador na produção dos textos deste Especial.

Sepultamento Fra Angelico Alte Pinakothek, Munique


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Incredulidade de São Tomé Caravaggio Sanssouci, Potsdam

Palavra, o presidente da assembléia repetia os gestos

10,41). A própria Ressurreição de Jesus e suas

de Jesus, dizia suas palavras sobre o pão e o vinho e

aparições aos discípulos, tanto às mulheres como

Jesus estava lá. Pela fé, os olhos se abrem e os cristãos

aos apóstolos, foram “fatos” que escapam ao

reunidos sabem que Jesus está no meio deles e que

conhecimento empírico, ao estudo cientifico e à

eles o encontram realmente. Mesmo se não o vêem,

comum percepção obtida por meio dos sentidos.

Após acreditar na ressurreição de

estão à mesa com ele, como no Cenáculo ou em

Daí a dificuldade dos pregadores de convencer

seu Mestre, ele seguiu em missão

Emaús, e unem-se a ele pela comunhão.

seus ouvintes acerca da verdade da Ressurreição.

São Paulo faz memória dessa tradição na Carta aos

Os próprios apóstolos foram os primeiros a

Coríntios: “Eu mesmo recebi do Senhor o que vos

terem dúvidas (Lc 24,11-41).

transmiti: na noite em que foi entregue, o Senhor

Eles pensavam que estavam vendo coisas, que se

Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o

tratasse de uma ilusão. Por isso, o apostólo Tomé

e disse: “Isto é o meu corpo, dado para vós; fazei

queria absolutamente tocar com o dedo as chagas

isto em memória de mim...” (1Cor 11,23s).

do corpo de Jesus.

A experiência do encontro com Jesus vivo,

Os Evangelhos, muitas vezes e de várias maneiras,

após sua crucificação e sepultamento, foi uma

destacam o chamado de atenção de Jesus aos

experiência de fé, ainda que real. Foi uma

apóstolos por eles demorarem a acreditar (Lc

concessão de Deus àqueles que iriam se tornar

24,25; Jo 20,27; cf. Mc 16,11 e Mt 28,17). As

as testemunhas do Ressuscitado até os confins

próprias mulheres não foram ao túmulo impelidas

da terra. Não se manifestou a todo o povo (At

pela esperança de assistir ao grande evento da

O APÓSTOLO TOMÉ, também chamado Dídimo, era galileu e pescador.

evangelizando parte da Pérsia e da Índia, onde morreu martirizado

Ao escrever o relato dos discípulos de Emaús, Lucas reproduz a experiência da “fração do pão” das primeiras comunidades. Na primeira parte das reuniões aprendia-se a conhecer a pessoa de Jesus, fazendo-se uma leitura comentada do Evangelho. Quando os corações estavam aquecidos pela luz da


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vitória da vida, mas apenas por um sentimento de

mundo, a existência de cada criatura encontram-

de modo familiar, como na vida do dia-a-dia:

piedade e saudade, visitar o sepulcro (Mt 28,1),

se agora iluminados pela luz do amor divino

ele se fez ver, tocar, conversou, comeu, andou.

levar ungüentos (Mc 16,1). O sepulcro vazio,

que emana do Crucificado, inundando a história

No entanto, Jesus quis também mostrar que

porém, mais do que a prova da Ressurreição, é a

humana de alegre esperança até a manifestação

ele era de outro mundo e escapava à condição

confirmação que o Ressuscitado é o mesmo que foi

final de sua glória. Dela poderá participar todo

humana: de repente, ele estava lá, todas as portas

crucificado, o elo entre o Jesus da história e o Cristo

aquele que responder com fé e amor, pois essa é

fechadas... e de repente não estava mais lá!

da fé, entre o Cristo humilhado e o Jesus glorificado.

a vocação da humanidade e o destino que Deus

Noutros relatos, acentua-se sua glória de

A ressurreição de Jesus foi um acontecimento

preparou para ela (1Ts 3,13).

ressuscitado. Jesus é exaltado e triunfante junto

misterioso, que não se podia ver, nem registrar, nem

Assim, Jesus não é um que voltou à vida, como

de Deus, após sua vitória sobre a morte. Ele é

filmar; que se passou sem testemunhas.

Lázaro reanimado, chamado a uma prolongação

declarado Senhor do universo. No encontro da

É um acontecimento do mundo de Deus e, então,

da existência que terminará algum tempo depois.

Galiléia, ele se apresenta assim: “Toda a autoridade

nos escapa. Mas é também um acontecimento

Não, Jesus não pode mais morrer, pois ele

sobre o céu e sobre a terra me foi entregue” (Mt

bem real da história dos homens; nenhum outro

entrou num novo gênero de existência. Desta

28,18). Estes dois gêneros de relato são feitos

acontecimento teve tal impacto na vida do mundo.

nova vida não se pode fazer idéia exata, pois

para completarem-se.

Os apóstolos de Jesus e os primeiros cristãos, de

ela é do mundo de Deus, e o mundo de Deus

quem os Evangelhos trazem com fidelidade a fé

nos ultrapassa. Só sabemos que seremos

e o pensamento, tinham a certeza e as provas de

semelhantes a ele, porque o veremos tal

que Jesus não ficou sob o poder da morte, mas

como ele é (1Jo 3,2).

que ele entrara numa vida nova e está vivo junto

Vemos nos Evangelhos dois tipos de

de Deus. Seu corpo ressuscitado é um corpo

encontro com Jesus ressuscitado. Em certos

recriado por Deus, transfigurado pelo Espírito,

relatos acentua-se este fato: depois de sua

incorruptível e celeste (1Cor 15,42s).

morte, Jesus foi encontrado vivo. Mas ele

Na sua vida nova, Jesus não está mais ligado

devia dar provas de que não era um espírito, um

às condições habituais da existência na terra.

fantasma (Lc 24,36-43). Ele se apresentou, então,

Eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo Jesus aos discípulos, enviando-os em missão, antes de sua subida aos céus (Mateus 28, 20b)

Ele escapa às leis do espaço e do tempo, não precisa de passagem para sair do túmulo, ou de porta aberta para entrar em qualquer parte. Ele pode também estar presente em nossa vida e comunicar-nos seu amor, sua graça, sua luz, sua paz. As últimas palavras do Evangelho de Mateus ensinam que Jesus não se despediu, mas garantiu: “Eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo”. Assim, Jesus não fala de sua partida, mas declara que sua presença é permanente. No início de seu Evangelho, Mateus dissera que Jesus era o “Emanuel”, o “Deus conosco”. Ele termina seu Evangelho como começou. A história de Jesus na terra terminou. Agora será a história de sua presença misteriosa entre nós. Para a tradição cristã original, Jesus não é uma figura do passado mas, antes de tudo, o Senhor ressuscitado, que atua na vida da Igreja com seu poder salvífico e sua Palavra de vida. No encontro com Jesus, o Autor da Vida (At 3,15), cada pessoa recebe um novo presente, porque a vida, o

Ceia de Emaús Caravaggio Galeria Nacional, Londres


Mistério de Jesus Cristo 6

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o ressuscitado revela o autêntico rosto de deus

Para os apóstolos e para os discípulos da primeira hora, e para os que vieram depois, como Paulo e os Evangelistas, Jesus de Nazaré era o Cristo (o Messias), a quem Deus não abandonou no sepulcro após sua morte, não deixou que experimentasse a corrupção do túmulo, mas o ressuscitou (At 2,29-32). Aquele que foi elevado na cruz foi exaltado por Deus na glória. Lucas termina seu evangelho por um último encontro no Monte das Oliveiras, perto de Jerusalém: “Enquanto os abençoava, distanciou-se deles e era levado ao céu” (Lc 24,51). Chama-se isto a Ascensão de Jesus. Não se deve imaginar Jesus voando para o céu feito super-homem. É uma maneira para dizer plasticamente que Jesus foi glorificado “à direita do Pai”. No livro dos Atos, Lucas retoma as imagens e o estilo do Antigo Testamento que fazem das nuvens uma escada de glória e triunfo subindo para Deus (At 1,9). É um modo de dizer que Jesus é Senhor do universo. Os relatos das aparições devem ser vistos como testemunhos de fé e não como crônicas. O que se tornou uma certeza na Igreja foi que Deus mesmo tinha intervindo com mão

onipotente, arrancando Jesus de Nazaré do poder da morte, glorificando-o como Juiz universal. A Páscoa é, pois, o reconhecimento

que Deus concede a Jesus, a quem o mundo havia rejeitado. É o início do novo mundo de Deus neste velho

mundo, marcado pelo pecado e pela morte. É a inauguração definitiva do Reino de Deus, anunciado por Jesus durante sua vida terrena. Só que agora o próprio Jesus, com sua morte e ressurreição passa a fazer parte dessa mensagem, tornando-se o centro do anúncio (kerygma). A crítica liberal negava a historicidade de Jesus e a credibilidade dos apóstolos e evangelistas, mas exaltava a mensagem moral como a mais sublime que o mundo já ouviu. Mas como podiam pessoas de má fé e de origem tão humilde inventar uma ética tão excelsa e, ao mesmo tempo, uma mensagem tão inusitada, incrível e inaceitável para o Judaísmo: a de um homem divinizado ou de um Deus encarnado (Jo 1,14)? Se Jesus não era nada daquilo que eles anunciaram, por que inventar um Salvador humilhado na cruz, idéia tão absurda quanto escandalosa para os judeus e, com relação aos romanos que o teriam justiçado, extremamente perigosa. Com efeito, quem se declarasse parente, amigo ou discípulo de um subversivo justiçado era passível também de pena capital. Por outro lado, se Jesus é realmente aquilo que eles anunciaram, um conhecimento meramente histórico, por mais científico que seja, nos daria uma


ESPECIAL

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“Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos“ imagem distorcida e falsa, ou pelo menos dramaticamente parcial do homem de Nazaré, profeta ou charlatão, mestre ou subversivo, faltando-lhe sua verdadeira identidade de Filho de Deus e Salvador do mundo. O testemunho de fé da igreja primitiva, contido nos livros do Novo Testamento, é praticamente a única fonte existente para conhecer o Jesus histórico. É essa a única “biografia” possível de Jesus. Mas a figura ali descrita não é o Jesus conhecido empiricamente pelas pessoas ao longo de sua vida nesta terra, mas é a releitura desse seu passado por aqueles que acreditaram na sua ressurreição e que fizeram questão de comunicar o que tudo isso significava para eles e para a vida do mundo. Assim, embora os Evangelhos e todo o Novo Testamento tenham suas raízes na vida e morte de Jesus, eles não são meras fontes históricas, mas a reunião de fatos vividos por Jesus e narrados do ponto de vista de escritores que acreditam ser ele o Cristo, o Filho de Deus enviado para salvar o mundo, morto e ressuscitado, o Vivente glorioso que tem a chave da morte: “Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da Morte e do Hades” (Ap 1,17-18). Poderíamos dizer, em outras palavras, que não se conhece uma única frase de Jesus nem uma simples narração sobre ele que não contenham, ao mesmo tempo, a profissão de fé da comunidade cristã. E os evangelistas querem deixar isso bem claro: “Assim, quando ele ressurgiu dos

mortos, seus discípulos lembraramse de que dissera isto e creram na Escritura e na palavra de Jesus” (Jo 2,22). Para alcançar seu objetivo eles lançam mão de gêneros literários, técnicas e recursos próprios da pregação religiosa. Jesus, o profeta e rabi de Nazaré, cuja história começou na Galiléia e terminou sobre a cruz, em Jerusalém, é ao mesmo tempo o Cristo ressuscitado, revelador definitivo do autêntico rosto de Deus com quem reconciliou o mundo por seu amor incondicional até o extremo. A Igreja compreende o passado da história de Jesus a partir da sua ressurreição dentre os mortos, incluindo tudo isso na sua pregação como um acontecimento que diz respeito ao presente e desvenda o futuro do homem. Na tradição cristã, a paixão de Jesus é entendida à luz de sua ressurreição: “Porventura não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (Lc 24,26). Os relatos evangélicos da paixão são dominados por esse grande e misterioso imperativo divino, a partir do qual até mesmo os protagonistas humanos desse acontecimento são vistos como instrumentos na realização do plano salvífico de Deus, sem por isso anular sua liberdade e responsabilidade. A morte de Jesus tem, para os pregadores cristãos, o sentido de transformar este mundo, abrindo-o à irrupção da glória do Ressuscitado que aceitou livremente a paixão, embora inocente, para nos presentear com o dom da reconciliação com Deus e entre nós. O próprio Jesus, quando o sumo sacerdote lhe perguntou: “És tu o

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são lucas Os textos do evangelista são os de maior expressão literária do Novo Testamento. Segundo a tradição, ele foi médico e pintor. Converteu-se ao cristianismo e tornou-se discípulo e amigo de Paulo de Tarso

Cristo, o Filho do Deus Bendito?”, rompeu o seu segredo messiânico: “Eu o sou” (Mc 14,61-62). De fato, o testemunho que os apóstolos deixaram e que foi transmitido de geração em geração, tornando-se Tradição, e os escritos do Novo Testamento, que a comunidade cristã considera como inspirados pelo Espírito Santo, são a única ponte para conhecermos tanto o Cristo histórico como o Jesus da fé.

São Lucas Andrea Mantegna Pinacoteca de Brera, Milão

Chamando Pedro e André Duccio di Buoninsegna Galeria Nacional de Arte, Washington


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~ do Novo Testamento: A formaçao

Os Evangelhos

Maiestas Domini Haregarius Biblioteca Nacional, Paris

ESPECIAL A pregação de Jesus retomada com novo vigor por seus discípulos encontrou a aprovação e adesão de um número cada vez maior de seguidores. Em pouquíssimos anos as comunidades cristãs se espalharam no litoral da Palestina, Samaria, Galiléia, Síria e, sucessivamente, na Ásia Menor e Grécia, Roma. Conforme o testemunho de Atos, estas comunidades eram lideradas por um apóstolo ou recebiam a visita de seus representantes enviados com o intuito de as fortalecer, confortar e garantir a fidelidade da mensagem do Senhor (At 8,14; 11,22; 1Cor 16,10s; 2Cor 8,16). Ora, a difusão crescente, o tempo que is passando, a dispersão dos Apóstolos, os desvios doutrinários, etc. levaram os discípulos a começar a fixar por escrito as palavras e ações de Jesus. A necessidade de formar os catecúmenos, de traduzir e adaptar, esclarecer e aprofundar o conteúdo da fé, de responder a questionamentos e acusações provenientes tanto do judaísmo como do paganismo – e até mesmo do meio das novas comunidades – a organização da vida litúrgica, os problemas morais e as perseguições, tudo isso também incentivou e influenciou o processo literário. Foram surgindo coletâneas de milagres de Jesus, resumos de discursos, relatos de episódios significativos da vida do Mestre, sobretudo as narrativas da paixão, listas de citações bíblicas apropriadas para uma melhor compreensão de seu significado e seu alcance. Essas tradições, pois, adaptadas às circunstâncias da pregação e da vida das comunidades, confluíram na redação dos Evangelhos, que ocorreu entre os anos 60 e 80, a dos Sinóticos, e lá pelo ano 95, a redação final do Evangelho de João. Marcos foi companheiro do apóstolo Pedro, e Lucas, que vivia na igreja de Antioquia, centro de irradiação missionária, foi o companheiro de viagem do apóstolo Paulo. Para um breve e simplificado resumo da


ESPECIAL história dos Evangelhos, podemos dizer o seguinte: uma primeira coleção foi redigida por Mateus, em aramaico (língua de Jesus), mas essa obra perdeu-se. Marcos inspirou-se nela e na pregação de Pedro para escrever seu Evangelho, moldado numa estrutura geográfica e destinado a acompanhar os catecúmenos pagãos no caminho da fé no Messias crucificado. Mateus (ou um rabino, seu discípulo) retomou seu primeiro trabalho e, tendo como base o Evangelho de Marcos e acrescentando outras lembranças, elaborou uma obra teológica sobre o mistério do Reino e da Igreja, num estilo tipicamente hebraico. Lucas tinha a disposição muitos trabalhos sobre Jesus (Lc 1,1-4), quase certamente os Evangelhos de Mateus e de Marcos também, tinha ouvido a pregação de Paulo e, por ser homem culto, escreveu seu Evangelho em um bom grego, querendo dialogar com o mundo helenista e mostrar a universalidade da Boa Nova da misericórdia divina bem enraizada na história humana. Os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas são chamados “sinóticos”. Esta palavra quer dizer que colocando-os em três colunas, vê-se logo que se assemelham em muitas partes. Já o Evangelho de João é muito diferente. Ele vê a vida de Jesus noutra perspectiva: não o mistério do Homem-Deus, mas a revelação do Deus feito Homem. Os mais velhos fragmentos dos Evangelhos que se possui datam do séc. II. O papiro Rylands, por exemplo, datado do ano 125, contém alguns versículos do Quarto Evangelho (Jo 18,31-33.3738). Existem numerosos antigos

Belém, BELÉM, sexta-feira, SEXTA-FEIRA, 21 de DE março MARÇO de DE 2008

manuscritos dos Evangelhos; milhares de papiros, pedaços de pergaminhos que vêm dos séculos III, IV, e V, alguns com longas passagens do Evangelho, como o papiro Chester Beatty (200-250). Pode-se dizer que não há nenhuma personagem da Antiguidade cuja história ofereça certezas maiores que as de Jesus. No centro dos Evangelhos está a pessoa de Jesus de Nazaré, o Messias, Filho do Homem e Filho de Deus. Nos dias de sua vida pública, com palavras e ações, Ele anunciou o advento, em sua própria pessoa, do Reino de Deus (Mc 1,15). Entretanto, o convite à conversão nunca se tornou, na boca de Jesus, condenação para os mais fracos, para os afastados da religião e os pecadores. À luz das palavras do profeta Isaías, Ele é proclamado o Messias “enviado para anunciar a alegre notícia aos pobres, para proclamar a libertação aos prisioneiros e aos cegos a recuperação da vista... e proclamar um ano de

Fragmento do papiro Rylands

Manchester, Inglaterra graça do Senhor” (Lc 4,18s). Jesus, portanto, anunciou a misericórdia de Deus, invocado como “Aba”, Pai, que, assim como o pai da parábola do filho pródigo, aguarda ansioso que o pecador retorne para recebê-lo com festa e paternal ternura. Este anúncio foi, digamos assim,

visualizado pelos milagres, que operavam a cura física, manifestando ao mesmo tempo a libertação da escravidão do pecado e a alegria de uma nova vida. Ao lado de Jesus, durante seu ministério publico, atuavam os discípulos, entre os quais destacavam-se os Doze e algumas mulheres – coisa notável para o judaísmo daquela época. A pregação do Mestre de Nazaré encontrou forte oposição, especialmente por parte dos grupos mais influentes dos judeus – sacerdotes, mestres da lei e fariseus – espantados pela sua maneira de falar de Deus, cheia de profunda familiaridade, e escandalizados por sua escolha preferencial dos pobres, dos oprimidos e

marginalizados, dos pecadores e das classes mais humildes da sociedade. Surgiu, pois, o medo de desordens políticas e, conseqüentemente, da repressão dos romanos. Por causa dessa oposição, cada vez mais violenta e ameaçadora, Jesus ficou convencido que estava trilhando o caminho da morte. Mesmo assim, não se abala, não arreda o pé, mas faz o rosto duro e se dirige para Jerusalém (Lc 9,51). Pois sua morte não será em vão, mas

terá significado e valor salvífico. Ele morrerá a serviço da vida, pois ele veio “para servir e dar sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45), e, após sua morte, o Pai o exaltará e o receberá em sua glória. O objetivo dos evangelistas é, antes de qualquer coisa, proclamar e suscitar a fé, mas uma fé que se fundamenta na realidade histórica de Jesus de Nazaré! Eles contam uma “história” não para descrever quem era Jesus outrora, mas para proclamar quem é Jesus de verdade (Jo 20,30-31). Justamente por causa disso, apresentam divergências cronológicas e geográficas relevantes aos olhos críticos do historiador. As indicações de tempo limitam-se a fórmulas genéricas (“depois”, “naquela ocasião”, “então”, “poucos dias depois”), assim como as referências aos lugares (“no caminho”, “num lugar deserto”, “num alto monte”, “em casa”), usadas nos Evangelhos de maneira diversa e discrepante. Essa ausência de preocupação crítica com os detalhes históricos aparece também com relação às palavras e sermões de Jesus. Na medida em que, para a Igreja, o Jesus terreno é também o Senhor glorioso, a sua palavra assume, na tradição, um valor universal e sempre atual. Dessa forma, ao lado de uma indiscutível fidelidade à mensagem de Jesus, pode-se notar uma espantosa liberdade na reprodução de suas palavras históricas. Palavras e gestos de Jesus refletem, de fato, as circunstancias em que foram relatadas e a compreensão teológica do próprio narrador.

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ESPECIAL

BELÉM, sexta-feira, SEXTA-FEIRA, 21 de DE março MARÇO de DE 2008 Belém,

O ap osto lo Paulo De perseguidor de cristãos a um dos maiores propagadores da boa nova

a importância de comunicar cristo Mas antes mesmo da redação dos Evangelhos, foi se formando o corpo das cartas apostólicas que, respondendo a exigências e problemas das comunidades destinatárias, têm caráter basicamente doutrinal e exortativo.

apaixonada conversão Entre essas cartas destacam-se, por força e originalidade de pensamento, as de Paulo. De fato, as cartas e a teologia que elas contêm são marcadas profundamente pela experiência religiosa do apóstolo, sua fé apaixonada, sua pregação incansável, suas viagens e sua existência turbulenta. Formando-se no judaísmo da diáspora, familiar com os grandes temas religiosos e culturais da época, ele converteu-se dramaticamente nas proximidades de Damasco, aonde se dirigia para perseguir os cristãos (At 9,1s e par.). Relembrando na carta aos Gálatas esse momento central de sua vida, ele o interpreta como o ponto de chegada de uma vocação profética que iniciou já no seio materno: “Quando, porém, aquele que me separou desde o seio materno e me chamou por sua graça, houve por bem revelar em mim seu Filho, para que eu o evangelizasse entre os gentios...” (Gl 1,15s).

A coversão no caminho para Damasco Caravaggio Capela Cerasi, Santa Maria do Povo, Roma

PAULO era judeu, nascido em Tarso, na Cilícia, atual Turquia, e se chamava Saulo. Possuía cidadania romana e foi criado sob as culturas grega e judaica. Rigoroso em suas convicções religiosas, achava que os discípulos de Cristo eram traidores da Tradição. Morreu decapitado, entre 66 e 67, em nome da fé em Jesus.


ESPECIAL

um projeto de salvação Paulo, portanto, viu em Cristo o revelador e realizador do grande desígnio da benevolência de Deus, pensado antes mesmo da criação do mundo, o projeto insondável de Deus Pai de salvar todas as nações por meio de seu Filho: “Ensinamos a sabedoria de Deus, mistério oculto, que Deus, antes dos séculos, de antemão, destinou para a nossa glória. Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da Glória” (1Cor 2,7-8). Cristo – ensina Paulo – não apenas revelou o projeto de Deus, mas foi também quem conseguiu o beneplácito do Pai por meio de sua morte vicária, se substituindo aos pecadores e transformando a ira em bênção: “Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores. Quanto mais, então, agora, justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira” (Rm 5,8-9).

testemunhas da história Segundo o testemunho das Cartas de Paulo e dos Evangelhos, a ressurreição de Jesus marca o início da “nova criação”, a ressurreição geral dos mortos. Não é um fato que pertence simplesmente ao passado. É atual e ultrapassa os limites da história. Os primeiros cristãos viviam desta fé: “Agora o Cristo ressuscitou, primícia daqueles que dormem” (1Cor 15,20).

o evangelho é para todos Pelo batismo os cristãos percorrem esse itinerário: da maldição merecida à bênção gratuita. Para corresponder a essa dádiva inteiramente gratuita da benevolência divina temos que viver como remidos no amor mútuo, com a mente e o coração voltados para o

BELÉM, Belém, SEXTA-FEIRA, sexta-feira, 21 DE de MARÇO março DE de 2008

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nosso libertador Jesus Cristo. Acolher a graça de Deus com fé é, portanto, condição indispensável. E ela é oferecida não somente aos hebreus mas a todas as gentes: “Não há mais nem judeu nem grego...” (Gl 3,28-29). A tarefa de Paulo, aliás, foi justamente a de anunciar o Evangelho aos gentios, missão à qual ele se dedicou com incansável zelo até o martírio, ocorrido em Roma em 64 ou, mais provavelmente, em 67 d.C. Lucas resume nos Atos dos Apóstolos a trajetória da atividade missionária de Paulo em três grandes viagens, mostrando a progressiva penetração do Evangelho no mundo grego-romano, a partir de Jerusalém até a capital do império, conforme o projeto de Jesus Ressuscitado (At 1,8).

fé no ressuscitado Onde houvesse testemunhas e comunidades cristãs, por mais que a sua mensagem e a sua teologia pudessem diferenciarse, havia sempre um ponto em comum: a fé no Ressuscitado. Falando como representante de todo o cristianismo primitivo, Paulo destacou isso de maneira vigorosa e inequívoca: “Tanto eu, como eles, eis o que pregamos” (1Cor 15,11). É sobre o anúncio da ressurreição de Jesus que a fé cristã se fundamenta: “Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé” (1Cor 15,14). Paulo, que escreve esta carta antes mesmo da redação dos Evangelhos, cita todos os encontros dos apóstolos com Jesus Ressuscitado; e ele toma como testemunhas muitos discípulos que ainda vivem no momento em que escreve sua carta (1Cor 15,13s).

São Paulo pregando em Atenas Rafael Sanzio Victoria and Albert Museum, Londres


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ESPECIAL

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Vida Litúrgica e cotidiana

Batismo do Povo - Andrea del Sarto Florença - Itália

igreja de batismo e comunhão Em decorrência dos eventos pascais, os discípulos e as discípulas de Jesus, unidos pela fé no Mestre crucificado e Senhor glorioso, formaram uma comunidade para orar, celebrar juntos a fração do pão, isto é, a Eucaristia, e viver a caridade fraterna. Formou-se assim uma comunidade cristã em Jerusalém, o novo povo de Deus, o autêntico Israel – é essa a consciência que ela tinha de si mesma – que vivia na alegre esperança da Parusia, ou seja, do retorno do Senhor Jesus Cristo. Os escritos do Novo Testamento, especialmente os Atos dos Apóstolos, contêm indicações bastante precisas sobre a vida litúrgica e sobre o dia-a-dia das comunidades dos discípulos de Jesus. A vida litúrgica vai se moldando entorno da administração dos sacramentos e da comemoração dos gestos salvíficos do Senhor, principalmente sua morte-ressurreição. Os sacramentos (termo latim que traduz o grego “mysterion”) são os sinais salvíficos que Jesus Cristo deixou aos discípulos para significar a continuidade de sua presença, uma presença

misteriosa e invisível, nem por isso menos real e autêntica. Os sacramentos mais importantes, testemunhados pela literatura neotestamentária, são o Batismo e a Eucaristia. Com o Batismo se promete a remissão dos pecados e se entra a fazer parte da comunidade cristã, chamada com o termo grego “ekklesia”, ou seja, Igreja. Segundo uma praxe já consolidada, o batismo era administrado por imersão numa fonte ou num rio. Logo, porém, devido o crescente número dos catecúmenos, deu-se mais destaque ao elemento simbólico e se considerou suficiente a aspersão dos novos fiéis. Com relação à Eucaristia, os Atos dos Apóstolos relatam que os primeiros discípulos de Jesus se reuniam no primeiro dia da semana para a “fração do pão” (At 20,7). Esta expressão já designava a comemoração da última ceia do Senhor Jesus com seus discípulos, durante a qual ele “partiu o pão” e abençoou o cálice do vinho, ordenando aos discípulos de perpetuar, após sua morte, os mesmos gestos como memorial (zikkaron) de sua paixão, substituindo o memorial da Páscoa

do êxodo (Ex 12,14). Obedecendo à ordem do Mestre, os discípulos, desde os primórdios, começaram a se reunirem para a celebração eucarística “no primeiro dia da semana” (1Cor 16,2), o dia conhecido como “dies Domini” (ou dies “dominica”, cf. Ap 1,10), isto é, o dia do Senhor, no qual Maria Madalena, outras mulheres e os apóstolos viram o Senhor ressuscitado (Mt 28,1s e par.). Pelo que diz respeito à vida cotidiana dos cristãos, costumase tomar como referencial o quadro descrito pelos Atos dos Apóstolos (cf. At 4,32). Ainda que a prática de vida dos primeiros cristãos fosse sustentada por uma intensa e elevada convicção religiosa de caráter escatológico, ou seja, a expectativa do iminente retorno de Cristo, a descrição de Atos é basicamente um ideal a ser almejado. Não há duvida quanto ao espírito comunitário, a solidariedade recíproca e o esforço de amor sincero para com todos. Entretanto, o episódio de Ananias e Safira (At 5) e os repetidos chamados de atenção encontrados nas cartas de Paulo (cf. 1Cor), bem como no Apocalipse (Ap 2-3), deixam claro que também os primeiros cristãos foram sujeitos às fraquezas e misérias humanas.


ESPECIAL No seu interno, a comunidade cristã, desde seu primeiro gesto simbólico, ou seja, a eleição do apóstolo Matias no lugar de Judas para recompor o número dos doze, se mostra estruturada hierarquicamente (At 1,21-26). De fato, assim como 12 era o número simbólico das tribos de Israel, 12 também tinham que ser as colunas no novo Israel. Pedro exercia a função de chefe, ou pelo menos de porta-voz da comunidade. Havia, pois, o grupo daqueles que acompanharam Jesus durante sua vida pública, os que foram confirmados apóstolos pelo Cristo ressuscitado (1Cor 15,5-10) e, por fim, os discípulos de forma geral. Com o crescimento da Igreja, foram constituídos os diáconos, mais diretamente responsáveis pela evangelização e governo das comunidades oriundas do helenismo (At 6-8). As cartas paulinas falam de presbíteros, epíscopos e diáconos encarregados de dirigir a comunidade, presidir a Eucaristia e cuidar da assistência aos pobres (Fl 1,1; 1Tm; Tt). Aos Coríntios que contestavam sua autoridade e ensinamento, Paulo declara que há uma ordem divina na organização da Igreja: “E aqueles que Deus estabeleceu na Igreja são, em primeiro lugar, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar, doutores...” (1Cor 12,28). É nessa ordem que os encontramos atuando na Igreja de Antioquia (At 13,1s). A carta aos Efésios especifica que é Cristo “que concedeu a uns serem apóstolos, outros profetas, outros evangelistas, outros pastores e mestres, para aperfeiçoar os santos...” (Ef 4,11). Os chamados para esses ministérios recebiam a imposição das mãos por parte dos apóstolos (At 6,6; 1Tm 4,14; 2Tm 1,6). A evolução rumo a uma estrutura consolidada e definitiva foi surpreendentemente rápida, como testemunham, desde o início do séc. II as cartas de Inácio de Antioquia, martirizado durante o reinado de Trajano (98-117). Santo Inácio foi um convicto defensor da unidade dos cristãos: há uma só fé e um único sacrifício, celebrado pelo bispo ou por quem dele recebeu o cargo.

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servidores do reino

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Os bispos, portanto, tornaram-se os chefes das comunidades cristãs e desenvolviam a função que havia sido dos apóstolos, dos quais se consideravam sucessores. Essa autoridade, entretanto, deve-se diferenciar radicalmente da maneira como os chefes políticos costumam exercer seu poder, com arrogância e em proveito próprio. Os dirigentes na Igreja, seja qual for seu título ou ministério, são apenas servidores do Evangelho e do povo de Deus, do qual têm que cuidar e prestar contas (Hb 13,17; 1Ts 5,12; 1Cor,16,16). Para deixar isso extremamente claro, o evangelista Lucas coloca esse ensinamento, que a tradição fazia remontar ao próprio Jesus, num contexto muito significativo, o das advertências do Mestre durante a ceia de despedida: “Os reis das nações as dominam...” (Lc 22,...). Da mesma forma, o bispo de Roma, sucessor de Pedro, que na capital do Império havia sofrido o martírio, lentamente mas progressivamente estabeleceu-se como chefe da Igreja. Que Jesus quisesse dar continuidade à função exercida por Pedro pode-se deduzir a partir do texto de Mateus. Dizendo o evangelista, com uma linguagem rabínica, que Jesus prometeu proteger sua Igreja sempre no futuro e que Pedro teria a responsabilidade “de ligar e desligar” na terra por meio de decisões disciplinares, jurídicas e doutrinais que serão ratificadas nos céus, revela implicitamente a intenção do Mestre de prover uma instituição estável para esse serviço.

o papa pedrO Designado por Jesus a chefiar a Sua Igreja, o humilde e rude pescador, juntamente com o convertido Paulo, consolidou os primeiros pilares do cristianismo no mundo. Morreu entre 66 e 67, crucificado de cabeça para baixo, a seu pedido, por não se achar digno de morrer como o Mestre.

São Pedro - El Greco Óleo sobre Tela Monastério de San Lorenzo - Madri - Espanha


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ESPECIAL

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A novidade cristã IdeAIs e mensagens de cristo jesus cativam o povo pobre e injustiçado do império romano O cristianismo irrompeu no mundo romano como um movimento messiânico de amplitude internacional. A nova religião trazia uma mensagem escatológica, centrada na ressurreição e glorificação, valorizava o ser humano e o tornava membro de uma nova família universal, presidida por um Deus único que se manifestara sob forma humana e histórica. Ao ressuscitar, o Verbo divino

encarnado superou a própria morte e iniciou um processo que continuaria na história: sua ressurreição acarretava igualmente a ressurreição da humanidade. Quando ele voltasse traria a glorificação do mundo e a felicidade plena e eterna no Reino de Deus. A mensagem de salvação baseava-se na transformação espiritual a partir da conversão individual a Jesus Cristo. Uma opção possível a todos,

embora a salvação seja operada pela graça, e não pelos homens. O cristianismo atingiu todas as camadas da população, ainda que penetrasse mais facilmente entre os escravos e as classes mais pobres das grandes metrópoles. As comunidades cristãs pregavam a fraternidade em Cristo e a igualdade de todos perante Deus e se esforçavam de viver em comunhão de bens. Dessa forma, embora querendo alcançar essencialmente a renovação espiritual, a mensagem cristã ganhou a característica de revolução social e atraiu a população injustiçada. Em seus primórdios, portanto, o cristianismo, não se opondo à organização social do Império Romano, agia, digamos assim, a distância e acima de seus interesses. Visto inicialmente como heresia judaica, o cristianismo foi em seguida incluído entre as religiões de mistério, como um dos numerosos cultos orientais.

o cristianismo

Contantino I

Mosaico bizantino do sé. X Igreja Hagia Sofia - Istambul - Turquia

Mas ele foi crescendo e se consolidando, graças também à rigorosa organização hierárquica que, no decorrer dos três séculos iniciais, deu à doutrina e ao culto uma coesão inédita face às outras religiões do mundo antigo. Numa carta endereçada ao imperador Trajano, Plínio, o Jovem, então governador na Bitínia (111-113), pergunta como se deve comportar em relação a um movimento de

“grande teimosia e inflexível obstinação” que é justamente o dos cristãos, acusados de perturbação da ordem pública. Eles se reuniam “num dia determinado, antes do amanhecer” (certamente no domingo), e entoavam “um hino a Cristo, como a um Deus”, vinculando-se ao sacramentum, isto é, ao “juramento” de não praticar nenhuma maldade. No relacionamento entre a comunidade cristã e o império romano podemos distinguir claramente duas grandes fases, separadas pelo Edito de Milão, do imperador Constantino (313). A primeira fase foi marcada por um relacionamento conflitante. As autoridades romanas, interrompendo uma tradição secular de tolerância com as religiões dos povos conquistados, declaram repetidamente “não lícita” a religião dos cristãos, infligindo todo tipo de pena aos seguidores da nova religião: da confisca dos bens até o exílio e a condenação à morte. As perseguições freqüentemente ficaram circunscritas a uma determinada região, como parece ter sido a que Nero desencadeou em decorrência do incêndio de Roma em 64. Outras vezes, elas se estenderam a todo o império, como a perseguição ordenada por Décio, no século III.

as perseguições Ao descrever o trágico quadro de uma Roma arrasada pelo incêndio,


ESPECIAL na qual as acusações mais infamantes eram lançadas contra o louco imperador responsável pela tragédia, Tácito escreve: “Para cessar esse boato, Nero declarou culpados e condenou aos mais atrozes suplícios aqueles que o povo chamava de cristãos – odiosos por suas abominações” (Annales 15,44). Outro historiador, Suetônio, na sua “Vida de Cláudio” (cerca 121 d.C.), lembrava que “os judeus, que continuamente provocavam perturbações por instigação de Cresto, foram expulsos de Roma” (n.25). Também os Atos dos Apóstolos lembram essa decisão de expulsar os judeus de Roma (At 18,2). Parece que Suetônio atribuísse a Cristo (Cresto!), anacrônica e levianamente a responsabilidade pelas tensões causadas pelos cristãos, confundidos por ele com os judeus da cidade. Os cristãos, claro,

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consideraram totalmente injustificada a perseguição e chegaram a ver no império romano a personificação do mal, o dragão do Apocalipse, por querer aniquilar “os que observam os mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus” (Ap 12,17). No meio dessas provações os cristãos desenvolveram a mística do martírio como uma perfeita imitação de Cristo (Ap 6,9; 7,9s). Morrendo pela fé, o mártir se torna companheiro de Jesus no calvário e participa de sua paixão e de sua glória. Portanto, ainda que só em forma de veneração e modelo, o mártir pode ser a Ele associado no culto. Justifica-se assim o culto dos mártires e, mais em geral, dos santos, que rapidamente assume um papel importante na vida dos cristãos. Mas no séc. IV a situação mudou radicalmente. Conseguido o reconhecimento de sua legitimidade, o cristianismo conquistou logo uma posição de favor e de privilégio que levou à formação da Igreja imperial. Contudo, a nova situação não

estava isenta de riscos, como apontava com muita lucidez São Jerônimo quando escrevia: “Desde que a Igreja há imperadores cristãos, cresceu com certeza em poder e riqueza, mas se enfraqueceu em sua força moral”. Realmente, a excessiva colaboração acabava inevitavelmente por submeter a Igreja ao Império, configurando os bispos como funcionários públicos que nem sempre gozavam de boa reputação, fazendo com que um grande número de vigaristas entrasse a fazer parte da Igreja, motivados unicamente pela ganância, busca de privilégios e perspectivas de autopromoção. Tem início a história da Igreja, da sua missão e expansão para além dos confins da Palestina, em todo o mundo. Uma história rica de conflitos e de tensões, na

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qual o mundo se defronta com o Evangelho, mas também a Igreja se encontra com o mundo, obrigada a apresentar a mensagem de Jesus Cristo em formas e em línguas sempre novas. História de ações e reações, de fidelidade e infidelidade, de intuições e erros, de vitórias e fracassos entre os povos e no coração dos homens. Tudo isso é ainda, só aos olhos da fé, a história de Jesus Cristo e de seu poder, mas também a história de sua paixão e morte que não termina jamais. O escândalo da cruz era a luz que o mundo esperava e não conhecia; o amor autêntico e incondicional que salva gratuitamente, por amor, por pura graça; o dom divino que a humanidade tanto desejava mas não ousava esperar.

O imperador Nero e o Coliseu Romano: referências históricas sobre o martírio dos cristãos


~ Igreja e Império A Antigüidade crista:

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ESPECIAL

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nova religião surge para suprir carência de um deus abstrato e sem amor

Deus Mitras

Museu do Vaticano

O cristianismo defrontou-se com um mundo consolidado: um mundo onde, desde as conquistas de Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), predominava a cultura grecoromana. Nessa vastidão que incluía quase toda a Europa, a Ásia Menor e o norte da África, o clima espiritual era contraditório. A religião oficial de Roma, politeísta e eclética, caracterizavase pelo pragmatismo político. Roma procurava garantir suas tradições e supremacia por meio das divindades nacionais, mas não deixava de utilizar deuses estrangeiros

para manter sob controle os povos conquistados. Não faltavam templos na capital do mundo dedicados às divindades importadas, ainda que Júpiter fosse o patrono da cidade e o culto ao imperador, desde o fim da República, fosse motivo de poder e unidade dentro do Império. Mas essa religião vazia e teologicamente frágil, que não passava de um conjunto de ritos sem significação profunda, foi prejudicada pela chegada dos cultos orientais ao Ocidente, pelo fascínio que exerciam sobre o povo. As classes pobres voltavamse para elas, Rei da Macedônia, Alexandre, O Grande, é tido por procurando nos alguns historiadores modernos como um “homem “mistérios” que de valores cristãos”, mesmo antes do nascimento de prometiam o Jesus, por praticar a paz e a justiça perdão das faltas e

a união com Deus através de ritos como o “batismo” e as refeições sagradas. Dessas religiões, a mais fascinante era sem dúvida a de Mitras.Vindo da Pérsia e conhecida desde o séc. I a.C., praticava ritos litúrgicos muito parecidos aos do cristianismo, como o batismo, os ágapes, o jejum, a penitência e as unções. Ensinava a imortalidade dos crentes e a existência de um paraíso para as almas puras. Organizava reuniões noturnas sob a liderança de um clero numeroso, que incluía sacerdotisas. De início, Roma reconheceu como legítimos os deuses dos

povos conquistados, mas, ante a ameaça desse sincretismo desagregador, buscou respostas mais universalizantes e unificadoras: desde a radicalização do culto ao imperador até a introdução do culto ao Sol Invictus. Aqueles que procuravam encontrar outras perspectivas, morais ou intelectuais, refugiavam-se no ceticismo ou na religiosidade de caráter filosófico, com tendências monoteístas. Restringiam-se, porém, às camadas mais eruditas, e seu abstrato conceito de Deus carecia, talvez, de piedade e conteúdo emocional.


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