Coisas de Mulher...
Vera CecĂlia C. Dantas Mota
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Quais são suas intenções, mocinha? ..... 3 Parece bobagem, mas não é... ......... 6 Enfim, um problema! ............ 10 Caí da Cama ................. 13 Gostou, mamãe? ............... 16 O que essas mulheres têm na cabeça? ... 19 Dizem que eu sou paranóico. ........ 23 Enfim, a recaída! .............. 27 Muita coincidência pra meu gosto ..... 29 E.T. go home ................. 32 Presente que se preza vem enrolado, né? . 36 Vem aqui. Me dá um beijo. ......... 38 Só se for depois das 10h........... 10h 41 Quase tive um infarto. ........... 43 Isso é que é marido! ............. 50 Tudo bem. Eu espero. ............ 53 -“Milena, meu amor por você será eterno, mesmo que não dure”. 54 Enfim, a praia! ............... 57 STOP!..................... 64 STOP! Esses baldinhos... .............. 66 Nísia Floresta Brasileira Augusta. .... 69
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Quais são suas intenções, mocinha? Quando eu disse, ou melhor, “anunciei” que iria escrever um livro, eu não sabia exatamente no que ia dar. Quando componho, acontece a mesma coisa. Algumas pessoas, escritores, poetas, artistas, têm métodos e mais métodos, rotinas e disciplinas, planejam suas obras, fazem roteiros, maquetes, escolhem as palavras chaves, o tema principal... Eu faço uma zorra, total: de trás pra frente, do meio pro início, mas no final dá tudo certo. Às vezes eu acho alguma lógica, outras vezes fica sem lógica mesmo. Tudo isso pra explicar que não era essa a minha intenção inicial, se é que eu tinha alguma. Algo me diz que muitos leitores vão se lembrar de algumas passagens e até mesmo acreditar e jurar, de pés juntos, que participaram dos episódios. Isso é normal. Pelo menos alguma coisa a gente tem em comum: lembranças, ainda que vagas. Como é que se diz? “Esta é uma estória, inventada. Qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência.” É minha obrigação esclarecer, desde já, que não se trata de biografia, nem de literatura. O rigor da escrita e o charme da poesia eu deixei pra próxima! Afinal estou em férias, em frente ao mar, inaugurando meu chalé... É claro que tenho mais o que fazer! Engraçado: me lembrei agora do Rogério Menezes, aquele do Correio Braziliense. Ele disse numa de suas crônicas que costumava ter umas crises e acabava se questionando sobre o que ele fazia melhor, o que lhe dava mais prazer: escrever ou cozinhar. Sou supertraumatizada porque não sei cozinhar. Acho que é obrigação de toda mulher e não sei como consegui escapar dessa. Mas se por acaso eu descobrir que não agrado escrevendo, não haverá trauma algum, mesmo porque não busco a perfeição há muitos anos. Afinal, quais são suas intenções, mocinha? No fundo, eu continuo tentando entender o que está acontecendo. Acho que procuro, entre as palavras, nas músicas, nas ações reais e imaginárias, gastar energia, esgotar idéias, esvaziar sentimentos, pensamentos que insistem em não sair de minha cabeça. Normalmente funciona! E o efeito é imediato. Eu simplesmente não resisto. Eu me levanto, à hora que for, muitas vezes até de madrugada, e escrevo ou componho. No fundo, continuo tentando entender o que está acontecendo. Pode parecer óbvio, mas não é. E mesmo se for, tem gente que precisa ouvir. Eu, por exemplo! Nem é preciso usar todas as palavras. Minha audição é acima da média. Confesso que já fiquei muda, completamente anestesiada, mas sempre ouvi com perfeição. Os otorrinos que me desculpem... Certa vez me perguntaram o seguinte: - Quais são suas intenções comigo?
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Eu achei engraçadíssimo: estava tudo trocado! (E permanece até hoje, pra minha felicidade!) Mas respondi, sinceramente, na mesma hora, o que eu já sabia de cor e salteado: - Nós vamos namorar por um ano, mais ou menos. Se der certo, a gente se casa. Se não der, a gente termina, porque eu não vou ficar perdendo meu tempo, nem empatando os filhos alheios. Isso foi na minha época... Hoje em dia não é mais assim. Não sei se me resta muito tempo. Dizem que a menopausa é aos 40. (Eu nem me lembrava que existia isso...) Já estou com 37, praticamente 38. (Meu aniversário é no dia 15 de fevereiro. É facinho de decorar! Está na Constituição da República Federativa do Brasil: abertura das atividades legislativas.) Daqui da minha varanda eu vejo o mar, mas nem precisava: ele faz uma barulheira permanente. Meu Deus, eu adoro esse som! É mais forte que uma imagem, que a luz. “Eu estou aqui, viu? Não se esqueça de mim!” Escandaloso, né? Espero que também não seja paranóico. Enfim, são coisas de mulher!
Milena.
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No meio de tudo:
- Marido, eu não tô querendo ficar sozinha nessa praia, não. Acho que eu tô ficando velha e malacostumada. É melhor não me deixar aqui. Não dá pra você apressar sua vinda? - Tá com saudade? Eu também. - Às vezes me dá uma angústia. Eu fico aqui sem notícias... - Você não disse que ia escrever um livro? Aproveita. Eu vou ver o que dá pra fazer.
Depois de tudo:
- Isso é que é marido bom! Ainda bem que você chegou. Até agora não consegui arranjar um amante, nem um “ficante”, mas sua música ficou pronta!
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Parece bobagem, mas não é... Depois dos filhos, ficou uma barriguinha discreta... Os seios realmente incomodavam muito: levemente caídos... Blusa sem sutiã, nem pensar... - E se você me largar? Eu tô frita! Não tenho coragem de tirar a roupa na frente de ninguém. - Então, Milena, é melhor você se cuidar... Milena (Sou eu mesma, a personagem, feminina. Muito prazer, amado leitor!) realmente estava com dificuldades de auto-estima. A gente sempre pensa que marido é pra vida inteira e que não tem muito problema aquelas pelanquinhas que vão se acumulando ao longo dos anos, mas chega o dia do “e se a gente se separar?” - Olha, mamãe, se ele ficar brigando comigo... Agora deu pra reclamar de mim e falar alto. Eu tô cansada de ser boazinha. Não preciso ficar casada... Pra quê? Eu não preciso de marido desse jeito... - Minha filha, tenha paciência. Você é quem sabe o que é melhor pra você. No meu tempo era tudo diferente... Nem sei o que dizer. Nesses casamentos de hoje em dia, o povo larga por qualquer bobagem. Pense bem: procure ver as qualidades dele. Você também tem uns defeitinhos... Meu pai não disse uma palavra... Assistiu ao chilique como se não fosse... Tudo bem. Se tiver que separar, sei lá eu quando, nem por que, é melhor me preparar logo. Como é que vai ser esse negócio? Eu não tenho coragem de paquerar ninguém... Eu não nasci pra viver sozinha: detesto ficar sozinha!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Quem eu vou namorar, a essa altura dos acontecimentos? Eu nem penso nisso, há anos... Quantos? Pelo menos uns seis, desde que Sabrina nasceu. Rodolfinho já está com três, quatro, sei lá... Meu Deus, eu sou perdidinha no tempo. Tudo bem. A fase de mãe já passou, pelo menos com esse marido. Depois do segundo parto “normal”, com todos os sustos suportáveis, resolvi anunciar uma greve: - Depois do resguardo, só vai ter festinha a dois, reservadíssima, se fizer vasectomia. Adoro criança, adoro casa cheia, mas gravidez e parto normal, com esse marido, não estava dando certo. (Partos merecem um capítulo à parte. Meu Deus, o que é aquilo?) 6
Eu passo mal os nove meses, religiosamente. Depois de muito tempo, com os meninos já grandinhos, fiquei sabendo que vômito na gravidez significa um tipo de rejeição ao papel feminino, a ter de aceitar as limitações do período, conviver com as mudanças no corpo, na mente... Puta merda! Por que não me disseram antes? Me deixaram vomitar tudo aquilo por causa de rejeição das limitações... Era só me deixar de molho? Aceitando o papel da maternidade e suas limitações aos afazeres cotidianos? Era muito mais fácil que tomar Dramin na veia... Da primeira vez, era tudo festa. Eu corria pro banheiro, duas, três vezes ao dia, e achava tudo engraçado, maravilhoso... Emagreci tanto que Sabrina nasceu abaixo do peso: 2,100kg - “Olha pra isso!” Disse o médico quando ela deslizou de dentro de mim. Eu olhei e achei minha filha linda! Completamente dourada: (“Ela é ruiva?!”) - “A senhora fuma?”(O anestesista também queria entender o fenômeno...) - Nem bebo, nem uso droga... Ouvi essa pergunta e repeti a resposta pelos dois meses seguintes, até Sabrina atingir o peso normal. Da segunda vez, já escaldada, pedi logo uma receitinha pro médico (Médico, não. Justiça seja feita! Meu obstetra merece beatificação!): Dramim na veia, de três em três dias. Dava certinho. Eu só vomitava no terceiro dia, mas já quase na hora da injeção. Eu ficava mole, mole. Deixava pra tomar sempre depois do expediente e ia direto pra cama...Beleza! Até hoje tenho as marquinhas na mão esquerda. Claro que minhas veias são ótimas, discretíssimas, elegantérrimas... Eu aviso logo, mando chamar a enfermeira “craque”, porque é caso de polícia. Realmente não acho que mulher tem que ser perfeita, ainda mais depois dos trinta: ninguém normal tem “saco” pra isso... mas uma ajeitadinha vale a pena: usar biquíni na boa... Adoro biquíni, pé descalço, areia de praia, beira de piscina... - Eu quero fazer. Eu emendo a licença médica com o recesso e, quando chegar o final do ano, já viajo magrinha, com os peitos no lugar. - Tudo bem, eu pago. - E você tem dinheiro? Nós acabamos de reformar a casa... - Não se preocupe. Eu dou um jeito. Tenho uns honorários pra receber. - Pensando bem, acho que você tem que pagar mesmo, porque, se quiser me largar, pelo menos vou ter chance de arranjar outro. - Tem certeza de que não tem perigo? Quem é o médico? Olha o que você vai fazer! Nós temos dois filhos pra criar... 7
- Deixa comigo. Ele coloca uns drenos. Quase não fica roxo. É caro!!! Quase o dobro dos outros, mas eu acho melhor ir nesse. - Eu também. Quero você inteira e “gostosinha”. Dá pra tirar tudo? - Não quero tirar tudo... Vou subir os peitos e dar uma geral. Pernas e bumbum não precisa. Não quero ficar perfeita: tem que ter uns defeitinhos pra chamar atenção... Na noite da consulta: Ai, ai, ai! Tem de ficar nua, nuazinha, na frente do médico: o cara tá acostumado a ver as mulheres mais lindas da cidade... Tudo bem. Eu sou mais eu de mil a zero. Onde é que fica essa clínica? Quase não consigo marcar a consulta e ainda chego atrasada...Deve ser por aqui 820... 21, 22... Deve ser aqui atrás. Não tem placa... - Ô, moço, a Clilipo é aqui? - O quê? - Cli-li-po. - Você sabe onde fica? (Consultando o amigo, também médico... quer dizer, vestidinhos de branco, com cara de “somos um sucesso, meu bem”...) O que esses caras estão fazendo aqui, a essa hora, quase 20h? No maior papo no estacionamento... Meu Deus, como eles são elegantes, seguros! Isso é homem... - Aqui é o Hospital Santa Cecília. - Santa Cecília? (Existe isso? Desde quando?) - Você está na 820. - O quê? Lá vem ele... todo de branco... Se debruça na janela do meu carro... - Que endereço você está procurando? - Eu não tenho o endereço. É perto do Centro Clínico. - Essa clínica é do quê? Que curioso, o rapaz! Rapaz, não: o senhor! Senhor, não: o Homem, amadurecido, fino, equilibrado, bem-humorado, mas levemente aborrecido: essa pentelhinha está interrompendo nossa conversa! Ele vai achar que eu sou completamente idiota (vulgar e burra). A essa hora da noite, perdidinha no estacionamento de um hospital, sem saber pra onde ir, querendo fazer... - Lipo. - Lipoaspiração e cirurgia plástica. Tem uma ali, em frente ao Centro Médico, ao lado do Corin. - É essa mesma. Onde é? - Em frente ao Laboratório ZZ. 8
Nossa! Minha saia estava totalmente aberta? Metade das pernas de fora! O que que ele está olhando? - Obrigada. - É melhor a senhora dar a volta. Não tem saída por aí... - Obrigada. Parece bobagem, né? Mas não foi!
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Enfim, um problema! - Eu não consigo parar de chorar... já faz três dias... é melhor me levar pro psicólogo.... eu tô doente. - Mente sã, corpo são. - Exatamente. Eu tô mal. Preciso de ajuda. Na clínica: - O que houve? - Doutora, eu não consigo parar de chorar. - Por quê? - Não quero voltar a trabalhar, não tem a menor condição... - Tudo bem. Eu lhe dou um atestado, e você vem conversar com o terapeuta, fazer um relax... - Amanhã, por favor. - Amanhã a clínica está fechada. Venha na segunda, às 8h. - Combinado. Não fiquei totalmente curada com o atestado, mas confesso que melhorei 50%...Detalhe do CID: estado de choque, estresse... - Uau! Meu querido terapeuta. Primeiro e segundo dias: - É esse o problema? - É. - Você levou 37 anos pra ter um problema? - Levei. - Você é sortuda, não acha? - Acho, mas dessa vez eu tô mal. Acho que estou perdendo a fé... - Por quê? - Não consigo entender como eu pude me meter nessa inhaca. Por que eu deixei tudo isso acontecer? Por que eu não consegui sair de lá? Tava tudo acertado. Eu não estou preparada pra voltar. Minha cabeça já estava no outro emprego... - Mas não deu, e você vai ter que voltar. O que você gosta de fazer? - Cuidar do meu jardim, tocar violão, escrever, pintar, tomar banho de piscina, dançar, conversar... - Você tem feito isso? - A que horas? Só se for em sonho... - Volte a fazer o que você gosta. Você vai achar tempo. Meu querido terapeuta. Terceiro dia: - Acho melhor você apressar essas conversinhas, porque o atestado acaba na segunda, e vou ter que voltar. Eu não queria voltar... - Eu vou lhe ensinar uns truques. Por onde a energia entra no corpo? 10
- Sei lá... - Pelo umbigo. Por onde a gente nasce... (Seguem-se todas as explicações energéticas cabíveis.) - E aí? O que que eu faço com isso? - Proteja seu umbigo. - Como? - Use um protetor, uma barreira. Você não vê aqueles cinturões que os “cowboys” usam... - Você quer que eu use cinto de... - Você pode colocar uma moeda. Prenda com esparadrapo. Quando você sair do trabalho, retire. - Ai, ai, ai... - E deixe sempre um copo d’água perto de você... pra desviar o baixo astral. - E eu posso beber a água depois? - Você que sabe. Se estiver com sede... - E se não der certo? - Vai dar. Eu estou torcendo por você. - Tá bom. Eu vou tentar. - Não deixe de voltar aqui. - Combinado. Se eu soubesse que psicólogo era tão bom, já teria ido antes... Meu amigo terapeuta. Quarto dia: - E aí? Parece que deu certo, né? - Está suportável. - Tá uma merda, mas tá tudo bem, né? - É. - E o casamento, como é que está? - Casamento? O que que tem a ver? - Você é uma mulher jovem, bonita. E o marido, como é que é? (Essa resposta merece capítulos apartes. Interessantíssimos, diga-se de passagem). - Nossa! Mas você dá uma nota tão alta pra ele e uma tão baixa pra você? Por que isso? - Eu vejo que ele se esforça quando eu reclamo...Ele faz tudo o que pode... Acho que eu desisti. Não me importo muito...Eu o escolhi pra casar, escolhi a dedo, casei... Agora agüenta. Aprendi a conviver: não é difícil. Vai legal. - E na cama? (Essa parte também merece capítulos apartes... “picantes”. Que palavrinha esquisita, né?) - No começo eu reclamava, dava uns chiliques. Eu fiz a minha parte, fiz o que pude. Eu achava que ele tinha de colaborar, mas ele não quer. Acho que desisti. Acabei me acostumando. 11
Acostumou...O prazer é muito importante pro casal. Eu sei. Você “consegue” gozar!? “Consegue”? Claro que sim! Ah, Milena! Eu pensei que você não conseguia... Mas não é junto. Ah, Milena! E o que que tem? Você não está querendo demais? Eu sou de uma geração que transava antes de casar. E eu estava acostumada a gozar junto... - (...)
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Meu amigo terapeuta. Quinto dia: - E, aí? - “Tamo” ficando sem assunto, né? - E a família? Como é? - O que que a família tem a ver? (...) Bem, me dei alta no sexto dia... Voltei a estudar violão (é o único jeito de me obrigar a tocar: pura terapia!), terminei de fazer minha casinha de plantas, construí a piscina da minha casa. Detalhe: aquecida!(Essa piscina merece um capítulo à parte. É um show!).
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Caí da Cama “Ontem sonhei contigo, caí da cama, Ai, amor, não briga, não me castiga, Diz que me ama que eu não sonho mais”... Essa música é tão linda! Pena que a letra seja tão agressiva. A gente devia escrever outra, né?, que combine mais com a melodia. Milena tinha um sonho, daqueles de cair da cama... Ela faz aulas de dança, dança de salão, e lá ela encontra “o” parceiro, aquele que acaba ficando totalmente apaixonado, completamente dependente daqueles momentos de estar juntos, dos pequenos carinhos, da presença doce, da Doce Presença (Essa música também é linda!). São aquelas alegrias, talvez sutis, sim, dos sensíveis, dos românticos. Como eu ia dizendo, eles se apaixonam, mesmo sem querer, mesmo sem dizer nada um ao outro, porque, afinal de contas, ela é casada e ele idem. Eles formam uma das melhores duplas do curso e acabam viajando juntos para uma turnê, uma apresentação. Até então não havia rolado nada de mais comprometedor entre eles, apesar de os dois sentirem vontade e necessidade de estar juntos, ainda que fosse por pouco tempo, durante os ensaios, e às vezes numa conversinha de amigos na saída, na porta do carro. Finalmente eles se hospedam no mesmo hotel, naquele “apart” tropical, avarandado, teto rebaixado de madeira superenvernizada, pra lá de bem decorado, cinematográfico. Depois da apresentação, ele a acompanha até o quarto, dela; entra e “dali não sai, dali ninguém lhe tira”. Ele se acomoda, como quem não quer nada, tudo muito natural, assistindo a TV, enquanto ela vai tomar um banhozinho, de rotina. Enquanto ela se veste, ele põe uma musiquinha... aquela maravilhosa, que só de ouvir arrepia até o do pé. Claro que ele sabe que ela gosta daquela! Quando ela aparece, com seu camisão predileto (o de peixinhos) ele lhe entrega um presente, numa caixa, tipo de camisa. Claro que ela fica muda, em estado de choque... não consegue dizer nada. Ela abre a caixa e repara que o cenário está pronto. Ele já abriu as cortinas, e aquela vista maravilhosa, indescritível, inesquecível... um ventinho de verão, aquele sabe? Mais que favorável! - Meu sonho é dançar com você assim. Claro que era algo de seda. Chamar aquele traje longo de “camisola” é pecado, porque parece uma jóia, perfeita, linda, do jeito que ele queria. Mais sex impossível! Qualquer uma ficaria deslumbrante vestindo aquilo, imagine ela!
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Ele mesmo abre os botões, deixa o camisão cair no chão e a ajuda a colocar o traje. Claro que ela já está completamente anestesiada, além de muda... Ele a abraça, deslizando as mãos, bem devagar... a música acaba, e os dois ficam um minuto no silêncio, em pausa na dança... - Ué? A mesma música? De novo? - Exatamente. Eu gravei repetida, três vezes, pra dar tempo... Depois dos risos, vem a descontração, e, em seguida, a hora do “vamovê”. - Eu também... Ele entendeu tudo. Ele esperava ouvir aquilo havia meses. Depois do primeiro beijo, não dá mais pra parar... É por isso que não se deve falar em primeiro. Se for “beijo” mesmo, ele é eterno: vai até a alma. O traje longo desliza para o chão, de uma vez só. Eu pulei, de propósito, a parte da calcinha... pra não matar vocês de inveja! Também não pude descrever como ela deixou as roupas dele no chão... pra não matar vocês de inveja! Só posso dizer que foi “sutil”, como sempre. Ele quase não reparou... Bem, finalmente, Milena teria um amante, um namorado, um amigo, um parceiro, um companheiro, um “ficante”... sei lá o que seria aquilo: mas ele existia no sonho! A propósito dos conceitos e das denominações, graças a Deus, consegui entender a nova seqüência das paixões, ou melhor, das tentativas. No meu tempo, era assim, e eu não me canso de dizer isso: “beijou na boca, tá namorando!” Primeiramente vinha a paquera, os encontros, as indiretas e diretas, todas as conversas, moles e duras, e o namoro começava no beijo na boca. Essa era a regra. Sempre houve exceções, principalmente no carnaval, mas todo mundo sabia que aquilo era exceção. Hoje em dia, a seqüência é outra. Primeiramente vem o beijo na boca, com os acompanhamentos devidos, é claro! E depois, se for do agrado, vem o resto: “como é mesmo seu nome?”, a conversa, a paquera, os encontros e, se o destino colaborar, o namoro. O nome mudou e o conteúdo idem. Agora é “ficar”. Por mim, tudo bem! Na minha idade, e a essa altura dos acontecimentos, os acompanhamentos do beijo podem ser mais..., como eu diria, “abundantes” ou “picantes”! Hum! Que palavrinhas esquisitas! Voltando ao assunto, nada que umas camisinhas não resolvam. Ai, gente, quanto tabu! É isso mesmo: sexo faz parte. Faz bem pra saúde. Tem que fazer mesmo... “Happy man. Uh, uh...” Se lembra dessa? É!!! Quem é desse tempo não está acostumado “a ficar”. Ele não estava. Na verdade, ela também, não. Mas dava tudo certo, porque eles se tornaram parceiros imprescindíveis. E 14
que ninguém se atrevesse a dançar com ela mais que uma música. E que ela não ousasse se dirigir a “outro”. Pois, é! Ele tinha esse defeitinho: ciúmes, exclusividade. “Eu quero você pra mim”. Por mim, tudo bem! Na minha idade, e a essa a altura dos acontecimentos, o mínimo que iria acontecer era um flat, uma vez por semana, e o máximo, morar juntos, na casa que fosse maior, pra caber todos os “anexos”. (Os dois dela e os três dele, todos em fase escolar.) E os titulares? Nada de traumas... tudo bem devagar, conversadinho, preparadinho, convencidinhos de que seria o melhor pra todo mundo, ainda que a preparação levasse anos. Nesse aspecto, ele era campeão: mineiro, desconfiado... Pois, é! Esse era o sonho. Não que Milena quisesse se separar. - Deus me livre de separação! Não estou preparada pra isso. Não sei cozinhar, detesto supermercado e tenho todo o direito de dar uns chiliques de vez em quando... e de quando em vez. - (...) - E tem mais: marido igual ao meu, escolhido a dedo, não existe, assim, em grande quantidade... nem em pequena. Mas tudo bem. Ela abriria uma exceção pra ele, porque, afinal, era imprescindível.E mais: eles já estavam casados em pensamento, em temperamento, em balanceamento... Isso é coisa de goiano: “arriados, os quatros pneus”. Hum! Que coisa brega! Será que alguém diz isso a uma mulher? Acaba com o clima, o cenário, a trilha sonora... Sabe que uma vez me disseram um negocinho que eu achei até interessante, bonitinho mesmo: - Eu já sabia quem era, antes de atender. Todo dia, né?, na mesma bathora... - É que eu estou arrastando a asa pra você. Não, esse era carioca! Já estava na terceira “ficante, ajuntante”. Eu achei linda a história da asinha, mas era modernismo demais pra mim. Imagina, eu ainda era solteira. Eh, bobajada! O sonho era sempre o mesmo. Sempre que podia, Milena tentava se lembrar de um pedaço, de um detalhe, de uma pista que pudesse facilitar o reconhecimento dele, na vida real. É claro que Milena já tinha realizado vários de seus “sonhos” ao vivo e em cores. Mas surpresinhas agradáveis também ocorrem, né? Graças a Deus! 15
Gostou, mamãe? Definitivamente, Milena não é uma mulher convencional. Ela pode até fazer o que todas as outras fazem, mas, no caso dela, tudo é diferente por um simples e único motivo: é feito por ela, é verdadeiro, é vero. Foi assim que, mesmo casada, ela se interessou por outro, e não foi em sonho, não...
Existem tantas profissões nesse mundo, mas ele tinha que ter uma que ocupa todo o tempo possível e imaginável: fotógrafo, cinegrafista, produtor de vídeo, sei lá como descrever o que ele faz: produtor de imagem. Quando não está agindo, está pensando, criando, cultivando, bolando, se enrolando... aceleradíssimo. Nem me lembro mais por que resolvemos fazer aquela produção: a história da construção do Hospital Infantil. Nós tínhamos as fotos, os slides, as músicas, e queríamos reunir tudo numa mídia só, mesmo porque as imagens estavam sumindo... Marcamos a entrevista com quase um mês de antecedência, porque a agenda do sujeito era lotadíssima e obviamente tínhamos mais de mil perguntas a fazer, combinar roteiro, datas, equipe de apoio... Sabrina ( minha filhinha de seis anos) fez questão de ir comigo. Naquele dia o estúdio estava mais que lotado. Nunca vi tanta gente circulando: modelos, maquiadores, atores, operadores, técnicos... - Hi, tem gente demais pra meu gosto. Por que eles não mandam forrar esse sofá? Essa sala de espera é muito sem graça... Sabrina, acho melhor a gente ir embora... - Dona Milena, pode entrar.
Na porta estava escrito “Vinício – Diretor de Criação”. - Tudo bem? (Acho que ninguém respondeu...) - Já vi que não está... Eu ainda estava fechando a porta, mas nessa hora, ao ouvir a resposta que ele mesmo deu, eu me virei pra ver quem era o tal “produtor de imagens”. Foi aí que tirei uma das fotos, uma das cenas que teima em não sair da minha cabeça. - (Como é que ele sabe? Eu ainda nem disse nada...) É claro que eu ia falar do sofá, da cor das paredes, da reforma, mas ele tinha uma cara meio brava... 16
Como Sabrina estava toda empolgada, ela já foi dizendo o que a gente queria, e ele nem me deu bola... - Você sabe como se faz um vídeo? - Nós já temos os slides e a trilha... - Deixa eu ver. - São dez séries. Acho que a mais antiga é a que está pior. - Essa aqui é de 1977. É a primeira? - Não... As primeiras ficaram no porta-luvas. Agora que eu tô lembrando... ( Ô bichinha atrasada. Como é que você marca a entrevista e não traz o principal? Só eu mesma pra fazer isso. Cabecinha boa, hein? Isso é que dá trabalhar demais. O cara vai achar que eu sou maluca. O que eu vou fazer aqui sem esse material?) -
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Dá pra ver por essa aqui. Nossa, olha a cor dessa imagem! Daqui a pouco vai parecer que é em preto e branco. Tem que mudar de suporte. Você vai pintar tudo de novo? Eu, não. O computador vai corrigir essa diferença. Olhe aqui como está manchado... E o papo rolou frouxo. Quando eu percebi, os dois estavam viajando... Ah, meus filhos estudam no mesmo colégio que você, mas à tarde. Humberto está na quarta série; Felipe, na segunda e Fabiano, na primeira. Você tem que conhecer o Fabiano! A sala dele fica ao lado do refeitório. Você está no Jardim II!? Como é que você sabe? Ah!!! E estuda com a tia Mariana? Não. Minha professora é a tia Lúcia. Eu conheço a tia Lúcia. A tia Mariana passou para o período da tarde. A tia Lúcia é uma bem magrinha, né? Você conhece tudo de lá! Conheço. Hi! No Jardim II tem formatura. Hi! É uma choradeira... a tia já falou sobre a formatura? Ainda não. Vai falar. Então, tá. Vamos, né? Que dia nós vamos fazer o vídeo? Se for hoje, eu vou perder a Festa Junina, e a tia disse que eu não posso faltar porque vai ter... Não, Sabrina. O tio vai marcar pra outro dia. Pode ser na segunda-feira. Eu falto o balé... Eu trago o material completo pra você, Diretor. Sabrina, nós vamos marcar a data depois. Quando, mamãe? Assim que o tio puder. Pode ir pra festa junina descansada. Eu vou te apresentar o Fabiano. Ele vai? 17
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Acho que sim.
Ainda no estacionamento: - Como é, mamãe, gostou desse Diretor? Até que ele é legal. Tá decidido. Eu quero ele. Minha sorte é que Sabrina tem um bom gosto!
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O que essas mulheres têm na cabeça? Na hora H ninguém mais podia comparecer ao encontro, e eu cheguei lá sozinha, bem cedinho (ainda nem tinha fila), pra dar tempo de tirar todas as dúvidas. - Será que ele pode atender? Eu quero marcar a produção. - Pode entrar, Dona Milena. - Tudo bem, blablablá.... E o telefone tocando... - Só um minuto, Milena. Foram essas as falas deles: - “ Alô! (...) - Quem está falando? (...) - Eu achava que era você, mas não estava reconhecendo a voz. (...) - Não, minha mãe teve um probleminha. Nada grave. Ela está bem.(...) - Pois é, e teve de operar de novo. Uma correção simples. Ela já está em casa. - Ah, não faz isso comigo, não! (...) - Eu te digo depois.(...) - Isso. Pode escolher. (...) - A gente conversa depois”. (Desligou) E E E -
Desculpe. o telefone tocando, de novo... E quem vai fazer a iluminação? As equipes de Brasília são as mesmas. Quem faz comerciais e vinhetas durante o ano, faz os programas eleitorais na época das campanhas... o telefone tocando... Sei, e quem vai fazer a iluminação? Depende do dia e da agenda. Você queria marcar pra quando? o telefone tocando... Pro primeiro dia disponível. Ô, Diretor, pode atender ao telefone. Eu espero, tudo bem. Se eu atender, eu não trabalho. Atende. Eu espero. Tenho um monte de coisas pra perguntar. É bobagem. Não quero atender. Tem uma pessoa que liga todos os dias nesse horário. É melhor atender logo. Eu espero. Atender é fria... Quer ver?
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Minha gente, eu ficava olhando para aquele sujeito... O que que esse cara tem? Eu queria conversar com ele, dissecar, ver tudo por dentro e por fora: uma intimidade que não existia. Sabe o que ele fez? Atendeu, olhando fixamente pra mim. E poucos segundos depois, ele me passou o telefone: me deixou ouvir... Tudo bem! Quando eu coloquei o fone no ouvido, eu não sabia se ria ou se chorava. Um fundo musical esquisito... “eu quero me agarrar ao teu corpo como carrapato e te sugar...” Ai, ai, ai... telemensagem, daquelas mais que picantes!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! E ele lá, sério todo. Se fosse comigo, eu tinha feito a maior farra!!!! Imagina!!! Meio mundo recebe telemensagens picantes. Bem, com todo o respeito, no local de trabalho, na frente de uma cliente, realmente ficaria meio esquisito ele se entregar à curtição. Mais que depressa eu devolvi o fone. Afinal era pra ele! Eu não tinha nada a ver com aquilo. - Viu só, o nível? - Desliga isso... - Ah, não! Agora eu quero saber quem mandou. Olha a intimidade... Pois bem, tava lá a telemensagem tocando, e ele escrevendo calmamente o roteiro do vídeo. - Não se esqueça de trazer essas peças anotadas na etiqueta da fita e as datas pra identificação das imagens. Talvez a gente precise conferir com os slides. E a telemensagem tocando... - Sim, sim. Adorei. Quem mandou? (...) E desligou o telefone. - Não se preocupe com o iluminador. Vamos usar o equipamento do estúdio. - Ah, não! Agora eu também quero saber quem mandou. E aí, quem foi? - Se eu contar, você não acredita: a esposa do meu vizinho. Filmei o casamento deles há poucos meses. Eu já disse que eu não quero nada com ela... Uau! O sujeitinho é assediado, hein! Por que será? Tudo bem que ele é charmoso, mas eu pensei que só eu que estava achando... -
Eu não sei o que essas mulheres têm na cabeça. Na sexta-feira passada eu recebi aqui uma cesta... um negócio tão grande... parecia uma cesta básica... Olha só o cartão! 20
Rapidamente ele abriu uma gavetinha e me mostrou tudo! “ Devore esta cesta como eu quero te devorar! Irene”. -
É, o negócio tá bom pro seu lado. Eu tenho 49 anos. Sabe quantos ela tem? 19. O que uma menina dessa idade pode querer comigo?
Putaquiopariu! Mais uma... O que que esse cara tem? Mel? E desde quando cesta básica é grande? Sexta-feira passada foi o dia dos namorados. Eu ganhei um kit pra banheira do marido e achei lindo! E o que eu dei a ele? Camisas! Já tinha comprado três, no início da semana pra não me esquecer, como tinha ocorrido nos anos anteriores, de estresse total, e um pijaminha de malha, daqueles modernosos, esverdeado...Ficaria bonitinho nel... - E a sua mulher não se importa? - Eu não sou casado. Nossa, parecia até uma bronca. Perguntar não ofende! Que seriedade sem propósito! E daí? Não é casado, mas, hoje em dia, isso não faz muita diferença: quase todo mundo é amancebado, mora na casa alheia, na boa... É até pior não ser casado: teve ter uma penca de namoradas. Eu devia ter perguntado das namoradas, mas realmente não tinha nada a ver. (O vídeo, meu bem! Eu preciso ver o roteiro pra saber se eu aprovo...) -
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Sabe o que é, Vinício, o patrocinador é superexigente. Eu tenho que prestar contas do dinheiro. Eu não tenho como reembolsar o investimento. Se esse vídeo ... Pára com isso, Milena. Toma vergonha. Não tem nenhum perigo. Só hoje eu fiz três...
E já se levantando e me botando pra fora da sala, tipo “seu tempo acabou, mocinha. Tem gente lá fora me esperando.” (“Tudo bem, você é profissional, seguro. Eu confio no seu taco”.) Mas ele tem algo de irritado... Será que se arrependeu de ter me contado sobre as paqueras? Que bobagem. Eu sou de confiança! - Eu não vou te dar três beijinhos, porque você já é casada. Ganhei só dois. - Que Deus te dê em dobro tudo o que você deseja, em dose dupla, três vezes ao dia. Foi nessa hora que eu tirei uma das fotos, gravei uma das imagens que teima em não sair da minha cabeça. Aquilo mesmo, linguagem universal. 21
(De manhã, no almoço e antes de dormir... Só se a gente morasse juntos.) Será que ele é viúvo?
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Dizem que eu sou paranóico. Chegou o dia, afinal. Vamos assistir ao vídeo. Tivemos que chegar bem cedinho. Até ligarem todos os equipamentos e prepararem o auditório, ou melhor, a sala de exibições, demorou um pouquinho. Todos queriam assistir em primeira mão, claro: mamãe, o maridão... Ele chegou todo vestidinho de Diretor de Criação. Sabrina não se conteve e já foi entregando uns presentinhos que tinha trazido pra ele, “embrulhados” numa toalha de papel de cozinha, aquelas enrugadinhas... - Eu fiz pra você. - O que é isso? Chocolate? - Não, Diretor. É sabonete. - Nossa! E você sabe fazer sabonete? - Eu faço com a minha mãe. Ela me ensinou. -
Sabrina, o CD! Já ia me esquecendo. É pra mim? Nossa! Quantos presentes! Eu canto aí! Você? É, uma música. Eu dou levar pro Fabiano. Ele vai adorar. E você já viu a sala de exibições? Posso entrar? Claro. Olha só o operador de áudio. É o tio Frederico.
Como sempre, tudo rolou na maior tranqüilidade. Os outros convidados chegaram, nos acomodamos nas poltronas, portas fechadas, arcondicionado ligado... Ele explicou que processos tinha utilizado para recuperar as imagens, eliminar ruídos, e, sem querer entrar nos detalhes sobre a concepção do trabalho, deu a entender que aquele projeto tinha sido muito especial. - Vamos assistir. Luzes apagadas e, enfim, o vídeo. Logo na abertura ele estampou uma imagem de Sabrina, linda, linda, e usou minha voz, à capela. Não me pergunte como ele conseguiu apagar os instrumentos. Eu nem gostava muito daquela música, mas ficou legal! Como eu já conhecia os slides, fiquei me lembrando de como fotografamos tudo aquilo, como gravamos as trilhas... Tantos amigos, tanta gente extraordinária tinha deixado um pouquinho de si ali. Tantos palpites, tantos sentimentos. O vídeo ficou de arrasar! Quando eu percebi que estava acabando, tentei disfarçar as lágrimas, mas não ia dar tempo de me recuperar. Eu chorava copiosamente, e, para 23
minha surpresa, ele também!!! Não sei quem iria ficar mais sem graça, na frente de todo mundo... Era melhor assumir logo! - Você ficou emocionado! Ele não conseguia falar. Balançou a cabeça, afirmativamente, e as lágrimas caindo... O operador ligou as luzes, e parece que ficou pior! -
Parabéns, Diretor, ficou genial! (Os convidados amaram!) Ele me olhava, quase pedindo socorro. E as lágrimas caindo, sem parar... Eu também estava chorando, mas eu não estava de frente para a platéia. Ele me olhava e me olhava...
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Eu me lembrei de um amigo que nos ajudou nessa produção. Ele morreu faz pouco tempo... Ele me olhava e me olhava...
- Por isso você é um grande Diretor! Porque se emociona com o que faz. Aí está sua sensibilidade! Ele desligou o vídeo e tentava prosseguir com as explicações... A voz completamente trêmula, desafinada... Eu estava vendo a hora de ele não conseguir mais ficar ali. Ao mesmo tempo em que ele queria se restabelecer, a emoção ia transpirando por todos os poros... Meu Deus, como ele suava! Estava encharcado. Para nossa sorte, os outros convidados fizeram pequenas intervenções, algumas perguntinhas, e a emoção foi domada. Ele só não podia olhar na minha direção, porque a minha ainda estava fora de controle. Eu não estou nem aí! Choro mesmo e fico sorrindo: afinal não deixa de ser uma sensação boa, de encantamento! Meus Deus, eu devia trabalhar com esse sujeito! Mudar de profissão. Eu já estou querendo variar mesmo. É mais emocionante que fazer análise situacional das Unidades Federativas. -
Como é que você conseguiu essa qualidade? Dizem que sou paranóico, mas, nesse tipo de montagem, tem que ser mesmo. Sou eu que monto a equipe. E você aceita estagiários? Nesse tipo de trabalho não se pode arriscar. Não é coisa para amador. Eu só contrato profissionais.
Hi, minha vaga já era!!! Bem, de repente, ele pode me colocar de “palpiteira”... 24
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Como você consegue coordenar tantas equipes ao mesmo tempo? Eu converso com todos os encarregados, todos os dias. Se vocês querem um conselho, esse é o mais importante: conversem todos os dias. Não pense que está tudo bem e que vocês não precisam se falar. Não está tudo bem quando não há troca, quando as pessoas não se falam. Se você não puder estar presente com sua equipe, telefone, mande telegrama, fax, e-mail, pombo correio... É por isso que dizem que você é paranóico? Então, sejam paranóicos! No final vocês vão ver que terá sido melhor assim.
(Meu Deus, como esse sujeito é sensível! Homem, assim? Eu não sabia que existia!) Todos se despediram e nós ficamos na sala, esperando os originais e as cópias. - Ai, mamãe eu quero ir embora! Por que está demorando? - Porque eles só fazem as cópias depois que a gente dá o OK na produção. - Você viu ele chorando, mamãe? Que vergonha! Na frente de todo mundo. - O que que tem, Sabrina, ele ficou emocionado. Você também não ficou? - Mas eu enxuguei bem depressa. Quando olhei em direção à porta, não acreditei no que vi: ele estava espiando! Escondeu o corpo e deixou só a metade do rosto aparecendo! Foi ali que eu tirei uma das fotos, uma das imagens que teima em não sair da minha cabeça. Meio menino, meio moleque, o profissional seguro, competente que tinha recebido, além dos merecidos elogios, as lágrimas da platéia. - Posso entrar? Comecei a rir com aquela palhaçada, mas confesso que foi ali, foi com aquela brincadeira que ele me impressionou de vez. Você pode até se esquecer das pessoas com quem você ri, mas das com quem você chora... Ainda que tenha sido em público e de luzes apagadas! A verdade é que eu fiz tudo pra encontrar alguém que me desse a ficha daquele cidadão. É claro que eu estava apaixonada. Não dava pra esconder. Era melhor assumir, logo! Contei a história pra toda a minha família, para as melhores amigas, e todo mundo achava que eu estava brincando, claro! Imagina, eu sou casada! O marido não conseguia entender: - O que você viu naquele cara? Sempre que me perguntavam sobre o vídeo, eu entregava o ouro: 25
-
Fiquei completamente apaixonada pelo Diretor de Criação. Eu e Sabrina! Mamãe, ele se parece com aquele cara da novela... Com quem? Com o Prefeito da novela das oito, aquele que namora a Rosa Palmeirão. O Antônio Fagundes? Nossa, Milena! Então ele deve ser um gato! Agora eu estou entendendo. Ai, ai, ai... Acho que você tem razão, Sabrina. Eu não tinha reparado. Onde é o estúdio dele? Me dá aí o endereço, Milena. Eu estou precisando fazer umas fotos. Será que ele me atende?
Sem comentários. Até hoje não sei se ele é viúvo. Não encontrei viva alma que me dissesse alguma coisa. Todos sabem que ele é muito conceituado, profissionalmente, mas não era bem isso o que interessava...
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Enfim, a recaída! Houve tanto tumulto naquelas férias que Milena não viu o tempo passar. A morte de Rebeca acabou despertando uma vontade de “viver bem” já, enquanto há tempo. “Não espere pra fazer alguém feliz amanhã. Faça logo, hoje” e coisas dessa natureza.
Sem dúvida aquela estava sendo uma das fases mais esquisitas da minha vida. Eu tinha a sensação de que estava condenada a ser infeliz, ou menos feliz que poderia, por causa daquele emprego. Rebeca tinha praticamente a minha idade e estava no auge da vida, como eu. Tinha acabado de construir uma casa lindíssima, em Capim Macio. (Eu me lembro que dei a ela de presente umas torneiras de cascata, daquelas que dá pra ver a água caindo leito abaixo. Adoro essa cena!) Tinha uma família cheia de predicados e talentos, e estava iniciando uma nova carreira. Laurinha, sua filhota de nove anos, estava passando uns dias lá em casa. Tínhamos acabado de chegar da Feirinha do Paraguai, com a corda toda, quando eu soube que Rebeca tinha voltado para o hospital, mais uma vez. Quando me dei conta, estávamos em Natal, revendo as fotos de Rebeca criança, jovem, mãe, companheira, naquela casa lindíssima, com aquela família cheia de predicados e talentos. A memória da gente é uma coisa fabulosa, né? As fotografias também. Meu querido terapeuta. Sessão única: - O que houve? - Não consigo parar de chorar, de novo. - Desde quando? - Hoje de manhã. Cheguei de viagem ontem, e me deram a notícia por telefone, bem cedinho. - Milena! Nem deu tempo... - O carrasco traidor vai ser meu chefe! Eu tô ferrada! É nisso que dá mandar em gente mais velha que você. Eles ficam complexados, vingativos... Ele mandou dizer que guerra é guerra! E o meu time perdeu... Ele vai me fritar viva! Eu já entreguei os cargos de direção, já pedi pra sair... Eu não quero mais trabalhar naquele lugar... Eu preciso de acompanhamento, de tratamento... - Por que você não espera pra ver o que acontece? Isso é pura ansiedade. De repente pode não acontecer nada do que você está pensando... 27
- Eu não quero ir... Por que eu não largo essa merda desse emprego? - Por causa do dinheiro. Você disse que não ganha mal. - Mas eu não quero trabalhar lá... - Dá pra mudar? - Não sei...Por que eu não arranjo um marido bilionário que me leve pra Bali... - (...) - Por que você não me dá um atestado e eu volto a fazer terapia... - Não. Você vai lá primeiro. Se der problema, você me avisa. - E se eu cair no choro, na frente de todo mundo? - Use a moeda, de novo. - Isso é porque diz que tá torcendo por mim, que é meu amigo... Imagine se não fosse... - Me liga pra dizer se está tudo bem. Você vai amanhã de manhã? - Tenho que ir hoje, agora. - Já são 12h. - Dá tempo. Vou só assinar o ponto, porque já adiantei o trabalho da semana, pra variar. Ele não vai estar lá nesse horário. Talvez só amanhã, à tarde. - Você vai conseguir. Me liga. - Combinado.
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Muita coincidência pra meu gosto No mesmo dia: - Dona Milena, telefone. É da agência de publicidade. - Que agência? Alô. Dona Milena, eu queria confirmar a entrega das cópias... Quando é mesmo? Hoje, às 15h. Cópias? Hi, é o vídeo da construção! Eu tinha encomendado mais cem cópias. Nossa! Já são 14h30 e eu nem almocei ainda. Tinha que ser hoje? Não tenho vontade nem de tomar banho. Preciso dormir, relaxar... Mas eu vou. Vai ser rapidinho. Vale a pena ver esse Diretor. Ele é muito gente boa. - Pode confirmar. -
Na tal sala de espera: - Mãe, nós estamos atrasadas!!! - Pois é... - Mãe, estão reformando toda a agência... - Ainda bem. Estava passando da hora... - A senhora pode aguardar. Ele já está chegando. - Hi, Sabrina, ele também se atrasou. Que sorte! Deu tudo certo, tá vendo? Acho que eu e Sabrina nos atrasamos uma meia hora, mas ele... deve ter se atrasado uma hora e meia! Já estávamos com o bumbum dolorido de tanto esperar... na boa, claro!. Lá vem ele... - Me desculpem. Eu estava na fila do banco quando a secretária me ligou avisando que tinha cliente marcada pra esse horário. Eu acabei de sair do aeroporto... (É isso que dá marcar encontros com tanta antecedência... Todo mundo se esquece...) - Agora posso voltar a trabalhar. Estou com as baterias recarregadas. Adorei Natal... - Natal? Nós também estávamos lá... Chegamos ontem. - Eu vou comprar uma casa lá... - Minha mãe também... Ela quer um chalé na praia. - Que praia? - Tabatinga. Fica depois de Búzios. 29
(O que que esse cidadão vai fazer em Natal?) - Vou morar lá, quando eu me aposentar. (Ele gostou mesmo! Será que foi sozinho? Deve ter levado a namorada...) - Ah, os meninos adoraram... (Meninos e namorada não combina muito...) - Eu almocei no Camarões... - Quando? Eu também estive lá na quarta-feira... - E na Tábua de Carne... - Eu estive lá na quinta... - Fui até Touros, de bugre... - Você foi quando? Eu passei por lá, na sexta... - Eu também. O passeio pela praia é... E aquele hotel? O Pirâmides é espetacular, tem até sala de leitura... - Meus pais têm uma casa em Natal. - Não me diga. Se eu soubesse... Onde fica? - Em Ponta Negra. - É perto de Capim Macio? (Capim Macio? O que esse sujeito viu em Capim Macio? Tem tantos bairros em Natal) - É, sim. Olha aqui como é fácil achar. - (...) Meu Deus, eu podia passar a tarde inteira conversando com esse cidadão. É muita coincidência! Que coisa agradável! - Vamos ver as cópias. Hi, ficaram ótimas! Se lembra daquele presente que você me deu, Sabrina? Foi uma flor, né? - Um sabonete do Batmam ou do Michey e uma... - Eu guardei aqui na minha gaveta. Quer ver? - Mas tem que usar... - Eu não! Depois acaba, e eu não sei quando vou te ver de novo... - A gente manda mais. É só avisar... - Minha mãe me contou da sua paquera! Da gravação na telemensagem... - Sabrina!!! Mas eu disse que era segredo, né? Que não podia contar pra ninguém... - (...) - Eu queria refazer a parte final das séries. Separar os dois últimos áudios. Dá pra recopiar umas cinco fitas? - Agende com a secretária. - Obrigada. Vamos Sabrina, o tio tem que trabalhar... - Já estão se preparando pra formatura? A festa é muito legal... - Ainda, não. A próxima apresentação é a do Dia dos Pais.
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Eu já estava praticamente abrindo a porta. Quando eu me virei, quase não acreditei no que vi... Aquele homem enorme, exuberante, todo curvado, abraçando a Sabrina por trás, como se ela fosse um travesseiro, e a cobrindo de beijinhos, beijos “melados”... Eu vi que ela protestou, mas... - Que coisa mais linda, mais gostosa... Eu queria que fosse comigo. Mãe não ganha nada?!!! Como ele se movimenta rápido nesse estúdio! Já deu a volta, por trás de mim... abraçou a Sabrina e agora já está de frente... Não consigo me lembrar de uma palavra do que ele disse nessa despedida, perto da porta! Lá vem ele... se aproximando de mim. Fechei os olhos. Senti o rosto dele encostando no meu. Era só um beijinho ou dois... Três ele não ia dá, porque eu já sou casada: ele já tinha me dito isso uma vez... Mas eu levei um choque: a mão dele foi esbarrando em mim, lateral esquerda abaixo, até a cintura. Um choque mesmo, de arrepiar até a alma, em frações de segundos. Meu Deus, o que é isso? Eu me sentia tão feliz, tão contente! Esse cidadão deve ser mágico. Eu nem me lembrava mais que estava vivendo um dos piores dias da minha vida... Como é que pode? Ele está sempre bem, pra cima. Ele deve ter algum segredo, algum poder... e o dom de me fazer feliz.
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E.T. go home Eu sou da época do E.T. Lembra? O filme em que os meninos decolam de bicicleta. Pois é, como dizem os sensíveis, chega o dia em que a gente quer “encostar o dedinho”. Lembra? Esse momento chegou bem antes do que Milena imaginava. Não perguntem por quê. Parece que os sentimentos se misturam com a fantasia, com o desconhecido, com o inacreditável. É uma sensação tão engraçada! Parece que a gente não vai ter sossego enquanto não executar o que o coração manda, ou a cabeça, sei lá... Nesse dia a agenda dela estava cheia, incluindo um coquetel no final da tarde, depois do expediente normal de trabalho. Ela sabia que dessa vez o encontro seria rapidinho e provavelmente o último. Era só pegar as cópias e saber como tinha sido feita a remontagem. Mas a vontade de fazer logo aquilo era inexplicável. Lá estava ele, sentadinho no estúdio, antes das 14h. - Nossa! Onde a senhora vai desse jeito? - Pro trabalho. Por quê? - Tá linda! Gente, ele nunca me viu assim, normal? Realmente em outras ocasiões eu andava totalmente desanimada e confesso que andei saindo de casa, assim, “de chinelo”. Mas se ele se impressionou com isso, imagine se vir o resto! Mal sabe ele como eu sou metidinha! Meu amigo, você não viu nada! - Não, eu não quis dizer... Você está sempre linda! Linda como sempre... - Deu pra fazer a montagem? - Claro. Quer assistir comigo? - Precisa? - Eu te mostro os cortes aqui no computador. Vem cá. - Mas por que deu essa diferença de cor? O fundo era verde. Ficou azul?! - É impressão sua. Se você assistir ao original e à cópia no mesmo equipamento, com a mesma regulagem, isso não vai aparecer. - Mas até a legenda está diferente! - Onde? E foi nessa hora que me senti a própria “Vem cá, meu véio. Lembra quando a gente”... Ele colocou os óculos pra conseguir enxergar as legendas! Eu achei aquilo simplesmente lindo! Meu Deus, como eu queria participar da vida daquele ser! Eu queria saber de onde ele veio, por onde ele andou, o que ele não fez, o que vai fazer, para onde ele vai. Eu queria acompanhar. Enquanto ele se intrigava com aquela legenda sem cor definida, eu o admirava, curiosa pra saber do que ele era feito. 32
- Isso é reflexo da luz nessa tela. - Reflexo azul, só azul? Olhe desse lado... Foi nessa hora que os meus dedinhos, os cinco da mão esquerda, encostaram nos dele. Não me perguntem quem mandou... - Tem certeza de que é reflexo? Meus dedinhos não queriam ficar quietos. Um deles já estava deslizando sobre o revestimento daquele ser que, para mim, era sobrenatural. Eu achava que ele não ia reagir, nem ia se dar conta de que eu queria sentir. Mas não foi o que ocorreu. Pra minha surpresa, os cinco dedinhos dele pousaram sobre os meus, quase me imobilizando. Nessa hora, quem teve medo fui eu! Se os dedinhos dele também começarem a deslizar, este não vai ser o último encontro! Retirei a mão discretamente e fui tratando de encerrar a conversa. É melhor sair correndo. Nem sei se ele morde! - Pode ficar sossegada. Eu garanto que é reflexo. - Você está certo. Ele me olhava fixamente... Não sei pra quê. Eu tinha certeza absoluta de que ele conseguia ler meus pensamentos, até no escuro. - Isso fica entre nós dois. - Pode deixar, Diretor. Ninguém vai querer vir até aqui pra ver a cópia no seu computador. O que vai ficar entre nós dois? Ele quer ter um segredo? Comigo? Logo comigo, que não sei ficar calada? É pior que tortura! - Foi um prazer a sua visita. Foi aí que eu tirei uma foto, uma das imagens que teima em não me abandonar. - Que Deus lhe dê tudo o que você deseja, em dose dupla, três vezes ao dia! Se ele repetir isso, mais uma vez, eu não me responsabilizo! Não parece prescrição médica? Três vezes ao dia! Em dose dupla? Pela manhã, depois do almoço e antes de dormir... Só se a gente morar junto! Eu não já disse? É claro que tentei esconder o riso. Se ele pode ler meus pensamentos, imagine se ele vir essa cara “bem-intencionada”! - Obrigada. Pra você também. 33
Pois bem, este episódio deveria se encerrar aqui. Mas até hoje não consigo entender o que aconteceu. Eu sabia que o E.T. estava lá. Talvez se escondendo. Eu já tinha até tocado nele. Meu sossego acabou. Como se não bastassem as pequenas lembranças que a toda hora me voltavam à mente, naquela noite eu tive um sonho. Não aquele de sempre, que eu ia aprimorando. Aliás, acho que foi pesadelo. Ele estava muito triste, me esperando chegar. Mas como é que eu ia até lá se eu não sabia de nada? Eu ia ler a notícia no jornal. Mas hoje em dia os sobrenomes são tão malucos. No dia seguinte, antes das 14h, eu já estava angustiada. Agora já era. Não tenho mais motivo pra ir lá, nem pra... E precisa de motivo? Que bobagem, Milena! Mas ele não atende telefone de mulher casada. Então, não diga quem é. - Alô, eu queria falar com o Vinício? - Quem quer falar? - Ah, moça, eu não posso dizer. É surpresa. - Ele não costuma atender ligação de pessoas que não se identificam. - Diga a ele que é surpresa. Eu não vou demorar. É rapidinho. - Tá bem. Vou tentar. Alô. Hi, Diretor você atendeu? Quem está falando? É fria, é mulher casada. Quem está falando? Você é mineira? Não. Eu nasci em Brasília. Errou, Diretor. É Milena, mãe da Sabrina. Tudo bem? - Eu achava que era você, mas não estava reconhecendo a voz. (...) - Sua mãe está doente?
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E pasmem as senhoras e os senhores! Nós praticamente repetimos o diálogo que eu havia presenciado no estúdio, no dia da telemensagem. Não me perguntem por quê. -
Não, minha mãe teve um probleminha. Nada grave. Ela está bem. Ela fez uma operação? Pois é, e teve de operar de novo. Uma correção simples. Ela já está em casa. Que bom! O que você quer ganhar no Dia dos Pais? É no próximo domingo. Ah, não faz isso comigo, não! Por quê? É melhor você dizer o que quer ganhar. Depois eu te digo. 34
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Tá bom. Então eu vou escolher, mas depois não pode reclamar, nem dizer que é vagabundo... Isso. Pode escolher. Você vai à festa da escola? Pois é, acho que vou. E você? Não sei. Acho que eu vou também. A gente conversa depois.
Meu Deus! Por que eu estou repetindo uma cena que eu já vi? Será que foi de propósito? Claro que não, Milena. Poderia ter sido tudo diferente. Mas foi igual. Será que eu vou fazer igual à mulher do amigo dele ou àquelas outras que não se sabe o que têm na cabeça? O que está acontecendo? Pelo menos o sonho foi falso. A Mãe dele vai bem, obrigada. É claro que, quando eu perguntei, eu já tinha pensado em mil presentes. O meu predileto seria um final de semana, por acaso, no mesmo hotel fazenda, com as crianças todas. Aí, sim, a gente poderia conversar. A segunda opção era mais interessante ainda: a matrícula num curso de dança de salão! Aí, sim! Eu teria feito a coisa certa. Sabe que eu cheguei a visitar duas escolas? Mas os horários são terríveis, localização completamente... P.S.: Você já tentou escrever alguma coisa com dois filhos a seu lado? Depois do último grito, o menorzinho, ofendidíssimo, disse que ia dormir no corredor, no chão. Eu nem fui ver. Perguntei à Sabrina por onde ele andava, e ela respondeu que ele estava deitado em cima do tapete. Lá vem ele: - Eu vou dormir na rede, até de manhã. - Tudo bem. Pelo menos ele encontrou um lugarzinho melhor: bem na minha frente, naquela rede da varanda, mais aconchegante impossível. Quando estou escrevendo, eu praticamente não paro, mas, sem querer, cruzei meus olhos com os dele. Tadinho, caindo de sono! Eu disse que ia dormir com ele hoje, agarradinha. Isso foi antes dos gritos... Ele me olha sem piscar! - Tá me paquerando, Rodolfinho? - Não. De novo! Aqui está ele me olhando, sem piscar. Dessa vez eu tive que parar. Quando ele viu a máquina fotográfica, fez logo uma gracinha, como sempre, pra variar! Veja as fotos!
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Presente que se preza vem enrolado, né? Só não sei se o presente era pra ele ou pra mim. Eu precisava não resistir. Sabe aqueles momentos em que é melhor obedecer ao coração, ou à cabeça, sei lá...? Enquanto a gente não faz, não tem sossego? Pois é! Me sentei em frente ao computador e abri o programa de história em quadrinhos. Em menos de meia hora estava tudo pronto. Não vai dar pra embrulhar! A festa é daqui a pouco e ainda tenho que tomar banho. Como é que eu vou levar isso? Vai nesse disquete mesmo. O que importa é o conteúdo. Nossa! Ele vai achar terrível ! O colorido está péssimo! E daí? Se ele for desses que se importa mais com o colorido do que com a história, ele não é merecedor do presente. Problema dele. Minha parte eu fiz. E ainda avisei que não aceitava reclamações. -
Sabrina, será que o filhinho do Vinício comprou presente pra ele? Vamos levar um CD pra ele entregar ao pai. Mas, mamãe, esse aí é da Sandy e Júnior. É de criança. O pai dele não vai gostar. Vai, sim. Eles podem ouvir juntos. É melhor que o da Eliane. E eu só tenho esse embrulhado.
A festa foi uma verdadeira novela! Eles não apareceram nem nos momentos finais. -
Milena, o que você está fazendo com esse negócio na mão? Esse disquete vai quebrar... É pro Vinício. Que Vinício? O Diretor de Criação, aquele da agência de propaganda. Põe aqui no meu bolso. Obrigada, marido.
Agora já era. Só na segunda-feira. O que eu faço com isso? - Mamãe, posso dar o CD da Sandy e Júnior pro Bruno? - Pode. Acho que a gente não vai conhecer esse Fabiano nem tão cedo. - Milena, o que que tem nesse disquete, afinal? - Vem ver. É uma história em quadrinhos para o Dia dos Pais. Um garotinho descobre que é filho de um dragão, muito poderoso. Mas os dois têm medo de se machucar, porque cospem fogo, e por isso quase nunca ficam juntos. Um dia, o dragão-pai vai buscar o filho na escola e lê a redação do dragãozinho (que a professora tinha afixado no mural), e ali o filho revela que adora o pai, porque ele é muito forte, muito poderoso e cospe “chocolate”! 36
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Ninguém consegue entender aquela história. Parece que até então era um segredo entre eles. Talvez até continue a ser uma fantasia, uma piada, uma brincadeira, mas, a partir daquele dia, o dragão-pai perde o medo de machucar o filho e de se machucar com ele, e os dois finalmente se abraçam, se beijam e ficam sempre juntos cuspindo fogo e “chocolate”. E aí? Gostou? O colorido está terrível, mas é só um rascunho. Bonitinha. Só? Legal. (...) Ah, Milena! Você sabe que eu não entendo nada de história em quadrinhos. O que você quer que eu diga? Eu copiei essa história na escola, da redação do filho do Vinício. Só fiz as ilustrações. Interessante. Parabéns! Você é muito criativa. Ficou lindo! Tá bom, agora? Melhorou. Então, desliga aí esse troço e apaga a luz. Eu tô morrendo de sono.
Eu não sei o que luz tem a ver com sono! Se fosse imprescindível, ninguém conseguiria dormir durante o dia. Fecha os olhos, põe um travesseiro no rosto, põe a cabeça embaixo do “edredon”... Por que eu tenho que apagar a luz? -
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Milena, assim não dá! Apaga a luz, por favor! Se essa história fosse minha seria diferente: O pai e o filho tinham vergonha de ficar juntos, porque, depois que eles cuspiam fogo (sempre para assustar os inimigos), eles choravam, de alegria e de emoção! Afinal eram muitas vitórias e muita admiração entre os dois. Mas eles achavam que, se alguém visse, ia pensar que eles não eram fortes e poderosos. E por isso eles não ficavam juntos. Mas quem é que tem coragem de mostrar suas emoções, especialmente quanto elas parecem fraqueza? Parecem, mas não são! Até que um dia... Milena, a- pa-ga a luuuuuz!!! Sim, sim, sim, majestade!
O que luz tem a ver com sono?! Os chineses descobriram que quanto mais escuro estiver o local, mais profundo será o sono, porque o corpo se desliga dos perigos que percebe na claridade e não sei mais o quê... Sorte é que ele não leu essa reportagem. Já pensou? Uma aula dessas, argumentadíssima, todas as noites! Até hoje eu finjo que não sei o que claridade tem a ver com o sono...e sempre consigo mais uns minutinhos com a luz acessa! 37
Vem aqui. Me dá um beijo. Dizem que o melhor remédio é o tempo: “não há nada que o tempo não cure”. O tempo, não; o esquecimento. Quem tem memória boa tá ferrado! Pois é, o tempo passou. Para Milena, uma eternidade. Mas o esquecimento não veio com os dias, com as horas, com os episódios, com os problemas, com o sono, com os novos sonhos: Bem que ele podia aparecer agora, a qualquer hora, em qualquer lugar, assim, por acaso. Era pior que novela! Ele não apareceu, nem nos momentos finais. Milena ainda tentou saber se ele tinha gostado do presente, a história em quadrinhos, mas ele simplesmente não atendia ao telefone. Deve ser trauma! Qual é o problema em falar dois minutinhos ao telefone? Não arranca pedaço, não deixa marca... Não é pra pedir dinheiro, nem pra cobrar dívidas... Ninguém precisa me dizer o que é ser ocupado, ter agenda lotada, só problemas pra resolver, reuniões, reuniões, gente complicada, de mau humor, gente sacana, complicações pra todo gosto, ambientes adoecidos, impregnados de todos os tipos de vícios. Já passei por isso e sei como é bom receber um recado: alguém me quer bem. Problemas, quase todo mundo tem, mas eles existem pra serem resolvidos. Se você tem algum, resolva no que estiver ao seu alcance. Fugir normalmente é a pior decisão. Quem tem jardim sabe do que estou falando. Deixe o mato crescer, pra ver no que dá! É melhor cultivar o que é seu, o que está ao seu redor, porque se você não o fizer, pode ter certeza absoluta de que o mato cresce, e o trabalho é muito maior depois. Foi pensando nisso que, depois da eternidade, Milena resolveu ir até o estúdio, pessoalmente, entregar um convite para o lançamento do seu primeiro livro: Histórias em Quadrinhos. A festa já estava praticamente encaminhada, quase tudo resolvido, mas parecia estar faltando alguma coisa. Estava tudo bem, mas podia estar melhor. Era um final de tarde. O estúdio já estava esvaziando. Avisei que queria só entregar um convite e fui atendida até rapidinho. Eu ainda estava fechando a porta, quando reparei que Vinício tinha se levantado pra me receber e já vinha na minha direção, sorrindo. - Tudo bem, Vinício? - Até que enfim. Eu quero te dar um abraço e um beijo. Apoiou os braços, bem de leve, nos meus ombros e quando eu me dei conta, eu tinha ganhado um beijinho “na boca”! Um “ploc”. 38
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Você errou a pontaria! Não. Faz muito tempo que eu quero te dar um beijo. Na boca? Me dá um beijo. Senta aqui. Vamos conversar... Não quero conversar. Eu quero um beijo. Mas o que que aconteceu? Eu não agüento mais. Eu sinto um troço por você. Eu não te vejo como amiga, nem como mulher... Olha como eu fico? (Todo arrepiado) Eu te sinto feminina, fêmea...Você não sai daqui... (Da cabeça, a de cima...)
Fiquei em estado de choque. É claro que eu não me lembro de tudo o que aconteceu ali. Juro que nunca imaginei aquela cena, nem em sonho. Continuei a fazer algumas perguntas, tentando ganhar tempo pra decidir o que fazer. Eu já tinha entendido tudo, é claro: ele sentia a mesma coisa que eu. Se não fosse igual, era bem parecido. -
Acho que eu vou ficar maluco. Calma, vamos conversar. Calma? Mas você nunca me ligou, nem atende ao telefone! Pra quê? Pra conversar. E dizer o quê? O que você sente, o que você quer. Que eu quero ler suas histórias? É. Por que, não? Você nunca demonstrou nada. Eu tinha medo de perder a cliente, a amiga, a mulher... E daí? Você ainda pergunta “e daí”? (...) Você sente a mesma coisa que eu? Diretor, eu acho que... Por que você me chama de Diretor? Porque você é o Diretor de Criação da empresa de ... Não me chame de Diretor.
(Veja como a pessoa, quando fica vulnerável, entrega todo o ouro... Se eu quiser provoca-lo, basta chamar de Diretor! Ele detesta! É óbvio que algum dia eu vou chamar!) Eu estava grudada na cadeira, quase desmaiada. Ele já tinha circulado a sala umas mil vezes. 39
Meus Deus! O que está acontecendo aqui? Eu sou casada e ele está dizendo que sente tesão por mim... Será que é só tesão? Se for, tá fácil. Isso passa! -
Eu não sei se tem espaço pra isso... Calma, senta aqui. Tem espaço, sim. Eu sei que você tem a cabeça aberta... (Mas eu não tenho!) Eu preciso saber se você sente a mesma coisa que eu. Você sente? (...) Milena, se você acha que isso é bobagem, sem sentido, esqueça tudo o que estou dizendo aqui, apague tudo.
Meu Deus! Como esse sujeito é corajoso! (Se eu dissesse “não”, ele iria direto pro manicômio!) Ele tem certeza, ele sabe que eu consigo sentir ele. -
Você quer me dar um beijo?
Meu Deus! Será que isso é traição no casamento? Não. Traição tem alguma coisa de mentira, de enganação. Não é o caso. Eu estou sendo verdadeira. - Quero. Na verdade, eu preferiria começar por outras partes, mas se o problema era o beijo, era melhor resolver logo. - Vem aqui. Me dá um beijo. Esse não foi “ploc”! Olha, eu já vi muitos homens felizes, em diversas situações. De repente parecia que aquele não era o inatingível Diretor de Criação, que nem telefone atendia... Aquele era um clone! Ou o verdadeiro Vinício? Meu Deus, como ele ficou feliz! Eu também fiquei! No fundo, eu também achava que estava ficando louca, querendo encontrar aquele sujeito pelas ruas... Meus Deus, o que era aquilo? -
No meu sonho eu te abraçava assim!
Tem gente aí fora te esperando. Você vai ao lançamento do livro? Quando vai ser? Amanhã, à noite. Vamos ver. Milena, nós vamos acabar juntos! (Até que ia ser interessante!) - Vai lá, no lançamento... Vou ver. Você está linda! Um beijo, amor!
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Só se for depois das 10h Pois é, a história deveria acabar aqui, ou pelo menos ficar no “pause” até que ventos favoráveis garantissem a segurança tão desejada pelos marinheiros, sobretudo os de primeira viagem, como Milena. Contudo, todavia, porém, entretanto... É claro que ela não ficou quieta. Impossível! Não tem gente que é turbinada? Imagine se ainda der corda! Eu já me achava meio das antigas porque, pra mim, “beijou, tá namorando”, mas parece que Vinício é pior que eu: “beijou, vamos terminar juntos!”. E a curiosidade? A mil! A explicação para esse fenômeno não pode ser racional, se é que ela existe. Pode ser mística, espiritual, de outra esfera... sei lá. Nada do que estava acontecendo era normal: conversar com quem não está perto de você, ouvir conselhos, sentir a presença, todos os calafrios a que se tem direito... A fase de transição, física, psicológica, emocional, provocada por aquele fenômeno durou cerca de uma semana. E não deu outra. -
Eu queria falar com o Vinício. Você está agendada? Não. É assunto particular. Veja se ele pode me receber. Diga que é Milena. Dona Milena, pode entrar. Boa-tarde, Diretor! Como é que a senhora ousa entrar aqui sem me dar um beijo e um abraço? O que é que está acontecendo? Afinidade. Da última vez que estive aqui você me disse que eu não saía da sua cabeça. Desde quando? Não sei. Acho que foi quando voltei de Natal. Já imaginou nós dois em Natal!?
Em Natal? Nós moramos em Brasília. O que nós vamos fazer em Natal? Quando você se aposentar, comprar uma casa... Até lá eu já entrei na menopausa. -
Dá pra a gente conversar, com calma? Quando e onde. Hoje? Só se for depois das 10h. Mais um curso... Amanhã eu vou pra fazenda com as crianças, porque (explicou tudo direito) e só volto no domingo à tarde. 41
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Tudo bem. Você me liga no final da tarde, e a gente combina. Vamos ver. Vem aqui. Me dá um beijo! (...) Você está linda. Tchau, amor!
Tudo acertado: marido viajando (como sempre), agenda disponível, crianças ocupadas e bem vigiadas... Em meia hora de conversa, a gente descobre que afinidade é essa e como administrar as energias. Problema resolvido! E eu esperei, esperei, esperei, esperei, esperei, esperei, esperei...Não me lembrava mais o que era “levar um bolo”. Eu achava que era coisa de adolescente. Ainda existe isso? Basta um telefonema, um recado desmarcando... Ah! Ele tem trauma de telefone! Mas podia ser um telegrama... sei lá. Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai... Peguei o telefone e gravei na caixa de mensagens quase tudo o que eu queria dizer. É claro que algumas revelações, só pessoalmente! Você já deixou recados gravados? É ou não é horrível? Agora imagine aí quando o assunto é “por que você me chamou atenção, o que eu vi em você, eu adorei isso e aquilo, naquele dia tal...” !!!!! Acho que seria mais fácil escrever tudinho num papel, um monólogo platônico, decorar até os suspiros e subir num palco! Porque pra isso tudo, tem que ser muito artista! Eu sou! Esperei, esperei, esperei, esperei, esperei, esperei, e nada de resposta...
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Quase tive um infarto. Essa é aquela parte que a gente quer pular, esconder debaixo do tapete: eu podia ter dormido sem essa... Milena resolveu ir até a produtora, sem avisar e disposta a esperar o tempo que fosse necessário. É o famoso “faro” feminino. Por falar nisso, esse negócio de “cheiros” é fabuloso, né? É claro que adoro perfumes, selecionados a nariz e à pele! Tá vendo que eu já tô mudando de assunto... é inconsciente! Pois bem. Quando Milena chegou só havia uma moça aguardando o todo poderoso. Milena sentou-se atrás dela, bem em frente à porta do estúdio, e mesmo pelas costas dava pra “ler” tudo. Não sei se são símbolos, gestos, cheiros... Eu fico tentando encontrar algum indício “racional” para justificar os pensamentos, ou melhor, as sensações. O que essa moça está fazendo aqui a essa hora? A última agendada? Coitada! Coitada, por quê, Milena? Ela tem o olhar perdido... Deve ser algum sintoma de doença. Ela estava até calma, sossegada, obediente, domesticada, sob controle... mas tinha um olhar vago, apaixonado, sofrido. Parecia uma vitória sem graça, porque difícil demais de conseguir, tipo “não sei se vale a pena”. Parecia surda e muda, como se o resto do mundo não existisse ou não tivesse graça. Coitada! Ela me olhou discretamente, enquanto eu tentava entrar na agenda. - O Diretor de Criação ainda está na agência? - Oi, Dona Milena. Está sim. Já, já ele fala com a senhora. - Obrigada. Ela fez uma carinha de vingança, que eu obviamente desconsiderei. É claro que eu teria me sentado ao lado dela e perguntado tudo, até a cor da alma, se eu soubesse que ela iria entrar antes de mim, sem ser anunciada, sem cumprimentar o Diretor logo à entrada, e sair do estúdio arrumando a blusa... Que coisa feia! Por que não se ajeita lá dentro? Até parece que não deu tempo de se vestir direito. O infarto? Calma! Não vou pular essa parte! Estou eu lá fora, linda e maravilhosa, como sempre, imaginando o que aquela moça está fazendo no estúdio... Não, ela não era confiável! Não me pergunte por quê. Roupinha toda branca, tomara que caia, que certamente caiu, porque ela fez questão de sair do estúdio, sorrindo e levantando tudo. Que coisa feia! Pra não dizer vulgar... Por que não se ajeitou lá dentro? 43
O infarto? Calma! Estava eu lá fora, imaginando, não... esperando que aquela mocinha terminasse o tempo que lhe havia sido destinado, quando chega o operador de áudio! Ele não me olha! Ele me examina microscopicamente, pior que aquelas maquininhas de raio x e de portaria de sala de embarque... Profissional. Bastaram uns quatro segundos pra ele entender tudo o que estava acontecendo: aquela mulher linda e maravilhosa do lado de fora, esperando o todo poderoso, e a outra que chegou primeiro e estava lá, provavelmente tirando fotos “artísticas”. É claro que ele queria mais era ver o circo pegar fogo. E eu também! - O Vinício ainda está no estúdio? - Sim, senhor. - Eu preciso dar uma palavrinha com ele. Essa foi a “deixa” pra mim. Ora, bolas! Ele precisava anunciar pra todo mundo que ia falar com o Diretor, abrir a porta do estúdio e interromper a sessão de fotografias? O “todo mundo” era eu e a secretária. Ela sabe que ele tem trânsito livre. - (Viche, vai ser agora! Coitados... Imagina aí o susto!) O operador de áudio tinha mesmo aquela cara de “amigo da onça”. Ele vai passar o resto da vida contando esse caso... Se ele tivesse me perguntado se ele deveria, ou não, abrir a porta, eu teria respondido sem pestanejar que “Não. Poxa, sacanagem!”, mas como ele não me perguntou, até porque ele percebeu que eu já estava no suspense, pronta pra começar a rir, ele abriu a porta! Abriu, não, escancarou! Bem, sentados à mesa, combinando agenda ou roteiro, o nobre casal não estava, porque isso eu mesma vi. No outro lado do estúdio, fica o aparato pra fotos. Não deu pra ouvir o que o operador disse, mas a cara dele ao sair da sala dizia tudo! Ô povinho despreparado! Por que não trancaram a porta? Não sabem nem fazer as coisas direito! A mocinha saiu do estúdio rápida e rasteira. Lá vem ela, puxando a roupa pro lugar. -
(Hi, não deu tempo, né, lindinha? Vai ter que ser amanhã, porque daqui eu não saio, daqui ninguém me tira.) Pode entrar, Dona Milena.
Oi, Vinício. Tudo bem? Nossa, hoje foi um dia daqueles! Eu quase tive um infarto aqui nesse estúdio! (Eu também... mas o meu ia ser de rir... Quem manda não trancar a porta?) -
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Dá pra gente conversar hoje? Hoje, não. Pode ser amanhã? Não, hoje. Amanhã eu não trabalho...( Nessa hora até ele riu!) Hoje. Eu não tenho tempo. Esse telefone não pára de tocar. Os meninos me ligam o dia inteiro pra dizer bobagem. Esse estúdio é uma loucura... ( E a fila das encrenqueiras só crescendo... Eh, vidinha boa! Cheinha de problemas pra resolver!) Eu tenho que desocupar o estúdio agora. O Dudu vai fazer uma produção com esse equipamento daqui a cinco minutos. Para aonde a gente vai? A gente não vai. A equipe da Mitsubish está me esperando pra uma reunião agora. Tudo bem. Eu espero. Não tenho a menor pressa. Milena, não tem hora pra acabar. Tudo bem. Eu espero. Não tenho pressa. Minha agenda não está lotada. Eu não tenho nadinha pra fazer...
Nem todo mundo é artista. Tem gente que não sabe mentir. Ele não sabe, tadinho. Ele faz uma cara de “sério, sem propósito”, e engrossa a voz! Essa eu já conhecia. Não era a primeira vez. Mas eu sou artista! Ele não sabe disso, nem imagine o tanto. Minha agenda estava completamente abarrotada! Eu tinha só dois relatórios importantíssimos (bobagem, a vida de 4 mil funcionários federais, só...) pra entregar no dia seguinte, e eles não estavam prontos, sabe por quê? Porque a competente aqui não estava conseguindo trabalhar... Sabe por quê? Porque o todo poderoso lá não saía da minha cabeça. Parece que é contagioso! Eu detesto coisa mal resolvida. -
Vai acabar muito tarde, Milena. Eu espero... Vem cá. Me dá um beijo!
É claro que eu fui. Uma das minhas maiores virtudes é que eu não sou ciumenta. Nem um pingo! Ou melhor, não sou ciumenta nesses casos, quando eu sei ou imagino o que está acontecendo. Quando o destino não colabora, é melhor levar na esportiva, porque, afinal, esse mundo dá muita volta, né? (Ela não usava perfume francês: Eau du Soir, nem Rose Cardin, nem italiano, aquele meu predileto... Não consigo me lembrar do nome. Também, tem que mandar buscar na Itália, ou nos Estados Unidos. Lá vende, em algumas lojas.) -
Você trancou a porta? Não. É melhor trancar! 45
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Assim?
É claro que eu estava ficando triste e desanimada. Minha produtividade estava quase a zero, minha capacidade de persuasão totalmente insignificante e o potencial físico-emocional enfartado! Que merda!!! (É -
Milena, alguém tentou abrir a porta. essa uma das diferenças... vinte anos de praia, entre outras coisas...) Pode abrir. Milena, eu tenho que ir agora. Eu também. Tchau!
Pois é, a história deveria acabar aqui. Eu saí do estúdio e já ia em direção às escadas, feliz da vida! Graças a Deus, assunto resolvido! Ele vai ficar com a inexpressiva, de olhar perdido no espaço, e eu vou cuidar da minha vidinha emocionante. Eu “choro” dois dias. No terceiro, eu já estou cheinha de idéias e de coisas interessantíssimas pra fazer! - Milena? Eu olhei pra trás. Por quê? Eu devia ter fingido que não tinha escutado, descia a tal escada, majestosamente e, enfim, a liberdade!!!!! Pronto, acabou. Pois, é. Ele gosta de mim! É o famoso “coração partido”! Quem não ficaria? Já contei que eu adoro essa música? Alejandro Sanz! E a novela prossegue... -
O operador de áudio quer falar com você. É melhor você ir lá. O Guilherme... Eu te espero aqui, e a gente desce juntos.
A secretária, tadinha, só me olhava, intrigadíssima! Já que eu não podia falar sobre esse assunto, era melhor conversar sobre outra coisa, antes que ela começasse com as perguntas... Deu tudo certo. E por que não? Normalmente dá. Lá vem ele... Nem sei quantos degraus tem a tal escada, até a “sala de reuniões”, mas foi uma das poucas vezes que caminhamos juntos. É tão bom andar juntos, né? Pertinho do outro, na mesma direção... Deve ser como navegar, com vento favorável! - Eu vou entrar aqui. - Tá bem. Beijinho. Eu te espero onde? Pode ser ali? - Vai pra casa jantar. (Imagina... nem morta! Daqui eu não saio, daqui ninguém me tira.) Acontece, meu amigo, que eu tinha deixado a responsabilidade em “casa”! E quando eu ouvi essa palavra, armei todo o plano: eu vou em casa, pego 46
minha super arma (o computador portátil) e espero a eternidade, se for preciso. Ajeito meus relatórios e entrego amanhã, com capa e tudo. Dá tempo de sobra. -
E volto às 10h, tá combinado? (...)
Ele olhava pra fora do estúdio, pra uma saída lateral. Ainda estava claro. Será que ele vai fazer ginástica? Pode ter alguém esperando lá fora... - Vinício, eu vou voltar às 10h. Dá pra sair por ali? - A porta é do outro lado. - Mas por ali eu não chego ao estacionamento? - Ali fica a parte administrativa... Sabe aquela cara de “sério sem propósito” e a voz grossa? Pois é, eu já conheço. - Eu tenho que sair pela outra porta? Será que ele ia dar outro infarto? No mesmo dia, assim, é dose, né! - Vinício, eu só quero conversar... - Menina! E ele entrou na sala. Esse mundo é muito pequeno, né? - Milena! Você não escutou eu te chamar? - Oi, Larissa! O que você está fazendo aqui? - Fotos com Dudu! - Uau! Vão ficar lindas! - Aquele era o Diretor de Criação, Vinício Presario? - É. Ele fez um vídeo, institucional, pra gente. - Blablablá.... Mulher conversa mesmo! No pôquer não tem um negócio de pagar pra ver? Eu não jogo, nem jogos da vida. Meu coordenador do trabalho pediu que eu lesse “Jogos da Vida”. Consegui terminar. A idéia é boa, mas ainda falta muito pra se esteriotipar comportamentos com base no inconsciente... E, afinal, a grande pergunta: “E daí?” Como eu ia dizendo, paguei pra ver! Peguei o computador, a jato, lá em casa, e, em menos de meia hora, eu estava de volta. Algo me dizia que “já era”, tanto que nem tirei o computador do carro. - O Vinício está? - O Vinício? (Uma olhou pra outra...) Ele saiu faz tempo, naquela hora... Eu podia ter dormido sem essa, né? E o pior: - Milena? Você aqui, de novo? 47
Oi, Larissa! Eu voltei pra entregar uns negativos ao Diretor de Criação, mas ele já foi. Esses caras são fogo, né? E você? Como foi? - Blablá... Mulher conversa mesmo! - Então, tá. Eu vou fazer um lanchinho, tô morrendo de fome. Hoje eu nem almocei... - Menina, tá na hora de jantar! - Pois é. - Cadê o Dr. Augusto? (Augusto é o meu marido!) - Tá viajando, pra variar. - Então vamos. Nós te acompanhamos, né, benzinho? -
Às vezes a gente tem que aceitar o destino, mesmo que ele seja totalmente adverso: putaquiopariu! Que merda! Eu queria ficar sozinha, pensar, chorar, xingar, reagir, rezar... não necessariamente nessa ordem. Eu não podia dizer a verdade, verdadeira, como costumo fazer, e meu estoque de desculpas esfarrapadas já tinha se acabado: duas por dia já era demais pra mim! Pois é! Me mandaram pra casa, tudo bem. Me trocaram por outra, tudo bem: gosto não se discute; se lamenta! Mas não precisava mentir daquele tamanho, nem enganar. Todo mundo ali era maior de idade, todos vacinados, donos do nariz e do resto do corpo, pra não falar na alma. Eu queria ter dito o que eu estava pensando daquilo tudo: uma bobajada. Eu não disse por causa do infarto. Nem pensar! Não me importo com o fato de ele ser assediado, nem de ter uma fila de namoradas, muito menos de ser casado de direito, de esquerda, de pensamento... Qualquer um pode se interessar por alguém, até eu, que sou casada. Nada que não se resolva com meia dúzia de conversas, se for o caso; ou de beijinhos, se for o caso; ou de sexo, se for o caso; ou de amor, se for o caso. O sentimento não acabou, a curiosidade também não, o carinho tampouco, o sonho tampouco, a alegria tampouco, a tristeza tampouco, a esperança tampouco, o respeito tampouco, a amizade tampouco... Quem é que manda no coração, na emoção? A realidade é outro problema. São departamentos diferentes. Eles sobrevivem cada qual no seu lugar. Não entendo nada de mandala, mas acho que são linhas que se cruzam, quase coincidem, às vezes, mas não se misturam. Os sentimentos entre as pessoas são assim. Cada um no seu lugar. E como essa vida dá muitas voltas, a embolação pode ser totalmente agradável. O que é mais engraçado nessa história é que eu já tive que ser sincera “sem fim” algumas pouquíssimas vezes. Eu me casei assim. Numa época atrás me arrependi profundamente. Se as pessoas não conseguem perceber os sentimentos, as intenções, será que vale a pena esclarecer, mostrar, convencer...? Depois eu vi que eu estava certa, certíssima. Que vale a pena, 48
sim, senhor, porque o arrependimento ou a inquietação por não ter feito, não ter dito, não ter mostrado é muito maior que a tristeza, se for diferente do que o imaginado ou o desejado. Agora mais uma daquelas breguices pra terminar: se você tiver que fazer alguém feliz, não espere pra amanhã. Não dá mais pra economizar essas coisas boas. Se alguém quiser te fazer feliz, te dar carinho, te dar alegria, não se esconda, não; não dificulte. Pode até não durar pra sempre, pode até ser quente ou morno, mas fria não pode ser! É claro que posso estar enganada. Se for, eu mando os cobertores, tantos quantos forem necessários.
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Isso é que é marido! “Me espera no portão, pra você ver! Eu tô voltando pra casa outra vez!” Lembra dessa música? Lulu Santos. “Eu tô voltando pra casa de vez” ainda não posso cantar, porque realmente não tive essa sorte. Quando me casei, eu realmente acreditava que ia ter um companheiro, ali, todos os dias: buscar no trabalho, almoçar juntos, jantar juntos, passear juntos... Eu já tinha descoberto na Lua de Mel que seria meio complicado. Primeira lição: “Gosto não se discute; se lamenta!” Segunda lição: Ele viaja mesmo. Não adianta reclamar, nem ameaçar... Tudo bem. Eu cobro os presentes e “os atrasados” em dobro! Ele está sempre devendo... No início, eu queria evaporar. Detesto ficar sozinha!!!! Hoje em dia, eu realmente evaporo, faço um exercício de transcendência psicológica, emocional, física... toda vez que ele anuncia a viagem. Pelo menos duas por mês, quando não, por semana! Ele também já evoluiu bastante: só me avisa algumas horas antes, pra não ouvir os protestos. Nem nós dois mesmos entendemos como é que conseguimos viver juntos sendo tão diferentes. Se eu contar, ninguém vai acreditar. A única coisa que nós temos em comum é a aparência. E nem é essas semelhanças todas! Pensando bem, acho que temos mais um ponto em comum: talento, muito talento para administrar situações adversas, pra não dizer crises. E confesso que nesse aspecto, ele me supera. Até que enfim o marido voltou das mil e uma viagens. -
Marido, preciso falar com você em particular. Depois que você entregar os presentes das crianças, se encontre comigo no ateliê.
É claro que eu tenho um ateliê. Um não; dois! Você ainda duvida de que eu sou artista?! -
O que houve, Milena? Marido, eu não sei por onde começar. Fala logo, guria.
É claro que detesto que me chamem de “guria”! Mas dessa vez, eu nem liguei... - Eu não sei ficar calada e não preciso fazer nada escondido. Talvez nenhuma mulher tenha coragem de falar sobre essas coisas com os maridos, mas eu não tenho com quem falar... Eu tentei resolver isso sozinha, mas não consegui... - Hum... Tô ouvindo. 50
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Um homem me disse que estava impressionado comigo, que não me tirava da cabeça, que sentia tesão por mim, que queria me dar um beijo e me perguntou se eu também queria. Eu respondi que queria, e nós nos beijamos. Hum... Acontece que eu gostei do beijo. Eu quero entender o que eu estou sentindo, o que está acontecendo. Talvez você já tenha passado por isso, mas eu não. Eu nunca tinha beijado ninguém, na boca, depois de casada, e não sei direito como é que é isso... Eu não sei o que fazer. Eu achava que eu tinha de encontrar, conversar e ver o que que podia acontecer. Fui lá, marquei um encontro, mas ele não apareceu, não me ligou, nem atende ao telefone... não quer nem conversa comigo... Hum... (Nessa hora ele ainda riu!) Eu sei que você vive viajando, sua clínica é cheia de ninfetas... Eu acho que isso pode acontecer com qualquer um, mas comigo nunca tinha acontecido! E se eu gostei é porque tem alguma coisa a ver. Não sei praticamente nada sobre ele. Não sei nem se ele vive com alguém, mas não gostei de ter “levado bolo”. Eu não sou criança, nem adolescente e posso entender perfeitamente qualquer dificuldade. Eu acho que fiz a minha parte, mas eu tô péssima! O sujeito diz que não consegue me tirar da cabeça, me dá um beijo e não quer me ver, não quer falar comigo... Como é que é isso? Você sabe? Milena, você está apaixonada por um homem que você nem conhece? É. Você acha que eu tô “viajando”? Eu fantasiei mesmo. Eu achei emocionante, fiquei fascinada... Eu sei como é ser casada, mas não entendo nada de amante, nem de “ficante”. Terminou? Era isso? Era. Deita aqui no meu ombro que isso vai passar rapidinho. Você me ajuda? Claro. Eu não queria falar sobre isso antes porque nem eu sabia o que dizer, o que eu estava sentindo... Escrevi, fiz música... e continuo sem saber, mas eu não agüento mais tentar resolver isso... Eu tô exausta! Você está impressionada demais. Por causa de uns beijos? É. Você não me dá uns beijos desses, no meio da tarde, dizendo que sente tesão por mim... Não? Não. Você quer que eu dê? Quero. É só isso, ou quer mais? Bom, você podia me levar pra um motel, na hora do almoço... 51
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Milena, você fica toda mole, morrendo de sono... No final do expediente... Só se for depois das 10h. Você tem curso, lembra? No domingo o curso acaba às 18h. Combinado. Deixe seu carro aqui em casa. Eu te levo pra aula e te apanho no final. Tá bom assim, ou quer mais alguma coisa? Você podia... Já vi tudo. Mas vê se faz alguma coisa pra mim, pelo menos uma musiquinha, né? Prometido. Eu vou fazer uma música pra você.
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Tudo bem. Eu espero. -
Eu queria falar com o Vinício, por favor? Ele não está no estúdio. Quem deseja falar com ele? Milena. Dona Milena, mãe da Sabrina? É. Oi, Dona Milena. Aqui é o Fred, técnico de áudio. Você não soube? O quê? O Vinício teve uma complicação cirúrgica. Como? Ele tirou um calo das cordas vocais e vai ficar três meses sem falar. Mas eu estive com ele há na semana, na quinta-feira passada. Quando foi isso? Na terça. Onde ele está? Na casa da mãe dele. Qual é o endereço? Parece que é Rua dos Coqueiros, 8844. Em que cidade? Fernando de Noronha. Tem jeito de mandar recado? Ele costuma ligar o celular depois das 10h. Da manhã? Não, da noite. Mas não espere que ele retorne as ligações, e a caixa vive lotada. E por e-mail? Não tem respondido. Ele está de repouso e realmente se desligou da agência. Nossa, que tragédia... O médico disse que ele vai ficar bom em seis meses. Três sem falar e três na fonoaudióloga. Tudo bem. Eu espero ele voltar. Obrigada, Fred.
Quem já esteve em Fernando de Noronha sabe das dificuldades para chegar e permanecer na ilha. E o pior: eu nem sei se ele foi sozinho. Daqui a três meses começam as campanhas eleitorais, e, com certeza, ele vai se enfurnar em meia dúzia delas... Essa história poderia acabar aqui, ou pelo menos ficar no “pause” até que ventos favoráveis tragam a segurança tão desejada pelos marinheiros, especialmente os de primeira viagem...
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-“Milena, “Milena, meu amor por você será eterno, mesmo que não dure”. Milena já tinha sido noiva, uma vez, antes de se casar. Essa história merece um capítulo à parte, é muito engraçada! Mas o que nos faz lembrar dela agora não foi o que ocorreu. “Mesmo que não dure!” Ele vivia me dizendo isso. E o pior é que até hoje ele ainda repete. Vira e mexe chegam os comentários, no maior segredo, com o maior receio e todos os tabus a que se tem direito, afinal de contas “ela” é casada, e muito bem casada, diga-se de passagem: casadíssima! Às vezes acho que sei o que é eternidade. O sentimento, a sensação é tão profunda, tão intensa, tão sublime que transcende, que vai além do tempo e do espaço... Exatamente, isso virou música. Foi isso o que eu escrevi numa carta para um atual amigo, ex-namorado, compositor e cantor. A música é linda, linda! Ele mudou o nome, quando fez a gravação (naquela época ainda era em vinil), porque já estava namorando outra. Mas eu guardei as cartas... todas... Sabe o que ele fez? Tirou cópia da minha e grifou as frases que ele usou na letra. Tenho muita vontade de regravar essa música e outras que ele fez pra mim: são lindas, mas acho que nem eu vou conseguir interpretar como ele. (Também fizeram música pra mim, viu?! Não é só você que tem, não!) Pra resumir a história, eu já sabia, mais ou menos, o que era esse sentimento de eternidade. Aquilo fica lá, eterno, naquele momento, e parece que, sempre que a gente quer, a gente pode voltar lá, sentir, assistir: aquilo existe pra sempre. Pois bem, o meu caríssimo ex-noivo retomou o tema. Claro que meu ego vai a mil todas as vezes que chega algum “recado” ou comentário sobre o assunto, mas no fundo, no fundo, isso me incomoda profundamente. - Eu vou esperar ela se separar... - Ela vai acabar comigo... Olha o perigo: acabar pode ser sinônimo de destruir! Eu não vou “acabar”com ninguém! Veja a minha aflição! O que esse sujeito está fazendo com a vida dele? Esperando o quê? Eu não tenho intenção de me separar! E se isso acontecer algum dia, ele não é mais o primeiro da fila. Me esqueci de contar essa parte! É recente, novidade, quentíssima: resolvi fazer uma fila de amantes! Até hoje não consegui arranjar nada. Eu mesma decidi eleger o primeiro, só que ele não quer nem conversa comigo... Bem, assim sendo, a fila não anda! Os outros candidatos têm se comportado superbem. Dão umas 54
indiretas, outras diretas, perguntam se têm chance... Eu só não aviso que a fila está emperrada. Dou a posição correta: segundo, terceiro, quarto... : - Só entro se eu for o primeiro! - Pelo menos estou começando. Um dia eu posso chegar. Pior é ficar de fora. - Eu quero me candidatar. Posso? (Esse foi o médico da lipo!!! Aquele que só vê mulheres lindíssimas. Viu, como não tem problema uns defeitinhos?) Nunca recebi nem telemensagem... Mentira! Meu marido me mandou uma, certa tarde, mas não foi daquelas picantes... A propósito, eu me lembrei de um episódio “eterno”: aquilo, sim, era telemensagem: fundo musical, bem brega, e as frases...!!! Minha filha adorou o caso! Não sei por que eu fui contar pra ela, em detalhes! Ela decorou!! Achou tudo aquilo o máximo. Ficou mais apaixonada que a mãe! O problema do “eterno, mesmo que não dure” é o “nós vamos terminar juntos”. Não pelo sentimento de eternidade. É comovente, romântico, emocionante, mas na hora do “vamovê”, às vezes, nem rola nada. Não pelo compromisso (parece promessa de contrato...), porque, às vezes, nem dá pra levar a sério. Isso vem por último; não antes de tudo. O problema, meu amigo, é o caráter de profecia. Dependendo de quem diz e de quem escuta (inclua os anjos, santos e etc. que também podem gostar da idéia...) vira desafio: pago pra ver! Já pensou como seria? Imagine aí... Não entendo nada de profecias, nem de jogos, mas eu já vi esse filme. Morro de vergonha de contar o que já fui capaz de fazer pra convencer o dito cujo, ex-noivo, de que eu não quero. Se depender de mim, não vai acontecer, não tem o menor perigo, chance zero. O que eu tinha que fazer junto com ele, eu já fiz. Juro que tentei: fiquei até noiva! De aliança e tudo. Teoricamente, eu acho “lindo” esse “amor”, até o jeitinho de ele falar sobre o assunto, a paciência, a persistência, a resistência... E não queira me ver furiosa!É um desastre. Ele já viu! Essa lenda é como uma sombra. Minha vida verdadeira, interessantíssima, cheinha de “problemas pra resolver”, até que alguém vem me lembrar do caso. Eu não vejo mais nada, nem sombra, mas as pessoas ficam me olhando, tentando me mostrar... É muito fácil entender. Eu sempre explico tudo direitinho, só que acabo ficando com peso na consciência. - Milena, pelo amor de Deus, não diga que eu lhe contei! Mas ele... Você não vai fazer nada, né? Minha vontade é pegar o telefone, na hora! Nem sei mais o número... mas qualquer dia eu arranjo. Detesto coisa mal resolvida!!!!! Uma vez eu 55
peguei um avião e fui até lá pra dizer e esclarecer pessoalmente, calmamente, “verbismente” que eu não ia ficar com ele. Dizer, não; repetir, reiterar pela enésima vez. Pra falar a verdade, não é assim tão “calmamente”, não. Esse negócio vai me irritando, me dá uma aversão! Mas até isso faz parte: -
Quem manda ficar me rogando...
Com todo o respeito, não adianta. Pra gato escaldado, querer alguém do seu lado... Daí a minha aflição! Quando você não quer, fica fácil, né? Pelo menos pra você... Mas e quando a profecia agrada? - Nós vamos terminar juntos! Observe a diferença de sujeitos!!! “Nós”! Com certeza é mais democrático... Esse aí tem chance, né? É por isso que ele foi eleito o primeiro da fila! Até hoje não sei exatamente o que ele quer, muito menos o que eu poderia querer. Mas o que “nós” queremos é aquilo mesmo, né? Linguagem universal, não precisa falar muito, não... três vezes ao dia, dose dupla... Talvez a profecia já tenha até se realizado: “Nós vamos terminar juntos”. A gente termina tantas coisas: terminamos de ouvir o telefone tocar, terminamos de sair da sala, terminamos de descer as escadas... Juntos!
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Enfim, a praia! Sem dúvida alguma, ainda é cedo para falar sobre a famosa praia. A paria onde fica meu chalé, chalé que tem uma varanda, varanda onde vou escrever um livro. Mas algo me diz que eu devo acelerar essa história. Deve vir algo muito mais emocionante por aí! Milena estava entristecida, prejudicada. Apesar de todos os esforços, o tal Vinícius parecia ter se misturado a seus neurônios. Ele em carne e osso, não, impossível! Estava a mais de mil léguas dali. Talvez a imagem que ela fazia dele, ou melhor, a imagem que ela fazia de um amante, de um “ficante”, ou sei lá como chamar aquilo. Foi assim que, numa bela manhã, ensolaradíssima, Milena vestiu seu biquíni novo, aquele lindíssimo; pegou o chapéu e saiu decidida: -
Vou arranjar um namorado! Não, um paquera! Não, um admirador... Eu tenho que desviar a atenção. Se eu pensar em outro, num instante eu me curo desse distúrbio. Lá se foi ela pra praia, linda, discretamente rebolativa, ocasionalmente charmossísima...
Se eu contar, ninguém vai acreditar. Não deu meia hora, apareceu ele, o da pulseirinha de ouro! Até que enfim aparece “alguém” nessa praia. Esse aí dá! Sem defeito aparente! Alto, pele clara, cabelos negros, levemente grisalhos, maduro, bonitão, bem cuidado, elegante, discreto, cauteloso... Lá vem ele... decidido. Ele se parece comigo em alguma coisa! Nós dois usamos aliança fina e pulseirinha de ouro, fina, no mesmo braço. Ele deve ser hóspede da pousada. Não tem porte de nordestino. A água estava uma delícia, indescritível, e não havia mais que cinco pessoas naquela enseada, contando com os que estavam na areia. Lá vem ele, na minha direção... Mergulhou e ficou de costas pra mim, a menos de um metro. Não deu dois minutos, ele se virou: -
Tem pedras aí? Aqui não. A gente fica com medo de pisar nelas, né? Não dá pra ver direito. Não dá, não? As pedras são escuras. Isso aqui é sargaço. Mas tem um negócio branco aí, perto de você. Tá vendo? Acho que é papel, isopor... 57
Propositadamente, eu fui me afastando do objeto não identificado. - Sabe que ontem eu vi uma arraia... - Onde? - Logo ali, nas pedras ... Coitado do sujeito!!!! Ele se virou com uma rapidez. Tadinho! Ele fez tudo pra disfarçar, mas não deu... O cara saiu da água mais que depressa, sem olhar pra trás, nem se despedir. Quase que ele perde o estilo e a elegância. Logo ele, que tinha tanta chance!!! Só me dei conta do ocorrido quando o tal negócio branco se encostou em mim e, obviamente, eu levei o maior susto: era igualzinho a uma arraia, meio submerso... Eu caí na risada! E não conseguia parar de rir... Com certeza, se for arraia, ela é ótima! Não ataca, companheira perfeita para um banhozinho de mar. Mal sabia ele que eu tinha acabado de ver uma cobra!!! Eu e Rodolfinho, meu filhotinho de quatro anos. Claro que eu tenho testemunha! A bichinha disparou na nossa frente e, quando percebeu que a gente a estava seguindo, ela simplesmente parou e se enterrou na areia, começando pelo rabo. A cabecinha ficou de fora. Era bege clara, com uma listrinha branca nas costas, bem compridinha, uns setenta centímetros. E isso aconteceu no raso, no meio do povo... (O que eu estou fazendo nessa “selva”, ainda mais com meus filhos!) E tem selva na praia? Logo no primeiro dia, as crianças do condomínio chegaram com um filhotinho de tartaruga. No segundo dia, ou melhor, na segunda tarde, já escurecendo, eu mesma e meus filhotes encontramos uma tartaruga mãe, meio moribunda. Acho que nenhum veterinário saberia o que fazer. A pobrezinha soltava umas bolhinhas pelas narinas. Sorte que Sabrina já estava agoniada e abriu o berro pra um cidadão que ia passando: - Ô moço, vem aqui ajudar. - Ela está encalhada? - Não consegue andar. Parece que está fraca. Ele olhou, pegou, virou, tentou examinar... - A senhora quer ficar com ela? - Eu não. Não sei o que fazer... - Eu vou levá-la até as ondas. Sabrina suspirou aliviada. - Ainda bem, né, mamãe? - Pode deixar que agora o mar leva. Isso acontece muito por aqui. A senhora conhece a próxima praia, depois de Barreta? 58
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Não... Lá é cheio de tartarugas. Elas batem nas pedras e aparecem mortas na areia. Dá uma pena. Nossa, devia ter um projeto de resgate... Um Projeto Tamar, né? É. Vamos, gente? Valeu. Feliz Natal pra vocês! Pra você também.
Eu nem me lembrava de que era véspera de Natal. A propósito, nossa comemoração foi linda! Chegou a hora da reza, depois do jantar, que foi cedíssimo, mas no nosso chalé não havia presépio, nem árvore, nem nada que lembrasse o Natal. Os filhos do caseiro já estavam lá, eu já tinha entregado um brinquedo pra cada. Só havia brinquedos. Achei que ninguém ia reparar... Uma tigela de barro seria o local do nascimento. Um guardanapo branco de papel, era o véu, nos cabelos de Maria (uma Barbie da Sabrina), e outro guardanapo seria o manto, de um ombro só, no José (um Max Stell do Rodolfinho). Perfeito! O menino Jesus foi um boneco menor, vestidinho de mergulhador. Tudo bem! Até que as crianças estavam aprovando... Mas quando eu tentei fazer os Reis Magos... Um já vinha com óculos escuros, o outro tinha um braço de metal... Não deu. Veja as fotos! Ficamos só com os personagens principais. Pegamos o violão, cantamos umas musiquinhas, rezamos uma Ave Maria e, ainda no meio do Pai Nosso, Rodolfinho deu tudo por encerrado: - Em nome do Pai e do Filho... “Umbora” pro parquinho? Definitivamente, quebrou o clima... Mas valeu, né? No terceiro dia, não deu outra. Vinha eu maravilhosa pela praia, ao cair da tarde, quando vejo “algo” na areia. Era ela, “Josefina”, a tartaruga do dia anterior. Dessa vez não teve jeito: estava morta. - Tudo bem. Pelo menos não vai ficar jogada aqui na praia. Peguei a bichinha pela lateral do casco – pesadinha, viu? – e a carreguei até o chalé. O caseiro do condomínio limpou a carne, já estragada, e o casco está aqui, secando no sal grosso! Até que as crianças receberam bem a notícia do falecimento. Veja as fotos! Bem, de tartaruga ficamos craques ligeirinho! Até Sabrina viu filhotes nadando nos “aquários” onde costumamos tomar banho, ver os peixinhos coloridos (entre outras coisas...) e pegar conchinhas, quando a maré baixa. Na quarta manhã: - Hei, Dona Milena, a senhora viu? - O quê? 59
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A moréia. Que moréia? Ali na praia. Já vou enterrar...
Veja nas fotos o tamanhozinho da moréia!!!! Uma imagem às vezes vale mais que mil palavras. Pois bem, por falar nisso, eu ainda não tinha conseguido parar de rir, com a história da arraia e do papel, aquela do “paquera sem defeito, da pulseirinha de ouro” quando me lembrei dos bombeiros! Aí é que eu ria mesmo, sozinha na água... Vinha eu, dessa vez ao meio dia, em plena praia nublada, (Graças a Deus!, porque o sol em janeiro é de rachar!), quando me aproximei de um aglomerado de pessoas: - É um corpo, ali! - Olhe lá. - Não, menina, aquilo é uma tartaruga. - A tartaruga é o da direita. Eu estou falando daquilo ali, à esquerda. - Aqui pertinho é uma tartatuga... - Não, lá no fundo... Olhe ali! Viu agora? -
Eu já liguei. Os bombeiros estão vindo! Eu vi quando ela se afogou! Era uma moça. Levantou a cabeça e balançou, assim, a mãozinha... Parece uma criança...
Como é que é? Uma pessoa que está se afogando levanta a cabeça e balança a mãozinha? Eu já vi que essa daí não entende nada de afogamento – e olha que eu já me “afoguei” no mar uma vez – e muito menos de tartaruga nadando! Até a Sabrina reparou que as tartarugas marinhas gostam de nadar viradas, de barriga pra cima, meio na transversal, e eventualmente levantam a cabeça e a pata dianteira... Realmente nesse dia estava um show! Só eu contei umas quatro, de tamanhos variados, em locais diversos, mas na mesma enseada. Acho que toda a família “cascuda” tinha saído pra nadar e pra se exibir! Só faltava pousar pra fotos. Lá vêm os bombeiros, com sirene ligada e tudo o mais. Uma dupla de banhistas se aproximou de mim, afobadíssima: - Moça, o que está havendo? - Eu só vi tartarugas, várias... mas a mulher ali está dizendo que tem um corpo... Em menos de meia hora, o pequeno aglomerado de aldeia virou metrópole. Veio gente de tudo quanto é lado. 60
Os bombeiros subiram no teto do bugre e rapidamente localizaram algo. Dois deles correram e se atiraram no mar. Logo, logo mais um entrou na água, carregando um negocinho vermelho, parecendo “uma maca, pequenininha” Aquilo é de pano? Parece que flutuava. E tome sinais! Moço, esses bombeiros foram lá pro meio das ondas, e olha que ali, sim, tem pedras! São parrachos! Eram tantos sinais... Devia ser um código, né? Mas afinal, onde está o tal corpo? Ninguém sabia mais! -
Olha, aquele bombeiro deu sinal! Encontrou! Ele já deve estar vendo de lá! Agora tá confirmado! É um corpo mesmo.
E os bombeiros indo pro fundo. Quase não dava mais pra ver as cabecinhas dos pobres... - Hei, olhem aqui! Eu vi! Está é desse lado. Dê sinal, mande voltar! Foi incrível! O último bombeiro que restava na praia, em cima do bugre, se atirou na água, na “direção certa”... Um rapazinho de calção largo, o Ajudante-Mor, que havia chegado na mesma hora que o bugre, (ou seja, mal sabia o que estava acontecendo), permaneceu dando os sinais... que “de código” não tinham nada! A essa altura dos acontecimentos, um dos bombeiros do primeiro grupo já vinha retornando, morto de cansado! - Que sinal é esse, rapaz? - O corpo está desse lado. - Não deu pra ver nada. Só tartarugas. Hei, moço, é melhor você descer da capota. Se o comandante te pega aí, vai dar o maior problema. Quem foi que viu o corpo? Nisso o último bombeiro estava lá na água, no “local certo”! Paradinho, “boiando”, literalmente, porque ninguém mais tinha visto nenhuma pista do tal corpo, que supostamente emergia e submergia, no meio das ondas. Lá se vêm os pescadores, meus velhos conhecidos. Todos os dias estão andando pelas enseadas, como eu... - Afogamento, aqui? Vai ser a primeira vez nessa praia... -
Eu vi a blusa dele. Era branca. Ele estava aqui, bem pertinho... (Disse o Ajudante-Mor. Logo ele, que estava orientando o resgate!)
Nessa hora, eu não agüentei! Uma das tartarugas estava quase ao nosso alcance... E era bem grandinha. Dava pra ver com nitidez. Realmente quando elas nadam de 61
barriga pra cima, a parte branca, no inferior do casco, ressalta no meio da água, mas até virar blusa... Foi demais pra mim! Os outros bombeiros já estavam voltando. O chefe deles pegou o rádio, comunicou aos superiores sei-lá-o-quê, pegou uma caneta, um papelzinho e recomeçou as perguntas: - Quem viu o corpo? A mocinha, aquela que não entende nada de afogamento e muito menos de tartarugas, foi contar a história... aquela da cabecinha e da mãozinha acenando... Nisso, uma garotinha deu o alarme: - Olhem, está ali! A resposta veio quase em coro, engrossado pelos próprios bombeiros: - É tartaruga! Fiz questão de me retirar, juntamente com os pescadores, convencida de que esses banhistas têm muito o que aprender nessa vida, ou melhor, nessa praia. Enquanto eu me lembrava de tudo isso, o riso estava solto! Quem disse que eu parava de rir? O pobre do paquera nunca mais vai querer tomar banho aqui! Fiquei no mar um tempão, de olho no negócio branco... até que um corajoso meteu a mão e o levantou: uma loninha de plástico! Coitado do paquera! O cara deve ser turista, pelo sotaque. No primeiro banho aqui! Que maldade! Eu apavorei o pobre do homem à toa. Pra que eu fui falar em arraia? A que eu vi estava morta, nas pedras! Lá vinha eu, ainda saindo da água, calmamente, quando vejo um baldinho... Os “metidos a pescadores” têm mania de levar um saquinho com camarões, pra servir de iscas, e um baldinho pra carregar os peixes.Até eu levo, e o meu ainda tem o símbolo do “Zorro”! Que tal? É claro que comprei anzol, molinete, até tarrafa... mas essa é outra história. Os pescadores de verdade fazem uma covinha na areia (ou procuram um buraco nas pedras) e vão jogando a pesca ali dentro. Depois amarram os peixes com uma “cordinha”, um pedacinho de fibra que arrancam da vegetação da praia, e carregam a pescada pendurada na mão mesmo. Não tem esse negócio de baldinho, não! O -
Hei, Tiago, traz o camarão! Menino interrompeu a brincadeira e soltou o “troço” no tal baldinho! O que é isso? Uma moréia. Meu pai acabou de pegar. Onde? Aqui nas pedras. 62
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Mas ainda está viva! Como ele tirou o anzol?
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Hei, Tiago, o camarão! Não vi... Seu pai tá te chamando. É melhor você ir.
Imediatamente olhei pra trás, em direção à pousada: Se o paquera perfeito estiver vendo isso, vai arrumar as malas agora mesmo! Nem na piscina ele vai entrar! Acho que moréia é pior que cobra, não é não? Embora essa fosse das pequenas, mas estava vivinha da silva, cheia de dentinhos! À tarde, resolvi mudar a estratégia: vesti o maiô mais velho, com a lycra quase desintegrando, e voltei para a praia. Dessa vez, para a enseada oposta. Ia eu andando, distraída, olhando para o próprio pé, quando de repente, não mais que de repente... -
Hei, Tiago! Anda logo!
Levantei a cabeça rapidinho! Tiago me olhou com saudade, feliz com o reencontro. E o sorriso?! Que felicidade! Mas não me peçam pra descrever o pai dele... chance zero!
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STOP! Eu já estava tentando me preparar para as despedidas da praia... Meu Deus, que lugar maravilhoso! Quanta energia, quanta saúde naquela imensidão... Às vezes eu passava horas, de relógio mesmo, sentindo aquelas ondas, que não param nunca! Eu me lembrava dos doentes, dos entristecidos... Se a gente pudesse engarrafar essa energia, esse bem-estar, essa sensação boa que não acaba, que está sempre ali, disponível! Eu sempre mandava um “montão”, pra cada um que eu conhecia e pra todos os outros: “Estão sentindo? Olha que saudável! É muito gostoso! Deixem comigo! Eu aproveito por vocês!” E haja banho de mar! Eu tinha mania de ir andando até a última enseada e voltar nadando, pelo canal. Nadando, não! Boiando, porque a correnteza traz a gente até a metade do caminho! Realmente tem alguns pouquíssimos lugares meio fundos, mas é muito pertinho da areia! Com quatro braçadas, qualquer um conseguiria sair. Se não fosse em direção às pedras, claro! Foi assim que numa ensolarada manhã, ao chegar na última enseada, em frente ao terminal turístico, fui entrando no mar, em direção ao canal! Meu velho conhecido, de quase todos os dias! Era uma segunda-feira, e a praia estava ainda mais vazia, porque a maioria dos restaurantes dá folga pros garçons na segunda. Fica praticamente tudo fechado. E eu não sei de onde saiu aquele japonês! Passei pelo sujeitinho ainda caminhando, e vi que ele estava curioso, observando a praia... -
Wilson, cuidado! Wilson, aí pode ser fundo! Wilsooon, não chegue perto das pedras! Wilsoooooooon, pare aí!
-
Pai, tudo bem. Eu tô aqui! (Responde o Wilson.)
Nessa hora, eu fiquei desconfiada! E até olhei pra trás... Se o menino já está ali na areia, quase atrás dele, pra que esse japonês está gritando tanto? Não tem mais ninguém aqui! -
Wilsooooooooooooooon, não entre! Aí puxa!
O pobre do Wilson não sabia onde enfiar a cara! Eu vi que o japonês ficou aflito, desesperado... Mas é claro que eu não parei. Eu não ia deixar de tomar meu banhozinho por causa dele... 64
Quando eu entrei no canal e comecei a boiar, calmamente, deixando a correnteza me levar, só ouvi as risadas!!! Tudo quanto era garçon residente, à paisana, àquela altura dos acontecimentos, tinha corrido pra areia, pra ver o que estava acontecendo, com aquela gritaria exagerada! Todos eles já me conheciam, porque eu repetia a cena quase todos os dias, há mais de dois meses... Juro que não fiz de propósito... e o japonês até escapou do infarto! É claro que eu dei uma olhadinha, discretamente... pra ninguém perceber que até eu estava morrendo de rir... No mínimo ele está pensando que eu não sei nadar e que eu sou turista, francesa, com certeza! E mais, que não entendo português! Já imaginou se ele tentasse em francês: “arrete”! E eu ia prosseguir, e ele ia tentar o inglês: “stop!” E eu ia prosseguir... e ele ia concluir: ela é italiana e meio idiota, porque não entende nem “stop”?! Se ele gritasse xxxx, eu parava e gastaria uma das minhas únicas frases em italiano: - “Yo non capisco niente de italiano”!!!! Mas pode entrar, Wilson, a maré tá baixa hoje! Dá até pra “triscar” o pé no chão, rapaz!
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Esses baldinhos... Uma praia daquelas, com tanta saúde, mas essa vida é cheinha de surpresas... Vinha eu na segunda enseada, filosofando areia abaixo: já pensou se fosse um corpo mesmo, aqui no mar? Eu aqui, sozinha, tomando banho e encosto num braço???????? O que eu faria? Eu teria que chamar os bombeiros! Como? Eu nem trago o celular pra praia!!! Que tragédia! Mas aqui não tem o menor perigo: nunca houve um caso de afogamento! No dia seguinte, vinha eu areia abaixo, na segunda enseada. Uma senhora, com os pés na água, me olhava fixamente. (É a chiquezona, do chapéu preto. De vez em quando a gente se cruzava, nas caminhadas. Será que ela quer falar comigo?) - Bom-dia! - Tudo bem? - Tudo. - Você vai até a outra enseada? - Vou, sim. - Cuidado quando passar por ali, em frente ao restaurante. Tem um corpo na areia. - Corpo? Já identificaram? - É um homem, uns 50 anos. Dizem que estava sumido há três dias, desde o grito de carnaval! - Esse povo tem mania de pescar nas pedras e levar cerveja no baldinho! - Olhe ele lá, coberto pelo lençol? - E por que não removem logo? - Não sei. Não tive coragem de passar perto. Os policiais estão logo na primeira mesa. Bem, eu não cheguei a esbarrar num braço, mas se ele já estava na água há três dias!!! Aquela enseada é uma verdadeira piscina! Como é que ninguém viu esse sujeito boiando? Só se ele ficou preso no meio das pedras, e quando a maré encheu o trouxe até a praia. Dei uma de corajosa e prossegui na rotina. Não dava pra acreditar... - Hei, já identificaram o corpo? - Já. É um senhor de Arez, irmão dele... (O irmão estava até conformado.) - E por que não removem? - Estamos esperando o delegado. Ele vem com a perícia. Que situação! Ainda era cedo, mas os turistas já estavam chegando... 66
Eu fui direto pro canal, meio desconfiada... Na verdade a gente nem imagina o que pode existir nessas águas! Bem na hora que eu ia voltando, o tal delegado já se aproximava e levantou o lençol. Tentei me afastar da rodinha que se formava ao redor (acredita que tinha até um sujeito com um cachorro, latindo ainda por cima!), mas acabei vendo umas partes... praticamente tudo. E o cheiro? Sem comentários. Quando desemborcaram o sujeito, fiquei mais sossegada ao ver que não era nenhum conhecido, aqueles que pescavam sempre por ali... É claro que eu caí no choro. Eu sei que todo mundo vai morrer um dia. Será que ele teve tempo de fazer o que ele queria? Resolvi ir pros aquários. Lá, com certeza, só havia tartarugas, moréias, (a cobra a gente pula, né?), cardumes de agulhinhas, peixinhos coloridos, golfinhos! Nossa! Já ia me esquecendo de contar dos golfinhos! Famílias inteiras, nadando e pescando sossegadas! Cada pulo! Basta ir até o mirante, quando o mar estiver calmo, normalmente com a maré baixa! É um show!!! De graça! Totalmente grátis! Vale a pena!
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Depois de tudo: - Ah, marido! Ainda bem que você chegou. Até agora não consegui arranjar um amante, nem um “ficante”, mas sua música ficou pronta!
Faz um música pra mim Eu que te agüento Todo dia e noite adentro Eu que te ouço até o fim Depois te abraço e te acalento Até a paz chegar Até você voltar pra mim Eu que te perco no jardim Depois te encontro florescendo Perfumada, enfeitada Encrencarinhosíssima Engraçada, exagerada Enmolecadasíssima Faz uma música pra mim Eu que te beijo Toda a alma e o corpo adentro Eu que te amo sem ter fim Depois te abraço e te acalento Até você dormir E eu te diluir em mim
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Nísia Floresta Brasileira Augusta. Sabe quem é? Na verdade ela mudou de nome. O verdadeiro era Dionísia. Ela adotou o apelido, “Nísia”; o nome da chácara onde ela morou quando pequena, “Floresta”; como sobrenome, uma referência ao País que ela amava; e por último o nome do segundo marido, que ela escolheu, “Augusto”. O primeiro parece que foi arranjado. Dizem que ela não era uma mulher bonita, fisicamente, mas foi capaz de virar meio mundo e preparar um monte de mulheres para viver feliz, estudar, refletir, decidir as próprias vidas, acertar, errar... Às vezes fico pensando como Nísia Floresta viveria hoje. Será que faria mil plásticas e mil lipos? Passaria férias em Miami? Escreveria para a “Folha de S. Paulo”? Será que ela “ficaria” com outros homens, além do Augusto? Será que seria admirada por tudo isso? Minha praia predileta fica no Município de Nísia Floresta. Da Barra de Tabatinga até a “cidade” a gente passa por alguns povoados numa estradinha simpatissísima! Em alguns trechos dá pra ver o Rio, acho que é o Mipibu. Engraçado, não tenho a menor vontade de deixar o Brasil, muito menos de me afastar dos lugares e das pessoas de quem eu gosto. Não existe cabimento em querer comparar Nísia com ninguém. Ela teve seus motivos pra fazer tudo o que fez, mas eu consigo entender a “saudade” de que ela tanto falava em seus livros e artigos. Não sei exatamente por que eu gosto daquele lugar. Lá eu realizei um sonho, mais um! Lá construí outros sonhos, tantos outros. Como Nìsia, não sei quando vou voltar, algum dia, alguma noite, de fato, de imaginação... talvez uma segunda vida, ou um segundo tempo, que eu venha a escolher. Eu também mudei de nome pra viver essa história, eu e todos, de quem eu gosto tanto que meu sobrenome não teria fim. Não sei quem vem primeiro, nem por último, quem tem mais direito, merecimento, expectativa... E por falar em Nísia e em Floresta, sabia que existem plantas “sem raiz”? Elas não precisam se fixar em terra molhada, nem ficam boiando na água. Parecem um tipo de bromélia ou de orquídea. A “raiz” está lá, mas é tão diferente que nem parece ser o que é. Ela fica exposta, aérea. Essas espécies podem ser carregadas, facilmente, pra onde se desejar, e dão muito menos trabalho do que a esmagadora maioria das plantas. Uma delas tem até perfume, extremamente agradável. Elas gostam e precisam de umidade, mas só é preciso aguar uma vez por semana. Eu tenho algumas dessas no jardim do banheiro. Elas são um exemplo de como é possível ser, viver e sobreviver distintamente, sem perder a essência. 69
Sabe o que mais eu tenho nesse jardim? Visitas freqüentes de beija-flores. Só vendo o que eles fazem... No começo eu achava que eles vinham beber água fresca, quando eu molhava as plantas, mas agora já tenho minhas dúvidas, muitas. Chego a ficar intrigada. Eles param no ar e ficam me olhando. É claro que eu dou a maior bola! Ás vezes até assovio pra avisar que estou por perto. É uma paquera descarada. Adoro me encontrar com eles todos os dias. Tem tantas coisas que a gente não entende, né? Ainda... Obs.: Você já tentou fazer alguma coisa com dois filhos pequenos soltos, ao seu redor? É claro que você vai ter que parar... Eles acabam vencendo. Quem resiste àqueles argumentos totalmente descabidos, pra não falar nas “caras” e outras chantagens? Tudo bem, eu me rendo. Desisto, por enquanto...
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