Materia fanfics

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Histórias virtuais rejuvenescem mercado literário brasileiro Enquanto autores brasileiros buscam seu espaço no mercado literário nacional, um grupo mais jovem vem chamando atenção de editoras e leitores por todo o país: são os autores de fanfics.

“Voldemort lutou com o famoso menino que lhe prejudicara toda a vida, Harry Potter. Sem haver um vencedor e percebendo a sua futura perda, o Lord retornou ao encontro de outros comensais que não tinham ido à reunião”. Este trecho poderia ter sido retirado de um dos livros da famosa saga “Harry Potter”, escrito pela inglesa J. K. Rowling, mas é da fanfic “Comensais da Morte Parte 1”, criada pela brasileira Bárbara Dewet, quando tinha apenas 14 anos de idade. Bárbara Dewet, ou Babi Dewet, como é conhecida por seus leitores, atualmente está com 26 anos e mora no Rio de Janeiro, onde trabalha como professora, administradora e escritora. A última profissão ela decidiu seguir graças às suas experiências com histórias na internet e, no ano passado, lançou seu primeiro livro, “Sábado à Noite”, baseado em sua fanfic de mesmo nome. São chamadas fanfics, ou fan fictions (em inglês, ficção de fãs) todas as histórias que se baseiam em alguma obra (literária, cinematográfica ou televisiva), jogo ou até mesmo em membros de bandas famosas. São histórias escritas por fãs e para fãs, que utilizam personagens, enredos e cenários já existentes para contar sua história de uma maneira diferente. “A internet era meu único refúgio quando eu queria saber mais das histórias, conhecer pessoas que também gostavam e dividir o que eu achava dos personagens. Assim comecei a ler fanfics sobre o mundo da JK Rowling e daí para as outras foi um pulo”, conta Babi. Depois de ler muitas fanfics, ela resolveu começar a escrever também as suas. Começando por Harry Potter, ela logo passou a escrever também histórias inspiradas na banda inglesa McFly – de onde surgiu “Sábado à Noite”. Foi após descobrir que leitores imprimiam a fanfic para poder ler na escola, ou antes de dormir, que Babi Dewet resolveu transformar sua obra em um livro impresso e, até hoje, mais de 2 mil exemplares já foram vendidos.


“Sábado à Noite” era uma das fanfics de maior sucesso de Babi Dewet. (Foto: Arquivo pessoal)

“Achei que os pais também teriam menos preconceito com livro do que com a fanfic, como costuma acontecer”, explica. Ela lançou “Sábado à Noite” de maneira independente, antes de conseguir o apoio de uma editora. “Eu lancei independente sem pesquisar antes se alguma editora estava interessada. Então, com o tempo, as editoras começaram a olhar pra mim e pra SAN [Sábado à Noite]. Acho que foi questão de ação e reação. Significou que eu estava fazendo algo certo!”, conta. “Tudo foi dificuldade no começo. Aprender sozinha como se produz um livro foi uma das coisas mais importantes. Acho que me deixou com os pés no chão e aprendi a dar valor a todos os setores da indústria literária. Fora a produção, vender e divulgar foram dificuldades enormes que também fui desbravando e tentando achar meu lugar”, relata Babi Dewet. E além da parte técnica, Bárbara também se preocupou em ter mais contato com seu público ao organizar eventos de lançamento do seu livro em livrarias de várias capitais do Brasil. “É de suma importância que o autor se envolva mais do que só na escrita do livro. Eu estou envolvida em todas as partes, em todos os momentos. Ir até o leitor é muito importante. É valorizar o leitor, valorizar livrarias e redes. É um trabalho divertido, difícil, mas que vale muito a pena”, conta. Assim, como Babi Dewet, Nathália Ramiro, de Belo Horizonte, também decidiu lançar uma fanfic sua como livro. Autora de “Aposta”, com apenas 17 anos de idade, ela acredita que o número de livros nacionais baseados em fanfics está aumentando a cada


ano. “Quem trabalhou comigo na época da publicação do meu livro tinha consciência de que era uma fanfic, mas nunca mostrou alguma oposição a isso”, explica. Andréa Prado, de 21 anos, também começou sua carreira como autora de fanfics e, hoje, lança seu primeiro livro, chamado “Insanatório”. Andréa mora em Curitiba e conheceu as fanfics quando tinha apenas 14 anos, através do site de relacionamentos Orkut, e com essa mesma idade começou também a escrever as suas. “Acho que o fato de ler as fanfics de outras pessoas me fez ter vontade de escrever a minha própria”, diz. Além de incentivar novos autores, para Andréa as fanfics também exercem um papel importante no hábito de leitura dos jovens. “Levando em consideração que a leitura não é tão praticada pelos jovens quanto deveria, as fanfics são uma grande oportunidade de disseminação do hábito da leitura, algo absolutamente importante tanto para uma boa formação intelectual quanto cultural”, conta. Maria Júlia Lucas tem 18 anos, mora em Taubaté, São Paulo, e passa boa parte de seus dias lendo fanfics. Ela estima que tenha lido ao todo cerca de 30 ou 40, envolvendo histórias longas e curtas. “Houve uma época que eu lia umas três histórias por dia, dependendo da extensão delas”, comenta. Ela acredita que as fanfics desempenham um papel fundamental na construção de gostos e preferências dos jovens. “É por meio das fanfics que muitos adquirem o interesse e prazer pela leitura. Além de estimular a criatividade e inspirar o jovem a redigir uma historia”, conta. Ester Souza, de 16 anos, é outra jovem que dedica um tempo de seu dia a ler fanfics. Enquanto estuda em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, ela acredita que as fanfics permitem que os jovens vivenciem experiências e “visitem lugares diferentes”. “Creio que [a fanfic] seria um ‘mundo alternativo’, um lugar onde os jovens dariam asas a imaginação, tornariam alguns sonhos realizados, porque a leitura faz isso com a gente. Nos proporciona coisas maravilhosas em simples parágrafos”, explica. Já Annie Brissow, de 18 anos, encontrou nas fanfics um ótimo passatempo para suas tardes em Alta Floresta, no Mato Grosso, onde mora. Autora de mais de cinco fanfics já publicadas em um único site, ela brinca ao dizer que não acredita ter “capacidade” para se tornar uma autora de livros. “Não que eu ache que eu escreva mal, ou algo do tipo, só acho que eu não levaria jeito para tanta responsabilidade”, explica. Mas mesmo sem pretensão de seguir uma carreira de escritora, ela diz que não conseguiria deixar de escrever. “Assim como eu amo ler, eu amo escrever os meus romances melosos e não pretendo parar tão cedo”, conta.


Dos jogos para as páginas Embora grande parte das fanfics se baseie em narrativas já prontas e livros já publicados, existe também um seguimento que se dedica a histórias baseadas em jogos de RPG (Role Playing Game). Se aproveitar de personagens já criados, cenários apresentados pelos jogos e experiências vividas muitas vezes pelo próprio autor são o que caracterizam essas histórias como fanfics. Daniel Porcaro tem 24 anos, mora em Governador Valadares, Minas Gerais, e está atualmente trabalhando em um livro baseado no jogo de MMORPG (Massively Multiplayer Online Role Playing Game) Ragnarok. “A história, embora aconteça originalmente em um universo criado para o jogo, se desenrola com os personagens que foram vividos por meus amigos (reais e virtuais) neste jogo. A trama se baseia na interação desses amigos, é influenciada pela personalidade de cada um deles e levemente modificada pela interpretação de cada um do seu personagem”, explica.

Daniel Porcaro trabalhando em seu primeiro livro. (Foto: Lívia Magalhães)

Para ele, escrever uma história baseada em um jogo tem seus aspectos positivos e negativos “Ao passo que é muito mais cômodo tomar alguns elementos como base, é muito mais difícil modificá-los para manter a coerência da história. Existem elementos básicos de qualquer jogo, como as magias, a existência de monstros ou certas habilidades sobre-humanas que não precisam ser explicadas no jogo, elas estão ali e são inquestionáveis. Mas ao trabalhar uma história baseando-se nesses elementos você precisa explicá-los. E é aí que reside a diversão da coisa, criar a explicação para algo inexplicável. É a maior ferramenta do autor, explicar de forma plausível um fenômeno totalmente ilógico, ou pelo menos tentar”, conta.


Ele decidiu começar a escrever depois de ler uma história em quadrinhos brasileira que era baseada em um jogo de RPG e acredita que as fanfics têm influenciado o estilo literário brasileiro. “Algumas vezes o tiro sai pela culatra e a fanfic fica muito parecida com a obra original, mas temos grandes exemplos de escritores novos como Affonso Solano e Raphael Draccon que se inspiraram em obras renomadas para criar seu próprio universo, como livros de Tolkien e Neil Gaiman. Essas novas obras vão influenciar os próximos escritores a criar histórias dentro desses novos universos ou influenciá-los a criarem os seus próprios. De certa forma, isso acaba por repercutir em todo o cenário literário nacional, que se encontra em constante expansão e se reinventando a cada página escrita”, afirma. Daniel, porém, não acredita que o fato de sua história ter sido escrita baseada em um jogo possa limitar seu público, uma vez que, retirados os elementos que a tornam uma fanfic e substituindo-os por elementos originais, é uma história totalmente independente, embora inspirada em algo anterior. “É totalmente impossível criar uma história do nada, sempre se toma algo como base, seja o que você leu, ouviu ou o que viveu. O que mais limita o público-alvo do livro é o gênero em que ele é escrito. Não é preciso gostar de ficar por horas na frente do computador jogando para gostar deste tipo de obra, é preciso gostar do tipo de história que ele conta e da forma que ela é contada”, explica.

Trabalhando com fanfics Por serem obras exclusivas da internet, as fanfics precisam também de um espaço para serem publicadas, divulgadas e, principalmente, lidas. Foi pensando nisso que diversos sites especializados em publicação de fanfics foram criados. Fernanda Cristina Pereira tem 23 anos, mora em Rio Claro, São Paulo, é jornalista e atualmente coordena um dos principais sites de fanfics de bandas do Brasil, o Fanfic Addiction. Ela explica que tomar conta de um site desses é bastante trabalhoso, pois é preciso estar atento a tudo que acontece dentro e fora dele, é necessário checar emails várias vezes por dia, nunca negar ajuda a quem se interessa pelo site e saber lidar com o público. Para facilitar o trabalho, a equipe que organiza o site foi dividida em algumas funções, sendo elas: coordenadoras, beta-readers, colunistas, capistas e pessoas responsáveis por organizar indicações de fanfics e revisões públicas.


“Temos as coordenadoras gerais, que ajudam nas decisões do site e organização em geral, e as coordenadoras de cada seção (coordenadoras de betas, capistas, colunistas, etc.). As beta-readers são meninas que ajudam as autoras, corrigindo e aconselhando, além de revisarem as historias para deixá-las nas configurações estabelecidas pelo site (o que chamamos de “colocar script”, para que as historias se tornem interativas). Não é restrito, visto que já tivemos meninos como Beta. Os colunistas, como o nome já diz, postam colunas sobre escrita e leitura, de quinta a domingo. As capistas fazem capas e propagandas para as fanfics postadas no site. E também temos algumas pessoas responsáveis por organizar as indicações [feitas pelos próprios leitores] e revisões públicas de fanfics”, explica. Para Fernanda, o público de fanfics tem crescido consideravelmente ao longo dos anos. “Dá para perceber que a cada novo “fandom” que se destaca, os fãs descobrem o mundo das fanfics e se apaixonam. Isso reflete no número de acessos no site, já que o Fanfic Addiction chegou à marca de mais de um milhão de visitas”, conta. Ela também acredita que o fato de uma história ser primeiramente publicada como fanfic, antes de se tornar um livro, seja bastante favorável. “Primeiro, porque serve como um incentivo. Se aquela história teve qualidade suficiente para sair do computador, a sua história também pode chegar a essa conquista. Segundo, que, apesar da modernização e inclusão digital que vivemos nos dias de hoje, os amantes da leitura sempre preferem ter o conto em mãos, assim podem folhear cada página e até mesmo sentir o cheiro do livro – aquelas manias que só a paixão por leitura pode dar. E, por último, é uma boa vantagem ao autor, pois os leitores de fanfics são extremamente fiéis e com certeza vão adquirir o livro”, afirma. Fanfics para adultos Embora as fanfics façam parte de um gênero voltado para os jovens, muitos adultos também têm se interessado pelas histórias escritas por fãs ultimamente. Um grande exemplo disso é o famoso livro “Cinquenta Tons de Cinza”, da britânica E. L. James, que inicialmente havia sido publicado na internet como uma fanfic do livro “Crepúsculo”, da americana Stephenie Meyer. A grande diferença entre esse tipo de fanfics e a que conquista jovens do mundo inteiro está justamente na linguagem. Causando muita polêmica, o livro de E. L. James apresenta cenas de sexo bastante descritivas, o que acabou lançando uma nova tendência entre os romances voltados para o público feminino.


Andréa Prado, 21, também se baseou neste novo estilo literário ao escrever sua fanfic “Psicose”, que mais tarde deu origem ao livro “Insanatório”, lançado este mês, em Curitiba. Segundo ela, o que a levou a escrever sobre sexo de uma maneira mais aberta foi o número elevado de fanfics que lia e que abordavam esse assunto. “Foi mais ou menos como quando eu decidi escrever minha primeira fanfic, eu pensava ‘nossa, quero escrever como ela’ ou ‘nossa, eu teria escrito isso de forma diferente’”, conta.

Andréa Prado autografa exemplares de “Insanatório”. (Foto: Arquivo pessoal)

Mas, embora a primeira pré-venda de seu livro tenha esgotado em dois dias, com 150 exemplares vendidos, Andréa não acredita que Cinquenta Tons de Cinza possa influenciar no sucesso de seu livro. “Embora ambos tenham se originado de fanfics e abordem temas parecidos, apresentam enredos muitos diferentes”, explica.

Por: Lívia Magalhães


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