Entrevista com a Eliane Brum por: Igor Patrick Silva e Rafaela Romano
Eliane Brum é mulher de poucas palavras. De voz suave e movimentos lentos, seus olhos atentos esquadrinham toda a paisagem ao redor no Expominas, local escolhido para a nossa conversa. Ela fala, com sorriso na voz e nos olhos, relembrando com carinho ou pesar de histórias vistas e contadas em seus quase 25 anos de trajetória jornalística. Premiada pelos documentários, matérias e livros-reportagem produzidos, a jornalista recentemente se embrenhou pelos campos da ficção, com o romance “Uma Duas”, da Editora LeYa. Nessa entrevista, Eliane conta mais sobre esta nova fase da sua vida, além de comentar polêmicas envolvendo reportagens de grande repercussão assinadas por ela. 1) Você tem uma tradição muito grande na questão do Jornalismo Literário, uma forma mais livre de escrever baseada no “new journalism” dos Estados Unidos. O que você acha de aqui no Brasil a escola de jornalismo literário ser tão restrita e no exterior termos grandes reportagens como “A Sangue Frio” do Capote e o “Hiroshima” do Hersey? Por que você acha que esse jornalismo é mais forte nos Estados Unidos? Eliane Brum - Não sei se nos Estados Unidos é mais forte. A gente tem grandes repórteres com grandes textos começando pelo Joel Silveira, que escreveu antes desses caras dos Estados Unidos. Infelizmente, talvez o que tá faltando seja os estudantes de jornalismo lerem mais esses caras como o Joel Silveira, como o Zé Milton Ribeiro, Audálio Dantas e a “Realidade”, que é a revista mítica para todos os jornalistas
brasileiros e tem grandes textos. Hoje mesmo ainda há grandes textos, a própria “Piauí” faz muita experimentação nessa área, tem um espaço pra escrever... “O jornalismo é uma coisa substantiva. E o que tem é bom jornalismo e mau jornalismo. E o bom jornalismo é aquele jornalismo que dá trabalho, porque a realidade não se limita, ela não se restringe ao que alguém fala.”
2) Mas se você olha a proporção, por exemplo, nos Estados Unidos, muitas revistas seguem esse estilo. Aqui, quando seguem é um espaço no portal (como você faz na Época), mas não existem muitos veículos dedicados a esse tipo de jornalismo, certo? Eliane Brum – Mas também não é um tipo de jornalismo. Eu acho que o jornalismo não precisa de adjetivação. O jornalismo é uma coisa substantiva. E o que tem é bom jornalismo e mau jornalismo. O bom jornalismo é aquele jornalismo que dá trabalho, porque a realidade não se limita, ela não se restringe ao que alguém fala. A gente não pode se deixar reduzir a aplicadores de aspas em série. Fulano disse, fulano retrucou. É algo complexo, cheio de detalhes, tem gestos, texturas, silêncios, hesitações, gagueiras, cheiros, é um monte de detalhes pra apurar. Isso é um bom jornalismo. Tenho certeza que um prêmio Nobel de Literatura não consegue fazer uma boa reportagem se ele não apurar exaustivamente cada detalhe, que nada pode ser inventado. A gente tem que apurar cada detalhe, checar várias vezes esse detalhe. E daí com um monte de detalhes checados e apurados, você consegue fazer um texto tão fascinante quanto um texto de ficção, mas onde nada é inventado. O jornalismo é diferente da literatura, a qualidade do texto é dada pela qualidade da apuração. Sem apuração, você não consegue fazer um bom texto. Isso é bom jornalismo. 3) Seu primeiro prêmio, quando você estava se formando, uma reportagem que foi eleita por uma banca de jornalistas e publicitários, na qual os publicitários consideraram como uma ótima reportagem e os jornalistas disseram não ser jornalismo... Eliane Brum – É, foi uma matéria que era sobre as filas, todas as filas que a gente entra desde que nasce até morrer. E naquele tempo, era o tempo da pirâmide invertida, né, e os jornalistas acharam que não era jornalismo, mas os publicitários acharam que era. Como tinha mais publicitários que jornalistas, eu ganhei o primeiro lugar. 4) Você ficou conhecida durante muito tempo pelos livros de reportagem que você produziu. Ano passado, porém, você lançou seu livro de ficção. Como você fez
essa transição do jornalismo de não-ficção que lida o tempo todo com a realidade para a ficção? Quais foram às dificuldades encontradas ao longo do percalço em separar vivências que você teve e que você precisava colocar no seu texto? Eliane Brum – Não tive dificuldade, porque eu só consigo escrever se eu tenho uma entrega completa. Eu só consigo escrever se eu for completamente capturada pela história que eu tô contando. Seja ela da vida real, seja da ficção. As minhas dificuldades são dadas por essa entrega. Essa entrega é sempre muito profunda, ela me deixa marcas muito profundas e me causa dores. Então, no jornalismo o desafio da gente é aquele de se esvaiar dos nossos preconceitos, da nossa visão de mundo, dos nossos julgamentos pra ser preenchido por uma voz que é do outro, pra entender que voz é essa. Ficção é o contrário, nosso desafio é ter coragem de se deixar possuir pela própria voz. Isso que é o mais difícil. Pra mim, o mais difícil é viver com essas histórias, essa gestação. Tanto uma gestação de uma história que vem de fora quanto uma gestação de uma história que vem de dentro. Como escrevi no meu livro de ficção, eu tinha a ideia de que encenava a minha vida. Eu vivia na ficção, a vida completa do dia-a-dia, a vida real, eu encenava. Era como se essa vida real fosse uma ficção e a única vida real que existia era a que eu estava escrevendo.
“Era como se essa vida real fosse uma ficção e a única vida real que existia era a que eu estava escrevendo.”
5) Sobre o processo de produção de reportagem, a gente percebe que você tem um estilo de reportagens mais longas, bem apuradas, mais complexas. No início do ano passado, por exemplo, você entregou um texto que levou 9 anos pra ser produzido. Como que funciona isso? O que te leva a pensar que você conseguiu finalizar uma matéria? Qual a sensação que você tem ao olhar para uma matéria e sentir que ela está concluída? Eliane Brum – Nunca termina, né? A gente bota um fim porque no geral o fim é o prazo que a gente não consegue mais estender. Mas eu só sinto que eu posso publicar uma matéria quando eu sinto que eu entendi aquela história, que eu aprendi o suficiente... Que eu consegui uma parte substancial da complexidade daquela realidade. Não sei explicar... Cada história leva um tempo diferente. Pra mim, cada matéria é uma espécie de uma gestação. Eu fico grávida daquela matéria e depois faço um parto
daquela matéria. E quanto o parto é um parto prematuro, isso vai me doer por muito tempo porque eu sei que aquela matéria não tava pronta. Eu tento não ter partos prematuros, tento ter partos de noves meses, simbólicos, né. (Risos) E nem partos que se estendem pela vida toda porque a gente precisa contar a história. A história só termina quando ela é publicada e ela precisa ser publicada pra que ela continue se contando. Ela continue criando sentidos. 6) Ainda nesse tema, você escreveu uma matéria em 2006, sobre o Vinícius Gagueiro Marques “Yoñlu”, em uma reportagem chamada “Suicidio.Com”. O suicídio é considerado um tema muito polêmico de se tratar na mídia. Houve pressão da família ou do próprio veículo em não se publicar a matéria? Eliane Brum – A decisão de se publicar essa matéria sobre um suicídio é porque ela no fundo se tratava de um crime, um crime que deveria ser punido, e que o de incitação ao suicídio. Ele comete um suicídio pela internet que foi planejado pela internet, durante muito tempo do qual participaram muitas pessoas de diferentes lugares do mundo, muitas delas anônimas e ele se suicidou diante daquelas pessoas pedindo ajuda porque não conseguia se suicidar e aquelas pessoas o ajudaram... Isso é crime. 7) O Yoñlu vai ser objeto de um filme agora, realizado pelo Hique Montanari, que é um cineasta porto-negrense. Você foi consultada a respeito ou requisitada como consultora, já que você tem experiência cinematográfica em documentários? Eliane Brum – Não, não. Eu li uma notinha em um jornal de que teria um filme, mas não sei nada a respeito. 8) Recentemente você publicou uma matéria sobre um taxista evangélico na qual você falava sobre as dificuldades de aceitação desta corrente religiosa mais radical com relação à tolerância da diversidade. Pouco depois, você foi alvo de crítica pouco louváveis de um pastor evangélico e a fala deste senhor chegou até a ser destaque no The New York Times. Como você lidou com essa relação? Você tem estabelecido uma espécie de autocensura ao publicar por medo de despertar polêmicas? Eliane Brum – Não, eu não me autocensuro, tento fazer o possível pra não me autocensurar de nenhuma maneira, nem mesmo pela audiência. Principalmente pela audiência. Eu não me pauto por aquilo que pode me dar mais ou menos audiência, mas sim por aquilo que eu acho que é importante dizer, acho que tem o espaço na imprensa, um espaço na internet. Ser lida pelas pessoas é algo me dá uma grande responsalidade. Eu me dedico muito àquilo que escrevo. Eu só escrevo sobre aquilo que é relevante e muitas vezes eu escrevo sobre coisas que não dão tanta audiência porque eu acho que são coisas relevantes. 9) Mas, neste caso, ele é um pastor que tem uma relevância a nível não só nacional, mas também internacional... Você teme reações não só contra a sua integridade moral, mas até física por parte de atentados de pessoas de extrema
direita ou conservadores que não concordam com o seu tema com o qual você está falando ali? Eliane Brum – Eu acho que quando as pessoas se expressam, elas se expressam aquilo que elas são. E às vezes a expressão do que elas são apenas confirma aquilo que eu disse. 10) Seu marido é roteirista e cineasta e você tem dois documentários. Ser casada com um cineasta te ajuda a fazer essa transição com o auxílio dele, ou você acha que talvez o fato dele ter um olhar um pouco mais crítico te atrapalha? Eliane Brum – A gente tem uma troca muito profunda tanto de trabalho quanto da vida. É uma troca que se dá em todas as áreas, é muito importante pra mim ter essa relação com o João.
“Eu não acho que existam vidas comuns, eu acho que o que existe são olhos domesticados.”
11) Você fala que sempre se interessa pelo incomum dentro do comum. Com tantos anos de profissão, quase 25 anos de jornalismo, essa sua visão veio depois que você se formou ou você já tinha isso como objetivo ao querer se tornar jornalista? Mesmo depois de tanto tempo, você ainda se surpreende com as coisas que vê? Eliane Brum – Eu me surpreendo muito. Tenho muita pena de morrer porque tem tanta coisa pra conhecer, tantas histórias pra contar, tantas histórias pra escutar... Eu sempre achei mais interessante a vida comum. O jornalismo se interessa pela interrupção da rotina, pelos acontecimentos que quebram a rotina e eu me interesso pelos “desacontecimentos”. Interesso-me por aquilo que se repete, sempre achei mais fascinante. Não acho que existam vidas comuns, acho que o existe são olhos domesticados. E que infelizmente são os nossos, a gente se deixa domesticar, inclusive pra olhar para nossa vida. Quando a gente olha em volta sem perceber o extraordinário, sem perceber a singularidade da nossa própria vida, a gente não consegue perceber o extraordinário da vida do outro. É esse hábito de resistência que eu tento fazer na minha vida e tento fazer pela reportagem, pela escrita que é a minha especialidade. Desde quando comecei a fazer reportagem, sempre me interessei pelo o que estava nas
margens, personagem secundĂĄrio sempre me interessou... Porque ĂŠ isso que me interessa.