Imagens Vivas material educativo professores

Page 1

Ministério da Cultura e TE Connectivity apresentam

I Mostra de Audiovisual Comunitário de Bragança Paulista

IMAGENS

VIVAS

O que se vê, o que se diz sobre o que se vê: linguagem audiovisual, educação e cultura CADERNO DO PROFESSOR


O Ministério da Cultura e a TE Connectivity apresentam

material educativo para professores criação textual Gisa Picosque

contribuição colaborativa André La Salvia Bragança Paulista/SP 2014

1

material educativo para professores


Projeto Imagens Vivas, 2014 Vivência de CoCriação Audiovisual Foto: Amanda Andrade

2

material educativo para professores


Sumário

apresentando ......................................................................................

04

IMAGENS VIVAS e sua arquitetura pedagógica: mediação, formação, educação......................................................

06

A construção de sentido com imagens.............................................

23

Cineclube na escola: a potência do cinema como gesto criativo...................................... 28 OUVIR crianças, adolescentes, adultos; para VER cinema, OLHAR cultura ....................................................... 34 Puxando a conversa sobre os filmes ..................................................

43

O ato de criação [teto complementar]............................................. 58 Referências Bibliográficas ....................................................................

66

Ficha Técnica – Projeto Imagens Vivas ..............................................

68

3

material educativo para professores


apresentando

Projeto Imagens Vivas Divulgação do Cineclube Escola Municipal Cel. Ladislau Leme 11set2014 Foto: Amanda Andrade

Um projeto de audiovisual: Imagens Vivas. Uma cidade paulista: Bragança Paulista. O que pode um projeto numa cidade? À primeira vista, criar brechas, abrir fendas por meio de uma série de ações que buscam reconfigurar as coisas e lugares da cidade, fertilizar a arte na vida das pessoas e ampliar seus repertórios culturais por meio de provocações estéticas e ações artísticas e experimentais na linguagem audiovisual. Em Imagens Vivas, a realização do Cineclube nas escolas municipais e estaduais e o Cineclube para professor e o Cine Diálogo para o público em geral, abrem brechas para redesenhar a ocupação de lugares como a instituição escolar e a Casinha do Lago, 4

material educativo para professores


respectivamente; fazendo rasgos no gosto oficialista e na forma cinematográfica assentada no mercado através de sua programação. A realização do curso para professores -­‐ Linguagem Audiovisual, educação e cultura – abre fissuras nos hábitos cristalizados dos professores em relação à exibição de filmes somente como estratégia para o ensino de um conteúdo disciplinar; despertando-­‐os para outro modo de exibição e conversa sobre o que se vê nos filmes. A realização das Vivências de CoCriação Audiovisual com Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes do Coletivo Garapa com colaboração de Diego Lajst e Juliana Nadin abrem brechas para o fazer artístico de jovens do ensino médio e pessoas da comunidade, fazendo cisões em seu modo de pensar e fazer arte, especificamente, a linguagem audiovisual. Em Imagens Vivas, a linguagem audiovisual foi se infiltrando na cidade e nas pessoas por meio de diferentes contextos. Como uma personagem aparentemente anônima, essa linguagem da arte foi produzindo aberturas sensíveis, provocadoras e potencializadora de novas percepções sobre as coisas, os lugares e sobre si mesmo para aqueles que se aproximaram do projeto como espectadores, criadores, artistas, professores, palestrantes, produtores, gestores. Para eternizar essa formação livre e de produção de significados pela via da linguagem audiovisual é feito este material educativo com textos que contribuem teoricamente com a experiência vivida em Imagens Vivas. Gisa Picosque1 2000e14

1

Gisa Picosque – pesquisadora independente; realiza a coordenação das ações educativas e de mediação cultural do Projeto Imagens Vivas, em Bragança Paulista, no decorrer de 2014.

5

material educativo para professores


IMAGENS VIVAS e sua arquitetura pedagógica: mediação, formação, educação Gisa Picosque

Escolhi o cinema. Claro que o cinema é uma máquina, uma arte da máquina, uma arte-­‐ indústria. Claro que eu estava possuído pela ideia já em si complexa e recursiva, de compreender a sociedade com a ajuda do cinema e, ao mesmo tempo, compreender o cinema com a ajuda da sociedade. Mas era também atraído por qualquer coisa de mais íntimo: o fascínio da minha adolescência, e também o meu sentimento adulto de que o cinema é muito mais belo, comovente e extraordinário do que qualquer outra forma de representação. Pertenço, é certo, a uma das primeiras gerações cuja formação é inseparável do cinema.2 Edgar Morin3 Os processos são os devires, e estes não se julgam pelo resultado final, mas pela qualidade do seu curso e a potência de sua continuação (...) Gilles Deleuze4

A apropriação do mundo por meio da arte e cultura, como um modo de provocar situações de maior protagonismo de crianças, jovens, professores e comunidade da cidade de Bragança Paulista, é uma diretriz nas diferentes linhas de ação realizadas no projeto Imagens Vivas, que tem como ênfase o cinema e sua linguagem no contexto das formas audiovisuais. 2

MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Relógio D´Água, 1997, p.12. Edgar Morin, pseudônimo de Edgar Nahoum, nasceu em Paris, em 8 de julho de 1921, é um sociólogo e filósofo francês. Pesquisador emérito do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique). Formado em Direito, História e Geografia, realizou estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia. É considerado um dos principais pensadores sobre a complexidade. Autor de mais de trinta livros, entre eles: O método (6 volumes), Introdução ao pensamento complexo, Ciência com consciência e Os sete saberes necessários para a educação do futuro. Durante a Segunda Guerra Mundial, participou da Resistência Francesa. É considerado um dos pensadores mais importantes do século XX e XXI. Para saber mais, acessar: http://www.edgarmorin.org.br/index.php. 4 DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992, p.183 3

6

material educativo para professores


Na medida em que hoje parte da necessidade de ficção das crianças e jovens é suprida pelos filmes que passam na televisão e que as imagens se tornam uma parte integrante e essencial da cultura das jovens gerações, numa sociedade – ela também – mergulhada em intertextos imagéticos, é pertinente que o projeto entre no coração do assunto, escolhendo a linguagem audiovisual para ser o centro configurador das práticas e experiências estéticas de fruição e de experimentação da linguagem audiovisual. Nesse horizonte, o projeto Imagens Vivas é fruto híbrido de um conjunto de linhas de ação que conta com vários atores e parceiros. Em tal contexto, para se por em marcha, o projeto contém como característica processual e modo de mover uma pedagogia do cinema nas práticas e experiências estéticas, um alinhamento entre três vetores muito potentes: mediação, formação, educação. Há muitas maneiras de entender esses termos, para melhor compreensão, seguimos falando em quê exatamente cada um se distingue do outro no cenário deste projeto.

7

material educativo para professores


I MEDIAÇÃO CULTURAL

Projeto Imagens Vivas Fabrício Panizza em mediação cultural Cineclube na Escola Municipal Prof. Dr. Francisco Murilo Pinto 16out2014 Foto: Amanda Andrade

O que pode ser definido como mediação no contexto da arte e cultura? Os estudos ou o conceito de mediação não tem o mesmo sentido para os autores que se debruçam sobre o tema, suas problemáticas e metodologias. Para alguns estudiosos e praticantes, a mediação é uma intercessão, ou seja, um agir por; para outros, a mediação é uma interposição, constituindo-­‐se como um colocar-­‐se entre; há ainda os que pensam e fazem a mediação como intervenção, como um agir sobre e entre.

8

material educativo para professores


Compartilhando a definição do professor José Marcio Barros, em seu texto Mediação,

formação, educação: duas aproximações e algumas proposições5 no projeto Imagens Vivas, a mediação é um agir com e por meio de. Ou seja, pensamos, compreendemos e exercitamos a mediação como um conjunto de ações que se efetiva na relação direta com os sujeitos, por vezes tomados como públicos, outras vezes como parceiros, e se configura com conexões entre as diferentes linhas de ação previstas no projeto.

Ao contrário de ser apenas um campo exclusivo da figura tradicional do educador, a mediação aqui é vista como espaço de diálogos, espaço de trânsitos e trocas informacionais, simbólicas e subjetivas entre todos os envolvidos no projeto; sejam públicos, educadores, curadores, coordenadores, gestores, pesquisadores, artistas, instituições, secretarias de educação e cultura. No dizer de José Marcio Barros (2013:14): a mediação refere-­‐se ao espaço simbólico ou representativo que articula a relação entre os sujeitos em situação de interação, em que cada polo se apresenta, simultaneamente, como emissor e receptor. Tomada como uma atividade de produção de sentidos que, tal e qual a linguagem, produz a tão necessária transição do sensível ao inteligível, a mediação oportuniza o trânsito, tão fundamental para a constituição do espaço social, entre o eu e o outro. Entre o conhecido e o desconhecido. Entre as semelhanças e as diferenças. A mediação refere-­‐se, portanto, à circulação de sentidos nos sistemas culturais. Aqui está sua potência, ela é simultaneamente significação individualmente codificada e sentido socialmente produzido. Sua tarefa central é reduzir a distância entre sujeitos e objetos de sentido, tornando, assim, a vida coletiva inteligível e possível.

A mediação, portanto, torna-­‐se um processo que envolve atores, práticas, objetos e contextos. E, a própria mediação é produtora de sentidos, assim como os mediadores – gestores, educadores, curadores, artistas, etc. – são intermediários pelos quais os sentidos são produzidos e se tornam reconhecíveis e compreensíveis. Embora, os sentidos também sejam acionados pelas obras de arte, pelos livros, pelos públicos, pelos alunos, etc.

5

BARROS, José Marcio. Mediação, formação, educação: duas aproximações e algumas proposições. In.: Revista Observatório Itaú Cultural : OIC. -­‐ N. 15 (dez. 2013/maio 2014). – São Paulo: Itaú Cultural, 2013, p. 8-­‐14. Disponível em: http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-­‐content/uploads/2014/01/Revista_observatorio_15_ISSUU-­‐1.pdf. Acesso em 01/11/2014.

9

material educativo para professores


Dito desse modo é importante perceber que a mediação não é apaziguamento; a mediação é movedora de crítica, reflexão, ativação de sensibilidades, aproximação, estranhamento. Mediação é convite para convivência, para encontro e exercício com a alteridade; seja o outro a obra de arte, o cinema como quer Alain Bergala, sejam os atores e parceiros de um projeto. E, se todos os processos formativos e educativos demandam e se processam por meio de práticas de mediação, como se configura a formação no contexto do projeto Imagens Vivas?

II FORMAÇÃO

Projeto Imagens Vivas Cine Diálogo – Plateia na exibição do filme “Lixo Extraordinário” 05ago2014 Foto: Amanda Andrade

10

material educativo para professores


No projeto Imagens Vivas há diversas formas de formação com diferentes objetivos, sem que haja hierarquia de importância entre elas: formação do olhar, formação de público, formação de professores, formação para a prática artística, formação para o mercado cultural. Para cada uma dessas formas e objetivos de formação há uma ação específica e uma estratégia de mediação. Vejamos, assim, o entrelaçamento entre objetivo, ações e mediação dessas formações propostas.

Formação do Olhar. As primeiras palavras de Camille Paglia, em seu recente livro Imagens Cintilantes6 nos servem para esboçar a necessária e importante formação do olhar: A vida moderna é um mar de imagens. Nossos olhos são inundados por figuras reluzentes e blocos de texto explodindo dobre nós por todos os lados. O cérebro, superestimulado, deve se adaptar rapidamente para conseguir processar esse rodopiante bombardeio de dados desconexos. (...) Como sobreviver nesta era da vertigem? Precisamos reaprender a ver. Em meio a tamanha e neurótica poluição visual, é essencial encontrar o foco, a base da estabilidade, da identidade e da direção na vida. As crianças, sobretudo, merecem ser salvas desse turbilhão de imagens tremeluzentes que as vicia em distrações sedutoras e fazem a realidade social, com seus deveres e preocupações éticas, parecer estúpida e fútil. A única maneira de ensinar o foco é oferecer aos olhos oportunidades de percepção estável – e o melhor caminho para isso é a contemplação da arte. Olhar para a arte exige sossego e receptividade, mas é uma empreitada que restaura nossos sentidos e produz uma serenidade mágica.

Como na constatação de Camille Paglia, aquele que trabalha com arte e cultura, preocupa-­‐se com a formação do olhar e com a criação de estratégias de mediação que possam envolver o espectador num processo de leitura seja qual for a linguagem artística. Em Imagens Vivas, ao promover o encontro entre cinema e crianças, jovens, adultos, busca-­‐se o encontro com emoções e sentimentos que só nos são oferecidos pelo cinema. Assim a ideia não é de apresentação de filmes (ou fragmentos de filmes) exclusivamente com o objetivo de desenvolver um conteúdo específico ou desenvolver 6

PAGLIA, Camille. Imagens Cintilantes: uma viagem através da arte desde o Egito a Star Wars. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014, p.VII.

11

material educativo para professores


o “espírito crítico”. Talvez o que importe seja favorecer o contato de crianças, jovens, adultos com obras cinematográficas que não circulam nas grandes salas, nos circuitos comerciais ou, ainda, na televisão, nos canais abertos ou pagos. Essa exposição a filmes específicos é uma exposição à arte, em seu sentido mais genuíno e, por isso, propõe uma tarefa que diz respeito, sobretudo, a uma pedagogia do olhar, uma pedagogia que busca por meio da mediação provocar o olhar às imagens rompendo com um certo “didatismo”, com as “significações corretas”, com a ideia de “mensagem do que o artista quis dizer”. Trata-­‐se simplesmente de apresentar filmes, considerando uma impossibilidade básica: “por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz”, como nos alertou Foucault (1998:25). Nesse sentido, a prática da mediação da linguagem cinematográfica, implica na exteriorização do pensamento do leitor-­‐espectador através da intimidade com as imagens, considerando as infinitas possibilidades de olhar para além da conexão entre imagens e palavras, como num ato de busca por significados para além dos visíveis, o que é algo pouco exercitado na escola. Ou seja, quando falamos de imagens cinematográficas (e de arte) não há “ensinamentos” previsíveis, no sentido de que não há interferências possíveis naquilo que diz respeito à fruição, ao deleite, à sensibilidade, pois se pode até obrigar alguém a aprender algo, mas não se pode ensinar alguém a se emocionar (Bergala, 2002). Nesse contexto pedagógico, foi criado para a formação do olhar três ações específicas: • • •

Cineclube na Escola -­‐ escolas municipais e estaduais de Bragança Paulista Cineclube do Professor, no Mini MIS Casinha do Lago Cine Diálogo, para o público em geral, no Mini MIS Casinha do Lago

Essas ações, também movem a formação de público, outro eixo de formação no projeto que será comentado a seguir.

Formação de públicos. Há em Bragança Paulista crianças e jovens que não imaginam que a cidade teve uma sala de cinema, o Cine Bragança, na Rua Cândido Rodrigues, inaugurado em 29 de Julho de 1949 e em 2007, fechado. Assim como aconteceu em Bragança Paulista e em outras cidades, já há algum tempo, as salas de cinema são transformadas em lojas de departamento, oficinas mecânicas, estacionamentos ou templos religiosos.

12

material educativo para professores


Ao mesmo tempo, há uma diversificação da oferta televisual e na internet, oferecendo grandes sucessos da indústria cinematográfica. Na realidade, os conteúdos da mídia e das indústrias culturais constituem hoje uma fonte de informações, conhecimentos e modelos de referência que participam ativamente da representação da realidade: os livros, os filmes, mas também as canções de variedades, as séries de televisão, as emissões de telerrealidade, os blogs etc. alimentam o tempo inteiro uma espécie de supermercado mundializado dos bens simbólicos. Por essa razão, numa sociedade da hiperescolha, em que a formatação das preferências operada pela publicidade cresce à medida que esta participa cada vez mais diretamente da difusão dos produtos culturais, foi realizado no projeto Imagens Vivas, uma cuidadosa curadoria para a programação de filmes a serem exibidos em Cineclubes nas escolas municipais e estaduais; em Cineclube no Mini MIS para professores e público em geral. Qual a relação entre o formato cineclube e a formação de público? Cineclubes são espaços democráticos, sem fins lucrativos, que estimulam o público a ver e discutir o cinema; e, através dele, refletir sobre a realidade. O Cineclube dá acesso as mais diferentes cinematografias e suas propostas estéticas e narrativas, além disso, valoriza de forma única a experiência da difusão/exibição. A curadoria da obra cinematográfica para exibição no cineclube não tem base em critérios comerciais, mas, sim, critérios artísticos, culturais, sociais e que fazem refletir. Esses filmes podem ser de curta, média ou longa-­‐metragem e não tem intenções comerciais de exibição. Os filmes escolhidos propiciam a ampliação da visão de mundo com o conhecimento de culturas e olhares diferentes e, em aliança com a mediação após a exibição, fomenta a formação de público para o cinema. Os Cineclubes são, portanto, espaços de fruição, pesquisa e crítica cinematográfica. Além disso, primam pelo direito cultural do público ter acesso ao audiovisual e a experiência compartilhada em assistir do cinema.

13

material educativo para professores


Projeto Imagens Vivas Participantes do Curso “Linguagem Audiovisual, educação e cultura” 15out2014 Foto: Amanda Andrade

Formação de Professores. Apostando sempre no diálogo cultural com a escola e tendo os professores como parceiros, o Imagens Vivas realizou um curso de 40 horas: Linguagem Audiovisual, educação e cultura, em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura, para professores do ensino municipal e público em geral. No curso foram desenvolvidos os seguintes temas: • • • • • •

Cinema na Educação: outras vistas, outras narrativas como enriquecimento cultural Linguagem cinematográfica: a linguagem e o processo de criação no cinema Uma pedagogia do olhar: leitura e construção de significados sobre o que se vê Cinema para ensinar pode ser cinema pelo prazer de olhar? Um acervo de filmes para a sala de aula: como e o que escolher? O cinema em programas escolares: como, quando, de que modo?

A escolha por esses conteúdos busca disseminar formas de compreensão da linguagem cinematográfica, introduzir nas escolas o hábito da leitura prazerosa de filmes e a 14

material educativo para professores


ajudar crianças e jovens a compreenderem e refletirem sobre os produtos da indústria cultural, incluindo o cinema. Para isso, no decorrer do curso, os conteúdos dos temas abordados foram dialogados com os professores estabelecendo uma relação entre os aspectos teóricos e a identificação e interpretação de experiências, sentimentos, tensões, processos de formação e conhecimentos dos professores sobre o cinema. Desse modo, a formação de professores propõe novas maneiras de agir, de refletir, de ver, de pensar, de saber, de viver, de mover processos educativos e de mediação em cinema, a partir da valorização da experiência individual dos professores de modo a torná-­‐los atores e autores da sua própria formação. Em conjunto com o curso para os professores, é preparado o Caderno do Professor: O que se vê, o que é visto: linguagem audiovisual, educação e cultura -­‐ que você tem em mãos. Esse material composto por textos escritos visa apresentar e ampliar alguns conceitos importantes abordados durante o curso.

Projeto Imagens Vivas Jovens na Vivência de CoCriação Audiovisual 06nov2014 Foto: Amanda Andrade

15

material educativo para professores


Formação para a prática artística. Fazer cinema ou fazer uma experiência audiovisual onde se possa pesquisar práticas de produção com referências no cinema é uma linha de ação desenvolvida no Imagens Vivas com jovens do ensino médio, tendo como parceiros Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes do Coletivo Garapa com colaboração de Diego Lajst e Juliana Nadin. Se de um lado há uma pedagogia do espectador; de outro, há uma pedagogia da passagem ao ato; ou seja, uma pedagogia que tem como prioridade privilegiar o ato criativo. Portanto, nessa ação de formação para a prática artística a proposta é fazer audiovisual, é pensar o processo produtivo de uma obra audiovisual, é acompanhar a trajetória que uma ideia percorre da cabeça de alguém até a sua projeção na tela, é perceber que nesse fazer há uma forma específica de captura de imagens que não é apenas registrar a realidade e montar filmes; é descobrir que é criar imagens para contar histórias e fazer história. Dessa experiência entre Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes do Coletivo Garapa com colaboração de Diego Lajst e Juliana Nadin e os jovens do ensino médio, quatro curtas são produzidos e mostrados numa instalação montada no Mercado Municipal para apresentação ao público de Bragança Paulista. Os curtas produzidos têm como mote do roteiro, a crise hídrica no estado de São Paulo, em função da falta de água no sistema Cantareira, atingindo as represas da região de Bragança Paulista. Os quatro curtas produzidos são:

16

material educativo para professores


Histórias Afogadas

Jovens realizadores: Gabriel Lucas da Silva; Milena Mourão Bernardi; Jacqueline Barboza Oliveira; Lara Beatriz Duarte Damasceno; Daiane S. Oliveira Preto; Daiane Stephanie.

Cotidiano Seco

Jovens realizadores: Paula Cristina dos Santos Martins; Milena Mourão Bernardi; Lara Beatriz Duarte Damasceno; Guilherme Augusto Oliveira Paixão; Luis Gustavo Murasaki.

Paisagens

Jovens realizadores: Mariana Magalhães Mendes; Luís Gustavo Murasaki, Vitor Eufrauzino Marques; Henrique Ferreira dos Santos; Luís Gustavo Santos da Silva; Stephanie Simões Coutinho; Paula Cristina dos Santos Martins.

17

material educativo para professores


Desventuras de Alfredo

Jovens realizadores: Gabriel Lucas da Silva; Jacqueline Barbosa da Silva; Dagmar Augusto Lopes da Cruz; Bianca Isabela de Lima; Raiane Gabrielle F. de Souza; Bruno de Castro Covo.

Como se pode ler na ficha técnica, cada curta é uma obra a muitas mãos. Quatro curtas feitos por meio de escolhas, opções, afinação, apuramento, decisões argumentadas, defendidas, discutidas, ouvidas e faladas entre os jovens e Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes do Coletivo Garapa com colaboração de Diego Lajst e Juliana Nadin. Quatro Curtas em cocriação.

Formação para o mercado cultural. Outra ação, tendo também como parceiro Paulo Fehlauer do Coletivo Garapa, é a vivência de audiovisual para jovens da comunidade bragantina que gostam de produzir na linguagem audiovisual, que já possuem alguma experiência e que desejam aprofundar seus conhecimentos e processos de criação.

18

material educativo para professores


Nessa linha de ação – formação para o mercado cultural – visualiza-­‐se a vivência como contribuição para que os jovens participantes -­‐ Aline Bianca Gomes de Oliveira; Marina Salles; Sthefferson S. Lima e Maria Izabel dos Santos -­‐ enriqueçam seus repertórios visando a construção de uma emancipação intelectual, sensível e técnica na linguagem audiovisual. Ganhar mais potência criativa e confiança em si mesmo como criador poderá gerar uma dinâmica cultural de audiovisual na cidade, articulada pelos participantes como realizadores e exibidores independentes.

Olhares Jovens realizadores: Aline Bianca Gomes de Oliveira; Marina Salles; Sthefferson S. Lima e Maria Izabel dos Santos

Nesse contexto de mediação e formação, como se configura o eixo educação?

III EDUCAÇÃO A prática poética, e a educação que daí deriva, é uma prática de contração, porque contrair quer dizer tanto afetar e ser afetado – como quem contrai um vírus ou sente as contrações do parto –, quanto

19

material educativo para professores


conjugar, conciliar, partilhar – que significa aqui, ao mesmo tempo, repartir e fazer parte Marcelo de Andrade Pereira7

Quando se fala em educação, é lugar comum pensar em salas de aula tradicionais como ambientes de aprendizagem, em crianças ou jovens divididos por idade e obrigados a permanecerem sentados, sem se mexer e sem conversar, a menos que levantem a mão e sejam autorizados a repetir o que o professor já disse. Quando se fala em educação em Imagens Vivas, pensamos em um ambiente de aprendizagem que mistura as idades e vivências para que crianças, jovens ou professores possam aprender umas com as outras por meio de proposições estéticas e conversação. Nesse movimento de educação não formal, tanto as vivências de audiovisual para os jovens do ensino médio como o curso de formação dos professores para a rede pública de Bragança Paulista, tem como especificidade do fazer pedagógico a metodologia da cocriação. Por cocriação, no caso do projeto Imagens Vivas, eu quero dizer que, apesar das vivências de audiovisual serem instigadas por um coletivo de arte (Coletivo Garapa) ou o curso de professores ter a arte educadora (Gisa Picosque) coordenando, o modo de estruturação dos encontros permite que o significado do encontro e as resoluções possíveis para a condução de suas proposições planejadas sejam reformuladas pelos participantes que poderiam ser considerados, do contrário, apenas como espectadores das vivências ou do curso. Isso permite que o significado apareça e se diferencie, ao invés de ser simplesmente estabelecido e imutável. Nesse sentido, a cocriação, como método de produção artística, é inerentemente pedagógica. No seu grau mais básico, ambos – criador e aqueles que são participantes – entram na situação com a esperança de aprenderem alguma coisa e também oferecerem algo a ela. Pode ser que para o coletivo de arte, os encontros sejam uma extensão da sua prática. Para os jovens participantes, as vivências podem aproximá-­‐los do fazer audiovisual. A cocriação, portanto, oferece a possibilidade para que os 7

ANDRADE PEREIRA, Marcelo de. Pedagogia da Performance: do uso poético da palavra na prática educativa. Revista Educação & Realidade, vol. 35, núm. 2, maio-­‐agosto, 2010, p. 140. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.

20

material educativo para professores


participantes pelo fazer construam, coloquem em xeque seus saberes, suas procuras, suas capacidades criativas e, assim, realizem uma obra artística, uma produção cultural. Neste cenário de cocriação, entende-­‐se a educação como acordos compartilhados de criação. A ideia de acordo tem referência na noção de educação problematizadora defendida por Paulo Freire8, em oposição a uma educação bancária9. No processo educativo problematizador, cabe a gestação da dialogicidade, uma vez que o homem é concebido como um ser da comunicação e que por meio do diálogo ele se comunica com o mundo e com os outros homens. O diálogo, portanto, não é uma mera técnica instrumental ou diretriz acadêmico-­‐pedagogizante que venha a ser adotado no universo educacional, pois é mais do que a adoção de uma metodologia, por mais importante que ela possa ser: é uma postura político-­‐filosófica diante do mundo e da existência. A educação, como acordos compartilhados de criação, ocorre numa experiência relacional e não como transferência, já que não pretende linearizar procedimentos e, portanto, não aposta em certezas absolutas. Ela se organiza aberta e é problematizante, pois inevitavelmente lida com problemas que emergem das relações e fricções entre os participantes da vivência/curso e o mundo. A concepção de acordo como compartilhamento é também formulada a partir da aproximação com a visão sistêmica, principalmente no entendimento das propriedades partilhadas/emergentes e também de alguns parâmetros sistêmicos como permanência, organização; estes são discutidos mais especificamente pelo físico e filósofo argentino, Mário Augusto Bunge e o astrofísico e professor de Ciências da Informação, Jorge de Albuquerque Vieira.

8

Paulo Freire (1921-­‐1997) é considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial. É autor da pedagogia do oprimido. Destacou-­‐se por seu trabalho na área da educação popular, voltada tanto a escolarização como para a formação da consciência, tendo contribuído para o movimento chamado pedagogia crítica. Foi nomeado doutor honoris causa de 28 universidades em vários países e teve obras traduzidas em mais de 20 idiomas. Para saber mais, acessar: http://www.paulofreire.org/. 9 Educação bancária ou educação domesticadora: noções usadas por Paulo Freire para definir o tipo de educação cujos resultados tornam o homem um ser dependente dos preceitos determinados pelas classes dominantes. Através desse tipo de educação o sujeito torna-­‐se receptor passivo de informações que lhe são depositadas por outrem. Para saber mais: FREIRE, Paulo. A Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 65-­‐87.

21

material educativo para professores


As ações de aprender e ensinar – portanto, de investigar – podem alcançar uma configuração auto organizativa, e por isso móvel, em constante mudança e não regida por regras rigidamente definidas. Nesse contexto, as linhas de ação do projeto Imagens Vivas se movem num processo coletivo de investigação/criação operado como criação compartilhada que se configura como projeto coletivo via cooperação. No entanto, a ação conjunta não ocorre na homogeneidade de ações, e sim nas diferenças. O que aparece como comum é múltiplo e diversificado, já que se trata da comunicação entre sujeitos socialmente múltiplos e singulares. É uma cooperação que não é sinônimo de anulação das diferenças, mas que se apresenta como construção coletiva a partir do diálogo entre informações dos participantes que permanecem em ação. Dessa maneira, é possível assumir que a experiência educacional que deriva do projeto Imagens Vivas é um processo sistêmico que apresenta vários e diferentes níveis de interações, o que permite que as propriedades coletivas ocorram pela diferença e heterogeneidade, movendo a cocriação. Finalizando. A tentativa foi apresentar, mesmo que rapidamente, o pensamento que desenha no Projeto Imagens Vivas a arquitetura pedagógica e seus suportes: a mediação, a formação, a educação. Feito esse percurso, que o texto possa ser inspirador para outros projetos e a aprendizagem em cada projeto vivido nos leve sempre para além de nós mesmos, a nos transformarmos.

Cartaz de Divulgação (fragmento) das Vivências de CoCriação em Audiovisual

22

material educativo para professores


A construção de sentido com imagens André Luis La Salvia10 Fechamos os olhos. Tela escura. Não há imagens. Abro os olhos e com eles todos os meus sentidos, agora percebo tudo o que acontece ao meu redor. Distingo os limites entre objetos, pessoas e animais, percebo também seus movimentos. A luz clareia os movimentos das coisas que percebo como imagens. Meu cérebro, meu corpo escolhe o que vê e como age. O ser humano se diferencia do mundo, porque escolhe como agir com as imagens que percebe. A experiência acima pode ser realizada pelo leitor, desse modo estará experimentado um pouco das ideias do filósofo Henri Bérgson em seu livro Matéria e Memória. E o meu desejo é que façam mesmo essa experiência, para que possamos partir dela para pensarmos a linguagem audiovisual. Então, antes mesmo de pensar em modos de usar o cinema em sala de aula, antes mesmo de pensar a linguagem audiovisual, podemos pensar nas imagens. Eis me na presença de imagens, imagens percebidas quando abro os meus sentidos (...) meu corpo é, portanto, no conjunto material, uma imagem atual como as outras imagens recebendo e devolvendo movimentos, com a única diferença, talvez de que meu corpo parece escolher a maneira de devolver o que recebe Bergson, Matéria e memória. Imagem é tudo o que aparece e elas estão em movimento. Quando surgem as máquinas que captam e reproduzem tecnicamente a realidade, já estamos falando de um segundo tipo de imagens. Um segundo tipo que apesar de ser tecnicamente produzido, é extremamente familiar – afinal o pensamento já lida com imagens. Uma primeira lição já podemos tirar daqui: estamos rodeados de imagens (inclusive nós somos uma imagem) e os nossos pensamentos nos distinguem das imagens todas pois eles podem selecionar o que vê e selecionar como reagir.

10

André Luis La Salvia. Filósofo e Professor. Realiza a Coordenação do Cine Diálogo e Cine Professor no projeto Imagens Vivas. Autor do livro As Relações entre Imagens: um estudo dos conceitos do cinema para Gilles Deleuze. Rio de Janeiro, RJ: Livros Ilimitados, 2012.

23

material educativo para professores


Agora, vamos pensar nas imagens tecnicamente produzidas, fotografia, cinema, TV... elas são tecnicamente construídas, são produções que possuem sentido. Não podemos encará-­‐las como naturais ou verdadeiras reproduções da realidade, mas sim como um convite a pensar. E para isso que agora vou recorrer às ideias de outro filósofo, Gilles Deleuze. Para ele a construção audiovisual passou por diferentes etapas ao longo de sua história e que essas etapas fizeram diferentes relações entre as noções de tempo, movimento e pensamento. Vamos agora passear por alguns desses momentos. O cinema, tecnicamente falando faz pequenas fotos e as coloca em movimento11, o movimento é sugerido a partir de instantes fixos. E esta técnica de reprodução própria da câmera cinematográfica é espelhada numa primeira fase do próprio cinema, quando este era apenas composto de uma câmera fixa e sem montagem, são apenas imagens em movimento o que vemos quando assistimos os primeiros filmes dos irmãos Lumière. (basta pesquisar na internet que há acesso fácil a eles), que inventaram o Cinematógrafo por volta de 1896. Entre 1900 e 1910 começam a surgir as primeiras tentativas de montar um filme, representado pelo corte entre planos. Fazendo surgir um segundo movimento, não mais apenas o movimento dos personagens retratados, mas uma mudança qualitativa com as imagens encadeadas uma após a outra relacionadas pelos cortes que as monta em uma sequencia formando um todo do filme. A montagem cria um fluxo de imagens e muda tudo, ela passa a ser uma consciência do filme (parecida com o nosso cérebro como descrito mais acima) porque a montagem passa a escolher o que vê e como age. Desse modo, inclusive dirá Deleuze, que esta nova etapa do cinema será da imagem-­‐ movimento que copia o esquema sensório-­‐motor de nosso corpo para guiar a montagem. No sentido de que há um esforço de prolongar as imagens segundo um sistema que pareça normal ao espectador porque é semelhante a sua percepção do movimento, serão cortes racionais. Deleuze dirá que são os filmes em que as personagens reagem a situações, ou então agem de modo a desvendar a situação. É uma narração verídica, no sentido em que aspira ao verídico. É um tipo de cinema que não quer nos confundir, quer que nos identifiquemos com a personagem e com seus movimentos para ‘entender’ o que está acontecendo, por isso foi dito cortes racionais. Este tipo de montagem também faz 11

Uma sugestão de atividade para o movimento a partir de imagens paradas são os flipbooks, ou cinededo, um pequeno caderninho com desenhos seqüenciados e com pequenas alterações que ao correr o dedo na margem simulam um movimento.

24

material educativo para professores


uma imagem indireta do tempo ao reconstruí-­‐lo através da linearidade do passado-­‐ presente-­‐futuro, há sempre o atual como sucessão linear de presentes enquanto instantes na linha reta do tempo cronológico onde o passado e o futuro são dimensões do presente. Serão, portanto, narrativas lineares, em que cada plano se justificava por elos de uma causalidade estrita, nas quais os próprios flashbacks não são mais do que elementos complementares de uma cronologia impecável e as contradições provisórias simples ligações de uma intriga bem tecida. Longas cenas explicativas, diálogos que fazem progredir a ficção, a sucessão demasiado calculada dos planos logicamente encadeados produzem um cinema na qual se é guiado pela reconstrução da realidade a partir de cortes calculados e da temporalidade linear12. Deleuze distinguirá 4 tendências desse tipo de filme: o impressionismo francês (Abel Gance por exemplo) o cinema de atrações soviético (Serguei Eisenstein), o expressionismo alemão (Wiene ou Mornau) e o cinema de ação americano. O cinema americano é o principal exemplo desse tipo de construção de narrativas audiovisuais, que inclusive persiste até hoje como uma espécie de fórmula um milhão de vezes repetida. Aliás, o esgotamento dessa fórmula, exatamente por não fazer pensar acrescidos por um fato ainda pior: quando os filmes querem pensar em nosso lugar como nos filmes nazistas de Leni Riefensthal e o uso de filmes para propaganda nazista. Esses dois casos fizeram os cineastas do pós-­‐segunda guerra repensar o estatuto da imagem-­‐ movimento baseada no esquema sensório-­‐motor, na racionalidade do corte, no movimento certo, no tempo linear e no fazer parecer verdade. Assim vai nascer com o neo-­‐realismo italiano uma nova fase do cinema, agora será o cinema da imagem-­‐tempo – aquele que nos dará o tempo diretamente. Mas o que significa isso? Significa que na quebra dos paradigmas da imagem-­‐movimento, teremos um encontro com o próprio tempo, entendido como um tempo puro por não estar preso a linearidade passado-­‐presente-­‐futuro13. Não haverá mais o esquema sensório motor da montagem, mas uma espécie de mostragem, onde diferentes planos são mostrados ligados por um “e”, esse plano e mais esse, dirá Deleuze que: “Não há mais imagens sensório-­‐motoras com seus prolongamentos, mas vínculos

12

Sugestões: O Encouraçado Potenkin, de Eisenstein; Napoleon, de Abel Gance; O gabinete de dr. Caligari, de R. Wiene e Intolerância, de D.W. Grifffith 13 Sugestões: Ladrões de bicicleta, de Vitório de Sica; O anjo exterminador, de Luis Bunuel; Terra em Transe, de Glauber Rocha; O Acossado, de Jean Luc Godard

25

material educativo para professores


circulares muito mais complexos entre imagens ópticas e sonoras puras por um lado, e, por outro, imagens vindas do tempo ou do pensamento sobre planos coexistentes”. Este cinema é o cinema de Frederico Fellini, de Luis Bunuel, Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Allain Resnais e tantos outros que resolveram nos dar de volta o tempo e o pensamento. Por que neste tipo de filme não há como não pensar, precisamos agir intelectivamente para tentar criar uma explicação nossa, singular e particular, para o que está sendo mostrado. Será um cinema que abandonará também o estatuto da verdade, por uma potência do falso. A potência do falso “destrona” a aspiração ao verídico, pois esta significa a representação do acontecimento como pré-­‐existindo a sua narração, conta-­‐se aspirando ao verídico como se o acontecimento tivesse acontecido, ou está acontecendo, no presente. A potência do falso é aquela que inventa o acontecimento ao mesmo tempo que o narra, é um função fabuladora. É um “flagrante delito de fabulação”, inventando suas histórias, mesmo sob a pena de destruí-­‐las mais tarde em favor de novas construções. O interessante a ser notado em toda esta movimentação conceitual de Deleuze é que ele nos dá uma pista de como entender os “estilos” dos diferentes cineastas, de como ele escolheram construir suas imagens e as colocar em relação e como nós podemos pensar sobre elas, como quer Deleuze: “Este tipo de análise é desejável para todo autor, é o programa de pesquisa necessário para toda a análise de autor, o que se poderia chamar de ‘estilística’; o movimento que se instaura entre as partes de um conjunto num quadro, ou de um conjunto a outro num reenquadramento; o movimento que exprime um todo num filme ou numa obra; a correspondência entre os dois, a maneira segundo a qual eles se respondem mutuamente, passam de um ao outro” De que nos serve esses filósofos então? Servem para nos mostra que é preciso desnaturalizar o olhar e não pensar no cinema como algo natural ou verdadeiro, mas como uma construção simbólica e com sentido. Este sentido é fruto do estilo de cada autor e podemos estudar estes estilos prestando atenção nos tipos de relações entre imagens que fazem ao criar um fluxo de imagens, a que chamamos filme.

26

material educativo para professores


André La Salvia – mediação do filme Volver, Cineclube Professor Mini-­‐MIS, Casinha do Lago, Bragança Paulista/SP 23nov2014 Foto: Amanda Andrade

27

material educativo para professores


Cineclube na escola: a potência do cinema como gesto criativo

Gisa Picosque

Projeto Imagens Vivas Aline Oliveira em mediação cultural Cineclube na Escola Municipal Prof. Dr. Francisco Murilo Pinto 16out2014 Foto: Amanda Andrade

28

material educativo para professores


Começo este texto com a narradora protagonista Maria Margarita, no delicioso livro A contadora de filmes14, do escritor chileno Hernán Rivera Letelier: (...) A gente gostava de chegar cedo e esperar o filme lá dentro. Eu ficava fascinada com o vazio da sala do cinema na penumbra; parecia uma espécie de caverna misteriosa, secreta, sempre inexplorada. Ao atravessar as pesadas cortinas de veludo me dava a sensação de passar da crueza do mundo real a um maravilhoso mundo mágico. Nós nos sentávamos na primeira fila, quase grudados naquela enorme telona branca que para mim era como o altar-­‐mor de uma igreja. O auge daquele ritual todo acontecia no maravilhoso instante em que as luzes se apagavam, as cortinas da entrada eram fechadas, a música silenciava e a tela se enchia de vida e de movimento. Eu ficava como suspensa no ar.

O quê sentimos quando lemos esta passagem do livro? Talvez, para alguns leitores, há o sentimento de nostalgia ao lembrar-­‐se dos tempos em que as salas de cinema estavam nos bairros ou no centro da cidade -­‐ o cinema de rua -­‐ com o carrinho do pipoqueiro estacionado a porta, como na época do Cine Bragança15. Para outros leitores, o que vem à memória podem ser as tardes ou noites passadas nas salas de exibição dos shoppings centers que incorporaram o cinema em seus espaços, unindo entretenimento, lazer e consumo. Pode ser também que para alguns outros leitores a tela grande e a escuridão das salas de exibição seja uma experiência ainda desconhecida, muito embora no sofá em casa vejam filmes em DVD, na e pela tela da TV e/ou internet. Independente do ambiente onde o filme seja exibido, a linguagem do cinema, imagem e(m) movimento, passou a ser desde as primeiras décadas do século XX, uma das formas de prática social e cultural mais significativa. Porém, paradoxalmente, de acordo com pesquisas de público, tanto a maioria dos que frequentam os cinemas quanto os que assistem filmes na TV ou em DVD desconhecem, por exemplo, o nome dos diretores; assim como, nos cinemas, é comum o público sair antes que passem os créditos. Para Nestor Canclini, em Leitores, espectadores e internautas (2008), esse 14 Rivera Letelier, Hernán. A contadora de filmes. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.17-­‐18. 15 Cine Bragança -­‐ na Rua Cândido Rodrigues em Bragança Paulista -­‐ inaugurado em 29 de Julho de 1949 e no ano de 2007 foi fechado. Hoje, o prédio do antigo Cine Bragança, após passar por reforma, abriga uma loja de departamento.

29

material educativo para professores


comportamento do espectador de cinema expressa um modo de ver e um critério de escolha que é direcionado quase sempre aos filmes mais recentes, a assistir a um lançamento, a ter informações atualizadas sobre o que está em cartaz no circuito e sobre o que ainda vai ser lançado, em detrimento de conhecer os diretores, a história e os movimentos estéticos e políticos que tornam possíveis os filmes que vemos. Pode parecer estranho esse comportamento do espectador contemporâneo, mas essa é uma maneira de gostar de cinema e, se quisermos potencializar uma educação estética das novas gerações, precisamos compreendê-­‐las melhor, sem preconceitos ou prejulgamentos. E o que tudo isso tem a ver com a educação? Seria o espaço da escola lugar para a formação cultural em cinema? O cineasta, crítico de cinema e professor da Universidade Paris III, na França, Alain Bergala16 defende que as obras cinematográficas merecem um espaço na educação tão importante quanto os livros. Não podemos esquecer que o cinema faz parte hoje da nossa cultura visual e audiovisual que, a partir da segunda metade do século XX, passou a ser também televisão, vídeo, computador, internet, games e até telefones móveis. Assim, do mesmo modo como a escola tem buscado criar, nos diferentes segmentos de ensino, estratégias para potencializar o interesse pela literatura, é preciso também encontrar maneiras adequadas para estimular a leitura e a apreciação do audiovisual. É nessa direção que caminha o Projeto Imagens Vivas que, neste momento, chega com o Cineclube17 nas escolas públicas bragantinas, sob a coordenação de Fernanda 16

Alain Bergala foi o conselheiro para o cinema do Ministro da Educação da França, Jack Lang em 2000, sendo responsável pela elaboração do projeto de cinema no quadro do plano de cinco anos para a introdução das artes no sistema de ensino francês. Bergala elaborou ações e material para reintroduzir a cultura cinematográfica nas regiões em que ela havia desaparecido e desenvolvê-­‐la onde as pessoas só tinham acesso a filmes comerciais ou nem isso, caso do interior do país. Um dos produtos foi a coleção de DVD L'Éden Cinéma, com diversas produções renomadas distribuídas para todas as escolas. A proposta era que, além de ser usada para trabalhar conteúdos curriculares e organizar estudos sobre o gênero propriamente dito, a coletânea fosse explorada para promover debates sobre as histórias contadas nos filmes. 17 Cineclube -­‐ Os cineclubes surgiram na década de 20, no século XX, como um encontro para discussão de pequenos grupos, com filmes que apontavam discussões sobre questões sociais e políticas, escondidas em grande parte dos espaços públicos e também da maioria da população. Trazer o cineclube para o espaço educacional formal é antes de tudo, trazer a arte cinematográfica ao encontro do educador e seus aprendizes. No Brasil, a articulação cinema e escola tem a sua origem em Humberto Mauro e no Instituto Nacional do Cinema Educativo -­‐ INCE, criado em 1936 (governo de Getúlio Vargas) por Roquette Pinto, sendo o primeiro orgão oficial do governo planejado para o cinema. O INCE

30

material educativo para professores


Carmignotto e a mediação de Fabricio Panizza e Aline Oliveira. A proposta deste cineclube na escola é abrir uma brecha para que o contato com a narrativa cinematográfica seja de modo diverso do habitual que, na maioria das vezes, se dá a ver apenas como um instrumento didático, um veículo de aprendizagem ilustrativo ou evocativo de conteúdos alheios ao próprio cinema. Por meio de uma cuidadosa curadoria18, o Imagens Vivas buscou selecionar para o Cineclube nas Escolas, filmes que possam mover uma experiência cinematográfica garantindo diversidade estética, narrativa e cultural. Ao mesmo tempo, busca garantir a infraestrutura adequada à exibição, tanto em relação ao equipamento para projeção quanto a ambientação apropriada, com a sala suficientemente vedada contra a luz, para que ocorra na exibição a atmosfera do "escurinho do cinema"19, simulando uma sala de cinema. Para Metz, (1982 citado por Fragoso, 2000) a sala de cinema produz uma situação fílmica geradora do envolvimento com o filme, com a linguagem cinematográfica, induzindo a imobilidade do espectador, pela escuridão da sala de cinema e pelo isolamento dos ruídos ambientais e das pressões do cotidiano, a situação fílmica produziria assim uma condição onírica facilitadora da suspensão de descrença (Fragoso, 2000: p.111-­‐ 112). Seja por meio do projeto Imagens Vivas ou para além do projeto, seja com a iniciativa de professores em suas salas de aula, o cineclube na escola e sua experiência do escurinho do cinema, oferece à luz para crianças e jovens na construção de um olhar apreciador das narrativas cinematográficas, de modo a contribuir na escolha de seus filmes, propagandas e programas televisivos, inserindo-­‐os nesta cultura imagética com mais conhecimento.

funcionou de 1936 a 1966, produziu mais de 400 documentários de curtas e médias metragens voltados à educação popular, divulgação da ciência e tecnologia. 18 Curadoria -­‐ Pessoa (curador) ou grupo de pessoas capacitadas e que tem como objetivo selecionar, escolher os filmes que serão exibidos a partir de critérios estabelecidos tais como: temas, valoração estética, diretores, gêneros, etc. 19 Tomo emprestada esta expressão da canção Flagra de autoria de Roberto de Carvalho e Rita Lee. Flagra é uma canção que fala de cinema, fazendo várias referências a atores e filmes, na forma de trocadilhos. Em 1982 a canção foi um sucesso.

31

material educativo para professores


Criando um Cineclube20 Caracteriza-­‐se por ser um Cineclube ações e espaços que possuem uma sessão periódica com data e local, normalmente fixos, com finalidade cultural, inclusiva e estrutura democrática. Os objetivos do Cineclube, entre outros, são refletir sobre a linguagem do cinema, possibilitar a experiência fílmica como ferramenta de educação, estimular o desenvolvimento do pensamento com crítico sobre o que se vê e viabilizar ações concretas de intercâmbio entre cineclubistas, realizadores, pesquisadores, críticos e pessoas que se interessam pelo cinema. Para montar um cineclube na escola, é só dar o primeiro passo. Muitas pessoas gostam da ideia, mas não têm coragem para tomar a iniciativa. Para começar, é importante falar com a direção da escola e os demais professores para organizar quem vai fazer e trazer o quê – equipamentos, pipoca, suco, etc. Outra importante ação é escolher um lugar na escola para instalar o cineclube a fim de que ocorram sessões periódicas de exibição de filmes, com data e local, normalmente fixos, fora do período de aula. Vale a pena conhecer a sala de cinema e a programação do Cineclube EEMABA – Escola Estadual Ministro Alcindo Bueno da Silva, à Rua Cel. Luiz Leme, 381-­‐Jardim Santa Rita, Bragança Paulista. A inserção de um Cineclube ou a exibição regular de filmes na escola não significa instituir concorrência com as produções textuais, tampouco abandonar os outros modos de produção de imagens. Ao contrário, deve significar a ampliação de possibilidades de articulação, informação e interação de estudantes e professores com o mundo da cultura visual em suas múltiplas formas de expressão e fluxos de informação. É necessário que os ambientes educativos estejam abertos aos trânsitos possíveis entre os modos variados de construção do saber, incorporando novas maneiras de produção de conhecimento. Contar com filmes no processo educativo é 20 Os Cineclubes nasceram como resposta às necessidades que as salas comerciais não atendiam, ou seja, a fruição do filme e a democratização do acesso. Assumiram, assim, diferentes práticas conforme o desenvolvimento das sociedades em que se instalaram. Assumiram uma forma de organização institucional única que os distingue de qualquer outra. O trabalho realizado pelos Cineclubes diz respeito a exibir cinematografias que não estariam disponíveis ao público de outra maneira. No Brasil o Cineclubismo inicia oficialmente em 1928, com o Chaplin Club no Rio de Janeiro. Com o passar do tempo tantos eram os espaços que foram necessários manter essa rede que se formava, diante disso, foi criado o CNC – Conselho Nacional de Cineclubes, em 1961 (hoje denominado Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros), uma entidade que busca o desenvolvimento das políticas públicas para o audiovisual, participando das ações e propondo espaços para a expansão da ação Cineclubista.

32

material educativo para professores


uma maneira de ver o mundo com outros olhares, de ampliar possibilidades de experiência estética, numa clara contribuição para a formação cultural de crianças e jovens. Afinal, como diz em entrevista Ismail Xavier (2008:14): “um cinema que educa é aquele que (nos) faz pensar não somente sobre o cinema em si mesmo, mas, igualmente, sobre as variadas experiências que ele coloca em foco”.

33

material educativo para professores


OUVIR crianças, adolescentes, adultos; para VER cinema, OLHAR cultura Gisa Picosque

ENTÃO, Como sujeitos separados, a educação e a cultura falam de si e entre si coisas distintas. A educação, para dentro de suas paredes, organizadas por séries, etapas, fases, especialidades, traz a cultura – ciência, artes – oficial ou oficiosa embalada pela pergunta: é adequada para que nível? Tradicionalmente os conteúdos da escola já vêm pré-­‐selecionados – aprende-­‐se tal coisa em tal série, em tal curso, para alunos de tal idade, de tal formação [...} A cultura produz e também se reproduz, faz nascer, renascer o conhecimento, as sabedorias, mostra novamente o antigo, demonstra o novo, o saber-­‐fazer dos homens. É sempre contemporânea do presente, até mesmo quando expõe o velho, a cultura que já foi. Ela se expõe, ao mesmo tempo, para a produção e consumo, independente da faixa etária, formação, pré-­‐requisitos. Deixa-­‐se ver, ouvir, falar, comer, mexer, usar por consumidores de diferentes idades culturais e gosto [...] Milton José de Almeida21

A fala do teórico Milton José de Almeida, em seu livro Imagens e sons, convida a pensar sobre uma questão inquietante: a falta de sintonia entre cultura e escola. Enquanto a escola trabalha a questão cultural pelo viés da tradição escrita, a cultura contemporânea tem na produção e difusão imagéticas seu fenômeno central. De certa forma, o que Almeida nos aponta é o descompasso entre os conteúdos escolares, que não estão dando conta de uma educação voltada aos sentidos produzidos na imersão em um mundo de imagens, e a cultura contemporânea, que é ancorada no binômio tecnologia-­‐imagem. Ou seja, a cultura está presente na escola, pois é construída por atores sociais, mas o que Almeida chama atenção é admitir somente a centralidade da escrita. 21

ALMEIDA, M. J. Imagens e sons: a nova cultura oral. 3. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2004, p.14.

34

material educativo para professores


É nesse contexto que acontece o Cineclube na Escola, no projeto Imagens Vivas. Sendo assim, alguns professores podem enxergar a ação do Cine clube, simplesmente como possibilidade de professores e alunos terem momentos excepcionais de diversão ou um período de tempo livre que rompe o cotidiano escolar, ou ainda, um antídoto contra a lógica do trabalho. De certo modo, o Cineclube pode promover tudo isso, já que é da natureza da arte o prazer estético e, muitas vezes, o sentimento de alegria é vivenciado pelo espectador por meio da relação entre ele e os personagens e a imagem projetada na tela. É interessante observar que no Cineclube as crianças, os jovens e os adultos participam como plateia e, talvez, alguns tenham pela primeira vez uma experiência estético-­‐ cultural do cinema, porque ainda não tiveram acesso a essas formas de prática cultural. Ou, então, para muitos o acesso não seja habitual, embora estejam imersos num mundo midiático, interagindo especialmente com a televisão, como explicitado anteriormente por Almeida. Nesse contexto, de que modo provocar a ampliação de repertório dos alunos, para além de simplesmente assistirem passivamente o filme em exibição? Há uma preocupação no projeto Imagens Vivas para que o Cineclube não seja um simples consumo de arte pelo público; mas sim um encontro mais aprofundado entre espectadores e a arte, de modo que educação e cultura ocupem o mesmo espaço. Para isso, é imprescindível uma preparação dos alunos para lerem e dialogarem com os filmes. Porém, esta preparação nada tem a ver com a transmissão de conhecimentos intelectuais sobre o cinema, explicações sobre a sinopse do filme e tampouco, a leitura pretende “compreender o que o artista quis dizer”. Nesta preparação, espera-­‐se provocar a sensibilidade e a disponibilidade à experiência estética; pois se é o espectador quem na realidade cria o filme, como defende a estética da recepção, ele precisa estar aberto e disponível para tal. Por isso, é imprescindível a preparação dos alunos antes de ver o filme e é indispensável pós filme que aconteça uma conversa para mover a apreciação do que foi visto, a fim de compartilhar as leituras e desdobrar os sentidos elaborados pelos alunos.

35

material educativo para professores


o professor(a) espectador na mediação Atuar de modo associado não é um desafio corriqueiro, nem para artistas, nem para docentes. Para que uma verdadeira atuação em parceria aconteça é indispensável que cada um seja capaz de apreender plenamente o ponto de vista do outro; é só quando as competências e olhares se cruzam que a aliança se torna efetiva. Ela implica, entre outras disponibilidades, a de ser capaz de se despir de certezas já conquistadas e se dispor a uma aventura inédita. Maria Lúcia de Souza Barros Pupo22

O professor(a) é aquele que está mais próximos dos alunos e é ele que mantém uma relação de processo educativo. O professores(a) é assim um intercessor(a) importante que pode fazer acontecer o contato, o contágio dos alunos com o cinema e contribuir para a construção da experiência estética dinamizada por meio da mediação cultural. Por outro lado, a própria pessoa-­‐professor(a) é sempre também um aprendiz-­‐ espectador quando tem encontros com a arte. Nessa condição, a pessoa-­‐professor(a) também vive a experiência estética e, a partir dela, as transformações sensíveis e cognitivas que elabora, pois a experiência como espectador, assim como toda e qualquer experiência estética, é sempre pessoal, única e intransferível. E, o conhecimento que podemos extrair dessa experiência não é o conhecimento de algo em si, mas sim da consciência sobre o que é vivido. Para dar conta desse termo tão complexo, a experiência, é preciso clarear o significado de “experiência” neste texto e como ele representa a própria conquista de um saber. O pensamento do filósofo Jorge Larrosa, nos ilumina. Ele diz, a experiência é “aquilo que nos passa, ou que nos toca ou que nos acontece, e ao passar-­‐nos nos forma e transforma". [o saber da experiência seria:] “... o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao largo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não

22

BARROS PUPO, M.L.de S. Mediação Artística, uma tessitura em processo. Revista Urdimento, N. 17, setembro de 2011, p. 121. Disponível em <http://www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento/2011/index_17.html>

36

material educativo para professores


se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-­‐sentido do que nos acontece”.23 A lição larrosiana, nos ajuda a pensar sobre a experiência de espectador como relação entre experiência e pensamento, como produção de sentido ao que nos acontece. Experiência como o que nos passa, ou que nos acontece, o que nos toca, observando que, embora diversas coisas estejam sempre acontecendo, vivemos tempos em que nada nos toca. De forma ainda mais ampla, o que é perceptível ao espectador é dessa maneira experimentado e pensado. Na fusão do sensível com o inteligível emerge os sentidos que damos a este acontecido em nós na experiência estética de encontro com a arte e a cultura. Pode ser que neste momento, há professores que ao fazer a leitura deste texto estejam pensando: como posso fazer a mediação cultural de filmes se não conheço os saberes do cinema, se não sou professor de arte? Frente a essas perguntas, cabe trazer aqui, O mestre ignorante do filósofo francês Jacques Rancière24. Nesse livro, Rancière faz uma reflexão sobre a teoria e o destino de Joseph Jacotot, um pedagogo francês que em 1818 pretendeu se afastar do cotidiano dos seus trinta anos de experiência pedagógica ao se deparar com um grupo de estudantes, a maioria dos quais não sabia o francês; um pedagogo desacomodado, desajeitado pela impossibilidade da transmissão, da explicação e da tranquilizadora e aparente compreensão, e que ignorava por completo o idioma holandês dos seus alunos. Jacotot não sabia a língua dos alunos. Os alunos não sabiam a língua de Jacotot. Não havia, assim, uma língua comum em que pudessem estabelecer uma situação educacional. O ato de receber a palavra do mestre era impossível. Nada podia ser explicado, nada podia ser compreendido. O que marca a linha educacional adotada por esse mestre é justamente o fato de colocar-­‐se em situações em que sua própria ignorância configura-­‐se como marca fundamental do processo instaurado. Naquela época havia sido publicada uma versão bilíngue de As Aventuras de Telêmaco, de Fénelon, um dos romances franceses mais 23

LARROSA, J. Nota sobre a experiência e o saber da experiência. In: Leituras -­‐ SME textos subsídios ao trabalho pedagógico das unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas/Fumec, n. 04, jul. 2001 24 Jacques Rancière, filósofo, professor emérito de Estética e Política da Universidade Paris VII (Saint Denis), celebrizou-­‐se internacionalmente como autor de uma obra que entrecruza a estética, a ética e a política. Após rastrear os campos da literatura, das artes visuais e do cinema aportou no universo teatral, dedicando seu olhar às formas cênicas em sua última obra publicada: O espectador emancipado.

37

material educativo para professores


lidos durante o século XVIII, e Jacotot viu ali uma saída, propôs que os alunos lessem o livro e, por conta própria, escrevessem em francês o que pensavam de tudo o que haviam lido. Ou seja, Jacotot pediu aos alunos que aprendessem francês amparados na tradução do texto. Para sua surpresa, a experiência superou as expectativas pela compreensão significativa do texto pelo grupo de jovens, numa língua que não dominavam e privados de explicações sobre os primeiros elementos da língua francesa, sejam eles ortográficos, gramaticais, etc. Os alunos se saíram tão bem quanto seus alunos franceses. Daí parte uma hipótese de extrema força pedagógica e que colocava em questão uma evidência de todo o sistema de ensino: a necessidade de explicações; sozinhos os alunos haviam buscado e combinado as palavras francesas correspondentes às que conheciam, sem explicações sobre ortografia e conjugações. Explicar alguma coisa a alguém parece, antes de mais nada, demonstrar-­‐lhe que não poderia compreender por si só; o que cria uma dependência permanente do mestre, de quem o aluno sempre precisará, e a quem sempre recorrerá para obter as necessárias explicações sobre os novos assuntos. Somente compreenderá aquilo o que lhe for explicado, pois não experimentou entender por si mesmo, do seu modo, concebendo estratégias e táticas próprias de aprendizado. Jacotot, ao perceber que não era o saber do mestre que ensinava o aluno, mas o modo de abordagem do conhecimento dedicou-­‐se, então, a ensinar o que ignorava, e passou a investir em novas tentativas, repetindo propositalmente o que havia descoberto por acaso. Joseph Jacotot agitou o mundo acadêmico ao afirmar que uma pessoa ignorante poderia ensinar a outra pessoa ignorante o que ela mesma não conhecia, proclamando a igualdade de inteligências e exigindo a emancipação intelectual no lugar da sabedoria recebida no que diz respeito à educação das classes mais baixas. Sua teoria caiu no esquecimento em meados do século XIX. O filósofo Jacques Rancière reaviva a teoria nos anos 1980 tanto para pensar o lugar do mestre (ignorante) como do espectador (emancipado) e instigar o debate sobre a educação e suas balizas políticas. Voltando aquela dúvida acima que pode surgir nos professores [como posso fazer a mediação cultural de filmes e espetáculos de teatro ou circo, se não conheço os saberes dessas artes, se não sou professor de arte], para respondê-­‐la podemos fazer uma analogia com o mestre ignorante, de Rancière.

38

material educativo para professores


O trabalho do mestre ignorante é o de destruir a distância; o mestre não é o que nada sabe, mas o que ignora a ignorância do outro, sabendo que ele pode aprender como aprendeu todo o resto. Ou seja, o que o aluno aprende não é aquilo que o professor ensina. Por isso, um professor(a) “ignorante” no assunto arte, pode atuar como mediador(a) cultural, considerando que: • o fazer da/na mediação cultural não está ancorado na explicação sobre o que é ou o que quis dizer o filme exibido; • cada aluno-­‐espectador se sente atraído por um aspecto que lhe interessa mais no filme; pois, de acordo com o campo visual de cada um, por meio dos movimentos realizados pelo seu olhar, há a construção de um percurso singular de atenção, percepção e interpretação; • o aluno-­‐espectador carrega consigo um repertório de ordem social, histórico e cultural, sendo que a interpretação de determinado filme ocorrerá por meio do diálogo entre esse repertório do aluno-­‐espectador e o filme; • o aluno-­‐espectador do filme tem um profundo desejo de encontrar coerência, de compreender, de atribuir um sentido para aquilo que ele assiste e, nesse contexto, a mediação cultural é um modo de provocá-­‐lo na ação pessoal de organizar e fazer uma interpretação a fim de encontrar para si o sentido do foi apreciado. Diante disso, de que modo fazer uma mediação cultural?

a arte de conversar como dispositivo na mediação cultural Cultura é uma longa conversa. Essa é acaso a mais ampla, mais generosa, mais pertinente concepção de cultura. Onde não há conversa, não há cultura. Cultura significa que esta cultura quer conversar com aquela outra que está distante, que parece distante, que surge como longínqua e estranha. Cultura é a ampliação da esfera de presença do ser. Teixeira Coelho25 25

COELHO, T. Política Cultural em nova chave. In.: Revista Observatório Itaú Cultural/OIC -­‐ n. 3 (set./dez. 2007). – São Paulo, SP: Itaú Cultural, 2007, p.20.

39

material educativo para professores


O filósofo Montaigne26, em Ensaios, no capítulo Da arte da conversação, define a conversação como a prática mais agradável e proveitosa do espírito e apresenta-­‐a como um dos mais adequados e naturais meios para o aprendizado: Diz, Montaigne, “O estudo dos livros é um movimento lânguido e fraco que não aquece, ao passo que a conversação ensina e exercita de um só golpe.”27 Na cena pedagógica de Montaigne, existe um aprendizado na conversação gerado a partir da fricção das opiniões, do estranhamento, do embate que alimenta a reflexão pela contraposição de ideias instigantes e geradoras de novos argumentos. Para o filósofo, os consensos são menos produtivos e interessantes, pois desanimam, tornam a conversa “mole”. A boa conversação é enfrentamento de posições no campo das probabilidades mais que o acirramento de “verdades”. Os interlocutores de uma conversação ordenada, apropriada, são generosos e sinceros nesta batalha intelectual, sabem recuar frente ao argumento razoável do contestador; o que indiretamente sugere que o dogmático e o tolo, por não abrirem mão de suas posições, não são bons debatedores. No rastro de Montaigne, defendo a conversa como um dispositivo da mediação cultural, acreditando no valor formativo das práticas de conversação. Conversar na mediação cultural é, assim, um dispositivo gerador de produção pessoal e coletiva de significados sobre arte por meio da participação criativa dos alunos-­‐espectadores, da articulação de suas vozes, percepção e interpretação, de modo que aconteça uma multiplicidade partilhada – conversação recriadamente aberta e inacabada. A partir dessas considerações, podemos perguntar: Que conversa a exibição de filmes pode provocar? Qual seria a conversa que o professor(a) e os alunos poderiam mover em sala de aula, antes e depois do filme? Como seria a condução dessa conversa? Em primeiro lugar, é importante lembrar que é necessário estabelecer em sala de aula um tom de conversa amigável entre professor(a) e alunos-­‐espectadores e que seja permitido mais dúvidas do que de certezas e convicções, tendo nas vivências como espectadores sua melhor matéria prima.

26

Michel de Montaigne, filósofo francês do século XVI, de origem nobre, cuja obra mais celebrada tem como título "Ensaios", destaca em sua produção a necessidade do autoconhecimento e da valorização daquilo que somos, apesar dos modelos e estereótipos sociais e culturais que nos são constantemente impostos. 27 Montaigne, M. (2001) Os Ensaios. Livro III, 8, São Paulo: Martins Fontes, p. 206

40

material educativo para professores


Para mover a conversa na mediação cultural, o professor é um perguntador. É aquele que sabe fazer perguntas sobre o que veem aqueles que vão ver, o que sentem, percebem ou entendem. Para fazer perguntas, é importante que antes o professor(a) se deixe capturar pelo filme; pois só sua leitura pessoal pode levá-­‐lo a descobrir o quê perguntar e como perguntar. Nessa leitura pessoal, olhar do professor(a) não é conteudista; ou seja, buscando o conteúdo do filme de modo a abordá-­‐lo academicamente. Como leitor do filme, o professor(a) é um espectador que vive uma experiência estética e percebe o quê e como foi tocado por essa experiência. Desse modo, o professor(a) atua como mediador(a) cultural nesse encontro com o cinema na escola, movendo um espaço poético, capaz de provocar aos espectadores-­‐ alunos uma apreciação subjetivada, imaginativa, criativa e sensível, tendo o cinema não como texto ou como tema, mas como ato e criação de quem assiste. Para isso, há uma preparação da conversa com os alunos, usando um procedimento batizado de “Pauta do Olhar”. A Pauta do Olhar é um procedimento de mediação, cuja utilização é para intensificar o diálogo do espectador com a obra, por meio de diferentes perguntas-­‐provocadoras. A Pauta do Olhar propõe que o espectador faça uma cartografia de sua experiência estética vivida, desfiando sua fruição, construindo seus percursos próprios, seu próprio saber, de modo que vá escavando de maneira mais cuidadosa e menos superficial as camadas de sentido de sua experiência estética. Ou seja, criar uma pauta do olhar é criar algumas hipóteses de perguntas-­‐ provocadoras que possam desencadear a conversação a partir do que foi visto pelos alunos-­‐espectadores. Cuidadoso, o professor(a) procura não transformar essa hipóteses num roteiro rígido como uma sequência de perguntas tal qual um questionário. Por isso ele é também um leitor das respostas de seus alunos, acompanhando o percurso do olhar que estão fazendo, identificando como eles olham, sentem, pensam e interpretam o que veem, ao mesmo tempo em que vão sendo enriquecidos pela troca de pontos de vista de cada um do grupo. Provocar a conversa, assim, não é fixar-­‐se em perguntas que podem se tornar entediantes ou persecutórias, mas perguntas que saibam puxar a prosa, desvelar as percepções, para que possamos trabalhar sobre elas, alimentá-­‐los, ampliá-­‐los e deixar que a interpretação e significação da experiência estética se concretizem. Claro que um professor conversador-­‐escavador de sentidos possui informação preciosa sobre os

41

material educativo para professores


filmes que serão exibidos; porém o perigo é fazer com que essas informações sejam colocadas como a única e correta interpretação da obra, fechando o sentido. Por isso, cada informação que seja adicionada à conversa vem para provocar novos arranjos nos modos de perceber dos alunos-­‐espectadores. Buscando-­‐se assim renovar o significado das interpretações anteriores, modificando o olhar de modo que cada um ganhe mais liberdade e autonomia para construir suas próprias interpretações. Portanto, a informação se difere da interpretação. A arte de perguntar e responder, a arte de conversar sobre a arte é assim uma experiência amplamente partilhada. Uma “partilha do sensível”, como diz Jacques Rancière, para quem a estética é a “distribuição do sensível”, em que são determinados os modos de articulação entre formas de ação, produção, percepção e pensamento. Estes modos associam-­‐se à sua concepção de “partilha do sensível”. Mas o que partilha quem pergunta? Perguntar é o meio que nos permite chegar ao outro. O caminho das perguntas nos leva ao outro que ao falar, faz a experiência estética que entrou, sair! A escuta da resposta nos pede uma atitude cuidadosa ativada pela curiosidade que dispensa os juízos. Quem pergunta pode iluminar a experiência estética de quem fala, reconfigurando-­‐a; isto é extraindo-­‐a do domínio da opinião e coletando o sentido das respostas como saberes que podem ser pequeninhos, provisórios, mas com potência para fazer parte do acervo do repertório cultural de quem responde. Nessa conversa, não há respostas certas ou erradas, pois não há razão ou critérios para duvidar ou julgar uma experiência estética. O que toca e como toca o espectador, como já foi dito é pessoal, único e intransferível. Mas, certamente, a troca é mediadora, preenche os vazios de sentido, entrelaça os sentidos construídos, gera ressonâncias nas diferentes experiências estéticas presentes numa sala de aula, numa sala de cineclube. A conversação na mediação cultural é um espaço de trocas, de alegria, de estar junto, colhendo indícios, pistas, diferenças de pensamento sobre o filme que se viu. Pois, como diz Ítalo Calvino:28

28

CALVINO,I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p.138.

42

material educativo para professores


Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Em sequência, sem cair na receita fácil, uma orientação para a conversação sobre os filmes exibidos no Cineclube na Escola, do projeto Imagens Vivas.

Puxando a conversa sobre os filmes Gisa Picosque Experiência. Se quisermos iniciar crianças no cinema. Não se deve partir do saber. Não se deve partir da cultura. Não se deve partir da história do filme. É muito importante partir, primeiramente, da experiência direta da travessia do filme. Isto é, na experiência, existe saber. O fato de uma criança ver o filme, sobre o qual, por exemplo, ela não sabe nada. Nós não a preparamos para ver esse filme. Então, ela entra no filme, atravessa o filme, e quando ela sai desse filme, ela tem uma inteligência do filme. Ela tem a maneira pela qual ela compreendeu o filme. A maneira pela qual ela se emocionou. A maneira pela qual ela foi tocada pelo filme. As imagens que ela reteve, por exemplo. Isto é, quando ela vê um filme de uma hora e meia, o que fica. Quais imagens a tocaram pessoalmente. Isto é, é sempre a partir daí que é preciso partir. Se quisermos iniciar jovens ou crianças no cinema, é preciso sempre partir das suas experiências. A experiência da travessia do filme. Não se deve partir de ideias. Não se deve partir de conceitos. Chegaremos às ideias e aos conceitos depois. Isto é, primeiramente, eles dizem. [...] É preciso sempre partir de suas experiências.29 Alain Bergala30 29

BERGALA, A. Alteridade. In.: FRESQUET, A.M.; NANCHERY, C. Abecedário de cinema com Alain Bergala. Rio de Janeiro: LECAV, 2012, DVD. 36`, cor. 30 Alain Bergala. É crítico de cinema, ensaísta, roteirista e diretor de cinema. Em 2000, tornou-­‐se conselheiro de cinema de Jack Lang, Ministro da Educação na França, com quem discutiu e montou um bem-­‐sucedido projeto com artes na educação.

43

material educativo para professores


Argumento para mover a mediação cultural As informações sobre os filmes oferecem um panorama aos professores sobre o que será exibido e, ao mesmo tempo, dá oportunidade para eles pesquisarem e ampliarem seu conhecimento sobre o filme. Porém, há que se ter cuidado com tantas informações sobre o filme. Com base no que sabe, pode ser muito tentador aos professores, querer explicar aos alunos o que eles vão ver na tela, o que seria, na concepção de Rancière (2004:37), a atuação de um professor embrutecedor; ou seja, aquele que não se coloca junto ao aluno para pensar e produzir, mas se antecipa em explicações, tal como um mestre explicador que tem sempre a desigualdade como ponto de partida. Para Rancière, explicar algo a alguém é demonstrar que o sujeito não pode aprender por si só. O mestre emancipador, ao contrário do professor embrutecedor, é aquele que trabalha com o desejo e a contingência da situação, confiando na capacidade intelectual de cada ser humano, fazendo com que o aluno seja forçado a usar a sua inteligência. E como o filósofo diz: “Quem ensina sem emancipar, embrutece”.

Antes de começar a exibição Conversando com os alunos, informe apenas o nome do filme a que irão assistir. Não informe a sinopse do filme. Pergunte o que eles imaginam que irão ver na tela a partir do título do filme. Depois da exibição, pode-­‐se comparar o que esperavam ver com o que viram. Outra possibilidade é escrever o título no centro de um papel pardo onde todos os alunos poderão fazer um desenho relacionado ao título. Após todos desenharem, numa roda de conversa, façam uma leitura das imagens desenhadas. Há semelhanças ou diferenças entre as imagens desenhadas? Do que falam todas as imagens?

Experiência de ver o filme no cine clube Essa experiência consiste em fazer com que os alunos assistam ao filme numa sala escura, protegidos de interferências externas o que possibilita que eles fiquem distanciados da realidade cotidiana, mergulhados no enredo e nas peripécias que envolvem os personagens. Nessa experiência, o “escurinho do cinema” nos absorve; os movimentos na tela e a acústica do ambiente tragam todos os nossos sentidos. Ao apagar as luzes da sala de 44

material educativo para professores


projeção, aceitamos o convite para mergulhar em uma história, que acompanhamos atentamente em cada detalhe de cena. Não assistimos, simplesmente, a um filme: participamos da trama, ora como se na cena estivéssemos em forma invisível, ora como espectador, reagindo aos possíveis desdobramentos da ação. Concordamos, discordamos e protestamos com a condução da história. Avaliamos os personagens e os posicionamos como bons, maus, ingênuos, intrépidos, impulsivos, românticos, etc. Dialogamos com a trama e argumentamos segundo nossos valores, do mesmo modo como podemos ressignificar ou mesmo constituir valores que ainda não faziam parte de nosso repertório cultural. Nesse experiência, frente à narrativa do filme, pode ser que em alguns momentos aconteça dos alunos conversarem comentando o que está acontecendo na tela. Essa forma de conversa não é prejudicial à exibição. Afinal, é comum quando estamos vendo um filme expressar comentários com quem está ao nosso lado na sala de cinema. Outro aspecto importante é deixar rolar o filme até o final dos créditos.

Experiência quando o filme termina Após a exibição, com as luzes acesas na sala de cinema, aguarde alguns minutos para iniciar a conversa a fim de que os alunos-­‐espectadores possam “voltar” para o aqui-­‐ agora da conversação.

45

material educativo para professores


Filmes exibidos no Cineclube nas escolas Foram selecionados os seguintes filmes para exibição nas escolas públicas de Bragança Paulista:

Escolas Municipais – Fundamental I O Fim do Recreio

Duração: 18 min. – Ficção – 2013 – Curitiba/PR Direção: Vinicius Mazzon e Nélio Spréa Elenco: Felipe -­‐ Weslei Eduardo Alves de Lima; Cleber -­‐ Jackson Thierry do Nascimento Neres; Pedro -­‐ Enzo Tommasi; Senador -­‐ Vinicius Mazzon; Apresentadores dos telejornais -­‐ Gustavo Horn; Voz de manchete de jornal -­‐ Nélio Spréa; Diretora -­‐ Kátia Horn; Inspetora -­‐ Greice Barros; Professora -­‐ Luana Godinho Sinopse: No Congresso Nacional, um projeto de lei pretende acabar com o recreio escolar. Ao mesmo tempo, em uma escola municipal de Curitiba, um grupo de crianças pode mudar toda essa história. O filme é protagonizado, em sua maioria, por alunos e professores “reais” da Escola Municipal Lauro Esmanhoto, em Curitiba, deixando o resultado final de braço dado com a realidade, mesmo sendo um produto de ficção. Antes da exibição: A conversa pode começar por meio de um levantamento do repertório fílmico das crianças. Quais são seus filmes preferidos e onde os assistem? Em seguida, sem falar e/ou contar sobre o filme, aqueça o olhar dos alunos-­‐

46

material educativo para professores


espectadores conversando: Quais as brincadeiras de vocês no recreio? Vocês acham importante o recreio? Por quê? Depois da exibição: A conversa agora será um levantamento da apreciação do filme pelos alunos-­‐espectadores. Quais as cenas que mais impressionaram? O que acontece no filme? Porque o senador quer acabar com o recreio? No filme, como mais pessoas ficam sabendo sobre o projeto de lei do senador e iniciam uma mobilização? O que vocês pensam sobre a atitude do Felipe em fazer um vídeo do recreio? O vídeo do Felipe sobre o recreio era uma ficção ou um documentário? Por quê? Vocês já usaram uma câmera de vídeo? O que vocês gostariam de modificar no recreio aqui da escola? O que vocês gostariam de filmar aqui na escola? Tem alguma coisa que vocês não entenderam no filme? Se vocês fossem o diretor do filme, modificariam alguma coisa? O que? Este é um bom filme para crianças assistirem? Por quê? Esse filme deu vontade de fazer alguma coisa? Brincar, inventar, contar, escrever uma história, desenhar, filmar... O que vocês preferiam fazer? Disque Quilombola

Duração: 13 min. – Documentário – 2012 – São Paulo/SP Direção: David Reeks Sinopse:. O documentário é um convite para que meninas e meninos brasileiros conheçam as populações rurais negras do Espírito Santo a partir dos olhos das crianças e de uma brincadeira: o telefone sem fio.

47

material educativo para professores


As conversas no telefone de lata aconteceram entre dois grupos que não se conheciam: as crianças da comunidade quilombola de São Cristóvão e as do morro São Benedito. Muitas famílias do morro tiveram que deixar suas terras na região dos quilombolas há algum tempo e foram morar no São Benedito. As crianças do morro, netas de quilombolas, já não conheciam mais a origem dos avós. Os dois grupos “se encontraram” nas filmagens feitas nos dois lugares. A equipe fez a mediação entre as crianças quilombolas e as do morro e descobria o que uns queriam saber dos outros, daí foram surgindo muitas das perguntas do filme. Aos poucos, os dois grupos vão descobrindo (e revelando) suas raízes e origens quilombolas, nas batidas do jongo ou no preparo do beiju, por exemplo. Mas as crianças retratadas mostram principalmente que há mais similaridades do que singularidades na infância. Mas o que é quilombola? O termo tem uma forte ligação com a luta pela terra. Segundo a Fundação Cultural Palmares, “quilombolas são descendentes de africanos escravizados que mantêm tradições culturais, de subsistência e religiosas ao longo dos séculos. Um levantamento da Palmares mapeou 3.524 comunidades quilombolas no Brasil.” Antes da exibição: quem já brincou de telefone sem fio? se vocês estivessem brincando de telefone sem fio com outras crianças que moram num lugar longe de vocês, quais perguntas vocês fariam para conhecer essas crianças? Depois da exibição: agora que conhecemos as crianças do filme, em que elas são iguais ou diferentes de vocês? porquê as crianças do filme são chamadas de quilombolas?

48

material educativo para professores


Escolas Estaduais – Fundamental II e Ensino Médio O menino e o mundo

Duração 80 min. – animação – 2013 -­‐ SP Direção: Alê Abreu Sinopse: Um garoto mora com o pai e a mãe, em uma pequena casa no campo. Diante da falta de trabalho, no entanto, o pai abandona o lar e parte para a cidade grande. Triste e desnorteado, o menino faz as malas, pega o trem e vai descobrir o novo mundo em que seu pai mora. Para a sua surpresa, a criança encontra uma sociedade marcada pela pobreza, exploração de trabalhadores e falta de perspectivas. Antes da exibição: A conversa pode começar por meio de um levantamento do repertório fílmico dos espectadores. Quais são seus filmes preferidos e onde os assistem? Em seguida, sem falar e/ou contar sobre animação, aqueça o olhar dos espectadores conversando: Vocês já assistiram ou assistem desenho animado? Vocês acham que desenho animado é somente para crianças? Depois da exibição: A conversa agora será um levantamento da apreciação da animação pelos espectadores. Quais as cenas mais impressionantes? O que acontece no desenho animado? Não há diálogos no desenho, isso atrapalha a compreensão? O desenho mostra uma infância sofrida e a busca do pai. Nessa jornada do menino e por meio de seu olhar ingênuo, o que é mostrado sobre a nossa sociedade atual? A trilha sonora, composta por Gustavo Kurlat e Ruben Feffer, conta com um rap de Emicida, a percussão forte de Naná Vasconcelos e a percussão corporal de GEM -­‐ Grupo Experimental de Música e Barbatuque. Quais climas são criados pela trilha sonora? Vocês imaginam como foi feito e animado os desenhos? Para saber mais sobre isso, acesse: http://omeninoeomundo.blogspot.com.br/

49

material educativo para professores


Tem alguma coisa que vocês não entenderam no desenho? Se vocês fossem o diretor do desenho, modificariam alguma coisa? O quê? Este é um bom desenho para adultos assistirem? Por quê? Esse desenho deu vontade de fazer alguma coisa? inventar, contar, escrever uma história, desenhar, filmar... O que vocês preferem fazer?

EJA – Educação de Jovens e Adultos Narradores de Javé

Duração: 100 min. – Drama – 2003 Direção: Eliane Caffé Elenco: José Dumont (Antônio Biá); Nelson Xavier (Zaqueu); Dirce Migliaccio (Esturlana); Matheus Nachtergaele (Souza); Rui Resende (Vado); Nelson Dantas (Vicentino); Mário C. Camargo (Pai de Daniel); Gero Camilo (Firmino); Maurício Tizumba (Samuel); Altair Lima (Galdério); Henrique Lisboa(Cirilo); Orlando Vieira (Gêmeo); Silvia Leblon (Mariadina); Alessandro Azevedo (Daniel); Luci Pereira (Deodora); Roger Avanzi (Outro); Benê Silva (Pai Cariá). Sinopse: Somente uma ameaça à própria existência pode mudar a rotina dos habitantes do pequeno vilarejo de Javé. É aí que eles se deparam com o anúncio de que a cidade pode desaparecer sob as águas de uma enorme usina hidrelétrica. Em resposta à notícia devastadora, a comunidade adota uma ousada estratégia: decide preparar um documento contando todos os grandes acontecimentos heroicos de sua história, para que Javé possa escapar da destruição. Porém, num espaço habitado por

50

material educativo para professores


talentosos contadores de história, mas em sua maioria analfabetos ou semi-­‐ analfabetos, quem escreveria tal documento? Antes da exibição: Apresentando o título do filme, pergunte aos alunos o que eles imaginam que irão ver na tela a partir do título do filme (depois da exibição, pode-­‐se comparar o que esperavam ver com o que viram). De que modo podemos narrar histórias? Existe uma versão oficial da história? Onde essa história oficial é contada? Se a História do Brasil fosse contada pelos negros, seria a mesma História que conhecemos? Teríamos as mesmas datas comemorativas? Depois da exibição: O que mais chamou sua atenção no filme? Quais aspectos e características no filme revelam o brasileiro? Há heróis nesse filme? Quais? Por quê? O filme apresenta conflitos entre a tradição oral e a tradição escrita? A partir do que o filme mostra sobre a origem de Javé, qual seria a importância da memória? Se vocês fossem o diretor do filme, modificariam alguma coisa? O quê? Este é um bom filme para adultos assistirem? Por quê? Esse filme deu vontade de fazer alguma coisa? inventar, contar, escrever uma história, desenhar, filmar... O que vocês preferem fazer?

51

material educativo para professores


Ensino Médio e Universidades

Cine Universidade FATEC – Exibição do curta Crônicas de uma Cidade Flavio Botelho – Diretor Maria Fernanda Carmignotto – Coordenação e Produção Local Foto: Amanda Amaral

Crônicas de uma cidade

Duração: 28 min. – Documentário – SP, 2014 Direção: Flavio Botelho Sinopse: Partindo de uma estrada de ferro desativada para chegar ao primeiro festival de arte do Brasil, crônicas de uma cidade leva um olhar delicado e intimista à trajetória 52

material educativo para professores


de uma cidade do interior de São Paulo. Bragança Paulista é singular nas memórias pessoais de seus interlocutores ao mesmo tempo em que conta a história de tantos outros lugares. Antes da exibição: Informando que o curta é filmado em Bragança Paulista, converse com os alunos sobre o que eles imaginam que o diretor mostra no curta e por quê?. Depois da exibição. O que surpreendeu no curta? Os alunos conheciam as pessoas e suas histórias mostradas no curta? Para os alunos, essas histórias são somente de Bragança Paulista ou podem ser histórias que também acontecem em outras cidades? Por quê? Se os alunos fossem fazer um curta de Bragança, o que gostariam de mostrar?

Curtas produzidos pela comunidade Projeto Memórias Vivas/2013 Em sequência a Crônicas de uma Cidade, são exibidos os curtas-­‐metragens produzidos por alunos da vivência de audiovisual realizada durante a Oficina Prática de curta metragem de julho a setembro de 2013 e inspirados nas intervenções dos artistas Gustavo Godoy, Lilian Amaral e Diogo Granato, fazendo parte do projeto Memórias Vivas. Os curtas são: Memória em Rolo; Objetivos e Diretrizes; Bem vinda Ilusão. Antes da exibição. Conversando com os alunos sobre os títulos dos curtas, que relações eles fazem com a cidade de Bragança Paulista? Para os alunos, qualquer pessoa pode fazer um curta? Depois da exibição. Os curtas mostram quais aspectos de Bragança Paulista? O que os alunos conhecem por meio dos curtas, que não conheciam? O que os curtas despertaram nos alunos sobre a cidade?

53

material educativo para professores


Filmes exibidos no Cineclube Mini MIS

Cineclube Municipal Mini-­‐MIS – Casinha do Lago, Bragança Paulista/SP Foto: Amanda Amaral

Durante a 13ª edição do Festival de Inverno de Bragança Paulista, é inaugurado o Mini-­‐ MIS na Casinha do Lago, para abrigar o cineclube municipal e ser também plataforma de divulgação de artistas locais. O espaço do Mini-­‐Mis, hospedou duas ações do projeto Imagens Vivas: o Cine Diálogo e o Cine Professor.

54

material educativo para professores


Cine Diálogo

O Cine Diálogo é uma ação direcionada à comunidade bragantina, coordenado por Andre La Salvia, que realizou a exibição dos seguintes filmes: Lixo Extraordinário; Vida Sobre Rodas; A Educação Proibida; Ensaio Sobre a Cegueira; Baile Perfumado e Meu Tio.

55

material educativo para professores


Após a exibição, há uma conversa entre os participantes movida pela presença de um convidado ou por meio da mediação de Andre La Salvia.

Cine Professor

O Cine Professor, como o nome já diz, é uma ação específica para os professores como espectadores. A intenção não é relacionar conteúdos por meio dos filmes, mas realizar uma exibição de filmes que não sejam comerciais, a fim de aproximar dos professores,

56

material educativo para professores


outros modos de narrativas cinematográficas. No Cine Professor também após a exibição uma conversa foi movida para os seguintes filmes: Salada Russa em Paris; Eu Maior; Las Acacias; Volver; Baile Perfumado. Também aconteceu no Mini-­‐MIS, o Cine Música, com projeção de filmes mudos musicados ao vivo pela Banda Cheesehead. Proporcionar diferentes níveis da experiência da significação em Cinema, foi a ação da implementação dos diversos modos de Cineclube no projeto Imagens Vivas. Desse modo, foi possível aproximar das diferentes plateias, filmes não comerciais e provocar experiências de: fruição – apropriação espontânea que pode acontecer durante a exibição do filme ou depois da experiência num processo de longo prazo. análise intencional – apropriação conduzida por perguntas que levam a pensar nas formas e conteúdos do filme, afirmando, desequilibrando e reconstruindo hipóteses das ideias da plateia a respeito do filme. narração de experiências relacionando o filme à vida cotidiana – apropriação sugerida por meio de possíveis relações de identificação, diferenciação e inspiração do filme com situações da experiência pessoal da plateia. É difícil identificar os “resultados” destas experiências, embora já sabemos que a potência da zona de fronteira entre o cinema e a educação é pedagógica, estética e politicamente fértil para aprofundar o conhecimento de si e do mundo. É a experiência vivida que nos diz isso!

57

material educativo para professores


Texto Complementar O ato de Criação31 Gilles Deleuze32 Eu gostaria também de formular algumas perguntas. Formulá-­‐las a vocês e formulá-­‐las a mim mesmo. Seria algo como: o que exatamente vocês fazem, vocês, homens do cinema? E eu, o que exatamente eu faço, quando faço ou espero fazer filosofia? Poderia formular a pergunta de outra maneira: o que é ter uma ideia em cinema? Se fazemos ou queremos fazer cinema, o que significa ter uma ideia? O que acontece quando dizemos: "Ei, tive uma ideia"? Porque, de um lado, todo mundo sabe muito bem que ter uma ideia é algo que acontece raramente, é uma espécie de festa, pouco corrente. E depois, de outro lado, ter uma ideia não é algo genérico. Não temos uma ideia em geral. Uma ideia, assim como aquele que tem a ideia, já está destinada a este ou àquele domínio. Trata-­‐se ou de uma ideia em pintura, ou de uma ideia em romance, ou de uma ideia em filosofia, ou de uma ideia em ciência. E obviamente nunca é a mesma pessoa que pode ter todas elas. As ideias, devemos tratá-­‐las como potenciais já empenhados nesse ou naquele modo de expressão, de sorte que eu não posso dizer que tenho uma ideia em geral. Em função das técnicas que conheço, posso ter uma ideia em tal ou tal domínio, uma ideia em cinema ou uma ideia em filosofia. O que é ter uma ideia em alguma coisa? Parto do princípio de que eu faço filosofia e vocês fazem cinema. Admitido isso, seria muito fácil dizer que a filosofia, estando pronta para refletir sobre qualquer coisa, por que não refletiria sobre o cinema? Um verdadeiro absurdo. A filosofia não é feita para refletir sobre qualquer coisa. Ao tratar a filosofia como uma capacidade de "refletir-­‐sobre", parece que lhe damos muito, mas na verdade lhe retiramos tudo. Isso porque ninguém precisa da filosofia para refletir. As únicas pessoas capazes de refletir efetivamente sobre o cinema são os cineastas, ou os críticos de cinema, ou então aqueles que gostam de cinema. Essas pessoas não precisam da filosofia para refletir sobre o cinema. A ideia de que os matemáticos precisariam da filosofia para refletir sobre a matemática é uma ideia cômica. Se a filosofia deve servir para refletir sobre algo, ela não teria nenhuma razão para existir. Se a filosofia existe, é porque ela tem seu próprio conteúdo. Qual é o conteúdo da filosofia? Muito simples: a filosofia é uma disciplina tão criativa, tão inventiva quanto qualquer outra disciplina, e ela consiste em criar ou inventar conceitos. E os conceitos 31

Origem do texto: Especial para a "Trafic" Editoria: MAIS! Página: 5-­‐4 a 5-­‐5. Edição: Nacional TRADUÇÃO: JOSÉ MARCOS MACEDO. 27/06/1999. 32 Gilles Deleuze (1925-­‐1995). É autor de "O Anti-­‐Édipo" e Mil Platôs, entre outros, define a arte como ato de resistência à sociedade de controle nesta palestra (traduzida aqui) a estudantes de cinema em 1987.

58

material educativo para professores


não existem prontos e acabados numa espécie de céu em que aguardariam que uma filosofia os apanhasse. Os conceitos, é preciso fabricá-­‐los. É claro que os conceitos não se fabricam assim, num piscar de olhos. Não nos dizemos, um belo dia: "Ei, vou inventar um conceito!", assim como um pintor não se diz: "Ei, vou pintar um quadro!", ou um cineasta: "Ei, vou fazer um filme!". É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa necessidade _que é uma coisa bastante complexa, caso ela exista_ faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-­‐se em refletir, mesmo sobre o cinema. Eu digo que faço filosofia, ou seja, que tento inventar conceitos. E vocês que fazem cinema, o que vocês fazem? O que vocês inventam não são conceitos _isso não é de sua alçada_, mas blocos de movimento/ duração. Se fabricamos um bloco de movimento/duração, é possível que façamos cinema. Não se trata de invocar uma história ou de recusá-­‐la. Tudo tem uma história. A filosofia também conta histórias. Histórias com conceitos. O cinema conta histórias com blocos de movimento/duração. A pintura inventa um tipo totalmente diverso de bloco. Não são nem blocos de conceitos, nem blocos de movimento/duração, mas blocos de linhas/cores. A música inventa um outro tipo de bloco, também todo peculiar. Ao lado de tudo isso, a ciência não é menos criadora. Eu não vejo tantas oposições entre as ciências e as artes. Se pergunto a um erudito o que ele faz, também ele inventa. Ele não descobre _a descoberta existe, porém não é por meio dela que definimos uma atividade científica como tal_, mas cria como se fosse um artista. Um erudito, coisa bem simples, é alguém que inventa ou cria funções. E ele está sozinho nessa empreitada. Um erudito, na condição de erudito, nada tem a ver com conceitos. É justamente para isso _e felizmente_ que existe a filosofia. Em compensação, existe uma coisa que só o erudito sabe fazer: inventar e criar funções. O que é uma função? Existe uma função sempre que há correspondência uniforme de pelo menos dois conjuntos. A noção de base da ciência _e não desde ontem, mas desde muito tempo_ é a noção de conjunto. Um conjunto não tem nada a ver com um conceito. Sempre que você puser conjuntos em correlação uniforme, você obterá conjuntos e poderá dizer: "Eu faço ciência". Se uma pessoa qualquer pode falar com outra qualquer, se um cineasta pode falar com um homem de ciência, se um homem de ciência pode ter algo a dizer a um filósofo e vice-­‐ versa, é na medida e em função das atividades criativas de cada um. Não que haja espaço para falar da criação _a criação é antes algo bastante solitário_, mas é em nome de minha criação que tenho algo a dizer para alguém. Se eu alinhasse todas essas disciplinas que se definem pela sua atividade criadora, diria que há um limite que lhes é comum. O limite que é comum a todas essas séries de invenções, invenções de funções, invenções de blocos de duração/movimento, invenção de conceitos, é o espaço-­‐tempo. Se todas as disciplinas se comunicam entre si, isso se dá no plano daquilo que nunca se destaca por si mesmo, mas que está como que entranhado em toda a disciplina criadora, a saber, a constituição dos espaços-­‐tempos. Em Robert

59

material educativo para professores


Bresson (diretor francês, 1907), caso bastante conhecido, raramente existem espaços inteiros. São espaços que podemos chamar desconexos. Há, por exemplo, um canto, um canto de um quarto. Depois vemos um outro canto, ou então um pedaço da parede. Tudo ocorre como se o espaço bressoniano se apresentasse como uma série de pequenos fragmentos cuja conexão não está predeterminada. Existem grandes cineastas que empregam, ao contrário, espaços de conjunto. Não digo que seja mais fácil manejar um espaço de conjunto. Mas o espaço de Bresson constitui um tipo de espaço particular. Sem dúvida, ele foi retomado mais tarde, serviu de modo bastante criativo para outros, que o renovaram. Mas Bresson foi um dos primeiros a construir o espaço com pequenos fragmentos desconexos, ou seja, pequenos fragmentos cuja conexão não é predeterminada. E eu diria o seguinte: no limite de todas as tentativas de criação, existem espaços-­‐tempos. É só isso que existe. Os blocos de duração/movimento de Bresson tenderão a esse tipo de espaço, entre outros. A pergunta então é essa: esses pequenos fragmentos de espaço visual cuja conexão não é dada previamente são conectados por meio de quê? Pela mão. Não se trata de teoria nem de filosofia. Não é um processo dedutivo. O que quero dizer é que o espaço de Bresson é a valorização cinematográfica da mão no seio da imagem. A junção de pequenos trechos de espaço bressoniano pelo fato mesmo de serem trechos, pedaços desconexos do espaço, pode ser exclusivamente uma junção manual. Daí a exaustão da mão em todo o seu cinema. Desse modo, o bloco de extensão/movimento de Bresson recebe como característica própria desse criador, desse espaço, o papel da mão, que irrompe em seus limites. Somente a mão é capaz de operar efetivamente as conexões de uma parte a outra do espaço. E Bresson é sem dúvida o mais importante cineasta a ter reintroduzido no cinema os valores táteis. Não só porque ele sabe captar as mãos em imagens admiráveis. Se ele sabe captar admiravelmente as mãos em imagens é porque ele precisa delas. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Mais uma vez, ter uma ideia em cinema não é a mesma coisa que ter uma ideia em outro assunto. Contudo há ideias em cinema que também poderiam valer em outras disciplinas, que poderiam ser excelentes em romances, por exemplo. Mas elas não teriam, absolutamente, os mesmos ares. Além disso, existem ideias no cinema que só podem ser cinematográficas. Não importa. Mesmo quando se trata de ideias em cinema que poderiam valer em romances, elas já estão empenhadas num processo cinematográfico que faz com que elas estejam predestinadas. Esse é um modo de formular uma pergunta que me interessa: o que faz com que um cineasta tenha vontade de adaptar, por exemplo, um romance? Parece-­‐me evidente que é porque ele tem ideias em cinema que fazem eco àquilo que o romance apresenta como ideias em romance. E com isso se dão grandes encontros. Não cogito do problema do cineasta que adapta um romance notoriamente medíocre. Ele pode precisar do romance medíocre, e isso não impede que o filme seja genial; seria interessante abordar essa questão. Mas proponho uma questão diferente: o que acontece quando o romance é um grande romance e revela-­‐se essa afinidade pela qual alguém em cinema tem uma

60

material educativo para professores


ideia que corresponde àquilo que era uma ideia em romance? Um dos casos mais belos é o de Akira Kurosawa (diretor japonês, 1910-­‐1998). Por que ele tem essa familiaridade com Shakespeare e Dostoiévski? Por que é preciso um japonês para entrar em familiaridade com esses autores? Eu sugiro uma resposta que creio tocar um pouco à filosofia. Nos personagens de Dostoiévski, produz-­‐se muitas vezes algo bastante curioso, que pode dizer respeito a um pequeno detalhe. Geralmente, eles são muito agitados. Um personagem sai de casa, desce até a rua e diz: "Tânia, a mulher que amo, me pede ajuda. Vou correndo, ela morrerá se eu não for". Ele desce a escada e encontra um amigo, ou vê um cão atropelado, e esquece, esquece completamente que Tânia o espera, à beira da morte. Ele se põe a falar, cruza com outro camarada, vai até sua casa tomar chá e, de súbito, diz novamente: "Tânia me espera, é preciso que eu vá". O que significa tudo isso? Em Dostoiévski, os personagens são perpetuamente vítimas da urgência e, ao mesmo tempo em que eles são vítimas dessas urgências, que são questões de vida ou morte, eles sabem que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual. E é isso que os paralisa. Tudo se passa como se, na maior urgência _"É um incêndio, é preciso que eu vá"_, eles se dissessem: "Não, existe algo ainda mais urgente. Não moverei um dedo até saber do que se trata". É "O Idiota" (romance de Dostoiévski filmado por Kurosawa). É a fórmula de "O Idiota": "Veja, há um problema mais profundo. Qual problema, não saberia dizer ao certo. Mas me deixe. Tudo pode arder... É preciso encontrar esse problema mais urgente". Isso Kurosawa não aprendeu de Dostoiévski. Todos os personagens de Kurosawa são assim. Eis um belo encontro. Se Kurosawa pode adaptar Dostoiévski, é pelo menos porque pode dizer: "Temos um assunto em comum, um problema em comum". Os personagens de Kurosawa metem-­‐se em situações impossíveis, mas atenção: há um problema mais urgente. E é preciso que eles saibam qual é esse problema. "Viver" é talvez o filme de Kurosawa que vá mais longe nesse sentido. Mas todos os seus filmes vão nesse sentido. "Os Sete Samurais", por exemplo: todo o espaço de Kurosawa depende dele, é necessariamente um espaço oval, castigado pela chuva. Em "Os Sete Samurais", os personagens são pegos numa situação de urgência: eles aceitaram defender o vilarejo e do começo ao final do filme eles são afligidos por uma questão mais profunda, que será proferida no final, pelos chefes dos samurais, quando eles partem: "O que é um samurai? O que é um samurai, não em sentido genérico, mas naquela época?". Alguém que não serve mais para nada. Os senhores não precisam mais deles, e os camponeses logo saberão defender-­‐se sozinhos. Durante todo o filme, em que pese a urgência da situação, os samurais são atormentados por essa questão, digna de "O Idiota": nós, samurais, o que somos nós? Uma ideia em cinema é desse tipo tão logo se ache empenhada num processo cinematográfico. Então você poderá dizer: "Tive uma ideia", mesmo se você a toma emprestada de Dostoiévski. Uma ideia é algo bem simples. Não é um conceito, não é filosofia. Mesmo que de toda ideia se possa tirar, talvez, um conceito. Penso em Vincente Minnelli (diretor norte-­‐americano, 1902-­‐1986), que tem uma ideia extraordinária sobre o sonho. Ela é bem simples, podemos verbalizá-­‐la, e está empenhada num processo cinematográfico que é a obra

61

material educativo para professores


de Minnelli. A grande ideia de Minnelli sobre o sonho é que ele diz respeito sobretudo àqueles que não sonham. O sonho daqueles que sonham diz respeito àqueles que não sonham. Por que isso lhes diz respeito? Porque sempre que há o sonho do outro, há perigo. O sonho das pessoas é sempre um sonho devorador, que ameaça nos engolir. Que os outros sonhem é algo perigoso. O sonho é uma terrível vontade de potência. Cada um de nós é mais ou menos vítima do sonho dos outros. Mesmo quando se trata da jovem mais graciosa, ela é uma terrível devoradora, não por sua alma, mas por seus sonhos. Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês forem apanhados no sonho do outro, estarão em maus lençóis. Uma ideia cinematográfica é, por exemplo, a famosa dissociação entre o ver e o falar no cinema relativamente recente, quer seja _tomo os casos mais conhecidos_ Hans Juergen Syberberg (diretor alemão), os Straub (os diretores franceses Jean-­‐Marie Straub e sua mulher Danièle Huillet), Marguerite Duras (escritora e diretora francesa, 1914-­‐1997). O que há de comum e por que é uma ideia propriamente cinematográfica fazer uma disjunção entre o visual e o sonoro? Por que isso não pode ser feito no teatro? Poder, pode, mas então, salvo se o teatro dispuser de meios, se dirá que ele a tomou de empréstimo ao cinema. O que não é necessariamente ruim, mas assegurar a disjunção entre ver e falar, entre o visual e o sonoro, é uma ideia tão cinematográfica que isso responderia à questão de saber em que consiste, por exemplo, uma ideia em cinema. Uma voz fala de alguma coisa. Fala-­‐ se de alguma coisa. Ao mesmo tempo, nos fazem ver outra coisa. E enfim, aquilo de que nos falam está sob aquilo que nos fazem ver. Esse terceiro ponto é importantíssimo. Logo se vê que o teatro não teria acesso a tal expediente. O teatro poderia adotar as duas primeiras proposições: nos falam de alguma coisa e nos fazem ver outra. Mas que aquilo de que nos falam põe-­‐se ao mesmo tempo sob aquilo que nos fazem ver _e isso é imprescindível, se não as duas primeiras operações não teriam nenhum sentido ou interesse_ podemos dizê-­‐lo de outro modo: a palavra se ergue no ar, ao mesmo tempo em que a terra que vemos afunda-­‐se cada vez mais. Ou ainda: ao mesmo tempo que essa palavra se ergue no ar, aquilo de que ela nos falava afunda-­‐se na terra. O que é isso senão aquilo que somente o cinema pode fazer? Não digo que ele o deva fazer, mas que o cinema o fez duas ou três vezes, que foram grandes cineastas que tiveram essa ideia. Eis uma ideia cinematográfica. Ela é prodigiosa porque assegura ao âmbito do cinema uma verdadeira transformação dos elementos, um ciclo que, de um golpe, capacita o cinema a fazer eco a uma física qualitativa dos elementos. Isso produz uma espécie de transformação, uma grande circulação de elementos no cinema a partir do ar, da terra, da água e do fogo. Em tudo o que eu digo, a história não é suprimida. A história está sempre presente, mas o que nos espanta é o fato de a história ser tão interessante pela própria razão de ter tudo isso atrás dela e com ela. Nesse ciclo que acabo de definir tão rapidamente _a voz se ergue ao mesmo tempo que aquilo de que nos fala, voz afunda-­‐se na terra_ vocês reconheceram a maioria dos filmes dos Straub, o grande ciclo dos elementos dos Straub. O que vemos não é mais do que a terra deserta, mas essa terra deserta é como grávida daquilo que ela tem debaixo. E vocês me dirão: mas o que sabemos daquilo

62

material educativo para professores


que ela tem debaixo? Ora, justamente aquilo de que nos fala a voz. Como se a terra se arqueasse em razão daquilo que a voz nos diz, e que vem tomar assento sob a terra em seu tempo e em seu lugar. E, se a voz nos fala de cadáveres, de toda a linhagem de cadáveres que vem tomar assento sob a terra, nesse momento, o menor frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que vocês têm sob os olhos, o menor sulco nessa terra adquire todo o seu sentido. Costumo dizer, em todo caso, que ter uma ideia não é da natureza da comunicação. É nesse ponto que gostaria de chegar. Tudo de que se fala é irredutível a toda comunicação. Mas não se aflijam. O que isso quer dizer? Num primeiro sentido, a comunicação é a transmissão e a propagação de uma informação. Ora, o que é uma informação? Não é nada complicado, todos o sabem: uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Em outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem. As declarações da polícia são chamadas, a justo título, comunicados. Elas nos comunicam informações, nos dizem aquilo que julgam que somos capazes ou devemos ou temos a obrigação de crer. Ou nem mesmo crer, mas fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para crer, mas para nos comportar como se crêssemos. Isso é informação, isso é comunicação; à parte essas palavras de ordem e sua transmissão, não existe comunicação. O que equivale a dizer que a informação é exatamente o sistema do controle. Isso é evidente, e nos toca de perto hoje em dia. É verdade que entramos numa sociedade que podemos chamar sociedade de controle. Um pensador como Michel Foucault analisara dois tipo de sociedades bastante próximas de nós: as sociedades de soberania e as sociedades disciplinares. A passagem típica de uma sociedade de soberania para uma sociedade disciplinar coincidiu, segundo ele, com Napoleão. A sociedade disciplinar definia-­‐se _as análises de Foucault, com todo mérito, por causa disso tornaram-­‐se famosas_ pela constituição de meios de enclausuramento: prisões, escolas, oficinas, hospitais. As sociedades disciplinares tinham necessidade disso. Essa análise engendrou ambiguidades em certos leitores de Foucault, pois se pensou que essa era sua última palavra. Evidentemente que não. Foucault jamais pensou, e ele o disse com bastante clareza, que as sociedades disciplinares fossem eternas. Antes, ele pensava que entraríamos num tipo de sociedade nova. É claro que existe todo tipo de resquício de sociedades disciplinares, que persistirão por anos a fio, mas já sabemos que nossa vida se desenrola numa sociedade de outro tipo, que deveria chamar-­‐se, segundo o termo proposto por William Burroughs _e Foucault tinha por ele uma viva admiração, de sociedades de controle. Entramos então em sociedades de controle que diferem em muito das sociedades de disciplina. Aqueles que velam por nosso bem não têm ou não terão mais necessidade de meios de enclausuramento. Hoje todos eles, as prisões, as escolas, os hospitais, são temas de discussão permanente. Não seria melhor estender o tratamento aos domicílios? Sim, esse é sem dúvida o futuro. As oficinas, as fábricas não comportam mais empregados. Não seria melhor regimes de empreitada e de trabalho a domicílio? Não existem outros meios de punir os infratores senão a prisão? As sociedades de controle não adotarão mais os meios de enclausuramento. Nem

63

material educativo para professores


mesmo a escola. Vale a pena investigar os temas que nascem, que se desenvolverão em 40 ou 50 anos e que nos explicam que o espantoso seria conjugar escola e profissão. Seria interessante saber qual será a identidade da escola e da profissão ao longo da formação permanente, que é o nosso futuro e que não implicará necessariamente o reagrupamento de alunos num local de clausura. Um controle não é uma disciplina. Com uma estrada não se enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas, multiplicam-­‐se os meios de controle. Não digo que esse seja o único objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e "livremente", sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro. Suponhamos que a informação seja isso, o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade. O que a obra de arte pode ter a ver com isso? Não falemos de obra de arte, mas digamos ao menos que existe a contra-­‐informação. Em países sob ditadura cerrada, em condições particularmente duras e cruéis, existe a contra-­‐informação. No tempo de Hitler, os judeus que chegavam da Alemanha e que foram os primeiros a nos contar sobre os campos de extermínio faziam a contra-­‐ informação. O que é preciso constatar é que a contra-­‐informação nunca foi suficiente para fazer o que quer que fosse. Nenhuma contra-­‐informação foi capaz de perturbar Hitler. Salvo num caso. Que caso? Isso é de vital importância. A única resposta seria que a contra-­‐informação só se torna eficaz quando ela é _e ela o é por natureza_ ou se torna um ato de resistência. E o ato de resistência não é nem informação nem contra-­‐ informação. A contra-­‐informação só é efetiva quando se torna um ato de resistência. Qual a relação entre a obra de arte e a comunicação? Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência. Qual a relação misteriosa entre uma obra de arte e um ato de resistência, uma vez que os homens que resistem não têm nem o tempo nem talvez a cultura necessários para relacionar-­‐se minimamente com a arte? Não sei. André Malraux (escritor e diretor francês, 1901-­‐1976) desenvolve um belo conceito filosófico: ele diz uma coisa bem simples sobre a arte, diz que ela é a única coisa que resiste à morte. Voltemos ao começo: o que fazemos quando fazemos filosofia? Inventamos conceitos. Eu considero esta a base de um belo conceito filosófico. Reflitamos... O que resiste à morte? Basta contemplar uma estatueta de 3.000 anos antes de Cristo para descobrir que a resposta de Malraux é uma boa resposta. Poderíamos dizer então, de forma mais tosca, do ponto de vista que nos interessa, que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo. O que é ter uma ideia em cinema? Tomem o caso, por exemplo, dos Straub quando operam essa disjunção entre voz sonora e imagem visual, que eles tomam da seguinte maneira: a

64

material educativo para professores


voz se ergue, se ergue mais e mais, e aquilo de que ela nos fala baixa sob a terra nua, deserta, que a imagem visual estava nos mostrando, imagem visual que não tinha nenhuma relação direta com a imagem sonora. Ora, qual é esse ato de fala que se ergue no ar enquanto seu objeto afunda na terra? Resistência. Ato de resistência. E em toda a obra dos Straub, o ato de fala é um ato de resistência. De "Moisés e Aarão" ao último Kafka ("América", romance filmado por Straub), passando por _não cito pela ordem_ "Não Reconciliados" ou Bach ("Crônica de Anna Magdalena Bach"). O ato de fala de Bach é sua música, que é um ato de resistência, luta ativa contra a repartição do profano e do sagrado. Esse ato de resistência na música culmina num grito. Assim como há um grito no "Woyzeck" (peça do alemão Georg Büchner de 1836), há um grito em Bach: "Fora! Fora! Ide embora, não vos quero ver!". Quando os Straub o põem em relevo, esse grito, o de Bach ou o da velha esquizofrênica de "Não Reconciliados", tudo isso há de testemunhar um duplo aspecto. O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens. Qual a relação entre a luta entre os homens e a obra de arte?A relação mais estreita possível e, para mim, a mais misteriosa. Exatamente o que Paul Klee queria dizer quando afirmava: "Pois bem, falta o povo". O povo falta e ao mesmo tempo não falta. "Falta o povo" quer dizer que essa afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que ainda não existe nunca será clara. Não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe. Copyright "Trafic". Tradução de José Marcos Macedo.

65

material educativo para professores


Referências Bibliográficas ALMEIDA, Milton José. Imagens e sons: a nova cultura oral. São Paulo: Cortez Editora, 2004 ANDRADE PEREIRA, Marcelo de. Pedagogia da Performance: do uso poético da palavra na prática educativa. Revista Educação & Realidade, vol. 35, núm. 2, maio-­‐ agosto, 2010, p. 140. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS. BARROS, José Marcio. Mediação, formação, educação: duas aproximações e algumas proposições. In.: Revista Observatório Itaú Cultural : OIC. -­‐ N. 15 (dez. 2013/maio 2014). – São Paulo: Itaú Cultural, 2013, p. 8-­‐14. Disponível em: http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-­‐ content/uploads/2014/01/Revista_observatorio_15_ISSUU-­‐1.pdf. BARROS PUPO, M.L.de S. Mediação Artística, uma tessitura em processo. In.: Revista Urdimento, N. 17, setembro de 2011. Disponível em <http://www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento/2011/index_17.html> BERGALA, Alain. A hipótese-­‐cinema. Pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink -­‐ CINEADLISE-­‐FE/UFRJ, 2008. __________. Alteridade. In.: FRESQUET, A.M.; NANCHERY, C. Abecedário de cinema com Alain Bergala. Rio de Janeiro: LECAV, 2012, DVD. 36`, cor. CALVINO,Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras, 1990. COELHO, Teixeira. Política Cultural em nova chave. In.: Revista Observatório Itaú Cultural/OIC -­‐ n. 3 (set./dez. 2007). – São Paulo, SP: Itaú Cultural, 2007. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992, FANTIN, Monica. Crianças, Cinema e Educação: além do arco-­‐íris. São Paulo: Annablume, 2011. FRAGOSO, S. Situação TV. In MALDONADO, Alberto Efendy et al. (Org.). Mídias e Processos Socioculturais. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2000. FRESQUET, Adriana. Cinema e Educação: reflexões e experiências com professores e estudantes da educação básica, dentro e “fora”da escola. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. (Coleção Alteridade e Criação, 2). GARCIA CANCLINI, Nestor. Leitores, espectadores e internautas. São Paulo: Iluminuras, 2008. GAUDREAULT, André. A narrativa cinematográfica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009. LA SALVIA, André Luis. As Relações entre Imagens: um estudo dos conceitos do cinema para Gilles Deleuze. Rio de Janeiro, RJ: Livros Ilimitados, 2012

66

material educativo para professores


LARROSA, Jorge. Nota sobre a experiência e o saber da experiência. In: Leituras -­‐ SME textos subsídios ao trabalho pedagógico das unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas/Fumec, n. 04, jul. 2001 MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2013. MELO, João Batista. Lanterna Mágica: infância e cinema infantil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios. Livro III, 8, São Paulo: Martins Fontes, 2001. MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Relógio D´Água, 1997. PAGLIA, Camille. Imagens Cintilantes: uma viagem através da arte desde o Egito a Star Wars. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014. PARENTE, André (Org.). Cinema/Deleuze. Campinas/SP: Papirus, 2013. RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. RIVERA LETELIER, Hernán. A contadora de filmes. São Paulo: Cosac Naify, 2012. TURNER, Graeme. Cinema como prática social. São Paulo: Summus, 1997. XAVIER, Ismail. Um Cinema que “Educa” é um Cinema que (nos) faz Pensar. Revista Educação e Realidade. v.33, n.1, jan./jun. 2008.

67

material educativo para professores


Ficha Técnica Projeto IMAGENS VIVAS

GESTÃO CULTURAL

PARCERIA

COORDENAÇÃO E PRODUÇÃO LOCAL

COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA

Rizoma Cultural Gisa Picosque

REALIZADORES CONVIDADOS

Rodrigo Marcondes Paulo Fehlauer Diego Lajst Juliana Nadin

ARQUITETOS CONVIDADOS/ VIDEOINSTALAÇÃO

MONITORES/ VIVÊNCIAS DE COCRIAÇÃO

ESTAGIÁRIA

EDUCADORES MEDIADORES CINECLUBE NAS ESCOLAS

MEDIAÇÃO CINE DEBATE E PROFESSOR

DESIGN GRÁFICO

ASSESSORIA DE IMPRENSA

Com Tato Agência Sociocriativa Claudia Taddei Veridiana Aleixo Vinícius Girnys Nataly Aquino Edith Cultura Maria Fernanda Carmignotto

Marcus Vinícius Santos Cristina Lino Gouvêa Fabrício Vilas Boas Bruno de Castro Covo Railane Moreira Mourão Fabrício Panizza Aline Oliveira André Luis La Salvia Design de Ideias Camila Rebelo Marcelo Azevedo Shel Almeida

68

material educativo para professores


APOIO

AGRADECIMENTOS

Prefeitura Municipal de Bragança Paulista Secretaria Municipal de Cultura e Turismo Secretaria Municipal de Educação Secretaria Municipal de Agronegócios Museu do Telefone Diretoria Regional de Ensino MINI MIS – Casinha do Lago EEMABA EE Cásper Líbero EE Bruno Florenzano EE Profa. Maria José Moraes Salles EE Prof. José Nantala Bádue EE Mathilde Teixeia de Moraes EE Dr. Sílvio de Carvalho Pinto EE Don José Maurício da Rocha João Ruffin Leme de Godoy Fabrício Panizza Virgínia de Souza Bueno Gabrielle Narce Augusto César Olivotto Soares Sthefferson Lima

69

material educativo para professores


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.