zine #1
vernaculando.vermelhopanda.com
editorial
Com muita alegria queremos apresentar a primeira edição da publicação vernaculando. Foram meses de pesquisas, idealização e produção de uma ideia que finalmente se concretizou e tomou forma. Inauguramos a publicação com a produção e distribuição de 160 unidades de zines feitos artesanalmente, por nossas próprias mãos, e que chamamos de “zine zero”, pois antecederam todo o projeto da revista. Os zines circularam em Maringá, Londrina, e alguns foram enviados para Curitiba e São Paulo, e apresentaram trabalhos de colaboradores que muito gentilmente toparam participar. Foram ilustrações, fotografias, textos críticos, que refletiam sobre design e arte, de forma geral. Nessa edição 01 o tema girou em torno do consumo, e contamos com colaborações de pessoas incríveis, que enriqueceram esse diálogo, nos fazendo refletir e chegar em novas formas de pensar e compreender as coisas ao nosso redor. Consumo é um ato frequente na vida de todos: seja um copo de água, uma hortaliça ou um aparelho eletrônico da última geração. O consumo nos rodeia e faz parte de nossa vida, sejamos ou não consumistas. Em última instância, somos todos consumidores. O que propomos aqui é caminharmos rumo à novas ideias e reflexões críticas sobre design e arte, vernaculando sobre assuntos, ou seja, dialogando sobre o vernacular, de forma mais simples e não-acadêmica, sem perdermos o espírito investigativo e o desejo por novas formas de aprendizagem. Fica aqui nossa sincera gratidão a todos que fizeram parte dessa edição e, com isso, nos ajudaram a concretizar essa revista. Nos vemos na próxima edição!
vernaculando
Cofundadora da revista online sobre design e arte vernaculando e do estúdio de design Vermelho Panda.
STEVEN HELLER, “Underground Mainstream”, 2008 (1)
A cultura publicitária somente sobrevive graças ao furto de propriedade intelectual. Os marqueteiros roubam ideias dos visionários, nelas introduzem ligeiras alterações (quando o fazem), e depois as devolvem ao público como se fossem produtos novos. Nesse processo, aquilo que era contestador vira mercadoria, e o que antes era o choque do novo vira a chatice da novidade. Quase sempre, são as manifestações iniciais de culturas marginais ou alternativas que oferecem as maiores possibilidades de aproveitamento, e as suas publicações ou jornaizinhos são os primeiros a serem saqueados.
design é a nãopublicidade Aline Jorge Maringá/PR
Consumir é o que dá sentido à sociedade contemporânea, nessa ânsia eterna por rapidez e quantidade. Em oposição à qualidade de consumo vivida em décadas anteriores, quase que instantaneamente o produto “antigo” é descartado pela novidade. E aqui está o desafio do designer de hoje, inserido nesta sociedade de desejos efêmeros: projetar e pensar produtos para necessidades reais. Nesta sociedade de realizações instantâneas e de felicidade consumidora, o designer possui um papel fundamental. E nisso entra o design bom e responsável: aquele que busca atender às necessidades reais das pessoas, e não seus desejos. E deve-se compreender que necessidade é diferente de desejo. Para Lacan, o desejo humano não está diretamente implicado numa relação pura e simples com o objeto que o satisfaz, mas à sua posição na presença desse objeto e fora de sua relação com ele, de maneira que jamais se esgota. O desejo não deseja satisfação, mas deseja o próprio desejo e, por isso, nunca é saciado. O consumidor é um acumulador de sensações, numa sociedade cada vez mais visual e consumista. É como um círculo vicioso: você deseja o desejo, nunca o alcança, mas continua desejando e achando que seu desejo será algum dia saciado. Projetar em design torna-se assim um desafio cada dia maior, visto que o papel do designer é pensar em necessidades e não em desejos. O designer trabalha 4
5
#1 — Consumo
1 - Heller é designer, escritor, editor e crítico americano. Seu texto Underground Mainstream pode ser lido na íntegra no site Design Observer. 2 - A cultura marginal é uma produção artística que não se enquadra em padrões tradicionais da cultura. É uma arte de conflito e provocação, propondo formas novas de se expressar, incentivando o pensamento crítico. Seja marginal, seja herói, bem disse Hélio Oiticica em 1968. Não a marginalidade sob a ótica da criminalidade, mas a marginalidade como transgressão dos padrões conservadores da sociedade, ou seja, aquilo que caminha em oposição à cultura vigente: a contracultura. 3 - Comunidade estética dita pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman. 4 - Quem afirmou isso foi o designer e educador Victor Papanek. Ele também alertou que o design pode ser uma profissão perigosa se for utilizada apenas como uma ferramenta para projetar produtos tendo como objetivo apenas vender mais.
com o real, o essencial, projetando coisas que, muitas vezes, as pessoas nem sabem que precisam. O que motiva o design a evoluir não são apropriações de elementos alheios, mas sim a inovação. A apropriação de elementos alheios, como a cultura marginal (2) acontece hoje em dia com tanta ousadia e com tanta frequência que já é encarada como algo “natural”. Uma evolução da própria contracultura em uma cultura vigente, talvez? Ou apenas possa ser isso que querem induzir a sociedade a pensar. (Ou seria: a não pensar?) Segundo Heller, a cultura publicitária muitas vezes furta propriedade intelectual, a “transforma” com uma nova roupa e a devolve ao público, esvaziando nesse processo o caráter de crítica, de arte e de valor e preenchendo-a com um caráter meramente comercial, apelando aos desejos. Aqui cabe uma reflexão sobre a similaridade entre a publicidade e a “comunidade estética” falada pelo sociólogo Bauman (3), típica dessa “cultura de cassinos”, caracterizada por sua natureza superficial e transitória, em que ser “cool” e bacana está usurpando o lugar da ética do trabalho para instalar-se como forma mental dominante do capitalismo de consumo avançado. A publicidade persuade pessoas a comprar o que não precisam, com dinheiro que elas não tem, com o objetivo de impressionar pessoas que não se importam. (4) Ela tem o objetivo de divulgar empresas, serviços e produtos mas cada vez mais está se perdendo no grande oceano de concorrências e consumo sem fim. Consumismo é a palavra de ordem da publicidade, e seu sobrenome é persuasão. Quanto mais pessoas consumistas, melhor para a empresa e melhor para a agência (ou para seu dono). O design é a não-publicidade. Ou seja, objetos diferentes com objetivos diferentes. Em sua essência, o design busca satisfazer necessidades reais, enquanto a publicidade promete satisfazer necessidades simbólicas. Cabe à ética orientar os projetos e trabalhos de cada profissional, sendo este responsável pelas escolhas que faz: essas escolhas possuem o poder de transformar vidas, de forma positiva ou negativa.
6
vernaculando
7
Atua como designer gráfico no recém fundado estúdio Indústria Inc. e produz publicações independentes na micro editora Escape Zines. Em seu tempo livre gosta de meditar e tocar guitarra e acredita que o maior tesouro que podemos obter é o autoconhecimento.
Caio Orio São Paulo/SP
#1 — Consumo
vernaculando
Jornalista, crítica de cinema e fuçadora de assuntos gerais. Sonha com um final a la John Hughes, deseja o empoderamento das mulheres de Almodóvar, inveja os diálogos criados por Mike Nichols e torce por uma neurose criativa como as de Woody Allen.
LESTER BURNHAM, Beleza Americana, 1999
Meu nome é Lester Burnham. Essa é minha vizinhança. Essa é minha rua. Essa é minha vida. Eu tenho 42 anos e, em menos de um ano, estarei morto. É claro, eu ainda não sei disso. E, de certa forma, eu estou já morto.
a ruína do sonho americano Cibele Chacon Maringá/PR
Utilizando o recurso da narração post mortem, o filme Beleza Americana já começa se distanciando de uma possível conclusão convencional ao retratar a rotina e destruição de uma família classe média, na qual os estereótipos de uma sociedade doente, vazia e frívola estão estampados. O personagem central, Lester Bunham, sente-se miserável em todos papéis que representa, seja o de marido, de pai ou no trabalho, ainda que aparentemente tenha uma vida considerada perfeita, na melhor definição do “american way of life”. Lester é casado com Carolyn, o retrato da leviandade e da hipocrisia, que adota o lema “Para ter sucesso, deve-se projetar uma imagem de sucesso o tempo todo”, valorizando a aparência acima de tudo. A relação que os dois mantêm se aproxima muito mais de algo matriarcal do que marital de fato. A esposa se impõe o tempo todo sobre o marido, inclusive corporalmente, uma vez que Lester sempre permanece curvado quando estão juntos e o tratamento, por vezes, chega a ser infantil. É o real esgarçamento e exposição do tecido social norte americano, no qual o discurso capitalista do “ter para ser” prevalece sobre outros, legitimando a sociedade de consumo e oprimindo o sujeito. A falta de sentido na vida de Lester começa a ser preenchida com a atração que passa a nutrir pela amiga de sua filha adolescente. A partir disso, ele tem a coragem de sair de uma situação de gozo social e se transforma em sujeito ativo, ainda que de maneira 8
9
#1 — Consumo
completamente desajeitada. O objeto de desejo, na forma de uma cheerleader popular e sedutora – que é a responsável por toda essa mudança -, também sustenta uma falsa imagem de ninfeta com grande apelo sexual e experiência, apenas comprovando os arquétipos que são constantemente colocados no imaginário coletivo, mas que na verdade não são bem assim. A história da família Burham é a metáfora da destruição do ideal americano, com a casa dos sonhos, um quintal amplo, o carro do ano, roupas bonitas e decoração impecável com um sofá de seda italiana. A realidade perfeita que só poderia se traduzir em felicidade, mas que quando vista mais de perto, mostra apenas ruinas de sentimentos, respeito e moral. Uma família tão artificial quanto uma rosa sem espinhos e sem cheiro que, embora seja verdadeira, não traz características essenciais quando se pensa em flores, como é o caso das cultivadas por Carolyn e que dão nome ao longa, as american beauties. O filme é o debute de Sam Mendes na direção, que esmiúça o estilo de vida do subúrbio classe média com planos e enquadramentos que conseguem representar a desconstrução e desestabilização da família protagonista. Beleza Americana analisa os problemas cotidianos de grande parcela da população sem fazer juízo de valores ou tentar resolvê-los, mas sim evidenciar a passividade e naturalização com que se encara e aceita o que é imposto por um sistema. Tudo isso, somado às atuações brilhantes de todo o elenco, com destaque para Kevin Spacey e Anette Bening, que criam personagens estruturalmente perfeitos e complexos que se contrapõem. Enquanto ela, muitas vezes, é estridente, ele não precisa de grandes arroubos para atuar. O longa mostra que a grama do vizinho nem sempre é tão verde e que as aparências não conseguem se sustentar o tempo todo. O retrato foi tão contundente que a crítica a esse estilo de vida dissimulado rendeu cinco Oscars e alçou o filme ao patamar de clássico contemporâneo de maneira mais do que merecida.
vernaculando
Publicitária, mãe, apaixonada por sua família e admiradora do projeto Mama Neném. Trabalha como redatora freelancer, já foi professora universitária, mas descobriu que veio ao mundo mesmo para aprender.
Ideias não faltam para passar pela crise com criatividade e consciência sem aposentar o seu lado fashionista. Dá para personalizar o closet e ter novos looks sem gastar horrores e ainda se divertir com isso, conhecer gente nova, redescobrir o seu estilo. O consumo colaborativo não é uma moda passageira lançada na novela das 9, é uma atitude com status de tendência econômica do século XXI.
a moda, a crise e o guarda-roupa Daiane Catarin Maringá/PR
Olhar vitrines é terapêutico. Compras roupa nova, então, nem se fala. Mas olhe bem no fundo do seu guarda-roupa e diga com sinceridade: quanta coisa você tem guardada que não usa mais ou nunca usou? Existem estatísticas circulando pela internet que afirmam: apenas 20% do que possuímos é usado com frequência. Essa é uma reflexão importante em tempos de crise econômica. Será que não está na hora de repensar o consumo e renovar as atitudes ao invés do guarda-roupa? O ato de comprar mais do que precisa e não usar tudo o que tem, está levando algumas pessoas a rever seus valores e apostar em uma nova postura, que vem a calhar em tempos onde a economia é desfavorável ao fast fashion e às compras desenfreadas. É o “consumo colaborativo”, movimento que começou na Europa e Estados Unidos e está conseguindo cada vez mais adeptos no Brasil. Essa nova maneira de se relacionar com a moda consiste em comprar menos, trocar, doar, compartilhar, alugar e emprestar mais. Para alguns pode parecer démodé, mas saiba que em 2011 a revista Time sinalizou essa atitude como uma das 10 coisas que vão mudar o mundo. Se você quer abraçar essa tendência do consumo colaborativo, a primeira dica é desapegar do preconceito. Porque comprar, vender ou trocar roupas e acessórios seminovos é coisa de gente descolada, cool e que pensa no futuro do planeta, sabia? Um hábito que não é movido apenas pela moeda, mas pela 10
#1 — Consumo
interação e a oportunidade de dar vida nova a algo que estava encostado. Você pode escolher como dar o primeiro passo. Tem mulheres que promovem bazares de troca com as amigas, onde cada uma leva itens que não usa mais e aproveitam para colocar o papo em dia e fazer negócio. Os brechós também são boas alternativas, pois você pode garimpar peças exclusivas e cheias de personalidade por preços bacanas. E pode vender seus desapegos também. Fora os sites que fazem o intermédio entre comprador e vendedor, para você negociar o que quiser com pessoas do país inteiro, sem sair de casa.
11
vernaculando
Jornalistas e produtoras culturais, e idealizadoras e editoras da revista Circular Pocket.
Entre vantagens e desvantagens, o fato é que vivemos em uma sociedade regrada pela lógica do consumo e onde a cultura sempre foi elevada como fundamental nos processos de civilização. Sendo assim, o consumo cultural tem um significado que vai além do acesso a bens de produção artística, mas significa também o acesso à informação e à possibilidade de formação cidadã. Se na sociedade contemporânea é no consumo que as pessoas se expressam e constroem sua identidade, a análise do consumo cultural é essencial para compreender as interações e as distinções sociais.
consumo cultural e espaços sociais: o que forma um consumidor de bens culturais no Brasil? Daniela Giannini Karen Gomes Maringá/PR
Foi com a urbanização, a revolução industrial e o desenvolvimento da indústria cultural que a cultura se desmembrou em produto de consumo. A possibilidade da produção em larga escala universalizou o consumo e levou à grande parte da população uma área de conhecimento antes completamente restrita às elites. Em contrapartida, trouxe um rebaixamento da qualidade dos bens culturais, que passaram de instrumento de livre expressão, crítica e conhecimento – embora muito restritos a determinados grupos – para um produto, com finalidade de lucro, moldado de acordo com as necessidades do mercado. Não há um grande consenso intelectual sobre as consequências positivas e negativas dessa universalização dos bens culturais. Adorno e Horkheimer, teóricos da Escola de Frankfurt, condenam amplamente a indústria cultural e afirmam que ela funciona unicamente como instrumento de alienação, transformando o consumidor em um mero joguete do sistema. Por sua vez, na década de 60, o filósofo francês Edgar Morin escreveu sobre os problemas da cultura de massa – como a padronização e a exaltação de valores individuais transitórios – mas também exaltou algumas vantagens trazidas pelo novo sistema, como a 12
13
#1 — Consumo
criação de um terreno de comunicação entre diversas classes sociais, já que todas teriam o acesso aos mesmos bens. A segunda edição da pesquisa Panorama Setorial da Cultura Brasileira, realizada entre 2013-2014, traz dados que podem não surpreender, mas representam um grande indicador de desigualdade não apenas no acesso aos bens culturais, mas ao direito da formação cidadã por meio da cultura. Os dados coletados em 74 municípios nas cinco regiões do país, apontam que mais da metade dos entrevistados não participaram de nenhuma prática cultural fora de casa no último ano. De forma geral, a pesquisa mostra que o consumo de bens e atividades culturais ainda é realidade distante da maior parte dos brasileiros. A pesquisa também constatou uma forte e decisiva influência familiar nos hábitos culturais, demonstrando que educação e formação são ainda mais determinantes do que a falta de acesso financeiro na criação de consumidores de cultura. Isso significa que, para grande parte da população, é o nível educacional que limita o consumo dos bens culturais. Ter na herança familiar o principal fator de formação de público, perpetua uma organização sistematicamente exclusiva no que diz respeito à cultura. Cabe ao setor público investir na formação artística, priorizando formas de educação que ensinem a ler o mundo simbolicamente e deem condições para o exercício da cidadania, formação de opinião e participação nos processos políticos e sociais oportunizados pelo acesso aos bens culturais. O direito à cultura caminha lado a lado com a geração de direitos sociais, civis e políticos e está diretamente conectado à educação e cidadania. O indivíduo que consome cultura tende a ser mais equilibrado entre perspectivas individuais e coletivas. O acesso aos bens e atividades culturais são essenciais para a ampliação de horizontes e para a formação de cidadãos mais orientados para o bem coletivo.
Pianofuzz Londrina/PR
vernaculando
Pianofuzz é um estúdio de design brasi enxergamos no design uma ferramenta a sociedade e, desta maneira, produzir, homem, levando em consideração a su aspectos.
Respeitamos o design como filosofia m admiramos os designers e os movimen este pensamento. Para nós, este enfoqu o que é produzir design nos dias atuais aprendizado, dedicamos nosso tempo Somos uma equipe aberta ao diálogo, uma ferramenta de execução.
Nossa forma de pensar e produzir é col
14
#1 — Consumo
ileiro fundado em 2009. Nós a para fazer um diálogo histórico com , pensar e compreender o papel do ua produção cultural dentre outros
modernista, da mesma forma que ntos que romperam e evoluíram com ue histórico, ajuda a compreender s. Pianofuzz é um lugar de estudo e para dar vida à ideias e conceitos. ao pensamento criativo, e não apenas
oletiva.
15
14
vernaculando
15
#1 — Consumo
notas sobre trabalho, projeto e consumo
vernaculando
I
Felipe Kaizer São Paulo/SP Designer gráfico e pesquisador independente. Graduou-se pela PUC-Rio em 2006 e participou entre 2009 e 2015 do estabelecimento da equipe interna de comunicação da Fundação Bienal de São Paulo. Cofundou em 2013 o blog Aplataforma. Recentemente deu início a um fórum de discussão sobre design e trabalho chamado Projeto Comum.
Na ficção científica Tron de 1982 programas de computador antropoformizados são repreendidos por sua fé nos usuários. Toda narrativa gira em torno da relação com essas entidades “do outro lado da tela”, que animam a ação das personagens, a ponto de nos perguntarmos ao final do filme, se nós, do lado dos usuários, não estamos em uma situação parecida, à serviço de outras entidades. À semelhança dos programas dotados de consciência religiosa, nós designers aprendemos a repetir o mantra do usuário. Em nome dessa figura singular, pressuposta às nossas atividades, justificamos nossos projetos. Agimos com a pretensão de satisfazer suas necessidades, sejam elas “do estômago ou da fantasia” (1), pois “o usuário e suas necessidades encontram-se no centro de interesse do designer industrial” (2). Assumimos assim nossa relação íntima com o usuário, sem que nenhum de nós o conheça pessoalmente. Podemos dizer que o usuário é o ponto de fuga da prática dos designers. Em torno dele e na sua direção se organizam nossos esforços. No sentido indicado por esse ponto prosseguimos com segurança. Até onde, contudo, não sabemos; pois nada impede que, acompanhando as transformações históricas dessas necessidades, o progresso da nossa produção material se estenda ao infinito. Vemos que o usuário se distancia no horizonte à mesma velocidade que nós. Para onde vai? Só o vemos de costas. E, mesmo quando cremos vê-los nitidamente à nossa frente, ignoramos que não se trata de um usuário, mas de um imenso coletivo heterogêneo, reduzido em nossas considerações à unidade em função de um denominador comum. Insistimos nesse erro possivelmente por dois motivos: - pela extensão indevida à dimensão subjetiva das nossas preocupações com a produção em escala de um objeto a cada vez, como se, ao final, à cada produto correspondesse um usuário. - por objetivar a satisfação de todos (que partilhem das mesmas necessidades), sem exceções. 16
17
#1 — Consumo
1 - O Capital (Livro I) – Karl Marx 2 - Design: como Prática de Projeto – Gui Bonsiepe 3 - Contribuição à crítica da economia política – Karl Marx4 - Story of Stuff Project <storyofstuff.org>
Porém, quem está em posição para afirmar a natureza e o fim das necessidades individuais de um coletivo? Nós designers, contudo, não nos detemos diante de dificuldades desse tipo, talvez em virtude do caráter irrequieto do nosso ofício, que continuamente nos lança à ação. Essa predisposição à atividade irrefletida, por sua vez, traz o risco de uma objetificação das necessidades a serem atendidas. Isto é: instados incessantemente a participar da produção em escala já em andamento, os designers contribuem para que novos produtos criem as necessidades que visam atender. Isso não é senão outra maneira de dizer que “a produção não se limita a fornecer um objeto material à necessidade; fornece ainda uma necessidade ao objeto material”. (3) Agora, ao que concerne a satisfação total irrestrita das necessidades dos usuários, é preciso reconhecer um atraso; pois antes mesmo que os designers pudessem comprovar a validade esse ponto – tão crucial ao redesenho e desenvolvimento de novos projetos – já a indústria se valia de uma medida para o nível geral de satisfação desse coletivo que chamamos de usuário. Há muito os donos dos meios de produção já contavam simplesmente as vendas dos seus produtos. O que leva algo tão bem sabido a nos surpreender é o poder que um mantra tem de nos bloquear a compreensão. Ainda hoje nos recusamos a substituir o usuário por uma cifra ou quanta. No entanto, o que há de mais comum entre os usuários, senão o acesso aos mesmos produtos? Feita a correção de que não projetamos para a venda, nem para o usuário identificado pelo valor de troca implicado nesse acesso, mas para uma instância última que batizamos de usuário final, cabe ainda a pergunta: em que difere o usuário do usuário final senão no fato de que, se são pessoas diferentes, o primeiro realiza a troca no lugar ao segundo? Quando temos em mente o funcionamento de uma economia de escala que cria as necessidades para os seus produtos, somos confrontados com a indiferença entre usuário, usuário final e mero comprador. Logo, a defesa do aspecto derradeiro do “centro de interesse
do designer industrial” encontra os ouvidos moucos dos dirigentes dessa economia, se o que está em jogo na produção industrial é a reprodução do “ciclo” (em nada cíclico) (4) de vida dos produtos e serviços, da extração das matérias-primas ao descarte. Assim, prioritária é a investigação dos conceitos que fundamentam esses “ciclos”.
5 - A Condição Humana – Hannah Arendt 6 - The Century of the Self (BBC) 7 - TED Talks – Nick Hanauer8 - Contribuição à crítica da economia política – Karl Marx
vernaculando
II Abordamos aqui apenas um conceito: o de consumo. Não apenas porque a ocasião pede, mas também porque, pressuposto às nossas considerações sobre o usuário qua produto, já estava presente a ideia de consumo. Quando afirmamos que a indústria era capaz de medir a satisfação das necessidades de um coletivo nada mais dizemos que a quantidade de vendas corresponde exatamente à capacidade de um mercado (de usuários, caso queira) de absorver o volume de produção. A essa absorção damos o nome em geral de “consumo”, o que, entre outras coisas, justifica a substituição da figura do usuário ou usuário final pela do consumidor. Que implicações tem essa substituição para as justificativas dadas à atividade dos designers? Trata-se simplesmente de um ajuste vocabular, agora que o consumidor e suas necessidades “encontram-se no centro do [nosso] interesse”? Feita a troca de figuras, se esclarecem alguns dos argumentos anteriores: - onstatamos que o “denominador comum” que nos permitia generalizar a condição de usuário era o mero potencial para consumir. - descobrimos que o distanciar-se do nosso “ponto de fuga” no horizonte corresponde à atividade incessante de consumir, ligada umbilicalmente à manutenção da vida biológica (5) e à fonte inesgotável dos desejos (6). E que, como uma pulsão, o consumo é o fator que “puxa” todo o ciclo produtivo (7) e consequentemente todos os projetos que se desenvolvem no seu interior. 18
8 - Contribuição à crítica da economia política – Karl Marx 9 - O capital (Livro I) – Karl Marx 10 - Idem nota 8 11 - Pyramids of Waste – Cosima Dannoritzer
19
#1 — Consumo
O que se revela com essa nova compreensão é que o consumismo – como ciclo produtivo que vai de consumo a consumo – retira o papel determinante do uso para dá-lo não ao consumo mesmo – como alegam os economistas que negam o risco de diminuição da taxa de retorno ao capital representado pela queda na taxa de desemprego causada pelo aumento do consumo –, mas à troca. Assim é que, no sistema capitalista, mediante a predominância (no seio do conceito de valor) do valor de troca sobre o valor de uso (8), pode se dar a total equivalência de todas as mercadorias (9), inclusive a mercadoria trabalho. Em termos práticos, isso significa que o produto ou serviço (e o projeto que o compõe) se realiza no momento da troca e não durante o uso, como fomos ensinados a acreditar. A esse momento de realização também damos o nome de “consumo”, contudo erroneamente, dado que tudo que se segue – incluindo o consumo propriamente dito, o uso ilimitado, o reuso indefinido, o descarte ou a redistribuição – tem pouca ou nenhuma importância para o sistema produtivo que visa a aceleração permanente dos “ciclos” que alimenta a forma de vida do capital. O momento da troca abreviado como consumo é, portanto, o acabamento ou finish stroke (10) de toda a cadeia produtiva e, por conseguinte, a finalidade de toda prática de projeto no domínio da indústria. O uso é, nessa perspectiva, uma mera possibilidade posterior à troca, que contribui para o “ciclo” produtivo somente enquanto é capaz de estimular outro momento de troca, isto é, de consumo. Desse modo, o uso prolongado (que adia uma nova aquisição) deve ser combatido (11), e o projeto que visa simplesmente o uso, suplantado. Assim, se o trabalho dos designers para garantir a satisfação das necessidades dos usuários finais é possível apenas enquanto mantém estimulada a propensão ao consumo que garante a reprodução do modo capitalista de produção, por que insistimos em tratar desse trabalho em termos de formas adequadas a usos?
12 - This Changes Everything – Naomi Klein13 - Design, Cultura e Sociedade – Gui Bonsiepe14 - Global Capitalism: Monthly Update – Richard D. Wollf 15 - O imaterial – André Gorz 13 - Design, Cultura e Sociedade – Gui Bonsiepe
vernaculando
Porque, para dar continuidade ao progresso do capital que engendra a destruição das suas próprias condições de existência – a saber, a vida na Terra como a conhecemos (12) –, é preciso crer em uma causa no mínimo mais nobre. Cumpre assim o mantra do usuário o seu papel ideológico. Parafraseando um diálogo do mesmo filme de 1982, podemos desmentir o argumento de que “users requests are what designers are for”; na verdade “doing […] business is what designers are for.”
III Então, se não trabalhamos para o usuário, que posição nós designers ocupamos na cadeia produtiva que mobiliza empresas e mercados em torno do consumo? Tentemos ao menos enumerar as relações possíveis entre designers e seus “usuários finais”: - o designer pode ocupar uma posição dentro de uma empresa pública ou privada que oferece produtos ou serviços. Nesse caso ele se subordina à direção da empresa que estabelece que relações devem ser mantidas com os usuários ou consumidores. - o designer pode oferecer seus projetos ao mercado de empresas. Nesse caso sua relação com usuários ou consumidores é intermediada pela direção de alguma dessas empresas, que detém o poder para, entre outras coisas, engavetar seus projetos. - o designer pode oferecer seus projetos ao mercado através da própria empresa. Nesse caso ele dirige a empresa e pode (agora sim) trabalhar diretamente para os seus usuários ou consumidores, empregando potencialmente outros designers. Apesar da saída oferecida pelo último caso à situação embaraçosa em que nos encontramos – em uma palavra, a condição heteronômica (13) – há um caráter sistêmico no fundamento dessas relações que não pode ser ignorado. Se o dono da empresa, como designer, dedica todos os seus esforços e recursos à satisfação dos usuários, ele encontra, cedo ou tarde, um limite conjuntural ao 20
14 - Global Capitalism: Monthly Update – Richard D. Wollf
IV Se nossas considerações até aqui tem algum sentido, é nosso dever imaginar que contribuições os designers podem dar às mudanças que a cada dia se tornam inevitáveis: - em função da sua práxis, os designers (tais como outros projetistas), desenvolvem uma visão sistêmica das situações de projeto, o que lhes permite analisar e intervir nos problemas complexos típicos das economias de escala. - a visão sistêmica se alia a um domínio das práticas de projeto, que permite agir sobre as condições atuais com o intuito de provocar mudanças deliberadas. Dito de outro modo, os projetistas em geral trabalham na construção de novos cenários. Isso os retira potencial21
#1 — Consumo
seu empreendimento dado pela concorrência. A soma dos custos de desenvolvimento dos melhores projetos com os melhores materiais, tornado possível por pesquisas aprofundadas, é incorporada ao preço dos seus produtos ou serviços e o mantém em desvantagem competitiva. Por mais que esse movimento corresponda a um aumento real de qualidade, a tendência geral entre os concorrentes para aumentar a margem de lucro se traduz no corte dos custos de produção e operação até o limite da percepção de qualidade dos consumidores. Isso indica a necessidade do designer dono do negócio de conciliar intenções conflitantes. Ao fim e ao cabo, por força das circunstâncias e a exemplo dos demais, o designer será obrigado, se quiser sobreviver no sistema econômico em vigor, a pensar primeiramente como dono dos meios de produção, a despeito daquilo que valoriza pessoalmente. Aos outros designers, indicados nos dois primeiros casos, resta apenas a condição de mão-de-obra. Como trabalhadores autônomos ou assalariados, a dois ou três passos dos seus usuários, os meros designers tem pouca influência sobre as decisões do que produzir, de como produzir, de onde produzir e do que fazer com os lucros. (14)
15 - O imaterial – André Gorz 16 - Objetos de desejo – Adrian Forty
vernaculando
mente da condição de instrumentos para dotá-los do caráter de agentes. Além de uma visão sistêmica e projetiva, os designers se vêem como algo a mais que um ajuntamento de indivíduos; pela natureza do seu trabalho eles se entendem como grupo, com potencial para ações coordenadas. Essa visão, que se faz necessária para garantir a eficiência dos projetos desenvolvidos em equipe, os coloca obrigatoriamente em articulação uns com os outros e com os demais profissionais e gera um potencial de auto-organização capaz de gerar um ciclo de externalidades positivas (15) que beneficiam a todos. Essas três características – visão sistêmica, prática projetiva e senso coletivo – são assunto para novas considerações, a medida em que buscamos na figura do profissional de projeto um poder disruptivo. Entretanto, para não incorrer nos equívocos provenientes do corporativismo, lembremos da metamorfose permanente das atribuições dentro do sistema produtivo; citemos, apenas para demonstrar brevemente que entre os designers podem figurar pessoas das mais diferentes procedências, o exemplo de Josiah Wedgwood, o businessman que na Inglaterra do século 19 destacou do seu contingente de artesãos um funcionário para se ocupar do design das suas peças de cerâmica neoclássicas (16). Afinal, não é a decisão de por a serviço um projetista uma decisão de projeto? Não enfatizemos demais, portanto, a classe dos projetistas sobre a atividade de projetar. O que se impõe daqui para frente, se queremos caminhar na direção de uma mudança, é, por um lado, a reabilitação de categorias “anacrônicas” como as de mão-de-obra (que nos permitem pensar a partilha desigual entre capital e trabalho dos frutos do esforço coletivo), e por outro, o reconhecimento das habilidades e ferramentas que podemos empregar contra as forças que mantém em curso a lógica consumista de produção.
22
Bacharel em Design, com habilitação em Projeto de Produto, pela Universidade Estadual de Maringá (2014). Adora design gráfico, web e produtos inovadores e busca inspiração em todos os cantos e áreas do conhecimento.
23
#1 — Consumo
a interdependência design e capitalismo Ricardo Bonizoli Maringá/PR
Vivemos em uma era de prosperidade tecnológica onde a produção de itens e artefatos é cada vez mais simples e o consumo dos mesmos está ligado a um meio de vida crescente adotado pelas pessoas do mundo todo, independente da classe social ou meio em que vivem. Além de um meio de vida, o consumismo engloba uma necessidade pessoal de se destacar das demais pessoas por meio da utilização de determinados itens, que representam um status de riqueza ou poder, o qual muitos querem ostentar. Toda essa demanda por novos produtos nos faz pensar em como o capitalismo influencia na concepção do design. Seria ingenuidade dizer que não há uma relação entre o design de produtos e o capitalismo, visto que, ao se projetar um produto, um dos processos analisados para a viabilidade de produção do mesmo é um levantamento de dados a respeito do público-alvo e disposição do mercado, pois há um grande investimento inicial e uma necessidade de retorno financeiro. De acordo com Landim em “Design, empresa, sociedade” de 2010, o design de um ponto de vista global envolve a concepção e o planejamento de todos os produtos elaborados pelo homem como forma de melhorar sua qualidade de vida, simultâneo a isso, o interesse do homem em transformar esses produtos em negócios lucrativos e criar produtos competitivos, foi o que conduziu à evolução e diversidade do design. Há de se concordar que o design de produtos tem como objetivo facilitar nosso meio de vida, oferecendo uma alternativa simples e prática para os problemas do nosso dia-a-dia, além de estar atrelado a um meio de evolução da percepção humana quanto às formas e cores. Se não houvesse um valor a ser pago pelos produtos desenvolvidos não haveria uma forma de se investir em pesquisas com tecnologia de produção, materiais e procedimentos, tão necessários para a concepção dos produtos mais avançados, além de tornar a profissão do designer banalizada no mercado de trabalho. Toda essa facilidade de venda e compra movimenta o mundo do design e encoraja os designers a conceber cada vez mais produtos de alta qualidade e que
vernaculando
atendam a todas as necessidades de seus usuários, pois com a disputa pelos consumidores, um produto de excelência é sempre mais valorizado no mercado do que um produto não funcional. Toda essa competição pelo público-alvo contribui para a contínua evolução formal e funcional dos produtos. Concluímos que o design depende do capitalismo para sua existência, pois sem investimento em pesquisas para melhorar os produtos existentes ou criar novos produtos não haveria um desenvolvimento no setor de produção. O capitalismo está atrelado ao design reciprocamente, pois gera movimentação de capital pela compra e venda de produtos o que acaba financiando futuros projetos e proporcionando a evolução contínua do design de produto.
24
Verônica B. Birello Maringá/PR Bacharel em Secretariado Executivo Trilingue pela UEM. Mestre, não dos magos, mas em Letras, se dedica à Análise do Discurso Francesa e ao cinema de Hayao Miyazaki. Agora no doutorado, continua a pesquisa na mesma linha, afinal, uma vez “foucaultiana” sempre foucaultiana. Dedica-se à docência, sendo professora assistente do curso de SET da UEM.
25
#1 — Consumo
a educação que não edifica o homem
Estamos em um processo de mudança constante, uma mudança que não pode ser considerada evolução, pois a nível educacional, ao menos, não evoluímos em nada. Temos recursos desnecessários. Temos materiais avançados, diversificados, totalmente inutilizados. Os pais pagam, o governo paga. As crianças, os adolescentes e jovens, passam a vida acreditando que o fato de ir para a escola é suficiente para aprender. Alunos que não tem a mínima vontade de estudar continuam ano após ano tentando comprar conhecimento sem perceber que o conhecimento não se compra, não se recebe, se conquista. A humanidade paga. O homem enquanto sujeito é uma invenção de modernidade que morre cedo na tentativa de ser super-homem e não percebendo que é finito, limitado, mortal. O homem, ser do conhecimento, foi extinto pelo homem produtor de currículo, homem que tenta em vão comprar o que não se compra.
vernaculando design + arte zine um, verão/2016 editoria e curadoria Aline Jorge Renan Ferreira colaborador César Biégas Faquin convidados Caio Orio Cibele Chacon Daiane Catarin Daniela Giannini Felipe Kaizer Karen Gomes Pianofuzz Ricardo Bonizoli Verônica B. Birello projeto gráfico Vermelho Panda Design contato hello@vermelhopanda.com fb.com/vernaculando vernaculando é uma publicação aberta às novas ideias e colaborações: entre em contato e faça parte de nossa narrativa. é proibida a reprodução de textos ou imagens sem prévia autorização dos autores e editores da publicação.
50 unidade
50 unidade