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Entenda como funciona o mercado de quadrinhos no Brasil

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Especial HQ CARTA DA REDAÇÃO sÃO pAULO.... Os hábitos do leitor brasileiro estão mudando. Aos poucos suas listas de leitura vêm sendo invadidas pelos quadrinhos. Mesmo longe do status de best-sellers da literatura, obras como Daytripper, dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, conseguiram vender 20 mil exemplares, como aponta Jorge Rodrigues, dono da Comix Book Shop. As HQs deixaram de ser só para as crianças. Um dos fatores responsáveis por essa mudança foi a produção independente, os fanzines, mais voltada para o público adulto. Quadrinistas considerados referências, como Glauco, Angeli, Laerte e Mutarelli, começaram suas carreiras dessa maneira. Ainda hoje, os fanzines são uma boa forma de divulgação, devido ao baixo custo e à possibilidade de vender o produto nos eventos de quadrinhos. O interesse das editoras em publicar quadrinaLGUM TEMPO DEPOIS hos, potencializado pelas compras feitas pelo NÃO DISTANTE DALI... governo federal para as bibliotecas públicas, também foi importante para a valorização dessas obras. Muitos artistas estão investindo em trabalhos mais autorais, pois agora há espaço para isso no mercado. Discussões a respeito da necessidade do termo graphic novel, presente nas páginas seguintes, são outros indicativos da importância da Nona Arte no Brasil. As próximas páginas estão recheadas com relatos de quadrinistas, editores, pesquisadores, donos de lojas e fãs dessa arte, bem como curiosidades a respeito das profissões de tradutor e diagramador. Nelas, são descritas histórias como as de Gualberto Costa, idealizador do troféu HQMix – prêmio mais importante da Nona Arte no Brasil – ou mesmo como as de Octávio e Ana Costa, o pai e a filha que investiram no sonho de abrir uma loja especializada em quadrinhos.

Beatriz Garcez Fernando Novais Verônica Gonçalves

Índice Arte sequencial em foco 4 O HOMEM POR TRÁS DO TROFÉU 13 UMA PAIXÃO QUE VIROU NEGÓCIO 16 A IDEOLOGIA QUE MOVE OS QUADRINHOS 20

pROJETO gRÁFICO bRANCALION

DESCONSTRUINDO OS QUADRINHOS 22

redatores

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foco

Arte sequencial em foco

Foto Verônica Gonçalves

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Os bastidores do mercado de histórias em quadrinhos no Brasil Por Fernando Novais

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uando Daytripper foi lançado no Brasil, a obra publicada pela editora Vertigo surpreendeu positivamente seus leitores com a história escrita e ilustrada pelos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá. A obra não chamava a atenção apenas por ter sido lançada por uma editora norte-americana, mas pela história, além de completamente autoral, ser ambientada no Brasil. O sucesso da publicação dos gêmeos abriu os olhos dos leitores para o crescimento do mercado nacional dos quadrinhos. Desde que o jornalista Adolfo Aizen foi para os Estados Unidos, em 1930, e trouxe para o Brasil a ideia da formação de um mercado editorial de quadrinhos, ocorreram sucessivas mudanças, como a formação de novos leitores, a criação de novas editoras, de selos, e a expansão dos quadrinhos pela internet, até que chegássemos ao cenário atual. Mercado independente Os fanzines – termo designado para a

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impressão de quadrinhos com custo mais baixo – tiveram um papel fundamental no início da carreira de muitos quadrinistas brasileiros que hoje são referências no Brasil e no exterior. Nomes como o dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, Rafael Coutinho e André Diniz, encontraram nessas publicações um meio rápido e barato de se divulgar. Autor da graphic novel Memória de Elefante, Caeto publicou pela primeira vez enquanto cursava o Ensino Fundamental. “Eu xerocava os quadrinhos com os meus amigos, e a gente vendia nos barzinhos da Vila Madalena. Até ganhávamos um dinheirinho com isso”, conta Caeto. Entretanto, está havendo uma mudança na concepção desse material nos últimos cinco anos. Os autores estão investindo mais no acabamento dos seus produtos, escolhendo papéis de melhor qualidade e optando pelas impressões mais profissionais. Um exemplo é a obra O Louco, a Caixa e o Homem, concebida pela dupla Will e Daniel Esteves e vencedora da 24ª Edição do Troféu HQ Mix na categoria

Lojas especializadas em quadrinhos atraem novos leitores

‘Melhor Publicação Independente Edição Única’. O quadrinho foi tão bem elaborado que a editora Via Lettera inseriu o código ISBN – sistema utilizado para identificar numericamente os livros segundo o título, o autor, o país e a editora, tornando o produto único de forma que o mesmo código não pode ser aplicado para outras edições. Segundo Will, “para que a sua publicação

esteja numa livraria, ela precisa ser um álbum. A livraria não vai querer receber uma revistinha de 20 páginas”. Will é um dos responsáveis por essa mudança de pensamento no cenário independente. Ele faz parte do coletivo Quarto Mundo, cujo principal objetivo é apoiar a divulgação dos fanzines. O grupo foi criado por acaso em 2007, quando Leon-

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novos fãs de quadrinhos se aventuram nesse tipo de empreendimento

ardo Melo e André Caliman, que haviam lançado a revista Quadrinhópole, se encontraram com Cadu Simões, criador do Homem-Grilo e então editor da revista Garagem Hermética do lado de fora do evento Fest Comix, em São Paulo. Como não havia um stand disponível para que pudessem divulgar seus trabalhos, eles montaram uma mesinha do lado de fora para vender seus quadrinhos. Naquele mesmo ano, Will esteve junto com Leonardo e Cadu vendendo as publicações independentes durante o 23º Troféu Ângelo Agostini. O número de colaboradores au-

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mentou durante um tempo e de outubro de 2007 até novembro de 2011, o Quarto Mundo teve em seu catálogo aproximadamente 190 publicações. Editoras Atualmente, muitas editoras e selos vêm sendo criados para atender um público cada vez maior de leitores de quadrinhos. Um dos mais representativos é o Quadrinhos na Cia., criado pela tradicional Companhia das Letras em 2009, e responsável por trazer autores nacionais e internacionais, clássicos e contemporâneos, para

Foto Verônica Gonçalves

Foto Verônica Gonçalves

Douglas Quinta Reis é o editor-chefe e um dos fundadores da Devir

diversas faixas etárias. Mas também cabe destaque ao selo Nemo, criado pela editora Autêntica em 2011 e conhecido por publicar adaptações literárias, como Dom Casmurro, de Machado de Assis. Dentre as mais tradicionais estão editoras como L&PM, Devir e Panini. A Devir, por exemplo, começou a publicar quadrinhos nacionais em 1997, quando esse material não era publicado em formato de livro. A equipe apostou na obra Sequelas, de Lourenço Mutarelli, para entrar nesse mercado. Segundo o editor-chefe, Douglas Quinta Reis, naquela época as livrarias não estavam preparadas para receber nesse formato: “Quando a gente publicou esse primeiro livro, nós não conseguíamos nem colocá-lo na livraria porque não havia espaço. Na Saraiva, por exemplo, eles colocavam junto com os livros de Arte porque era desenho”, conta Douglas. Somente a livraria Devir publica entre 60 e 80 quadrinhos por ano. Lojas especializadas e livrarias Esse despreparo está mudando, como relata Ana Costa, uma das donas da Gibiteria: “As livrarias estão sabendo lidar bem melhor com os quadrinhos. As lojas estão contratando pessoas que entendem do assunto para realizar o atendimento e ajudar na curadoria do acervo”.

Segundo Will, essa preocupação vai além, os funcionários estão sendo orientados por especialistas sobre o assunto. “A FNAC da Av. Paulista chamou o Paulo Ramos – jornalista e professor universitário – para dar um workshop para os funcionários da livraria que iriam trabalhar na área de quadrinhos”, conta. O surgimento das lojas especializadas também sinaliza uma nova tendência do mercado. Além das tradicionais Devir, Comix Book Shop, e HQ Mix, temos a Gibiteria, e a Monkix, entre outras, pensadas para atender a um público cada vez mais exigente. “Eles (leitores) são bem fiéis aos produtos. Eles vêm mensalmente, semanalmente, quinzenalmente... Têm pessoas que trabalham aqui perto e que frequentam diariamente a loja”, disse Jorge Rodrigues, proprietário da Comix Book Shop. As livrarias, especializadas ou não, cativam o público tanto pelo serviço diferenciado que buscam apresentar, quanto pela criação de alguns eventos tradicionais, como o Fest Comix, idealizado pela Comix Book Shop. Além das liquidações, a loja promove sessões de autógrafos e palestras com diversos profissionais do ramo. A brincadeira iniciada na calçada atraindo 150 pessoas se transformou em uma feira que alcançou 15 mil visitantes no ano passado. Agora falta espaço para tanta

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Versões impressas da Revistia Sagu, de Fanzine a Revista Digital.

Público-alvo A opinião entre especialistas, autores, donos de lojas especializadas é unânime: temos um mercado em expansão no Brasil. “Hoje existe uma grande produção de quadrinhos, de diversos gêneros. Existe um imaginário de mercado de quadrinhos ainda orientado ao público infantil, mas, aos poucos, os editores e leitores estão se abrindo para os quadrinhos mais adultos. As adaptações literárias, quando bem feitas, cumprem papel importante nisso”, analisa Marcelo d’Salete, autor da graphic novel (vide páginas 10 e 11) Encruzilhada, publicada pela editora Barba Negra. Essa valorização da Nona Arte também é percebida pelos leitores, que agora também se interessam pela produção brasileira. “Eu conheci, tanto por herança familiar quanto por pesquisar em sebos e livrarias, desde os mais antigos que vão de Flávio Colin, Ziraldo, Henfil e Edgar Vasques, até Laerte, Angeli, Glauco e Adão. Quanto aos mais novos, conheço o Allan Sieber, os irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, Rafael Coutinho, Rafael Sica, dentre outros”, observa o ilustrador Jonas Meirelles. O leitor Evandro José Braga também conta que depois de descobrir as publicações brasileiras, não parou mais de lê-las. “A minha primeira experiência com o quadrinho nacional foi com a Turma da Mônica. Mais

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Imagem das publicações de Maurício Brancalion - Beatriz Garcez

tarde, sob forte influência do meu tio, conheci os quadrinhos adultos brasileiros, como as tiras do Angeli e do Laerte e as graphic novels do Marcatti e do Mutarelli. Desde então eu sempre procuro por mais publicações nas livrarias e gibiterias”, recorda Braga. Produção de quadrinhos Dentre as novidades e revelações está a obra Daytripper, dos gêmeos Fabio Moon e Gabriel Bá. Lançado primeiro no exterior, em 2010, pelo selo Vertigo, a publicação ganhou diversos prêmios internacionais, como o Eisner Awards (considerado a maior premiação dos quadrinhos). A história dos gêmeos é considerada um “xodó” para muitos que trabalham com a literatura ilustrada. “De quadrinhos nacionais eu sempre indico o Daytripper. Aliás, eu acho que é o gibi que mais tenho ven-

Foto de Maurício Brancalionz Fernando Novais

efervescência. “Nós estávamos ocupando o centro de eventos do São Luiz, um salão de 2200 m², mas desde o ano passado já estava meio apertado. Para o ano que vem, nós já estamos procurando um lugar um pouco maior”, explica Jorge Rodrigues.

dido aqui na loja. Eu gostei muito da publicação, então eu tenho o prazer de fazer isso”, revela Octávio Costa, da Gibiteria. Para Jorge Rodrigues, Daytripper já vendeu mais de 20 mil exemplares somente no Brasil. Até mesmo a MSP (Maurício de Sousa Produções), reconhecida nacionalmente por manter boa parte do mercado infantil, e agora o infanto-juvenil com o lançamento da Turma da Mônica Jovem, está de olho no público adulto. A produtora irá lançar em 2012 uma linha com quatro graphic novels. Segundo o editor de planejamento, Sidney Gusman, o objetivo é alcançar novos públicos: “O foco será totalmente no mercado adulto, tem espaço para isso. Eu costumo dizer que dá para fazer qualquer coisa com os personagens do Maurício”. As primeiras graphic novels a serem lançadas serão da Turma da Mônica, do Astronauta, do Chico Bento e do Piteco.

Da esquerda para a direita: os quadrinistas Maurício Brancalion, Marcelo d’Salete (em cima) e Caeto (em baixo)

Foto Beatriz Garcez - Caetoilustra.blogspot.com.br

Capa da publicação “Encruzilhadas” - Imagem cedida pelo autor Marcelo D’Salete - Foto por Chico de Assis

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O novo modo de divulgar os quadrinhos Com o surgimento da internet e a proliferação de canais de comunicação pela web como blogs, redes sociais, entre outras, possibilitou que muitos autores conseguissem divulgar seus trabalhos de forma mais rápida quanto a impressão e distribuição dos fanzines. De acordo com o editor Douglas Quinta Reis, da Devir, as editoras também estão de olho nos novos talentos que surgem no mundo virtual: “Da mesma maneira em que as pessoas estão transformando textos que antigamente só existiam em impresso em livros eletrônicos, nós também estamos buscando coisas na internet para transformar em papel”. Para o designer e autor da revista independente Sagu, Maurício Brancalion, as publicações não precisam virar um produto para que alcançar o seu público alvo: “Hoje você pode publicar sem gerar

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GRAPHIC NOVEL

UMA REFLEXÃO SOBRE O TERMO

Por Beatriz Garcez

Em 1978, o quadrinista norte-americano Will Eisner publicou o livro Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço e deu origem ao termo graphic novel. Esta é a história que a maioria dos fãs de quadrinhos no Brasil conhece e costuma repetir - todavia diferente do que a maioria acredita, a invenção do termo graphic novel é erroneamente atribuído a Will Eisner, muito embora tenha sido graças a ele que a expressão foi difundida. Nos EUA, o termo graphic novel já estava presente em outras três histórias - Beyond Time and Again de George Metzger; Chandler-Red Time, de Jim Steranko; e Bloodstar de Richard Corben - publicadas antes de Um contrato com Deus. Will Eisner adotou o termo porque queria distanciar o seu trabalho dos demais quadrinhos e aproximar suas histórias da literatura e do público adulto. Dados revelados no artigo “Graphic Novel, Narrativa Gráfia ou Romance Gráfico?, Terminologias Distintas para um mesmo Rótulo.” de Paulo Ramos e Diego Figueira. As histórias em quadrinhos em formato de graphic novel procuram estabelecer um diálogo com a literatura, seus temas são diversificados e abrangem praticamente qualquer gênero, terror, romance, aventura, ficção científica, super-heróis e histórias autorais. Estas histórias também podem ser construídas com diversos elementos, não apenas o desenho. A pesquisadora Lucimar Mutarelli considera que Will Eisner foi “brilhante” ao usar a expressão graphic novel “porque ele deu uma liberdade pros autores e pros pesquisadores”. Lucimar vai mais além e traduz o termo para “romance em quadrinhos”. No Brasil, o termo graphic novel começou a ser usado pelas editoras Marvel Comics e DC Comics que publicaram álbuns de luxo de super-heróis, também voltados a um mercado adulto no final da década de 1980. Enquanto a expressão graphic novel era pop-

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ularizada nos EUA e no Brasil, outros países produtores de histórias em quadrinhos permaneciam alheios ao novo rótulo e mantiveram suas expressões próprias, como na França, onde o termo bande dessinée (álbum) é ainda hoje usado para histórias em quadrinhos longas e em formato livro. Quase 35 anos depois de Will Eisner popularizar as graphic novels, o termo continua sendo motivo de debate; no Brasil, por exemplo, a expressão é usada sem medidas ou critérios. Conforme explica o pesquisador e professor (do curso de Letras da Universidade Federal de São Paulo) Paulo Ramos: “trata-se do nome dado pela indústria norte-americana de quadrinhos às obras feitas em formato livro. Um formato, portanto. No Brasil, a expressão foi importada e usada como um sinônimo ora de gênero, ora de nome diferenciado de se referir aos quadrinhos, como se, por serem graphic novels, fosse por si sós de melhor qualidade. Ainda há esse uso indiscriminado no país”. O que foi criado para diferenciar uma história infantil ou juvenil de um público adulto tornou-se apenas uma questão de produto. O termo começou a ser usado para conceder um status ao quadrinho, como se o conteúdo e o material fossem de uma qualidade muito mais elevada do que as outras histórias, apenas por interesse comercial. Gibi, história em quadrinho, álbum, revista ou graphic novel? “Para mim, é tudo gibi, sempre falei gibi, meu pai falava gibi quando eu era pequena”, comenta Ana Costa, proprietária da loja Gibiteria. O proprietário da loja HQMix, Gualberto Costa, concorda com Ana Costa e afirma ainda que os nomes mudam com as gerações e que há, ainda, a geração do mangá, “você vai encontrar muito moleque que não sabe falar gibi, quadrinho, história em quadrinhos, mas fala mangá”. Ter uma nomenclatura adequada para crianças e adultos não parece realmente necessária para um dos sócios da Editora

Devir, Douglas Quintas Reis, “tanto faz, ser graphic novel ou não graphic novel, importante é ter uma boa história bem contada e que me divirta e que me traga alguma coisa, preciso que a leitura provoque alguma reflexão em quem lê”. Continuar chamando os quadrinhos em formato livro de graphic novel seria apenas uma estratégia de mercado, observa o administrador do site “Impulso HQ”, Renato Lebeau. “O gibi está nas bancas de jornal. Quando passa por essa transição em que as histórias em quadrinhos vão parar nas livrarias, é como se fosse uma estratégia do mercado. Se a gente chamar o quadrinho de gibi vão pensar que é coisa de criança, mas se nós chamarmos de graphic novel o pensamento já muda.” A valorização da expessão graphic novel acontece porque o mercado editorial brasileiro se espelha no modelo editorial norte-americano. Para o pesquisador Gonçalo Júnior, autor de vários livros sobre o segmento, entre eles A Biblioteca dos Quadrinhos, editora Opera Graphica, 2006, a imitação ultrapassa o mercado e chega até as obras produzidas aqui. “Ele (Will Eisner) criou histórias autorais, que depois todo o mundo copiou nas duas últimas décadas. E os brasileiros continuam copiando descaradamente, inclusive no traço.” Apesar da longa tradição em produção brasileira de quadrinhos, muitas vezes os autores nacionais demoram para encontrar o seu caminho e estilo. Gualberto Costa, da HQMix, chega a defender a influências que os quadrinistas brasileiros recebem: “é porque todos foram leitores de quadrinho estrangeiro. A formação, a escola que cada um teve é de quadrinho estrangeiro. Depois

eles vão fazer uma escola formal de quadrinhos, a Quanta e outras, e lá, a coisa puxa para o cara desenhar para a Europa, para os Estados Unidos. Eu acho que isso vai mudar no dia em que a gente tiver pessoas nascendo lendo não somente Maurício de Sousa como outros autores brasileiros.” As influências são importantes para se criar uma identidade própria nos quadrinhos brasileiros, principalmente no quadrinho adulto e em formato livro. O crescimento dos autores e consumidores de quadrinhos poderia levar ao abandono do termo ou uma redefinição, como argumenta o quadrinista Marcelo D’ Salete: “Precisamos redefinir o gênero de quadrinhos para alargar as possibilidades de público e de complexidade dessa mídia. Talvez isso passe pela criação de um novo conceito ou pela redefinição do mesmo termo”.

Um contrato com Deus foi a primeira graphic novel lançada por Will Eisner

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entrevista

O HOMEM POR TRÁS DO TROFÉU

Foto - Fernando Novais

Por Beatriz Garcez

um produto, usando os blogs, esse tipo de coisa. Então quando você gerar um produto, ele já estará encaminhado para um nicho de mercado. Se outras ideias forem surgindo, dá para aumentar esse fluxo de publicação, para que depois tenhamos produtos à venda”. Brancalion defende desde 2008 que os desenhos devam ser feitos de forma totalmente digital. “Os quadrinistas sempre me perguntavam ‘nossa, mas você não vai mais usar o papel? ’ Eu desenho no papel por prazer, no entanto, se eu estiver produzindo alguma coisa, prefiro muito mais usar um tablet ou uma caneta igual a Stylus para o Ipad”. Diversos autores que participaram do projeto MSP 50, em comemoração aos 50 anos de carreira de Maurício de Sousa, foram selecionados por conta de seus trabalhos na web. Nomes como o de Vitor Cafaggi – que inclusive participa da publicação de uma das graphic novels da MSP –, Will Leite, Carlos Ruas, dentre outros, tiveram seus trabalhos analisados pelo Sidney Gusman e foram chamados para participar da publicação. “Uma coisa que o Laerte falou pra mim é que a coisa mais legal do projeto MSP é que ele não conhece a metade dos autores. Durante a Bienal do Livro, o editor-chefe de uma grande editora falou para

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os demais funcionários ‘todo mundo vai comprar os três MSP 50, porque essas publicações irão servir de catálogo pra nós escolhermos o ilustrador’”. Essas publicações na web, no entanto, afetam a venda de quadrinhos, segundo conta o responsável da livraria HQ Mix, Gualberto Costa: “Tem um monte de pessoas lendo histórias em quadrinhos que sequer saiu no Brasil e que está sendo pirateado na internet. Com os mangás acontece muito isso. Tem gente que só tem o hábito de ler assim, e quando a publicação sai na banca ou na livraria a pessoa não tem mais o interesse porque já leu”. Após o sucesso de vendas e a aceitação do público, os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá acabaram conquistando espaço em terras estrangeiras. Depois da publicação – originalmente lançada nos Estados Unidos – ter sido sucesso de vendas no Brasil, a obra, segundo o site especializado em quadrinhos chamado Omelete, vai ganhar uma versão em francês e também deverá ser publicada na Dinamarca e na Polônia em 2012, propagando a arte e a qualidade das histórias em quadrinhos feitas por brasileiros.

Gualberto Costa é o fundador da premiação com maior visibilidade para os quadrinhos nacionais

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ualberto começou a ler histórias em quadrinhos antes de aprender a ler, mas lia sim as imagens das histórias. Este devorador de gibis e fanzines percebeu já no cursinho que os quadrinhos iriam fazer parte da sua vida. Formado em Arquitetura e Engenharia Civil, Gualberto já fez de tudo um pouco, organizou o II Salão de Humor e Quadrinhos de SP, o II Salão Mackenzie de Humor e Quadrinhos, escreveu sobre o tema no Jornal da Tarde e para televisão, deu aulas na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, foi convidado para falar sobre histórias em quadrinhos na Organizações das Nações Unidas (ONU), além de ter sido editor e o primeiro editor da revista Spirit no Brasil. Batalha há

Foto Verônica Gonçalves

MSP também aposta alto no mercado de graphic novels para atrair o público adulto

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“A livraria HQ Mix tem esse nome porque eu tinha um patrimônio

de 25 anos do Troféu HQ Mix” (Gualberto Costa)

29 anos por um museu sobre quadrinhos no Brasil e enquanto não vence esta luta continua tocando o Prêmio HQMix e a loja HQMix em Higienópolis, São Paulo. Quando você abriu a livraria HQ Mix? Eu ajudei o Ziraldo a convencer o Walter Mancini a abrir um bar com um nome de um personagem dele que era o Jeremias. Só que, pela minha formação de arquiteto, na hora de fazer o bar, o Ziraldo indicou que fosse eu quem fizesse. E eu e a minha mulher, a Dani (Daniela Batista), montamos o bar. Nós ficamos tão amigos do Walter Mancini que um dia, almoçando com ele, me perguntou: “O que você tem como projeto de vida para o futuro?”. Eu respondi que quando eu ficasse mais velho gostaria de abrir uma livraria, que gostaria de ficar velhinho dentro dela. Então ele ficou bravo comigo, ele falou assim: “Não, você não pode fazer projeto pra velhice, tem que fazer projeto para agora”. E aí, por brincadeira, ele botou uma prateleira e falou assim: “Eu quero que você me prove que você tem talento para montar uma livraria. Você vai fazer uma livraria nesta prateleira dentro do bar”. Aí eu criei a Menor Livraria do Mundo junto com a minha mulher. Ou seja, eu enchi de livros dentro daquela prateleira, e como não estava a fim de ficar dentro do bar vendendo livro, eu enumerei os livros e fiz um cardápio. Quando inaugurou, nós fizemos uma festa de oito dias. Veio o Jaguar, Ziraldo, Adão, Lourenço Mutarelli, quem você imaginar. Nós ganhávamos um dinheirinho, mas era uma brincadeira. Aí eu e a minha mulher resolvemos montar uma livraria. E onde estava localizada a Menor Livraria do Mundo? Na Rua Avanhandava. A gente resolveu

hoje é muito diferente ao mundo que eu já vivi. Por conta dessa tecnologia mesmo, eu acho que a livraria com livros de papel vai dançar. Quando ocorreu a primeira edição do Troféu HQ Mix? Foi contemplando os melhores de 1988, que aconteceu em 1989. Onde foi o local da primeira premiação? Foi no Museu da Imagem e do Som (MIS). Mas o MIS era muito formal. A gente nunca reuniu tanta gente ligada a quadrinhos no mesmo espaço e na mesma hora. Na hora em que terminava a entrega, todo mundo conversava, trocava ideias, aí os caras começavam a desligar a luz. No segundo ano fomos para o Aeroanta, que era uma danceteria da moda. Então eu saí de um negócio formal para ir para o informal. E foi a maior zona, porque você chamava os caras no palco e eles estavam bebendo, paquerando, dançando. A gente fez o terceiro ano no SESC, que foi o que deu essa cara mais resolvida. No meio desse caminho a gente teve outras experiências. A partir do terceiro ano a premiação ocorreu no Sesc Pompéia? Sim. Foi na Choperia do Sesc Pompéia. No meio houve um rompimento com o Sesc, acho que foi no 10º ano, e aí a gente foi para o Instituto Cultural Itaú. No Instituto Cultural Itaú foi meio catastrófico porque não cabia no auditório todo mundo. No ano seguinte nós fizemos a premiação no Senac Moda, que foi muito legal. A única coisa inconveniente é que deram um maravilhoso coquetel com fartura de bebidas, queijos, etc., fazendo com que ficasse difícil a pessoa ir assistir a cerimônia. Nós passamos durante uns três ou quatro anos com o patrocínio da Secretaria da Cultura,

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não nos mudarmos para muito longe dali. Então nós percebemos que na Praça Roosevelt tinha aquela efervescência cultural. Conseguimos um ponto lá e montamos uma livraria. Contando A Menor Livraria do Mundo e mais o tempo em que temos a Livraria HQ Mix, já tem uns cinco anos e meio. E a Livraria HQ Mix tem esse nome porque eu tinha um patrimônio de 20 e poucos anos, agora vai fazer 25 anos, do Troféu HQ Mix. Já que o logotipo era eu quem tinha feito, então eu resolvi botar o nome. Eu não sei até quando eu aguento. Com certeza eu não vou chegar na velhice porque a vida de livraria é muito dura. Há quanto tempo a livraria deixou o ponto que tinha na Praça Roosevelt? Eu sai no final do ano passado. Aí eu levei uns dois meses para reformar, montar prateleira, tudo. Você viu diferença de público daqui para a Praça Roosevelt? O público lá era mais quente. Tanto que a gente fechava às 3 horas da manhã. Agora a daqui tem um poder aquisitivo maior. Mas acaba sendo equivalente? Eu ainda estou em fase de tentar entender. Eu tenho um movimento menor, mas eu tenho pessoas que entram com condições melhores de comprar. Estou trazendo um espírito diferente para um lugar que já tem uma cara que não é muito a de onde eu venho que é a Praça Roosevelt. A gente está chamando grafiteiros, fazendo festas, porque senão temos que ficar mais como uma coisa refinada. Mesmo com as novas tecnologias, você acha que ainda há um longo futuro para as livrarias? Eu acho que não. O mundo hoje muda muito rápido. O mundo que vocês vivem

aí a gente fez a premiação no Theatro São Pedro. A partir de que ano vocês retornaram ao Sesc Pompéia para nunca mais saírem de lá? Fixamente já está há uns sete anos. No 24º a gente, pela primeira vez, fez de sábado. Isso possibilitou algumas pessoas virem de outros estados. Todo mundo trabalha, não pode viajar durante a semana, mas no fim de semana dá para fugir. Na premiação dos melhores de 2011 houve uma homenagem ao Primaggio Mantovi e seu personagem; Sacarrolha. A gente faz isso. A gente ressuscitou esse personagem que a maioria não conheceu ao mesmo tempo em que a gente deu o prêmio de mestre para o Marcatti, que também tem uma importância fantástica dentro da história do quadrinho. E a gente ainda faz aqueles cards. Todo ano são 20 cards que a gente coloca formalmente, a memória deles com fotos e texto. Ao mesmo tempo em que a gente está premiando, a gente também recupera um pouco da memória. Quando um leitor busca por referências, você costuma indicar mais publicações nacionais ou internacionais? Eu sou malandro porque sou um militante do quadrinho brasileiro, então eu tento sempre subverter o gosto normal pelo estrangeiro para o cara conhecer o quadrinho nacional. Mas o que você indica para ele? Eu tenho praticamente tudo que é lançado. Eu sou uma das raras livrarias, talvez a primeira a ter farto material de independente. Eu tenho bastante coisa aqui.

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UMA PAIXÃO QUE VIROU NEGÓCIO

Foto Bruno Motta Mello

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A história da família que investiu no sonho de montar uma loja especializada em quadrinhos Por Verônica Gonçalves

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oi na Praça Benedito Calixto, tradicional ponto turístico de São Paulo, que Octávio da Costa, 62, e Ana Costa, 25, respectivamente pai e filha, decidiram montar uma loja especializada em quadrinhos. Ali, entre cafés e restaurantes tradicionais, galerias vintage e uma feira de antiguidades, surgiu a Gibiteria no final de 2009. Os dois seguem a tendência de uma família apaixonada por livros há muitas gerações. O avô, o pai e o sogro do Octávio tiveram bibliotecas. “Ler acho que é a única coisa que eu faço desde criança. Eu sou psicólogo também, mas entendo mais sobre uma livraria de quadrinhos do que de psicologia”, orgulha-se Octávio, leitor de gibis a mais de 50 anos. Toda essa paixão transformou-o numa espécie de curador para Ana, que explora a coleção do pai desde cedo. “Era assim: o que meu pai gostava eu lia, o que era proibido eu lia, tinha esse negócio de contravenção também. Mas, por exemplo, eu tentei ler Sandman e nunca consegui, inclusive, tenho birra até

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Ana Costa foi a responsável pela elaboração do design das prateleiras

hoje. Não consigo e não acho que vá conseguir ler algum dia, mas tentei porque ele gostava muito”, comenta. Durante a adolescência, os dois viveram fases bem distintas; Octávio lia os super-heróis e Ana lia os mangás –era o começo da febre no Brasil. Mesmo com todo esse interesse, a trajetória profissional deles passou bem longe dos quadrinhos. Ele estava ligado à área de marketing, e ela se formou em Desenho Industrial na Universidade Mackenzie. Entretanto, ambos tiveram desilusões em suas carreiras e decidiram investir num antigo sonho. ”A ideia da Gibiteria é ser um ponto de encontro. A gente cria uma turma de amigos que aparece para bater papo, para sentar e ler um gibi à vontade”, explica Octávio Costa. No início de 2009, os dois uniram esforços para transformar o primeiro andar da galeria Como Assim?!..., localizada no número 158 da Benedito Calixto, na Gibiteria. Foram nove meses investindo na estrutura e fazendo contato com as edito-

ras, até que, em dezembro daquele ano, o espaço começou a funcionar. Desde então, eles fazem o possível para ampliar a comunicação com os clientes, construindo um bom relacionamento. Ana projetou toda a identidade visual da Gibiteria – móveis, cartões de visitas e marcadores de livro. Ela também é a responsável por manter contato com os quadrinistas independentes e abastecer as redes sociais. “Eu me dedico para a Gibiteria praticamente 24 horas por dia. Nem fico tanto tempo na loja, porque só temos um computador e nós dois precisamos usá-lo, mas em casa fico fazendo as coisas da loja, como cuidar do facebook e do twitter”, explica. Dossiê HQ Na busca por um diferencial, já em 2010, eles criaram Dossiê HQ, responsável por promover a interação entre quadrinistas e fãs. O encontro acontece às sextas-feiras, normalmente às 19h, e se trata de um de-

bate entre os artistas com a participação do público. Nessas noites, a loja se transforma em auditório e atrai em torno de 60 visitantes. “Todo mundo ganha. É um negócio de investimento zero e retorno financeiro variável, mas é uma questão de nome e ajuda à comunidade quadrinística. É preciso cultivar essas pessoas. O fã não só leu o quadrinho como conheceu o autor e ganhou um autógrafo, é uma experiência bônus que faz ele curtir o quadrinho de outra forma. Reforça o laço entre as pessoas”, explica Ana. Hoje, eles têm o apoio do coletivo de quadrinhos Quarto Mundo, responsável por organizar um evento por mês, permitindo que em alguns meses tenham três encontros. “Quando nós organizamos, damos uma cara mais íntima, um direcionamento mais pessoal. Nós perguntamos qual é a inspiração do autor, o que o levou a criar determinada história, qual é o caminho que ele fez, como é que ele chegou naquele traço, Bravo! Especial HQ

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Em noites de Dossiê HQ, a loja atrai muitos fãs de quadrinhos

Foto - Verônica Gonçalves

Octávio Costa sempre quis ter uma loja de quadrinhos

é isso que a gente quer saber”, explica Will Sideralman, do Quarto Mundo. A ideia de aproveitar o espaço veio do seu amigo do coletivo, Laudo Ferreira, interessado em criar um evento que pudesse explorar o processo criativo dos quadrinistas. Além do Dossiê HQ, a Gibiteria promove lançamentos de quadrinhos aos finais de semana, e Octávio e Ana mantêm um atendimento quase personalizado com os clientes. “Nosso maior mérito é o atendimento. O que a gente tem é o sorriso, a simpatia, o conhecimento de quadrinhos, a flexibilidade. Então, se pedem para mandarmos pelo correio, nós mandamos. Se a pessoa vem aqui e fala que quer completar a coleção, eu pergunto quais volumes ela precisa e, se não estiver esgotado, é dela pelo preço de capa, não vou cobrar a mais por isso. É o serviço que a gente faz feliz porque é legal, porque a gente tem coleção e sabe como é um saco você ter perdido um número e nunca mais encontrar”, observa Ana.

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No momento, eles estão batalhando para colocar no ar o blog, reativar o site e montar a loja virtual. O principal problema é a falta de mão-de-obra, existem muitas tarefas para ser feitas apenas por duas pessoas, sendo que ambos não podem ficar na loja ao mesmo tempo. Esse é o grande entrave para iniciar a venda online, uma vez que, além de ter que aumentar muito os estoques, precisariam de mais funcionários para levar as encomendas ao correio. Gerenciar uma loja especializada em quadrinhos no Brasil não é uma tarefa fácil. Mesmo com o crescimento do mercado nos últimos sete anos, ainda é um nicho bem particular. Para Ana, a maior dificuldade é lidar com o preconceito das pessoas que ainda acreditam que quadrinho é apenas para crianças. Essa ideia ganhou força no Brasil porque, até a década de 1980, o mercado estava “dominado pelos temas humorísticos, com personagens de crianças e animais como protagonistas, e uma grande quantidade de ficção cientí-

fica”, como expõe a pesquisadora Lucimar Mutarelli no artigo Lourenço Mutarelli e a produção de graphic novel no Brasil. Entretanto, o contexto do regime militar da década de 1960 produziu dois efeitos interligados: o surgimento da imprensa alternativa e o aparecimento dos fanzines – produções com conteúdo adulto e com mais liberdade criativa e editorial –, como detecta o pesquisador Gazy Andraus no artigo A situação histórico-social dos fanzines no Brasil. “Tem gente que entra aqui ou espia da porta e pergunta, com desdém, ‘aí é só quadrinho?’ Eu tenho um rancor muito forte com gente que tem resistência aos quadrinhos, porque eu vejo a experiência com a minha mãe, que não gostava, mas passou a gostar conforme eu e meu pai fomos apresentando para ela”, observa. Hoje a mãe Cecília da Costa também ajuda na organização dos eventos. Esse cenário sugere a complexidade de linguagens e temas referentes à produção em quadrinhos, apontando que tal universo vai muito além dos super-heróis e dos mangás. Eis a perspectiva que Octávio e Ana tentam transmitir por meio da Gibi-

teria. Para ela, tratar os quadrinhos apenas como obra de arte ou como revistinhas de desenhos desvaloriza muito o trabalho do quadrinista e do roteirista. Eles devem ser encarados como livros, porque tanto o desenho quanto a própria história e o argumento têm importância. Ao trabalhar nesse meio ela se sente uma produtora cultural, mostrando que essa forma de arte não desvaloriza a literatura tradicional. “Hoje, eu acho que o quadrinho é muito mais que diversão, é aquela forma de comunicação e mídia que está entre o livro e o cinema. No livro, você pode imaginar tudo e no cinema tudo está meio pronto. Aquela linha que divide um quadrinho do outro é um mundo todo cheio de imaginação. Você enche aquele espaço com a sua imaginação. Mas é tudo forma de comunicação”, completa Octávio. Assim, diante desse novo momento do quadrinho nacional, os dois vão seguindo com a máxima determinação, sempre buscando se atualizar e ler cada vez mais quadrinhos. Na Gibiteria, só não tem espaço para aquele velho preconceito, responsável por afastar o público adulto dessa forma de linguagem.

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Por Verônica Gonçalves

Conheça o quadrinista Will, um dos nomes importantes do coletivo Quarto Mundo

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reze anos de envolvimento com quadrinhos, cinco deles dedicados ao coletivo independente Quarto Mundo. Esse é Will Sideralman, designer e um dos nomes mais importantes do grupo que se transformou em referência para qualquer quadrinista. Aos 51 anos de idade e muito reconhecimento no mercado, o arquiteto da imaginação apresenta um pouco desse universo. Ilustrador desde 1989, a Nona Arte sempre foi uma paixão para Will. A oportunidade de entrar na área veio em 1999, quando ele participou de um curso organizado pelo pesquisador Álvaro de Moya. Com apoio dos novos amigos, seu primeiro trabalho foi publicado em 2004. Era o fanzine Subterrâneo. Para Will, o principal problema do mercado hoje é o “complexo de coitadinho” que alguns quadrinistas insistem em defender. “Se o seu trabalho é bom, ele vai acontecer. Não adianta ficar chorando e falando que o quadrinho americano atrapalha nossa vida, porque tem espaço para

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Foto - Beatriz Garcez

A IDEOLOGIA QUE MOVE OS QUADRINHOS Will organiza o Dossiê HQ todo mundo no mercado. Acho que não é por aí, reclamar não é o mote. Tem que ir à luta! Hoje em dia existem diversos canais de divulgação”, defende Will. Confira a entrevista concedida por Will na Gibiteria, em Pinheiros. Quando o Quarto Mundo nasceu, o grupo tinha o propósito de estimular o cenário independente. Podemos dizer que o coletivo é uma espécie de ideologia? Eu diria que o Quarto Mundo representa essa ideia de faça você mesmo, de se juntar para fazer tudo de maneira independente. Em 2007, por exemplo, ficamos sabendo do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), em Belo Horizonte, e nos organizamos para ir. Nós tivemos que deixar nossos trabalhos para conseguir ficar uma semana em Minas, às nossas custas. Era uma atitude de se dedicar mesmo, de vontade de estar lá com o material. O Quarto Mundo cresceu bastante. Como é administrar um grupo tão grande de colaboradores? Houve um momento entre 2007 e 2008

Gualberto Costa e Will na loja HQMix

Foto - Fernando Novais

entrevista

“Eu diria que o Quarto Mundo representa essa ideia de faça você mesmo, de se juntar para fazer tudo de maneira independente” (Will) em que tínhamos, oficialmente, perto de 100 membros. Acho que chegou a 50 títulos diferentes. Mas hoje a ação do Quarto Mundo é muito pequena em comparação ao que era. Eu costumo dizer, infelizmente, que foi uma vontade que não se concretizou. Nós queríamos distribuir as revistas no Brasil inteiro, só que, para isso acontecer, precisávamos ser uma empresa. Por que vocês não deram esse salto? A questão é a seguinte: enquanto autor, enquanto roteirista, até que ponto você quer deixar de ser o roteirista ou desenhista para virar dono de uma empresa? Eu acho que ninguém queria ser dono de uma empresa, nós só queríamos desenhar e publicar quadrinhos.

Havia algum tipo de seleção para entrar no grupo? Não, porque cada um era dono do seu quadrinho e bancava a produção, ou do próprio bolso ou com patrocínio. O autor era livre para publicar a história que queria no formato que queria. Tanto é que a gente tinha publicações nos formatos mais variados possíveis, desde o americano até o formatinho – publicações com o tamanho semelhante ao A5, utilizado principalmente nas revistas da Disney e da Turma da Mônica. Era tão aberto que não obrigávamos ninguém a colocar o selo do Quarto Mundo em nenhum lugar. Estão entrando novos membros no Quarto Mundo? Não. Eu acredito que isso esteja ocorrendo porque o Quarto Mundo perdeu aquela notoriedade que teve no início. É tão maluco que eu acho que o Quarto Mundo só reforçou a ideia de que você não precisa estar no Quarto Mundo para fazer a sua revista independente. Todo mundo já sabe a fórmula: primeiro, você faz uma revista; depois, vai aos eventos, se junta com outras pessoas e monta um stand. Nós não inventamos nada mirabolante, mas era um momento que precisava acontecer. O que aconteceria com o stand do Quarto Mundo no FIQ 2013 se não estão tendo novas publicações? Não sei. Na medida em que não têm publicações novas, você pode até não ter um stand do Quarto Mundo. No entanto, como existem pessoas dentro do grupo que são muito próximas, poderíamos fazer um stand com pessoas que são amigas e que tem um trabalho em comum, mas não estão necessariamente no Quarto Mundo.

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bastidores

Paulo Ricardo Lisboa trabalha com a diagramação de diversos quadrinhos de sucesso internacional

DESCONSTRUINDO OS QUADRINHOS

Érico Assis é um dos tradutores mais requisitados pelas principais editoras

POR Fernando Novais

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jeito que soe legal em português”. Érico Assis costuma trabalhar com a tradução de diversas publicações ao mesmo tempo. Ele afirma que, mesmo com a pressão exercida pelas editoras, consegue cumprir os prazos que lhes são imposto. “Eu estou traduzindo um gibi da editora Panini, que me pediram pra guardar sigilo, e também estou trabalhado em algumas publicações infantis para a Companhia das Letras. Recentemente, entreguei um quadrinho para o selo Quadrinhos na Cia chamado A Busca”, conta Érico. Após a tradução, o texto vai direto para o designer diagramar o quadrinho e não retorna para ser revisado, algo que Érico Assis contesta: “Eu não faço a diagramação, e é bem complicado mesmo. O ideal seria eu fazer a tradução e receber o material diagramado para conferir. Mas nem sempre dá pra fazer isso. Na maioria das vezes, é o próprio editor quem confere a versão diagramada, mas quando sobra tempo eles me passam e eu consigo ver se ficou legal mesmo a estética, se funciona na página de quadrinho e não numa página de Word, que é como eu vejo o texto traduzido, e aí faço algumas alterações”. Leitor assíduo de quadrinhos desde criança,

Foto - Divulgação

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uando falamos sobre a produção de quadrinhos, pensamos que talvez seja algo muito fácil e rápido de ser feito. Mas nem sempre é assim. Somente em termos de comparação, a obra Memória de Elefante, escrita e desenhada por Caeto, demorou cerca de três anos e meio pra ficar concluída. Para adaptar uma obra de língua estrangeira para o nosso idioma e diagrama-lo também não é nada fácil. Os profissionais que lidam com esse tipo de tarefa precisam executar seus serviços sempre de olho no deadline estipulado pelas editoras. Érico Assis trabalha como tradutor há doze anos. No início, quando ainda estava na faculdade, colaborou com a tradução de revistas em quadrinhos e sites. Ele traduziu obras como Daytripper, dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, e Contos de Lugares Distantes, de Shaun Tan. Segundo Assis, não é fácil adaptar a língua norte-americana para a nossa língua: “Depende muito de eu ler bastante em português para que possa achar equivalências ou o que na cultura deles tem de sentido parecido com a nossa”. Ele acrescenta que, às vezes, uma palavra determina para que possa soar bem com uma determinada cena: “Uma coisa que me ensinaram é que você tem que entender muito o personagem. Às vezes tem uma frase em inglês que tem que mudar completamente, sem mudar o sentido, é óbvio, mas ela tem que virar do avesso para dizer a mesma coisa de um

Foto - Divulgação

Saiba como os quadrinhos internacionais são adaptados para o nosso mercado

o designer Paulo Ricardo Lisboa conseguiu direcionar as funções de sua empresa com aquilo que ele mais gosta. Paulo é dono da empresa Lisboa Design & Comunicação e já trabalhou em publicações como Os Mortos Vivos, que é lançado mensalmente pela HQM Editora, Natureza Humana, roteirizado pelo jornalista e autor Gonçalo Junior e desenhado por Nestablo Ramos, Necronauta, roteirizado e desenhado por Danilo Beyruth, dentre outros. Paulo explicou um pouco como um designer precisa pensar no momento de trabalhar em uma publicação: “Além de utilizar os softwares, o diagramador tem que ser criativo, “pensar fora da caixinha”, ver oportunidades visuais e gráficas que ninguém mais repara, para assim dar um toque de qualidade na publicação que está trabalhando”. De acordo com o designer, as publicações internacionais são as que dão mais trabalho: “Este trabalho consiste em algumas etapas, primeiro tenho que limpar os balões, depois paginar tudo no programa de editoração. Feito isso recebo o roteiro traduzido e aplico os textos seguindo fielmente os padrões do título original. Em seguida aplico os textos de introdução, posfácio e ficha técnica. Daí, um

primeiro arquivo é gerado e encaminhado para verificação”. Apesar disso, muitas vezes são encontrados erros como duplicação de informações ou no próprio texto. Na avaliação de Paulo Lisboa, isso acontece devido ao volume itens para se trabalhar. A última etapa a ser trabalhada é a capa, que às vezes o designer possui total liberdade criativa para trabalhar em cima, mas em outras a exigência é de que seja seguido o padrão do quadrinho original. O designer diz que há mudanças no momento da tradução do quadrinho, mas ele garante que não é nada que afete a história: “Existem casos de piadas que para nós não faz sentido. Mas o que eu acho muito interessante das histórias “gringas”, seja nas quais eu trabalhei ou nas que leio por aí, é você ver outros costumes. Isso acontece bastante nos mangás. Sempre um pouco da cultura de outros povos é transmitida nos quadrinhos. Os quadrinhos são maravilhosos por isso. Você ultrapassa fronteiras ao folhear simples páginas”. A Nona Arte não possui fronteiras, ela pode ser desfrutada por qualquer leitor, independentemente do local em que a história tenha sido produzida. Graças aos trabalhos dos tradutores, designers e, principalmente, das editoras, os brasileiros podem desfrutar da arte e da leitura de belas histórias como as de Robert Crumb, Frank Miller, Will Eisner, dentre tantos outros gênios da arte sequencial.

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