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RAIZ. CULTURA DO BRASIL - NOVEMBRO 2008 R$ 7,50 - www.revistaraiz.com.br

Onde brilhem os olhos seus

Uma versão contemporânea do repertório de Nara Leão por Fernanda Takai E MAIS

Ronaldo Fraga, Roberto Menescal, Leila Pinheiro, André Midani, Lobão e muita sonoridade


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Fotos: Vange Milliet

RAIZ. CULTURA DO BRASIL - NOVEMBRO 2008 R$ 7,50 www.revistaraiz.com.br

AS POSSIBILIDADES DA MÚSICA Música é uma seqüência de sons combinada à pausas silenciosas em um intervalo de tempo com começo e fim. Na verdade, esta é sua definição técnica, que acompanha uma representação escrita e métodos de composição. Mas ela também é a manifestação cultural de um povo, um fenômeno social, arte, elemento ritualístico, terapia, passatempo, profissão. Tudo depende de quem faz e com qual fim. A música tem sua própria história, seu desdobramento ao longo do tempo numa determinada cultura. Às vezes lembrada, outras esquecida. Às vezes consultada, outras distorcida. A reportagem a seguir não pretende definir o que é música, tampouco traçar sua história. Mas após a leitura percebe-se que se trata de um recorte dela, de cinqüenta anos da história musical brasileira. Também não são os cinqüenta anos em sua totalidade, mas um antes e um depois representados por duas personagens, Nara Leão e Fernanda Takai, que compartilham o mesmo repertório. O resgate histórico da música é obtido a partir de um projeto atual, sobre o qual se desenrola a reportagem. Texto e arte: Vanessa Carvalho Foto de capa: Fabiana Figueiredo

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ONDE BRILHEM OS OLHOS SEUS POR VANESSA CARVALHO Nem tudo é uma jogada estratégica de promoção no meio musical. Quando o ato de fazer música está intrínseco na vida de um artista, as composições e projetos tomam forma naturalmente. Assim foi e assim é, cinqüenta anos antes e depois, com a capixaba Nara Leão e a amapaense Fernanda Takai, que se considera mineira depois de anos levando a vida em Belo Horizonte. À frente da banda de pop rock Pato Fu ao longo de 16 anos, Takai lançou seu primeiro disco solo, Onde Brilhem os Olhos Seus, uma versão contemporânea do repertório de Nara Leão. Tudo aconteceu com tanta naturalidade que superou toda e qualquer expectativa de quem, de alguma maneira, esteve envolvido no processo.

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Foto: Liliane Callegari

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sons COMO TUDO COMEÇOU Em 2006, a partir de uma descompromissada conversa com o crítico e produtor musical Nelson Motta surgiu a possibilidade de regravar as canções de Nara Leão, repertório ao qual Fernanda estava acostumad a ouvir desde os tempos em que vivia com os pais. Mas ela e John Ulhoa, seu marido, guitarrista do Pato Fu, pai da pequena Nina e responsável pelos arranjos do disco solo junto com o tecladista Lulu Camargo, também do Pato Fu, não quiseram simplesmente regravar. A idéia era uma releitura das canções no estilo pop rock ao qual estão acostumados a fazer, desconstruindo sambas e bossas. “Quis me desvencilhar da maneira da Nara”, diz Fernanda Takai. Até porque, como se tratam de duas artistas criadoras diferentes, o melhor a se fazer é preservar a individualidade criativa de cada uma como intérprete. “E que o nome da Nara não ficasse pesado para mim”, complementa. Conceitualmente, o que Fernanda fez foi parafrasear Nara. A paráfrase como tradução é o mesmo que o arranjo na música, em que o músico toma a obra alheia e introduz nela maneiras pessoais de interpretar o original. Aos poucos, Fernanda Takai e John Ulhoa foram criando os novos arranjos para as canções no estúdio de casa e, à medida que ficavam prontos, enviavam ao Nelson Motta por e-mail para avaliação. Motta gostava cada vez mais do resultado, que, para ele, soava como uma gravação sincera, sem a pretensão de artistas de formação pop-rock bandearem para o que não são. Nesse meio tempo, Fernanda se encontrou com o estilista Ronaldo Fraga e, entre uma taça de vinho e outra, ela comentou por alto sobre o disco. A carta na manga do estilista foi o

A PRIMEIRA APARIÇÃO Rodeada de muitos barquinhos pendurados pela passarela da São Paulo Fashion Week, em junho de 2007, Fernanda Takai interpretou pela primeira vez, para um público restrito ao mundo da moda, o repertório da musa inspiradora da coleção de Ronaldo Fraga e de seu álbum. Enquanto modelos de franja desfilavam vestidos estampados retro e calçavam um sapato em forma de fusca conversível, Fernanda Takai dava ritmo e tom ao desfile. As canções estabeleceram uma relação especial com as roupas e as fases de Nara: bossa nova, samba do morro e tropicalista. O desfile foi repetido em Tókio, capital do Japão, um mês depois. Vale abrir um parêntese e lembrar que a própria Nara Leão fez algo parecido na carreira. O ano era 1964, a empresa franco-brasileira Rhodia convidou a cantora capixaba para excursionar com a coleção Brazilian Style, pelo Brasil, Japão e alguns países da Europa. Para esse trabalho, Nara não só cantou, mas também serviu de manequim para os modelos. E se Fernanda, com seu 1.61m, manequim 40 e sapato 36, tivesse que vestir as combinações de Nara, com 1.60m, manequim 42 e sapato 36, não haveria nenhum problema. Leia mais sobre a coleção de Ronaldo Fraga no box ao lado.

Foto: Gabriela Lima

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estopim para o disco solo, pois Ronaldo Fraga estava desenvolvendo uma coleção justamente naquele momento, inspirada em Nara Leão, só que com lançamento previsto para 2009, quando se completam 20 anos de sua morte. Como ambos projetos já estavam engatilhados, deixaram combinado de antecipar tudo para 2007.


VISTA-SE DE NARA LEÃO O mais curioso de se ver em um desfile de moda é o caráter pessoal do estilista depositado em cada peça que perambula pela passarela. Em busca de inspiração, Ronaldo Fraga procurou saber mais sobre aquela que começou timidamente em um grupo de músicos de apartamento que, aos poucos, foi se profissionalizando e se dissolvendo. Dali surgiria aquela que de nada era conformada, que ousava e impunha opinião, que ainda hoje seria “desconcertantemente moderna”, mesmo que tenha acompanhado o surgimento de um ritmo cinqüentão, o qual passava o posto de musa pra quem o quisesse. Era Nara, Nara Leão. Aquela mesma que cedeu o lar de Copacabana para noitadas de bossa nova, que subiu o morro ao som de Cartola, Zé Keti e Nelson Cavaquinho, que não poupou esforços na passeata dos 100 mil, que ergueu o cacho de banana com muito orgulho ao lado dos tropicalistas, que demonstrou sua sensibilidade materna em canções singelas para criança e que não se deixava abater pois seus amigos eram um barato e que tudo mais fosse para o inferno. Toda essa atitude fazia de Nara moda. Quer queira quer não, ela lançou seu estilo, sua marca registrada. Enquanto o cabelo armado com laquê era a última tendência, ela preferia o tradicional chanel com franjas, corte que aderiu a vida inteira, e andava com os joelhos a mostra e violão nas costas, o símbolo da malandragem que com a bossa nova atingiu a classe média. Foi pensando em todas essas características que o estilista Ronaldo Fraga criou sua coleção, lançada na São Paulo Fashion Week de 2007. O primeiro momento do desfile é ditado pela Nara bossanovista, a do amor, sorriso e flor, dos ideais românticos declamados num banquinho e violão. As texturas dos vestidos remetem ao azul do mar, o barquinho claro de papel e as calçadas portuguesas. Já a fase do morro, do protesto, é pautada na favela e na notícia de jornal. A Nara tropicalista é envolta por estampas de quadriculado de piscinha e patchwotk colorido das sacolas de feira. Todos os modelos foram cortados no estilo Tulipa, algo parecido com um saco de dormir, coloridos com tons de azul, laranja, lilás, rosa, prata e o tradicional preto-e-branco. Tramas de algodão são entremeadas com seda pura. Nos pés, uma divertida lembrança, os sapatos em formato de fusca conversível, que Nara conduzia. Ilustração: Croqui/Ronaldo Fraga

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sons O PRIMOGÊNITO CHEGA AO MUNDO Depois da prévia na São Paulo Fashion Week, os fãs ficaram só na vontade durante alguns meses. Eis que em novembro daquele mesmo ano, a distribuidora Tratore colocou no mercado uma modesta tiragem de Onde Brilhem os Olhos Seus, que se esgotou mais rápido do que o esperado. O disco ganhou uma edição japonesa pelo selo Taiyo, lançada um mês depois, em que contém uma faixa exclusiva, Kobune, ou simplesmente O Barquinho, composição da dupla Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, toda cantada em japonês. No Japão, é de praxe que os lançamentos acompanhem algum material bônus. Por falar em Roberto Menescal, o instrumentista participou com os arranjos de guitarra na canção Insensatez. A produção negociou a reposição do CD no mercado brasileiro, desta vez assumida pela distribuidora Deckdisc para março de 2008. Quem foi rápido e logo adquiriu um exemplar do álbum pôde conferir esmero e minimalismo lado a lado no primogênito da carreira solo de Fernanda Takai. O projeto gráfico de Onde Brilhem os Olhos Seus é assinado pela designer Andrea Costa Gomes, colega de

Fernanda desde a graduação em Comunicação Social na Universidade Federal de Minas Gerais. Ela, inclusive, desenvolveu a capa para o livro de Fernanda, Nunca subestime uma mulherzinha (Editora Panda Books). Para o disco, teve o cuidado de recuperar toda a estética criada pelo designer César Villela, junto com o fotógrafo Chico Pereira, na gravadora Elenco, especializada em artistas de bossa nova na década de 60, numa pesquisa a partir das capas da discografia da Nara. Onde brilhem os olhos seus é todo em pretoe-branco, com uma discreta foto de Fernanda e detalhes em alto-contraste na capa, encarte tipo pôster com letras, fotos e comentários do idealizador e diretor artístico Nelson Motta. “Queria fazer uma peça desejável, um livrinho, algo que despertasse a vontade de levar pra casa”, revela Andrea. Ela também é responsável pelo cenário dos shows (foto abaixo) ao lado do marido e arquiteto Fernando Maculan. Juntos, eles criaram um visual pop, japonês, bem iluminado, prático para transportar e fácil de montar. “Os elementos do disco estão todos lá, a faca redonda, o grafismo, a simplicidade”, explica. Foto: Liliane Callegari

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E fez-se a bossa... Existiu uma nova batida, aderida por um pequeno grupo informal da classe média carioca residente na zona sul – mais precisamente no eixo Copacabana-Ipanema, que passou a cantar e tocar do novo jeito e de repente se fez profissional, ganhando proporções de um movimento que perpetuou um gênero dentro do hall da música brasileira. Oras, mas se ela completou cinqüenta anos é que algum marco existe. Há quem considere que o início de tudo foi no LP Canção do amor demais (1958) da cantora Elizete Cardoso, que teve o violão de João Gilberto na canção Chega de Saudade. Outros preferem ignorar essa passagem, já que o disco de Elizete não creditou na ficha técnica a participação de João Gilberto, passando a considerar como marco o 78 rpm solo de João Gilberto, lançado dois meses depois pela gravadora Odeon, contendo as canções Chega de Saudade e Bimbom. Para confundir mais ainda, o próprio João Gilberto lançou o disco Chega de Saudade. Só que, por garantia matemática, esse não é o marco, já que foi lançado em 1959, a menos que queiram comemorar duas vezes. Haja saudade! Aos que se desprendem da cronologia chegam até a arriscar o nascimento da bossa nova no mítico apartamento de Nara Leão. O fato é, João Gilberto é tido como o “dono” da batida, mas não a inventou do dia para a noite. Como todo aspecto cultural, a música foi também um processo. A base para os arranjos é o samba e suas variações desde 1930, porém o resultado foi uma batida diferente a ponto de merecer nome próprio. Os músicos mais lembrados quando se fala em bossa nova são João Gilberto, Vinícius de Moraes, Antonio Carlos Jobim, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Johnny Alf, João Donato, Sylvinha Telles e Nara Leão. Mas haviam muitos mais. Quando a bossa tomou dimensão internacional, muitos dos instrumentistas partiram para fazer carreira. É certo dizer que a primeira aparição em terras alheias não foi das melhores. O lembrado show no Carnegie Hall, em 1962 nos Estados Unidos, rendeu um punhado de gafes, mas nenhuma delas foi grave o bastante para fechar as portas. Talvez por um princípio cultural de quem está acostumado ao jazz, a bossa nova foi incorporada como um ritmo diferente, porém familiar. Por mais que o samba de raiz chame a atenção dos estrangeiros por sua malemolência, foi a bossa nova que os cati-

A TURNÊ Com disco no mercado e fãs ansiosos, a estréia oficial da turnê aconteceu em 8 de março de 2008, no palco do SESC Pinheiros, em São Paulo. O ano não poderia ser mais propício, pois “2008” é o marco dos cinqüenta anos do surgimento da bossa nova. (Leia sobre a história do movimento musical no box ao lado). Ainda que 2008, a bossa nova, Nara Leão, Fernanda Takai e Onde brilhem os olhos seus tivessem tudo para ser uma boa estratégia de lançamento, não passou de uma coincidência. A simultaneidade dos eventos acabou rendendo a Fernanda uma porção de convites em shows comemorativos ao lado de precursores, como Carlos Lyra, João Donato e Roberto Menescal, e artistas da nova geração que, assim como ela, tiveram influência das tantas bossas. Exemplo disso é a cantora Bebel Gilberto, filha de João Gilberto. Eis que naquele sábado, 8 de março, a vocalista do Pato Fu subiu ao palco “sozinha”, com figurino assinado por Ronaldo Fraga, acessórios de Marcelle Lawson-Smith e sapatos Feng, emoldurada pelo cenário da designer Andrea Costa Gomes e do arquiteto Fernando Maculan. Diga-se não tão desamparada assim, pois estavam lá também John Ulhoa (guitarra), Lulu Camargo (teclado), Mariá Portugal (bateria) e Thiago Braga (baixo/violão), os integrantes da banda que a acompanham pela turnê solo. Só para esclarecer, Mariá toca também no Trash Pour 4 e Dona Zica,

vou com notas mansas e temas utópicos como o amor, a beleza, o desfrute dos bons momentos. A individualização da turma aconteceu à medida que o autoritarismo da ditadura militar foi engolindo tudo e todos. Cada artista passou a se manifestar como pôde. E assim vieram os protestos, os festivais das canções, a tropicália, o rock. Novidades vão sendo incorporadas ao grande processo evolutivo e, inevitavelmente, estão aí para influenciar e serem influenciadas. Talvez a verdade seja até simples. Se a bossa nova completa cinqüenta ou ultrapassará os cem anos, isso só a classe média pode dizer, pois enquanto ela existir, também existirá a bossa nova. É o que teorizou Carlos Lyra no programa Roda Viva, exibido pela TV Cultura em 31 de março de 2008. RAIZ RAIZ 9


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Foto: NMessa

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Thiago no LAB e John e Lulu são parceiros do Pato Fu, como já foi dito anteriormente. De lá pra cá ninguém parou mais, Takai, Pato Fu e a equipe que viaja com os dois projetos. Além de outras cidades do estado de São Paulo, a turma fez um tour de norte a sul, passando pelo Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, Distrito Federal, Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco, Bahia, Ceará e Tocantins. Em cada parada são feitas muitas entrevistas com a imprensa local, sessões de autógrafo em livrarias, tanto para o disco quanto ao livro de Fernanda, Nunca subestime uma mulherzinha, e os aguardados shows. Nada de pocket com banquinho, voz e violão, o grande lance são os arranjos da banda completa. Em cada apresentação, além de manter um diálogo simpático com a platéia, entre uma canção e outra de Onde brilhem os olhos seus, Fernanda Takai aproveita para fazer releituras de outros artistas* e incrementar o repertório. A TRADUÇÃO AUDIOVISUAL No meio dessa agenda movimentada, a cantora arranjou tempo para gravar dois video-clipes. O primeiro lançado foi o da canção Insensatez, com direção de Luiz Ferré, pela produtora Bossa Nova Films. O vídeo é todo em preto-e-branco, com poucos detalhes em vermelho, o que remete à identidade visual da bossa nova como foi bem lembrado por Andrea Costa Gomes no projeto gráfico do disco. Fernanda Takai veste um modelo criado pelo estilista Ronaldo Fraga, que também aparece no clipe em meio a seus desenhos. O vestido aparenta ser feito de papel, propositalmente, para dar um ar de fragilidade ou de vontade de amassar e fazer tudo de novo. A versão audiovisual de Insensatez é melindrosa, tem Fernanda Takai no centro da tela cantando sem pressa, abusando da contemplação. Como curiosidade, essas imagens foram utilizadas por Ronaldo Fraga em uma exposição no Museu de Arte Contemporânea de Tókio, no Japão. Completamente diferente é Kobune, uma versão japonesa para a canção O Barquinho (Ro-

naldo Bôscoli/Roberto Menescal), dirigido pelo santista Giuliano Chiaradia. As imagens foram captadas na praia da Reserva, no Rio de Janeiro, em três horas de boas risadas entre amigos. Fernanda e Chiaradia já haviam trabalhado juntos em clipes do Pato Fu. “O bacana de trabalhar com o John e com a Fernanda é a cumplicidade e a energia criativa que os dois têm, isso ajuda muito no processo como um todo”, relata o diretor. Apesar de também ser em preto-e-branco, recorrendo em alguns momentos à técnica chamada solarização, em que certos tons da imagem são invertidos, o clipe segue por uma linha mais lúdica e divertida pelo uso de efeitos gráficos pós-produzidos em nanquim, feitos pelo Estúdio Paralelo sob direção de Paula Padilha, e elementos cênicos orientais, como uma sombrinha e um leque. Segundo Chiaradia, a fotografia do vídeo foi inspirada nos trabalhos do pintor e fotógrafo Man Ray, expoente dos movimentos dadá e surrealismo. “Isso trouxe o tom bucólico da bossa”, explica. O BALANÇO DO PROJETO Ao ser questionada quanto à conciliação da banda com o disco solo, Fernanda fica feliz em ver que essa foi uma chance de ampliar seu público. “O Pato Fu é minha prioridade, apesar de que meu disco tem chamado muita atenção”, admite. A cantora afirma ainda que “a maioria ouve os dois projetos, quem ouve Pato Fu descobre Nara e vice-versa”. Colocando na balança, o disco definitivamente brilhou. Trazendo na bagagem o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de São Paulo (APCA) para melhor álbum de música popular brasileira de 2007 e indicações ao prêmio TIM de Música para melhor disco pop rock de 2008, melhor cantora pop rock e melhor cantora pelo voto popular, Fernanda Takai, satisfeita com o resultado de um repertório tão bossa e samba aliado ao seu jeito marcadamente pop e rock, diz que “o sucesso é relativo”. “Pra muita gente é medido em números, para mim em reconhecimento”, finaliza.

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O QUE DIZEM...

“A música andou, houve outras músicas, veio jovem guarda, tropicália e a música mais pasteurizada, americana e a bossa nova foi ficando. Eu acho que ela independe dos aniversários. Pra existir, ela nunca vai ser sucesso, nem quando ela esteve no auge. Ela não é música hoje pra dançar, pra pular é pra ficar quieto, pra ouvir, pra namorar, colocar no ipod, curtir no carro. Não é música pra colocar na festa e a vida tem sido a festa. Você vê que nas paradas de sucesso, os 10 artistas iniciais, são todos dançantes e porcaria. O mais bacana é que a bossa nova não está na moda, não será moda, e está aí sempre existindo com outros artistas. O trabalho da Takai eu achei lindo e acho que ela deve estar até hoje surpreendida com o sucesso que está fazendo. Isso só confirma o acerto da Nara, nas escolhas das produções e o acerto da Takai que teve a idéia de reviver esse repertório pra uma geração que não sabe nem quem é a Nara” (Leila Pinheiro, cantora e compositora) “O que mais se vê no campo musical é a regravação de canções sob outras roupagens: interpretações pessoais. Assim, o que a Fernanda Takai fez é o que mais acontece: regravação, versão “moderna”, mais atual e não necessariamente melhor do que as gravações de origem. Quem não cria, repete o já feito, com variados graus de originalidade e interesse artístico. A cantora apresenta novas versões ao seu gosto e estilo próprio, como muitos fazem. Valorizo regravações que incluam informações novas, traços sonoros novos aos que já existem: improvisos, solos vocais ou instrumentais inovadores, colagens, inversões de sentido, citações etc. Regravar apenas por regravar, pouco acrescentando ao original, parece-me carente de sentido e finalidade. Comprei o CD da Fernanda Takai dias atrás. Ouvi com atenção e posso dizer que nele acontece bastante do que acabei de dizer. Isto é, a cantora não ousa, não inova. Suas versões são planas e, pior, muito parecidas com as originais. Sendo assim, prefiro mil vezes as originais! Não há o que comentar sobre questões técnicas de gravação nem estilísticas, pois o trabalho é perfeito e coerente. Mas, repetindo, não há grande inovação. É como se, fazendo-se paráfrases textuais, apenas uma ou outra palavra tenha sido trocada por sinônimos. Tirando alguma pouca brincadeira rítmica, ficou quase cópia. Lógico que a Fernanda proporcionou uma depuração asséptica às novas versões. Ficou bem ao seu estilo cibernético, quadradinho, isento e impossivelmente discreto. Há quem goste. Mas, para mim, foi tirado muito do calor e intensidade que normalmente são partes integrantes da música popular. Não vi grande vantagem. Ouço as gravações originais com muitíssimo mais interesse e prazer. O fato de os arranjos serem atuais, “modernos”, como diz o encarte, não implica necessariamente em boa qualidade. Podem estar aprimorados tecnicamente, depurados, mas carecem de conteúdo humano. Posso estar enganado, mas não creio que a música dela fique. E por um motivo muito simples: não toca o coração, não marca. Música de aniversário infantil: ouve-se e esquece-se” (José Estevam Gava, músico, prof. dr. do Depto. de Música da Universidade Federal de Pelotas, autor dos livros Linguagem Harmônica da Bossa Nova e Momento Bossa Nova)

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... POR AÍ “Acredito que é sempre positivo fazer releituras. Não vejo sentido em fazer homenagem a determinada tradição artística procurando ser absolutamente fiel ao original, porque este tipo de procedimento sempre incorre em cópia. A releitura, além de mais criativa, atualiza o estilo que se pretende homenagear. Gostei muito do disco, exatamente pela releitura criativa que Takai fez de Nara Leão. Um bom exemplo também é a releitura que Janis Joplin faz de “Summertime” em 1969, canção que George Gershwin fez para ópera Porgy and Bess. Joplin recriou em rock a belíssima composição jazzística de Gershwin. A canção, originalmente composta para ser interpretada por cantoras líricas, já havia sido gravada (e recriada) ao estilo jazzístico por diferentes cantoras. Ao gravá-la como rock, Janis Joplin fez uma experimentação radical e transformou a canção em uma nova criação musical” (Santuza Naves, prof. dra. coordenadora do Núcleo de Estudos Musicais da Universidade Cândido Mendes/RJ) “Adoro o trabalho da Fernanda, ela é uma pessoa muito importante e merece o respeito de todos que militam na música” (André Midani, produtor e crítico musical, foi fundador da filial brasileira da gravadora Warner Music, diretor artístico da Odeon e da Philips) “Releituras, no mais das vezes, são bem-vindas. No caso de Fernanda Takai penso que tenha sido mais um acréscimo de elementos eletrônicos do rock contemporâneo, do que, necessariamente, uma releitura. Pato Fu e Bossa Nova, não me parecem ser uma aproximação da qual se possa tirar algum proveito, a não ser como curiosidade. Uma releitura excelente da Bossa Nova é a da música de Marcos Valle realizada pelo grupo Bossa Cucanova ou ainda a participação de Marcelo D2 na música de João Donato, realizada pelo próprio João Donato” (Hilton Jorge “Gogô” Valente, arranjador, pianista e prof. doutorando do Instituto de Artes da UNICAMP) “O projeto da Takai é adequado pelo registro vocal parecido. É preconceito pensar que releitura não é uma coisa válida. De qualquer forma, o Brasil, por falta de auto-estima, se desmantela com o passado. Um nacionalismo de araque. A bossa nova é easy listening, música pra ouvir comprando lingerie ou no elevador” (Lobão, músico e compositor) “Acho uma visão bem interessante do repertório trilhado por Nara, e agora numa jogada bem pop, o que mostra as possibilidades que a música brasileira nos permite quando mudamos a linguagem. O projeto é bem coerente com a proposta dele, tanto que está fazendo sucesso e Fernanda tem trabalhado em muitos shows por causa disso, inclusive com a turma da BN, e aí sim, cantando no estilo de Nara, Fernanda é uma gracinha de pessoa” (Roberto Menescal, cantor, compositor, instrumentista e precursor da Bossa Nova)

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sons AQUELA QUE VIROU MUSA, ASSIM, SEM QUERER

nome garantido no hall da bossa nova. Violonista e dona do mítico apartamento de Copacabana, Nara custou a participar profissionalmente Ela nasceu em Vitória, Espírito Santo, em ja- da turma, por isso sempre renegou o título de neiro de 1972, mas com apenas um ano de vida “musa da bossa nova”, que ela mesmo dizia foi morar no Rio de Janeiro, praticamente uma estar mais para “muda”. Em seu primeiro show, carioca. Nara Leão era tímida e tinha lá seus cantou duas canções de costas para o público problemas existenciais. Emancipada aos 16 de tão nervosa que estava. Daí em diante ninanos, frequentadora de psicanalistas e rodea- guém mais segurava Nara, que foi até o Japão da de amigos bem mais velhos. O networking se apresentar. Ousada que só, despertou controjá funcionava desde a década de 50: Nara co- vérsia entre os músicos da classe média bossanheceu Roberto Menescal, que conheceu Car- novista quando subiu o morro para cantar samba los Lyra, que conheceu Ronaldo Bôscoli e que de raiz ao lado de Zé Kéti e Cartola. Não que ela foram conhecendo todos aqueles que hoje têm tenha renegado a música de apartamento, de roda com banquinho e violão para meia dúzia. Nara queria mesmo era transmitir mensagens além das utopias alienadas, ter seu canto livre. Ela foi uma das vozes de protesto, pediu passagem pra ver a banda passar. A essa altura, seguindo o vento de maio, ela estava de aliança no dedo com o cineasta Cacá Diégues, com quem teve seus dois filhos, Isabel e Francisco. Juntos, Nara e Cacá participaram de várias manifestações contra a ditadura militar, como a passeata dos 100 mil e a greve do teatro carioca contra a censura. Com a instituição do AI 5 se exilaram na França e só puderam voltar três anos depois. Novamente no Rio de Janeiro e com os dois filhos, Nara diminuiu o ritmo. Resolveu retomar os estudos, foi aluna de psicologia da PUC, se separou de Cacá e gravou um disco com canções infantis. Aos poucos foi gravando outros e descobrindo aquele que seria seu mal. Tonturas, perda de memória, falta de lucidez, pensamentos desorientados e desmaios. Exames não acertavam o diagnóstico. Até que se descobriu um tumor em uma parte inoperável do cérebro. Nara, entre abraços, beijinhos e carinhos sem ter fim, não se rendeu. Com açúcar e com afeto, viveu seus sonhos dourados ao som de um samba encabulado até o último dia, aquele 7 de junho de 1989.

Foto: Divulgação

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Ela nasceu na Serra do Navio, Amapá, se considera mineira por residir na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais, há mais de 20 anos e é neta de japoneses. Fernanda Takai nem sempre teve a vida embalada pela música ou ditada pela agenda de shows, ela também teve uma profissão mais convencional, ou mais no anonimato. Takai graduou-se em Relações Públicas pela Universidade Federal de Minas Gerais, em 1993, e atuou na área durante algum tempo. Não vivia da música, mas sempre curtia, andando as voltas à procura de cordas para o violão e palhetas para tirar algumas notas.

Foto: Ryo Mitamura

A BRASILEIRA COM NOME JAPONÊS

Ela era justamente cliente da loja de instrumentos de John Ulhoa, que viria a ser seu marido e pai da pequena Nina, hoje com cinco anos. Dali, de um bate-papo e um brainstorm, ela (vocal), John (guitarra) e Ricardo Koctus (amigo, baixista e funcionário dessa mesma loja) decidiram criar uma banda. Oras, por que não? Até parece simples fazer dar certo, mas o momento foi propício, já que a década de 90 ficou marcada pela aderência ao rock nacional. O Pato Fu tomou forma com a inclusão do baterista Xande Tamietti e do tecladista Lulu Camargo. E assim Fernanda Takai foi garantindo seu espaço, seu público, seu reconhecimento ao liderar o Pato Fu. Mesmo pertencendo ao mundo da música como intérprete, ela não deixou de lado a espontaneidade de ser também fã de alguém. A diferença é que ela pôde não só conhecer o ídolo, como também gravar algo especial com o tal. Até que, um belo dia, veio a chance de um trabalho solo, que ela abraçou e se surpreendeu com a repercussão. Seja como for, Fernanda Takai, com seus 36 anos de vida e 16 de música, com várias milhas e quilômetros rodados em turnês em território nacional e gringo, ainda pensa na pausa para uma segunda maternidade e adverte: “O Pato Fu é minha prioridade”.

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