N atá l i a I n z i n n a
universo periférico A poesia também vive na periferia de São Paulo
universo perifĂŠrico A poesia tambĂŠm vive na periferia de SĂŁo Paulo
universidade paulista Curso de Comunicação Social - Jornalismo
projeto experimental (TCC)
universo periférico autora Natália Inzinna
ilustrações e projeto gráfico Vinicius Rossignol
fotografias Natália Inzinna Divulgação
orientação editorial Marco Moretti
Este livro foi originado a partir de um trabalho apresentado como exigência para obtenção do título de Bacharel em Jornalismo do Curso de Comunicação Social da Universidade Paulista - UNIP.
Nenhuma parte desse livro pode ser copiada sem autorização da autora.
universidade paulista – UNIP Rua Apeninos 267 – Aclimação – Fone 3347 1000 CEP 01533-000 – São Paulo – SP 2011
Para minha mãe: a mulher mais forte que eu conheci até hoje e que nunca me deixou desistir. Para Victor: o companheiro de todas as horas que, além de motorista e assistente, foi também o braço forte que me abraçou e confortou.
Chega mais. No sarau da Cooperifa não há limite de capacidade, tem sempre lugar para mais um. A única regra é simples: é preciso entrar armado. As balas, produzidas uma a uma, são feitas de palavras. Luta, vida, arte... Pura poesia.
sumário Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 Capítulo 01
a poesia muda de endereço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 Capítulo 02
PODER DE TRANSFORMAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 Capítulo 03
ARTISTA CIDADÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54 Capítulo 04
INVASÃO POÉTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 Capítulo 05
A ARTE QUE LIBERTA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
O ponto final aponta para um novo começo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
A pr e s e n taç ão
A poesia na voz do povo
As vozes que cantam palavras na periferia de São Paulo são desconhecidas, mas cada uma delas tem um nome e sua história para contar. Nascidos em bairros afastados do centro, muitos moradores periféricos passaram grande parte de suas vidas sem conhecer os livros e sem se familiarizar com as letras. Desprovida de bibliotecas públicas, carentes de escolas, de cultura e atenção, essa gente teve que dar um jeito – como todo bom brasileiro aprende desde cedo –, e fez brotar a poesia na periferia. Eles não só passaram a ler alguns versos como a recitá-los também, em um sarau chamado “Cooperifa” (Cooperativa Cultural da Periferia). Essa história teve início em 2001, quando Sérgio Vaz – poeta até então desconhecido –, resolveu reunir alguns amigos em um bar paulistano para recitar poemas. “Uma vez nós ficamos até tarde e incomodamos o dono do bar, que mandou a gente ir embora. Uns dias depois o Marco Pezão, que é o cara que fundou o sarau comigo, me contou sobre um boteco novo e fomos falar com o dono. Pedimos um dia da semana para fazer poesia, ele aceitou e nós começamos. Era realmente um lugar para fazer poesia e conversar. Não tínhamos nem ideia do que ia acontecer, era uma coisa bem despretensiosa mesmo”, lembra Vaz.
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O que Sérgio não imaginou é que a Cooperifa serviria de exemplo para tantos outros saraus que surgiriam depois. E que o modelo de democracia poética desenvolvido no bar do Zé Batidão seria seguido por muitos outros sonhadores com o mesmo objetivo: transportar a literatura para a periferia, sem rota de volta. Ali, a poesia se misturou com o cimento com o qual as casas são construídas e ganhou vida ao ser partilhada com a simplicidade daqueles que ralam para viver. A caneta passou a ser instrumento de trabalho e muita gente descobriu que poderia escrever sua própria história, ou até quem sabe, criar novos enredos para suas vidas. Através das páginas desse livro você irá conhecer alguns personagens, moradores de bairros periféricos de São Paulo, que tiveram a vida transformada de alguma maneira por causa das palavras. Gente simples que se delicia com o sabor das letras e faz questão de dividir esta sensação com quem estiver disposto a sentir também. Ajeite bem o travesseiro e saboreie a história de pessoas comuns que se deixaram envolver pela beleza e irreverência das palavras. Como diria Sérgio Vaz, “é tudo nosso”!
Capítulo 01
a poesia muda de endereço No sarau da Cooperifa, a poesia encontra sua redenção. Acostumada a frequentar os salões das elites, ela encontrou morada em um botequim da quebrada, onde se entrega sem pudor aos encantos de quem lhe declara amor incondicional. Eleilson Leite
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Do centro para a margem Sarau Substantivo masculino. 1 Reunião festiva, em casa particular, em clube ou teatro, em que se passa a noite dançando, jogando, tocando etc. 2 Concerto musical de noite. 3 Reunião de pessoas amantes das letras, para recitação e audição de trabalhos em prosa ou verso. Dicionário Michaelis
Quando Sérgio Vaz criou a noite de sarau na periferia, nem fazia ideia da origem dessa palavra. Foi apenas depois de algum tempo que o “poeta da periferia” descobriu que eles foram famosos no século XIX. Eventos elegantes, regados a champanhe e finos quitutes: naquela época os saraus eram privilégio de poucos. O costume europeu desembarcou no Brasil junto com a corte portuguesa e, por isso, predominou na província do Rio de Janeiro, como eram chamadas as cidades naquele tempo. Normalmente os saraus aconteciam em salões ou casas particulares e os convites eram restritos ao círculo de amizades dos anfitriões. Durante as noites de festa, escritores e artistas juntavam-se aos demais convidados para recitar poesias, apresentar peças teatrais ou cantar novas composições. O piano de cauda era praticamente obrigatório, já que na época o violão era considerado instrumento pobre e vulgar. Enquanto a música era tocada, os salões se transformavam rapidamente em pistas de dança – onde, muitas vezes, os inocentes flertes davam início a romances dignos de livros. Em algumas de suas obras, Machado de Assis descreveu os saraus ao retratar a sociedade daqueles tempos, assim
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como a trajetória de seus personagens. É o caso do romance Ressurreição, o primeiro publicado pelo autor. “A casa do coronel podia conter o triplo das pessoas convidadas para o sarau daquela noite; mas o coronel preferira convidar apenas as pessoas mais íntimas e familiares. (...) Quando Félix entrou, dançava-se uma quadrilha”1.
Ao longo do tempo os saraus foram esquecidos e apenas há alguns anos é que foram resgatados. Porém, diferente do que acontecia séculos atrás, os saraus de hoje acontecem predominantemente na cidade de São Paulo. “Sem saber de nada disso, eu e o Pezão, numa fria noite de outubro de 2001, criamos na senzala moderna chamada periferia o Sarau da Cooperifa, movimento que anos mais tarde iria se tornar um dos maiores e mais respeitados quilombos culturais deste país”, relata Sérgio Vaz no livro Cooperifa - Antropofagia Periférica, de sua autoria. Atualmente, os recitais acontecem em diversos pontos culturais da cidade, como por exemplo, a Casa das Rosas, localizada na Avenida Paulista. Mas não é apenas nos centros culturais que a poesia aporta. O evento que tempos atrás foi destinado aos abastados da sociedade, chegou também às ruas simples da periferia, acomodado em botecos de todos os tipos. O champanhe servido em lindas taças de cristal cedeu espaço para os copos cheios de cerveja, rapidamente esvaziados. A poesia expandiu os horizontes e os versos foram parar nas margens das cidades brasileiras. Sem desmerecer cor ou extrato bancário, as palavras foram dominando aos poucos a 1 Trecho extraído do livro Ressurreição de Machado de Assis, disponível em www.machadodeassis.net
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vida dos trabalhadores de São Paulo. Na Zona Sul da cidade, a poesia encontrou Sérgio Vaz, e por meio dele, e de mais alguns sonhadores, passou a ser partilhada com o povo em um sarau democrático, chamado Cooperifa.
Cooperação na perifa! Zona Sul de São Paulo, Rua Bartolomeu dos Santos. O bairro? Jardim São Luís, Piraporinha, Capão Redondo ou Jardim Guarujá – cada um fala uma coisa. Nas reportagens publicadas em jornais de grande circulação, como a Folha de S. Paulo, é Capão Redondo – nomeação mais abrangente e dramática, já que grande parte das pessoas pensa que esse é um dos maiores e mais violentos bairros da cidade. Para os moradores da região, o lugar é simplesmente o Jardim Guarujá. Ainda assim alguns entram em conflito, dizendo que é Piraporinha. A definição fica a critério do visitante. Somente uma coisa é certa, é na periferia – ali na Rua Bartolomeu dos Santos, nº 797 – que o boteco do Zé Batidão abriga o evento cultural mais efervescente das quebradas da cidade: o Sarau da Cooperifa. Desde 2003, há pouco mais de sete anos, o sarau acontece toda quarta-feira, nesse bar de esquina. Mas não foi ali que essa história teve início. Foi em 2001, quando Sérgio Vaz conheceu uma fábrica desativada no Taboão da Serra, que a ideia de criar um evento cultural na periferia surgiu. Indignado com a falta de atrações de entretenimento e de cultura na região em que morava, o poeta percebeu que não adiantava reclamar, era preciso fazer alguma coisa.
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Um enorme portão na BR-116 sinalizava a entrada da fábrica. Para chegar ao galpão abandonado era preciso andar cerca de cem metros por uma rua de paralelepípedos cercada de árvores, conforme descreve Sérgio. “Saí de lá diferente de quando tinha entrado, mas o mais estranho era que eu ainda não sabia o porquê dessa reação, só sabia que era uma energia positiva”. No mesmo dia, quando encontrou os amigos Brói, Big Richards e Gigio, ele se deu conta do que poderia ser feito naquele lugar. Sem perder tempo, logo contou a ideia para os brothers. “Comentei sobre o lugar e tudo que eu tinha visto e sentido e que se a gente desse uma trabalhada daria para fazer um grande evento cultural”, lembra Vaz. E foi ali, em uma fábrica desativada na BR-116, que o sonho de incluir a cultura no cotidiano da periferia saiu do plano das ideias para se transformar em realidade. Depois de tudo organizado com dinheiro escasso – saído do bolso dos idealizadores – só faltava escolher um nome para o evento. “Corre dali, corre daqui, e a gente fazendo tudo com o dinheiro do nosso próprio bolso, colocamos só duas faixas falando do evento e não tínhamos verba nem para flyers ou cartazes. Aliás, não tínhamos nem nome para o evento”, relata Vaz no livro Cooperifa. Foi então que eles resolveram unir duas palavras muito usadas por Sérgio e Big Richards: perifa e cooperação. Enquanto Sérgio sempre dizia que os artistas deveriam cooperar uns com os outros, Big se referia àquela região como perifa. O resultado? Cooperifa. Deu tão certo que, dez anos depois, o nome continua o mesmo, conhecido por milhares de pessoas. O evento cultural, organizado aos domingos, tinha direito a poesia, música, teatro, capoeira, lançamento de livros e dança. Porém, a alegria de todos durou pouco. Logo eles foram impedidos de usar o galpão.
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Pela primeira vez, a história da Cooperifa foi paralisada, assim como os sonhos dos agitadores culturais do evento. Mas isso não foi suficiente para fazê-los desistir. Afinal, todos eles – tanto organizadores quanto espectadores – já haviam sentido o prazer de ver tudo aquilo dar certo e queriam mais. “Na fábrica onde nasceu a Cooperifa e onde eu também renasci, descobri uma coisa muito importante na minha vida: que se a gente quisesse realmente alguma coisa, era só pegar, porque era tudo nosso”, decreta Vaz.
O único lugar público da periferia: o Boteco Pouco tempo depois, Sérgio conheceu Marco Iadoccico – o Marco Pezão. O encontro aconteceu em uma rádio comunitária de Taboão da Serra, durante a participação de Sérgio em um programa de esportes. Pezão, repórter dedicado ao futebol de várzea, era conhecido ali como o «poeta da bola». Durante a entrevista, Pezão declamava as poesias de Sérgio, o que deixou o poeta da periferia admirado. «Lembro de ter ficado impressionado com a sua voz firme e bem postada, o que fazia com que os poemas ficassem muito melhor do que pareciam ser». Depois daquele dia, os dois poetas – um da periferia e outro da bola –começaram a se reunir com outros colegas em um bar da região. Durante as reuniões eles passaram a recitar poesias e aquilo transformou-se em hábito, com direito a nome e data marcada. Eram as Quintas Malditas. Os encontros realizados às quintas-feiras serviram de inspiração para um projeto muito maior: um sarau de boteco para todos. As Quintas Malditas acabaram rapidamente, para dar lugar à Cooperifa.
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Foi Pezão quem descobriu um novo boteco para hospedar o tão sonhado sarau. Após uma conversa com o dono do comércio, estava tudo acertado. A Cooperifa aconteceria a cada quinze dias, às quartas-feiras, no Garajão – um bar localizado em Taboão da Serra. Não poderia haver lugar melhor, afinal, como Sérgio costuma dizer: “o bar é o único espaço público da periferia”. Os primeiros saraus não chegaram a ser um fracasso, mas também passaram longe de um sucesso. Foi a falta de público que marcou o início da Cooperifa no Garajão. Nesse momento a resistência dos idealizadores do evento tornou-se imprescindível. Sérgio criou o hábito de ligar para todos os amigos e conhecidos, cobrando (e exigindo) a presença de todos. Enquanto isso, Pezão divulgava o evento em jornais da região. Contrariando a lógica, os dois decidiram que o sarau aconteceria não só a cada quinze dias, mas toda semana – debaixo de chuva ou estrelas. A teimosia e a persistência surtiram efeito. Em dois anos o Sarau da Cooperifa ficou tão conhecido que até o jornalista Marcelo Rubens Paiva se deslocou até a periferia para escrever uma reportagem, publicada no jornal Folha de S. Paulo. No dia 11 de dezembro de 2002, os leitores de um dos maiores jornais de São Paulo puderam conhecer o sarau da periferia através das palavras do jornalista. “O público senta em torno de mesas regadas a cerveja, para ouvir o grito semântico da perifa: poemas de denúncia social, exaltação à consciência negra e, claro, amor. Mano Brown, dos Racionais, é presença constante. Afro-X e Simony já apareceram por lá. Organizados por Vaz, da Cooperifa, os saraus atraem expoentes da antiga comunidade e novos poetas, como os adolescentes Kennya e Pelezinho”, descreve Marcelo Rubens Paiva em matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo.
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Porém, como nem tudo na vida é fácil, a alegria vivida no bar do Garajão chegou ao fim em meados de 2003. Em uma quarta-feira qualquer, comum como todas as outras, Sérgio ia chegando ao boteco acompanhado de sua mulher quando viu que o lugar estava fechado. Os rumores que ele e os amigos escutavam há algum tempo tornaram-se realidade. O bar foi vendido. O atual proprietário deixou bem claro que não queria saber de saraus de poesia, aquele seria um point de rock›nroll. No livro Cooperifa - Antropofagia Periférica, Vaz descreve aquele momento como um dos piores de sua vida. “Ficamos ali sentados por muito tempo como viúvos e viúvas consolando um ao outro, e avisando as pessoas que chegavam sobre o falecimento do lugar. Entre lágrimas, lembro que foi um dos dias mais tristes da minha vida, e quando olhei para aquele bar como um amigo que acabara de morrer, também pensei que morreria”. Pela segunda vez, o sonho de levar a poesia para as margens da sociedade foi paralisado. Mas todas aquelas pessoas, que choraram em frente às portas fechadas do bar, estava longe de desistir. “Como de dor a gente entende, antes mesmo que o cadáver apodrecesse enterramos nossas lágrimas, juntamos nossas memórias com as nossas roupas de batalha e encarnamos num outro corpo, o bar do Zé Batidão”. Por ironia do destino ou não, o tal boteco do Zé Batidão já havia sido do pai de Sérgio, muitos anos antes. Foi no Bar e Empório Guarujá (primeiro nome do comércio) que o poeta passou a adolescência trabalhando. “Atrás do balcão eu via a vida passar sobre mim. Minha vida se resumia a trabalhar no bar e ir à escola, e eu não gostava de nenhum dos dois. (...) Eu nem sequer desconfiava que a minha senzala, durante mais de
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dez anos, iria se transformar um dia num dos maiores Quilombos Culturais do país: o Sarau da Cooperifa”, revela Vaz em livro de sua autoria.
Subindo a ladeira, o Bar do Zé Batidão A distância entre o centro e a periferia não é apenas geográfica. Há outras barreiras, invisíveis, que distanciam um lugar do outro. É por isso que esse trecho está escrito em primeira pessoa. Para que eu possa descrever qual foi a minha impressão sobre essa tão falada periferia - que todos pensam saber o que é, mas que nem tantos conhecem de verdade. Em primeiro lugar, é importante dizer que chegar até a periferia pode ser mais demorado do que ir para outra cidade. Para alcançar as beiradas de São Paulo é preciso percorrer alguns quilômetros, com um bocado de paciência em estoque: o congestionamento na Marginal Pinheiros é capaz de tirar até um monge tibetano do sério. Quem está habituado a percorrer pequenas distâncias e não costuma sair das “zonas de conforto” da cidade de São Paulo, certamente vai sofrer um pouco até chegar à Rua Bartolomeu dos Santos, ainda mais se depender de transporte público. A vantagem do trânsito caótico durante o percurso é que assim pude observar os detalhes, conforme os quilômetros iam passando. Para quem não conhece São Paulo, a Marginal Pinheiros – cujo nome oficial é Avenida das Nações Unidas – atravessa a cidade, ligando a zona oeste à zona sul. Além disso, ao longo da avenida é possível perceber as nuances de um lugar para o outro – do centro para a margem. Ao passar pela ponte Cidade Jardim, os prédios denotam a imponência de um dos maiores centros comerciais do mu-
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nicípio. O bairro abriga complexos luxuosos, frequentados apenas por quem “pode”, se é que você me entende. Só para citar, é naquela região que fica a Daslu Villa, marca chique de artigos de moda, e o Shopping Cidade Jardim, no qual incríveis sessões de cinema custam até R$ 56 por pessoa. Mais do que 10% do salário mínimo brasileiro, com o qual milhares de pessoas sobrevivem durante um mês inteiro. Alguns metros a frente, a impressão é de que a cidade vai se fechando ao redor da Marginal. Durante um longo trecho do percurso não há muito além de árvores e dezenas de carros para observar. A essa altura, a ponte João Dias, uma espécie de Muro de Berlim que separa o lado rico do pobre, já ficou para trás. Pouco tempo depois, a Marginal Pinheiros desaparece e chego, enfim, à via Guido Caloi. Ali já posso sentir o clima mais intimista, típico das periferias, misturado ao desconcerto de chegar em um lugar totalmente desconhecido. Até chegar ao próximo destino, indicado no mapa retirado do Google, demora um pouco mais – graças ao trânsito caótico e desordenado de São Paulo, que sim, sai do centro e chegacom força às franjas da cidade. Enquanto espero até a chegada à Avenida Guarapiranga, uso o tempo para analisar as pessoas espremidas nos ônibus ao lado. “Por quanto tempo será que aquela moça está em pé, na mesma posição?”, me pego questionando. Os olhos enfastiados, encaixados em um rosto envelhecido pelo cansaço, me fizeram acreditar que não era pouco e, pelo jeito, o caminho ainda seria longo. Não é apenas a literatura que chega com atraso às beiradas da sociedade, o transporte público também. Minha atenção mudou de foco logo que o carro atravessou a Avenida Guarapiranga e chegou, enfim, na Estrada do
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M’Boi Mirim. Desta vez não foram os ônibus, mas os botecos que fizeram meus olhos brilharem. Finalmente consegui compreender o que Sérgio quis dizer sobre os bares serem os únicos espaços públicos da periferia. Os botecos são, na verdade, o único lugar que todos os moradores têm em comum. É ali que todos se encontram para colocar a conversa em dia, além de servir como distração e entretenimento – já que faltam ali parques, cinemas e teatros, por exemplo. Ao longo da Estrada do M’Boi Mirim, os botecos são tantos que cheguei a contar três deles em um mesmo quarteirão. Uns grandes, outros menores. Nenhum vazio. Outro lugar que despertou a minha curiosidade foi a “Boite Café Paris”. Na fachada, o nome do lugar estava coberto por luzes piscantes nas cores verde e vermelho. Um espaço dedicado à diversão, certamente a alegria de muitos homens que não resistem a uma breve “paradinha” depois de um longo dia de trabalho. Após percorrer um curto trecho na Estrada do M’Boi Mirim, foi preciso virar à direita na Rua Humberto de Almeida e, novamente, à direita na Amitaba. Até aí tudo bem, o mapa estava claro. Foi depois disso que as coisas se complicaram. Umas quebradas aqui e ali e eu já estava perdida entre as vielas do Jardim Guarujá. Isso porque, até então, só conhecia a Estrada do M’Boi Mirim através das infinitas reportagens sobre o transporte público precário da região. Resolvi perguntar para um homem que passava pela rua como chegar à Rua Bartolomeu dos Santos, mas ele ficou olhando para mim com cara de “ih, pergunta difícil”. Mudei de tática e questionei sobre o bar do Zé Batidão, “aquele onde acontece a Cooperifa que, aliás, já deve ter começado”. Depois disso ficou fácil e logo o moço abriu um sorriso e apontou para cima: “é só subir a ladeira e virar à esquerda”. Pronto!
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Uh Cooperifa! Uh Cooperifa!
Quando alguém pega o microfone para declamar uma poesia que escreveu, é seu destino que recria, é seu lugar no mundo que reinventa. Quando “o povo lindo, povo inteligente” da periferia se apropria das palavras, é da História que passa a tomar conta. Eliane Brum
Pouco antes de o sarau começar, o boteco já estava lotado. No lado de dentro todas as cadeiras estavam ocupadas. O espaço, mesmo para quem estava em pé, era tão concorrido que algumas pessoas preferiram ficar na frente do bar, na parte de fora. Ali, os espectadores mantinham os pescoços esticados e os ouvidos atentos para escutar cada suspiro do poeta que declamava seus versos no palco improvisado. Para conseguir entrar no bar, precisei pedir licença a cada passo que dava, mesmo assim esbarrei em algumas pessoas e quase pisei no pé de outras. No salão principal, são mesas e cadeiras de plástico vermelhas que aconchegam os espectadores prevenidos, que chegaram com tempo de antecedência suficiente para garantir uma vaga. As mesas são dispostas lado a lado, formando duas longas fileiras em frente ao espaço destinado ao palco. Ao redor do salão mais mesas são dispostas nos espaços vagos, preenchendo o lugar. Uma enorme árvore, muito mais antiga do que a construção, ocupa o centro do boteco e oferece um toque de personalidade à decoração. O público que vai chegando é recepcionado calorosamente por Rose Dorea, Musa da Cooperifa. Pele negra, olhar
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determinado, sorriso contagiante, voz de trovão e coração de mãe: Rose é assim, inconfundível. Quando Sérgio chega, a agitação vem junto. Cheio de brincadeiras nos bolsos, ele não se preocupa em economizar. Em frente ao microfone, o poeta fala como se estivesse recebendo alguns amigos em sua casa. “Dona Edite, cala a boca!”, brinca com D. Edite, a Diva do Sarau que acabara de chegar. Aos poucos ele vai acalmando os espectadores, pedindo silêncio e atenção. Mestre de cerimônias da casa, Sérgio se prepara para dar início a mais uma noite de poesias no boteco do Zé Batidão. “Povo lindo, povo inteligente, sejam bem-vindos. Aqui só tem uma regra: o silêncio é uma prece. E é uma prece mesmo!”, enfatiza. Apesar de estar em frente ao microfone durante todo o tempo, o que Sérgio não consegue é ficar parado. As mãos completam as palavras, que saem através dos seus lábios impetuosamente. As pernas, cobertas por uma calça jeans, parecem dançar um ritmo frenético: para frente e para trás, de um lado para o outro. Enquanto isso a voz avisa: “se alguém aqui tiver ódio, inveja ou raiva no coração, saia agora. Aqui não tem espaço para isso”. Ansioso e orgulhoso por conta da chegada do aniversário de dez anos da Cooperifa, Sérgio discursa sobre o trabalho que cada um ali se dedicou a fazer em prol da comunidade. “Eu não fiz nada disso sozinho”. Depois de dizer os nomes de cada um dos envolvidos nesse projeto cultural, o poeta completa: “vamos chegar porra! Vamos mudar esse país!”. E assim o sarau começa embalado por um coro entusiasmado e contagiante. “Uh Cooperifa! Uh Cooperifa!”. Então as rimas e os versos tomam conta do bar.
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Enquanto um rapaz recita uma letra de rap em forma de poesia, todos ficam calados. Quando alguém se atreve a falar um pouco mais alto, logo se escuta um “shi” vindo de algum lugar. Mas se as conversas persistirem é Rose Dorea quem assume o microfone. Com a voz empostada, a Musa lembra os visitantes de que ali o silêncio é uma prece. “Eu procuro quem está falando e faço questão de olhar dentro da bolinha do olho da pessoa enquanto aviso”, declara. Enquanto cada pessoa tem seu momento de desabafo em frente à plateia, alguns visitantes se aconchegam no fundo do bar. É ali que o balcão de quitutes e bebidas, onde também são vendidos cigarros e doces, divide espaço com uma estante de livros. Sim, no boteco do Zé Batidão também tem livro à disposição dos moradores, na falta de uma biblioteca pública por perto. Os estilos literários são diversos, tem história para leitores de todas as idades e de preferências variadas. Entre as tábuas de madeira dá para ver obras de Machado de Assis, Jô Soares, Fernando Moraes, Marcos Rey, entre outros. Qualquer um pode pegar O Mistério do 5 Estrelas emprestado, por exemplo. Desde que o livro volte para a estante depois e outas pessoas tenham a oportunidade ler as mesmas páginas. Atrás do balcão a correria é grande, ninguém para. José Claudio Rosa, o famoso Zé Batidão anda de um lado para o outro sem parar, não há tempo para perder. Uma bandana cobre os fios de cabelo grisalhos que demonstram o poder que o tempo possui. Com um avental branco e muita disposição, o José da Cooperifa serve as quase cem pessoas que se espremem no bar sem perder a simpatia. “Ô Zé, me vê um escondidinho?”, ouve-se uma voz pedindo o quitute mais famoso da culinária local, o escondidinho de carne seca do Zé Batidão. De prontidão, o pedido é anotado mentalmente.
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Analfabeto de letra escrita, aos 63 anos, seu Zé nunca leu um livro. Mas já escreveu um:Pedra sobre Pedra. A obra narra a história de um mineiro que após completar os 17 anos de idade resolveu arriscar sua vida e buscar a felicidade na grande metrópole do Brasil. Essa é, na verdade, a autobiografia de seu Zé, que em 1965 chegou em São Paulo com apenas uma mala nas mãos e uma vontade imensa de ser dono do próprio nariz. Mas aí você se pergunta como é que ele escreveu um livro se não sabe escrever. Simples. Quem colocou a história da vida de Zé Batidão no papel foi a filha dele, que com muita paciência escutou cada palavra desse enredo e se dedicou a transformar todos os contos em livro. Nem mesmo o fato de não conhecer as letras foi suficiente para impedir Zé Batidão de realizar o seu sonho – e é exatamente por isso que a literatura da periferia é especial, porque tem a impressão digital impregnada nas entrelinhas. José Cláudio nasceu no dia 3 de junho de 1948, em uma fazenda na cidade de Piranga, em Minas Gerais. Cansado de viver praticamente como escravo, ele desafiou tudo e todos ao vir para São Paulo, mas seguiu em frente. O primeiro emprego na cidade foi de pedreiro. Com as mãos na massa ele ajudou a construir uma padaria. Terminada a obra, seu Zé não tirou as mãos da massa, mas dessa vez era de pão: ele conseguiu um serviço como padeiro. Em troca de alimentação e de um quarto para morar, foi ali que o mineiro começou a estruturar sua nova vida. Anos depois ele foi trabalhar na lanchonete do Colégio Objetivo.Durante esse trajeto, até curso de garçom no Senai ele fez. Como não sabia escrever, ele fazia acordos com os colegas de trabalho: em troca de ajuda com a parte escrita ele lavava a louça do restaurante. E foi como garçom que Zé tra-
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balhou no famoso restaurante Fasano, onde atendeu muitos jogadores de futebol de quem era fã. Muitas andanças depois, o destino fez com que Zé chegasse ao Jardim Guarujá. O mineiro aterrissou no Bar e Empório Guarujá, do qual o pai de Sérgio era proprietário, e ali trabalhou como garçom durante anos. Quando o dono resolveu se aposentar e vender o comércio, Zé não perdeu a oportunidade e arrematou o boteco. Além de dono, o bar também mudou de nome. O ex-garçom tratou de batizá-lo como Zé do Batidão, por causa das batidas espetaculares que pretendia vender ali. Porém, o homem que escreveu a faixa que seu Zé mandou fazer, deu um sumiço no “do” e acabou ficando apenas Zé Batidão mesmo. No final das contas o erro deu certo. As batidas ficaram em segundo plano – foi Zé quem ficou famoso. Tão impossível quanto falar com o dono do bar é conversar com Sérgio Vaz. Não porque ele seja arrogante ou inacessível, mas porque ele não para. E quando para logo vem um amigo cumprimentar ou puxar assunto. Com simpatia ele recepciona até os desconhecidos com um caloroso abraço de olhares, enquanto atravessa o boteco para procurar alguém ou tirar algumas fotografias. Mas a maior parte da noite, Sérgio passa ao lado do pequeno palco – um pequeno espaço na ponta do bar, com um único aparato: o microfone. Mesmo sem ter que subir qualquer degrau, os que chegam ali parecem até crescer alguns centímetros ao se postar em frente ao microfone. “Naquele palco sem degrau, cada um bagunça a ordem das coisas – e bagunça com um instrumento que por 500 anos foi privilégio da elite do país. Bagunça pela palavra escrita. A ponto de a periferia virar centro sem deixar de ser periferia”, Eliane Brum em depoimento sobre o sarau literário realizado no boteco do Zé Batidão.
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As vozes ampliadas pelo microfone não declamam apenas palavras de protesto e de revolta. Ali, pessoas de todos os tipos e idades, compartilham sentimentos através dos seus versos. Há também amor, dor de cotovelo e diversão nas rimas declamadas pelo povo. Luís Miguel de Araújo Guimarães, de 11 anos, gosta mesmo é de ouvir o som das risadas quando desanda a rimar lá na frente. Mais confiante do que qualquer adulto que se apresente, ele adora as poesias de cordel, especialmente as do poeta Amazan. A escolhida para a noite foi “A revolta das Jumentas”. Ao escutar seu nome ser chamado, o menino correu até a frente do bar, passando sem dificuldade pelas estreitas frestas entre as pessoas. Ao alcançar o pequeno palco, Miguel ajustou o suporte do microfone de acordo com sua altura e começou a recitar. A apresentação teve direito até a imitação do sotaque nordestino, um dos charmes do jovem poeta. Com a voz firme, o menino desandou a recitar sem perder o ritmo. “Quem primeiro inventou greve / Aqui em cima do chão / Foi um lote de jumentas / Até com certa razão / É que Deus tava criando / Seus animais e soltando / Uns com urro, outros com berro / E por muito ter trabalhado / Sentiu-se um pouco cansado / Porque ninguém é de ferro”. Quanto mais o povo ria, mais feliz e empolgado o garoto ficava. A paixão pela poesia surgiu por culpa do tio, o Toninho Poeta, que leva Miguel aos saraus da Cooperifa quase toda quarta-feira. Nascido em Pernambuco, Toninho (como é conhecido por aqui) foi batizado Antonio Domingos. Assim como o sobrinho, ele tomou gosto pela literatura de cordel quando ainda era criança, influenciado pelo pai. Toninho chegou em São Paulo no final da década de 90 e atualmente é comerciante, dono de um bar localizado nos
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arredores de onde acontece a Cooperifa. Além disso, ele é também o mentor de Miguel no que diz respeito a literatura e poesia. “Eu comecei a falar de poesia e ele gostou”, simplifica o pernambucano que, diferente do sobrinho, esconde certa timidez entre as palavras. Miguel nasceu um ano antes da Cooperifa, no dia 8 de junho de 2000, e apesar da pouca idade divide o tempo entre a escola EMEF M’Boi Mirim III, o violão e a poesia. No colégio, ele já fez sucesso até com uma “paquera”, usando os versos como tática. Ao ser questionado se já havia escrito algum poema para uma menina, Miguel respondeu com um sorriso travesso nos lábios e sem um pingo de timidez na fala: “olha, se eu disser que não, vou estar mentindo...”. Ao ver o menino lendo, escrevendo e declamando poemas a torto e a direito por aí, é possível imaginar que suas aulas preferidas são as de português. Mas não é nada disso. Miguel gosta mesmo é de inglês. “Eu sempre me interessei por línguas diferentes”, argumenta com a voz cheia de conhecimento e cara de intelectual. Durante as aulas de informática, ele não perde a oportunidade de mostrar para os colegas as fotos do sarau da Cooperifa. Miguel já até conseguiu levar alguns amigos para conhecer o bar do Zé Batidão. “Eles ficam curiosos de me ouvir contar como é”, diz. Vestido com moletom para se proteger do frio e boné azul virado para trás, o poeta mirim avisa que logo mais precisa ir embora. Apesar de morar perto, próximo ao Hospital M’Boi Mirim, é quarta-feira e no dia seguinte tem aula. Miguel tem apenas 11 anos e já escreveu oito poesias, mas não deixou de ser criança e precisa ir para a escola. Quinta-feira, então, é o melhor dia. É o momento de contar para os amigos sobre os acontecimentos da noite anterior. Isso, ele não pode perder.
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Há dez anos o boteco do Zé Batidão abriga o maior sarau da periferia de São Paulo: a Cooperifa
Miguel tem apenas 11 anos, mas já tem um amor: a poesia de cordel
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Manifesto da Antropofagia periférica
A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros. A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula. Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha. A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar. Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do cinema real que transmite ilusão. Das Artes Plásticas, que, de concreto, quer substituir os barracos de madeiras. Da Dança que desafoga no lago dos cisnes. Da Música que não embala os adormecidos. Da Literatura das ruas despertando nas calçadas. A Periferia unida, no centro de todas as coisas.
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Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala. Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala. É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que armado da verdade, por si só exercita a revolução. Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona. Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural. Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado. Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles? “Me ame pra nós!”. Contra os carrascos e as vítimas do sistema. Contra os covardes e eruditos de aquário. Contra o artista serviçal escravo da vaidade. Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada. A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor. É TUDO NOSSO!
Sérgio Vaz
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Arma
Peguei a palavra ARMA e a cortei em vogais. Depois, juntando as letras, em nova ordem busquei outros significados... Arma, nos dias de violência idos e vividos, em qualquer ocasião, é terrível substantivo. Concreto quanto ao estrago que causa. Não importa se de leve porte. Quem passou por situação de ter uma arma de fogo apontada para si, em circunstância de assalto ou diferente agressão, sabe o temor da bala. E quem vive em região de conflito, o que sofre por ser alvo aleatório de arma pesada na linha do combate? Desnecessário é nomear os membros desta ampla família. Mas que seja: pedra, canivete, faca - arma branca – pau, porrete, chicote, canhão, bactérias e tantas se fazem válidas dependendo o uso e caso. Uma caneta. A mão que escreve. A palavra que denuncia, do mesmo modo, oprime. E, assim pensando, tudo pode ser arma. Do sentimento atroz à bomba nuclear, o que destrói é arma. Arma. Das letras que ela contém forma-se de seu início: AR. Esse que respiramos. Ele que significa o princípio básico da existência humana. E, nessa averiguação, é o contraponto do efeito mortal acima sugerido.
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O ar fica mais leve com tua presença, dizem os enamorados. Você deu o ar da graça, comenta o lisonjeiro. Você está com ar de quem não quer nada, replica o decepcionado. Ar, ar, ar, eu quero ar! Liberdade, dirá o prisioneiro... E a ideia segue em nova praia. Dividida e acrescida. MAR! O mar é minha alforria, observa o marujo no cais. As ondas são servis, amada! Aos teus pés o mar termina... Aguarde-me, eu sou a maré que avança e inunda. Sou a RAMA verdejante que o teu corpo há de fazer florir... Decomposta a palavra absorvo o dissabor. E não importando a forma transformo o conteúdo. Ar, mar e rama são derivações de igual tronco. Mais uma cabe. A mais importante, talvez. O verbo radiante: AMAR! AMAR! AMAR! Eis o projétil. Eis o vínculo com a vida! Amar é a arma de meu constante disparo!
Marco Pezão
CAPÍTULO 02
PODER DE TRANSFORMAÇÃO Ninguém entra no boteco do Zé Batidão impunemente. Sai de lá transformado pelo que viu – ou melhor, sai de lá transtornado. O que acontece no boteco do Zé Batidão toda quarta-feira muda cada um de nós – e muda o Brasil. Centenas de pessoas, identificadas por algo que vai muito além de uma referência geográfica, a periferia, reunidas depois de um dia de trabalho duro para ouvir e fazer poesia. Simples assim: e uma revolução sem um tiro. Eliane Brum
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Muito além do campo literário Dez anos depois de um difícil começo, a Cooperifa ficou famosa. As noites que, antes, sobreviviam bravamente até as nove e meia, hoje chegam a receber cerca de 150 pessoas a cada quarta-feira. Algumas edições do sarau já passaram da marca de 500 espectadores, amontoados dentro e fora do boteco. É muita gente – tanto para assistir às apresentações quanto para ler suas rimas lá na frente. Por isso o processo precisa ser organizado. Quem faz esse trabalho é a professora Lu Souza, que anda de um lado para o outro com uma prancheta em uma mão e uma caneta na outra. As pessoas que chegam dispostas a recitar alguns versos no pequeno palco logo vão falar com a professora, que vai anotando os nomes na folha. Ao longo da noite é Lu quem avisa qual é o próximo a se apresentar e, conforme as poesias vão sendo declamadas, os nomes vão sendo riscados da lista. Algumas vezes nem todos conseguem ter a chance de falar ao microfone – são muitas pessoas para pouco tempo. Por isso, conforme a hora passa, Sérgio alerta: “vamos agilizar pessoal, senão não vai dar tempo de todo mundo se apresentar”. Apesar de o sarau ser dedicado à literatura, tem muito rapper esperando a sua vez de recitar. Afinal, o rap faz parte da cultura da periferia e ali as rimas do hip hop também são poesia. Não tem música no sarau e por isso, às vezes, os raps são cantados à capela. Mas na maior parte das apresentações as letras de protesto, inspiradas em questões sobre a realidade social, são transformadas em versos, cheios de rima e personalidade. E não são apenas os raps que possuem temática social. Mesmo as produções literárias mais simples são carregadas de denúncias e reivindicações. Donas-de-casa, quando escrevem sobre os acontecimentos cotidianos, sem ter a intenção
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acabam fazendo retratos do universo em que vivem. Há graça, amor e dor misturados ao dia a dia, nada fica de fora. Todos que se atrevem a falar em voz alta para a plateia do bar, querem, na verdade, expor seus sentimentos e sua visão sobre o mundo. Eles querem dizer em alto e bom tom que não são bobos, que aprenderam a exercer seu papel na sociedade. “O que nós queremos fazer aqui não é criar novos escritores, mas sim novos leitores. Queremos incentivar o pensamento crítico”, define Vaz. O assunto desperta o interesse de pesquisadores de diferentes áreas. No debate “Literatura na Periferia: Falavreando textos e contextos”, realizado na Biblioteca Municipal Brito Broca, especialistas discutiram sobre o material literário produzido na periferia. Lucia Teninna, professora de literatura brasileira e portuguesa na Universidade de Buenos Aires, é pesquisadora visitante em Cultura Contemporânea, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Durante o debate, Lucia afirmou que a produção literária da periferia brasileira “vai além do campo literário”. A professora acredita que o desenvolvimento da literatura em regiões periféricas está se transformando em um movimento cultural e político. “A literatura constrói vidas e é aí que está a questão social do elemento narrativo”, explica. Outra acadêmica, especialista sobre o tema, é Érica Peçanha do Nascimento. Em 2006 Érica concluiu seu mestrado na Universidade de São Paulo (USP), no qual abordou o tema literatura marginal – o trabalhoteve como resultado o livroVozes marginais na literatura. Atualmente, a pesquisadora está em processo de finalizaçãodo doutorado em Antropologia Social, também pela USP. Ela afirma que mesmo as obras que não se atêm às questões morais e éticas são políticas.
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“Literatura é sempre uma representação da realidade. Mesmo a ficção sempre parte da realidade. Então, em um sentido amplo, qualquer obra literária, de qualquer estética, está submetida à política. Os autores, quando escrevem, também trazem suas experiências pessoais para a literatura”.
O tema é tão encantador que especialistas de outros países se dedicam a estudá-lo. O novo movimento literário que surgiu nas periferias das cidades brasileiras, predominantemente em São Paulo, causa curiosidade e faz com que, algumas vezes, esses tais pesquisadores atravessem o mundo para ver isso tudo de perto. Ingrid Hapke, alemã, é Mestre em Letras Românticas e Antropologia Histórica pela Albert-Ludwigs – Universidade de Friburgo (Alemanha). A tese de seu doutorado enfoca a literatura marginal/periférica. Para entender melhor o contexto social em que a poesia periférica se encontra, Ingrid está no Brasil há poucos meses e depois de ter conhecido alguns saraus ela afirma que “a literatura mudou de roupa, literalmente”. E de endereço também, pode-se dizer. Ao falar sobre os saraus realizados em diversos pontos periféricos da cidade de São Paulo, Érica diz que tudo teve início com a Cooperifa. “Quando eu comecei a minha pesquisa, em 2003, o único sarau que acontecia regularmente em São Paulo era o Sarau da Cooperifa. Depois disso, o modelo foi copiado por outros coletivos”, relata. Entre 2007 e 2009, Érica mapeou a agenda cultural da ONG Ação Educativa e sistematizou 48 saraus acontecendo na periferia paulistana. “Óbvio que, de lá para cá, muitos deles não resistiram, assim como outros surgiram”, completa. A pesquisadora explica que os saraus não se mantêm “vivos” por muito tempo, principalmente, por conta da falta de público.
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“A Cooperifa é uma exceção, pois possui uma linha de frente com oito pessoas. Além disso, eles juntam diversos estilos culturais, como cinema, debates, teatro... não é só poesia”, argumenta ao ser questionada sobre o que fez e faz a Cooperifa resistir por tantos anos. Érica frisa, ainda, um hábito que Sérgio Vaz mantém até hoje. “Ele liga para todas as pessoas, cobrando a presença, brinca que vai amaldiçoar quem não for. Isso funciona”, completa. De acordo com Érica, os saraus são importantes, pois garantem continuidade e frescor ao movimento literário. “A literatura periférica não se esgota no livro. Eu acredito que o papel dos saraus não seja apenas o de formar novos autores e leitores. Os saraus são importantes porque também são encontros comunitários para a troca de ideias sobre trajetórias pessoais e profissionais e são espaços para a formação de novos laços de amizade”, disserta. A pesquisadora também destaca os eventos literários como espaços onde as pessoas descobrem novas possibilidades de trajetórias profissionais. “É só a gente pensar em quantos frequentadores dos saraus tornaram-se arte-educadores ou quiseram voltar a estudar ou entraram para a universidade”, exemplifica. “Isso acontece, sobretudo, por conta da não restrição da literatura marginal às obras”, define. Em relação ao poder de transformação social que estes projetos culturais exercem em diferentes comunidades paulistanas, Érica é prática. “Eu, como analisadora, não posso afirmar quais são as transformações, porque com cada pessoa acontece de um jeito. Tem gente que volta a estudar, tem gente que começa a escrever, é diferente com cada um”. Pulando do ponto de vista acadêmico para o de quem está envolvido nesse turbilhão de acontecimentos culturais, Sérgio explica quais são as intenções por trás da Cooperifa.
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Apesar dos saraus terem incentivado o surgimento de novos escritores, o poeta da periferia diz que o principal objetivo da Cooperifa é, na verdade, criar um público leitor. Desenvolver o senso crítico das pessoas, para que elas possam avaliar melhor diferentes situações – sejam elas políticas, sociais ou pessoais – sempre foi o ideal de Vaz. “A minha ideia é a formação de público. Não adianta ter a intenção de criar um novo escritor. Nós trabalhamos com a ideia de formação de público, novos leitores, um novo público de cinema, um novo público de teatro. Para não ficar aquela coisa de que “ah o cara diz que faz poesia e tira as pessoas do crime”. Não, eu não faço isso”, declara. Mas Sérgio também sabe que o trabalho que realiza há mais de dez anos é capaz de mudar o cenário da vida de algumas pessoas. “A arte é capaz de transformar. Porque a arte não salva, transforma (...). Aqui, na nossa comunidade, as pessoas passaram a ler por causa do sarau da Cooperifa. Começaram a escrever poesia por causa do sarau da Cooperifa. As pessoas começaram a estudar por causa do sarau da Cooperifa. As pessoas fizeram TCC porque voltaram a estudar por causa do sarau da Cooperifa. É aquela coisa de um ver no outro um recomeço, uma referência boa”, enfatiza Sérgio. “E você se considera uma referência boa?”. Antes de responder Sérgio parou para pensar durante breves segundos, mas logo foi dizendo: “olha, eu não gostaria de ser. Porque eu gosto de beber, parei de fumar há poucos dias e gosto de futebol de várzea, gosto de sinuca... E eu não tenho nada para ser seguido. Tudo o que eu faço é por egoísmo, eu não sou um cara abnegado. Eu sou um cara que adora o bairro. Tudo o que eu faço é porque é melhor para mim, não é para os outros – é para mim. Eu queria trazer o Chico Buarque para cantar aqui porque eu gosto, queria que o metrô estivesse aqui porque eu
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moro aqui... Tudo o que eu faço é pensando em mim, na minha família”. Apesar de não se considerar e de não querer ser referência, não há uma figura sentada ou em pé no bar do Zé Batidão que não olhe para Sérgio Vaz com olhos iluminados de admiração. A musa da Cooperifa, por exemplo, a imponente Rose Dorea, não poupa elogios ao amigo e ídolo. “Sem dúvida nenhuma, Sérgio Vaz é uma das minhas inspirações. Porque é meu amigo, é meu irmão. Eu falo que ele é o irmão que eu escolhi para a minha vida. Ele é um exemplo como pessoa, é um autodidata. É um cara que não tem faculdade, mas ele sabe de tudo. Dá até raiva!”, brinca. A concepção de simplicidade e modéstia, seguidas por Sérgio, foram transferidas para a Cooperifa – que apesar da popularidade, continua sendo o espaço comunitário da periferia. “O que traz as pessoas aqui são a simplicidade e a união. Se você olhar para as mesas vai ver que elas são dispostas juntas. Isso tem um motivo, que é aproximar as pessoas, mesmo as que não se conhecem. Se você for a um bar em Moema, por exemplo, cada mesa é uma ilha, um universo particular. Aqui não. Aqui todos ficam juntos”, revela. Um bar, um microfone, um amplificador de som, muitas pessoas e um sonho em comum. A receita é simples. Parece pouco, mas são estes os elementos que, juntos, são capazes de transformar realidades. O rapper Willian Oliveira Santos, conhecido pelas quebradas como Preto Will, é integrante da Cooperifa e do grupo de rap Versão Popular. Desde que Will descobriu esse pedacinho de poesia na periferia, se juntou aos organizadores do sarau e faz questão de participar desse evento. “Eu cantava no coral da igreja antes de entrar para o Versão Popular”, conta.
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Will acredita que a Cooperifa é capaz de mudar a maneira de muitas pessoas enxergarem o universo a sua volta, desde que esta seja a vontade delas. “Quando a pessoa vem aqui, para, conversa e fala sobre um livro, dá para perceber que ela está antenada, que se informa. Então eu vejo a mudança nesse sentido, as pessoas que chegam aqui procuram se informar mais, porque estão sendo influenciadas a ler. Esse é um sinal de que a pessoa está interagindo e buscando por mudanças. A pessoa que vem aqui disposta a aprender muda sim, muitas já mudaram”, reflete o jovem. Will também é uma dessas figuras que tiveram a vida transformada de alguma forma por meio de palavras rimadas. “Depois que eu comecei a curtir rap passei a ter opinião, passei a ter mais senso crítico das coisas. E eu também descobri um novo jeito de me expressar, de dizer o que eu penso”, revela. Assim como Will, Rose Dorea também aprendeu muito durante os dez anos de sua vida que compartilha com a Cooperifa. A mulher, de personalidade forte e sorriso gentil, não é apenas a Musa do sarau, mas também uma espécie de mãe para todos que frequentam o bar do Zé Batidão. É ela quem recepciona os visitantes e apresenta alguns dos poetas que participam dos recitais. “Eu acho que existe a Rose antes da Cooperifa e a Rose depois da Cooperifa. Porque eu sou uma pessoa de personalidade forte, do tipo que grita primeiro e pede desculpas depois. E a Cooperifa me deu mais paciência. Não vou dizer para você que eu sou uma pessoa totalmente centrada hoje, porque eu vou estar mentindo. Mas estou um pouco mais sossegada agora. A Cooperifa me trouxe isso”.
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Rose, Pós-Cooperifa
Sou filha da poesia Sou filha da terra Sou filha desse lugar Sou filha desse Brasil Mas também sou uma Filha da Puta Rose Dorea
Rosemeire da Costa Dorea nasceu no dia 25 de janeiro de 1973, aniversário da cidade de São Paulo. Animada e exuberante, ela já chegou “chegando”. “A cidade parou para eu nascer”, brinca. Apesar do nome de batismo, sempre foi Rose. Hoje, é Rose Dorea. Filha de pais baianos, a arretada dessa história é ela. “Eu sou muito intensa. Se eu estou legal, eu estou. Mas se eu não estiver não faço tipo para ninguém. Eu não sei disfarçar”, dispara. A postura de mulher decidida, do tipo que não perde tempo tentando descobrir a que veio, intimida aqueles que não conhecem essa mãezona da Cooperifa. “Muita gente tem medo de mim e eu acho muito engraçado”, confessa. A voz de trovão, digna de cantoras de música soul, não deixa nada a desejar a Alcione ou Nina Simone, por exemplo. “Acho que a minha voz é o que mais assusta as pessoas”, reflete. Porém, é o jeito intempestivo que costuma pegar os outros de surpresa. “Eu sou oito ou oitenta. Ou gosto ou não gosto. Ou amo ou odeio. Não tem meio termo”, anuncia. Rose é moradora do Taboão da Serra, município da Grande São Paulo, e não tem vergonha de dizer que mora na periferia. “Eu nunca tive vergonha de dizer onde eu moro. Mas
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conheço algumas pessoas (amigos, inclusive) que mentem sobre onde vivem”, conta. Gostar do bairro onde cresceu é um dos motivos que fazem com que Rose se empenhe tanto no projeto social que é a Cooperifa. “Nós fazemos as coisas em prol da comunidade”, discursa. E um dos maiores orgulhos dessa aquariana é fazer parte da linha de frente da Cooperifa. “Hoje eu sou primeira-secretária e faço de tudo um pouco. Tudo o que Sérgio precisa: ligar para alguém, pegar um documento, etc. Ali todo mundo faz um pouco de tudo, não tem essa de eu faço isso e fulano faz aquilo”, explica. Apenas algumas tarefas são restritas a Sérgio, como por exemplo, a captação de recursos financeiros – afinal, o seu nome chega primeiro do que qualquer apresentação formal. “O nome do Sérgio é muito forte hoje em dia, por isso essa parte fica a cargo somente dele”, completa Rose. Mas não é disso que ela vive – a Cooperifa é um projeto à parte –, em que o lucro é contabilizado em sorrisos e bons momentos que fazem a vida valer a pena. “Eu não ganho nada, porque não tem fins lucrativos. A única exceção é quando um de nós participa da mostra (Mostra Cultural da Cooperifa), que vai ter agora em outubro. Aí a gente ganha o mesmo cachê que os outros convidados”, explica. O dinheiro que coloca a comida na mesa vem do emprego como auxiliar administrativa em uma importadora de plástico. Porém, os R$600 recebidos todo mês não são suficientes para suprir as necessidades da trabalhadora, que cria uma filha sozinha. Por isso, Rose já é mestre em “se virar nos 30”. Nas horas extras, ela (que já foi manicure, recepcionista e administradora) aproveita para vender lingeries. “Dá um alívio, sabe? Dependendo do quanto você vender dá para ganhar até 40% de comissão. Se você quiser, eu te passo o telefone do
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moço que traz para mim. Vale a pena, menina! Você leva na faculdade, em uma bolsa, e vende para a mulherada. Assim vai juntando dinheiro”. É esse tipo de preocupação que Rose tem com as pessoas – inclusive com aquelas que acabou de conhecer – que fazem dela a “mãezona” da Cooperifa. O instinto materno aflorou há poucos anos, quando Rose ficou grávida de sua primeira e única filha: Paola. A bebê, nascida em 2010, está por trás de todas as falas da Musa, que não esconde o orgulho que sente por ser mãe. “Minha filha é a coisa mais importante da minha vida, eu vivo para ela”, declara. Não diferente de milhões de mulheres mundo afora, Rose é mãe solteira. Paola é criada em uma casa no Taboão da Serra, onde vive sozinha com a mãe. “Construí a casa para os meus pais, mas infelizmente eles já faleceram”, conta. A irmã de Rose é a responsável por cuidar de Paola nas quartas-feiras, já que nem sempre é possível levar o bebê para o boteco do Zé Batidão. Depois de mãe, o título do qual Rose não abre mão é o de Musa da Cooperifa. “Eu sou a Musa mesmo e isso ninguém me tira”. Ela acredita que o cargo não foi conquistado, apenas, por causa de sua poesia, mas sim, por seu papel dentro da Cooperifa – o de recepcionar e acolher os espectadores com calor e simpatia há quase dez anos. Mas não é só isso. Rose é negra e não possui o estereótipo de beleza divulgado pelas redes de televisão e revistas de moda. “Nós vivemos em um país muito preconceituoso, ainda. Então, como uma mulher negra e gorda é musa? Isso é fora do contexto. E isso eu escuto de muita gente”, se exalta. Tão fora do contexto quanto um boteco na periferia sediar um sarau poético em plena periferia de São Paulo. Não estaria esse tal “contexto” fora de prumo então? Em uma visita à Cooperifa, o rapper GOG, de Brasília (DF), não se conteve durante uma apresentação no palco do
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Zé Batidão. Antes de recitar o rap Brasil com P, não poupou elogios à “negona” do sarau. “Eu queria falar de coração que a Rose é minha parceira, minha amiga e minha irmã. Acho que tudo aconteceu para que eu viesse aqui hoje, para deixar esse beijo de perto e abraçar muito a nega”. Ao se dirigir diretamente a ela, o galanteio continuou. “Você é muito mais do que a Musa da Cooperifa. Você é uma pessoa que me faz acreditar que a mulher pode ter estilo, verdade e verborragia mesmo sendo linda!”. A prova de que GOG não é o único a pensar dessa maneira veio segundos depois, quando o silêncio no boteco do Zé Batidão foi preenchido pelas palmas dos espectadores, que chegaram a ruborizar as mãos – tamanha a exaltação. Rose acompanha a Cooperifa desde os tempos em que as palavras eram celebradas despretensiosamente nas “Quintas Malditas”. E foi por causa destas tais palavras, que ela resolveu retomar os estudos aos 32 anos de idade e conquistou, além do título de musa, o diploma do ensino médio. “A Cooperifa tem o poder de transformar. Eu, por exemplo, tinha parado de estudar na oitava série e quando chegou o ano 2005 eu decidi voltar, porque não estava dando mais para levar. Eu tinha uma dificuldade muito grande de entendimento das poesias, não sabia o significado de muitas palavras”, relata. “Esse foi o único tempo em que eu precisei me afastar da Cooperifa. Entre aspas, é claro. Nas quartas-feiras eu ficava num mau humor tão desgraçado que algumas vezes a professora me liberava. Ela até achava engraçado”, lembra rindo. Porém, não foi apenas nessa época que Rose precisou se manter distante do bar do boteco. “Na verdade, quando eu tive a minha nenê também fiquei um tempo sem ir. Foram quatro meses sem pisar no Zé Batidão e foi muito difícil”, reitera.
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A formação escolar é apenas um dos méritos que Rose atribui à Cooperifa. “Eu estava em uma fase, que eu acho que todo mundo vive, de não acreditar mais nas pessoas. E a Cooperifa me devolveu isso, me deu esse chão. Deu a esperança de que em conjunto a gente pode fazer, pode mudar. Com o coletivo a gente pode ser alguém”, desabafa. De acordo com Rose e Sérgio, antes os moradores tinham vergonha de dizer que moravam ali, na periferia paulistana. As pessoas sofriam discriminação e, muitas vezes, perdiam até oportunidades de trabalho ao revelar seu endereço de residência. Hoje, a situação mudou. “O que acontece aqui (no boteco do Zé Batidão) nos faz acreditar que não é da ponte para cá, mas daqui para lá (referência à ponte João Dias). Nós somos a massa, nós somos a maioria. Nós temos o poder de colocar e tirar quem quisermos do poder. E eu acredito piamente que a Cooperifa é responsável por fazer com que as pessoas percebam isso, por fazer com que todos tenham orgulho de dizer que moram na periferia. Hoje eu tenho orgulho de falar que eu moro na periferia, que sou amiga/irmã do Sérgio Vaz, que é um poeta”, completa. Pode-se dizer que a vida de Rose mudou completamente depois de seu envolvimento com a poesia e com o Sarau da Cooperifa. “Minha visão de mundo mudou muito e minha visão política também. Até porque minha mãe sempre foi apaixonada por Mário Covas, então eu achava o PSDB ‘O Partido’. Era a minha única referência. Depois que eu fui para a Cooperifa é que eu fui entender melhor, conhecer outros partidos. Então mudou muita coisa mesmo”, revela. O jeito “folgado” também melhorou ao longo do tempo. “Eu era muito abusada”, assume. O jeito de falar arrogante e o instinto encrenqueiro foram amansando – um pouco por
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conta da maturidade trazida pelos anos e um pouco também por ter que aprender a lidar com todo tipo de gente da forma mais diplomática possível – tática que ela aprendeu com o “Mestre da Diplomacia”, Sérgio Vaz. “É claro que eu não mudei totalmente, mas melhorei bastante. Hoje posso dizer que sou uma pessoa mais centrada”, conta. Por causa da Cooperifa, atualmente Rose também é poeta, apesar de não assumir o título com tanta ênfase quanto o de musa. Embora tenha alguns poemas escritos, ela não pensa em publicar um livro, como é o sonho de tantos outros poetas da periferia. “Na verdade, a poesia entrou na minha vida de uma forma muito legal e eu gosto. Mas eu não acho que este seja o meu momento. O meu momento é estar aqui na frente, é apresentar e receber vocês”, diz. “E eu acho que para escrever é preciso gostar de ler e essa não é minha verdade. Não é que eu não goste de ler, mas é que eu tenho dislexia. Poucas pessoas sabem disso. Então eu decoro as minhas poesias”, revela timidamente. Mesmo tendo cada um de seus versos gravados mentalmente, o que Rose não deixa de carregar é o seu caderno de poesias: algumas folhas de papel sulfite encadernadas em espiral, protegidas por uma capa de plástico transparente. O livro anda tanto de um lado para o outro, seguro entre as mãos de Rose ou então guardado em sua bolsa, que as folhas já estão amassadas e com algumas “orelhas”. Ao se colocar na frente do microfone, a musa-poeta segura firmemente o caderno entre os dedos, mas não lê uma palavra sequer. A primeira poesia do livro é a escolhida para a noite: “Sou filha de quem mesmo? / Sou filha da rua / Sou filha da lua / Sou filha do ar / Sou filha do povo / Sou filha de Iansã Iemanjá”. Assim como a autora, a plateia também
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guarda os versos de Rose na memória e todos pronunciam as palavras na mesma batida, seguindo o ritmo estabelecido por Rose Dorea. Ao falar sobre a inspiração para o poema, Rose simplifica. “Acho que essa poesia trata realmente da pessoa que eu acredito que eu sou”. Em vez do livro publicado, o sonho de Rose é lutar pela justiça no Brasil como promotora pública. Embora tenha concluído o ensino médio, a faculdade de direito é um objetivo que ainda não pôde ser alcançado. “Eu queria ter feito faculdade, mas abri mão porque na época eu estava construindo a casa do meu pai e da minha mãe, que hoje é minha porque infelizmente eles morreram”, diz. Desde sempre Rose sentiu na pele as dificuldades da vida. Ela sempre soube que nada seria fácil. Apesar de todos os pesares, a alegria transborda de dentro dela. Rose Dorea não é do tipo de gente que se deixa abater, nem que foge da luta. “A Cooperifa me trouxe autoestima, porque eu sou uma negra, porque essa é a realidade e não adianta fugir dela”. Rose brada aos quatro ventos o orgulho que tem por ser negra. Mas o que essa mulher detesta mais do que racismo é radicalismo. “Tem negro que acha um absurdo se envolver com branco. Para esse povo extremista não pode misturar as raças. Meu pai era branco”, fala indignada. “Tem gente que quando vê minha filha quase leva um susto, porque ela é bem clara”, completa. Paola é filha de pai branco, do jeito que Rose gosta. “Se um dia você me vir com um negão, separa que é briga!”, brinca. No dia em que a musa recebeu MV Bill em São Paulo e o levou até a Cooperifa, até se assustou com a mulherada desesperada. “Meu negócio não é esse não. Prefiro um Fábio Jr, um Lenine, Arnaldo Antunes... Sabe?”, ri.
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A admiração pelo evento idealizado por Sérgio Vaz é tanta que Rose se diz incapaz de viver sem a Cooperifa. Em comparação com outros saraus, também organizados na periferia, ela é enfática ao dizer que nenhum deles tem o “espírito” de coletividade que o evento organizado no Zé Batidão tem. “Eu costumo falar que estou na Cooperifa até hoje porque é um coletivo. A comunidade está sempre em primeiro lugar para nós”, argumenta. Em uma brincadeira de Facebook, Rose respondeu à pergunta de Sérgio: “qual foi o dia mais ‘loko’ e emocionante que você já viveu na Cooperifa?”. A resposta, carregada de sentimento, foi capaz de demonstrar a magnitude desse evento na vida da administradora. “Foram vários. O primeiro sarau após o falecimento do meu pai e outro, em que o Sérgio anunciou minha gravidez. Nestes dois momentos ficou ainda mais claro o que é fazer parte da família Cooperifa. São momentos que eu nunca vou esquecer. Amo esse lugar, amo esse povo e amo muito a pessoa que me convidou para fazer parte disso”, declara aos quase 600 amigos da rede. “Eu vivo oito horas do meu dia para a Cooperifa”, exalta. E não é mentira. No escritório em que trabalha, a mesa está coberta por folhas destinadas à organização da Mostra Cultural que irá comemorar os dez anos do sarau. A cada dez palavras proferidas por Rose, uma é Cooperifa e, outra, é Sérgio. A admiração que a “negona” da Cooperifa sente pelo poeta não precisa ser afirmada diretamente, só é preciso escutá-la falar por cinco minutos. “Nada se compara à dedicação do Sérgio, ele vive 24 horas do dia dele respirando, pensando e vivendo Cooperifa”, diz com orgulho. “Ele não faz nada sozinho. Sempre faz questão de levar alguém com ele. E isso é porque ele gosta de dividir esses momentos, não tem egoísmo”, declara.
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A Musa da Cooperifa também não pode falar nada. Sua vida é dividida, literalmente, entre a filha – a quem dispensa um amor incondicional –, e ao sarau de periferia que mudou o rumo de sua história. Há dez anos Rose descobriu que tem o poder de escrever o enredo de sua vida. É isso que ninguém mais será capaz de tirar dela. Rose será para sempre a Musa de sua própria história.
Preto Will é integrante do grupo de rap Versão Popular e faz parte do bonde da Cooperifa
A Musa da Cooperifa, Rose Dorea, sorri com os olhos enquanto recebe todos os espectadores do sarau
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Filha de quem mesmo?
“Sou filha de quem mesmo? Sou filha da rua Sou filha da lua Sou filha do ar Sou filha do povo Sou filha de Iansã Iemanjá Sou filha da manhã Sou filha do pai zumbi Sou filha da boemia Sou filha da poesia Sou filha da terra Sou filha desse lugar Sou filha desse Brasil Mas também sou uma Filha da Puta”
Rose Dorea
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Intensidade
Além do que devia SONHEI Além do que devia BUSQUEI Além do que devia SOFRI Além do que devia SENTI Além do que devia PENSEI Além do que devia FALEI Além do que devia GRITEI Além do que devia FRAQUEJEI Além do que devia FIZ Além do que devia AMEI Além do que devia
Rose Dorea
CAPÍTULO 03
A RT I S TA C I DA DÃO É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que armado de verdade, por si só, exercita a revolução. Sérgio Vaz
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Entre rimas e vidraças, um Alpinista Urbano
Clayton da Silva chegou aos 30 anos tendo o prazer de fazer o que gosta: rap. Desde criança, ele aprendeu com os tios as batidas e as rimas que fazem sucesso nas quebradas. Já a literatura foi surgindo aos poucos, assim, como quem não quer nada. “Os meus tios eram DJs, então eu sempre convivi com isso. E a poesia veio para ajudar na escrita. Para poder escrever melhor eu comecei a ler e participar da literatura também”, explica. Apesar de ter a oportunidade de fazer o que gosta, Clayton, mais conhecido como Fino du Rap, precisa trabalhar de segunda a sexta para conseguir pagar as contas. “É como o Sérgio diz, eu sou um artista cidadão. O que eu mais gosto eu faço nas horas vagas. Não dá pra viver de rap, tem que trabalhar”, diz. O serviço que realiza durante os dias da semana chega a ser mais inusitado do que as performances que Clayton faz nos palcos. “Eu sou operador de balancim, que limpa os vidros de prédios, sabe? Costumo dizer que eu sou um alpinista urbano”, faz graça. Clayton é frequentador assíduo dos saraus da periferia. Para cada dia da semana, tem um evento de poesia diferente. Além da Cooperifa, Fino também costuma aparecer no Sarau do Binho e Sarau do Pedrão. “Tem no centro, em Suzano, na Brasilândia... Ixe. Tem vários!”, resume. Apesar do bom humor e da disposição para ir de um sarau ao outro, além de participar de shows e diversas apresentações, a rotina é dura. Não é fácil dividir o tempo entre viver para fazer o que gosta – e trabalhar para sobreviver. “É bem
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puxado e difícil de manter as duas coisas. Eu só seguro essa barra por amar muito a música”, admite. De segunda a sexta-feira, o rapper contorce o tempo e a si mesmo para conseguir interpretar os dois papéis de sua vida com maestria: Clayton durante o dia e Fino du Rap à noite. Para conseguir manter os dois personagens, Clayton acorda todos os dias às cinco horas da manhã. Para ir de um lugar para o outro, ele depende de transporte público: faz tudo de ônibus, metrô e trem. Perto das seis da tarde, ele já está em casa outra vez (depois da maratona diária de trabalho), mas é por pouco tempo. “Chego por volta das seis e já tenho que arranjar disposição para sair novamente para a rua e fazer as correrias com o disco”, relata. Afinal, não adianta gravar CD e ficar em casa esperando o sucesso acontecer sozinho. Depois dessas andanças noite adentro, algumas vezes Clayton consegue chegar em casa antes da meia-noite. Mas de vez em quando acontece de não dar nem tempo de voltar – e lá vai ele limpar as vidraças sem ter dormido ao menos meia hora. “Tem dia que eu viro a noite mesmo”, conta. Ser artista é para poucos, só os corajosos se mantêm em pé, sem vacilar. Sérgio Vaz, por exemplo, teve que fazer muitas coisas que não gostava antes de ter a sorte de conseguir viver apenas com sua arte. Entre gargalhadas, o atual poeta da periferia conta que fez “coisas horríveis” antes de viver da literatura. “Fui auxiliar de cobrança, auxiliar administrativo, vendedor...”, diz e aproveita para rir mais um pouco. “Mas eu sou um vagabundo nato. Eu adoro ser poeta, porque eu não gosto de trabalhar, você me entende? Eu odeio trabalhar. Eu nasci para gozar na vida e demorei muito tempo para entender isso. Porque eu ficava revoltado para caralho, vivia mal-humorado, aí eu descobri que era porque eu trabalhava”, brinca sem omitir um certo tom de verdade.
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Enquanto isso, Clayton continua batalhando para um dia chegar a esse patamar. “Esse é meu grande objetivo: viver só de música. Mas com os pés no chão, sem sonhos mirabolantes de ficar rico como os rappers americanos. Quero viver da minha música e acordar cedo pra fazer coisas ligadas ela”, diz sem esquecer a humildade de quem sabe de onde veio e aonde quer chegar. O que parece, é que Sérgio Vaz, mesmo sem querer ser referência, acaba sendo fonte inesgotável dos novos artistas das quebradas paulistanas. Ao ser perguntado sobre como se sente agora, que é uma figura conhecida, não só na sua região, como em diversos lugares do Brasil, Sérgio mantém a simplicidade. “Aqui (no bairro) ninguém me trata como poeta, aqui eu sou o Sérgio. Continuo a mesma pessoa. Eu me sentiria um idiota se eu tivesse mudado. Eu continuo indo nos mesmos lugares, mesmo time de futebol. A única coisa que mudou é que as pessoas que não me conheciam, agora me conhecem”, simplifica. Como Clayton continua “desconhecido”, apesar dos 4.500 amigos em seu Facebook, o jeito é manter o emprego de alpinista urbano. Em um mundo totalmente diferente, de dia ele limpa as janelas de alguns dos prédios mais importantes do país e convive com gente que nunca sequer leu uma poesia. “Sempre fico enchendo o saco para eles (colegas de trabalho) virem conhecer. Falo que vai mudar a vida deles como mudou a minha. Conto que tem uma energia bacana e que dá vontade de voltar e declamar as poesias”, conta. Com alguns dá certo, com outros não. Fino já tem três discos lançados: Mochila de Rimas (2002); O som do Fino EP (2005) e Quarto Mundo (2009). No início, o dinheiro para a produção e lançamento dos álbuns saía de seu bolso. Hoje, as coisas já melhoraram um pouco e o rapper consegue parcerias para suas produções.
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Mesmo assim, muitas vezes Fino tem que desembolsar alguns trocados para divulgar seu som. “São poucos os eventos remunerados e às vezes acabo tendo que pagar para tocar, porque tem a condução e a alimentação. Se eu não for perco a oportunidade de divulgar meu trabalho”. Sérgio Vaz avisa: “acho que viver de literatura é muito difícil, não recomendo para ninguém”. A vida de músico não é diferente. Mas o que Fino quer é continuar assim, batalhando para transformar seu sonho em realidade. E é como ele mesmo disse: “a vida segue e fazendo um show ali e outro aqui vou superando as dificuldades: com a grana ou sem ela”.
O poeta da Massa Emerson Alcalde nasceu no dia 20 de abril de 1982, no bairro de Cangaíba, zona Leste de São Paulo. Aos 15 anos ele resolveu escrever raps, influenciado pelos grupos da época e, principalmente, pelas letras de protesto que escancaravam as deficiências dos bairros periféricos do país. “Todos os raps que eu escutava faziam críticas sociais e foi essa a inspiração que eu absorvi das letras”, explica. Naquela época ele não fazia ideia do que as estatísticas revelavam sobre a situação cultural de seu bairro. Mas ele não precisava dos números para concluir que muita coisa faltava. Vinte e nove anos depois, pouca coisa, ou nada, mudou. A pesquisa de Censo Demográfico, realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia) em 2010, revela que a população local do bairro de Cangaíba já ultrapassou a marca de136.120 habitantes. Mas esse não é o agravante da região. São as pesquisas específicas que assustam com seus resultados. Os pontos de cultura, bibliotecas públicas munidas de livros infanto-
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-juvenis, teatros, cinemas e casas de show são, praticamente, inexistentes no bairro. Os números foram divulgados no site Observatório Cidadão2. Emerson cresceu vendo de perto a precariedade cultural da periferia. Ele sentiu na pela as consequências da falta de teatros, salas de cinema ou bibliotecas públicas perto de sua casa. E é isso que o motiva até hoje a utilizar a arte como arma para reverter esse cenário. Ainda adolescente formou um grupo de rap, chamado Legião D’MC’s. Além de compor as músicas, Emerson se dedicou a aprender a manejar as picapes de DJ também. Como todo artista – em início de carreira e sem apoio financeiro – ele teve que aprender a fazer de tudo um pouco. Já naquela época, ele viu de perto as dificuldades que um artista tem que enfrentar. Mesmo assim, em nenhum momento pensou em desistir. Enquanto Emerson se esforçava para entrar na faculdade, alguns de seus vizinhos de rua preferiram trilhar outros caminhos – aparentemente mais fáceis. Quando ganhou uma bolsa para cursar Artes Cênicas na Universidade Anhembi-Morumbi, um de seus amigos recebeu um passaporte para viver em uma cela de cadeia. O sonho de ser artista não enfraqueceu ao longo dos anos, apesar de todas as dificuldades. “Eu só comecei a ganhar dinheiro com o teatro depois de dois anos trabalhando nesse meio. Isso aconteceu em 2004 e 2005, se não me engano”, lembra. No início, o lucro vinha das aulas de teatro, lecionadas em escolas especializadas. Depois, as participações em algumas peças também lhe renderam alguns trocados. “Mas foi só 2
Disponível em: www.nossasaopaulo.org.br/observatorio
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em 2007 que eu comecei a trabalhar profissionalmente como ator”, lembra. Desde então, o seu comprometimento com a arte é proporcional ao que dedica às questões sociais. O poema publicado na primeira página de seu livro, (A) Massa, revela claramente o estilo de sua produção literária. Trata-se da poesia “Manifesto por um teatro num lugar maldito”, que fala sobre o Teatro Municipal de Cangaíba, desativado há anos. “Esse foi na verdade um manifesto poético para reivindicar a abertura do teatro”, explica o autor da obra. Mas o protesto não ficou só no papel, Emerson fez questão de levá-lo à secretaria de cultura. O protesto chegou a ser tema do programa “Manos e Minas”, comandado pelo – também poeta da periferia –, Alessandro Buzzo, na TV Cultura. O barulho chamou a atenção das autoridades. “O secretário de cultura foi lá e conversou com a gente. Na última reunião ele disse que vai fazer acontecer. Agora vamos ver. Ele disse que até o prefeito leu. Vai saber...”, divaga. Um pouco antes desse livro ser publicado, o jornal “Gazeta Penhense”, divulgou a notícia de que o Teatro Flávio Império, fechado desde 2006, seria reformado e aberto em 2012. O trabalho social realizado por Emerson é reconhecido até pelos moradores da região. “As pessoas me pedem para falar sobre as coisas. Eles me vêm como representante do bairro. Porque eu falo muito de Cangaíba e da zona Leste. Então, de certa maneira, esse tema acaba sendo muito forte no meu trabalho”, afirma. Apesar do seu trabalho como artista ser pautado por assuntos de cunho social, Emerson acredita que esta não é uma regra para a produção cultural da periferia. “Alguns grupos não querem protestar. Só produzir as suas peças de teatro, sem
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se preocupar com as lutas e com os movimentos sociais”, relata. Emerson não interpreta isso de forma negativa, para ele, cada um tem sua arte e sua forma de expressão – não existe obrigação nenhuma a cumprir. “Também tem muita companhia de arte que não está ligada à periferia, mas que realiza protestos políticos e sociais em seus trabalhos. Uma coisa não tem a ver com a outra”, argumenta. Além de trabalhar no próprio bairro, lutando por melhores condições culturais – levando diversão e conhecimento aos moradores –, Emerson é também um “poeta nômade”. Ele frequenta vários saraus, cada dia está em um. “São muitos saraus acontecendo e eu procuro participar de todos. Divulgo a minha poesia, e aproveito para tentar vender meu livro...”, diz. Érica Peçanha, antropóloga que se dedica a pesquisar a produção literária da periferia, lembra bem quando o nome de Emerson é citado. “Ah, ele circula entre os saraus. Não frequenta apenas um específico”, recorda. Pode-se dizer que Emerson não torce para nenhum time, mas está sempre nas torcidas. É aí que fica claro que o verdadeiro comprometimento dele é com a poesia e não com um grupo ou evento literário determinado. Para desenvolver seus projetos, o poeta criou a Companhia Extremos Atos. “Quando eu terminei a faculdade trabalhei em alguns grupos de teatro. Mas essa companhia eu formei justamente para trabalhar ali no bairro com foco nas discussões sociais. Eu não quero só apresentar peças, eu quero discutir essas questões e apresentar nos lugares mais carentes”, explica. A peça “O Boneco do Marcinho”, criada para o público infantil é apresentada nas ruas, em ONGs e em bairros mais afastados. “São os mesmos temas sociais, só que tratados de
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outra forma, voltados para o público infanto-juvenil. Tem música, tem poesia...”, descreve. Hoje, Emerson consegue se manter apenas com o que ganha da arte, na casa da sua mãe, onde nasceu e cresceu, após passar parte da infância na cidade de Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo. Apesar de sobreviver como artista, o poeta não pode se dar ao luxo de acordar tarde todos os dias. Durante a semana, a rotina começa cedo, às sete horas da manhã. “Eu faço um curso de dramaturgia na SP Escola de Teatro”, explica. O curso é o responsável por seu sustento. “A escola é pública, então eu ganho uma bolsa-auxílio para frequentar as aulas”. É durante as tardes que o artista se dedica aos projetos e poesias. Já as noites são preenchidas por eventos e saraus, que Emerson frequenta para divulgar seu trabalho e se divertir um pouco. E quem pensa que o fim de semana é reservado ao descanso está enganado. É nos sábados e domingos que as peças produzidas pela Companhia Extremos Atos são apresentadas em diferentes pontos da periferia paulistana. Com o pouco dinheiro que recebe, Emerson vai levando a vida, mas diz que não é fácil. “Sobreviver da arte e ganhar dinheiro com isso é muito difícil. Hoje mesmo eu estava no metrô vindo para cá, pensando em como vou fazer para ganhar dinheiro. Porque é instável, tem épocas boas e outras ruins”, desabafa. Lucrar com a poesia então, é mais complexo ainda. “Mas juntando tudo eu consigo. Os cursos, as peças, os livros... Tem que fazer bastante coisa”, completa. Os saraus fazem parte do circuito de divulgação de Emerson, por isso é importante que suas declamações chamem a atenção, o que realmente acontece. As poesias são representadas com tanto drama e intensidade que as apresentações de
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Emerson se destacam entre as outras. O que não é de se estranhar, já que a formação em artes cênicas é bastante utilizada para colocar as palavras para fora. De suas poesias, a preferida foi batizada de “Massa”. “Eu participava de Slam (batalhas de poesia) e nunca ganhava. Aí um dia eu resolvi escrever uma para ganhar e escrevi Massa. Ganhei!”, exclama. Hoje, esses são os versos mais conhecidos do poeta, que acabou ganhando o apelido de Massa, por conta da poesia. “Todo mundo me conhece pela ‘Massa’. Quando eu vou me apresentar todo mundo fala ‘olha lá o cara da Massa’. Aí acabou virando um rótulo mesmo”, complementa. Circulando de um sarau para o outro e apresentando suas peças para diversos públicos, o Poeta da Massa vai vivendo o sonho de ser artista, dia após dia. A falta de dinheiro é compensada quando as risadas das crianças compõem a trilha sonora de suas peças – declarando o sucesso que arte faz nas ruas da zona Leste. A poesia então, não é capaz de mover montanhas, mas seus versos já fizeram com que o secretário de cultura saísse de seu gabinete para conhecer a precariedade do bairro de Cangaíba. “Eles não entendem ou não aceitam a ideia do pobre ver e fazer teatro. E para o pesadelo do sistema a periferia não está só fazendo, mas produzindo e escrevendo projeto para editais. A massa, até então silenciosa, está começando a se formar. Se informar. E isso é só o começo. A nossa história, agora, vai ser contada por nós mesmos, de baixo para cima”, finaliza.
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Entre um sarau e outro, Emerson Alcalde declama seus versos e divulga seu livro
Clayton, mais conhecido como Fino du Rap, é rapper e “alpinista urbano”
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A Massa M-A-S-S-A. Massa. Amassa. A massa. À massa! Eu sou a massa. Volumosa. Pastosa. Máxima! Pega, joga, passa o rolo ôôô Aperta eu cresço apareço pronta pro bolo Quanto maior melhor. Com a farinha e o pó. Espalhada mais fraca e mais fina Fácil pra ser cortada, moldada e dividida. Consumida. Massifica. Amorfa sem cristalina.
Sou grande, mas não importante. Sou igual ao barbante Que serve pra amarrar e não é valorizado o bastante Eu protejo o recheio que vai no meio Fico na borda. Sou jogada pra escanteio Pegam a uva passa o argamassa na taça, ai que graça!
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Massa. Amassa. A massa. À massa! Eu sou da massa vou ao estádio ver uma partida Com a torcida é pinga é briga pra ida economizo até na comida Meu time massacrado. Volto pra casa amassado na lotação para um bairro amontoado Exausto pro barraco sentado no sofá quebrado
Assisto a televisão fico feliz tenho a última distração Pra mim existe uma comunicação! Eu não sou cão eu já disse que sou massa e vou deitar Eu como massa, preciso esfriar Pra depois ser usada se não acabo revoltada e aí não dá Quem fica muito quente pode queimar e estourar Mas não fui feita pra pensar, filosofar. Só enrolar, amassar, rechear. Amanhã é segunda e tudo há de continuar Massa. Amassa. A massa. À massa.
Emerson Alcalde
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Que Vantagem Maria Leva QUE vantagem levou vai levar, por amar, por sofrer e viver por você POR deixar de ter sonhos e correr pelos seus E ficar com o fardo do ingrato adeus DONA das emoções, se entrega às razões MOVE o mundo, faz tudo mil e uma funções SAI cedo pra trabalhar, volta e cuida do lar e desconhece até o que é descansar AMANTE guerreira, fiel companheira DE sofrer preconceito ela é pioneira ESPINHA DORSAL da família, pelos seus se humilha DORMINDO em fila FILA de hospital de cadeia, de escola PRO seu fruto não morrer até pedi esmola ENTÃO me diz: que vantagem ela leva com isso? ENQUANTO sobe com as compras no elevador de serviço Que vantagem Maria Leva?
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Me diga Ioiô? Me diga Iaiá? QUE vantagem levou, vai levar POR passar noites em claro te esperando voltar FOI tomar uma no bar e se esqueceu da hora E o rango ta lá na mesa até agora ENQUANTO ela se preocupa com a vida que voa CRIOU os seus filhos e também os da patroa SE preocupa com estudo, emprego, saúde e beleza SUPERA toda dor e a tristeza, é forte por natureza É Tereza, é Leci, é Ivone, é Glória É Joana, é Pagu, é Lu, é Vitoria É deusa da história É ROSE, é Rosa, é Danila, é Camila DANDARA e Lauan, minhas filhas estrela que brilha REGINA, Barbina, Lucia, Neuza e Edite ELA tem o dom da vida e o amor sem limites
Fino Du Rap
CAPÍTULO 04
I N VA S Ã O P O É T I C A Apesar de todo o esforço do Estado em destruir a educação, ainda tem muitos guerreiros e guerreiras entricheirados nas salas de aula tentando impedir que isso aconteça. Descobrimos uma outra coisa nesses encontros: escola + poesia = conhecimento. Sérgio Vaz
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Cooperifa na Escola Já faz algum tempo desde que Sérgio resolveu expandir a área de atuação da Cooperifa. O sarau, que antes era limitado ao boteco do Zé Batidão, invadiu as escolas públicas em 2007. “Nesse curto período de Sarau nas escolas nós falamos poesia para mais ou menos quatro mil pessoas de várias comunidades da periferia, e boa parte delas viraram frequentadores do Sarau da Cooperifa, mas o que mais marcou a gente foi a alegria dos professores nesses encontros” lembra Vaz. A ideia de expandir o sarau para outras áreas, como as escolas, surgiu aos poucos. Primeiro, Sérgio criou um outro evento literário em Taboão da Serra, chamado “Café Literário”. Durante o ano em que este sarau aconteceu, muitas escolas faziam visitas frequentes às apresentações. “Sem perceber, a poesia estava voltando para casa”, conta Vaz. Com o fim destes encontros literários em Taboão da Serra, Sérgio continuou com a ideia de manter os versos próximos às salas de aula. Foi então que o Sarau da Cooperifa passou a visitar as escolas públicas da região, todas as terças-feiras com um bonde de, aproximadamente, 15 poetas. “Novamente foi muito bom ter o contato com os alunos, pois na periferia a palavra poesia, ou poeta, parece coisa de estrangeiro ou extra-terrestre: as pessoas já ouviram falar, mas não sabem se existe”, Vaz escreveu no livro Cooperifa. Uma das escolas pelas quais passou o bonde da Cooperifa é a EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Mauro Faccio Gonçalves Zacharias, popularmente conhecida como Zacharias – nome escolhido pela comunidade em homenagem ao falecido humorista do quarteto “Trapalhões”. A responsável pelo projeto de poesia desenvolvido na Sala de Leitura da escola é Socorro Lacerda, de 51 anos. Ape-
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sar da formação em História, a professora nunca lecionou a disciplina, porque sempre preferiu as letras. “Eu trabalho com leitura, gosto de poesia e também escrevo poesias”, diz. E foi exatamente isso o que a motivou a realizar projetos poéticos em suas salas de leitura. Para incentivar os alunos, há quatro anos a professora organiza um Concurso de Poesias, com inscrição e tema livres “É uma atividade totalmente livre e não está vinculada a nenhuma disciplina. Participa apenas quem quer mesmo”, explica Socorro. Apesar de não ser obrigatório, o concurso arrecadou 120 inscrições na última edição. Destas, 40 são escolhidas para compor um jornal produzido pela escola e, por fim, as dez melhores são premiadas. Segundo a professora Socorro é o desejo de fazer parte dos movimentos culturais da escola e do entorno que incentivam os alunos a participarem. O projeto é realizado com estudantes do ensino Fundamental I e II, da 1º a 9º série. “Nós temos alunos de onze anos até sessenta”, conta o professor de História, Álvares Gonçalves Filho, de 42 anos. Crianças e adultos se mostram muito interessados pela poesia, principalmente por causa do intercâmbio feito com a Cooperifa. “Tanto os alunos veem ao sarau, aqui no Zé Batidão, quanto o pessoal da Cooperifa vai até a escola”, declara a professora. “Em todo lugar que a gente ia tinha sempre alguém que tinha algum escrito que tirava da gaveta ou da memória e participava com a gente de forma livre e espontânea. Muitos nem acreditavam que a gente era da comunidade, e muitos ficavam admirados que a maioria dos escritores que estava assistindo se pareciam com eles. E o que é melhor, falando no mesmo idioma: a língua do povo”, Sérgio descreve em seu livro. A noite em que Socorro deu essa entrevista foi uma daquelas em que os alunos saíram da escola para participar do
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sarau organizado no Zé Batidão. Durante as duas horas de recital vários nomes ligados à escola Zacharias foram chamados pelos mestres de cerimônia. A maioria dos alunos, tímidos, se colocava atrás do microfone, como se o instrumento fosse uma proteção entre a platéia e eles próprios. Aparentemente frágeis, os poetas das salas de aula seguravam os rascunhos, onde anotavam os versos, com tanta força que quase rasgavam os papeis. Após as primeiras palavras, a voz trêmula e o semblante apreensivo iam se desgarrando dos corajosos estudantes. Quando terminavam, a salva de palmas proferida pelo público terminava de quebrar o nervosismo e trazia à tona sorrisos que quase não cabiam nos rostos dos felizes novos poetas. “Eu acho que a poesia é um caminho bastante interessante para começar a ler e compreender que não é preciso escrever muito para falar sobre os sentimentos mais intensos”, descreve a professora Socorro. Para ela, a poesia é capaz de transformar as pessoas, de certa forma. “Na minha opinião, ao escrever uma poesia, a pessoa passa a olhar ao seu redor de uma forma mais cuidadosa, com um olhar mais generoso e atento. Pela experiência que eu tenho com os alunos da Zacharias, eu vejo que eles percebem melhor as nuances e as cores. Eles ficam mais intensos naquilo que vêm e naquilo que fazem. Eu acredito que a poesia transforma, pelo menos, o desejo de querer, e de se descobrir capaz de enxergar o mundo de outra forma”, revela. Os resultados alcançados por meio do projeto são percebidos por professores de outras disciplinas também, como Álvaro cita. “O trabalho de leitura contribui para o desenvolvimento dos alunos em outras matérias. Acho que tudo que envolve a arte e a leitura amplia a capacidade de interpretação, além de ser também um processo de sensibilização do indiví-
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duo. A gente vive numa sociedade absurdamente bárbara. Nós estamos tomados por procedimentos muito mecanizados, então tudo aquilo que sensibiliza é interessante”, argumenta.
A rima que revoluciona “E quem diria, depois de tanta bala perdida, que seria pela poesia que a ordem das coisas seria ferida de morte?”, Eliane Brum discursa em texto sobre a Cooperifa. Talvez a jornalista Eliane Brum tenha escrito isso porque conheceu Maria Vera, moradora do Jardim Guarujá. Talvez, a dona-de-casa simplesmente se encaixe entre as histórias de tantas outras pessoas que tiveram o rumo da vida colocado de cabeça para baixo por conta das letras. Maria Vera tem 39 anos e três filhos que andam sob as suas asas. Ela estudou até o primeiro colegial em uma escola pública e mesmo assim continuou sem saber escrever e sem conseguir fazer simples contas de matemática. É a verdadeira mulher-estatística. Quando chegou aos 21 anos de idade resolveu que queria aprender tudo aquilo que já deveria saber, de acordo com os anos em que frequentou a escola. Colocou então os cadernos debaixo do braço e foi compensar o tempo perdido. Depois de ter os conhecimentos avaliados, Maria precisou voltar para a quarta-série e começar tudo outra vez, mas não reclamou. “Mas aí eu fiz o meu primeiro filho e tive que parar outra vez”, declara, mais uma vez se colocando como prova da veracidade das estatísticas. Foi apenas em 2010, quando já estava com 38 anos que Maria Vera voltou a sentar nas carteiras da escola Zacharias. “Eu sentia vergonha dos meus filhos. Quando eles iam estudar perguntavam as coisas para mim e eu não sabia nada”, assume.
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Agora, terminando o oitavo ano, ela exibe com orgulho as poesias escritas durante as salas de leitura. “A professora Socorro incentivou a gente a escrever poesias e eu sempre participo do concurso. Já até ganhei o segundo lugar”, conta com certo tom de exibição – merecido, vale dizer. Os versos escritos pela dona-de-casa, que presta serviços como cabeleireira para engordar a renda da casa, são simples. As palavras unem-se com sensibilidade e sem sofisticação. A riqueza das rimas está no conteúdo, referente ao cotidiano colorido que a estudante aprendeu a enxergar com o olhar poético. Maria Vera mora na rua debaixo do boteco do Zé Batidão e se apressa em dizer que na sua casa guarda as poesias que já escreveu. O sorriso de satisfação deixa claro o orgulho que Maria tem de estar ali. Apesar de todas as dificuldades, ela conseguiu, enfim, contrariar as estatísticas. Maria Vera agora sabe escrever e ensina poesia para os seus filhos. As pesquisas ficaram para trás, porque Maria Vera foi mais forte do que o poder dos números, ela agora é poeta. Poeta da quebrada.
Muito mais do que poesia A Cooperifa existe até hoje porque foi construída sob alicerces de generosidade e companheirismo. Mas o componente que manteve o evento cultural vivo por tanto tempo é a poesia. Poesia que faz o chão do boteco do Zé Batidão tremer, tamanha é a urgência das palavras, seguidas por palmas sem fim. Mas ao longo dos anos, a poesia tornou-se pouco perto de tudo o que a Cooperifa poderia construir para o povo da periferia. A Cooperifa, então, invadiu outros espaços culturais e passou a promover diversas modalidades de cultura para os moradores da região.
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Sérgio resolveu começar com algo escandaloso, para chamar a atenção e zombar da cara de alguns intelectuais que torcem o nariz para a produção cultural da periferia. Os conselheiros do sarau mais famoso das quebradas criaram, em 2007, a Semana de Arte Moderna da Periferia. A alusão à semana de artes mais famosa do século XX não é pura coincidência. Muitos não concordaram com a escolha do nome e brigaram por um título que fizesse referência à periferia. Porém, ganharam aqueles que resolveram afrontar a elite. “O que alguns não sabiam era que nós da Cooperifa queríamos justamente isso mesmo, comer esta arte enlatada produzida pelo mercado que nos enfiam goela abaixo, e vomitar uma nova versão dela, só que desta vez na versão da periferia. Sem exotismos, mas carregada de engajamento”, declarou Vaz. A semana aconteceu como foi previsto, após centenas de reuniões e resoluções. A periferia pôde então sentir o gosto das artes. Em diversos pontos de cultura da zona Sul paulistana, como a Casa Popular de Cultura do M’Boi Mirim, CÉU Casablanca e Centro Cultural Monte Azul, entre outros, celebraram a manifestação artística do povo lindo, povo inteligente da Cooperifa. Apresentações de dança e teatro arrancaram sorrisos e gargalhadas das bocas cerradas dos moradores. Encontros literários, debates, exposições de artes plásticas e cinema completaram a bagunça, que não precisou da iniciativa do governo para acontecer. Na Cooperifa o que eles já aprenderam faz tempo é que se quiserem alguma coisa precisam correr com as próprias pernas: sem depender de nada e nem de ninguém. Depois de a provocação ter dado certo, a periferia nunca mais passaria por um regime cultural. Desde 2008, o coletivo que se reúne no bar do Zé Batidão organiza mostras culturais, denominadas “Mostra Cultural da Cooperifa”.
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E não para por aí. Todas as semanas, impreterivelmente às segundas-feiras, a laje do Zé Batidão é transformada em cinema. É o “cinema na laje”. Os organizadores se desdobraram para conseguir tela e projetor, mas desde que conseguiram não se passa uma semana sem que haja a sessão de cinema para o povo. As mesmas cadeiras de plástico que acomodam o público do sarau são utilizadas como poltronas durante a exibição de filmes. No escuro, um lanterninha à moda antiga, auxilia os espectadores atrasados, ou aqueles que quiserem levantar para ir ao banheiro. Tudo é de graça, inclusive os saquinhos de pipoca distribuídos antes do início das sessões. “Muita gente aqui até tem dinheiro para ir ao cinema, mas não tem esse hábito. O que fazemos aqui é a formação do público”, explica Sérgio, um dos idealizadores do projeto. O esforço não é em vão. Mesmo nos dias mais frios do inverno paulistano, as sessões do cinema na laje lotam. Apenas a chuva é capaz de atrapalhar a exibição de filmes, já que a laje é coberta por estrelas. Será que no Shopping Cidade Jardim tem cinema com vista para o céu?
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O bonde da Cooperifa invadiu as escolas públicas da periferia, enchendo as salas de aula com rimas
A Semana de Arte Moderna da Periferia é sempre lembrada através da camiseta pendurada na parede do Zé Batidão
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LITERATURA, PÃO E POESIA
A literatura na periferia não tem descanso, a cada dia chega mais livros. A cada dia chega mais escritores, e, por consequência disso, mais leitores. Só os cegos não querem enxergar este movimento que cresce a olho nu, neste início de século. Só os surdos não querem ouvir o coração deste povo lindo e inteligente zabumbando de amor pela poesia. Só os mudos, sempre eles, não dizem nada. Esses custam a acreditar. Não quero nem falar dos saraus que estão acontecendo aos montes, pelas quebradas de São Paulo. Isto me tomaria muito tempo. Haja visto as dezenas de encontros literários, pipocando nas noites paulistanas. Cada qual do seu jeito, cada qual com seu tema, cada qual a sua maneira de cortejar as palavras. Mas eu quero falar mesmo e da poesia que se espalhou feito um vírus no cérebro dos homens e mulheres da periferia. Pois é, essa mesma poesia que há tempos era tratada como uma dama pelos intelectuais, hoje vive se esfregando pelos cantos dos subúrbios à procura de novas emoções. O Tal poema, que desfilava pela academia, de terno e gravata, proferindo palavras de alto calão para platéias desanimadas, hoje, anda sem camisa, feito moleque pelos terreiros, comendo miudinho na mão da mulherada. Vocês, por acaso, já ouviram falar do tal poema concreto? Pois é, os trabalhadores e desempregados estão construindo bibliotecas com eles, nas favelas. E o lobo mau pode assoprar que não derruba. Apesar da pouca roupa que lhe deram está se sentindo todo importante com sua nova utilidade. A periferia nunca esteve tão violenta, pelas manhãs é comum ver, nos ônibus, homens e mulheres segurando armas de até 400 páginas. Jo-
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vens traficando contos, adultos, romances. Os mais desesperados, cheirando crônicas sem parar. Outro dia um cara enrolou um soneto bem na frente da minha filha. Dei-lhe um acróstico bem forte na cara. Ficou com a rima quebrada por uma semana. A criançada está muito louca de história infantil. Umas já estão tão viciadas, que, apesar de tudo e de todos, querem ir para as universidades. Viu, quem mandou esconder a literatura da gente, Agora nós queremos tudo de uma vez! Dizem por aí que alguns sábios não estão gostando nada de ver a palavra bonita beijando gente feia. Mas neste país de pele e osso, quem é o sábio? Quem é o feio? E olha que a gente nem queria o café da manhã, só um pedaço de pão. Que comam brioches! Não, não é Alice no país da maravilha, mas também não é o inferno de Dante. É só o milagre da poesia. Quem é que odeia ler agora?
Sérgio Vaz
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Porém Queria ter vivido melhor, Porém a mediocridade sempre me foi farta e generosa Nos caminhos que escolhi para viver. Queria ter sido mais alegre, Porém a tristeza sempre foi companheira fiel Nos dias intermináveis de abandono. Queria ter amado mais as pessoas que conheci Ou que fingi conhecer, Porém na maioria das vezes, eu também não me conhecia. Queria ter andado mais livre, Porém, algemado à ignorância, perdi muito tempo Tentando voar sem sequer saber andar. Queria ter lido mais livros, Porém, analfabeto de ousadia, passei muitos anos Enxergando pelos olhos adormecido de outras pessoas. Também queria ter escritos mais poemas Do que bilhetes pedindo desculpas, Porém, as palavras sempre me vieram como culpa E não como estrelas. Queria ter roubado mais beijos e abraços Das meninas que andavam desprotegidas, Protegidas pela magia da infância, Porém, cresci muito cedo, e a timidez sempre me foi Uma lei muito severa a ser cumprida.
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Queria ter pensado menos no futuro, Porém, o passado simples nunca foi o melhor presente E a eternidade sempre me pareceu coisa de gente que tem preguiça de viver. Queria ter sido um homem mais humilde Porém, a vaidade e a ganância sempre me cercaram De mimos e coisas que até hoje não sei para que serviram. Queria ter pregado mais a paz, Porém, como um covarde, gastei muita munição tentando atingir amigos e desconhecidos que não usavam coletes à prova de balas nem blindados no coração. Queria ter sido mais forte, Porém rir dos vencidos e bajular os mais ricos Sempre me pareceu o caminho mais curto Para o esconderijo secreto das minhas fraquezas. Queria ter dito mais a verdade, Porém a mentira sempre foi moeda de troca Para comprar o respeito e a admiração das pessoas fúteis De almas vazias. Queria que o mundo fosse mais justo Porém, avarento de nascença, fui o primeiro a esconder o sol na palma da mão, antes que o vizinho o fizesse. E mesquinho por vocação escondi as noites com lua Para que os poetas não a cortejassem.
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Queria ter dito mais besteiras, Porém fui desses idiotas amantes das proparoxítonas E sujeito oculto nos bate-papos de botecos de esquinas, Onde a vida não acontece por decreto. Queria ter colhido mais flores, Porém o medo de espinhos afugentou a primavera. E outono que sempre fui, plantei inverno quando a terra pedia verão. Hoje queria ter acordado mais cedo, Porém temo que pra mim Seja tarde demais.
Sérgio Vaz
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CAPÍTULO 05
A A RT E Q U E L I B E RTA “O Sarau da Cooperifa é nosso quilombo cultural. A bússola que guia a nossa nau pela selva escura da mediocridade. Somos o grito de um povo que se recusa a andar de cabeça baixa e de joelhos. Neste instante, nós somos a poesia.” Sérgio Vaz
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Por um universo periférico melhor Sérgio sempre acreditou que a arte tem poderes invisíveis, porém avassaladores. Para ele, a literatura tem a capacidade de transformar realidades e mudar o rumo da história – não só de uma comunidade, mas de um país. Há dez anos, a Cooperifa foi criada para suprir a falta de equipamentos culturais nas periferias. Mas acabou se tornando muito mais do que um centro de cultura às margens da sociedade. As palavras distribuídas gratuitamente durante os saraus literários transformaram-se em armas nas mãos do povo. E foi com munições confeccionadas com as palavras do abecedário que essa gente das beiradas se libertou da ignorância. “Não existe arte pela arte, é preciso ser um artista cidadão. Você não pode ir ao teatro e depois não comentar sobre o que viu. A arte tem que causar reflexão”, argumenta Vaz. “O artista tem um compromisso com a verdade. Por que o que ele é? É um fotógrafo do cotidiano. Eu quero ser isso, eu quero ser um representante do meu cotidiano e quero ser lembrado por isso”, completa. Com um sorriso que parece ter sido desenhado em seu rosto e os “punhos cerrados”, como gosta de falar, Sérgio briga todos os dias de sua vida por um universo periférico melhor – por um Brasil melhor. E não é sozinho que ele trava essas batalhas diárias. Vaz traz com ele um exército de poetas, escritores e leitores munidos de versos e protegidos pelo conhecimento. As vitórias de cada dia são simples. O maior poder de transformação que a Cooperifa possui está em conscientizar a população de que é preciso estudar. Por isso tantas pessoas que frequentam o sarau voltaram para a escola ou deram início a um curso na faculdade. “Eu consegui terminar o colegial, mas tem gente que foi para a faculdade. Hoje, uma
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menina da periferia, ir para a faculdade é um marco”, declara Rose Dorea. Na periferia de Sérgio Vaz, Marco Pezão, Rose Dorea, Lu Souza, Márcio Batista, Preto Will e de muitos outros, não existe ponte que impeça o povo de atravessar o mundo. Não importa se a travessia acontecer em algum sonho de criança ou se for descrita em um papel rascunho. Na Rua Bartolomeu dos Santos, até quem não vê com os olhos é capaz de enxergar o mundo descrito através das palavras. É o caso de Dona Edith, a “pedra preciosa” da Cooperifa, como diz Rose Dorea. Famosa, no boteco do Zé Batidão D. Edith tem cadeira cativa, sempre ao lado de D. Isabel. “É a D. Isabel quem lê as poesias para ela ou então grava em um CD e ela vai decorando”, explica Rose. Sentada em uma mesa em frente ao microfone, D. Edith assiste às declamações com um singelo sorriso nos lábios. Os olhos, cobertos por uma discreta nuvem cinza, parecem ver melhor do que muitas pupilas brilhantes que andam por aí. Dona Edith enxerga muito bem: porque olha com a alma. As duas mãos, unidas como em prece, só se separam no momento de bater palmas para o poeta que acabou de apresentar seus versos. Algumas poesias ela já conhece e acompanha baixinho, movimentando os lábios discretamente. Com delicadeza, D. Edith arruma os cabelos grisalhos, colocando-os para trás e logo depois deixa as mãos à vista novamente, mostrando as unhas pintadas de cor de rosa. Por volta das dez horas da noite, Rose Dorea anuncia a vez da jovem senhora. “Dona Edith, a Diva da Cooperifa”. Na frente de todos e com a voz um pouco rouca começa a declamar os versos de sua poesia preferida, Vozes D’África, de Castro Alves.
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Uma mão segura o microfone e a outra se movimenta com graça enquanto ela fala em alto e bom som: “Deus! Ó Deus! Onde estás que não responde? / Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes / Embuçado nos céus? / Há dois mil anos te mandei meu grito / Que embalde desde então corre o infinito... / Onde estás, Senhor Deus?...”. Chegado o fim da apresentação, o bar do Zé Batidão vai abaixo. Ninguém economiza palmas para a Diva, que é o exemplo de persistência e força para todos que ali se encontram: do mais novo ao mais velho. É de arrepiar.
Sim, nós temos sapatos A periferia tem linguagem própria: tem gíria, tem palavrão. Nos livros, o jeito simples de falar é reproduzido no papel. Na periferia não tem essa história de norma culta. A maioria dos escritores das quebradas desconhece as regras ditadas pela Academia Brasileira de Letras – e os que conhecem não se dobram a elas. A principal característica dos textos produzidos na periferia está, realmente, na estética simplista. A maioria dos autores teve pouco acesso à educação, então nem sempre as palavras são escritas corretamente. Fato que incomoda os intelectuais e críticos. “Para grande parte da academia e mesmo da crítica, a literatura marginal não pode criar no trabalho com a linguagem aquilo que é conhecido como o específico literário”, resume a professora de letras, Heloisa Buarque de Hollanda, em artigo publicado em seu site. Sérgio encara o preconceito que muitos intelectuais têm quanto à produção literária da periferia como egoísmo. “Nós estamos em um país que nunca incentivou a leitura, nunca incentivou os estudos. Aí, quando algum funileiro, mecânico
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ou até desempregado escreve um poema, tem gente que ainda acha ruim? Só pode ser falta de generosidade”, discursa. Comparando a aquisição de cultura à conquista do primeiro par de sapatos, Sérgio dispara: “eu acho que as pessoas podem não gostar, não concordar e não comprar. Agora, imagine que você tenha dez pares de sapato e alguém, lá em outro lugar, consiga comprar seu primeiro par. Porra, você vai ficar bravo porque, agora, aquela pessoa tem um sapato? Eu não consigo entender”. “É só poesia caralho! Não estamos incomodando ninguém. Eu acho que a nossa literatura não é melhor. Pode ter menos crase, menos ponto e vírgula, mas mesmo assim é literatura”, completa. Esse movimento literário, pouco conhecido no circuito cultural brasileiro já tomou conta dos periféricos que – entre comprar um livro de autor desconhecido e outro, escrito por um vizinho do bairro – escolhem a segunda opção, sem ao menos parar para pensar. A periferia consome o que produz, na medida do possível. “A venda de livros ainda é um assunto complicado nas periferias, pois nem todo mundo tem dinheiro para comprar”, adverte a antropóloga Érica Peçanha. É por isso que os saraus fazem tanto sucesso, porque além de eventos culturais, eles são gratuitos. O que não falta nos saraus são apresentações de rappers. De acordo com Sérgio Vaz, o hip hop é de suma importância para a cultura periférica. “A cultura que a gente tem hoje se deve ao hip hop. A poesia da periferia bebe dessa fonte. O hip hop é o grande responsável pelo aumento da autoestima da comunidade”, diz. A professora Heloisa concorda. “Considero o hip hop hoje, tal como praticado nas periferias dos grandes centros
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urbanos brasileiros, como uma das formas mais criativas e eficazes dos vários usos possíveis da cultura como recurso inclusivo, de geração de renda, de promoção de conhecimento, de estímulo à educação formal e, portanto, de autoestima”. Literatura marginal, periférica, divergente. Esses são os principais termos utilizados para qualificar a produção escrita da periferia. “É uma nomenclatura adequada na medida em que, sem sombra de dúvida, essa literatura representa uma parte da cidade praticamente desconhecida pelo que até hoje chamamos de centro (...). Mas acho marginal ainda pouco porque não fala dos compromissos que esta literatura assume enquanto agente de transformação social. É uma literatura que vai bem além das funções sociais atribuídas à literatura canônica ou mesmo de entretenimento. É uma literatura de compromisso”, relata Heloisa no artigo A questão agora é outra. Nesse ponto, Sérgio e Heloisa mantêm a afinidade, já que para o poeta a função do artista é muito mais complexa do que, simplesmente, entreter os leitores (ou espectadores). “Eu acho que o artista tem uma responsabilidade com a sua comunidade. Eu costumo dizer que o artista é a última linha da sociedade, quando ele desiste ou se entrega é porque não resta mais nada”.
Poesia no ar: um gesto elegante Sérgio não desistiu até hoje e, pelo jeito, o verbo “desistir” não está em seus planos. Pelo contrário, ele quer expandir a arte da periferia para outros ares. Em 2007, pela primeira vez na história, a poesia invadiu o céu de São Paulo e foi parar em diversos cantos da cidade. Como? Voando, oras!
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A ideia surgiu da violência. “Um dia eu estava ouvindo sobre esse negócio de bala perdida na periferia, aí eu fiquei pensando que a gente podia fazer um outro tipo de bala perdida: atentados poéticos. Foi então que surgiu a ideia de fazer com que as poesias viajassem via aérea”, explica Vaz. Então, em abril de 2007 aconteceu a primeira edição do “Poesia no Ar”. Centenas de balões brancos foram lançados ao ar – cada um com uma poesia amarrada na ponta. Naquela noite, após a celebração das palavras pronunciada, cada espectador lançou seu verso no ar. Enquanto os balões subiam até o céu, o povo, na terra, assistia àquela cena como se fosse a coisa mais linda que já tinham visto até então. “Não há palavras para descrever o que foi aquela noite no Sarau da Cooperifa. Quem sabe talvez “catarse” seja a palavra para defini-la. Na noite mais fria de São Paulo a periferia teve uma das noites mais lindas de sua vida. Uma das noites mais gentis e belas de nossas vidas”, descreveu Vaz no texto Batalha de abril. Desde então, a “Poesia no ar” acontece todos os anos e cada verso vai acompanhado do remetente. “Todo ano nós recebemos telefonemas de pessoas de todos os lugares perguntando sobre o que se trata”, conta Sérgio. “É o dia mais lindo da periferia. Eu acho que é um gesto de gentileza”, declara Vaz. Além de bonita, a noite é também cheia de liberdade. Aqueles que sentem vergonha de falar em público podem expressar seus sentimentos naquele pedaço de papel, lido apenas por um desconhecido em qualquer lugar da cidade. Em frente ao boteco do Zé Batidão, cada um dos espectadores porta um balão com munição poética capaz de despertar corações adormecidos ou roubar sorrisos de faces enraivecidas. Quintais alheios são invadidos pela poesia, sem ao menos os moradores terem a chance de recusar a visita.
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Porém, como diz Sérgio Vaz: “Não banquem os tolos: estamos em guerra, e a nossa poesia iletrada, dura e com cheiro de pólvora é apenas um artifício para confundir os tais sábios e os que fingem que não sabem de nada. A poesia no ar é só um aviso que o nosso pequeno exército marcha corajosamente sobre a terra, contra tudo e contra todos, mas sem esquecer o sorriso no rosto e os punhos cerrados. Somos nós por nós!”
“Por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor”.
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Dona Edith é a Diva da Cooperifa e, apesar de não ver com os olhos, enxerga com a alma
A “Poesia no Ar” é o atentado poético da periferia, quando os versos invadem o céu
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Literatura das ruas
A literatura é dama triste que atravessa a rua sem olhar para os pedintes, famintos por conhecimento, que se amontoam nas calçadas frias da senzala moderna chamada periferia. Frequenta os casarões, bibliotecas inacessíveis ao olho nu e prateleiras de livrarias que crianças não alcançam com os pés descalços. Dentro do livro ou sob o cárcere do privilégio, ela se deita com Victor Hugo, mas não com os Miseráveis. Beija a boca de Dante, mas não desce até o inferno. Faz sexo com Cervantes e ri da cara do Quixote. É triste, mas a rosa do povo não floresce no jardim plantado por Drummond. Quanto a nós, Capitães de areia e amados por Jorge, não restou outra alternativa a não ser criar o nosso próprio espaço para a morada da poesia. Assim nasceu o sarau da Cooperifa.Nasceu da mesma Emergência de Mário Quintana e antes que todos fossem embora pra Passárgada, transformamos o boteco do Zé Batidão num grande centro cultural. Agora, todas as quartas-feiras, guerreiros e guerreiras de todos os lados e de todas as quebradas vêm comungar o pão da sabedoria que é repartido em partes iguais, entre velhos e novos poetas sob a benção da comunidade.
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Professores, metalúrgicos, donas de casa, taxistas, vigilantes, bancários, desempregados, aposentados, mecânicos, estudantes, jornalistas, advogados, entre outros, exercem a sua cidadania através da poesia. Muita gente que nunca havia lido um livro, nunca tinha assistido uma peça de teatro, ou que nunca tinha feito um poema, começou, a partir desse instante, a se interessar por arte e cultura. O sarau da cooperifa é nosso quilombo cultural. A bússola que guia a nossa nau pela selva escura da mediocridade. Somos o grito de um povo que se recusa a andar de cabeça baixa e de joelhos. Somos o poema sujo de Ferreira Gullar. Somos o rastilho da pólvora. Somos um punhado de ossos, de Ivan Junqueira, tecendo a manhã de João Cabral de Melo Neto. Neste instante, neste país cheio de Machados se achando serra elétrica, nós somos a poesia: essa árvore de raízes profundas regada com a água que o povo lava o rosto depois do trabalho.
Sérgio Vaz
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Sr. da Limpeza
Sou o senhor da limpeza. Minha função é tornar a cidade uma beleza. Um lugar que não exista sujeira, nem ali nem aqui, nem lá nem cá poeira. Comigo tudo ficará puro e limpo, um campo limpo sem Ângela, sem Miriam, sem Missionária em uma grande Olímpia. Juntarei toda a Bela Cintra sem semita num monte azul, um paraíso igual no sul com Mariana, Madalena, Ana e Rosa formando a árvore genealógica de ótica verde e azul. A Liberdade será assistida da ponte estaiada acabando com a sabotagem, queimando o canão do Brooklin Sul. Joga água lá pra cima! Vem, vem chegando a faxina! Varre, varre! Vou varrer! Tá me olhando assim por quê? Estou trabalhando e você? Vá pra lá! Onde ninguém possa te ver, lá sim poderás viver! Vou tirar da Augusta a angústia da puta que pariu os filhos do café que agora abriga os da cana que parecem o povo de Gana que vêm no arrasta-pé. Na Paulista vou deixar a Bela Vista com o branco casarão e o negro barracão vai-vai lá pro Capão com o seu Bixigão. Só consolação, os jardins, os pinheiros, os campos belos. E uma nova Luz com missa de Frei Caneca abençoando esse novo castelo.
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Tenho que deixar essa praça sem mancha, sem jaça. A República vai parecer Colônia. A garoa vai cair como neve sobre cedros, igualzinho na Polônia. As palavras de ordem são: revitalizar, desinfetar, clarear. Uma política que realmente se diga; transparente. Aliada com o meio ambiente em uma separação por cor, reciclando idéias arianas que o socialismo gelou. Pela maneira mais correta e disciplinar da coleta seletiva, também apagarão dos muros grafite e pixação e no lugar, reprodução de obras renascentistas. E frases de Goethe e Nietzsche, educando os leigos pobres e tristes. As fachadas dos comércios terão estética refinada, referência a Bauhaus e uma arquitetura fascinada. Vidraças, cerâmica germânica. Lanches só de Hamburgo. Nas rádios, só se escutarão canções wagnerianas ditando um novo ritmo para o avanço da raça humana. Ruas imaculadas moradores sentirão orgulho de residir e poder dar um passeio ver o asseio de madrugada ao lado de pessoas polidas e bem asseadas. E para completar esse processo de higieniopolização só faltará adotar como idioma local o ALEMÃO.
Emerson Alcalde
O p o n t o f i n a l a p o n ta pa r a um novo começo
Quando eu decidi ser jornalista, acreditava ser capaz de transformar o mundo com as palavras. Até aí, nenhuma novidade. Afinal, praticamente todos os estudantes de jornalismo compartilham deste mesmo sonho. Durante o primeiro ano da faculdade, mais uma vez me juntei à maioria, quando fui bombardeada pela frieza dos professores. A cada aula, a cada depoimento, o sonho ia desmoronando um pouco mais. A história era sempre a mesma: “vocês não vão poder escrever o que quiserem, existem regras”. Sim, existem regras e, além delas, muitas limitações. Foi o que constatei em meu primeiro emprego na área. Durante alguns meses penei, pensando que talvez tivesse me iludido demais e tomado o rumo errado na encruzilhada que apresentava a plaquinha “carreira”. Eu queria escrever sobre o povo que se amarrota durante minutos incansáveis nos pontos de ônibus da cidade. Queria descobrir quais eram as histórias por trás dos olhos daquela gente que anda de um lado para o outro, sempre com pressa de chegar a algum lugar. Mas nada disso. Fui amontoar recortes de revistas e jornais. Separar, organizar, analisar, recortar, copiar e enviar para
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os clientes. O famoso “clipping”: coisa que o assessor de imprensa “fodão” não faz, mas o estagiário passa o dia fazendo. Por uma dessas ironias do destino, eu trabalhava em uma editora de livros, a Global Editora, responsável pela publicação da coleção “Literatura Periférica”. Entre os autores da coleção, lá estava ele, Sérgio Vaz – sim, o próprio! E é nesse capítulo da minha história que os sonhos de estudante voltaram a abrilhantar minhas ideias. Em um daqueles dias de clipping sem fim, me deparei com uma matéria escrita pela jornalista Eliane Brum, para a revista Época. Não lembro mais o título, mas nunca vou esquecer a maneira como Eliane descreveu o Sarau da Cooperifa, muito menos o jeito como a jornalista enxergou Sérgio Vaz. Desde então me tornei fã incondicional de Eliane Brum e encasquetei que queria conhecer o tal sarau de periferia, onde as palavras eram declamadas em um boteco de esquina. Os anos passaram e eu só fui conhecer a Cooperifa, Sérgio Vaz e Eliane Brum durante este projeto experimental. Ao entrar no universo criado pela Cooperifa não pude separar o lado profissional do pessoal. Afinal de contas, mesmo que muitos jornalistas digam o contrário, é impossível manter a racionalidade quando o nosso material de trabalho é feito de carne e osso, tem ideias e sentimentos. Na faculdade sempre avisam para não misturar nossas aspirações pessoais e nosso “eu verdadeiro” às questões profissionais. Mas professores, me desculpem, isso é impossível. As reportagens não teriam a menor graça se não tivessem a mistura de sensações que os repórteres conferem a ela. Quando Eliane Brum disse – em um dos comentários sobre seus textos publicados no livro Olho da rua – que é impossível continuar a mesma pessoa após realizar uma reportagem, tenho que concordar. E concordo com toda a eloquência possível.
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Em um desses encontros que a vida nos oferece de presente, tive a oportunidade de perguntar pessoalmente para Eliane sobre qual foi a transformação que a Cooperifa havia causado nela. Afinal, anos se passaram desde que a jornalista aterrissou no bar do Zé Batidão para fazer uma reportagem, mas ela continua aparecendo por lá. Antes de responder, Eliane respirou fundo e se pôs a pensar. Enquanto isso, olhou para cima quando, na verdade, parecia estar olhando para dentro de si, à procura da resposta exata para aquela questão. Alguns segundos depois, disse lentamente: “eu sempre me senti desencaixada, nunca me senti parte de algum lugar e é assim até hoje. Mas aqui eu me sinto em casa. Aqui é o meu lar”. Simples assim. Ao fim desse livro não existe outra palavra melhor para descrever a mim mesma do que “outra”. E ainda bem. Aquela menina sonhadora, que acreditava ser capaz de mudar o mundo continua aqui, porém, diferente. Hoje, eu acredito ser capaz de transformar algumas realidades empunhando apenas uma arma: a caneta. Aprendi com a Cooperifa.
BIBLIOGRAFIA
Livros ALCADE, Emerson. (A) Massa: Poesias e dramaturgias. São Paulo: Edicon, 2011 VAZ, Sérgio. Cooperifa: Antropofagia periférica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008 NASCIMENTO, Érica Peçanha do. Vozes Marginais na Literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009.
Sites www.colecionadordepedras1.blogspot.com www.diplomatique.uol.com.br www.machadodeassis.net www.nossasaopaulo.org.br www.heloisabuarquedehollanda.com.br
“ P OVO LINDO, POVO INTELIGENTE: SEJAM BEM-VINDOS!” O que a periferia de São Paulo tem? Desigualdade e injustiça? Medo e revolta? Falta de oportunidades e de perspectivas? Isso também... Mas resumir as coisas assim, em prosa tão objetiva, é perder a essência de um universo muito maior, tão complexo quanto seus atalhos e vielas, e que está em constante expansão. É atropelar o lirismo de iniciativas como a Cooperifa, cujos saraus de poesia sempre têm lugar para mais um... Puxe uma cadeira, “abunde-se” em qualquer canto: aqui impera o poder da metáfora, do malabarismo estético da linguagem. E há personagens épicos, como Sérgio Vaz – que, em 2001, reuniu alguns amigos em um boteco paulistano com o lúdico propósito de... bem... recitar poemas! Mal sabia Sérgio que, de forma encantadoramente despretensiosa, lançava ali as bases de um movimento cultural relevante. A Cooperifa segue viva e passa bem. Hoje está “encarnada” no boteco do Zé Batidão – mas, como espírito imortal que é, já habitou outras moradas, outros endereços... Foi despejada e desacreditada. Mas, convertendo-se em uma ideia, tornou-se virtualmente imune ao cepticismo e a qualquer vicissitude do universo periférico. Pare e pense: como se mata uma ideia? Uma ideia não se mata, oras! Nesta obra, a autora Natália Inzinna conta em detalhes a origem, a ascensão, as “mortes anunciadas” e as “ressurreições milagrosas” da Cooperifa. E nos põe em contato com personagens fascinantes – gente movida a sensibilidade, determinação e nobreza, que insiste no propósito de tornar a vida melhor para quem realmente precisa. Seja debaixo de chuva ou de estrelas... Eduardo Torelli Jornalista