PRIMEIRO LIVRO?
DARKSIDE E ALEPH
Autores dão dicas para escrever.
Conheça melhor as editoras.
A MULHER NA JANELA A. J. Finn conta suas ideias e inspirações.
LiteraTour
Edição 01 Junho de 2018
LITERADUO
NEIL
GAIMAN
Entrevista com o grande autor de Sandaman, Coraline e Deuses americanos. 1
2
~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
Literatour
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Nesta edição Editoras
Escrita
06
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Darkside e terror
Como a paixão pela fantasia e terror criou a editora.
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Editora Aleph
A ficção científica e a ascenção dos nerds.
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Editora Carambaia
A editora pequena faz um maravilhoso trabalho.
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Desafios da escrita
Quatro escritores experientes dão dicas para iniciantes..
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A dor de escrever
A arte de ser escritor não é constutuída só de prazeres..
Conhecendo os autores 26
Neil Gaiman
32
Clarice Lispector
Autor fala sobre seu livro e sua relação com a literatura. Um antigo texto da escritora falava sobre Mineirinho, um criminoso morto. ~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
Literatour
~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
19 Olá,
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leitores! A Literatour é uma revista feita por e para os apaixonados pela leitura e o poder de uma boa história, mas também para aqueles que precisam de um incentivo para ler. Faça um tour pela literatura conosco! Mas não apenas por ela, mas também pelas histórias em quadrinhos e a ficção no geral, em mídias variadas.
Nossa capa
Expediente O projeto gráfico da LiteraTour foi inteiramente elaborado pela designer Victória Baldow, que foi responsável por todo planejamento, diagramação, arte, iconografia e revisão.
Lançamentos 34
O homem de giz
C. J.Tudor escreveu O homem de giz, um thriller promissor.
38
A mulher na janela
A. J. Finn revela sua curiosa fonte de inspiração.
Histórias em quadrinhos 44
HQ Maus
46
As HQs no Brasil
O escritor Neil Gaiman em entrevista sobre a paixão dele e nossa; a literatura. Página 24. PRIMEIRO LIVRO?
DARKSIDE E ALEPH
Autores dão dicas para escrever.
Conheça melhor as editoras.
A MULHER NA JANELA A. J. Finn conta suas ideias e inspirações.
LiteraTour
Edição 01 Junho de 2018
LITERADUO
A HQ Maus traz perspectiva diferenciada a respeito do holocausto.r. Professor da USP dá sua opinião sobre a realidade dos quadrinhos no Brasil.
NEIL
GAIMAN
Entrevista com o grande autor de Sandaman, Coraline e Deuses americanos.
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EDITORAS
Em tempos sombrios do mercado editorial,
Darkside faz aposta certeira no
terror
Um dos fundadores da editora carioca conta como a Darkside nasceu e cresceu pelo amor ao terror, aos livros e à qualidade gráfica.
A
Darkside Books nasceu há cinco anos na contramão do mercado editorial. Enquanto os números indicavam (e ainda indicam) retração, no momento em que editoras fechavam as portas ou optavam por fundir com gigantes do setor para ganhar sobrevida, os sócios Christiano Menezes e Chico de Assis, ambos com 38 anos, apostaram em um nicho usualmente desprezado: a literatura de terror e de fantasia.
Foto: Logo Darkside
A decisão de olhar com mais carinho para esse gênero foi quase uma necessidade. Christiano, que carrega o apelido de Chucky pela semelhança com o boneco maléfico da saga Brinquedo Assassino, prestou serviço como diretor de arte para grandes editoras como Companhia das Letras e Objetiva (esta antes da fusão com a própria
Cia.) e conta que considerava toda a produção literária brasileira voltada ao tema ruim. Como fã, ele diz que não encontrava um material bem acabado.
“
Via uma certa negligência com o produto. A impressão é que associavam a estética de Filme B com algo sem qualidade. E não é nada disso
”
Em 2012, ele chamou o amigo de alcunha Tio Chico, que lembra o personagem da Família Adams, e lançaram no Dia das Bruxas, em 31 de outubro, a nova editora. Os apelidos por si só indicavam que estavam no caminho certo. Mas não eram só dois nerds à procura de identidade profissional. Eles queriam colocar nas estantes, nas telas, nas nuvens e seja lá mais onde for um produto de qualidade, com o cuidado de agradar em todos os detalhes os apreciadores do grotesco, do fantástico e do infame, conforme indica o manifesto da editora no site oficial. O trabalho gráfico é o que chama a atenção logo de cara.
6
Desde 2015 todos os livros são feitos apenas em capa dura – até então havia também a versão em brochura, com preço mais acessível. Na época, tinha fã que comprava as duas opções. Mas a decisão por manter apenas o modelo mais caro foi definido após perceber que a editora não precisava investir tanto em marketing para alavancar vendas. Com isso, poderia destinar mais dinheiro para dar excelência ao produto, sem impactar no preço final. Chico conta, sem revelar números, que eles conseguem ter uma margem parecida com a das outras editoras e oferecer um produto de alta qualidade.
“
Temos nosso público formado e que é fã, então não há necessidade de fazer grandes investimentos em material de divulgação
”
O preço médio de uma publicação da Darkside custa 50 reais. O valor é semelhante ao de lançamento de grandes editoras. Mas como é que uma empresa nova, com pouco investimento – eles calculam entre 40 e 50 mil reais – ~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
Literatour
consegue se sobressair em meio à gigantes do setor? A ordem dos fatores altera o resultado Houve uma conjunção de fatores para dar certo, segundo Christiano. E talvez o motivo mais determinante para a rápida aceitação foi, logo de cara, viralizar nas redes sociais. Há cinco anos, o Facebook começava a formar suas bolhas e a Darkside rapidamente entrou na dos aficionados por produções de terror e de fantasia. Hoje a página da editora tem cerca de 840 mil curtidas. Ele diz que o nicho que eles queriam atingir não havia sido percebido pelo mercado.
“
Com as redes sociais a gente teve uma demanda muito rápida e surpreendente até. Sabíamos que havia público, mas a gente não sabia que havia tanta gente assim
”
Para melhorar, os fãs desse gênero literário são colecionadores,
Amitville, obra do autor Jay Anson, é um dos exemplo da qualidade das publicações da editora.
fazem questão em ter o objeto físico, em tempos que o papel tem sido substituído pelo digital. Por isso, a Darkside conseguiu se firmar no mercado, enquanto outras editoras desistiram de produzir obras que demandassem um custo mais alto. O caso mais emblemático de insucesso nesse mercado high end de editoras é o da Cosac Naify, referência por livros de arte e luxo e que fechou as portas em novembro de 2015. Ela possuía cerca de 1.600 títulos no catálogo, de clássicos como Tolstoi a monografias de artistas, passando por romancistas estrangeiros como Valter Hugo Mãe. O editor Charles Cosac, no entanto, não tinha
retorno financeiro nas obras mais sofisticadas e, em vez de buscar alternativas, perder qualidade e mudar o rumo do negócio, optou por encerrar as atividades. Na época, revelou em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo. “Somos uma editora cult, os livros são destinados a professores acadêmicos e estudantes de arte, e não gostaria de ver nossa linha editorial desvirtuada.” Por isso, fechou. A Cosac Naify estava dentro do balaio da crise que afeta de maneira geral todo o mercado editorial. De acordo com pesquisa divulgada em maio pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros, o setor faturou 5,3 bilhões de reais em 2016, redução de 5,3%, descontada a inflação, em relação ao ano anterior. Foram produzidos 427,2 milhões de exemplares (-4,4%) e vendidos 385,1 milhões (-1,1%). Somados os dois últimos anos, houve uma redução em termos reais de 17% do faturamento. A Darkside justamente é uma das que não deixou esses números serem ainda piores. Desde 2012, a editora cresce entre 25% e 30%
7
EDITORAS em relação ao ano anterior. Sempre sem metas pré-estabelecidas. Christiano avalia que a expectativa é acompanhar o público que conseguiu formar.
“
A nossa curadoria é de pegar na mão e andar junto com leitor e isso tem nos fortalecido. Essa relação de confiança faz com que, no mínimo, eles descubram novas possibilidades
”
Os livros da Darkside têm uma tiragem média de cinco a oito mil exemplares mas há exceções como “Star Wars: a trilogia”, de George Lucas, que passou dos 30 mil vendidos. E olha que ele não é o recordista da editora. Até agora, a publicação de principal sucesso não poderia ser outra do que “Medo Clássico”, o primeiro volume da obra de Edgar Allan Poe, o mestre dos mestres da literatura fantástica. O livro acabou de ter esgotada a quarta reimpressão de 15 mil exemplares. Ou seja, há pelo menos 60 mil pessoas lendo este clássico. O ano de 2017 tem sido bom para a Darkside. Até agora foram comercializados cerca de 100 mil livros. No total, são 101 publicações no catálogo, divididas em quatro linhas editoriais,
HQs Mangás, que traz o mundo da graphic novel, Darklove, que busca revelar escritoras do gênero terror, Crimescene, de crimes que aconteceram realmente, e Cinebook, que leva à loucura cinéfilos do pop cult, como dos filmes Tubarão, Sexta-Feira 13, O Exterminador do Futuro e Psicose. Alguns deles estão em edição numerada como é o caso do primeiro lançamento da editora, Os Goonies, de James Kahn, que começou a ser vendido em 12/12/12. Desse início cabalístico até o final de 2017, a expectativa dos sócios é que a editora ultrapasse a marca de um milhão de livros vendidos. Com tudo andando nos eixos, não há planos mirabolantes para os próximos anos. A ideia é seguir com o público que conquistaram, sem inventar moda. Christiano
www.darkside.com.br
Bom dia, Verônica é o primeiro livro publicado pela escritora..Aqui no Brasil, pwwwela dedicada Darkside.
Números animadores
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~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
Literatour
conta que nunca pensou em sair do contexto em que se inseriu para apostar em um escritor da moda e editar algo milionário como Cinquenta Tons de Cinza, Crepúsculo, ou um desses best-sellers de auto-ajuda. Não há caçadores de tendências entre os 14 funcionários que se dividem entre os escritórios do Rio de Janeiro, São Paulo e Blumenau. Existe uma preocupação em ser verdadeiro com o público cativo.
“
”
Por não fazer apostas arriscadas e hoje atuar em diferentes frentes do gênero, a Darkside tem conseguido se manter firme no mercado. Porque se cai a venda nos livros dos cinéfilos, por exemplo, aparece uma graphic novel e equilibra as contas. E o fato de ter uma equipe enxuta, ajuda a ser
Todos amantes de cinema foram presenteados pela Darkside com o livro do roteiro de Donnie Darko.
mais dinâmico, e mudar a direção do barco.
“
Inovar é sempre importante, mas não queremos dar o passo maior que a perna. Acho lindo ver que as feiras de editoras independentes crescem a cada ano e cada vez mais surgem materiais muito bons. A gente quer passar por isso e propor coisas que dialoguem com o novo
”
Fonte: Projeto Draft.
www.darkside.com.br
No meio musical, tem aquela banda que surge e estoura, e tem o Iron Maiden, que tem seu público formado, possui uma consistência. Os caras têm certeza daquilo que querem,
onde querem chegar. Existe um conceito bem estruturado. E é isso o que nos interessa
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EDITORAS
Aleph: “Os nerds enriqueceram e mostraram que ser culto é legal” Aleph traz clássicos da ficção científica e livros de Star Wars ao mercado brasileiro.
U
ma visita às livrarias pode fazer você encontrar os romances que inspiraram filmes como Planeta dos Macacos, Blade Runner, Laranja Mecânica… a lista pode parecer quase infinita, mas trata-se apenas do catálogo da editora Aleph. Desde os anos 1990, o grupo paulistano publica ficção científica, procurando trazer os clássicos do gênero para o leitor brasileiro. Adriano Fromer, diretor editorial e filho do fundador da Aleph, diz:
“
devolver para o Brasil um gênero literário, e estamos conseguindo
”
Depois de quase uma década republicando autores do cânone do gênero, como Isaac Asimov (Fundação; Eu, Robô), Arthur
Ícone cyberpunk, o livro de estreia de William Gibson foi inspiração para o filme Matrix.
Para livreiros, editores e imprensa, ficção científica não vendia bem porque não estava sendo bem feita. Nós queríamos
C. Clarke (2001 - Uma Odisséia no Espaço), Philip K. Dick (Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas, que deu origem a Blade Runner) e William Gibson (Neuromancer, que influenciou Matrix), a Aleph vive em 2015 o começo de uma nova fase, com foco em novos autores de “sci-fi” e em Star Wars.
“
Primeiro, você precisa recolocar os clássicos no mercado. Um clássico é fundamental para formar um leitor. Agora, com a lição de casa sendo feita direitinho, acreditamos que também há espaço para novos autores nesse mercado
”
Escrito em 1990 por Michael Crichton, Jurassic Park envolve questões de bioética e luta por sobrevivência.
É nisso que acredita Fromer, que sonha em vender 1 milhão de cópias com os lançamentos da coleção de livros do universo de Star Wars - como Herdeiro do Império, de Timothy Zahn, que já vendeu mais de 50 mil cópias, e o recém-lançado Provação. Fonte: IGN
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~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
Literatour
Obras fora de catálogo ganham edições em pequenas tiragens Lançados pela editora Carambaia, livros que continuarão relevantes por muito tempo e que não seriam publicados novamente ganham edição reformulada
D
e forma oposta ao que o mercado editorial espera para o livro físico, o jornalista e pesquisador Fabiano Curi tomou a iniciativa junto da também jornalista e pesquisadora Graziella Beting de construir a editora Carambaia, e ela o ajudou a selecionar as publicações e formular as edições muito bem trabalhadas, com poucos exemplares, numerados e para venda somente no site da editora. Carambaia descreve a própria linha editorial neste mesmo site de forma que realmente representa a proposta inusitada e cativante da pequena empresa.
Publicado pela Carambaia, O. Henry foi um dos maiores contistas americanos de seu tempo.
“
Procuramos ‘furos’ literários, textos excelentes que merecem uma nova ou inédita edição no Brasil, e buscamos tradutores e designers que desenvolvam um projeto especial para cada uma delas
”
Para o jornal O Globo, Fabiano Curi revelou que a ideia surgiu em 2013, ao fim de seu doutorado em Literatura. Começou então a tomar contato obras fora de catálogo.
Curi também diz para o jornal que o barateamento do custo de impressão para pequenas tiragens ajudou a criar uma organização entre as pequenas editoras, que estão se associando para que sejam notadas em feiras e outros eventos de literatura. Como o diferencial da Carambaia é justamente a impressão de livros que estão há muito tempo fora de catálogo,
A edição de Dom Casmurro publicado pela Carambaia se inspirou na edição original de 1899.
“
Percebi que tinha um mercado grande para explorar Não acreditava mais no formato convencional, os editores grandes vendem livros como se fosse qualquer coisa
”
11
EDITORAS Gaziella comenta para O Globo sobre o público da editora:
“
Falamos para um público parecido com aquele cara que gosta de música e curte o som do vinil
”
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Uma das publicações da editora é o livro Dom Casmurro, do importante escritor Machado de Assis, que também escreveu o memorável livro Memórias Póstumas de Brás Cubas. A edição além de possuir uma belo trabalho gráfico, com ilustrações e material de qualidade, possui também um caderno de fotografias do Rio de Janeiro da época em que o livro foi escrito, Além disso, os exemplares
contam com uma vel=-ha técnica em que imagens são impressas na lateral dos livros, e as mesmas se revelam ao leitor conforme ele manuseia a obra. Carambaia está em crescimento e é um exemplo do potencial das pequenas editoras e da variedade de possibilidades no mercado editorial. Por Victória Baldow.
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Literatour
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Literatour
escrita
O grande desafio de escrever o primeiro livro Autores contam sobre métodos e práticas que ajudam na tarefa de desenrolar seu projeto literário. Em qualquer área, até as boas ideias acabam por enfrentar dificuldades para não ficarem restritas aos planos, idealizações ou abstrações e ganharem vida. Isso também vale para os livros. Mesmo entre aqueles que começaram a ser colocados em prática, boa parte não passou de um rascunho ou se perdeu no percurso por falta de clareza, organização ou dedicação. Escrever um livro passa por uma série de questionamentos e etapas. No caso dos escritores estreantes, o percurso pode ser ainda mais desafiador. Se você tem este sonho ou já está com um projeto em andamento, vale a pena conhecer as experiências de autores publicados. O Nexo procurou quatro autores com vivências e trabalhos bastante distintos para que contassem
como foi o processo de criação de seu primeiro livro. Como formularam o conceito de seus trabalhos? Como organizaram seu tempo? Como encaixaram o projeto em seu dia a dia? De que forma contemplaram o leitor? Leia a seguir os relatos de Rafael Gallo (“Revéillon e outros dias”, coletânea de contos, editora Record), Gabriela Barretto (“Como cozinhar sua preguiça”, livro de receitas, editora Melhoramentos), Ilona Szabó (“Drogas: as histórias que não te contaram”, dramas semificcionais, editora Zahar) e Matheus Leitão (“Em nome dos pais”, jornalismo com autobiografia, editora Intrínseca).
Rafael Gallo Foi finalista do prêmio Jabuti em 2013 com sua coletânea de contos “Réveillon e outros dias”. No ano passado, publicou seu primeiro romance, “Rebentar”, que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura para estreantes de até 40 anos. “É um trabalho de escultura com cinzel, de ficar batendo no mesmo ponto até surgir algo”
Converse consigo mesmo “Sempre gostei de livros até que um dia decidi escrever.
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Foto: Wilian Olivato
Escrita
O autor paulistano Rafael Gallo foi aos 30 anos o vencedor do prêmio São Paulo de Literatura.
Conforme fui praticando, comecei a pensar na escrita como algo mais sério e, então, pensei que podia ser interessante elaborar um livro de contos. Precisei elaborar as personagens e situações para cada história. Não sou de fazer muito planejamento em relação à estrutura ou enredo. O que faço é pensar muito nos conceitos que quero para a história, no seu ‘subterrâneo’, para depois elaborar
quais personagens e situações vou usar para potencializar isso que busco abordar. É muito mais um trabalho de encontrar, em longas conversas comigo mesmo, qual é a melhor maneira de dizer aquilo que é o coração da história. Sempre mexo muito nos textos, aliás, sinto que minha escrita é 80% - no mínimo – feita de rearranjar as coisas. Nunca escrevo um monte de coisas, nunca ando muito adiante, é sempre de passo em passo, e voltando pra trás para rever. Um trabalho de escultura com cinzel mesmo, de ficar batendo ali no mesmo ponto até surgir algo.” Pense no conjunto “Não foi um tempo organizado, eu não tinha metas ou algo assim. Acho que isso é coisa de empresa de seguros. Mas eu tinha o projeto ‘artístico’, digamos, e isso acho importante para quem pensa em escrever o primeiro livro. Eu sabia, a partir de certo ponto, que seria um livro de contos com dez ou doze histórias, e daí fui elaborando o ‘corpus’ do livro. Eu acho
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importante pensar nesses termos, em algum ponto do caminho, em vez de simplesmente ir escrevendo a esmo e depois, quando se tem a ‘gaveta’ cheia, simplesmente pegar tudo isso, enfiar entre duas capas e materializar um livro. Basta pensar nos seus autores preferidos, para ver que seus livros sempre têm um conjunto coeso, não são simples despejos de ideias. Eu não tinha exatamente um lugar especial para escrever. Cheguei a escrever em ônibus, durante viagens, mas sempre tentei ter um tempo que me era razoável e a possibilidade de concentração. Sentar por 15 minutos e tentar fazer algo nunca deu certo pra mim. Eu sempre tento sentar para ficar horas escrevendo (até hoje) porque sou lento. Por isso, para mim o tempo é mais importante do que o lugar. E a vida não para pra gente escrever, em geral. O livro tem que sair em meio aos boletos, a oficina mecânica, a jornada de trabalho etc. Fuja dos modismos “Acho que há muitas dificuldades nesse processo todo, tanto dentro da própria escrita como fora dela (conhecer editoras, cavar oportunidades, não desanimar, ter o referencial da qualidade do próprio trabalho etc.). Eu w que ~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
Literatour
é importante que quem escreve tenha a convicção de escolher a liberdade quanto a seu próprio livro. Se alguém ficar se preocupando muito com escrever algo que seja mais conforme os modismos, ou que pareça ter o perfil de ganhador de prêmios ou que os leitores vão gostar, está se enganando terrivelmente. A melhor coisa a fazer é escrever o livro que você quer escrever, o livro com o qual você se importa de verdade. Se não tiver isso em mãos, pelo menos, atravessar as dificuldades vai se tornar insuportável. Aliás, se você ficar se enganando, mesmo o sucesso pode se tornar um estorvo.
Gabriela Barretto Proprietária e chef do restaurante Chou, em São Paulo, estreou nos livros em 2016 com “Como cozinhar sua preguiça”. A publicação compila 51 receitas, em um texto que mistura informações
“Definir o conceito foi muito pensar no que o livro não iria ser.”
Que livro é o seu? “O mais importante é entender qual o conceito do livro. É difícil, porque um livro pode ser muitas coisas. Tem que fazer um processo de afunilamento. Para mim isso foi muito pensar no que o livro não era. Daí fui excluindo: não quero que seja um livro sobre a minha vida, não quero que A escritora Gabriela Barreto fez faculdade de Letras na Unicamp, mas abandonou para fazer gastronomia.
Foto: capa
Não contei com nenhuma ajuda profissional. Quando escrevi, não tinha muito conhecimento do meio literário, não conhecia ninguém das editoras, tampouco algum escritor. Também não sabia das possibilidades de oficinas literárias ou de quem seria mais indicado. Pois é, eu era bem desinformado e isso é uma coisa da qual me arrependo. Um conselho bom para novos autores talvez seja tentar conhecer melhor esse ecossistema literário, porque pode ajudar a não ficar tão no escuro.”
sobre ingredientes e vivências pessoais.
seja só sobre o restaurante. Acho que no primeiro livro, a tendência é querer explicar tudo, porque a gente chegou até ali, tem esse impulso de querer colocar tudo, e muitas vezes isso não é legal. É a parte mais difícil do processo, fazer esse mergulho íntimo para entender qual é a proposta do livro. Cheguei nesse formato de misturar memórias pessoais com receitas. Não queria uma coisa muito seca: aqui está como se faz a receita e pronto. Eu acho que o livro de gastronomia tem que contar uma história, seja do restaurante, seja do chefe ou daquele tipo de cozinha. Sou muito consumidora destes livros e geralmente tem essa tríade receitas interessantes, imagens bonitas e texto que revela a história por trás. Meu background é em literatura, formada em letras pela Unicamp.” Pense em quem vai ler “Escrevi todo o texto. A [jornalista] Guta Chaves me ajudou a formatar o texto das receitas, o que foi muito importante. No restaurante, às vezes a gente faz de um jeito que parece óbvio pra gente, mas pro leitor leigo não é nada óbvio. A primeira coisa foi definir as receitas que iam entrar, então tínhamos que pensar no conceito do livro em termos de estrutura. Não queríamos aquela coisa muito clássica de livros de receita, que começam com entradas e depois vão para os pratos principais e sobremesa. Nesse caso, quem me
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Escrita ajudou muito foi meu marido, que é designer e diretor de arte. A segunda etapa foi a produção de fotografia, que é fundamental. Receita tem em qualquer lugar, no Google. Então tem que ter a parte estética, para fazer a pessoa comprar o livro. Aqui em casa fazemos muito mais receitas com foto do que as que não têm. O livro foi projetado tanto para pessoas que tivessem interesse nas receitas e quisessem cozinhar como para uma pessoa que achasse bonito. Livro de gastronomia também serve para inspirar com as imagens. Queria que não fosse só técnico, mas agradável, bonito.
Foto: Daryan Dornelles
Ilona Szabó é uma cientista brasileira especializada em segurança pública e política de drogas.
Tivemos muito cuidado em selecionar papel, impressão, local da impressão.” Busque a imersão “A partir do deadline da editora, estabelecemos um cronograma. Tivemos uns 9 meses para fazer. Tinha metas ao longo do trabalho, da editora e nossas.O texto foi a parte mais difícil. Escrever sob demanda é f***. Não poderia jamais ser jornalista. Foi difícil, fui espremendo. Quando foi chegando perto do prazo final, fui passar um fim de semana em um quarto de hotel e terminar, pois em casa não tava conseguindo focar. Fiz uma imersão, só escrevendo, sem me preocupar com a casa, com o gato. Acho que joguei muita coisa fora, teve uma edição minha de bastante coisa, algumas outras coisas a editora queria cortar o que gerou conflitos. e Tive que bater o pé para manter.”
Ilona Szabó “O livro não era para pessoas que pensavam como eu.”
Diretora-geral do Instituto Igarapé, quis condensar seu conhecimento e vivência de uma década no campo das políticas de drogas em um livro em que convergem dados técnicos e histórias humanas, semificcionalizadas. “Drogas: as histórias que não te contaram” foi escrito em parceria com a jornalista Isabel Clemente.
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Faça uma tradução do seu conhecimento “A meta foi trazer mais de dez anos de informações técnicas e experiência, incluindo na coordenação da Comissão Global de Política sobre Drogas, da ONU, para um público que tem barreiras, preconceitos e está acostumado com a narrativa que foi construída ao redor desse assunto, de ser um tabu. Fizemos isso por meio de histórias de personagens que pudessem criar essa empatia, com a meta clara de que cada leitor pudesse se identificar, que vissem como alguém que poderia ser próximo, um filho, alguém que trabalha na casa, alguém com quem se importam. O livro não era para pessoas que pensavam como eu, para que vou botar dez anos de experiência no papel se for para falar com os amigos e convertidos? De saída, fiz o roteiro pensando que o livro seria a base para um filme de ficção, afinal um produto audiovisual pode alcançar ainda mais pessoas. Depois, chamei a [jornalista] Isabel Clemente para ajudar no texto. Eu a orientava sobre o contexto dos assuntos, passava referências de livros e filmes, para que ela trabalhasse em cima. Tínhamos metas para os personagens, por exemplo, “temos que terminar este até dia 15 do mês que vem”. Todo o trabalho de edição, de revisão, fizemos em 10 meses, com o prazo estendido.”
~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
Literatour
“Esse argumento fui eu que fiz, tava na gaveta há dois anos e sempre faltava tempo. Quando pensei na proposta do livro, no roteiro inicial, pensei na quantidade de dados que tinha e no mínimo de personagens que precisava para dar vida e contar essa lógica da cadeia das drogas, da produção, o transporte, a venda. Fui pegando os personagens que dariam conta de passar a informação que eu queria passar, de forma sintetizada e palatável para um público não-técnico. Os personagens foram pensados, mas com inspiração em pessoas que eu conheci. Eles são todos composições, condensando várias histórias, mas a inspiração veio de alguém de carne e osso, com quem eu tive contato em
Foto: Capa
Indicação: O livro “Para ler como um escritor” auxilia novos escritores através da análise de obras renomadas.
algum momento. O primeiro personagem eu conheci num albergue em Bogotá, a história começa real, em uma festa de Halloween quando conheci o menino. Peguei a ambientação de outras crianças na mesma situação, para ter essa liberdade, o contexto do país, obviamente tudo que eu sabia sobre o tema para que aquela história daquele menino que encontrei uma vez na vida pudesse ser o mais real possível dentro de um contexto de ficção. Nunca levei pro contexto da imaginação desconectada da realidade.”
vbmilitag.com.br
O que representam seus personagens
Seja atraente “Tentei passar as informações de forma isenta o máximo possível. Somos seres humanos e temos a opinião geral de que as coisas estão erradas e estamos mostrando novos caminhos e dramas pessoais, mas queríamos que o leitor pudesse tirar suas conclusões, fazer sua reflexão sem nenhuma imposição. Não queria que fosse dogmático. Li infinitas vezes para que o tom não ofendesse, que passasse uma impressão de que só eu estava certa. A questão da empatia é proposital, as pessoas realmente estão sofrendo. Temos outras soluções que funcionam em outras partes do mundo, não está na hora de testar?. Queríamos um livro para trabalhar em escolas, pensado em jovens, pais, professores, que estão no dia a dia, precisando lidar com essa questão, Nos preocupamos em ser honestos em um tema em que há muita desonestidade,
Matheus Leitão é jornalista e já trabalhou em diversos veículos de imprensa. Autor de “Em nome dos pais”.
e dizer o que digo sempre: há solução, não acontece do dia para a noite, é humanidade, estamos lidando com pessoas.”
Matheus Leitão “Eu evitava ficar parado em frente a uma tela branca.”
No livro “Em nome dos pais”, o jornalista quis encarar de frente os responsáveis pela tortura de seus pais, os jornalistas Miriam Leitão e Marcelo Netto, durante a ditadura militar. A obra une
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Escrita jornalismo investigativo com um relato pessoal, autobiográfico. A importância da emoção “Este livro tem uma coisa bem específica, que é meu envolvimento emocional com a história. De certa forma, ela me fisgou como um anzol do qual o peixe não consegue se livrar. Isso me acompanha desde os 12 anos, de forma intensa. São meus pais e meu irmão mais velho, pois minha mãe estava grávida dele. Eu falo no livro que tinha que estar lá com eles. Também sou apaixonado pelo tema da ditadura. Eu acho que você precisa estar apaixonado pelo que vai contar. No livro eu tentei também trazer algo novo para um assunto muito explorado, e isso foi inclusive reconhecido pela crítica. Construí essa visão de um filho de pessoas torturadas, de alguém da segunda geração. Acho que a questão do meu envolvimento emocional mexeu muito com as pessoas. A pesquisa foi uma dificuldade, tinha que ir atrás desses militares ou de militantes, foi di-
fícil de encontrar as pessoas. Estruturei a narrativa no sentido de que primeiro fui atrás do delator, depois ia atrás dos militares que atuaram no inquérito policial-militar, até chegar aos torturadores. A narrativa vai e volta, entre o que rolou na época, nos anos 70, e eu indo atrás de militares e militantes que fizeram parte da história.” Falando de si mesmo “O livro foi escrito sob influência do conceito do self-journalism [ou jornalismo em primeira pessoa] que conheci na Universidade de Berkeley, na Califórnia, onde estudei. Antes disso, confesso que escrevia, mas me sentia um pouco impedido, por causa do envolvimento emocional. Esse conceito é libertador, ele fala que o sentimento é mais importante, que é ele que traz a riqueza do projeto. Tive acesso aos documentos relacionados à tortura dos meus pais em 2004, mas foi só em 2012 que me senti liberto pra seguir adiante. No ‘auto-jornalismo’ você tem que ser fiel aos seus sentimentos.
Na hora que sentia tristeza, que sentia raiva, tudo isso tinha que estar no projeto. Na prática, eu anotava tudo. Nos capítulos, tem frente a frente com curador (minha mãe era menor de 21 e precisava de um militar que ‘cuidasse’ dela), delator e torturador. Conversas incidentais que tive com outras pessoas ao longo da apuração que eram relevantes, também encaixei no livro. Passei mal, tive crise de asma, coloquei na história. Tinha parado de ter. Mas ela voltou um pouco antes de começar as entrevistas. Eu voltava muito mexido às vezes. Depois que encontrei o torturador deles, demorei muito e tive dificuldade de escrever o que ocorreu.” Evite a paralisia “Na hora de escrever, às vezes ia até 4 da manhã, às vezes não, ficava travado. Eu evitava ficar parado em frente a uma tela branca, ia escrevendo. Se tratava, fazia as coisas práticas, tentava relatar as coisas que ocorreram que eu achava mais importantes, depois ia melhorando o texto. Eu sentava para trabalhar e não perdia tempo, às vezes você senta 50 minutos e não anda, mas tem que andar. Não se deixar paralisar é importante para um escritor.” Fonte: Nexo Jornal.
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O processo de escrita é doloroso E suas consequências fogem ao nosso controle.
P
recisamos parar imediatamente de romantizar uma questão: nem todo texto é prazeroso de se escrever. Há ideias de textos que doem para ser transformadas em palavras. E para esses textos você precisa ter muita força para resgatar lá do fundo da alma tudo o que precisa para materializar aquela ideia em palavras concretas, a fim de que outras pessoas também possam ter acesso a esses pensamentos. Existem textos que doem na mente e na alma de quem escreve, ainda que também existam os textos que tiram sorrisos bobos do próprio escritor no processo de produção textual. Há textos que doem porque a vida nem sempre é fácil para as pessoas e os textos refletem tudo isso: o contexto em que ela está envolvida, sua situação física e emocional atual, sua relações afetivas enquanto ser social, a vontade ou não que estava de escrever um determinado tema versus a necessidade de se escrever sobre aquele assunto. Contar experiências de vida em textos, por exemplo, nunca é algo fácil. Você, geralmente,
precisa remexer em todo o seu interior, reavivando sentimentos e sensações que, talvez, mesmo que por um breve período de tempo, tenham ficado no seu âmago adormecidas. Mas você remexe e ao fazer isso reaviva todas as sensações porque sabe que aquelas experiências, transformadas em palavras e difundidas por ai pela facilidade da internet, podem ser úteis para outras pessoas que passaram ou passam pelo mesmo que você.
palavras carregam em si significados mais forte do que o simples aspecto semântico. Palavras carregam energias positivas ou negativas, conforme elas foram sendo empregadas ao longo do tempo. Há palavras que são ofensivas para alguns, ao mesmo tempo em que há outras que, embora usadas pejorativamente ao longo do tempo, hoje foram reapropriadas representando símbolos de força de muitas populações marginalizadas e vítimas de opressão.
Você sabe que pode fazer um diferencial na vida daquelas pessoas, ao mesmo tempo em que ao escrever você também consegue se compreender melhor, refletir melhor sobre sua própria existência e situação de vida.
As palavras também, quando transformadas em textos, têm a força de mudar vidas. Não apenas do leitor, mas do próprio escritor. Não apenas positivamente, como também negativamente.
Um texto nunca é um processo fácil. Além de muitas vezes doer, é difícil expressar tudo o que está claro em sua cabeça — seja na forma de ideias, seja na forma de sensações — em palavras concretas que podem ser perfeitamente (ou quase perfeitamente) entendidas pelas outras pessoas a sua volta. Além disso, o trabalho de escrita é difícil porque você não pode simplesmente chegar, escrever e logo publicar. Isto porque as
Quando um texto é criado, você não tem mais controle sobre ele e ele passa a vagar pelo mundo, em um distância curta ou em uma que atravessa continentes. A palavra ali escrita, embora possa ser editada posteriormente, foge ao controle de quem as escreveu. Justamente por isso, um texto precisava ser muito bem pensado antes de ser escrito. Um equívoco pode continuar sendo um equívoco para muitos, mesmo que você o conserte por meio de edições após a publicação do texto.
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Escrita Um texto pode machucar pessoas, que talvez nunca mais se recuperem, ao mesmo tempo em que também pode reerguer pessoas que precisam de força devido a situação de vida atual delas. Um texto tem força e justamente por isso o escritor tem muita responsabilidade sobre o que ele veicula, assim como também o leitor que o lê.
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E textos doem para ser concretizados. Nunca é um processo fácil. E apesar da dor e de toda dificuldade, continuamos escrevendo. Escrevendo para nós e escrevendo para os outros. Por motivos diversos, sejam eles egoístas ou em prol de um bem maior.
nossas palavras sempre encontrem os mais diversos recantos, repletos de pessoas, dos mais diversos tipos. Fonte: Tendr.
Escrevemos com a dor e com a alegria, na esperança de que
~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
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Foto: Flickr/Stanislav Lvovsky
CONHECENDO OS AUTORES
Neil Gaiman: “Alerta de Risco”, o fazer literário e o poder da literatura Em entrevista ao Estadão, autor conta que escreve e lê para ir para lugares desconhecidos.
“Há
coisas nesse livro, assim como na vida, que podem perturbá-lo. Temos morte e dor aqui, lágrimas e desconforto, violência de todos os tipos, crueldade e até abuso.” Quem avisa é o escritor inglês Neil Gaiman na introdução de Alerta de Risco – Contos e Perturbações, que a Intrínseca acaba de lançar no País. Mas há também gentileza, de vez em quando, ele continua, e alguns finais felizes.
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Nesta entrevista exclusiva para o Estado, o autor de Sandman, Deuses Americanos e Coraline vai além ao dizer que os contos – há também um poema na obra – são engraçados e doces. “Se você entrar em cada história esperando que eu leve para um lugar sombrio, terá uma experiência peculiar”, adianta. Independentemente do teor das histórias, elas levam o leitor a
“lugares estranhos”, e vem daí o título da obra – que remete, também, a uma onda de alertas de risco em obras americanas. Neil Gaiman é um escritor pop e conceituado que transita bem entre literatura (romance, conto, graphic novel e obra infantil), cinema e televisão, que se engaja em campanhas em prol de bibliotecas e refugiados e que arrasta multidões de fãs por onde passa. ~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
Literatour
Sandman é uma história em quadrinhos para adultos multiprêmidada e é o maior sucesso do autor.
Otimista melancólico, escritor para quem a literatura tem a função de levar, autor e leitor, para um lugar totalmente novo e uma das vozes mais engajadas.
Foto: Capa
Na Flip em 2007, por exemplo, ele autografou ininterruptamente por seis horas livros de leitores que fizeram sua peregrinação para a cidade fluminense atrás do ídolo. Pelas suas contas, foram duas mil pessoas.
Gaiman, 55, falou ao Caderno 2 sobre isso tudo, sobre seu livro preferido quando menino, Os 13 Tique Taques, e muito mais. Confira trechos da entrevista concedida, por telefone, pelo escritor. Entrevistador (mencionado a partir desse ponto como En): Eu gostaria de começar perguntan-
do sobre outro livro, ‘Os 13 Tique Taques’ (Poetisa), obra de James Thurber de 1950 que acaba de sair aqui. Na introdução, você diz que o leu aos 8 anos e que com ele podemos aprender tudo o que precisamos saber sobre como contar uma boa história. Como esse livro o tocou e o que aprendemos de fato com ele? Neil Gaiman (mencionado a partir desse ponto como NG): Uma das coisas mais bonitas é que
ele é quase um poema. A história é uma delícia, mas a poesia da história é ainda melhor. Temos a impressão de que aquilo canta como uma música bonita. E ele é um dos poucos livros que eu li quando criança – talvez Alice seja o outro – de cujas frases ainda me lembro. Foi ali que tudo começou para mim. E acho que também tem a ver com o prazer de contar história – prazer do qual estamos nos esquecendo.
En: Na introdução, você também diz que este é
um livro que deixa as pessoas felizes.
NG: Pois é. Conto a história de uma amiga que
me ligou aos prantos. Eu não podia fazer nada além de tentar animá-la. Então, comecei a ler esse livro e funcionou direitinho.
En: A literatura tem essa função de deixar as pes-
soas felizes? O que você espera de um livro?
NG: Boa literatura proporciona muitas coisas diferentes: ela nos deixa felizes, nos leva a lugares que nunca vimos antes e nos tira de dentro de nossa cabeça. En: É isso o que você busca quando começa a ler um livro? NG: O que busco é ser levado a lugares aonde nunca fui. É fazer uma jornada. En: É por isso que você cria tantos mundos,
tanta fantasia?
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CONHECENDO OS AUTORES NG-: Um bom livro sobre vida real e história podem levar o leitor aonde ele nunca foi. Não tem a ver com fantasia, mas com habilidade, com o ofício, e tem a ver com o poder da ficção de nos fazer ver o mundo com olhos que não são nossos. En: O que era a literatura para você quando pen-
sou pela primeira vez que queria ser um escritor – e quando foi isso – e o que ela representa hoje? NG: Não me lembro de ter havido um tempo em que eu não queria ser um escritor. Na verdade, eu não queria ser um escritor porque eu já era. Se eu quisesse ser alguma coisa, talvez eu fosse um astronauta, um super-herói ou um guerreiro. Mas eu sempre senti que era um escritor, desde a infância. En: Como o fato de ter sido um bom leitor na infância o fez chegar até aqui? As referências literárias daquela época são importantes ainda hoje? NG: Quando você começa a escrever, você soa
Foto: Divulgação do filme Coraline
como muitos autores antes de soar como você. E ter pessoas excelentes na sua cabeça é muito bom. De alguma forma, ainda trago essas vozes. É como uma sopa. Quando vai fazê-la, coloca vários ingredientes
na panela e no fim, o sabor é de sopa, e não de cebola, cenoura, etc. Espero que neste ponto da vida eu tenha o sabor da sopa. En: Algumas de suas histórias são sombrias e
nos levam a lugares estranhos, como você diz. Considerando a realidade, como Trump nos EUA e o Brexit, no Reino Unido, para citar alguns fenômenos dessa onda conservadora, podemos dizer que o mundo está se tornando mais sombrio e duro?
NG: Podemos, sim, dizer que o mundo está se
tornando mais duro, mas se formos comparar com 1942, com 1350, o mundo é muito melhor hoje e mais seguro. Mas há coisas muito ruins acontecendo, e muitas pessoas vendendo misérias e escuridão. Mas para cada pessoa vendendo miséria e escuridão há 10 pessoas tentando ter uma vida melhor e transformar o mundo num lugar melhor. En: Você é otimista, então? NG: Sou fundamentalmente um otimista, mesmo quando eu sou um otimista melancólico. EN: Seu nome é sempre relacionado a campa-
nhas em prol de bibliotecas, refugiados ou mais literatura infantil nos jornais. Faz isso porque acredita que o escritor tem que tomar partido, porque tem algum tipo de responsabilidade? NG: Acredito que se você tem
uma plataforma, você tem responsabilidades. A responsabilidade do escritor é com o que ele está escrevendo. Mas como alguém que, por acaso ou não, tem muita gente que
Neil Gaiman escreveu o livro ‘‘Coraline’ que é famoso por pela adaptação sombria feita em stopmotion em 2009.
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quer me ouvir, posso falar para esse público sobre o que está acontecendo no campo de refugiados, por exemplo, e me sentirei muito orgulhoso. Tenho quase 2,5 milhões de seguidores no Twitter. Isso é louco e maravilhoso. En A literatura nos ajuda a imaginar e construir
um mundo melhor?
NG: Acredito nisso. Quando se constroem pre-
Foto: Capa do livro
sídios, a taxa de alfabetização é levada em consideração. As habilidades leitoras, ou a falta dela, podem aumentar sua probabilidade de ir para a prisão. Metade dos presos no Reino Unido leem como uma criança de 11 anos ou menos. Ler, e ler ficção, ajuda na empatia. E empatia é a coisa mais importante. Quando conseguimos olhar uma pessoa e nos sentimos em sua pele, em sua mente, por dentro de seus olhos, então nossa vida muda e fica tudo diferente.
se revelar difíceis para as pessoas, chateá-las e levá-las para lugares escuros e perigosos. Fiquei fascinado com isso e até entendo usar o artifício com conteúdos envolvendo estupro, por exemplo, mas não entendo por que colocar um alerta em Hamlet. Só porque a história contém assassinato e suicídio? Isso foi o começo. Depois, decidi fazer menção à ideia no título e comentar os textos – alguns são pesados, outros leves, mas todos levam a lugares estranhos. En De um lado, os alertas podem aplacar a curiosidade dos leitores sobre a história por trás da história. De outro, podem acabar com a surpresa do leitor.
En: Na introdução de ‘Alerta de
Risco’, você diz que aprendeu sobre a vida e sobre as pessoas lendo. NG: A literatura nos leva a lugares aonde não iríamos. Se há duas pessoas morando em São Paulo e uma lê literatura e a outra não lê, a que não lê nunca saiu de São Paulo e a outra foi a centenas de cidades, viu milhares de olhos, conheceu pessoas diferentes. É isso o que a literatura faz: ela “Oceano no fim do caminho” leva a lugares e coloca você dentro é um romance de Neil Gaiman da mente de outras pessoas.
NG: É engraçado... Quando escrevemos uma coletânea de contos, nunca sabemos se alguém vai ler a introdução. Às vezes, até escondo um conto dentro da introdução só para ver se as pessoas estão lendo. Pode ser que atrapalhe a experiência, sim. Mas gosto da ideia de que as histórias neste livro são engraçadas, doces. Se entrar em cada história esperando que eu leve para um lugar sombrio, terá uma experiência peculiar. En: Quando escreve para crian-
ças, você tenta ser mais cuidadoso, pensa nesses alertas de risco? Ou acha que elas estão prontas para lidar com suas histórias?
NG: Sou muito mais cuidadoso com os adultos. As crianças são mais fortes e espertas do que publicado em 2013 sobre um se imagina. Quando adultos me homem e suas lembranças. En: Você faz uma introdução a contam que ficaram aterrorizados todas as histórias de ‘Alerta de Riscom Coraline, por exemplo, eu sinco’, justamente para avisar o leitor to muito. Mas as crianças me dizem sobre o que ele pode encontrar ali. Por quê? que o livro era engraçado. NG: Não sei se isso já chegou ao Brasil, mas, nos
EUA, tem-se falado muito na ideia de colocar esses alertas de risco em peças, livros e filmes que possam
En: As crianças estão lendo mais? NG: Sim. Harry Potter acendeu o pavio e a li-
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CONHECENDO OS AUTORES teratura infantojuvenil é uma das áreas de maior crescimento do mercado editorial. Com as crianças, o importante é que elas leiam, independentemente do quê. O gosto delas não é o mesmo do adulto. As crianças podem não querer a refeição principal e ficar no espaguete. En: Você escreveu que quando reúne contos para uma coletânea, percebe que eles tratam sempre do mesmo tema. Alguns autores dizem, ou ouvem dos críticos, que estão sempre escrevendo a mesma história. Que história é essa que você quer contar? NG: Quando vou adiante no tempo, como um
escritor, tudo o que eu quero fazer é contar histórias que nunca contei antes, fazer algo que nunca fiz, ir a lugares onde nunca fui. Quando olhamos para trás, percebemos que tudo faz parte do conjunto. Quando eu morrer, vão olhar para a minha obra e dizer: isso tudo é obviamente Neil Gaiman e parte de uma mesma coisa. Mas, neste momento, gosto da ideia de que o que quer que eu faça de novo é diferente do que já fiz.
sempre algo novo saindo. É uma demanda dos seus fãs ou vontade sua de escrever mais e mais? NG: Normalmente, é só esse desejo mesmo de ir
a um lugar totalmente novo, tanto que estou começando um novo romance. En: Planos de voltar ao Brasil? NG: Eu gostaria muito de voltar ao Brasil e levar
a minha mulher (a cantora Amanda Palmer). Ou então ser levado por ela. Fiquei chocado quando descobri que The Dresden Dolls nunca tocaram no Brasil. Não volto ao País desde 2007. Na última vez que me encontrei com Tom Stoppard, ele comentou sobre aquela longa fila na Flip. Naquele dia, todo mundo aproveitou a noite e eu só assinei livros. Acho que dois mil. Fiquei muito agradecido. Fonte: Estadão.
En: Você acaba de publicar uma coletânea de en-
saios, se prepara para lançar ‘Norse Mythology’. Há
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~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
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Foto: Maureen BisillIat
CONHECENDO OS AUTORES
O dia em que Clarice Lispector “defendeu um bandido”. E se fosse hoje? A escritora ficou abalada com a história do assaltante Mineirinho, metralhado pela polícia com 13 tiros, fato corriqueiro atualmente.
A
mais aclamada escritora brasileira, Clarice Lispector, cuja morte completou 40 anos em dezembro de 2017, considerava a crônica Mineirinho – Um Grama de Radium, escrita para a extinta revista Senhor, como um dos seus textos favoritos. “Entre seus diversos trabalhos, sempre existe um filho predileto. Qual aquele que você vê com maior carinho até hoje?”, perguntou o repórter Júlio Lerner
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a Clarice em entrevista à TV Cultura em 1977, pouco antes de sua morte. Respondeu ela:
“
Uma coisa que escrevi sobre um bandido, um criminoso, chamado Mineirinho, que morreu com 13 balas quando só
uma bastava, e que era devoto de São Jorge e tinha uma namorada. Aquilo me deu uma revolta enorme.
”
”Quando foi morto, aos 28 anos, no final de abril de 1962, Mineirinho levava no peito uma medalha ~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
Literatour
de São Jorge e no bolso uma oração a Santo Antônio. José Rosa de Miranda, vulgo Mineirinho, foi chamado de “cangaceiro do asfalto” na reportagem de Pinheiro Jr. do jornal Semanário que narrou sua morte, e que o apresenta como vítima da pobreza e da injustiça, típico filho de migrantes pobres dos cafundós das Minas Gerais que se perde na capital. “Mineirinho teve o fim das feras: morreu crivado de balas e teve o corpo jogado à beira de uma estrada. A sociedade não resolveu o crime. Apenas desapareceu mais um assassino!”, escreveu o jornalista. O “inimigo público número 1” começara a vida do crime assaltando pontos de jogo do bicho; depois passou às padarias e lojas. Matou policiais. Mas, ainda assim, era considerado um bandido “romântico”, querido no morro da Mangueira. Ao seu funeral compareceram mais de 2 mil pessoas. “Apesar de ser bandido, era um ser humano qualquer. Após ser chacinado, seu corpo, como se fosse de um animal, foi jogado dentro de um veículo e posteriormente atirado num matagal”, lamentava a reportagem de A Noite em 2 de maio de 1962. Na entrada da Mangueira, foi estendida uma enorme faixa preta em sinal de luto. “Com uma oração de Santo Antônio no bolso e um recorte sobre seu último tiroteio com a Polícia, o assaltante José Miranda Rosa, ‘Mineirinho’, foi encontrado morto no Sítio da Serra, na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, com três tiros nas costas, cinco no pes-
Esta é a capa da antiga revista Senhor na edição em que a mesma publicou o texto de Clarice.
certamente seria atacada nas redes sociais como “defensora de bandidos” pelos que acreditam que direitos humanos só se aplicam a alguns privilegiados. Fonte: Socialista Morena.
TODO DIA É DIA DE TORCER CONTRA O ZIKA.
coço, dois no peito, um no braço esquerdo, outro na axila esquerda e o último na perna esquerda, que estava fraturada, dado à queima-roupa, como prova a calça chamuscada”, publicou o Diário Carioca. Fosse agora, a mídia diria que morreu “em confronto” com a polícia. Todas estas circunstâncias provocaram na escritora algo que parece em extinção no Brasil do século XXI: um sentimento de empatia, de ser capaz de sentir a dor do outro. Hoje em dia, quando fuzilamentos sumários de suspeitos por policiais viraram fato corriqueiro, a escritora
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lancamentos ,
“O homem de giz”: um thriller que soa a Stephan King O livro de C.J Tudor foi lançado pela intrínseca em janeiro desse ano e traz uma trama para fãs de Strenger Things e Stephan King..
U
m thriller arrepiante que salta entre o passado e o presente, acompanhando o mesmo grupo de amigos à medida que este se vê assombrado por uma figura sinistra. Este podia muito bem ser o resumo do icónico It, de Stephen King. Mas não. Falamos de O Homem de Giz, o muito elogiado romance de estreia da inglesa C. J. Tudor.
Foto: Intrínseca
É a história de cinco adolescentes – quatro rapazes, uma rapariga – que, em 1986, se entretêm a trocar mensagens a giz pela cidade, cada um com a sua cor.
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Isto até ao dia em que a brincadeira os conduz a um cadáver. Uma descoberta que se revela fundamental nos percursos que cada um segue até ao reencontro, trinta anos depois. Repleto de twists inesperados, O Homem de Giz tem apanhado de surpresa muitos leitores, incluindo outros escritores. Fiona Barton, autora de A Viúva e O Silêncio, diz que “há muito tempo não tinha uma noite em branco devido a um livro”. Ali Land, autora de Menina Boa, Menina Má, descreve a narrativa como “tensa, habilidosa e plena de terror”.
E Michelle Richmond, autora de O Pacto, fala da história como uma “exploração afiada e aterrorizante dos laços e limitações das amizades de infância e dos segredos que se recusam a permanecer enterrados”. Mas foi a própria C. J. Tudor quem mais se surpreendeu com o sucesso do livro. História que surge tarde A primeira coisa que C. J. Tudor fez quando lhe compraram o livro foi substituir o congelador do velho frigorífico de família. “Rock and roll!”, zomba a autora, que viu naquele momento a sua vida mudar. Em entrevista à Estante, recorda como lhe surgiu a ideia da história vencedora: “Tinha 43 anos e mais de uma década de rejeições e projetos falhados para trás. Não sabia bem como prosseguir como a minha escrita. E então um amigo comprou uma caixa com paus de giz à minha filha, para o seu segundo aniversário. Passámos a tarde a desenhar bonecos na estrada. Mais tarde, ao abrir a porta, vi-me confrontada por estas estranhas figuras de giz. Na escuridão pareceram-me incrivelmente sinistros.”
~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
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Um sucesso inesperado Talvez motivado pela atual onda de revivalismo – basta pensar no êxito do remake de It ou da série Stranger Things –, O Homem de Giz foi muito cobiçado pelas editoras, o que teve o condão de permitir a C. J. Tudor escrever finalmente a tempo inteiro. “É uma mudança de vida significativa e um enorme privilégio. Além disso, posso participar em eventos literários, viajar para lugares maravilhosos e conhecer pessoas fantásticas.” A autora confessa, contudo, que nunca esperou que o seu livro fosse tão bem acolhido – “Não pensei que um editor quisesse o livro, quanto mais 38!” –, ao ponto de até já se falar numa adaptação ao cinema: “Têm havido conversas (e um primeiro rascunho), mas nada mais concreto… por
de, pensei mais na minha própria adolescência, nos anos 80, e nas coisas que eu e os meus amigos fazíamos. Mas, claro, o meu amor pelo King é visível nos elementos mais arrepiantes. E incluí deliberadamente um par de referências a obras do Stephen King que estou certa que os fãs vão apanhar.
enquanto!” Admite, no entanto, que acharia “fantástico” ver a sua história no grande ecrã. “Mas não sou gananciosa, estou satisfeita por ter um livro publicado.” “Comecemos pelo princípio. O problema é que nunca estivemos de acordo quanto ao princípio. Foi quando o Gav Gordo recebeu o balde com paus de giz como presente de anos? Foi quando começámos a desenhar bonecos de giz ou quando eles começaram a aparecer por sua iniciativa? Foi quando se deu o terrível acidente? Ou quando encontraram o primeiro corpo?”
Entrevistador: Além de Stephen King, que outros autores a influenciaram ao longo dos anos? C.J Tudor: Não sou esquisita
quando se trata de ler. Pego em tudo o que pareça interessante! Mas o meu coração tem estado sempre com as histórias mais
‘‘O homem de giz’’ foi o romance de estreia de C. J. Tudor, mas o seu amor pela escrita possui longa data.
- O homem de giz A seguir, algumas perguntas respondidas por C.J. Tudor a respeito de O homem de giz:
Foto: Bill Waters
Na altura, ganhava a vida a gerir um negócio de passear cães. O tempo era tão escasso como o dinheiro, pelo que aproveitava todos os momentos que podia para escrever. “Sempre escrevi, mas levei muito tempo a assentar e tentar escrever um livro inteiro. A vida metia-se sempre pelo caminho”, lembra. “De certo modo, ainda bem que me levou muito tempo. Tive uma vida bastante preenchida, muitas experiências, boas e más. Tudo isso alimentou a minha escrita. E agora estou num bom lugar. Posso apreciar toda a experiência de publicação sem alguma da neurose que teria quando tinha 20 ou 30 anos.”
Entrevistador: Stephen King
é uma das suas principais influências. Algum dos livros dele a inspirou na criação de O Homem de Giz? C.J Tudor: Muitas pessoas têm comparado o livro a It e “O Corpo” [novela que inspirou o filme Stand By Me, publicada na coleção Estações Diferentes], o que é extremamente lisonjeador, mas não pensei de forma consciente em nenhum deles quando comecei a escrever o meu livro. Na verda-
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lancamentos , sombrias e arrepiantes. Além de Stephen King, adoro Michael Marshall (a trilogia The Straw Men), Richard K. Morgan (Carbono Alterado), Stieg Larsson (Millennium) e também sou uma grande fã de John Connolly e Harlan Coben. Entrevistador: Está a traba-
lhar num novo livro?
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C.J Tudor: Sim, é mais um thriller sombrio e arrepiante, situado numa antiga vila de mineiros, no norte de Inglaterra. Quando Joe Thorne tem 15 anos, a sua irmã mais nova, Annie, desaparece. E depois volta. Decorridos 25 anos, na mesma vila, um rapaz de 11 anos é espancado até à morte pela própria mãe. E Joe regressa, para trabalhar como professor, mas também para encontrar
respostas. Só que regressar ao lugar onde cresceu significa enfrentar as pessoas com quem cresceu, as coisas que fizeram e o que encontraram. Fonte: Revista Estante.
~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
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lancamentos ,
Livro “A Mulher na janela”, thriller de A. J. Finn sobre solidão e luto, chega ao Brasil Dan Mallory, mais conhecido pelo pseudônimo A. J. Finn, lança o bestseller ‘A Mulher na Janela’ no país.
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quarta semana, ele já se sentia outra pessoa e ainda restavam alguns dias até voltar ao trabalho.
televisão que ele teve a ideia da história que, pouco mais de um ano depois, viraria sua vida de ca-
Fez o que mais gosta de fazer: releu os livros policiais que o acompanharam em seus 38 anos e reviu filmes antigos. E foi numa dessas noites na frente da
O autor é ex-crítico literário e ‘‘A mulher na janela’’ foi sua estreia na literatura. Já foi publicado em 36 países.
Foto: William Morrow/Harper Collins
an Mallory lutou por 15 anos contra uma depressão até que um novo médico, suspeitando do diagnóstico anterior, propôs outro tratamento. Editor de livros na William Morrow, ele tirou uma licença de seis semanas para experimentar a medicação. Ao final da
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~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
Literatour
Mallory está sentado em seu apartamento, em Manhattan, assistindo, pela enésima vez, a Janela Indiscreta. James Stewart está na tela, olhando para o pátio. De canto de olho, o editor vê uma luz. Olha para a janela e ali está sua vizinha acendendo a lâmpada da sala da casa dela. Por alguns minutos, olha fixamente para a cena. Tudo é muito nítido. As janelas costumam ficar abertas na cidade. Ela está vendo TV. Atrás dele, de repente, uma voz diz a James Stewart algo como ‘Não espione seu vizinho porque alguma coisa muito ruim pode acontecer’. Quando ele vira de novo, a mulher o está encarando. E, assim, o editor que nunca tinha pensado em escrever um livro começou a trabalhar em A Mulher na Janela. A mulher na janela é Anna Fox, uma psicóloga de crianças que já foi muito respeitada, mas que sofreu um trauma e não pode mais deixar a sua casa. Passa os dias à base de remédios e vinho e acompanhando o desenrolar da vida de seus vizinhos do Harlem, em Nova York. Isso vira um problema quando ela começa a acreditar que testemunhou um crime. Como ela não consegue sair para investigar ou convencer alguém do que viu, incluindo a polícia, ela passa a duvidar se viu mesmo alguma
coisa. E isso é tudo o que podemos contar sobre o enredo do que Mallory chama de “a Janela Indiscreta de Alfred Hitchcock para o século 21”.
Escreve o segundo título e cuida da divulgação do primeiro, que, neste momento, começa a ser publicado mundo afora. A obra acaba de chegar às livrarias brasileiras como uma das apostas da Arqueiro para o ano – e a editora sugeriu o nome de Dan Mallory, ou A. J. Finn, à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). A organização não confirma sua participação. Nesta entrevista exclusiva ao Caderno 2, por telefone, o autor fala sobre seu livro.
O editor terminou o livro, assinou como A. J. Finn, submeteu o original a uma agente literária e, quando se deram conta, os direitos já tinham sido vendidos para quase 40 países – isso, muito antes de ele ter sido lançado. Um recorde para o primeiro livro de um autor desconhecido. Nas livrarias americanas desde o começo de janeiro e nas britânicas desde o fim daquele mês, A Mulher no Trem já soma cerca de um milhão de exemplares vendidos em língua inglesa – 750 mil só nos EUA. Há 12 anos, o livro de um autor estreante não ficava no topo da lista do New York Times. A Mulher na Janela ficou. Tem mais: o leilão pelo direito de publicar o livro na América do Norte terminou em US$ 2 milhões e a Fox pagou US$ 1 milhão para poder fazer o filme. Com o repentino sucesso e a conta bancária como ele jamais viu, 10 dias antes de seu livro sair Mallory deixou a William Morrow, onde era responsável pela edição da obra de Agatha Christie, uma de suas principais referências literárias, e de outros autores de diversos gêneros, sobretudo o policial.
Mallory reconhece que ter sido editor de livros por 10 anos
Dan Mallory foi inspirado por mulher desconhecida para escrever o best-seller “A mulher na janela”.
Foto: Capa A mulher na janela
beça para baixo. No melhor dos sentidos.
Leva, agora, a vida de um escritor muito mpreocupado com a continuação do sucesso.
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lancamentos , – em Londres e em Nova York – o ajudou na tarefa de escrever seu thriller, que ele descreve como uma história de solidão e luto. Capítulos curtos, história que prende a atenção e flui, um título que remete a outros best-sellers. Mas o que fez diferença, mesmo, ele diz, foi ter passado a infância e a juventude com a cara atrás de um livro. “A leitura é a melhor forma de aprendizagem e o que me ajudou a escrever essa história foi ter vivido como um leitor”, conta o autor. Sua vontade de escrever, no entanto, só foi despertada depois de ter lido Garota Exemplar, de Gillian Flynn. “Eu não era desses editores que tinham ambição com relação aos seus próprios escritos. E embora eu tenha crescido lendo Agatha Christie e Sherlock Holmes, tenha estudado Patricia Highsmith em Oxford e editado grandes autores, eu não tinha uma história para contar”, diz. Quando Garota Exemplar saiu, em 2012, e se tornou um enorme sucesso ao redor do mundo, ele pensou: “Esse é o tipo de livro que eu gostaria de escrever, mas não tenho uma história e não vou forçar”. Passaram-se três anos e meio, saiu A Garota no Trem, de Paula Hawkins, que também foi um grande best-seller, e lamentou de novo por não ter uma história. Quase um ano depois, a vizinha acende a luz e uma personagem “gruda no cérebro” do editor: ela estava sofrendo por um luto e trauma. De repente, ele tinha algo a dizer.
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“A experiência da escrita foi muito catártica e foi um privilégio poder explorar, de forma segura, o que eu estava vivendo”
Para o autor, escrever ficção é ato de empatia. E ler também. “Quando lemos, experimentamos a vida de outras pessoas e acontece o mesmo quando escrevemos. Pude mergulhar na mente dessa mulher, chorar e afundar ao lado dela, entrar em pânico com ela. Portanto, escrever não foi divertido ou fácil, mas revigorante.”
Anna Fox, sua protagonista, tem 38 anos. “Estou cansado de ler thrillers onde o personagem central, uma mulher, é muito passivo e reativo. Elas praticamente dependem do homem para seu bem-estar. As mulheres têm muitas outras coisas interessantes acontecendo em sua mente que não têm a ver com homens e bebês. Eu quis escrever um livro em que não havia interesse amoroso pela personagem feminina, no qual ela se preocupa com sua família, sim, mas tem outras coisas. Eu quis escrever um livro sobre uma mulher inteligente, sobre uma mulher que se salva sozinha porque mulheres são capazes de fazer isso”, justifica.
A Garota no Trem. Do ponto de vista do estilo, A Mulher na Janela tem mais relação com A Garota no Trem, considera. Dan Mallory não conhece a mulher que inspirou sua história e nunca lhe ocorreu contar tudo isso para ela. “Estou olhando para a janela dela neste momento. Ela está na porta. Está nevando. Eu poderia abrir a janela e falar, ‘oi, obrigado’. Seria assustador ou ela ia gostar?”, brinca. Se ele alguma vez pensou que sua vida daria uma guinada dessas? “Nunca, nunca”, ele grita animado. “Meu único objetivo era conseguir escrever a palavra ‘fim’.” E tudo está apenas começando. A Mulher na Janela tem potencial para ser um dos grandes best-sellers do ano. Deve voltar às listas no ano que vem com o filme nos cinemas. Joe Wright acaba de ser escolhido como diretor. Vencedor do Pulitzer pela peça Álbum de Família, depois transformada em filme, Tracy Letts é o roteirista. E Scott Rudin, de Onde os Fracos Não Têm Vez e A Rede Social, e Eli Bush, de Lady Bird, vão produzir o filme. Fonte: Estadão.
Essa é uma das diferenças entre seu livro, Garota Exemplar e ~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
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Indicação: HQ “Maus - A história de um sobrevivente” A HQ “Maus - A história de um sobrevivente” foi a primeira história em quadrinhos a ganhar o conceituado prêmio Pulitzer.
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ocê escreveria a biografia de seu pai se tivesse a certeza de que ele era uma pessoa extremamente mesquinha, mal humorada e possivelmente culpado pelo suicídio de sua mãe? Pois o norte-americano Art Spiegelman fez isso em Maus. As histórias foram publicadas originalmente na revista underground Raw entre 1980 e 1991. Sócio-fundador e editor da publicação, Art Spiegelman compilou um primeiro volume em 1986, com o título Maus - A história de um sobrevivente, cujo subtítulo era Meu pai sangra história. Cinco anos depois, Maus II - E aqui meus problemas começaram chegava às ruas. Em 1992 ele ganhou o prêmio Pulitzer, um dos mais conceituados do meio jornalístico e literário, e nunca antes dado a uma HQ. Mas o que torna esta Graphic Novel tão especial não são os prêmios, mas sim os motivos que a fizeram tão laureada. Art usou esta mídia discriminada e geralmente associada a obras infantis para falar de uma das maiores atrocidades da história recente da humanidade: o Holocausto. Os pais de Art, os poloneses judeus Vladek e Anja, sobreviveram a Auschwitz
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e migraram para os Estados Unidos, onde ganharam uma segunda chance e um novo filho, o próprio Art. O primeiro rebento do casal, Richieu, não teve a mesma sorte e, junto com tantos outros parentes e amigos dos Spiegelman, morreu na sua Polônia natal. Art aprendeu a duras penas que sobreviver a Auschwitz não é necessariamente continuar vivo. Além de agüentar todas as manias que seu pai adquiriu no período em que foi prisioneiro dos nazistas, ele viu sua mãe se deprimindo até chegar ao ponto em que não aguentava mais e acabar se suicidando. Amor e guerra Art e seu pai não eram muito próximos. Mas assim como outros filhos de judeus que passaram sua vida ouvindo as mais horrendas histórias sobre os campos de concentração e em determinado momento passaram a buscar suas raízes, ele resolveu transformar as memórias de seu pai em quadrinhos. A escolha por esta mídia era a mais lógica para ele, que sempre gostou e leu muitas HQs. Mas o resultado final é uma aula de como usar os quadrinhos para contar uma história. Art mostra as conversas (e discussões) que ele teve
com seu pai como se estivessem acontecendo naquele momento, a história de seus pais em flashback, fotos, antropomorfismo, história em quadrinhos dentro da história em quadrinhos, detalhamentos de esquemas desenhados por seu pai de como eram os esconderijos, mapas, etc. O desenho de Spiegelman, bem sujo, é uma conseqüência do estilo da Raw, mas serve também para mostrar que aqueles ratos não são bonitinhos como os desenhados por Walt Disney. O antropomorfismo que transforma judeus em ratos, nazistas em gatos, norte-americanos em cães e poloneses em porcos reflete a estrutura da vida naqueles dias. Sem nem saber o porquê, os gatos correm atrás e matam os roedores. Na escolha dos orelhudos para representar os judeus há também uma referência ao termo com que os nazistas se referiam à raça inferior: vermes da sociedade; e ainda uma resposta à afirmação que abre o primeiro capítulo: Sem dúvida os judeus são uma raça, mas não são humanos, de Adolf Hitler. Manual de sobrevivência Mostrando a forma mandona e teimosa de seu pai, Art começa a história do jeito que Vladek lhe ~ Sao Paulo, 07 de junho de 2018
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conta, antes mesmo da época em que conhecia Anja ou sua segunda esposa, Mala. Naqueles dias ele era muito bonito e tinha várias namoradas, mas nada muito sério. Quando conheceu aquela pequena menina-rica de Sosnowiec, o cupido o acertou em cheio. Vladek lutou até mesmo contra os impulsos de Anja, que por um tempo acreditou que ele só estava interessado na fortuna de sua família. Quando a vida dos dois começava a se acertar, os alemães chegaram à Polônia. Deste momento até o fim do livro, os dois passaram por separações, privações e perdas constantes, mas sempre conseguiram arranjar um jeito de se ver ou se comunicar. Assim como Auschwitz mudou de formas diferentes as vidas das pessoas que passaram por lá, a maneira como cada uma delas conseguiu sobreviver também é
bastante variada, mera obra do acaso. Como o dinheiro que cada um tinha fora dali já não existia mais, era bastante comum haver traições até mesmo de judeus contra judeus. Vladek caiu em algumas delas e conseguiu se salvar com a ajuda de pessoas que ele conhecia, do seu trabalho árduo, dos seus contrabandos e escambos, da sua inteligência, e, claro, da sua sorte. Pela simples falta de qualquer um destes itens seis milhões de judeus morreram na Segunda Guerra Mundial. Enquanto isso, do outro lado do mundo... Por mostrar de forma tão gráfica o sofrimento diário, Maus e o japonês Gen - Pés descalços (de Keiji Nakazawa) são provas de que história em quadrinhos não é só coisa de criança. As duas obras ambientadas na Segunda Guerra mostram de formas diferentes e diferenciadas que é possível tratar temas sérios como o Holocausto e o bombardeamento em Hiroshima nas HQs. Se a Conrad Editora fez um ótimo trabalho na publicação da obra japonesa aqui no Brasil, a Cia. das Letras confirma com este livro que quer o seu lugar entre as principais editoras de quadrinhos do país. O título não era inédito
Foto: Phil Penman
Foto: Capa Maus
‘‘Maus’’ significa ‘‘rato’’ em alemão, e nesta HQ os ratos são os judeus e os gatos os alemães nazistas.
Filho de sobreviventes do campo de concentração, os quadrinhos do autor nascem de seus medos.
por aqui - havia sido lançado nas versões separadas pela Ed. Brasiliense em 1986 (Maus I) e 1995 (Maus II) -, mas estava esgotado há tempos e merecia uma nova edição à altura da sua importância. Finalmente ganhou. Além de um papel de alta qualidade e o preço bastante acessível (R$ 39 por 300 páginas de leitura ininterrupta), a tradução manteve o sotaque alemão do protagonista e traz a novos leitores a dificuldade de Art Spiegelman de conviver com seu pai. Se estivesse vivo, até o resmungão (e às vezes racista) Vladek, ficaria orgulhoso. Fonte:: Omelete.
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As histórias em quadrinhos vivem bom momento no Brasil, diz docente Inclusão de histórias em quadrinhos no Prêmio Jabuti valoriza produção nacional, afirma professor da USP.
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No início do mês, um importante passo para esse reconhecimento foi dado. A Câmara Brasileira do Livro (CBL), que organiza o Prêmio Jabuti, anunciou que incluirá, pela primeira vez, uma categoria para histórias em quadrinhos (HQs) em sua próxima edição. A decisão foi tomada após a entrega de um abaixo-assinado para a CBL, apoiado por quadrinistas
prestigiados como Laerte Coutinho, Marcello Quintanilha e os irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá. Ao todo, a petição acumulou mais de duas mil assinaturas. Lecionando na ECA da USP, Waldomiro Vergueiro é um mestre e doutor em Ciências da Comunicação.
Foto: Cecília Bastos
omo diz o professor Waldomiro Vergueiro, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o homem usa a imagem para se comunicar desde os tempos das cavernas, mas, mesmo assim, demoraram décadas para as histórias em quadrinhos serem reconhecidas como um meio de comunicação louvável.
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Foto: HQ The yellow kid
Chinen, e o professor universitário também explica:
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‘‘The yellow kid’’, a primeira história em quadrinhos para as massas. Um prêmio levou o nome da HQ.
Preconceito literário Para Vergueiro, que é o coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA, o preconceito com o formato das HQs tem origens históricas. A partir da Idade Média, a escrita começou a ser valorizada e ensinada para as classes mais altas da sociedade, enquanto as imagens se tornaram um meio para se comunicar com os grupos menos favorecidos, que não sabiam ler. Com o tempo, texto e imagem foram se aproximando até que, em 1827, foi lançada a Histoire de M. Vieux Bois, do suíço Rodolphe Töpffer, reconhecida por muitos como a primeira história em quadrinhos do mundo. Décadas mais tarde, a combinação imagem-texto já tinha atravessado o Atlântico. No Brasil, o
italiano Angelo Agostini foi o pioneiro, com suas publicações em revistas que se iniciaram no dia 31 de janeiro de 1869, data em que hoje é celebrado o Dia Nacional dos Quadrinhos. Depois de Töpffer, outro grande passo na história das HQs foi a publicação de The Yellow Kid, por Richard Felton Outcault, uma tirinha dominical publicada em 1896 e disputada pelos maiores nomes do jornalismo norte-americano da época, William Randolph Hearst e Joseph Pulitzer. “A partir daí, quase todos os jornais passaram a ter histórias em quadrinhos nas páginas dominicais”, conta Nobu Chinen, professor de Publicidade e Propaganda da Universidade São Judas, membro do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA e também do Troféu HQMix, principal premiação nacional de quadrinhos. “Depois de 1907, surgiram as tiras em quadrinhos diárias, formato que ajuda a consagrar o quadrinho mundialmente”, fala
Na década de 30, surgem as revistas em quadrinhos como nós conhecemos hoje, os gibis e comic books. É nessa época que, por questões mercadológicas, os quadrinhos começaram a se voltar para o público infantil. Foi assim também que eles passaram a ser considerados como leitura de menor qualidade, fácil, para gente preguiçosa
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Com a publicação do livro The Seduction of the Inocent, em 1954, pelo psiquiatra Fredric Wertham, a reputação dos quadrinhos piorou. A pesquisa do médico sugeria que a violência entre os jovens havia aumentado por causa da leitura de HQs, que foi observada entre os jovens delinquentes. A publicação foi desmentida com o tempo, pois não eram apenas os jovens delinquentes que liam histórias em quadrinhos, mas sim a grande maioria dos jovens, independente de seus comportamentos. No entanto, antes de ser desmentido, o livro teve um papel importante na censura das publicações, com a criação do Comics Code Authority, código que define até hoje parâmetros para
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historias em quadrinhos adequação de quadrinhos. Com o passar dos anos, seu uso foi abandonado por grandes editoras, como Marvel e DC, que criaram padrões próprios.
matopeias e os balões de fala — que não são sonoros por natureza, mas, ainda assim, conseguem expressar sons.
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Ao contrário do que se pregava antigamente, a leitura de histórias em quadrinhos não é uma leitura para preguiçosos. Pelo contrário, ela exige uma participação do leitor com a história que está sendo mostrada
Mas HQ é literatura? Vergueiro é categórico: “História em quadrinhos é história em quadrinhos. E literatura é literatura”.
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Além de atuar na pesquisa, a ECA possui um grande acervo de quadrinhos nacionais e internacionais.
No jornalismo, por exemplo, Joe Sacco consagrou o “jornalismo em quadrinhos” com sua cobertura alternativa de conflitos armados. Em 1992, a graphic novel Maus, de Art Spiegelman, ganhou o prêmio Pulitzer, principal premiação do jornalismo norte-americano, ao abordar o Holocausto. No caso de Marcelo D’Salete, quadrinista e professor da USP, sua obra se volta para questões históricas, da juventude e de discriminação.
Foto: Cecília Bastos
Histórias em quadrinhos são uma manifestação artística com dois códigos: a imagem e o texto. A junção desses códigos com os recursos característicos das HQs (balões de fala, onomatopeias etc.) faz com que a forma de narrar dos quadrinhos seja única
Por ter códigos e recursos próprios — acrescenta o professor —, as histórias em quadrinhos podem ser usadas para quaisquer narrativas ou finalidades, seja ajudando na alfabetização de milhões de crianças ao redor do mundo, seja abordando temas densos de forma mais humana.
As HQs mantém relação com a literatura através do texto escrito, mas elas também têm uma forte conexão com o cinema, o teatro e a ilustração. De acordo com Chinen, as principais características que diferenciam a HQ da literatura são a sequencialidade dos quadros — que exige que o leitor imagine o que acontece no intervalo entre um quadrinho e outro — e os símbolos gráficos, como as ono-
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Ilustração: divulgação
“Cumbe”, uma história em quadrinhos do autor Marcelo D’Salete, narra histórias da luta e forte resistência no período colonial.
gal, Argentina, França e Itália. Aponta Chinen:
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Os quadrinhos dão conta de qualquer narrativa, desde que o autor tenha competência para isso. Um autor deve saber utilizar os recursos dessa ferramenta
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A história em quadrinhos “Dois irmãos” ganhou o “Oscar dos quadrinhos’’ como Melhor Adaptação.
Por ter códigos e recursos próprios — acrescenta o professor —, as histórias em quadrinhos podem ser usadas para quaisquer
”
Foto: Divulgação
Quadrinhos são um recurso a mais na educação. É um meio que tem proximidade com os jovens de hoje”, observa D’Salete. Como professor, ele considera que a HQ “pode propiciar momentos relevantes para os alunos desenvolverem a leitura visual a partir de elementos do seu contexto atual ou do passado
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D’Salete tem três trabalhos solos — Noite Luz (Via Lettera, 2008), Cumbe (Veneta, 2014) e Encruzilhada (Veneta, 2016) —, publicados no Brasil, Portu-
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historias em quadrinhos narrativas ou finalidades, seja ajudando na alfabetização de milhões de crianças ao redor do mundo, seja abordando temas densos de forma mais humana. No jornalismo, por exemplo, Joe Sacco consagrou o “jornalismo em quadrinhos” com sua cobertura alternativa de conflitos armados. Em 1992, a graphic novel Maus, de Art Spiegelman, ganhou o prêmio Pulitzer, principal premiação do jornalismo norte-americano, ao abordar o Holocausto.
Nova por Vampiro Americano (Panini Comics, 2010).
“A valorização de histórias em quadrinhos por um prêmio de prestígio como o Jabuti — que não premia apenas obras da literatura, mas a indústria editorial como um todo — é muito importante. Isso sinaliza para a sociedade que nós temos um produto editorial consumido, que tem as suas grandes obras e que merece destaque”
“Nós vivemos um momento muito bom na produção de quadrinhos no Brasil”, avalia Vergueiro, e prossegue:
Um exemplo da alta qualidade dos quadrinhos do Brasil é a constante presença de quadrinistas brasileiros entre os vencedores do Prêmio Eisner, o “Oscar das histórias em quadrinhos”. No ano passado, os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, formado em Artes Plásticas pela ECA, ganharam o Eisner de Melhor Adaptação por Dois Irmãos, obra do escritor amazonense Milton Hatoum. Antes disso, ganharam o prêmio de melhor minissérie por Daytripper (Panini Comics, 2011), em 2011. Na mesma edição, o também brasileiro Rafael Albuquerque ganhou o Eisner de Melhor Série
O Cenário do quadrinho nacional
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Tenho a impressão de que nunca tivemos tantos autores brasileiros ativos, produzindo histórias em quadrinhos. Antes, você tinha o crivo da editora. Hoje, você tem a produção independente, para a internet, direcionada para prêmios governamentais, ou até mesmo a produção de fanzines.
”
“Cerulean” é uma história em quadrinhos de uma brasileira que publicou de forma independente.
Foto: Capa Cerulean
Apesar da distribuição em bancas de jornal ser monopolizada, autores independentes estão conseguindo publicar suas obras com a ajuda de programas de incentivo à cultura ou por financiamento coletivo, o crowdfunding. “Essa complicação (do monopólio) faz com que os artistas se dediquem a tiragens menores, para um público mais específico, interessado nesse tipo de publicação”, diz Chinen. Geralmente, as HQs e graphic novels são comercializadas na internet, em livrarias ou em eventos voltados para a comunidade nerd.
Vergueiro aponta a importância do prêmio Jabuti:
Como mencionado no abaixo-assinado, nove dos dez maiores grupos editoriais brasileiros já publicaram alguma HQ nos últimos dez anos. Além disso, quatro deles criaram selos específicos para atender a esta demanda.
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Chinen comenta os diferenciais da produção independente:
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Tem muito material interessante, que muitas vezes aborda vozes de minorias, coisa que no sistema industrial é quase impossível de entrar
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As HQs nas universidades Além da produção para o mercado, as pesquisas acadêmicas sobre histórias em quadrinhos
também têm crescido nos últimos anos. A cada ano, o Observatório de HQs da ECA recebe cada vez mais inscrições para seus eventos. Desta vez, foram aprovados 260 resumos para a 4ª edição das Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, que acontecerá em agosto. As Jornadas Internacionais são realizadas em anos ímpares e, em anos pares, são organizadas as Jornadas Temáticas. Além dos eventos, o Observatório também oferece disciplinas para a graduação e pós-graduação. Há 18 anos, Waldomiro Vergueiro ministra a disciplina Editoração em Histórias em Quadrinhos, que
é uma optativa livre que já chegou a ter 140 matriculados. A matéria foi criada em 1972 pela professora Sonia Luyten, pioneira nos estudos de HQ. Outros núcleos de pesquisa podem ser encontrados em todo o Brasil, como na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e na Associação de Pesquisadores da Arte Sequencial (Aspas), sediada em Leopoldina, Minas Gerais. Fonte: Jornal USP.
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