UNIVERSIDADE FEDERAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO – UNIVASF CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS
ANTONIO CARLOS COÊLHO DE ASSIS
EUVALDO MACÊDO FILHO: Um olhar para além da fotografia
Juazeiro/BA 2014
ANTONIO CARLOS COÊLHO DE ASSIS
EUVALDO MACÊDO FILHO: Um olhar para além da fotografia
Trabalho de Conclusão de Curso a ser submetido à Universidade Federal do Vale do São Francisco, como parte dos requisitos para a conclusão da Graduação em Artes Visuais. Orientador: Profº. Me. Luiz Maurício Barreto Alfaya
Juazeiro/BA 2014
A848e
Assis, Antônio C. C. de Euvaldo Macêdo Filho: um olhar para além da fotografia / Antônio Carlos Coêlho de Assis. -- Juazeiro-BA, 2014 vii. 68f.: il ; 29 cm. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Artes Visuais) Universidade Federal do Vale do São Francisco, Campus Juazeiro BA, 2014. Orientador: Profº. Me. Luiz Maurício Barreto Alfaya. Banca examinadora: Elson de Assis Rabelo, Ana Lílian dos Reis. Inclui referências. 1. Biografia - Euvaldo Macêdo Filho. 2. Fotografia. I. Título. II. Alfaya, Luiz Mauricio Barreto. III. Universidade Federal do Vale do São Francisco. CDD 925.39752
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Integrado de Biblioteca SIBI/UNIVASF
UNIVERSIDADE FEDERAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO – UNIVASF CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS
FOLHA DE APROVAÇÃO
ANTONIO CARLOS COÊLHO DE ASSIS
EUVALDO MACÊDO FILHO: Um olhar para além da fotografia
Trabalho de Conclusão de Curso a ser submetido à Universidade Federal do Vale do São Francisco, como parte dos requisitos para a conclusão da Graduação em Artes Visuais.
Aprovado em ________/________/ 2003
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________________ Profº Orientador. Me. Luiz Maurício Barreto Alfaya, UNIVASF
_____________________________________________________________ Profº Me. Elson de Assis Rabelo, UNIVASF
_____________________________________________________________ Profa Ms. Ana Lílian dos Reis, UNEB
DEDICO
A meu filho André e a minha filha Cecília.
AGRADECIMENTOS
O Caminho percorrido até aqui, se fez nos contatos e parcerias com muitas pessoas, e a feição do presente trabalho de pesquisa, é um tanto bastante significativo da empatia e generosidade com que se dispuseram a construí-lo comigo. Agradeço imensamente a todos, e especialmente a alguns que, com desvelo, eficiência e muita paciência, contribuíram para materializar esta monografia. Maíta Assy, Bete Moreira, Cecílio Bastos, Odomaria Bandeira, André Assy, Cecília Assy, Josemar Pinzoh, Ernani Ribeiro, Elson Rabelo, Tatau e Virgínia, Expedito Almeida, Luíza Magali, Maurício Dias, Jorge Dantas, Carlos Alberto Vasconcelos, Hugo Macêdo, Luis Severino, Janaiára Costa, Sereno Assis, Caroline Bacurau, Cleonice Assis, Mardyórie Martins, André Brandão, compuseram a teia e os muitos elos do processo criativo e seu produto, o texto. Agradeço o apoio e carinho da minha família em todos os momentos, os bons e outros nem tanto assim, mas que foram apropriados para nos unir ainda mais. Aos colegas do curso de Artes Visuais, que aos poucos ficamos amigos, agradeço justamente por isso. Ao meu orientador agradeço pela confiança e sangue frio demonstrado nos períodos mais críticos em que as dúvidas avolumavam-se e o tempo corria. A todos os professores, agradeço pela oportunidade do debate, pelos nexos estabelecidos e as conexões ampliadas. Aos funcionários da IES, agradeço pelo respeito, atenção e simpatia, que facilitaram o percurso ao longo dos anos, e o desenrolar desse processo.
RESUMO
O presente trabalho busca evidenciar a atuação do poeta e fotógrafo Euvaldo Macêdo Filho, junto a dois coletivos artísticos em Juazeiro, Bahia, o Grupo Êxodus de Artes e o Círculo de Convivência Cultural, entre meados da década de 1970 e início dos anos de 1980, e as influências mútuas aí percebidas. Para a coleta de dados foi utilizada a captação oral através de relatos, das trocas e experiências, o levantamento e o aporte de documentos relativos ao período e componentes enfocados. O alinhamento das informações, a comparação entre elas e a análise das obras dos artistas, permitiu uma estruturação do percurso criativo, lastreado na teoria das redes de criação de Salles (2008) e a teoria da criação e seus processos de Ostrower(2004). Por meio da pesquisa foi possível perceber nas aproximações e interações uma conectividade crescente e enriquecedora tanto para a sua obra, quanto para o desenvolvimento dos coletivos e a obra de cada um que os integrou. As relações criativas possibilitaram ainda, na sua multiplicidade, outros desdobramentos dos processos de criação, para além do período interativo enfocado.
Palavras-chave: Euvaldo Macêdo Filho – Grupo Êxodus de Artes – Círculo de Convivência Cultural – redes criativas
ABSTRACT
This paper looks for evince the performance of the poet and photographer EuvaldoMacêdoFilho, united to two artistic collectives at Juazeiro, Bahia, the GrupoÊxodus de Artesand the Círculo de Convivência Cultural, between the mid1970s and the beginning of 1980s, and the mutual influences perceived there. To the data collect was used oral uptake through reports of the exchanges and experiences,the research and data gathering about the period and focused components. The data alignment, the comparison between them and the analysis of the artist’s works, allowed a structuring of the creative trajectory, based in the creation networks theoryof Salles (2008) and the creation and processes theory of Ostrower (2004). By searching, there was possible to realize one growing and enriching connectivity, through the approximations and interactionsboth to his work and development of the collectives and the work of each member. The creative relationships even allowed, in its multiplicity, other implications of the creation processes, beyond the focused interactive period.
Keywords: Euvaldo Macêdo Filho – Grupo Êxodus de Artes – Círculo de Convivência Cultural – creative networks
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................
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1. EUVALDO MACEDO FILHO E JUAZEIRO: A TRAMA ............................
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1.1 Quem é Euvaldo? Um olhar por ele mesmo e um currículo com alguma subjetividade..............................................................................
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1.2 Juazeiro Bahia: História e inquietações ..........................................
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1.3 O grupo Êxodus: um olhar marcante para uma passagem .............
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1.4 Juazeirenses em círculo: a poesia em discussão ...........................
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2. O FOCO EM APROXIMAÇÕES ARTÍSTICAS ......................................
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2.1 Amigos, experiências e realizações em comum .............................
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2.2 Círculo de Convivência Cultural – Outras ligações .........................
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3. O FOTÓGRAFO E UM LIVRO............................................................
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3.1 Um entendimento necessário em prosa, em verso, em olhares ......
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3.2 A descoberta de um estúdio fotográfico dentro de casa.................
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3.3 “Tristes Margens” a primeira exposição .........................................
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3.4 Ampliando a rede de conexões ........................................................
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3.5 A opção pela fotografia .....................................................................
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3.6 Outros espaços de trocas e envolvimento – João Gilberto e o canto do grilo ....................................................................................................
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3.7 Conexões para um livro ....................................................................
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................
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NOTAS..........................................................................................................
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REFERÊNCIAS...........................................................................................
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ANEXOS ...................................................................................................
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APÊNDICE ................................................................................................
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INTRODUÇÃO
A elaboração de uma história que situe o Homem e o transcorrer do seu processo evolutivo até aqui passa, não só por uma série de constatações, como também por suposições. Nesse processo, não se pode deixar de colocar a criatura humana e, consequentemente, os diversos agrupamentos sociais detectados, como carentes e dependentes de algum tipo de comunicação, no sentido de sobreviver, manter-se e perdurar. Há uma lógica de entendimento e o estabelecimento de uma linguagem para a convivência dentro de cada grupo, ou para contato com outros. Além disso, a qualidade de cada sítio, os acontecidos nele ou no entorno, e ainda, os caminhos percorridos entre eles eram registrados a cada parada ou temporada nas paredes rochosas das cavernas em óxido de ferro. Uma escrita tida como inaugural e traços vagos, evidenciadores, em parte, da epopeia humana. Os sinais, os signos, as imagens, desde os primordiais e ancestrais momentos, encontram-se presentes na estrutura e imaginário de cada um como se componente genético fosse, embora não se ignore tratar-se de uma construção cultural. É sabido que qualquer criança, em qualquer lugar do mundo, apesar de suas singularidades, entende e exprime-se através de imagens e, através delas, faz associações, para só depois acrescentar conceitos e abstrações. Erigir altares e entronizar seres como divinos desde tempos imemoriais, também constitui uma prática recorrente e dependente de uma condição imagética e comunicacional. Essa produção é apreendida como um paulatino desenvolvimento da atividade artística sedimentando uma história da Arte crível, aceita como una, embora se percebam, em um exame mais acurado, uma fragmentação e lacunas consideráveis. Todas as sociedades do planeta desenvolveram-se, registraram-se e comunicaram-se com o uso de imagens, recebendo e trocando influências. O percurso do homem reveste-se de uma característica marcante, a criatividade, que, na definição de Ostrower (2004), é a essencialidade do humano no homem. Dentro do mesmo raciocínio, “ao exercer o seu potencial criador, trabalhando, criando em todos os âmbitos do seu fazer, o homem configura a sua vida e lhe dá um sentido” (OSTROWER, 2004, p. 166).
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A criação, a imagem e a sua utilização, que se amplia e se estende desde esse início até a contemporaneidade, possibilitam refletir acerca do papel do artista, um especialista da criação, atuando em seu meio, influindo e sendo influenciado. Nesse sentido, “observamos as macrorrelações do artista com a cultura, e aos poucos, nos aproximaremos do sujeito em seu espaço de transformações” (SALLES, 2008, p. 38). O ambiente, suas características, e a matéria sobre a qual se debruçará o artista falarão do seu interesse, do seu olhar e da sensibilidade em relação ao seu entorno. Assim, essa pesquisa tem por objetivo evidenciar a influência do artista, poeta e fotógrafo Euvaldo Macêdo Filho, em coletivos artísticos de Juazeiro, Bahia, e destes na sua obra. Para tal, será utilizado o aporte teórico das redes de criação de Salles, compreendendo-se que, para essa autora, a criação deve ser entendida como rede de conexões. Para especificar o seu ponto de vista, ela coloca que existe: A necessidade de pensar a criação como rede de conexões cuja densidade está estreitamente ligada à multiplicidade das relações que a mantém. No caso do processo de construção de uma obra podemos falar que ao longo desse percurso a rede ganha complexidade à medida que novas relações vão sendo estabelecidas (SALLES, 2008, p.17).
Francastel (1965) também ressalta que os monumentos, ou seja, as obras, dão indícios para reconstruir a rede infinitamente delicada das inter-relações humanas. A obra de Euvaldo Macêdo Filho e o processo de sua construção no meio no qual imergiu, em Juazeiro, Bahia, delimitaram o tema do presente trabalho, de onde se extraiu a seguinte indagação: a interação de Euvaldo com artistas em Juazeiro, Bahia, pode se configurar como um processo criativo, com influências recíprocas (rede de conexões) e com resultantes visíveis? A resposta a essa hipótese tem início, ainda no presente espaço introdutório, ao situar de forma breve os principais componentes e atores dessa trama. Euvaldo Macêdo Filho, baiano de Juazeiro, faleceu em 1982 aos 30 anos de idade. Até então, sua carreira artística como fotógrafo, desdobrara-se em exposições individuais e coletivas, com participação em publicações nacionais e internacionais. Desenvolveu documentários fotográfico e cinematográfico sobre a
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vida e a navegação no rio São Francisco. Deixou também 12 mil negativos, um livro de poemas não publicado e cadernos de notas sobre seus conceitos e inquietações. Entre meados da década de 1970 e início dos anos 1980, fez parte, em Juazeiro, de dois coletivos, o grupo Êxodus de Artes e o Círculo de Convivência Cultural, compostos por artistas plásticos, fotógrafos, poetas, atores, jornalistas, professores, músicos, cantores, compositores, com uma participação ativa e determinante. Justamente aí, nesses encontros e suas derivações, pode-se vislumbrar uma teia de relações evidenciadoras de processos criativos conectados? Debruçar-se sobre esse período e recorte da arte regional contribuirá para o entendimento, sua inserção coletiva, parcerias e trocas provocadas por suas ações. Ao aporte de documentos representado por fotos, rascunhos, livros, jornais, anotações, declarações e relatos, somar-se-á o olhar e entendimento do pesquisador, também artista, amigo de Euvaldo e integrante dos dois coletivos artísticos. A proximidade com a sua obra, com suas concepções, com a sua poesia poderá vazar em alguns trechos deste trabalho, uma escrita que será atraída pelos textos e modos de ler do artista parceiro, posto que a convivência deixa um pouco do outro naquele. A recorrência de transcrições de relatos dentro do corpo da pesquisa tem a finalidade de, ao utilizar essa ferramenta de sondagem, valorizar também a História oral e o muito que ela oferece na compreensão dos contextos. Sob esse ponto de vista:
A história oral pode [...] fornecer pistas para a decifração, a organização, a datação de documentos e, portanto, para a consolidação da proposta de processos. Como uma bússola, as entrevistas podem oferecer mais inteligibilidade a todos os documentos que instruem o estabelecimento de um processo criativo (SANTHIAGO, 2013, p. 173).
Com esses aportes e relatos, observaremos o trabalho de Euvaldo e sua atuação nos dois agrupamentos. A sua obra é marcante no que tange à fotografia de arte e suas implicações, na região onde viveu e registrou com poesia e olhar diferenciados, abrindo caminho para outros arriscarem trilhar essa seara. É possível prever uma trajetória enriquecedora tanto para os coletivos, quanto para a obra de cada um de seus integrantes.
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A presente monografia averigua e expõe esse processo de contaminação do artista em sua obra e em suas conexões, estruturada em três capítulos. O capítulo 1, intitulado “Euvaldo Macêdo Filho e Juazeiro: a trama”, divide-se na apresentação de Euvaldo; a cidade, suas histórias e inquietações; a formação do grupo Êxodus; o surgimento do círculo de convivência cultural. O Capítulo 2, intitulado “O foco em aproximações artísticas” divide-se em duas partes, referentes a cada um dos coletivos. A primeira expõe amigos, experiências e realizações no âmbito do Êxodus; e a outra a ampliação das atividades criativas nas ligações estabelecidas no Círculo de Convivência Cultural. Ao longo do capítulo são apresentados diversos documentos, alguns deles visando demonstrar as interações criativas. São os chamados documentos de percurso por Cecília Almeida Salles (2008). O Capítulo 3, intitulado “O fotógrafo e um livro”, primeiramente, expõe a formação e transformação do artista Euvaldo, nas diversas conexões das redes de criação, que se foram estabelecendo nos contatos. A segunda parte relata o processo de construção do livro “Euvaldo Macêdo Filho, fotografias”, lançado em 2004, como mais uma experiência diante de sua obra. As Considerações Finais versarão sobre o processo de elaboração do presente trabalho.
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1. EUVALDO MACÊDO FILHO E JUAZEIRO: A TRAMA
Inicialmente convém trazer para a cena os diferentes personagens que traçam, com o autor das obras, as linhas das possíveis conexões criativas pesquisadas. A apresentação que se segue não tem nenhuma pretensão biográfica, mas busca desenhar o tempo e o espaço ocupados pela produção artística dentro do recorte metodológico.
1.1.
Quem é Euvaldo? Um olhar por ele mesmo e um currículo com alguma subjetividade
A publicação RE-VISTA: Velha poesia Nova, editada pela Biblioteca Pública Municipal de Juazeiro em 1978, sob a direção da Profª Regina Cussa, ainda na fase de preparação, propusera aos poetas convidados, o preenchimento de um questionário pois as respostas orientariam a produção de pequenos textos de apresentação de cada um deles, junto às suas obras. Euvaldo preencheu a ficha dessa maneira e assim ela foi publicada. Figura 1 – Questionário da Re-Vista Velha Poesia Nova.
Fonte: Elaborada pelo autor.
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Leitor. Euvaldo já anunciava a sua ocupação. Ante o interlocutor, quase sempre surpreso com o inusitado da resposta, esclarecia que lia para ganhar a vida e, dentro desse entendimento e ótica, assumira-se na condição de leitor profissional. A sua leitura, no entanto, não ficava restrita ao muito que já passara por suas mãos, entre títulos e autores. Seus olhos liam e reliam tudo ao redor, devolvendo, em imagens e poesia, os produtos dessa interação constante de múltiplos olhares, interpostos a cada momento. Bebia o presente em cada letra, registrava em “clics” a matéria constitutiva de várias e possíveis realidades. Assim, a fotografia e o seu exercício passam a fazer parte da sua vida, como uma extensão da sua necessidade de ler. De ler e também escrever com os olhos. O poeta praticante e apostólico coloca a máquina fotográfica como sua outra pena, instrumento outro do seu ler e escrever. Como a ponta dos seus dedos, língua, ouvidos, pele e olhos manipularam tempo, espaço e vida em uma trama de signos transformada em arte. Euvaldo Macêdo Filho é de Juazeiro, Bahia, nascido em 1952, tendo crescido nas poucas ruas calçadas de paralelepípedos e muitas de areião, cenário empoeirado ou de lamaçal conforme o período. Como quase todo menino, moleque traquino de cidade pequena do interior, brincou, correu, pulou cerca, foi para chuva mesmo com medo de trovão; se escondeu, mangou e se esquivou correndo dos doidos aperreados, puxou pelas calçadas carrinho de lata feito à mão, tomou banho de rio e alguns safanões quando surpreendido; viu paquete, barca, vapor apitando na curva, pescador, lavadeira e uma vida inteira pendurada nos trem da “Maria Fumaça”. Jogou pião, empinou arraia e “morcego”, assistiu a filmes na matinê, colecionou e trocou gibis, colou figurinhas nos álbuns, tentou futebol, jogou dama e gostava de ver os mais velhos em uma partida de gamão. Ouviu, tremendo na rede, de Santa, sua preta, lá em Carnaíba do sertão, estórias cabeludas de assombração. Lá, ainda, andou de jegue e, deitado no chão, viu nuvem de todo tipo e qualidade, cada uma mais bicho que a outra; esticado na esteira viu as estrelas passando qual um bando de vagalumes na boca da noite. De noitinha, viu as “caieiras” rindo escancaradas, mastigando brasa, cuspindo fogo e arrotando cal. Deitou o ouvido no trilho para sentir a distância do trem. Furou o pé em espinho. Viu bode, cabra, boi, galinha. Bebeu leite no curral. Foi nas farinhadas. Comeu beiju. Viu as meninas e brincou no forró. Assistiu corrida de argolinha, roda de São Gonçalo e os Congos serpenteando com seus pandeiros e marujos no rumo da catedral. Estudou e quase
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se forma em economia. Não poupou poesia, ao se apaixonar por uma Maria, casou e teve logo duas filhas, seu capital primeiro. Imagem 1 – Euvaldo Macedo Filho aos 6 anos, fantasiado para o carnaval.
Fonte: Arquivo de família.
“Seo Vadinho”, Euvaldo Macêdo, assim conhecido e chamado por todas as pessoas em Juazeiro, comerciante abastado e bem sucedido, demonstrava claramente nas conversas em família e com amigos, o desejo de ver o filho primogênito, Euvaldo, sucedê-lo nos negócios e, mais preparado, expandi-los. Com esse entendimento, montou residência em Salvador e matriculou os filhos Euvaldo e Hugo no Colégio Antônio Vieira, um dos mais bem conceituados estabelecimentos de ensino da Bahia. Dona Maria de Lurdes, sua esposa, encarregava-se da casa e da rotina escolar dos filhos, enquanto ele, “Seo Vadinho”, trabalhava durante a semana em Juazeiro, deslocando-se para a capital aos sábados e domingos. Era 1966. O mundo a mudar, marcando toda a juventude da época. Euvaldo morreu aos 30 anos de idade, em 23 de novembro de 1982. Um tempo curto para alguém que viveu muito e intensamente. Ele tinha pressa e esteve sempre atento a tudo. Demonstrava, amiúde, preocupação com o tempo e a necessidade do fazer. Essa questão temporal de feitura e realização aparecia de
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forma recorrente na maneira com que insistia para que produzissem, todos do seu entorno e ele junto, o máximo que fosse possível, sem esquecer o rigor e apuro técnico. Sua carreira teve início formalmente com uma exposição individual, intitulada “Tristes Margens”, composta de fotos em preto e branco, com foco nas lavadeiras e nos arredores do bairro Angarys, às margens do rio São Francisco. Além dessa primeira mostra, realizou e participou: “Nas Terras de São Surubim” (individual, 100 fotos, foyer do teatro Castro Alves, Salvador-BA/1979); “Almas Penitentes” (individual, 35 fotos, galeria do Instituto Cultural Brasil-Alemanha, SalvadorBA/1979); “Fotobahia” (coletivas, duas fotos em cada, Museu de Arte Moderna, Salvador-Ba/1979 e 1980); “150 Anos de Kodak” (coletiva, ensaio: Penitentes- 5 fotos - MASP- São Paulo/1980); “Fotobahia 79” (álbum coletivo) “Fotobahia 80” (álbum coletivo). Fotógrafo
cadastrado
na
FUNARTE,
membro
da
Associação
de
documentaristas da Bahia, Euvaldo Macêdo Filho participou de vários cursos “livres” de cinema, fez o curso de Formação de Cinegrafistas, na Universidade Pioneira de Integração Social- UPIS (Brasília-DF) e o Curso Intensivo de Documentaristas Universidade Federal da Bahia/Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Participou de um documentário cinematográfico para a Revista Geográfica, captando cenas ribeirinhas, suas vilas, sua gente. Trabalhou em outro documentário, não finalizado, sobre a interrupção da navegação no rio São Francisco até Juazeiro, com a construção da barragem de Sobradinho e a formação do lago para gerar energia elétrica. Deixou ainda 12 mil negativos e um livro de poemas não publicado, além de cadernos de anotações. Nesses cadernos pontuam conceitos e afirmativas como: “Fotografar ficou sendo a minha missão, minha aproximação pessoal dos mistérios, do GRANDE MISTÉRIO QUE É VIVER. (...) Nunca fotografei para paradas de sucesso. Eu me respeito e a fotografia”. .
1.2.
Juazeiro- Bahia: histórias e inquietações
Juazeiro, desde os seus primórdios, tornou- se pólo de confluência por estar situada no encontro de dois caminhos: o rio São Francisco e a rota das boiadas
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entre o interior e o litoral. Chamada de “Passagem de Joazeiro”, tornou-se ponto de parada de muita gente e muitos interesses. Prosperou, tornando-se uma cidade caracterizada por diversos cruzamentos culturais que tais caminhos propiciavam. A navegação comercial e a linha férrea construída, seguindo o caminho do gado, uniram e interligaram um grande número de comunidades, fortalecendo laços com esse centro aglutinador. A vida social e cultural na cidade foi consolidada, através do tempo, com a formação de clubes, associações e diversos agrupamentos, possibilitando encontros, afinidades e instâncias de ação para a concretude de anseios e propostas as mais diversas. O final da década de 1960, em Juazeiro, encontra um grupo de jovens, ligados à Igreja Católica, discutindo as transformações de toda ordem acontecidas na sociedade mundial, marcadamente em torno do ano de 1968. Essa juventude se posicionava querendo mudanças na ordem vigente das coisas, quer na política, quer em posturas de valorização do essencialmente humano. O grupo de jovens do Brasinha, assim chamado porque se reunia no Teatro Brasinha, espaço que, no período, fazia parte do patrimônio material da Diocese de Juazeiro. Lá havia sido também uma sala de cinema, o Cine Glória. O grupo promovia diversas ações como shows, jograis, peças teatrais, festas de São João, com ensaios e apresentação de quadrilha. Importante ressaltar uma tradição juazeirense denominada “assustado”. “Assustado”, de improviso fazia-se o anúncio de uma festa na casa de alguém, sem que a pessoa soubesse. O convite corria de boca em boca, espalhando-se rapidamente. Cada um que fosse levava alguma coisa para comer e beber. Evidentemente que o dono da casa levava um susto... No Brasinha, devido ao sucesso e a afluência, o “assustado” já era programado e ocorria semanalmente. Quem conta tudo isso é Odomaria Rosa Bandeira Macêdo que, à época, estudava para prestar vestibular de História na Universidade Federal da Bahia, em Salvador. Ela, mais seu irmão Joseph Bandeira, Aflídores, Suzana Claudete, Romildo, Paulo Ribeiro, Elisete, irmã de Mauricio Dias (“Mauriçola”), Antonio Mota, foram alguns, entre tantos outros, componentes daquele agrupamento de muitas ações criativas e agregadoras. Alguns, do grupo de Jovens Brasinha, no início dos anos 1970, já estavam na universidade, em Salvador, nos cursos para os quais se habilitaram. Várias
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cidades mantinham residências universitárias na capital, Juazeiro não. As articulações no Restaurante Universitário do Corredor da Vitória, entre os estudantes moradores de pensões ou casas de parentes, caminharam para uma reunião objetivando criar uma associação e implantar a residência universitária de Juazeiro em Salvador. Entre os presentes estavam Odomaria e Joseph Bandeira, Suzana Claudete Matutino, Elizete, Aflídores Boaventura, Flávio Luiz, Ruth Mota, Lúcio Emmanuel, Roberto Luiz Macêdo, Múcio e Israel Brandão, Fonseca Santos, João Dias, Carlos Ramos, Zé Carlos “Charlô”, Eliseu Santos, além de Paganini Nobre e Jorge Khoury, esses dois já há algum tempo se esforçando para juntar forças e criar a Associação. Em meados de 1970, logo após a Copa do Mundo e a conquista do tricampeonato de futebol, os membros da Associação organizaram sua vinda a Juazeiro e, já com a presença de universitários do curso de Agronomia da FAMESF - Faculdade de Agronomia do Médio São Francisco de Juazeiro, reúnem- se na sede da Associação Comercial da cidade para a assembléia de fundação, elegendo Paganini para presidente, secretário Jorge Khoury e tesoureiro Flávio Luiz. Como ação imediata, criaram o Projeto Carranca, nos moldes do Projeto Rondon do Governo Federal, movimento universitário de assistência social, com estudantes de várias áreas, dentro de suas competências, assistindo os distritos do município. Isso nas férias mais longas no fim do ano, com simpatia e apoio da sociedade. Paralelamente à criação e implantação do Projeto Carranca, o pessoal da área de Ciências Humanas e Artes planejava e cuidava da preparação de eventos que aconteceriam nas férias mais curtas, as de junho/julho. Em consonância com o que acontecia no eixo Rio-São Paulo, onde, à época, estavam em voga os Festivais de Música, nas férias curtas implementou-se a I Semana Universitária de Juazeiro, composta de festival literário com concurso de prosa e poesia, além do I Festival São Franciscano da Canção, alcançando grande sucesso. Já em 1972, a Associação consolida os eventos culturais das férias mais curtas, transformando a semana em Quinzena Universitária, incluindo as modalidades esportivas e a criação da Gincana cultural. Ao encerramento da segunda jornada universitária de férias, a parte artística crescera muito, acrescentando inclusive um salão de Artes Plásticas, PRO- ARTE. A organização do salão trouxe de Salvador júri especializado para julgar as obras de arte. Oferecia-
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se, além da premiação local, a inscrição automática das obras aqui selecionadas na Pré-Bienal de Salvador, que era seletiva da Bienal de São Paulo. Um fato relevante aconteceu em 1973. Com tudo funcionando bem, a Quinzena Universitária foi ampliada com mais ações e eventos, passando então a ser denominada de Temporada Universitária. A temporada foi marcada pela presença de Caetano Veloso no Festival São Franciscano da Canção. Caetano havia retornado recentemente do exílio em Londres e esse fato ocupava a mídia nacional provocando enorme curiosidade. Os estudantes da AUJ-Associação dos Universitários de Juazeiro convidaram-no a participar da temporada. Veio para assistir e não estava programado ou contratado que ele cantaria. No intervalo, enquanto o júri escolhia os vencedores, o público pressionou e ele subiu ao palco para cantar, acompanhando- se ao violão e apoiado em seguida pelo instrumental e pessoal do Grupo Êxodus, levando o público a uma participação entusiasmada. Os integrantes do Grupo Êxodus, individualmente ou em conjunto, e ainda estabelecendo parcerias com outros artistas que não integravam o grupo, participaram das temporadas em diversas ações, ganhando maior visibilidade nos Festivais de Música, com repertório diversificado e muita irreverência. Imagem 2 – Grupo Êxodus, 1973, tocando com Caetano Veloso. Da esquerda para a direita: Expedito Almeida, Cacá, Zemário Luna, Caetano Veloso, Mauriçola, Tatau, Julhão, Coelhão, Itazir, Sátiro.
Fonte: Arquivo de Antonio Carlos Tatau.
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A AUJ, que no ano de 1974 consolidara a Residência Universitária de Juazeiro em Salvador, um dos primeiros objetivos motivadores da sua fundação, permaneceu atuante realizando os eventos de assistência social e temporadas artísticas e culturais até 1976 quando perdeu força, esvaziou-se e encerrou as atividades.
1.3.
O grupo Êxodus: um olhar marcante para uma passagem
No final dos anos 1960, em Juazeiro, nos colégios, nas praças, nas rodadas de conversas, muita gente discutia a necessidade de espaços e situações onde os artistas locais pudessem se expressar, mostrar sua produção, conhecer o que outros estavam criando, e ensejar discussões em torno do que também ocorria no restante do país e no mundo. Na ocasião, os jovens Eduardo Melo e Paulo Dourado¹, estudantes de teatro e residentes em Salvador, chegaram à cidade com a proposta de montar uma peça teatral e o intuito de experimentar a formação de um grupo para concretizar o espetáculo. Através de amigos e conhecidos reuniram pessoas para compor o elenco e apoio técnico. Depois de muitos ensaios, preparativos e cuidados que envolvem uma montagem teatral, a peça intitulada “Êxodus”, com texto de autoria dos dois, estreou no palco do Cine São Francisco, no centro da cidade, com bom público presente. Os resultados positivos pautados na afluência numerosa de assistentes e no debate com o público ao final da apresentação, não só em torno do texto como de concepções estéticas e linhas de atuação, em sintonia com experiências inovadoras de outros centros, animou e levou o grupo a várias outras exibições, em Juazeiro e cidades de diferentes regiões na Bahia. Assim, em função da peça, nasce em julho de 1970, o “Grupo Êxodus” que, segundo manifesto editado e distribuído pelo grupo, pretendia a “negação de qualquer coisa escravizante, com soma de esforços e união na busca de liberdade pelo ideal da arte”. A peça inicial, “Êxodus, agregara atores, artistas plásticos, músicos e praticantes de fotografia que, na produção, puderam trocar idéias a respeito de
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cenografia, iluminação, figurino, cartazes e as várias necessidades que um empreendimento do tipo necessita para acontecer. O êxito razoável dessa primeira experiência teatral e a possibilidade do trabalho coletivo renovou o ânimo e incentivou o grupo a se arriscar um pouco mais. Resolveu-se, após debates, discussões e exposições de motivos, adaptar para o teatro, o filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha. A censura rígida da época quase impossibilita a estreia, mas, com a interferência de autoridades locais, inclusive religiosas, a peça foi liberada, apreciada e muito aplaudida no Teatro Brasinha, repleto. A repercussão permitiu sua apresentação em outras tantas cidades. O grupo Êxodus encontrou na nascente Associação dos Universitários de Juazeiro, promotora de um crescente leque de ações artísticas em várias modalidades, a oportunidade de também nesses espaços e instâncias mostrar a atuação crescente, diversificada e criativa dentro do coletivo. Muita gente participou das ações do grupo em caráter temporário, mas uma parte do pessoal da formação inicial manteve um núcleo de sustentação composto por Antonio Carlos Coêlho de Assis (Coelhão), Antonio Carlos da Silva Pereira (Tatau)², Carlos Alberto de Alencar Alves (Carlinhos Hare), Carlos Alberto dos Santos (Cacá), Carlos Maurício Dias Cordeiro (Mauriçola)³, Carlos Perez (Carlão), Expedito Almeida Nascimento Filho (Expedito Almeida)4, Jairon de Oliveira, José Maurício Farias Nascimento (Zé Maurício), José Mário Freire Luna (Zemário), José Pereira Filho (Zeinha), Júlio Ramos dos Santos (Julhão), Marcos Roriz, Sérgio Ramos (Sérgio Dinamite), Flávio Araújo (Flavão). As reuniões do grupo Êxodus ensejavam discussões sobre a conjuntura política, a cena cultural e artística do país e, sobretudo, a música popular brasileira e as muitas nuances que a compõem. A casa de Antonio Carlos Tatau, ao lado da catedral, na “praça da Bandeira”, era um dos principais pontos de encontro e sede informal de toda aquela movimentação. D. Neide e Dr. Humberto Pereira, pais de Tatau, viam com benevolência e muita simpatia a agitação e o clima festivo que muitas vezes ali se instalava. A casa de D. Júlia e “seo Ribeiro”, pais de Cacá e Julhão, na rua Visconde do Rio Branco, era uma extensão da primeira. Nestes locais, muitos trabalhos nasceram, muitas estratégias tomaram forma. A diversidade das linguagens artísticas e a multiplicidade das ações impulsionaram a mudança do nome, já em 1971 para “Grupo Êxodus de Artes”. A
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dinâmica e movimentação dentro do grupo para participar de um evento relativamente curto, as temporadas universitárias e suas modalidades de arte, exigiam também o envolvimento de muita gente que não aparecia ou subia nos palcos. A atuação do grupo não se limitava a esse período e estendia-se ao longo de cada ano, a cada mês, e exigia grande esforço no sentido de se gerenciar e mostrar a maior parte possível do que era produzido e criado. Um calendário de atividades foi traçado e, sob a liderança de Coelhão e Tatau, coordenador e vice-coordenador respectivamente, todos se empenharam na busca para concretizá-lo da melhor maneira possível. Muitos contatos e intercâmbios com outros artistas e agrupamentos afins foram possíveis através de Paulo Dourado, já formado em Direção Teatral pela UFBA - Universidade Federal da Bahia - que tinha significativa participação na cena cultural da capital. Imagem 3 – Alguns integrantes do Êxodus, em 1976 no Cais de Juazeiro. Da esquerda para a direita: Armandinho Almeida, Julhão, Sergio Dinamite, Cacá, Expedito Almeida, Coelhão, Euvaldo e Odomaria.
Fonte: Arquivo de Odomaria Bandeira.
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Contatos
instigantes
ocorreram
com
conversas
e
informações
proporcionadas por Luiz Galvão, juazeirense e à frente do grupo musical tropicalista Novos Baianos; ou a visita e o convívio, durante alguns dias, do diretor do Teatro Oficina de São Paulo, José Celso Martinez Correa, quando ainda realizava pesquisas para montar a saga de Canudos e discorria entusiasmado sobre seu plano de montar “As Bacantes”; e, ainda, João Gilberto, músico e compositor, fundador da bossa nova – talvez o juazeirense mais famoso da história da cidade –, que se tornara amigo de Euvaldo Macêdo Filho, e durante várias noites, fazia- se ouvir e ouvia.
1.4. Juazeirenses em círculo: a poesia em discussão
Euvaldo Macêdo Filho gostava da movimentação e efervescência no ambiente do grupo Êxodus, dele se aproximando em 1975, quando passou a atuar significativamente em várias ações do coletivo, o que permitiu também a interferência de vários de seus integrantes no seu próprio trabalho e caminho artístico, em trocas significativas. À medida que integrantes do grupo Êxodus optaram por seguir caminhos individuais ou passaram a desenvolver projetos pessoais, o coletivo foi se dispersando aos poucos. No entanto, a experiência vivida em conjunto determinou rumos para boa parte dos seus integrantes. Os que não seguiram carreira artística ou atividade ligada à área cultural, sempre mantiveram ligação com o fazer artístico. Outro coletivo, o Círculo de Convivência Cultural, nasceu do sonho do poeta Pedro Raymundo Rodrigues Rêgo, que se juntou a Carlos Alberto Vasconcelos Oliveira e Euvaldo Macedo Filho para concretizá-lo, em março de 1980. Muito antes disso, jovem estudante, Pedro participou de algumas iniciativas no campo das artes, editando em colaboração com os amigos poetas Luiz Galvão e José Eurico Pereira de Oliveira (Dedé), uma publicação no formato de jornal, composto de comentários e poemas. A necessidade de dedicar- se aos estudos e a constituição de uma família durante algum tempo adiou seu desejo de continuar com a vocação poética.
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Engenheiro, arquiteto formado e atuante, lecionava Física “com muita qualidade”, segundo Odomaria Bandeira, que foi sua aluna no Colégio estadual Ruy Barbosa, em Juazeiro. Pedro, também filósofo, admirado por seus alunos, “discorria, explicava pacientemente e conseguia convencer, baseado nas leis da Física, sobre coisas como a existência da alma”. Pedro Raymundo morava na “Praça da Bandeira” e constatou, inquieto, que muito do que plantara na cabeça dos jovens, agora florescia. Quase à sua porta acontecia uma das atividades de encerramento das temporadas universitárias, a Gincana Cultural. Inevitável uma reaproximação com muitos dos seus alunos, agora universitários. Tempos depois, quando a AUJ encerrou definitivamente suas atividades, Pedro Raymundo, que já discutia cinema com Carlos Alberto e Euvaldo, ambos moradores e vizinhos do seu escritório profissional na rua Cel. João Evangelista, se articula com estes amigos para organizar o Círculo de Convivência Cultural. Dessa articulação, com um grupo bastante heterogêneo, foram discutidos objetivos e, em seguida, distribuído um manifesto impresso com as proposições acordadas, contemplando vários interesses. Segundo o manifesto, esse grupo de idealistas pretendia “... promover uma ação em Juazeiro, no sentido de refazer o processo, procurar as origens, explorar o potencial, promover o surgimento cultural” através de “... um grupo aberto e amplo para conter pontos de vista e propostas diversificadas e até divergentes, mantendo, é claro, o nível de pesquisa, de experimentação e, sobretudo, de vanguarda”. Objetivava ainda que a ação do Círculo se processaria por meio de “maior intercâmbio de informações; organização de um banco de memória cultural; elaboração de um projeto de produção textual; levantamento dos autores juazeirenses, cuja obra tenha atualidade literária; criação de um mercado de arte; incentivo da produção literária regional; publicação do órgão oficial do movimento”. O texto tinha conclusão desafiadora: “o sonho é uma necessidade. Que estes não sejam passos perdidos”. (Ver anexo) O documento, datado de março de 1980, estava assinado por Expedito Nascimento, Pedro Raymundo, Joseph Bandeira, Lúcio Emmanuel, Jorge Duarte, Marta Luz, Edilson Monteiro, Odomaria Bandeira, Carlos Alberto Vasconcelos, Maria
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do Carmo Nogueira, Euvaldo Macêdo Filho, Mauriçola, Layse Luna, Coêlhão e João Ramalho5.1. A sede do grupo ficava em um imóvel de Pedro Raymundo, à Praça da Bandeira, 55. As reuniões aconteciam rotineiramente uma vez por semana, à noite. Muito se discutia antes, durante e após essas reuniões, às vezes se estendendo pela madrugada. Nas reuniões, os participantes apresentavam algo da sua produção literária ou de qualquer outra vertente artística, sendo apreciada e comentada pelos presentes. Também, a partir das discussões, recomendavam-se leituras específicas para maior aprofundamento e possíveis desdobramentos. Muita gente ligada à arte, educação e cultura foi convidada a proferir palestras, seguidas de debates para platéias compostas por um público variado e interessado. Ermi Ferrari e o comandante Esmeraldo Oliveira Brito, da FRANAVE, foram convidados para falar sobre os primórdios das embarcações e a navegação no São Francisco. Outra presença, sempre citada pelos freqüentadores do Círculo, foi a de Alsuz Sangalo, que chegou com o seu violão, falou de si, da cidade, contou histórias e levou todos a rirem intensamente com as piadas que contava com muita arte e talento. Outras pessoas, de uma lista extensa, por lá passaram, com depoimentos e pontos de vista que lançaram luz sobre diversos assuntos, devidamente registrados em fotos e gravações sonoras, que comporiam o banco de memória cultural. O Círculo de Convivência Cultural de Juazeiro organizou sua primeira publicação reunindo a produção literária, charges e cartuns de seus integrantes com o título de AIÓ. Palavra indígena que na língua tupi indica saco, sacola, e era como os vaqueiros costumavam se referir ao embornal que conduziam na lida. A proposta ainda era que, a cada edição, a publicação ganhasse um novo formato, renovando-se constantemente. Se o primeiro número do AIÓ foi literalmente um saco, ou seja, um envelope grande e pardo, com a palavra AIÓ serigrafada em preto na parte externa, contendo folhas soltas e sem numeração, o AIÓ n° 2 variou na apresentação, como estava previsto. Na forma de caderno com espiral, tratava- se da obra de um único autor. Era o livro de poemas de Expedito Almeida Nascimento Filho (Expeditinho) intitulado “Curare”. 5
Os nomes aqui relacionados estão transcritos tal qual aparecem assinando o referido manifesto.
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A convivência no Círculo serviu para selar uma grande amizade entre Pedro Raymundo e Euvaldo Macêdo Filho. O reconhecimento da qualidade do que Pedro produzira tempos atrás por Euvaldo e integrantes do Círculo levou Pedro a arriscar poemas novamente. O resultado o animou a preparar e concluir o livro “O pássaro que criou raízes” e que seria o terceiro AIÓ. Pedro Raymundo morreu antes disso, de forma inesperada, no ano de 1981. Sem Pedro, o principal esteio, o Círculo de Convivência Cultural não teve prosseguimento. O seu livro, com bela capa do artista plástico e amigo Juarez Paraíso, prefaciado por Euvaldo Macêdo Filho, somente foi editado tempos depois, graças ao esforço da família e de amigos, principalmente Euvaldo que, a convite da família de Pedro, se empenhou na produção.
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2. O FOCO EM APROXIMAÇÕES ARTÍSTICAS
Se o artista já se mostrava desde logo, a sua criação e de sua obra foram se constituindo no percurso que se desenrolava pelos movimentos e grupos de arte. “Todos os registros deixados pelo artista são importantes na medida em que podem oferecer informações significativas sobre o ato criador” (SALLES, 2008, p.36). Neste capítulo, serão apresentados os encontros, ações e aproximações em que as trocas de Euvaldo com os agrupamentos artísticos estabeleceram resultantes visíveis.
2. 1. Amigos, experiências e realizações em comum
O Grupo Êxodus, desde sua formação, proporcionou, sem dúvidas, um efeito aglutinador. Pessoas de diferentes áreas juntaram-se e a necessidade de colaboração entre os integrantes possibilitou uma troca significativa de informações e aprendizado. Em certa medida, começou ali uma prática que logo se transformaria em método de trabalho e aprimoramento de convivência. Nesse sentido percebe-se que:
Há algo nas propriedades associadas à interatividade, que nos parece importante destacar para compreendermos as conexões das redes de criação: influência mútua, algo agindo sobre outra e algo sendo afetado por outros elementos (SALLES, 2008, p. 24).
Essa agitação também atraiu gente de fora do coletivo para troca de experiências ou simplesmente o convívio com o ambiente estimulante de possibilidades artísticas. A passagem por ali de outras tantas pessoas, muitas com a carreira em andamento, disseminava conhecimento, aguçava a imaginação e repercutia no fazer de cada um e do grupo como um todo. Sobre isso, relata Tatau:
Ali onde a gente se reunia, na casa de meu pai, sempre tinha alguém mostrando alguma coisa, um texto, um poema em preparação... Sempre tinha alguém tocando um violão ou piano. Vez em quando um ou dois mais afastados, confabulando, vinham, mostravam um trecho de música, todo mundo escutando... A gente comentava e
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eles voltavam pra continuar a composição, às vezes com mais alguém que tinha gostado e resolveu participar. Aqui e ali, um ensinava um novo acorde no violão... Havia sempre alguém trazendo algo novo em termos de literatura ou música... A casa vivia cheia. Aparecia sempre alguém pra mostrar alguma coisa ou saber o que a gente estava produzindo, é... Eu lembro de muita gente, não dá pra falar todo mundo. Lembro de Geraldo Azevedo tocando violão lá, estava começando. Batatinha, grande sambista também foi outro... Só para ficar na música! Meu tio, Ederaldo Gentil, de sambas gravados por gente como Bete Carvalho e por aí vai... Ah! Os Ingênuos, conjunto de choro, tocou ali entre a gente, na casa da praça da Bandeira... Teve uma noite da Camerata da Orquestra Sinfônica da Bahia, depois da apresentação, tocando na sala, a gente ouvindo... Vários outros como Carlos Pita, Tuzé de Abreu, Edésio Santos, Alsuz Sangalo... Ó, o sítio Mari, na beira do rio, ali em frente à ilha do Maroto, também foi um lugar de reunião, ensaio, criação e diversão do Êxodus. Dos que apareceram por lá e a gente aproveitou ouvindo e aprendendo, lembro, claro, João Gilberto, o poeta Patativa do Assaré, o artista plástico Calazans Neto, a escritora Mirian Fraga, o sambista Edil Pacheco, o músico Armandinho Macêdo... Muita gente. Sei é que foi bom e produtivo pra gente do grupo, esse contato, assim de perto, admirando, perguntando e também mostrando parte do que a gente fazia (Depoimento de Antonio Carlos, Tatau, em 04/02/2014).
Em relação ao relato e o seu conteúdo, pode-se levar em conta “as interações entre indivíduos como um dos motores do desenvolvimento do pensamento: conversas com amigos, aulas com mestres respeitados ou opiniões de leitores ou espectadores particulares” (SALLES, 2008, p. 32). Foi assim que uma proposta de show, criação conjunta de dois integrantes do grupo, Odomaria e Coelhão, depois de exposta e aceita, ganhou corpo e se desenvolveu com o apoio e participação de todos. O musical enfocaria a programação dos serviços de alto-falantes quase extintos, já que representava uma referência cultural, um período em que se mantinha vivo na memória e no imaginário de gerações formadas ao som das canções, modinhas, notícias, recados, comerciais... O show fruto de pesquisa minuciosa do grupo trazia à baila modos e recursos dos principais serviços de alto-falantes de Juazeiro: A “Marabá” e a “Cultural”. A apresentação do espetáculo aconteceu na Sociedade Apolo Juazeirense, que ainda mantinha intacta a decoração carnavalesca, projetada e executada pelo Grupo Êxodus, intitulada “Luzes da Ribalta” em uma homenagem ao mundo dos espetáculos. Entre os músicos uma participação especial: ao piano, o garoto Ricardo Castro6, que, aos 10 anos de idade, circulava no ambiente do
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Êxodus, sempre atento a tudo. A renda do show seria revertida para a Campanha da Fraternidade. Era 1975. Euvaldo Macêdo Filho, amigo de Jorge Dantas e de Mauriçola, ambos participantes do Êxodus e do “Alto-falante Show”, resolveu assistir e compareceu. Ele estava curioso e atraído pela movimentação, pelos comentários e relatos dos dois amigos sobre as atividades e propostas do grupo. Segundo Salles (2008 p. 41) “o acompanhamento de processos de criação nos mostra que a efervescência cultural incita o artista [...] parece necessitar, de modo vital, desse clima”. Tudo na função foi do seu agrado: o ambiente repleto, lembrando um antigo cabaré, favorecido pela decoração; a música; o cuidado e esmero na apresentação; e, principalmente, a cantora, Odomaria Rosa Bandeira, que, mais tarde, seria sua companheira. Se ele já pretendia uma aproximação com o grupo, naquela noite teve certeza. Sobre isso, Odomaria diz:
Lembro do show na Apolo, um público razoável, bastante selecionado e... que Euvaldo estava lá. Não me aproximei dele naquele momento. Mas aquele momento ficou de referência para os nossos encontros. Posteriormente, na casa de Dr. Humberto, nos encontros do grupo, ele foi criando o clima para chegar perto de mim... Realmente a gente se envolveu a partir dali. Então foi assim, ele fez um poema para mim... ele já era poeta. E eu não sabia (ri)... a partir dali foi uma grande descoberta para mim, saíamos com todos para tudo e... ele conhecia música, (...) ele queria mostrar tudo e também todo mundo andava junto e cantava (depoimento de Odomaria Rosa Bandeira Macêdo, 07/02/2014).
Os momentos iniciais da aproximação de Euvaldo com o Êxodus aconteceram em torno do romance dele com Odomaria, em meio a muita boemia e, segundo ela, “nesse ponto ele era muito encantador, tinha uma cultura curtida com as pessoas mais velhas, da boemia pesadona, tipo João Duarte, que freqüentava o bar de Pedro Pirulito, lá no bairro de Piranga...” Euvaldo logo percebeu que o Êxodus oferecia campo suficiente à sua participação e interação. “Ele acreditava na arte que estava sendo feita aqui”, conta Mauriçola. “Ele conseguia perceber o potencial que tínhamos na época. Ele tinha essa visão de maior dedicação ao trabalho e ficava provocando todo mundo para fazer mais”, na avaliação de Antonio Carlos Tatau. Das provocações de Euvaldo e da empatia estabelecida com o grupo e o seu modo receptivo de atuar nasceram as primeiras parcerias. Maurício Dias,
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(“Mauriçola”) ainda menino de 13 anos, conhecera Euvaldo nos jogos de futebol, conhecido como “baba”, na casa de Pedrinho Borges, mas não se tornaram amigos logo. Depois, mais adiante ele se interessou, me viu tocando bossa, se admirou de ver um garoto novo, falando em João Gilberto, Tropicália. Eu já tinha encontrado o pessoal do Êxodus, estava começando a compor, ele ficou surpreso... Comecei a mostrar algumas coisas que escrevia, ele mostrava algumas dele... Quando mostrei a letra da musica “Made in Juazeiro”, um trabalho que fiz dentro do Êxodus, ele ficou encantado. A letra falava dos doidos de rua de Juazeiro, o interesse por figuras humanas. Ele me colocou num pedestal e ele nem quis parceria, achando que os poemas dele não dariam. Bobagem... Ele já tinha isso, o interesse pelo humano. Houve uma conjunção, eu na música, ele nas imagens. Quando criou coragem, já no Êxodus, naquela aproximação e clima, começamos a compor juntos. Ele me deu primeiro a letra “Tristes Angarys”, ele achando que era poesia concreta, difícil musicar... Assim que viu o resultado se animou. Fiz “Corvo Azul” com ele e muitas outras (Mauricio Dias, depoimento em 08/02/2014). Figura 2 – Poema “Tristes Angarys”, de Euvaldo Macedo Filho, 1976.
Fonte: Acervo de família.
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Figura 3 – Poema “Corvo Azul”, de Euvaldo Macedo Filho, 1976.
Fonte: Acervo de família.
Tatau, com Mauriçola, ajudou a viabilizar o encontro e começo de romance entre Odomaria e Euvaldo. Certa feita, Euvaldo viu Tatau com a namorada Mônica no cais, apreciando o rio. Parou o carro e ficou só olhando.
Depois, ele saiu de mansinho e no outro dia apareceu com um poema, pedindo pra musicar. Aí, você sabe, como era no âmbito do Êxodus... Eu tava fazendo a música pra essa letra... Então num certo momento, chega Marcos Roriz e já emendou na criação ‘... um beijo, outro beijinho...’( cantando). Aí eu ‘oxe, é dessa forma que ia dizer’. Aí virou parceria também e concluímos a canção. Era assim no grupo. Mesmo sem combinar, alguém podia chegar e criar ali com outro, sair do seu lugar, dar um toque, contribuir e depois achar que estava bom, essas coisas... sentir como seu, claro (Depoimento de Antonio Carlos Tatau, em 04/02/2014).
“Aceitar a intervenção do imprevisto implica compreender que o artista poderia ter feito aquela obra diferente do que fez” (SALLES, 2008, p. 148). A depender do propósito, e modo de atuação, em constante interação, esse é um componente a sempre ser considerado como possível.
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Figura 2 – “Canção pra João cantar”, 1976.
Fonte: Acervo de Antonio Carlos “Tatau”.
Tatau também gostava de fotografia e conversava com Euvaldo sobre o assunto, às vezes mostrando algumas fotos que fazia, pedia a opinião dele e assimilava os comentários. No show ‘Espírito Sangue’ de Mauriçola, a gente, eu e ele, preparou uns slides para serem projetados. A gente combinou... Fiz um tipo de foto mais focado no próprio artista, e ele perambulou buscando os tipos na rua, nos bares, nas esquinas, captando a atmosfera da cidade e o cotidiano no rosto e expressão das pessoas... Fizemos, ainda eu e ele, isso com muita gente do grupo, um documentário com João Doido, o doido mor da cidade, lá em um cabaré. Levamos duas filmadoras. Euvaldo dirigiu e eu tinha liberdade pra fazer a tomada que quisesse... Uma experiência interessante, todo mundo improvisando, ouvindo ali, na hora... João Doido, livros de cinema, as meninas do cabaré, a gente... (Depoimento de Antonio Carlos Tatau, em 04/02/2014).
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O poeta Expedito Almeida, grande amigo de Euvaldo, foi quem sugeriu o nome “À flor da Pele” para uma pequena antologia de poemas, reunindo integrantes do grupo Êxodus e de outros artistas juazeirenses. Entre estes, os seguintes nomes: Armando Almeida, Jorge Dantas, Demar Guerra, Kuey (Coelhão), Mauriçola, Euvaldo Macêdo, Patinhas, Zé Maurício, Tatau, Paulo Benevides e Umberto Paixão. Para essa publicação, Euvaldo dispensou um cuidado especial, esmerando-se nos detalhes, conversando com cada um sobre os poemas, os mais adequados, e ainda acompanhando, pelas madrugadas, o trabalho de montagem na gráfica, sem demonstrar cansaço, excitado em ver o produto finalizado e, junto com os demais integrantes, preparar e participar do lançamento.
Imagem 4 – Lançamento da antologia “A Flor da Pele”, 1976. Da esquerda para a direita: Euvaldo, Coelhão, Jorge Dantas, Zé Maurício, Armadinho Almeida, Tatau e Mauriçola.
Fonte: Acervo de Antonio Carlos “Tatau”.
Euvaldo e Expedito tinham grande respeito um pelo outro e, frequentemente, trocavam opinião sobre o que estavam escrevendo. Expedito, no seu livro “Tecendo Lã Junto à Fogueira” (2003), na página 33, colocou um poema intitulado “Suspeito”, feito para Euvaldo, a partir dessa aproximação. Outro exemplo é o poema “Brincando com Fogo” do livro “Ele”, ainda inédito. Segundo Expeditinho, como era
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mais conhecido, ao ouvir uma frase do amigo Euvaldo, teve um “repente” ou “insight”, anotou e fez um poema, inserindo a frase devidamente aspeada. No insight estruturam-se todas as possibilidades que um indivíduo tenha de pensar e sentir, integrando noções atuais com anteriores e projetando-se em conhecimentos novos, [...] imbuída a experiência de toda carga afetiva possível à personalidade do indivíduo (OSTROWER, 2004, p. 67) Figura 3 – Poemas influenciados por Euvaldo, 1975 - 1977.
Fonte: Livro “Ele” (inédito) e “Tecendo Lã Junto a Fogueira” (2003).
A presença constante de Euvaldo no atelier de Coelhão, coordenador do grupo Êxodus, seguia um ritual não combinado, mas incorporado pelos dois, que permitia o início de conversas extensas e provocações as mais diversas. Chegava Euvaldo, pedia licença para sentar e ficar só olhando, sem atrapalhar o trabalho do pintor. Não segurava o silêncio muito tempo. Logo iniciava conversa, dava palpite. Os comentários sobre os vários aspectos que uma imagem pode significar geraram alguns trabalhos e, dentre estes, um que ele apontou como mais adequado para representar a idéia discutida, e que deveria ser inscrito em um salão de artes.
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O trabalho levou o primeiro prêmio em pintura e Euvaldo ficou muito satisfeito, como se autor fosse. Figura 4 – “Sertão Mar Rachado de Mágoas”, 1977.
Fonte: Acervo de Almira Assis.
A primeira exposição de fotografias de Euvaldo também teve muito palpite de Coelhão. A seleção das fotos foi um trabalho feito por Euvaldo, Odomaria e Coelhão. A expografia foi outra interferência de Coelhão e os títulos das fotos foram dados por Coelhão e Odomaria. O cartaz foi feito a partir de um retrato executado a bico de pena, para o qual Euvaldo posou (em anexo). Euvaldo e Coelhão trabalharam juntos a temática dos Penitentes, um ato religioso tradicional da quaresma. Uma noite, os dois, andando de carro, depararamse, num lugar ermo e escuro, com um cordão de penitentes. A luz do carro sobre eles em movimento causou uma profunda impressão. Pareciam flutuar com suas vestes brancas no fundo escuro. A visão inspirou a transposição para telas de figuras chapadas sem detalhamentos, lembrando fotos em alto contraste. Quando Euvaldo, tempos depois, expôs no ICBA, em Salvador, sua seleção de fotos sobre
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os penitentes, o cartaz, a partir de uma de suas fotos, apresentava as características do alto contraste da pintura nas telas e a fusão dos corpos com o fundo. Figura 5 – Tela de Coelhão e cartaz da exposição de Euvaldo, 1978 - 1979.
Fonte: Acervo de Almira Assis.
Imagem 5 – Fotografia da exposição “Almas Penitentes”, 1979.
Fonte: Acervo de Odomaria Macedo.
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Uma exposição de poemas de Euvaldo diz bem do frequente diálogo artístico entre os dois. Os poemas foram transformados em sanduíches de vidro, em uma grafia e tipagem de letras escolhidas pelo parceiro. Uma instalação poética e plástica flutuando em diversas alturas; os vidros pendurados por fios de nylon, mudando de posição com o deslocamento de ar e dos observadores em circulação. Quando Euvaldo resolveu fazer uma viagem pelo rio São Francisco, anotou diversas sugestões dadas por Coelhão, que o havia precedido em uma viagem a vapor. Recomendado a parar em Porto do Gado, uma ilha perto de Xique-Xique, fotografou alguém especial e ainda rendeu um poema: Xêro, uma criança linda, batizada e registrada assim mesmo, com essa grafia, Xêro. Figura 6 – Poema “Xêro”, 1980.
Fonte: Acervo de Odomaria Macedo.
Euvaldo, continuamente, esteve atento a tudo e dava a impressão de que estava aqui, no mundo, a trabalho. Sempre demonstrava preocupação com o tempo
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e a necessidade do fazer. Presente, sob vários aspectos, nos projetos do Êxodus, inquieto para que tudo acontecesse da melhor forma. Por exemplo, a abertura de um show intitulado “Da fauna, da flora, da Brodoway” não lhe parecia adequada para a postura que se queria, em relação ao conjunto do espetáculo. Então sugeriu que, no apagar das luzes para o início da apresentação, alguém entrasse em silêncio, no escuro, segurando uma vela e dissesse o poema de João Cabral de Melo Neto, “O artista inconfessável”, que começava com versos: “... Fazer o que seja é inútil / Não fazer nada é inútil”. Figura 7 – Poema datilografado por Euvaldo, 1979.
Fonte: Acervo de Coelhão.
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O rigor e o cuidado com todos, sempre apoiando e participando significativamente na produção de shows, peças teatrais, exposições, contava com a resposta solícita aos seus pedidos de opinião sobre o próprio trabalho, acatando muitas das sugestões.
Figura 8 – Texto original de Euvaldo datilografado por ele, 1979.
Fonte: Acervo de Coelhão.
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2.2. Círculo de Convivência Cultural – outras ligações
Em meados de 1973, Carlos Alberto Vasconcelos conheceu Euvaldo Macêdo Filho. Moravam no mesmo imóvel, na rua Cel. João Evangelista, no centro da cidade. Carlos Alberto no térreo e a família de Euvaldo, ainda solteiro e estudante em Salvador, no apartamento do pavimento superior. Carlos Alberto ouvia música com o volume alto, principalmente Chico Buarque e Edu Lobo. Euvaldo, quando vinha para Juazeiro, lá de cima, pedia música. Gostava da Tropicália, outra feição da MPB. Aproximaram-se nessa discussão e conseguiram estabelecer uma amizade bastante significativa para os dois. Pedro Raymundo Rodrigues Rêgo tinha um escritório, também na rua Cel. João Evangelista, quase vizinho dos dois. Tempos depois, com Euvaldo já morando definitivamente em Juazeiro com Odomaria, acontece uma aproximação dos três, que passam a discutir cinema. Carlos Alberto coloca que o interesse de Euvaldo por cinema deve-se principalmente ao fato de “ter acontecido um flerte do Tropicalismo com Glauber Rocha”, levando-o inclusive, a partir dali, a “demonstrar uma atenção especial pela fotografia”. Nas conversas entre os três, Pedro falava de coisas que já tinha tentado fazer em Juazeiro, as decepções. Porém, naquele período e momento, havia um pessoal novo agindo na cidade. A AUJ surgira, o Grupo Êxodus existia e se mantinha atuante. Pedro então reacendeu todos seus sonhos pessoais. Fez planos. Conhecia pessoas de outras gerações que, também como ele, se empenharam em outros tempos para produzir cultura e arte.
Eu já conhecia Pedro, tinha sido sua aluna, mas não conhecia esse lado, até ali. Passei a conhecer nesse contexto, já com Euvaldo. Ai surgiu essa idéia. Juntar pessoas. Mas, aquelas pessoas já tinham outras histórias, outros projetos anteriores ao projeto que nos interessava. Esse ambiente de criação do CCC, ambiente cultural, foi muito rico por causa disso, juntar gerações (Depoimento de Odomaria Macedo em 07/02/2014).
Os três, com Pedro Raymundo coordenando, conseguiram formar um novo agrupamento, o Círculo de Convivência Cultural – CCC, que logo distribuiria um manifesto, com seus propósitos e objetivos. Pretendia-se estudar, pesquisar,
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discutir, preparar e trabalhar projetos culturais artísticos. Havia a intenção de se criar um banco de memória cultural, incentivar a produção literária regional, movimentarse no sentido de favorecer a criação de um mercado de arte, trocar informações e elaborar uma publicação periódica do movimento. As reuniões semanais, em um imóvel de Pedro, à “praça da Bandeira”, permitiram o encontro de muita gente, já que o Círculo se colocava como aberto e amplo. Quem tomava conhecimento e queria participar, comparecia para assistir e emitir opiniões a partir do assunto em estudo e posto em discussão, ou sobre a palestra e a temática exposta por algum convidado. Os parceiros mais constantes de Euvaldo, nos processos de criação dentro do Êxodus, também faziam parte desse novo agrupamento e, aí mais uma vez, muitas ações aconteciam de forma natural, lastreada por uma disciplina de estudos e pesquisa, uma exigência sistêmica de estrutura e prática “circulista”. Nesse convívio, Pedro e Euvaldo aproximaram-se muito mais um do outro, identificando-se de forma tal, que levou Pedro a pensar em publicar poesias que nem se sabia que ele as tinha. Outra coisa inédita dessa relação, é que Euvaldo conseguiu que Pedro voltasse a escrever poesia. Pedro renasceu. As provocações de Euvaldo para que ele arriscasse poesia, possibilitou a descoberta de que ele, Pedro, já experimentara isso antes. Em resposta, produz o poema concreto intitulado “Formigas”, que faria parte da primeira publicação do coletivo. O grande efeito dessa convivência para Euvaldo, segundo Odomaria, “foi se tornar mais consciente da opção dele pela Arte. Decidindo fazer isso e não outra coisa”. Foi nesse período que Euvaldo resolveu fazer a viagem pelo São Francisco, para fotografar. Outros projetos, dentro do Círculo de Convivência Cultural, viabilizaram alguns dos objetivos especificados no manifesto, observando-se uma prática que já ocorria dentro do Grupo Êxodus, a de se criar e decidir coletivamente. A primeira publicação do CCC seria um exemplo disso. Já com algum tempo de existência, reuniões, amostragens e debates em torno dos produtos de cada um ou do conjunto, decidiu-se pela feitura de uma publicação que acolhesse parte do material que fosse selecionado. A discussão, em torno do formato, permitiu uma decisão criativa: a cada edição, já que se pretendia uma continuidade e frequência, a maneira de apresentar e chegar ao público seria nova, diferente. Isso favoreceu a criatividade e as pretensões do agrupamento.
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Figura 9 – Poema “Formigas”, de Pedro Raymundo, 1980.
Fonte: Acervo de Odomaria Macedo. Figura 10 – AIÓ nº 1, 1980.
Fonte: Acervo de Odomaria Macedo.
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O título seria o mesmo, AIÓ, uma sugestão do Dr. Expedito Nascimento, advogado, pai do poeta Expedito Almeida, também presente no processo decisório. Os textos, poemas, cartuns e charges escolhidos seriam colocados em folhas soltas, dentro de um envelope pardo. Na parte externa, a palavra AIÓ, serigrafada em preto, ocupava quase toda a superfície de um dos lados. Participaram com seus produtos as seguintes pessoas: Coelhão, Luis Galvão, Pedro Raymundo, Euvaldo, Mauriçola, Tatau, Demar Guerra, Pedro Júnior, Armando, Julhão, Manuca, Babá, José Eurico Pereira de Oliveira (Dedé), Aristides Araújo. Figura 11 – Abertura e capa do livro “Curare”, 1981.
Fonte: Acervo de Odomaria Macedo.
O AIÓ Nº2 teve uma forte influência de Euvaldo para se decidir o que publicar. Segundo Carlos Alberto Vasconcelos, Pedro Raymundo, que já tinha o livro de poemas pronto, colocou nas entrelinhas essa possibilidade. Euvaldo, no entanto, argumentou e convenceu a todos, inclusive Pedro, que se devia publicar o livro “Curare”, com poemas de Expedito Almeida, ficando o de Pedro para o AIÓ Nº3. Euvaldo admirava profundamente a poesia de Expedito, seu amigo, e constante parceiro na troca de opiniões. Empenhou-se com esmero na produção do livro “Curare”, materializando o AIÓ Nº2, conforme o propósito e decisão conjunta,
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em formato e estética diferente do Nº1. Seria uma encadernação em espiral preta, tamanho ofício, textos verticalizados, capa em papel linho branco, programação visual e informações na cor vinho. Euvaldo e Pedro Raymundo, juntos, escreveram o prefácio e Pedro assinou. O AIÓ nº3, que seria o livro de Pedro Raymundo não chegou a sair em face da morte repentina de Pedro em 1981. O Círculo de Convivência Cultural, impactado por tal fato e sem a sua presença e coordenação, encerraria suas atividades. Como já foi dito no Capítulo 1, tempos depois, a família de Pedro convidou Euvaldo para preparar a edição de “O pássaro que criou raízes” que Pedro Raymundo havia escrito. Euvaldo aceitou, aproveitando para se refazer da perda na concretização do projeto do amigo. O livro, com capa do também amigo de Pedro, o artista plástico Juarez Paraíso, e prefácio de Euvaldo, foi lançado em praça pública, em frente à Catedral de Juazeiro com os bancos do templo do lado de fora, por sugestão e acordo de dois outros amigos do poeta, Expedito Nascimento e Dom José Rodrigues, bispo de Juazeiro. Era final de 1981.
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3. O FOTÓGRAFO E UM LIVRO Imagem 6 – Euvaldo pensativo, 1981.
Fonte: Acervo de Odomaria Macedo.
3.1. Um entendimento necessário em prosa, em verso, em olhares
Para Salles (2008, p.17), é necessário “pensar a criação como rede de conexões, estreitamente ligada à multiplicidade das relações que a mantém”. No processo de construção de uma obra, é evidente que, ao longo de seu percurso, a rede ganha complexidade à medida que novas relações vão sendo estabelecidas. Um sistema complexo que se amplia nos contatos, nas associações, nos elos que, sucessivamente, vão se estabelecendo. Isso acontece com o artista que busca, nas aproximações e interligações, uma provocação de estímulos que disparem novas possibilidades, seja em caráter individual ou coletivo.
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O leitor Euvaldo Macêdo Filho, o Grupo Êxodus e o Círculo de Convivência Cultural, já destacados neste trabalho, instituíram no seu caminhar uma série de conexões que se foram enredando e traçando um percurso na história pessoal, coletiva e da própria cidade de Juazeiro e região. Um labor conjunto, sem prejuízo do trabalho ou dos interesses específicos de cada um. A obra e o artista, no diálogo com os coletivos e ainda em outras conexões do meio cultural, permitiram a multiplicação de possibilidades de linguagens e leituras. O leitor, aqui em referência, só pôde estender seu afã criativo, a sua pena e o seu olhar, suscitados através dessas interações. Euvaldo gostava de ficar no cais do Angarys, em Juazeiro, sentado na balaustrada de cimento, larga o suficiente para sentar e ficar balançando as pernas diante do porto e estaleiro, abrigo de muitas barcas, paquetes e sonhos. Ali, um escritório informal e ponto de encontro no fim da tarde para apreciar o balé das andorinhas, traçando no céu desenhos sucessivos como um caleidoscópio ininterrupto, sugerindo formas e ritmos diferentes a cada momento, impressionou o artista desde sempre. Ali também se via, logo abaixo, na faixa da areia, homens no bater do enxó, martelos, talhadeiras e betume calafetando embarcações, pescadores consertando ou tecendo redes. Mais afastado um pouco e à esquerda de onde Euvaldo ficava, bem na beira d’água, as lavadeiras sentadas em pedras ou bancos, esfregando, batendo roupa, as latas grandes de banha ou querosene improvisadas como panelas “cozinhando” as peças de tecido, muitas já estendidas na grama rala para “coarar” ou secar. Dali também se avistava a correria dos meninos brincando, os peixes sendo tratados, o desembestar das galinhas, pintos e patos e os porcos chafurdando na lama de alguns esgotos que desciam insistentes em direção ao rio. À direita, divisava-se o matadouro de gado da cidade, com seu córrego vermelho de sangue embrenhando-se pela margem. Euvaldo descobriu, daquele seu posto de observação constante, que os urubus moravam em Petrolina e todo dia vinham trabalhar em Juazeiro, estabelecendo uma ponte aérea no começo e fim do dia, concorrendo nas rotas com as garças e os jatos, esses bem altos.
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Quando começou a fotografar, esse foi seu primeiro cenário. Ensaio para vôos mais altos. Os urubus e as garças já batiam asas em seus versos, povoando sua poesia.
3.2. A descoberta de um estúdio fotográfico dentro de casa
Todo dia Euvaldo escrevia. “Todo dia ele trazia algo escrito, e geralmente era algo escrito com o rio. Ele já era muito ligado nessa história do rio”, conta Odomaria ao se lembrar dos encontros entre eles, nos fins de tarde no Angarys. Um dia, Euvaldo trouxe para essa rotina uma máquina fotográfica. Uma máquina simples, “comum, não sei o nome, quadrada, com uma cobertura em couro e botão de pressão”, segundo a então namorada, Odomaria. Era uma máquina pertencente ao pai dele. Hugo Macêdo, único irmão de Euvaldo e mais novo que ele, interessara-se por fotografia no contato com o proprietário de um estúdio fotográfico, localizado na esquina da rua onde moravam, à rua Cel. João Evangelista. Hugo aprendeu a fotografar, a revelar em preto e branco, arriscando-se em trabalhos esporádicos, documentando festas particulares e outros eventos em caráter semi-profissional. Hugo comprou o equipamento fotográfico do amigo e montou um pequeno laboratório para revelar suas fotos em casa. Isso despertou a curiosidade de Euvaldo pelo processo, que passou a acompanhar e participar, com alguma freqüência, das atividades de revelação das fotos produzidas pelo irmão. Carlos Alberto Vasconcelos, Pedro Raymundo Rêgo e Euvaldo Macêdo Filho, vizinhos, discutiam amiúde literatura e cinema. As conversas sobre cinema levaram, segundo Carlos Alberto, a despertar em Euvaldo um olhar para fotografia e sua qualidade. No Grupo Êxodus, as conversas envolvendo plasticidade, faziam parte das constantes buscas de entendimento para dar suporte a cenários, decorações, exposições. Alguns desenvolviam seu próprio trabalho em artes plásticas, outros experimentavam fotografia, inscreviam-se e participavam de salões nessas modalidades artísticas. Euvaldo se aproximara desse conjunto, conectando-se com seus interesses e opções criativas, buscando reciprocidade na atuação colaborativa.
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“Há algo nas propriedades associativas à interatividade, que é importante ser destacada, para compreendermos as conexões das redes de criação: influência mútua, algo agindo sobre outra coisa e algo sendo afetado por outros elementos” (SALLES, 2008, p.24). Propriedades detectáveis nos procedimentos, na prática norteada pelo grupo que Euvaldo passou a integrar e, também, no grupo de estudos com Carlos Alberto e Pedro Raymundo que resultaria, na criação do Círculo de Convivência Cultural.
3.3. “Tristes Margens” a primeira exposição
Um coletivo, uma rede ampliada que ligou elementos do Êxodus a outros tantos atores, de outras gerações e atividades não necessariamente artísticas, que se dispunham a trabalhar em conjunto em projetos de interesse cultural. É assim que a influência mútua detectada nas ações e produtos permitem uma configuração interativa, propiciada por identificações de propósitos viabilizados nas trocas. A aproximação das experiências permitiu novos trabalhos e a possibilidade de ampliação de caminhos a percorrer. Mesmo que Euvaldo nunca tenha deixado a escrita, pois o escrever era uma coisa muito fluente no seu dia a dia, o foco foi sendo dado à fotografia que, aos poucos, vai se instalando na sua prática criativa. Outro tipo de texto, outro instrumento para ler o mundo. Ali no Angarys e na luz fina da tarde começou outro processo criativo, dentro do seu projeto poético. Os resultados iniciais das fotos realizadas no Angarys foram reveladas no laboratório caseiro do irmão Hugo, que ficou admirado com a qualidade, e relata que “ele dava assim à fotografia uma certa poesia, você não via a fotografia como coisa comum, você via beleza... Eu comentava, que maravilha, rapaz!” Depois de muita experimentação e quando se sentiu seguro, influenciado pelas avaliações de interlocutores, como Antonio Carlos Tatau, que também fotografava, Carlos Alberto, parceiro antigo nas discussões sobre cinema, literatura e música, Antônio Carlos Coelhão, artista plástico e frequentador do escritório informal no Angarys, parceiro nas discussões sobre estética e ações de grupo, resolveu expor o que achava mais significativo do seu ensaio fotográfico no Angarys.
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O conjunto fotográfico intitulado “Tristes Margens”, apresentava uma leitura da paisagem no Angarys, fruto de sua diária e constante observação. Ali, naquele pedaço de margem, seu olho analisou, mapeou e determinou o cenário e seus componentes. Além do tradicional preto e branco na apresentação das fotos, ele experimentou padrões metálicos, prata, ouro ou cobre, explorando novas possibilidades e efeitos dentro do monocromatismo. As lavadeiras, os pescadores, os barqueiros, os vendedores, o pessoal da estiva, carroceiros, paqueteiros e as várias situações em que circulavam estes personagens tão presentes, no espaço em que se colocou como observador, constituíram-se na matéria-prima do registro de parte da cultura ribeirinha ali percebida.
3.4. Ampliando a rede de conexões
Euvaldo, que já abandonara o curso de Economia, e posteriormente o de Jornalismo em Salvador, decidiu, influenciado por Odomaria, cursar Administração de Empresas na FACAPE – Faculdade de Ciências da Administração de Petrolina. Ele e Odomaria foram aprovados no vestibular e ingressaram na instituição de ensino superior. Lá, na mesma sala em que ele estudaria, encontrou Henrique Libâneo, que já era fotógrafo, gostava de poesia e admirava Euvaldo. Outro aluno da mesma sala, Paulo, também gostava dos mesmos assuntos, aproximaram-se e formaram um trio. Essas circunstâncias fizeram-no concentrar-se cada vez mais na fotografia. Euvaldo e Henrique Libâneo trabalharam em um projeto de documentação cinematográfica focado na interrupção da navegação no rio São Francisco, por causa da barragem de Sobradinho e seus desdobramentos. Esse filme não chegou a ficar pronto e as principais imagens registradas mostram o cemitério de barcas no porto acima da barragem. Como era comum em seu fazer artístico, outros integrantes dos coletivos participaram em várias fases da concretização deste trabalho. Por exemplo, o
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projeto de ilustração a lápis de cor para os créditos na abertura e no final do documentário, que seria desenvolvido por Coelhão. Novos elos foram, portanto, acrescentados ao enredamento estabelecido na multiplicidade de relacionamentos. Segundo Salles (2008, p.120), “aquilo que é configurado em determinado momento vai seguir sua história na construção da obra. Em outras palavras, um desses modos de interação pode ser detonador de outro”. Assim, nessas interações, Euvaldo tomaria decisões importantes. Segundo Odomaria, o marco definidor das escolhas de Euvaldo se deu a partir deste instigante poema, transcrito abaixo tal como ele grafou.
senhor guia da ponta do lápis que deu o desenho e a direção de minha primeira letra senhor guia da ponta do lápis que deu o motivo e a direção da minha primeira inspiração dai-me senhor; a liberdade de negar a idade dos hieróglifos a mesma saudade de não ter es crito nas paredes da caverna me governa a escrever na folha em branco do caderno de desenho do jardim da infância infinita maldita arte de rabiscar na pe dra mármore a forma de um coração como negação da palavra que lavra como flor sabor de canto primitivo odor de grafite palpite verbo ativo nociva escrita escrava da criação extremunção da palavra na hora da morte em que se escreve e escrava no pergaminho as dificuldades de criar em língua portuguesa um poe ma épico patético e acrobático como os lusíadas) (euvaldo macêdo filho
É nesse texto poético, em tom de oração ou prece, na interpretação de Odomaria, que ele estaria se referindo à sua história em relação a essas duas artes, escrita e fotografia e fazendo uma opção pela segunda.
3.5. A opção pela fotografia
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Euvaldo trabalhava com afinco e mergulhou no estudo da fotografia, desde quando se interessou por ela e seus desdobramentos. Tinha por mestres Henri Cartier Bresson e André Kertész. Nutria grande admiração pelo trabalho de David Hamilton. De Kertész, a fotografia pioneira e inovadora; de Bresson a concepção fotográfica do instante decisivo; de Hamilton, não o olhar para sensualidade das ninfetas, mas o despertar de um olhar para a infância que passou a utilizar no seu trabalho. Ele, Euvaldo, leu muito sobre os três e de Bresson e Kertész assimilou um olhar para o cotidiano, para o instantâneo, buscando o equilíbrio, colocando-se em uníssono com o movimento para interferir justamente no momento em que tudo se conjuga. Câmera na mão e olhar atento para intervir no instante exato, decisivo. Assim, Euvaldo na sua prática contínua, desde que adotara a fotografia como seu instrumento de ver, ler, dizer o mundo, sempre estabeleceu novas relações e, nas influências recebidas, reelaborou concepções, arriscando certezas. Seus cadernos de notas são um exemplo claro de seu envolvimento, de sua inquietude (em anexo, ver fotos de algumas dessas anotações publicadas no jornal “Navegando no Vale”, suplemento especial, p.4-5, por Almeida, em 23/11/1985). Algumas colocações observadas nesses chamados documentos de percurso, entre tantos possíveis, como destacados no capítulo 2 deste trabalho, possibilitaram os nexos que o artista estabeleceu com as informações que lhe chegaram em diversos níveis, no diálogo com suas inquietações e o processo criativo. Procurou anotar nos cadernos de rascunhos frases curtas e sintéticas, seus pontos de vista, afirmando na escrita a imagem buscada, sob que prisma, revelandose através dos dois tipos de texto. “minha fotografia é a visão crítico-lírica de aspectos da Realidade, faces da Vida” ou “Meus olhos vêem a poesia e a tragédia, só que eu prefiro a poesia” e também “PROCURAR SEMPRE: IMAGENS PALPITANTES DE VIDA E POESIA” (anotações de Euvaldo Macêdo). Em cada frase anotada colocou sua opção a partir de influências dos mestres de fotografia. Assim foi seu interesse pelo cotidiano, pela simplicidade, pelo essencialmente humano, aliando o documental a uma poética do instante decisivo, buscando, no registro de uma situação qualquer, o objeto da arte. Sobre esse entendimento e modo de registrar pode-se encontrar paralelo na colocação em que:
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Susan Sontag tem assinalado com propriedade o status duvidoso das fotografias concebidas como um fenômeno ‘artístico’ por seus autores, e em contraposição tem notado a maneira com que fotografias consideradas como documentais transcendem a conjuntura imediata em que foram criadas e fazem parte da atualidade do mundo da história da arte (TRONCOSO, 2011, p.162)7.2. Imagem 7 – Euvaldo registrando cemitério de barcas, 1981.
Fonte: Acervo de Odomaria Macedo.
Euvaldo percebeu as transformações ocorrendo nos dois universos em que transitava o seu interesse e imaginário: o rio e a caatinga. Olhar atento e treinado ao longo do tempo, em trabalhos e parcerias. A decadência da navegação comercial entre Juazeiro e Pirapora, ocasionada pela construção da Barragem de Sobradinho e a formação do lago para mover a hidrelétrica ali instalada, levou, num curto espaço de poucos anos, até a inauguração em 1975, a uma modificação de modos, costumes e a uma enorme alteração física da paisagem além do fim acelerado de diversas tradições. Euvaldo se pôs em campo para captar, nesse período, a vida em constante movimento e os rumos que se estabeleciam, flagrando o instante em seu equilíbrio
Tradução livre de: “Susan Sontag há señalado de manera certera el dudoso estatus de las fotografias concebidas como um fenômeno ‘artístico’ por sus autores, y em cambio há referido la manera em que fotografias consideradas como documentales tranciendem la conyntura imediata em que fueron creadas y forman parte en la actualidad del mundo de la história del arte” (TRONCOSO, 2011, p.162). 7
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nos muitos e fugidios momentos, em meio às mudanças e às novas configurações dentro da cultura. A morte repentina e prematura de Euvaldo aos 30 anos de idade, após uma cirurgia, o alcançou quando ele já tinha editado fotos suas, selecionadas para as mais conceituadas revistas nacionais especializadas no assunto e participado também de publicações no exterior. Além da primeira exposição, “Tristes Margens”, diversas exposições em espaços de grande prestígio como o MASP – Museu de Arte de São Paulo. De seu legado constam 12 mil negativos, um livro de poemas não publicado e cadernos de anotações sobre seus conceitos e inquietações. Entender Euvaldo e os processos criativos em que esteve inserido requer, também, atentar para o imaterial presente em fatos e situações onde a percepção atua em favor da intuição e que permeiam a criação, transformando os sujeitos e suas concepções, adentrando novas e reveladoras possibilidades. Sobre isso Ostrower (2004, p. 66) observa que “os processos de perceber e intuir são processos afins, tanto assim que não só o intuir está ligado ao perceber, como o próprio perceber talvez não seja senão um contínuo intuir”.
3.6. Outros espaços de trocas e envolvimento – João Gilberto e o canto do grilo
Caberia, no entendimento dos processos em exposição, perceber que Euvaldo, Euvaldão ou Charles, como muitas vezes assinava (ver texto no capítulo 2) sabia - por certo com muita sabedoria - que ao tempo de muita disciplina e trabalho teria que haver espaço para a boemia, outro momento de trocas e contatos. Outro tempo de ler, ver e beber poesia. Euvaldo gostava de Stravinsk, Wagner e João Gilberto. Era inevitável que Euvaldo e João – e seu violão - se tornassem grandes amigos e muitas madrugadas juazeirenses assistiram os dois e mais amigos em encontros inesquecíveis. Segundo o próprio Euvaldo, a magia de um desses encontros aconteceu certa noite no bar de “Nelito Costeleta” que ficava na Rua Góes Calmon, a chamada rua d’Apollo, em um casarão antigo onde hoje está a loja “Destaque”. Presentes, entre outros boêmios, estavam Edésio Santos, Mauriçola, João Duarte, Euvaldo, o próprio Nelito e João Gilberto. O bar, com as portas fechadas, pois Nelito não queria
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ter que atender freguesia, com uma boemia daquele porte acontecendo em seu recinto. João tocava e todos, no maior encantamento, escutavam. Em determinado momento, como relata o poeta Expedito Almeida (1985, p.5), para surpresa de todos, João parou de tocar e foi buscar outros acordes, acompanhando (nada mais, nada menos) o “canto” de um grilo intruso que apareceu no ambiente. Todos ali ficaram em uma espécie de “ioga de ouvido”. Um João e um grilo cantor desvendando o mistério. O universo estava ali, naquela sala, tudo em um só lugar, ao mesmo tempo, princípio e fim e o mais no meio. A reta e a curva. Tempo, tempo, tempo. Cada um viu, ouviu, leu. Euvaldo leu o imaterial, fotografou o invisível, tirou a pele da poesia, e sempre nunca mais foi o mesmo só naquele instante. Da lição nunca esquecida, buscou Euvaldo, a cada passo, perceber e retirar com precisão o essencial e necessário do cotidiano e transformá-lo em arte.
3.7. Conexões para um livro
Figura 12 – Capa do livro “Euvaldo Macedo Filho: Fotografias”, 2004.
Fonte: Elaborada pelo autor.
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Tempos depois, já refeitos do impacto da morte de Euvaldo, dessa perda insuperável e do seu silêncio, alguns de seus amigos e parceiros em vários trabalhos, sob a coordenação de Odomaria Rosa Bandeira de Macêdo, juntaram-se para buscar a edição de um livro que representasse, como registro, a obra fotográfica dele. A tarefa não seria fácil em função do grande número de negativos, deixados pelo fotógrafo. Henrique Libâneo, Carlos Alberto Vasconcelos e Antonio Carlos Coelhão, parceiros que conheciam muito do processo e da obra, conseguiram, depois de muito estudo e manuseio, selecionar um acervo representativo, aquém, segundo as conclusões da própria equipe formada para tal fim, das muitas possibilidades percebidas e descartadas. Não se conseguiu, à época, recursos ou patrocínio para a publicação. O plano, após várias tentativas, foi temporariamente deixado de lado, mas não esquecido. Já anos depois dessa primeira tentativa de colocar em livro um panorama da obra fotográfica de Euvaldo, Coelhão, Tatau e Chico Egídio juntaramse a Odomaria para nova empreitada nesse sentido. Chico Egídio, também fotógrafo, não convivera com Euvaldo, mas se interessara por sua obra e participou desses esforços. Tatau se afastou do projeto, mas permaneceu ajudando em algumas situações. Outro tempo e um novo olhar sobre o material disponível levou a equipe de estudos à conclusão de que era muita coisa para um só volume. Dividiu-se o conjunto selecionado em quatro linhas temáticas diferentes. O passo seguinte foi a decisão de publicar um caderno inicial que, com o aporte financeiro e empenho da VI CODEVASF, Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, sediada em Juazeiro, sob a superintendência de Alcides Modesto, editou-se o primeiro volume com o título “Euvaldo Macêdo Filho, Fotografias”, com 53 fotos em preto e branco. O livro buscou expor imagens consideradas como evidenciadoras de uma época, reconstituindo, a partir delas, um recorte da memória cultural da região beiradeira do São Francisco, aproximando rio e caatinga, ao tempo que levava, através de uma linha e fio condutor, o leitor e observador a um passeio por folguedos, brincadeiras, trabalhos, amores, humores, usos e costumes do universo percorrido.
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Pode–se ver aí, nas fotos, as lavadeiras que, desde os momentos iniciais do artista, nas suas leituras, deduções e conversas com parceiros no cais do Angarys, apareceram e permaneceram na sua obra. Lavadeiras ao sol e ao vento e, segundo o próprio Euvaldo em várias falas, em consonância com o princípio de Bresson de seu instante decisivo, buscando captar o balanço das ancas nos movimentos de lavar, bater, sacudir e estender a roupa, ao som dos cantos, uma semelhança com o requebrado e o ritmo do violão de João Gilberto. Nota-se, nesse percorrer, a presença das barracas de feira, tão comuns e familiares, reconhecíveis em qualquer lugar como coisa de todos, com sua miríade de produtos, fumo de rolo, raízes, garrafadas ditas medicinais, panelas, potes, vasos, cestas, o marasmo que às vezes tomava conta do ambiente, o sono incontido da pose vigilante, que o olhar atento do fotógrafo não deixou escapar. Presente nos registros, o vendedor mambembe de algum produto “miraculoso”, cheio de truques e rapapés para curar qualquer mal do desavisado passante, atraindo a curiosidade e praticamente “hipnotizando” o possível cliente, com seus jeitos e promessas de cura. Tem também o homem, um pai talvez, numa cena cotidiana e simples, brincando com a criança descontraidamente, carinhosamente. As fotos no livro, dentro da concepção estética e gráfica, dialogam e brincam de esconder com os poemas de Euvaldo, frutos de outra escrita, na produção de um novo texto visual, saltando e irrompendo de vez em quando na alvura da página, incisivos e exatos como a métrica fotográfica, irmãos de pai e mãe. as coisas vivem de aparências as casas tem suas fachadas o homem, às vezes, um bigode o mundo é feito de pedaços meu coração de diferentes aços (Euvaldo Macêdo in: ASSIS e outros (org.), 2004)
O livro de “Euvaldo Macêdo Filho, Fotografias”, aqui descrito de forma sintética, exibiu parte da obra construída sob várias influências e interações, evidenciadas por ele nas suas anotações, textos e falas. A análise, através das fotos constantes na publicação, em que a sua atuação nos coletivos refletiu-se também em muitos dos seus produtos, mereceria uma extensão que o presente texto não comportaria.
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Um exemplo que sugere um pouco dos relacionamentos e laços que ligam seu trabalho ao de outros parceiros: as fotos que, pela ordem no livro, ocupam as posições 48 e 53, (penúltima e última no anexo) intituladas respectivamente “São Francisco Santo” e “Dali aqui”. São fotos feitas a partir das discussões entre ele, Euvaldo, e o parceiro artista plástico Coelhão sobre as concepções estéticas de realidades possíveis. O próprio Euvaldo declarou ao artista Coelhão que havia feito ou buscado motivos a partir dessas conversas. Figura 13 – Livro “Euvaldo Macedo Filho: Fotografias”, 2004.
Fonte: Elaborada pelo autor.
O livro “Euvaldo Macêdo Filho, Fotografias”, em si, constituiu-se também dentro de um processo criativo. A aproximação de Odomaria e detentora do acervo, Coelhão, amigo e parceiro nos dois coletivos, o Êxodus e o CCC e Chico Egídio que não o conheceu ou teve com ele algum contato, os três, agrupados em torno da obra de Euvaldo, estabeleceram um trabalho de entendimento e busca. Dessa ação colaborativa, que passou por muitas das suas anotações e imaginário, trouxe ao empreendimento um livro de poemas, devidamente montado e ainda não editado. A possibilidade aí, de um diálogo possível entre escrita e imagem, passou a prevalecer. Favorecia, no entendimento dos três, a percepção poética do artista e a intuição de seu projeto, se um novo texto fosse criado com a junção das duas formas de ver, sentir e dizer o mundo. Assim foi feito. Um coletivo atuando criativamente, na amostragem da obra, que se mantém essencialmente intacta, mas estabelece um viés autônomo. Talvez
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ele, Euvaldo, nunca tenha pensado naquelas fotos como esse conjunto que se formou. A concepção é o trabalho de três artistas diferentes, um dos quais não teve com ele contato algum, com um fio condutor e uma coluna de sustentação que dispõe, a partir de um distanciamento, uma elaboração que, por certo, não seguiu a captura e o contexto do fotógrafo. Gerou-se outro produto plástico, em diálogo com o texto de seus poemas retirados do livro ainda inédito, possibilitando, com isso, que a rede de criação e suas conexões ganhem contornos renovados e atemporais.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para compor uma pesquisa, com foco em determinado período da produção cultural e artística de uma comunidade como Juazeiro, embora reconheça as dificuldades de constituir elementos e dados, entendo os benefícios e contribuições, que me trouxeram o emprenho para realizá-la. Acredito que uma das primeiras barreiras a ser transporta nesse mister, seja justamente a definição de um ponto de vista, com que se deva debruçar sobre o objeto da investigação. Como olhar para um determinado contexto, e ao expô-lo, tornar visível as várias nuances que o fizeram possível? Os artistas e o seu modo de atuar individualmente ou em grupo, conduziram o interesse da sondagem para dois coletivos e as interações criativas ocorridas ali. Entendo que a aproximação desse momento histórico permitiu a observação de um recorte no espaço e tempo, caracterizado por uma dinâmica movimentação artística local, que, por outro lado, esteve em sintonia com os eventos culturais em nível global. Ao encontrar um modo de ver e de onde partir, ainda careciam procedimentos e aportes que fundamentassem os contatos com a matéria da subjetividade representada na obra de cada um, do diálogo relacional e dos desdobramentos possíveis. No aprofundamento dos contatos com esse material, ficou evidente a multiplicidade de elos e nexos estabelecidos na formação e desenvolvimento dos agrupamentos artísticos e seus produtos. A criação em rede (SALLES, 2008) sugere uma interconectividade nos processos criativos, em múltiplas associações em expansão e diversos níveis de intensidade, que se encaixa no perfil e rumos dos coletivos estudados e seus componentes. Essa pesquisa traçou um percurso de acompanhamento, da presença e transito do artista Euvaldo Macêdo Filho, entre seus pares, e com sua ação influindo e sendo influenciado no contato múltiplo e criativo. As entrevistas, os relatos e os documentos acessados, pelo vasto que representam e levam a intuir, deixam a noção de que o presente trabalho de pesquisa teria muito o que ainda percorrer e se aprofundar no assunto proposto. Mesmo para o que aqui está delimitado, uma parte grande e significativa ficou de
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lado, à espera talvez de novas investidas que possam expor ainda com mais propriedade e riqueza, o muito antevisto. As conexões artísticas ultrapassam em muito a sua própria área, reverberam para outras instâncias, promovendo amizades, iniciando amores, reacendendo sonhos, transformando o lugar, reafirmando o humano no homem. E, ao criar, dá sentido à vida. Talvez seja esse o sentido da arte. Ao final do trabalho, surgiu uma indagação, não amplamente pensada ou discutida no âmbito do texto, e que seria interessante para uma reflexão maior dentro dos processos criativos, caracterizada pela ausência do artista, na manipulação de sua obra e a configuração de novos produtos. Desejo que outros, com suas leituras, estudos, pesquisas e atuação possam refletir e contribuir para o entendimento desses processos na construção cultural.
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NOTAS
1. Paulo Dourado nasceu em Salvador A., e iniciou sua carreira teatral aos 16 anos no Grupo Êxodus. Professor da Escola de Teatro e da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), desde 1980. Escreveu, dirigiu e montou diversos espetáculos. Em 1989, criou o grupo Los Catedrásticos. Atua fortemente na cena cultural baiana. http://teatropedia.com/wiki/Paulo_Dourado 2. Antonio Carlos Tatau, compositor e cantor, integrou o Grupo Êxodus e o Círculo de Convivência Cultural e outros movimentos culturais. Participou de vários festivais de música e alguns shows. Dirigiu o Centro de Cultura João Gilberto de 1987 a 1989. Em 2007, retornou à cena musical com a classificação de “Noite” no 5º Festival de Música Educadora FM. Em 2012, a sua canção "Às Vezes" foi gravada pelo grupo Dois em Um. Atualmente trabalha na elaboração do registro do seu trabalho musical. Depoimento à Antonio Carlos Coêlho de Assis, em 04/02/2014. 3. Maurício Dias, compositor, cantor e publicitário, participou do Grupo Êxodus e do Grupo Ovos Brasil juntamente com Luiz Galvão. Ao longo de sua carreira participou de diversos shows e festivais na Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro... Até o momento gravou 9 discos. Depoimento à Antonio Carlos Coêlho de Assis, em 08/02/2014. 4. Expedito Almeida, natural de Juazeiro-BA. Participou do Grupo Êxodus e do Círculo de Convivência Cultural. Cursou Filosofia na Universidade Católica de Salvador. Foi Diretor da Fundação Museu Regional do São Francisco, Coordenador do Centro de Cultura João Gilberto, Assessor da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia e Coordenador do Projeto Pelourinho Dia e Noite. Até então publicou os livros CURARE (Poesia) (1981), CANÇÕES DE ÁGUA DOCE (Poesia) (1989) e TECENDO LÃ JUNTO À FOGUEIRA (Poesia) (2003). Depoimento à Antonio Carlos Coêlho de Assis, em 01/02/2014. 6. Ricardo Castro, premiado pianista internacional, natural de Vitória da Conquista-BA., aos cinco anos foi admitido em caráter excepcional no Seminário de Música de Salvador e em 1984 ingressou no Conservatório Superior de Música de Genebra . Deu concertos nas mais prestigiosas salas no exterior com orquestras como BBC Philharmonic de Londres, English Chamber, Academy of St. Martin in the Fields, City of Birmingham Symphony, Tokyo Philharmonic, Orchestre de la Suisse Romande e Mozarteum de Salzburg. Gravou vários discos e fundou o NEOJIBA – Núcleos de Orquestras Juvenis e Infantis do Estado da Bahia, do qual é Diretor Geral e Artístico. http://pt.wikipedia.org/wiki/Ricardo_Castro
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REFERÊNCIAS ALMEIDA, Expedito. Canções de água doce. Salvador: Artes Gráficas e Indústria Ltda, 1989. ALMEIDA, Expedito. Euvaldo Macêdo Filho: o poeta do clic!. Navegando no Vale, Juazeiro, 23 nov. 1985. Cultura livre, 9. 4-5. ALMEIDA, Expedito. Tecendo lã junto à fogueira. Salvador: EGBA, 2003. (Coleção Selo Editorial Letras do Bahia, 90). ANDRADE, Rosane de. Fotografia e antropologia: olhares fora-dentro. São Paulo: Estação Liberdade; EDUC, 2002. BANDEIRA, Odomaria; BASÍLIO, Ana Maura; ASSY, Maria Rita; DEMARCO, Giovana; GALDIERI, Antonieta; ASSIS, Antonio Carlos Coêlho de; LOPES, Esmeraldo. (orgs.). O SONHO: quando acontece. Juazeiro-BA: 1984. (Centro de Cultura e Debate:mimeografado). BRITTES, Blanca & TESSLER, Elida (orgs). O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. CARDOSO, Antonila da França. Nosso Vale... seu folclore beira rio. Brasília: Thesaurus Edita, 1985. CASTRO, Ricardo. Dados biográficos, disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/ Ricardo_Castro. Acesso em: 15 de Fevereiro de 2014. DINIZ, Domingos; MOTA, Ivan Passos Bandeira de & DINIZ, Mariângela. Rio São Francisco: Vapores & vapozeiros. Pirapora: Ed. Autores, 2009. DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Martins Fontes, 2007. DOURADO, Paulo. Dados biográficos, disponível em: http://teatropedia.com/wiki/Pa ulo_Dourado. Acesso em: 15 de Fevereiro de 2014. DOURADO, Walter de Castro. Pequena história da navegação no rio São Francisco. Salvador: Editora Beneditina Ltda, 1973. FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Perspectiva, 1982. GARCEZ, Angelina Nobre Rolim & SENA, Consuelo Pondé de. Juazeiro: Trajetória Histórica. Juazeiro, Gráfica Gutemberg, 1992. GONÇALVES, Esmeraldo Lopes. Caatingueiros e Caatinga: a agonia de uma cultura. Maceió: Gráfica Grafipel, 2012.
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Lopes.
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Curaçá:
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Depoimentos
Antonio Carlos Tatau – entrevista a Antonio Carlos Coêlho de Assis em 04/02/2014. Registro em vídeo. Arquivo pessoal do autor do TCC. Carlos Alberto Vasconcelos – entrevista a Antonio Carlos Coêlho de Assis 10/02/2014. Registro em vídeo. Arquivo pessoal do autor do TCC. Expedito Almeida Nascimento Filho – entrevista a Antonio Carlos Coêlho de Assis 01/02/2014. Registro em áudio. Arquivo pessoal do autor do TCC. Hugo Macêdo – entrevista a Antonio Carlos Coêlho de Assis 07/02/2014. Registro em vídeo. Arquivo pessoal do autor do TCC. Maurício Dias – entrevista a Antonio Carlos Coêlho de Assis 00/00/2014. Registro em vídeo. Arquivo pessoal do autor do TCC. Odomaria Rosa Bandeira Macêdo – entrevista a Antonio Carlos Coêlho de Assis 07/02/2014. Registro em vídeo. Arquivo pessoal do autor do TCC.
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ANEXOS
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Parte do acervo com produção do percurso artístico de Euvaldo Macedo Filho
Capa da Antologia, 1978.
Capa da Antologia, 1975.
Cartaz da Primeira Exposição, 1977. Bilhete no Folder da Exposição “Tristes Margens”, 1977.
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Poema em SanduĂche de vidro, 1978.
Cartaz de Show, 1977.
Detalhe de Cartaz, 1978.
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Manifesto do CĂrculo de ConvivĂŞncia Cultural, 1980.
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Reproduções a partir dos cadernos de anotações de Euvaldo, 1985.
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Livro de Poemas de Euvaldo, nรฃo publicado,1979.
Capa de livro, 2003.
Pรกgina de Portfรณlio, 2004.
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As páginas seguintes, até a página 75, apresentam fotos do livro Euvaldo Macêdo Filho: Fotografias. 2004.
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APÊNDICE
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APÊNDICE
TERMO DO CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Entendendo a necessidade de estudar processos criativos e artísticos em Juazeiro na década de 1970 e início dos anos 1980, a Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF está desenvolvendo uma pesquisa que objetiva analisar as interações entre artistas e coletivos de artes.
Título de Pesquisa Euvaldo Macêdo Filho: um olhar para além da fotografia.
Pesquisa dedutiva com abordagem qualitativa
Objetivo Geral
Demonstrar a influência de Euvaldo Macêdo Filho nos coletivos artísticos juazeirenses e destes na sua obra.
Objetivo Específicos:
Evidenciar os coletivos artísticos, a participação do artista nas ações de grupo e sua disposição ao fazer e à interação. Especificar encontros, ações e aproximações em que as trocas estabelecem resultantes visíveis. Abordar a importância das conexões e o processo criativo gerado a partir dessa multiplicidade, para a obra de cada artista integrante desse fazer e em relação ao público a ser alcançado.
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Procedimentos: O estudo será realizado mediante o levantamento de documentos vários, e a sua análise associada aos relatos e depoimento coletados. Riscos e desconfortos: Não haverá riscos ou desconfortos para os participantes. Será mantida restrita a confidencialidade da identificação dos participantes. Custo/Reembolsos para o Participante: Não haverá nenhum gasto para o participante do estudo. Responsável pelo estudo: Se você tiver dúvidas sobre este Estudo poderá contatar o pesquisador responsável no endereço: PESQUISADOR: RESPONSÁVEL: Antônio Carlos Coêlho de Assis ENDEREÇO: Rua Sete de Setembro, nº 05 Centro. Juazeiro-BA. CEP: 48903-670 CONTATO: (74) 8815- 7177 ou accoelhodeassis@yohoo.com.br Dadas as informações acima, o(a) convidamos a participar deste Estudo, esclarecendo que sua participação não é obrigatória e que poderá desistir de participar a qualquer momento, sem que isso traga qualquer prejuízo à sua relação com os pesquisadores ou com a Instituição de Ensino que frequenta, ou trabalha. Se aceitar, o presente Termo de Consentimento Livre e Esclarecimento deverá ser assinado em duas vias, umas das quais será mantida no arquivo do estudo e a outra ficará com você. CONSENTIMENTO DE PARTICIPAÇÃO
Eu, __________________________________________________, declaro que li as informações contidas neste documento e tive a oportunidade de esclarecer dúvidas. Afirmo a minha aceitação em participar do estudo de Antônio Carlos Coêlho de Assis que tem como título: “Euvaldo Macêdo Filho: Um olhar para além da fotografia”. Foi-me garantido que posso retirar o consentimento a qualquer momento, sem que isso leve a qualquer penalidade. Declaro, ainda, que recebi uma cópia deste Termo de Consentimento livre e Esclarecido, que assino de forma livre e esclarecida.
Local e Data: ____________________________________ ___/__/____ Nome por extenso: ____________________________________________________
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Assinatura: __________________________________________________________ E-mail: ______________________________________tel: ____________________
Nome do pesquisador(a) _______________________________________________ Assinatura __________________________________________________________ Local e Data: _______________________________________________ __/__/___