Desequilíbrios - Figuras da Dança do Piauí

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VICTÓRIA MELO HOLANDA

DESEQUILÍBRIOS

FIGURAS DA DANÇA DO PIAUÍ

Livro reportagem apresentado ao curso de bacharelado em Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal do Piauí em cumprimento parcial das exigências para obtenção do título de Bacharel em Jornalismo

Orientador: Prof. Dr. Eliezer Castiel Menda

TERESINA/PI 2014



Expediente

Planejamento Gráfico: Victória Holanda Diagramação: Gilderlane Camelo Capa: Itallo Victor Foto de Capa: André Gonçalves



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Agradecimentos À fé e intuição que chamo de Deus, À minha mãe Maria de Lourdes Ribeiro de Melo, pela dedicação, encorajamento e amor incondicional e ao meu pai Francisco Carlos de Holanda, pelo amor e carinho; Ao meu irmão Itallo Victor de Holanda, pelo amor, carinho e compreensão fraterna; Aos familiares e amigos que, de alguma forma, torceram por isto, em especial ao querido Vicente de Paula, que me ajudou a transcrever áudios, ouviu minhas angústias artísticas e me ajudou a canalizar sensações; Aos amigos da Revestrés, pela compreensão das ausências, pela amizade, por me ajudar a entender o jornalismo cultural nesse um ano e meio de convivência e pela influência direta na maneira como esse trabalho foi construído; À Academia de Ballet Helly Batista, em nome do professor Helly Júnior e Dedila Lima, que sempre me receberam de portas abertas em meio aos percalços da universidade; Aos entrevistados Eleonora Paiva, Frank Lauro, Lenora Lobo, Lina do Carmo, Luzia Amélia, Marcelo Evelin, Nazilene Barbosa, Roberto Freitas e Sidh Ribeiro por serem solícitos, gentis e por se disponibilizarem a refletir sobre as questões propostas; À todos, meu carinho e agradecimento.


Foto: Sรกtiro Valenรงa


ÍNDICE Que dança? Entrevistas Para onde dançamos? Das Incertezas Referências Bibliográficas



A dança e a alma A dança? Não é movimento, súbito gesto musical É concentração, num momento, da humana graça natural. No solo não, no éter pairamos, nele amaríamos ficar. A dança - não vento nos ramos: seiva, força, perene estar. Um estar entre céu e chão, novo domínio conquistado, onde busque nossa paixão libertar-se por todo lado... Onde a alma possa descrever suas mais divinas parábolas sem fugir a forma do ser, por sobre o mistério das fábulas. Carlos Drummond de Andrade, In: Viola de bolso (1950-1967)



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Esse trabalho é uma grande desculpa para investigar uma inquietação pessoal. Várias delas. Tudo gira em torno de entender de que maneira se produz dança no Piauí. São muitos pormenores complexos dispostos em uma emaranhada teia de singularidades. Não é o objetivo deste livro explicá-los e, muito menos, tratá-los de maneira generalizada de modo que se enxergue tudo da mesma forma. Pelo contrário, é por perceber as diferenças e nuances que se fez esse trabalho, na tentativa de registrar a produção dos artistas locais de gerações diversas e que, muitas vezes, foi negligenciada pelo poder público e pela mídia. Dessa maneira, explica-se o formato que se dispôs o livro: Reuniuse figuras da dança do Piauí através de uma compilação de entrevistas e perfis. Alguns, pioneríssimos e, outros, das gerações seguintes, mas que tiveram contribuição relevante no cenário artístico. Alguns já faleceram. Outros continuam na insistência de produzir arte, esbarrando na falta de políticas públicas para a dança, lidando com a mídia que, muitas vezes, limita-se a divulgar uma agenda de apresentações. Greiner (2002) reflete em seu artigo O registro da dança como pensamento que dança, o que é possível registrar de uma dança, uma vez que ela própria é uma arte efêmera. Interessa o acúmulo de informações? Como sistematizálas? (...) À princípio, quando se discute qualquer tipo de arquivamento de informações, a palavra-chave que emerge é história. A história e as suas conexões, ou seja: história, memória, temporalidade, resistência, permanência, estabilidade. (GREINER, 2002, p. 02)

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É exatamente nesse sentido de resistência e permanência que se produziu esse trabalho. A dança local existe, porém o registro dela está fragmentado. É na tentativa de contribuir para perpetuar o pensamento e a produção de artistas relevantes da área que se procurou entrevistá-los a cerca de alguns pontos. Em nível de antecendentes, é necessário frisar que, apesar do subsídio pioneiro dado pelos próprios precursores, o balé clássico e a dança contemporânea só chegaram ao Piauí décadas após manifestações folclóricas já acontecerem em cidades do interior do estado. O folclore piauiense, munido de tradição e linguagem popular, já se apresentava no interior do Piauí através do cavalo-piancó, bumba-meu-boi, quadrilha, a procissão do divino, entre outras danças, que foram inclusive inspirações para criações coreográficas contemporâneas. As várias manifestações populares de dança praticadas em cidades do interior do Piauí, a chegada de técnicas trazidas por artistas do resto do Brasil e o aparecimento de grupos artísticos na periferia da capital são aspectos consideráveis, porém igualmente complexos em que, considerou-se mais honesto que fossem tratados na própria fala dos entrevistados. Em caráter local, existem iniciativas que reverberam. Algumas existentes há muito tempo e vinculadas aos poderes municipais e estaduais e, outras, pontuais e até mesmo efêmeras, mas que contribuem para movimentar apresentações e eventos naquele momento realizadas. Sabendo que as próximas considerações não contemplam toda uma experiência em dança que precisa ser catalogada, decidiu-se por citar grupos e artistas que tiveram ressonância e persistem no fazer artístico. 16


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Existe o Balé da Cidade de Teresina, companhia municipal mantida pela Prefeitura de Teresina que completou 21 anos de idade. A companhia conquistou diversas premiações na década de 90 e se apresentou em vários estados do Brasil, inclusive no exterior, com apresentação na Argentina. Há a Companhia de Dança Luzia Amélia que, enquanto Balé Folclórico de Teresina estreou espetáculos como Mercado Central e A Dança do Calango, com apresentações na Alemanha. A coreógrafa Luzia Amélia mantém a Escola Balé de Teresina, academia de balé que funciona no centro da cidade e proporciona aulas de balé clássico e dança contemporânea para estudantes. No ano de 2014, em parceria com a Secretaria de Educação e Cultura do Estado-SEDUC, Luzia Amélia implantou o I Curso Técnico em Dança de Teresina, com certificação pelo Ministério da Educação e Cultura -MEC. No âmbito estadual, existe há 29 anos a Escola de Dança do Estado Lenir Argento, mantida pelo Governo do Estado, através da Secretaria de Educação e Cultura do Estado-SEDUC. Também de âmbito estadual, existe o Balé Popular do Piauí, que apresenta repertório com viés folclórico. As academias de balé clássico também são relevantes e fizeram parte da experiência da maioria dos profissionais na área hoje. As mais tradicionais são a Academia de Ballet Júlio César, a Academia de Ballet Helly Batista e Le Ballet Estúdio de Dança. Nos últimos anos, houve uma maior pulverização de novas academias de balé, com espaços abertos não só no Centro ou na Zona Leste de Teresina. Ainda nos anos 90, mas principalmente nos anos 2000, outras referências de dança surgiram na cidade. Além da participação dos artistas da 17


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época em festivais competitivos em nível nacional, bem como residências no resto do Brasil e no exterior, novos nomes surgiram e formam os artistas que propõem novas linhas de pensamento da dança. Nesse sentido, surge em 2006 o Núcleo de Criação do Dirceu no Teatro João Paulo II que funcionou em parceria com a Prefeitura Municipal de Teresina até 2009. Desde então, os artistas se reestabeleceram no Galpão do Dirceu, no mesmo bairro e propõem uma linha de criação vinculada às propostas de Marcelo Evelin. De maneira relativamente recente, os editas de incentivo à cultura também fizeram parte da maioria dos financiamentos para dança na cidade. Em nível local, Lei A. Tito Filho e Sistema de Incentivo Estadual a CulturaSIEC e, principalmente, patrocínios federais do Ministério da Cultura através da Funarte consistem no fomento para a dança, em que, Galpão do Dirceu e Organização Ponto de Equilíbrio-OPEQ possuem projetos aprovados. Portanto, nos anos 2000, houve uma maior popularização de novas linhas de pensamento da dança, o surgimento de artistas independentes, a maior busca por criações desatreladas ao modo de criação convencional e maior abertura e interesse por parte dos artistas em refletir sobre os processos culturais em que se vive. Percebeu-se, portanto, uma efervescência produtiva, que não foi registrada de forma contemplativa. Diante de tantas manifestações ecléticas, é na diferença, então, que acredita Setenta (2008). Em seu livro O fazer-dizer do corpo, Jussara Sobreira Setenta destaca que as diferentes formulações de escolhas coreográficas não classificam artistas em situações opostas e, muito menos, considera valorações de “melhor” ou “pior”. 18


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A indicação da diferença nos fazeres em dança, não supõe valores qualitativos nem inclinação para classificação em grupos opostos. A abordagem da diferença é feita para ressaltar modos e estratégias distintas que se apresentam nas experiências desse fazer artístico. O tratamento dado ao corpo que se move, o entendimento de como o corpo resolve situações que se apresentam no processo de produção de falas, as maneiras de relacionarem-se com elementos externos e internos ao corpo, as escolhas no processo e para apresentação da fala, vão, então, se dar a ver nas diferentes formulações. (SETENTA, 2008, p. 42-43)

Portanto, levando em considerações essas nuances, o formato escolhido para refletir sobre alguns pontos latentes no cenário atual foram as entrevistas. Dar voz aos entrevistados na forma de pergunta-resposta para que falem sobre suas experiências pessoais a cerca de determinados pontos foi o meio mais relevante que se encontrou para que fiquem claras posições, aspectos e a veracidade de uma reflexão. Perceber variantes na fala do entrevistado, perspectivas pessoais e o envolvimento dele com determinados fatos foi o aspecto jornalístico que se quis ressaltar com este formato. As figuras em destaque são Eleonora Paiva, Frank Lauro, Lenora Lobo, Lina do Carmo, Luzia Amélia, Marcelo Evelin, Nazilene Barbosa, Roberto Freitas, Sidh Ribeiro, Helly Batista e Lenir Argento, sendo que os dois últimos já faleceram e foram dispostos em formato de perfis para que se registre informações biográficas e breves depoimentos dos outros entrevistados sobre eles. Uma ressalva para que se compreenda a estrutura do livro é que a 19


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figura de Eleonora Paiva também está disposta em formato de perfil. Apesar da expressa disponibilidade em colaborar, realmente a distância e a dificuldade de comunicação, visto que ela, hoje, reside na Holanda há 26 anos dificultou a realização da entrevista. Como pioneira e imprescindível na realização desse trabalho, sua trajetória foi disposta em formato de perfil também. Podemos destacar artistas que foram fundamentais no desenvolvimento da dança clássica e ao trazer técnicas da dança contemporânea. De maneira pioneira na dança clássica está Lenir Argento, grande precursora do balé clássico no Piauí; sua sobrinha Eleonora Paiva, fundou o primeiro grupo de dança do Piauí chamado Avoantes; Helly Batista, que trouxe vários artistas para dar workshops no Piauí; Lenora Lobo, Lina do Carmo e Marcelo Evelin que, cedo, tiveram a chance de estudar em outros lugares como Rio de Janeiro e exterior. Tem-se ainda Frank Lauro, que trabalhou com seus conterrâneos e dirige até hoje o Balé Popular do Piauí; Sidh Ribeiro e Roberto Freitas, com uma trajetória em comum com o Balé da Cidade de Teresina; Luzia Amélia, que fundou o Balé Folclórico de Teresina que, mais tarde se tornaria Cia Luzia Amélia e Nazilene Barbosa que foi integrante de companhias como Balé Teatro Guaíra e Quasar Cia de Dança. O objetivo deste trabalho é destacar personalidades da dança no Piauí que a introduziram a partir da década de 70, trouxeram ou trabalharam com artistas do Brasil e do mundo e desenvolveram ações que possibilitaram a criação de grupos, escolas e cursos. Tem-se com isso a tentativa de investigar os primeiros passos na área da dança e perceber como se trabalha hoje, gerando reflexões sobre a atualidade, bem como registrar o trabalho desses 20


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bailarinos, coreógrafos, criadores e professores. Na dança do Brasil há muita história ainda para ser contada. No momento em que não há memória, entramos numa amnésia generalizada, e o novo vem desprovido de referências, num eterno refazer, por vezes involuntariamente esvaziado de significado pela repetição. Nos processos de vida, morte e sobrevida, vemos nos traços tangíveis uma atividade sempre recomeçando e renascendo. Não se procura congelar testemunhos ou uma personalidade, mas tornar mais vivo, ressignificando por dentro e atualizando o que se passou. O esquecimento é por sua vez, condição necessária para a criação. O esquecimento positivo a favor de uma via em nascimento. (BOGEA, 2008, p.80)

Com isso, convidou-se os entrevistados a refletirem sobre alguns pontos considerados latentes, principalmente nos últimos cinco anos. Recentemente, tem-se discutido muito sobre a formação em dança no Piauí. As questões giram em torno da falta de uma Graduação em Dança na Universidade Federal do Piauí-UFPI, a recente criação de um Curso Técnico em Dança através da Secretaria da Educação e Cultura do Piauí-SEDUC e o surgimento de uma pós-graduação em Dança e Consciência Corporal por instituição particular e, com isso, questionamentos sobre o mercado na área. Além disso, instigou-se os entrevistados a discutirem sobre políticas públicas para dança no Piauí. O sucateamento do Teatro João Paulo II, as frequentes reformas do Teatro 4 de Setembro, a sub-utilização do Teatro do Boi, a ineficiência de leis municipais e estaduais como SIEC e A. Tito Filho, a falta de manutenção de antigos projetos, a falta de iniciativa para novos pro21


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jetos e a inexistência de um Fundo de Cultura, bem como a criação de uma Secretaria de Cultura, visto que se tem apenas fundações. A lista de problemas é grande e foi discutida em alguns momentos como fóruns municipais e estaduais de cultura e em um movimento dos artistas da dança que passaram a se reunir a partir de 2012 chamado Conversas de Dança. Outro ponto abordado no roteiro de perguntas diz sobre a cobertura jornalística para a dança. Apontada muitas vezes como deficitária em todo o âmbito artístico, investigou-se como os entrevistados enxergam esse ponto no cenário local. Visualizada como superficial ou divulgadora de agendas culturais, a mídia foi um dos pontos-chaves da maioria das conversas. Entre outras questões, o objetivo deste trabalho, portanto, não diz respeito sobre a virtuosidade da dança, muitas vezes enxergada de maneira fantasiada-principalmente a dança clássica - ou de maneira até mesmo pitoresca em outros aspectos. É uma tentativa, na verdade, de tornar duradouro o pensamento dos entrevistados sobre essas questões comuns, bem como registrar a produção e informações biográficas dessas figuras para que se contribua com a memória e o registro da dança no Piauí, iniciado por trabalhos como Piauienses em um mundo sem fronteiras, de R. N. Monteiro de Santana e, mais recentemente, Ousadia - Vinte Anos de História do Balé da Cidade de Teresina, de Roberto Freitas e Flávio Brebis.

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Lenora Lobo

- Morada interior -

Fotos: Sátiro Valença 23


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Dançou em Pernambuco, Rio de Janeiro e Inglaterra. Tendo como mestre Klauss Vianna, Lenora Lobo criou um método registrado em dois livros e acredita: “A técnica é o meio, não é o fim”.

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O pai, engenheiro civil e interessado em literatura tirou seu nome de batismo de um poema. A família é descendente de sírios e, desde pequena, interessava-se por dança. De Floriano, no Piauí, morou em Pernambuco, Rio de Janeiro e estudou na Inglaterra. “Eu convivi com muitas danças populares em Floriano, o carnaval, as festas juninas, o bumba-meu-boi, o reisado”. Na infância, ganhou do pai livro de balé de Anna Pavlova. “Eu tive contato com esse mundo do balé, fiquei fascinada”, diz Lenora Lobo, bailarina e coreógrafa, que hoje reside em Brasília e concedeu entrevista através do Skype¹. Com cerca de 9 anos, os pais a mandaram, junto com a irmã, para estudar em Olinda, Pernambuco. “Fomos morar com uma tia. Lá, realmente foi o início do meu contato com a dança cênica”. Entre 1967 e 1969, época em que morou na terra do frevo, a mãe achou que Lenora sofria de um desvio nas perna e levou a filha ao ortopedista. “Eles me passaram um tratamento absurdo em que eu dormia com tábuas amarradas nas minhas pernas pra ver se minha perna crescia reto. Minha tia ficou muito revoltada e voltamos ao médico: ‘Então, a senhora faz o seguinte, bota ela no balé clássico’. E foi isso que aconteceu. Acabei alinhando as minhas pernas com o balé”, conta. Os pais voltaram para Teresina e trouxeram as filhas, no início da década de 70, Lenora então estava com 12 anos. Aos 15 morou em Houston, nos EUA para fazer intercâmbio. “Morava na casa de uma família protestante que não gostava de dança e eu não podia fazer minhas aulas”. Voltou para Teresina aos 17 anos e os pais a mandaram para o Rio de Janeiro para prestar vestibular. “Era apaixonada por dança, mas meu pai dizia: ‘Dança não é profissão, dança é hobby’”. Nessa época, não tinha 25


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faculdade de Dança, nem no Rio de Janeiro. “Ai, acabei escolhendo Arquitetura”. Entre réguas e compassos, voltou a fazer aulas. “Eu quis mesmo ir atrás de um bom professor de clássico e me deparei com um mestre chamado Johnny Franklin”. Trabalhou com Johnny Franklin enquanto fazia Arquitetura. Dividia-se entre os projetos e as aulas de clássico. Ainda no Rio de Janeiro, chegou a conhecer Klauss Vianna, que viria a se tornar seu grande mestre. “O Klauss me convenceu: Para com isso, você sai todo dia com esses pés sangrando dessa sapatilha de ponta, já chega, vamos fazer outro tipo de dança”. Na capital carioca, trabalhou com Marly Tavares e Lenny Dayle. “Eu nunca gostei de um estilo só”. Até que conheceu o grupo Coringa, da uruguaia Graciela Figueroa. “Fiz aula com o Coringa e fiquei enlouquecida porque era completamente diferente daquilo que eu via no clássico, no moderno. Foi onde conheci Carlos Affonso, que se tornaria um grande parceiro”. Apesar do estímulo que todos esses estilos lhe causaram, sentiu falta das aulas de clássico e ainda chegou a ser aluna de Tatiana Leskova e Eugênia Feodorova. “Isso eu já estava no quarto ano de Arquitetura, dizendo: Eu acho que com a dança contemporânea eu posso ser uma profissional”. Formou-se em Arquitetura em 1979, aos 22 anos. Já atuando e montando suas próprias coreografias, Lenora junta-se com Rita Vercesi e começa uma pesquisa sobre a cultura nordestina, indo para Olinda e por lá ficando por seis meses. No processo, fizeram aulas com o Antonio Nóbrega, com o Balé Popular do Recife e estudou cirandas, cocos de roda, repentes, que deram origem ao trabalho Fragmentos. 26


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“Eu não queria ir para a Europa, sem saber direito da minha terra. Porque uma coisa que sempre me irritou é: Por que a dança brasileira cênica tem que ser sempre essa dança colonizada, essa dança que vem da Europa, dos EUA? Eu nunca concordei com isso. Nesse momento, eu faço a primeira tentativa de buscar na dança popular, algo de algum corpo brasileiro”, questiona. Lenora tomou conhecimento do Laban Centre, em Londres, para onde escreve e recebe material. “Eu realmente achei o meu lugar, é lá que eu quero ir”. Permaneceu no centro de 1980 a 1982 e foi aluna de Valerie Preston, uma das sucessoras de Rudolf Laban, considerado o maior teórico da dança do século XX e conhecido como o pai da dança-teatro. “A gente tinha aula de improvisação, de crítica para dança, de anatomia, de história da dança. Isso coloca os pingos nos “is” do que é a dança para mim”. Volta ao Brasil em 1983 e procura Maria Duschenes em São Paulo, introdutora do método Laban no Brasil. “Os melhores profissionais de São Paulo passaram por ela, principalmente da dança moderna”. Passou pelo Departamento de Pesquisa do Centro Cultural São Paulo mas foi o reencontro com Klauss Vianna que modificou sua trajetória. “Nesse momento, eu digo que eu fui agraciada. Não encontrei nada na Europa parecido com o trabalho do Klauss”. Foi quando Klauss Vianna assume a direção do Balé da Cidade de São Paulo e Lenora Lobo se torna sua assistente. “Foram os anos mais ricos em termos de formação. No Laban foi super rico para eu entender o que é um mundo acadêmico, mas com o Klaus, foi um trabalho empírico, vivencial, corporal, de carne e osso, durante quatro anos, que mudou toda a minha concepção de corpo”, considera. 27


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Em 1986, a família encontrava-se em Brasília e Lenora se muda para lá. “Disse para o Klaus: ‘Eu preciso ficar só porque eu preciso processar toda essa vivência’”, diz. Em 1987, criou seu primeiro solo em parceria com a conterrânea Eleonora Paiva. “Foi quando eu também quis me experimentar como intérprete-criadora e chamei a Eleonora Paiva para me dirigir. Foi um solo que se chamava Cogito e era em cima das poesias de Torquato Neto”. O solo fez turnê pelo Nordeste e se apresentou em Amsterdã, em 1989. Os primeiros esboços da Alaya Companhia de Dança, que resiste até hoje enquanto núcleo de pesquisa, surgiram nesse momento, a partir de uma oficina que Lenora dava no Teatro Nacional. O termo budista Alaya, que significa morada interior, regeu a ideologia do grupo. “Eu dei uma grande oficina lá e a turma que ficou fazendo aula comigo foi a turma que gerou o Alaya”. Reconhecida por um levantamento do Projeto Itaú Cultural como uma das poucas companhias de dança contemporânea do país com 18 anos ininterruptos de existência, a Cia Alaya Dança foi criada em 1989. “Resolvi abrir uma escola. Realmente aluguei uma sala, tirei alvará e abri um espaço que se chamava Alaya Arte do Movimento Estúdio de Dança. Lá, eu realmente coloquei tudo que eu acreditava”. A companhia estreou em 1990, no espetáculo Terra. “A turma do Alaya disse: ‘A gente quer entrar no palco com você e dançar’. Aí eu, loucamente, coloquei todo mundo no palco junto comigo”. Paralelo ao estúdio, surge o núcleo de pesquisa formado pelos artistas pesquisadores que trabalhavam com Lenora, o Núcleo Alaya Dança. Além disso, de 1993 a 1999, Lenora Lobo ministrou aulas no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília-UnB. “Todos esses 28


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anos foram muito produtivos. Tanto pro Alaya, quanto pra mim, enquanto professora e pesquisadora na UnB. Foi quando realmente a companhia se consolidou e eu me consolidei como coreógrafa”. Encerrando os percursos de solos, contou novamente com um conterrâneo. Desta vez, Arimatan Martins, dirigindo Nósdestinos. “Eu queria fazer três personagens da cultura piauiense, que era a lavadeira de beira de rio, a mulher rendeira e a rezadeira. Foi quando eu tive coragem de, novamente, encarar a cultura popular. Arimatan me ajudou demais. É uma pessoa muito sensível, antenado e criativo”. Uma trajetória de sucesso e muitos percalços. Em 2001, Lenora adoece de um câncer, mas é a dança que a ajuda a se recuperar. “Tive que me tratar em 2001. Eu saia da quimioterapia exausta e ia trabalhar. Aí eu montei o espetáculo Máscaras. Foi ele que me ajudou a me curar. Era um espetáculo que falava de amor”. Sem financiamento, a companhia fez a última turnê em 2006. Em 2003 seu trabalho resulta no livro Teatro do Movimento: Um método para o Intérprete Criador, escrito em parceria com a pesquisadora Cássia Navas. Nesse livro, Lenora Lobo organiza e registra os princípios de seu método. Em 2008, a segunda parceria entre Lenora e Cássia Navas culminou no lançamento do livro Arte da Composição-Teatro do Movimento. “Então, o que eu percebi? Que eu precisava falar da identidade/singularidade de cada uma das pessoas”. Victória - Enquanto você estava em Brasília e no Rio de Janeiro o que você ficava sabendo sobre o que era produzido no Piauí? O que seus contemporâneos faziam nessa época? 29


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Lenora - Olha, é porque a dança do Piauí demora muito a se instalar. Na época em que eu morava no Rio quase não existia muita coisa aí. Só a Eleonora e Dona Lenir praticamente. Dona Lenir e Eleonora juntas e depois abrindo esses grupos mais criativos. Eu acho que a Eleonora é a grande figura da dança do Piauí. É quem realmente faz esse salto do clássico para o moderno e contemporâneo. Isso provém em torno dos anos 70, 80, até início dos anos 90. Em 90 ela já vai embora pra Amsterdã. Nos anos 90, eu sei que realmente aparece o Balé Folclórico da Luzia, que faz um impacto, que é uma pessoa talentosa. Aparece o Balé da Cidade, que é criado por um ex-bailarino da Eleonora, o Sidh, que fez muita aula comigo. Ele realmente herdou tudo da Eleonora. Ele, o Lauro, todas as pessoas, mas eu acho que o Sidh pega firme aí na companhia. Das vezes que eu ia ao Piauí, uma das coisas que me chamava a atenção, chegando em Brasília, eu dizia: gente, Brasília que é a capital da República não tem uma Escola de Dança, não tem um Balé do Teatro Nacional, não tem companhias apoiadas pelo estado e no Piauí tem. Eu achava isso fantástico. Tudo bem, a Escola não é nos moldes que a Eleonora sonhou e que eu sonhei, porque a gente batalhou muito pra existir essa Escola de Dança. E, logo depois, ela sai e vai passando de mãos em mãos e vai tomando um outro rumo que não era o sonho da Eleonora, nem da Dona Lenir. A Eleonora pensava numa escola com uma base clássica, mas com uma abertura para uma expressividade artística maior e para outros experimentos como moderno, contemporâneo, popular. Ela tinha uma outra visão da dança como tem até hoje. Mas ficou passando de mão em mão e impregnou essa cultura do clássico. Porque o piauiense é dançante, tem muita energia, tem potencial, é vibrante como 30


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todo nordestino, entendeu?! Mas eu acho que a formação é equivocada e continua uma dança colonizada. Victória - Então como que você percebe a dança no Piauí? Lenora - Eu percebo...agora com a chegada do Marcelo Evelin, de uns tempos pra cá...Eu percebo que o Marcelo faz uma resistência oposta a tudo que tá aí, bem radical no Galpão do Dirceu. Ele propõe algo bem radical enquanto criação e pesquisa, mas eu acho que ele também não propõe formação. Eu acho que há um grande buraco na formação da dança piauiense. Quem poderia ter feito isso era a Eleonora, que foi embora e não conseguiu fazer. E as pessoas que ficaram eram professores de clássico, que não eram coreógrafos, eram professores que formaram muitos bons bailarinos, mas não formaram criadores e não formaram pesquisadores de dança, principalmente de dança contemporânea. As várias tentativas de pessoas, como o próprio Marcelo, de trazer vários intercâmbios...é um grupo multidisciplinar, que não tem só bailarino, tem músico, tem menino de dança de rua, tem várias coisas. O Marcelo tem essa capacidade de juntar as experiências. Mas também, lá dentro do Galpão do Dirceu, não tinha formação pra essas pessoas. Então, eu acho que fica um buraco. Até porque não era a proposta dele. A proposta dele é de criação e não de formação. Então, eu volto com a história de formação. Como se pode dançar de forma brasileira? Achar uma dança que tenha vínculos? Qual seria essa identidade da dança piauiense? Eu não sei te dizer. Porque eu ainda vejo algo muito colonizado, com poucas exceções. Inclusive esse trabalho que o Marcelo começou a 31


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introduzir. Estão aparecendo muitos artistas novos que eu não conheço. Então não posso te falar nesse momento o que tá acontecendo aí porque eu estaria sendo leviana. Mas eu acho que ainda falta muito pra se achar essa identidade. E eu acho que uma das grandes responsáveis por isso é o processo de formação. Por quê? Porque só se aprende a fazer balé clássico. Ou então vai faz uns cursinhos ali, outros aqui. Pega um pedaço da formação. Então assim, não tem uma formação continuada de um método, uma técnica que deixe ferramentas pra que esses artistas pesquisem o que realmente é essa dança piauiense. Eu sinto essa grande lacuna que é na formação. Victória - Isso implica em outras questões que são mercado e público? Como você relacionaria essas questões: formação, mercado e público? Lenora - É... Porque por exemplo, que nem eu tava aí às vezes na Escola de Dança e as pessoas diziam: “Ah quando as meninas dançam balé clássico aí entope de gente, quando vai dançar contemporâneo, não tem ninguém.” O balé clássico, como ele trabalha com a coisa do romântico, ele tem uma capacidade de encantar as pessoas. Até porque trabalha com o belo, com o lírico. Então, o balé clássico tem essa capacidade de entrar na fantasia da menininha, na fantasia da família, da mãe que quer ver a filha bailarina. Em todo lugar é assim. Não só no Piauí. Sempre vai ter esse sonho da menina que precisa fazer balé pra ter o corpo bonito, pra ter os gestos delicados. Alguns saem e viram profissionais, mas a maioria não vira. Quantos alunos passaram por essa Escola? Quantos bailarinos saem dalí pra ter uma vida profissional? O que essas crianças vão fazer? Pra que essa Escola? Ela 32


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tem um cunho social? É social ou não é? Se tem um cunho social, por que tem que trabalhar com essa rigidez do balé clássico? Então, é assumindo o social ou é assumindo a formação de bailarino? Então tem essa coisa meio perdida. Várias pessoas tentaram achar o fio da meada, mas tem um vício ali. As academias formam em balé clássico, a Escola de Dança forma em balé clássico. Esses novos artistas começam a tentar. Tá começando a aparecer uma geração nova, mas eu sempre fico achando que ainda tem esse buraco da formação. Da compreensão do que é realmente um corpo que dança, do que são elementos coreográficos, do que é pesquisa, entendeu?! Então, acho que falta isso. Victória - Você acha que teria uma definição para o termo identidade piauiense na dança? Se existe esse termo, como você entende? Lenora - Olha, quando eu criei esse laboratório que eu chamei Origem, criei porque eu procurava uma singularidade nos brasileiros que dançavam. Que eles achassem como o corpo deles foi construído porque tudo que acontece na nossa história fica impregnado no nosso corpo. O nosso corpo é um grande arquivo de memória e o ser humano que dança é o ser humano que vive. Não existe separação entre o artista e o ser humano. É uma coisa só. Então, tudo que eu faço no dia-a-dia com o meu corpo fica no meu jeito de me mexer, de me expressar. É por isso que eu falo que é importante a formação. O que eu proponho no Teatro do Movimento, por exemplo, é que eu fiquei atrás de pesquisar como eu posso colaborar pra achar essa singularidade desses corpos. Então, se você faz todo dia uma 33


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técnica, quando seu corpo vai se expressar, ele carrega a memória dessa técnica. Então, a articulação desse corpo vai mexer numa única direção. Era isso que o Klauss Vianna falava. Klaus Vianna dizia que se eu tô acostumado a mexer nesse espaço quando a pessoa for se expressar, ela carrega isso. Então veja bem: O termo identidade, eu acho que tem a ver não com a cultura local, mas com o que cada pessoa assimilou enquanto memória no corpo dela. Eu acho que o corpo tá impregnado dessa memória e o artista precisa compreender como é esse corpo, ele precisa compreender como é anatomia desse corpo, como esse corpo se alinha, como todas as articulações trabalham. Então, o que que o Klauss propunha e, eu de certa, forma proponho no Teatro do Movimento é que a gente desperte uma sensibilidade na percepção dos espaços, que a gente conheça a mecanicidade do corpo-fazer um giro, um salto, um plié. Porque a técnica é o meio não é o fim. Então, não adianta eu fazer a técnica como se ela fosse o fim. Ela não é o fim. Ela é uma possibilidade de trabalhar meu corpo para que ele se expresse do meu jeito, com o meu olhar de artista. Cada artista tem um olhar diferente. Eu acho que pra se buscar essa identidade, antes de mais nada, cada um tem que entrar na sua história. Os bailarinos não fazem esse mergulho. Ficam reproduzindo formas. Eu acho que identidade tem a ver com esse corpo-memória, com esse corpo-história. Então, por exemplo, o Marcelo montou um boi, o Bull Dancing; eu montei o Matracar. A visão dele de boi é completamente diferente da minha. E ele é nordestino igual a mim, nasceu no Piauí igual a mim. Mas nós temos histórias diferentes, memórias diferentes. Então, nunca uma expressão do boi dele poderia ser igual a minha. Se você pegar essas duas coreografias, o Matracar do Alaya 34


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e o Bull Dancing do Marcelo Evelin são completamente diferentes. O Marcelo viveu vinte anos na Europa, o Marcelo foi para o teatro, eu não fui. Eu venho de um outro lugar. Entendeu?! Então eu tenho uma outra percepção diferente da dele. E qual dos dois tem mais identidade? Todos os dois tem. Todos os dois trabalham com essa identidade. Ele por um olhar, uma percepção e eu por outra percepção. O que eu acho que falta pra se achar essa identidade é esse mergulho desse intérprete. Victória - Como você enxerga a dança produzida no Piauí, diante de um cenário nacional e internacional? Lenora - Olha, eu acho assim, várias pessoas já saíram daí para vários lugares né? Já têm vários bailarinos que saíram do Piauí. Tem o Lívio Lima, tem o Nezinho, que foi um dos primeiros a sair. A própria Eleonora que saiu. Eu não posso nem dizer que fiz dança no Piauí porque sai tão nova, não sei nem como eu me encaixo. Não sei porque eu nasci aí, eu sempre volto, sempre que eu posso colaborar, dou aulas. Já até tentei ficar aí, coreografar, mas nunca consegui. Gostaria até de ter um tempo maior para realmente trabalhar com as pessoas, mas não foi possível. Ainda né?! Então, assim, eu acho que essas tentativas, todas essas pessoas, Lina...que também é daí, carrega esse Piauí no coração, sempre teve vontade de trabalhar, foi várias vezes dar curso, assim como eu e acaba morando fora tanto tempo. Desenvolveu esse projeto da Capivara, que foi muito importante, sempre teve vontade de retornar. Mas eu acho que quem ficou mais tempo, dessas pessoas que têm relação com o exterior com o resto do país, é a Eleonora. 35


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Primeiro, que eu acho que foi a grande pioneira e depois, agora, nos últimos anos, o Marcelo, que retorna e tenta dar esse gás. Ele consegue levar o Galpão do Dirceu para vários festivais importantes e até para o exterior. Eles estão aí andando. Eu acho que o Marcelo é muito importante nesse sentido de levar esses piauienses para o exterior, para mostrar a cara do Piauí. De realmente batalhar por isso. Do jeito dele, com o estilo dele, que algumas pessoas gostam, outras odeiam, mas assim, o Piauí saiu para a vitrine nacional e até internacional. Eu acho que tem outras pessoas que eu não sei porque estou um pouco afastada. O Balé da Cidade...eu acho uma pena que não esteja mais circulando. Mas, eu acho que tem uma questão de que tem bons bailarinos, mas eu acho que precisavam circular mais criadores por aí no sentido de ter gente que faça um intercâmbio maior. Victória - Como você enxerga política cultural para dança no estado? Lenora - Olha, nem sei, não enxergo. Mas o que eu vejo é que a maioria das pessoas que têm aí elas entram nos editais nacionais. Prêmio Klauss Vianna, Correios, Petrobrás, Caixa Econômica, Banco do Bradesco. As pessoa entram nos mesmos que, nós aqui em Brasília entramos. Eu acho que, aqui em Brasília, nós aqui ainda temos um Fundo de Apoio à Cultura, que tem dado bastante patrocínio, ai parece que não tem né?! Então assim, na verdade, eu, a artista Lenora, sou contra, num país desse onde tem tantas faltas e ausências - se tivessem sobras eu era à favor - mas onde tem tantas faltas, eu acho que a política cultural dos estados, aí eu não digo só o Piauí, mas aqui e todos os outros lugares, eu acho que as companhias estatais estão 36


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passando do tempo. Isso porque os bailarinos viram funcionários públicos, o estado gasta um absurdo para sustentar aquilo e eles ficam um pouco estagnados porque não tem uma política de circulação. Por exemplo, o Balé da Cidade de São Paulo viaja muito pouco, do Rio de Janeiro, viaja pouco, o Guaíra quase não sai de lá, a Cia de Minas, do Palácio das Artes, também quase não sai. Tudo bem, tem grandes espetáculos, vêm grandes coreógrafos, mas assim, não tem essa articulação de circular pelo país. Acho até que já foi melhor antigamente. Então, ao invés de um estado ou município sustentar um corpo de baile, um Balé da Cidade, seja o que for, seria muito mais importante que as Secretarias de Cultura pudessem dar manutenção para os grupos independentes. Eu sou à favor das manutenções para que os grupos possam caminhar com suas próprias pernas e participar de editais para conseguir apoio e fazer algumas coisas, mas que tivessem uma verba anual, que tivessem uma infraestrutura para que eles pudessem correr atrás de outras coisas. Sabe? Eu acho que o problema não é só no Piauí, é no país inteiro. Eu acho que o Piauí já deveria ter um fundo de apoio à cultura, um edital do estado que pudesse ajudar os grupos de teatro, de circo, não só de dança e não ficar esperando só os editais nacionais. Victória - Então, como você enxerga a cobertura jornalística da dança? Lenora - Olha, eu acho que essa cobertura acaba se restringindo a publicidade. Ou seja, divulgação. Alguém vai lá, recebe um release, entrevista os bailarinos e faz uma boa matéria. Jornalistas são capazes de escreverem uma boa matéria, um bom release. Agora, existem muitas poucas pessoas 37


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para refletirem e trabalharem crítica de dança. Isso é o que eu sinto mais falta. Tanto no âmbito local, como no âmbito nacional. Mesmo em Brasília não temos um bom crítico de dança. E no país são poucos os bons. Então, gente preparada para fazer essa reflexão de dança, para analisar uma coreografia, para analisar uma obra de arte são muito poucos. É uma grande lacuna, uma grande carência. Quantas Helenas Katz tem? Quantas Cássia Navas? Nós perdemos um grande crítico do estado de Minas, há uns dois ou três anos atrás, que era o Marcelo Avelar. Era uma pessoa fantástica que sabia olhar uma obra de arte, analisar e discutir positivamente em cima daquilo. Não só dizer “gostei, não gostei, é ruim, é bom”. Não é assim que se critica ou analisa uma obra de arte. Não só em dança, em qualquer outra área. Então, eu acho que isso falta, mas na área de dança eu acho que é pior. Hoje, com essa proliferação das faculdades de dança, de pós-graduação em dança e dos mestrados e doutorados que começam a aparecer no país inteiro estão começando a soltar gente mais preparada para escrever, tá? Então, vamos ver como vão ser as novas gerações. Eu acho que as faculdades não estão formando muito bons artistas mas acho que podem estar formando pessoas para refletirem.

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¹ Skype - Software que permite comunicação pela internet através de conexões de voz e vídeo. Lançado no ano de 2003. Fonte: Wikipédia

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“Qual seria essa identidade da dança piauiense? Eu não sei te dizer. Porque eu ainda vejo algo muito colonizado, com poucas exceções”.

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“Os bailarinos viram funcionários públicos, o estado gasta um absurdo para sustentar aquilo e eles ficam estagnados porque não tem uma política de circulação”.

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“Eu acho que as faculdades não estão formando muito bons artistas mas acho que podem estar formando pessoas para refletirem”.

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Lina do Carmo - Lina várias -

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Não estuda dança. Estuda expressão. Não põe etiquetas, nem classifica arte. Lina do Carmo estuda em Paris, é radicada na Alemanha, mas afirma: “Não é fácil pra um artista ser do Piauí”.

Foto: Gert Weigelt

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Lina do Carmo Freitas Melo, Lina Hilleckenbach. Nome de família, nome de casada. Mas foi como Lina do Carmo, seu nome artístico que conquistou o mundo. Estudou arte no Maranhão, no Ceará, Rio de Janeiro, Estados Unidos e França. Estabeleceu-se na Alemanha e trilhou carreira de solista. “Parece que tem algo dentro de mim, que é incontrolável, que é a necessidade de ser o que eu sou, de fazer o que eu quero e esse é o exemplo que eu dou pra quem estuda comigo”, diz Lina do Carmo, que não é só coreógrafa, é dançarina, atriz, dramaturga e mímica e conversou comigo por Skype. Nasceu em Teresina, mas morou a infância em São Luís, quando o pai farmacêutico foi transferido para a capital maranhense. Participou do grupo de danças folclóricas e foi iniciada no teatro aos 9 anos, em 1966, por Américo Azevedo Neto. “A minha primeira experiência foi um concurso de poesia falada em que recitei versos de Menotti del Picchia. Foi como eu descobri meu talento para o teatro. Desde pequena eu tive convicção de que era isso que eu queria na minha vida”. Participou do grupo de teatro amador Laborarte e ganhou uma bolsa de Reynaldo Faray pra fazer aula de clássico. Voltou para Teresina aos 13, nos anos 70. “E quem eu encontro? Eleonora Paiva! O governo de Alberto Silva trouxe maestros e diretores de teatro para desenvolver o Projeto Piauí”, diz Lina do Carmo, referindo-se ao projeto onde praticou música e teatro com Reginaldo Carvalho e Murilo Meneses, respectivamente. “Então, tudo que eu sonhava era: como eu vou conseguir fazer isso? Quer dizer, na época, ser uma artista, era coisa de leviana. Ou então você faz a Rede Globo. Não é caricatura, era isso mesmo”, conta. Foi interna do 49


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colégio Christus em Fortaleza na adolescência. “Era um colégio de meninas direitinhas e, nessa escola, eu fui expulsa porque eu não conseguia me enquadrar nas regras”, momento em que resolveu fugir para o Rio de Janeiro. No plano adolescente uma amiga iria recebê-la e pegou um ônibus em Forteleza com destino à capital carioca. “Fiz uma carta para os meus pais e fui fazer universidade de teatro, com 17 anos. Mamãe guardou essa carta. A última vez que estive em Teresina, há dois anos ela me apresentou. Eu li, fiquei emocionada e disse: Mamãe, eu escreveria tudo de novo”. Compara a intuição a um pássaro. “Tem que escutar o passarinho no ombro porque se você não tem esse pássaro que canta no seu ombro, então, você não tem intuição, e sem intuição, você não vai vencer na vida”, ensina. E é na intuição que se apega para fazer arte: “Eu me comunico com a intuição. Eu não vou querer que o outro reflita o que eu tô fazendo. Aí não é arte”. Estudou Teatro na Escola Martins Pena e na UniRio, onde conheceu professores como Paulo José, Clovis Levi, Alcione Araújo e Paulo Vera. Estudou com Graciela Figueroa, Carlos Affonso e Klauss Vianna. “Não queria ser bailarina. Eu queria me transformar. Eu gosto da transformação. Então, eu comecei a trabalhar em um grupo de teatro, que me sindicalizou e que me dava o pão de cada dia, que era o grupo de Sylvia Orthof ”. Enquanto fazia Teatro acontecia a ditadura no Brasil. “Eu tinha loucura pra conhecer o que era um país democrático”. Resolveu sair do país e morou em Boston (USA), onde estudou como bolsista por dois anos no National Mime Theate. “Isso me deu uma técnica de pontas, de acrobacia, dança e várias técnicas de mímica como Étienne Decroux, Jacques Lecoq, 50


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Marcel Marceau e pra me sustentar eu trabalhei em restaurantes”. Com um diploma de mimodrama, volta ao Brasil e já foi convidada para dar aulas. Fez uma audição e atuou na peça À Moda da Casa, de Flávio Márcio, com a qual foi indicada ao Prêmio de Atriz Revelação em 1981. “Essa peça fez um grande sucesso e me abriu as portas para a televisão”. Não parou os estudos e na busca de aprofundamento na mímica partiu rumo à Europa. “Eu achava que tinha aprendido uma técnica nos Estados Unidos, mas eu não tinha uma formação artística e o meu sonho era trabalhar com Marcel Marceau”. O sonho se tornaria realidade em breve. Foi vista fazendo mímica pelo professor Darcy Ribeiro, que mediou uma bolsa da CAPES para que Lina estudasse na Escola de Marceau em Paris, onde ficou de 1983 a 1986. “Marceau não fez clones, ele fez artistas. Um professor faz clones. Um mestre faz artistas. Meus alunos todos fazem alguma coisa e não fazem o que eu faço”, defende. Criou seu primeiro solo em 1980: Pierrot Nordestino. “Foi a minha primeira criação, digamos assim”. Logo mais, vieram outros solos como Victoria Regia, Voodoo do Plastik, Fugitus, Capivara e Aruanãzug. Criou e interpretou o espetáculo Linguagem do Silêncio no Teatro Villa-Lobos, com o qual recebeu convites para festivais na França e Alemanha e fez trabalhos como artista convidada para a TV Rede Globo. Foi apresentar-se em festival na Alemanha e acaba sendo contratada por uma companhia de mimodrama, a Théâtre de la Sphère. Com a companhia, vai para Berlim, onde acaba conhecendo seu atual marido, Michael Hilleckenbach. “Conheci um alemão e me apaixonei. Disse para todo mundo: estou apaixonada, vou curtir essa. Comecei a viver com meu namorado na Alemanha, onde passei a dar aulas”. 51


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Esteve no Piauí para ministrar cursos e apresentar seus solos. “Mas eu não era considerada uma bailarina, era uma artista mímíca, uma solista, uma intérprete. E nunca me interessou a categoria porque eu nunca me encaixei em nenhuma categoria. O que me interessa é a poética do corpo, o que faz o movimento ser um gesto poético, isso que me interessa”. Mas foi com o Festival Interartes que provocou sensações. Na direção artística, coordenação internacional e produção realizou o evento em 2003 e 2004 em parceria com a Fundação Museu do Homem Americano-FUMDHAM. O festival recebeu indicação para o Prêmio Multicultural Estadão, na categoria Fomento Cultural, em São Paulo. Transmitido ao vivo pela Rede Meio Norte em uma cobertura integral, a crítica de arte Helena Katz se refere ao festival como “inteiramente singular” no Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo de 1º de outubro de 2003, em que mais de 1.300 pessoas lotaram o anfiteatro em cada um dos cinco dias de programação. “Foram dias de muitos ineditismos”, escreveu Katz. Em 2004, uma apresentação gerou polêmica. A performance O Samba do Crioulo Doido, do artista paulista Luiz de Abreu, negro e nu com a bandeira do Brasil. “Na sua denúncia contra o preconceito, Luiz de Abreu faz da bandeira brasileira uma continuação da sua carne nua. A segurança e a serenidade com que fez manter o respeito à expressão artística atestam que o Piauí hoje não mais se alinha com os preconceitos historicamente vinculados à miséria”, escreve Helena Katz para a plataforma digital idança. net em 26 de outubro de 2004. “O Piauí é, pra mim, mítico. Estar no Piauí pra mim é uma êxtase de existir e isso pouca gente entende”, diz Lina do Carmo. Após o festival 52


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voltou para a Europa e continuou a produção de espetáculos. Hoje estuda mestrado em Paris, mas insiste: “A dança é, antes de tudo, uma preocupação de o que é expressão”. Victória - Quais foram seus contatos artísticos, professores e incentivadores que lhe influenciaram? Lina - Todos foram significantes, desde aulas de ballet com Reynaldo Faray em São Luís, escondida de meus pais e Américo Azevedo Neto no palco do Teatro Arthur Azevedo. Cada professor deixou uma parcela de incentivo, como Kennyon Martin que, em Boston, me facilitou dois anos de formação em mímica no National Mime Theatre (1978-80), ou Klauss Vianna no início dos anos 80 quando retornei de Boston em Oficinas na Escola de Teatro Martins Penna. Marcel Marceau foi fundamental pois com ele segui uma formação completa com diploma em Mimodrame, na École International de Mimodrame de Paris (1983-86). Com ele, pude me encontrar o suficiente para enveredar nos caminhos da criação. Uma pessoa importante foi Armando Nogueira, diretor de jornalismo da TV Globo, que observando imagens do meu espetáculo Linguagem do Silêncio no Teatro Villa Lobos, então me chama para criar uma homenagem ao pintor Cândido Portinari para o Jornal Nacional. Abriu novos caminhos profissionais, co-criando com artistas como Hans Donner, na abertura da novela Sassaricando e com Ricardo Naunberg. Minha carreira foi marcada como atriz na peça À moda da Casa, de Flávio Márcio, dirigida por Nelson Xavier. Tive a honra de contracenar com Henrique Brieba, Yara Amaral, Nelson Dantas, Anselmo Vasconcelos e depois Claudio Gaya do Dzi Croquettes. Foi pura magia o 53


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personagem que fiz da boneca Pepita, que ganhou críticas de revelação do ano 1981-82. Daí, no ritmo da migração, com convites para Europa, fui parar na Alemanha onde, bem recebida e apoiada nos meus projetos de criação resolvi me fixar. Nos anos 90 produzi diversos solos entre os quais Victoria Regia foi o marco de uma emancipação artística, que influenciou uma abertura no mercado internacional de festivais importantes tipo Festival d’Avignon. Depois, fiz outros solos, como o Voodoo do Plastik, uma sátira a era do plástico. Vivi experiências especiais com os pianistas com quem compartilhei o meu solo Fugitus, uma imersão do meu corpo nas notas inacabadas de Bach. Seguindo, veio o solo Capivara. Fui em 1987 conhecer a Serra da Capivara. Com este solo, retornei à Serra da Capivara em 2000. A Dra. Niède Guidon, me disse, tu quer dançar aonde? Eu disse: Eu quero dançar lá na Pedra Furada. Lá, eu me encantei. Em 1999, fiz o projeto de Aruanãzug, que me permitiu pesquisar o ritual dos Aruanã dos índios Karajá na Ilha do Bananal e, essa busca, eu chamo de corpo arcaico. O antropólogo pode dizer que, se tá vivo, tá sendo dançado, é contemporâneo. Contemporâneo! Ou contemporâneo é um tique? É categorizado? Não é. Pra você ver que a vida não me permite etiquetar nada, eu não posso pôr etiquetas nas coisas. Então, eu estava dentro de um país onde eu não tive a oportunidade de aprender nenhuma palavra indígena, na minha época. Mas todo mundo sabia dizer yes, todo mundo sabia dizer bonjour porque somos um país colonizado. Então, a cultura não é de ninguém. A cultura é do povo. Todo mundo pode se inspirar. Fiz mais outro solo, o Viajante da Luz, onde eu pesquisei sobre o lado astronômico do corpo, que foi apresentado no México, na Suíça e no Brasil duas vezes. No período de 2006 a 2010 eu fui contratada pela Filarmônica de Colônica e fiz cinco produções 54


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com música ao vivo. Quer dizer, a minha escola é eterna. Eu tô sempre estudando porque cada pessoa que eu encontro me ensina. Eu espero ensinar também, mas eu sou uma observadora e aprendo muito com as pessoas, eu nunca gosto de fossilizar as coisas. Victória - Enquanto se dava seu trabalho, seus contemporâneos produziam de que forma? Lina - Eu me percebia através das diferenças, vendo que convivia com muitos mundos no mundo da arte. Via que, normalmente, os colegas se fechavam na sua tribo, ou não. Eu preferia mais os que tinham esta visão poliédrica, digo, lapidar os conflitos e fundir ideias, pois a arte não suporta separações. Eu via alguns produzindo bem e outros descascando cebolas, lutando. Há pouca generosidade e muita competitividade. Isto porque os artistas às vezes pecam contra a própria classe artística, deixando-se manipular pela política. Victória - Como você percebe a dança no Piauí? Lina - Quando eu ia dar os cursos no Piauí, que que existia de dança no Piauí nessa época? Havia Eleonora Paiva. Ela já tinha uma visão contemporânea. O grupo Avoantes dela foi o primeiro grupo de dança contemporânea. Depois, o Balé Folclórico da Luzia Amélia. E aquela briga do Balé Folclórico com o Balé da Cidade. Eu digo: Gente, parem com isso. Eu vi isso! Essas disputas, né? Mas essas disputas eram mais ferrenhas porque a cidade é pequena, mas isso acontece no mundo inteiro. No Rio de Janeiro, 55


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na Bahia, aqui na França. E aí, eu acho que é nessa época que esse mundinho da dança no Piauí ainda era muito pequeno. Mas vejo muito potencial e cresce toda uma nova geração desejosa por uma situação possível de formação e criação. Na minha geração, a solução era imigrar. Isto tem que mudar. Os jovens precisam criar uma presença na vida cultural da cidade. Vejo progresso neste sentido. Muitos rostos novos que cruzo cada vez que vou ao Piauí, novos grupos de Dança e Teatro. A questão é sempre a política cultural que é efêmera. Então fica sempre ondas de surgimentos e desaparecimentos. Como foi o meu caso, após o Festival Interartes nada mais pude viabilizar no Piauí. Embora eu esteja certa de que este evento encorajou outros eventos e criou um marco na cultura do Piauí. Fizemos um belíssimo palco, juntou a minha força com a força da Niède Guidon e o desejo das pessoas e aquilo foi lindo. Quem assistiu acho que assistiu um momento mágico, não meu, mas mágico da arte. Sou muito grata às pessoas que me deram oportunidade de mostrar meu trabalho no Piauí e me convidaram para dar aula e me ajudaram a fazer o Interartes porque eu não fiz sozinha. Se você ver o programa do segundo festival, ali está a minha assinatura, o que eu penso da vida e da arte. Ali tinha índio, tinha os bandolins de Oeiras, tinha a cultura negra, com um solo altamente político com a assinatura do próprio corpo negro, que era o Luiz de Abreu, tinha a Quasar, que é o contemporâneo, tinha o Luizão Paiva, tinha Marcelo Evelin, tinha Luzia Amélia. Quer dizer, tinha tudo. Não tinha preconceitos porque eu queria quebrar preconceitos. Por que eu não fiz um festival só de dança? Porque eu estaria limitando esse público. Então eu acho que eu tenho que favorecê -los a conhecerem todas as linguagens artísticas. Foi uma verdadeira batalha, mas também sou muito grata a quem conseguiu destruir aquilo porque 56


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depois a minha vida mudou novamente. Eu, hoje, sou uma pessoa muito mais livre, eu não tenho mais o menor desejo de mudar o mundo. Então, eu acho que houve uma congruência. E depois, a mesma congruência virou uma disjunção. Dizem que não pode mais ter racismo? Mas eu fui condenada porque convidei um bailarino negro que estava dançando nu. Para o Luiz de Abreu, foi muito bom porque aquilo trouxe um impacto político para ele. Foi nesse ponto que eu não tive ninguém pra me defender. Todo mundo ficou em cima do muro. Eu fiz aqueles dois eventos, eu fiquei dois anos coletando contato com patrocinadores, eu importei linóleo à prova de fogo. Digo, bom, ok, não há respeito do estado, a classe artística não se posicionou ao meu favor, a não ser Jorge Medeiros, Açaí Campelo e Lenora Lobo. Não se pode fazer nada no Piauí porque parece assim, que um tira o ar do outro. Então, eu fiz esse festival para ter ressonância, para influenciar novas ações. Essa era minha intenção. Era uma coisa que foi maior que eu, maior que nós mesmos. Ninguém pôde com aquele festival, nem o Piauí. Victória - Como você enxerga a dança no Piauí diante do cenário nacional e internacional? Lina - Hoje? Bem o mundo mudou então o Piauí vai junto. Os fenômenos que ocorrem aí são mais ou menos os mesmíssimos que em outros lugares, claro que comparativamente com a situação histórica de cada lugar. Mas, acredito que a dança no Piauí está surpreendendo. Veja só, o projeto de uma desconhecida do interior foi aprovado pelo edital O Boticário na Dança: isto é revelador. Em Teresina, existem grupos e cresce muito a tendência de uma melhor profissionalização. Fico feliz quando escuto que um projeto 57


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de dança do interior do Estado foi contemplado por um edital como este. Ou que foi criada uma Escola Técnica de Dança. Eu via a Escola de Dança Lenir Argento e dizia: Gente, isso aqui é um potencial muito grande. Tem uma geração nova muito inteligente que eu encontrei, quando eu tive oportunidade de dar aula, convidada pelo Datan Izaká na Escola de Dança. Foi lindo porque as pessoas estão se questionando, entendendo mais que se pode profissionalizar a dança. Então, eu cheguei a conhecer uma realidade atritada entre dançarinos ditos folclóricos, modernos e clássicos. Isto foi se metamorfoseando, mas não consigo captar uma autenticidade. Vejo as influências quase imediatas do que o sul do país capta da Europa de 10 anos atrás. Desculpe, mas vivo aqui e aí, conheço duas faces da mesma realidade. A dança dita contemporânea que se fala hoje virou meio categoria tendencial, muito preconceito dentro da mesma categoria. Falta um estudo mais amplo da própria dança. Não se estuda mais o corpo, não se estuda mais a dança, não se estuda mais a arte. Todo mundo fica em conceitos. E não é por aí. Então, eu encontro muitos talentos do Piauí em companhias fora do Brasil. Você vê o esforço desses artistas, lembra o meu quando eu era menina, entendeu? Então, eu tenho muito respeito por eles. Então, depois que você migra tanto, não é que você perca a identidade, é que ninguém dá conta de tudo que acontece no mundo. O piauiense não vai: Vem cá, nós tínhamos aquela menina que era tão talentosa, que que é feito dela? O Piauí não se interessa. Eu acho que nós no Piauí, se eu me considero piauiense, ainda somos muito inseguros e um fenômeno muito forte que tá acontecendo no Piauí porque acontece no mundo é a coisa do copy-clone. Quer dizer, ninguém cria mais. O Rio de Janeiro é um copy-clone da Europa. E o Piauí não precisa disso. A Europa tem que criar porque se eles não 58


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tiverem originalidade, eles não são patrocinados. As pessoas querem saber o que você faz. Artista é aquele que encendeia sensações novas. Então, a sociedade está esperando isso de você. Ela não tá esperando que você faça algo que todo mundo já aprovou. Tem gente que não me considera mímica e me exclui dos livros que saem hoje de mímica no Brasil. Tem um mímico em São Paulo que não me considera mímica. Eu sou a única aluna do Marcelo Marceau viva brasileira mas, infelizmente, piauiense porque se eu fosse paulista ele não ia me esquecer, não é? Veja bem, eu conheci Torquato Neto no caixão porque eu estudava com a irmã dele. E eu conheci o poeta morto com 14 anos. Disseram que ele tinha se matado. E eu fiquei chocada. Como é que um poeta se mata? Por que um poeta se mata? Então, ele sabe porquê. Não é fácil pra um artista ser do Piauí. Se você fica no Piauí, você fica sempre tendo que desejar o que você não conseguiu na vida, quer dizer, deseja ir pra França, deseja ir para o Rio de Janeiro. Se você vai, quando você volta não é mais piauiense. Você agora já é carioca, você agora ja é parisiense, você agora já é alemã. É mole ser do Piauí? Não é. Entendeu? O Marcelo Evelin, com seu contexto inovador, mexeu com a nova geração, tenta romper paradigmas, e graças a situação de patrocínio, e seu perfil ele gira pelos festivais do globo. Luzia Amélia com força e boa vontade também faz a parte dela. Assim cada um luta por sua causa. Eu me comovo quando tenho a oportunidade de trabalhar por aí: vejo as possibilidades corpóreas. Imagino muita coisa a ser feita e estão fazendo. O mundo hoje é pequeno e não existe mais tantas distâncias, porém não entendo porquê o “fazer dança” tende a se limitar dentro dela mesmo. Por isto, eu me vinculo ao amplo da arte. Minha visão está para além do que uma política cultural possa se interessar. Então, o Interartes não foi pelos artistas maravilhosos 59


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que pude agregar em uma semana no meio do sertão, mas sobretudo pela plateia que transgredia o normal. A plateia vivia sua própria autorrevelação como imagem social. Eu pensei o Interartes dentro de uma necessidade. Essas artes se integrando com a natureza. Por que no Interartes houve aquela empatia muito grande? Porque aquela minha visão, era a visão deles. Era a visão do Piauí. Tinham mulheres de salto alto, tinha gente descalça, gente que veio de avião e gente que veio de jumento. Teve gente que foi à pé como teve gente que foi de carro zero. Você não acha isso um milagre? Todas essas pessoas, juntas, assistindo alguma coisa? Então, nessa perspectiva, eu acho que era o mais lindo naquele evento da Serra da Capivara. Fiz o que pude para atender aos desejos de todos. Via que a situação mudava, cada vez mais grupos novos, novas figuras e sempre senti a sede das pessoas por uma condição de artista e não um mero enfeite para política cultural. E fui impedida deste projeto inusitado porque convidei um artista negro entre índios, mulatos, brancos brasileiros e estrangeiros, uma real mestiçagem de gestos e visões de arte. Política para mim é altruísmo, que é mais do que raças, nacionalidades e tantas etiquetas que encobrem a natureza essencial. Victória - Qual a relação do público com a dança produzida no Piauí? Lina - Você se apresentar para um público na Europa é diferente de você se apresentar para um público no Piauí. Claro que é. Você vai ver uma pessoa lá que vai dizer: Eu quero ver algo. E se achar que tá um saco, ela sai. As pessoas não estão ali para: Ah, vou ver meu amiguinho. Então, no Piauí, ainda é um pouco isso. Eu vou ver o meu amigo porque eu tenho que ir, se não, ninguém vai, né? Então, tem que ter algo no sentido de realmente 60


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levar o jovem ao teatro, entendeu? Não é só bilheteria gratuita não. Não é por aí. É levar com o sentido de formação mesmo, de abrir debates sobre aquele espetáculo. Victória - Como você percebe a formação profissional na área de dança no Piauí? Lina - A Luzia tem interesse de fazer uma Graduação em Dança na Universidade. Em 1999, em 2000, ela sabe que eu queria fazer um curso de extensão na Universidade. Marquei encontro com o Reitor, mas ele não pode me receber e eu tive que voltar para dar meus cursos. Então, eu acho que uma universidade de dança é muito importante porque ela vai fazer com que a dança no Piauí tenha mais respeito profissional. Formado, ele não vai ser só um talentoso que fez aulinha ali, ali e ali, ele vai ter uma formação acadêmica e isso vai trazer maiores impulsos para dança. Como não deveria ter só uma Universidade de Dança, eu acho que deveria ter uma Universidade de Artes Cênicas onde teria dança, teatro, cenografia e direção, entende? Eu acho que tinha que fazer pra valer porque se faz de dança, se daqui a quatro anos o Reitor achar que aquilo é um saco ele corta. Então, se você faz de Artes Cênicas você tem toda a classe artística mais forte. Victória - Como você enxerga a política cultural para a dança no Piauí? Lina - É muito duro lutar pela cultura do Piauí. Se você disser, qual é a política do Piauí? Não tem! Como eu posso criticar uma política cultural que não existe? Primeiro aquela secretaria é o último lugar que o governo 61


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olha, tá? Aquilo ali é um enfeite. O governo não põe dinheiro. Porque se botasse muita gente ia querer trabalhar na cultura, não é isso? Então aquilo ali fica assim: É pra quem gosta né? Sempre tem um louco pra trabalhar na cultura, entendeu? Existe uma agenda política pra dizer que existe um secretario de cultura. Tem que ir para uma reunião do governo ou então sabe qual é o trabalho e adora. “Ai gente, adoro ser secretario de cultura porque eu viajo pra Brasília toda semana”. Não! Eu não vejo secretario de cultura na Alemanha viajando. Ele tá lá todo dia, recebendo projeto, lendo projeto, vendo questão orçamentária. É assim que trabalha um secretário de cultura e ele não é ninguém especial. Ele é um funcionário. No Piauí, é um cargo estrelar. De repente, vira uma estrela. Eu não conheço isso. Aliás, governo no Brasil é uma coisa estrelar. Sabe? Então, política no Piauí, já é, pra mim, um pouco grotesca, teatral. Como é a política brasileira. Nós estamos muito longe porque desde o momento que secretario de cultura é um cargo político ele não pode trabalhar para a cultura porque a cultura vai estar trabalhando para a política. Tem que ter uma classe artística que saiba pensar na classe artística e não só unicamente no seu específico, mas trabalhar junto. A revelação do Piauí ainda está por vir porque, você dizer assim: Ah, Marcelo Evelin faz o maior sucesso por aí, é uma revelação do Piauí? Um pouco, sim, porque ele está levando artistas do Piauí. Só você vir se apresentar em um festival aqui você já tem um pouco de formação cultural, você já tem um pouco de formação profissional, você muda de perspectiva. Então, não é que a política tenha que ser: Vamos colocar dinheiro na cultura, então a gente pode trazer a Regina Duarte, o Gilberto Gil e aquela banda de rock dos Estados Unidos. Não é assim que se faz cultura. A cultura tem que começar dentro das escolas, dentro das universidades, 62


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dentro da consciência da sociedade. E é assim: O pessoal do teatro vai ver só teatro, o pessoal da dança é o pessoal da dança. Então, ainda é um nível muito pessoal. Não dá pra ser imparcial ainda. Não existe uma política cultural clara. Se você faz um festival, claro que traz uma certa efervescência, é o momento que você revela coisas, traz muitas emoções, mas a cultura não pode ser um evento. A cultura não é um fenômeno. A cultura tem que ser regular. Você vai ao Teatro 4 de Setembro e não tem uma foto da Eleonora Paiva dançando, que é memória daquele teatro. Não tem uma bela foto do Balé da Cidade. Não se cultiva isso. Dancei a Capivara duas vezes naquele teatro, dancei quase todo meu repertório e não tem uma foto minha. Não tem só minha, não tem da Eleonora Paiva, não tem de um grupo da cidade. Não vejo mais nada nesse teatro a não ser o esforço do pessoal de dança pra levar os estudantes para o palco, pelo ao menos pra tá virando aquele palco. Se não fica fechado, né? No Piauí não se pode falar em política cultural. Se você fala, tem que falar o que falta. Falta um centro cultural. Mas um centro cultural mesmo! Sabe, uma fábrica de cultura. A verdade é que é difícil fazer arte em qualquer lugar do mundo. No Brasil, a situação tá muito difícil porque virou um país racista. Sempre foi, mas agora está na cara. Ou nós sempre fomos racistas e fazíamos de conta que não éramos.

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“Eu fiz o Interartes para ter ressonância, para influenciar novas ações. Foi uma coisa maior que eu, maior que nós mesmos. Ninguém pôde com aquele festival, nem o Piauí”.

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Foto: André Pessoa

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Foto: Gilda Vianna

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“Se você vai, quando você volta não é mais piauiense. Você agora já é carioca, você agora ja é parisiense, você agora já é alemã. É mole ser do Piauí? Não é”.

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Foto: Dennis Thies

“Você vai ao Teatro 4 de Setembro e não tem uma foto da Eleonora Paiva, que é memória daquele teatro. Não tem uma foto minha. Não tem uma bela foto do Balé da Cidade. Não se cultiva isso”. 68


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Marcelo Evelin - Piauiense, eu? -

Fotos: Sérgio Caddah

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Estagiou na companhia de Pina Bausch e criou obras que percorreram o mundo, mas Marcelo Evelin adverte: “Tem uma relação de amor e ódio grande com isso aqui”.

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Sábado à tarde, bairro Dirceu Arcoverde, Teresina. Em Galpão na Zona Sudeste da cidade encontra-se homem alto, careca e barbudo. Nos fundos, uma sala modesta onde me recebe. Entre os preparativos para a performance Choque que aconteceria nesta noite, contou sobre a estadia no Rio de Janeiro, a experiência na Europa com Pina Bausch e sobre a volta ao Piauí para assumir a direção do Teatro João Paulo II. Irônico, falava ora sussurrando calmamente, ora gesticulando pura indignação. Nasceu em Teresina, mas aos dois anos mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, chegando à capital carioca em pleno Golpe Militar de 1964. Voltou ao Piauí aos 10 anos, idade em que o interesse pelo teatro já se fazia presente. “A noção que eu tinha de espetáculo era o teatro. Ninguém falava em dança aqui e o que se falava era a ideia de dança clássica”, diz Marcelo Evelin, coreógrafo. Conheceu Lenir Argento na adolescência e frequentou seu estúdio. “A dança me chamava atenção, mas eu nunca me senti um príncipe. Sempre foi uma coisa muito incoerente pra mim. Isso era muito insconciente mas já se formulava em mim”. Fez teatro na escola e em cursos por correspondência. “Teatro já era uma certeza. Sempre fui artista e nunca me questionei”, diz. O pai formou-se no Instituto Militar de Enganharia-IME, porém não se opôs a decisão do filho de seguir carreira de artista. “Mas eles não entendiam o que era isso. Nunca teve violência, mas a gente sempre conversou sobre como se estuda isso, se é profissão, como se ganha dinheiro. Isso nos anos 70 era muito maior do que hoje. Se ainda tem é muito mais leve”. Em 1979, aos 17 anos, volta ao Rio de Janeiro, onde presta vestibu71


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lar para Jornalismo. Reencontrou a conterrânea Lenora Lobo que o incentivou a fazer aulas de dança. “Com a Lenora, foram as primeiras ideias de dança. Ela me explicava os processos de dança que não eram sobre ser belo e fazer formas virtuosas”. Conheceu Klauss Vianna e Angel Vianna, artistas com os quais passou dois anos fazendo aulas. “Hoje em dia, entendo o Klauss muito mais do que eu entendia naquela época. Realmente foi uma das coisas importantes na minha vida”, reconhece. Ainda no Rio, trabalha com a uruguaia Graciela Figueroa, Michel Robin e Debby Growald, do grupo Coringa. Vai para São Paulo em 1985, momento em que trabalha com Denilto Gomes. “Foi um criador que me marcou muito. Tinha uma coisa muito visceral no trabalho dele”. Ainda em São Paulo, faz sua primeira coreografia para um musical infantil e ganha o Prêmio Mambembe na categoria revelação e o prêmio Governador do Estado de São Paulo. “Aí eu comecei a sentir que já estava em um processo de dança”. Inspirado pelas obras de Pina Bausch, assistidas por Evelin no Rio em 1980, parte para a Europa em 1986. “Resolvi ir embora um pouco atrás da Pina, atrás das informações. Os espetáculos dela me impressionaram muito, me tiraram o chão e me deram o entendimento de o que eu queria fazer realmente tinha a ver com movimento”. Na França, faz um programa de Arte Contemporânea no estúdio Menageie de Verre em Paris, momento em que teve a oportunidade de trabalhar com Josef Nadj, Karine Saporta, Philippe Decouflé. A admiração por Pina Bausch, ícone alemão da dança-teatro, tornaria-se experiência real. Em 1988, Pina convida ex-bailarinos para criar trabalhos, entre eles Arthur Rosenfeld, com quem Evelin trabalhava na 72


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época. “Eu fui para Wuppertal com ele para criar uma obra dele lá e ficamos em residência. Então, eu conheci a companhia, a Pina, o esquema todo”, diz Marcelo Evelin sobre a audição em que ele achava que duraria três dias e durou nove meses. Manteve-se na Europa como pode. “Eu morei na casa de amigos bailarinos, pedia dinheiro para o meu pai. Foi muito difícil, mas foi incrível. Eu estava realmente podendo estudar o repertório e participar do processo de criação. Ela era realmente genial, nunca conheci uma pessoa com aquela visão”, conta Evelin sobre Pina Bausch. Até então, bailarino de companhias, em 1989 recebe sua primeira subvenção em Amsterdã, na Holanda e cria sua primeira obra de grupo, chamada Muzot, inspirado na obra do escritor alemão Rainer Maria Rilke. “Era uma peça sobre anjos. A gente estreou no final de 1989 e foi uma verdadeira revelação na Holanda. A obra circulou por todos os teatros do país e foi um bafafá”, relata. O trabalho marca sua estreia como coreógrafo independente e, assim, inaugura sua companhia, que funcionaria até 1995, recebendo subvenções oficiais do governo. Seguiu para Nova Iorque, momento que deu origem a Ai, Ai, Ai , solo que ganhou o Prêmio de Prata das Artes na Holanda, como intérprete e coreógrafo. Em Nova York conhece John Murphy, com quem fundaria Demolition Inc., empresa que existe até hoje. “Demolition Inc. foi criado já como uma plataforma, com todo esse conceito que demolição não é destruição só se demole algo para se fazer uma coisa nova”, explica sobre a plataforma com a qual passou a assinar mais de 25 espetáculos. Professor de improvisação e composição na Escola Superior de Ar73


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tes de Amsterdam, em 2003 retorna ao Piauí e cria o espetáculo Sertão, com os músicos Sérgio Matos, Josh. S. e Fábio Crazy da Silva Marcelo, primeira parte de uma trilogia inspirada no romance Os Sertões, de Euclides da Cunha, que se completaria com Bull Dancing (2006) e Matadouro (2010). Em 2005 recebe convite para dirigir o Teatro João Paulo II. “Comecei as atividades em 2006. Eu chegava ao Brasil e achava que ia ser interessante a minha experiência. Achei que eu poderia colaborar com alguma coisa e foi um baque de todos os tipos: de desconhecimento dessa ação política e de desconhecimento de uma situação de autoestima baixíssima que eu acho que os piauienses têm”. Surge o Núcleo do Dirceu, projeto de criação implantado por Marcelo Evelin em janeiro de 2006 que durou até março de 2009 em parceria com a Prefeitura de Teresina no Teatro Municipal João Paulo II. “O Núcleo surgiu ali dentro, foi uma proposta minha, de uma ocupação do teatro. Eu consegui bolsas para 18 artistas para estarem pesquisando e se formando, foi um projeto de formação que durou dois anos. Quando acabou a gente já era Núcleo do Dirceu”. No fim de 2008, muda a direção da Fundação Monsenhor Chaves. As incompatibilidades políticas e artísticas entre o órgão e os artistas resultaram em uma carta aberta escrita por Marcelo Evelin à dança brasileira: “Muitos são os motivos para que a nossa decisão em resistir e continuar ocupando esse espaço que é legítimo e necessário tenham se esgotado. Na última sexta feira, eu, os 2 produtores, o diretor musical, e os 16 artistas do Núcleo de Criação pedimos demissão de suas funções se desligando completamente da Prefeitura”, escreve Marcelo Evelin na carta de março 74


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de 2009. Em busca de uma nova sede, os artistas do Núcleo se reinstalaram no bairro Dirceu Arcoverde. O que nos traz de volta à modesta sala nos fundos do Galpão do Dirceu. Victória - Quando se dava seu trabalho, tanto no Rio quanto na Europa, você tinha notícia do que acontecia aqui? Marcelo - Eu sempre vim aqui, dei aula, levei o Sidh para a Europa, apresentei o Sidh às pessoas. Eu tinha sempre algum contato com a própria Eleonora, com a Lina quando vinha, com a Lenora. Eu dava aulas, conversava com as pessoas. Lembro que Janaína Lobo e Elielson Pacheco, antes do Núcleo estavam fazendo um trabalho. Teresina sempre teve, de alguma maneira, uma cena de dança, não é uma coisa de agora, de jeito nenhum. Ainda tem muito uma coisa hierárquica de quem são os melhores aqui na dança. Tem gente que não é tocada, que é um mito, que eu não vejo produzir nada. Eu até gostaria que produzisse e nos ajudasse a pensar, mas é só um mito, uma coisa inalcançável. Eu sinto ainda hoje que essa cena de dança precisa se fortalecer, no sentido de uma compreensão do espaço que ocupa. Acho que tem talento, muita gente dançando, mas tem uma autoestima ainda baixa. Eu acho que ainda tem o atrito, a fricção com a linguagem contemporânea, que eles dizem: “Ah, isso é Marcelo Evelin. Ah, isso é Núcleo do Dirceu”. Tem deboche. Eu me sinto muito maltratado aqui pelos artistas, principalmente. É muito difícil. Eu aprendi muito, te digo, foi muito importante para mim vir para cá. Eu sou daqui, eu sou nordestino cada vez mais. Quando o país fala de dividir no meio, eu penso: “Que felicidade ser nordestino. Não queria ser carioca nem paulista por nada”. Eu acho que 75


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não tá acontecendo nada numa cidade que tem 20 milhões de habitantes e muito dinheiro. Já aqui, é uma cidade que não tem dinheiro nenhum, não tem nenhum apoio. Agora, por exemplo, a gente está com o Galpão para fechar. A gente procurou a Fundação Monsenhor Chaves há mais de seis meses, fizemos tudo que eles pediram em nível de papel, mas não tem recurso nenhum. O que se faz aqui, não tem nenhum outro lugar que faz. Não tô dizendo que a gente é melhor. Eu acho que é importantíssimo ter o Teatro 4 de Setembro, o Teatro do Boi, que ficou até bem-feito, mas que poderia ser melhor aproveitado, mas não tem nenhum tipo de programação, de pensamento, de ocupação. Qualquer teatro na Europa tem uma subvenção para se manter. Dinheiro inclusive de programação. Aqui, a gente não tem dinheiro. Teresina precisa saber também que a questão não é só dinheiro. O que falta é uma pessoa que inicie alguma coisa, é uma pessoa que articule. O que falta é ideia, o que falta é iniciativa. A cidade mudou muito e eu acho que tem um potencial de dança enorme. Victória - Como você percebe a dança produzida no Piauí? Marcelo - Eu acho que tem dança no Piauí. Eu acho que a dança como arte é importante em todo o lugar do mundo. A gente tem que parar de falar desse negócio de dança do Piauí. Porque se a gente fecha assim, a gente assina um decreto de que a gente é coitadinho porque a gente não se vê relacionado com a arte do resto do mundo. Quase não existe a arte de Berlim, a dança de Paris. Porque a dança de Paris é a dança do mundo, apesar de ser francesa, parisiense e ter aquela característica. Mas eu acho que tem dança aqui, eu vejo que é muito promissor, mudou muito e, sem modéstia, 76


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o Núcleo participou muito dessa mudança. Eu acho que o Galpão do Dirceu é responsável por uma parte da grande mudança na cultura da cidade, nos processos novos que a cidade tá engendrando. Não tô dizendo que é o único nem o melhor lugar, absolutamente, tenho plena consciência disso, mas eu acho que é o espaço responsável por um tipo de atividade artística que é diferenciada, específica. Eu vejo, falando da Luzia, por exemplo, essa ideia do Curso Técnico, é uma coisa que alavanca para frente o processo. A ideia de se abrir um curso na Universidade é uma coisa que vai acontecer mais cedo ou mais tarde, eu tô vendo isso acontecer realmente, não vai demorar. Isso vai abrir um outro espaço para a dança na cidade. A gente, aqui no Núcleo, estamos com seis espetáculos rodando. Eu me pergunto qual é a companhia de dança estabelecida com dinheiro que tem seis espetáculos rodando pelo mundo? Se a Déborah Colker tem, se o Grupo Corpo tem porque a gente tem. Palco Giratório, Panorama da Dança no Rio de Janeiro, Itaú Cultural. Então, eu acho que aqui tem dança e tá começando a acontecer. Eu espero realmente que as pessoas, que a cidade consiga manter o Galpão como um lugar de existência. Acho que ainda falta formação, projeto, eu acho que falta as pessoas conversarem mais umas com as outras. As iniciativas ainda são muito fechadas. Tem muita fofoca. Inclusive, essa é uma das questões que eu me recinto de não ser mais atuante, de não tomar mais a frente para a articulação da dança piauiense. Eu não me sinto uma pessoa muito querida - e eu falo dos coreógrafos, dos bailarinos. Eu sinto que eu amedronto as pessoas, que as pessoas têm medo de mim, as pessoas têm medo de eu cobrar uma postura - e se eu puder cobrar uma postura eu cobro mesmo. Então, eu não vou a coquetel com refrigerantezinho. Eu não tenho amigos nessa cidade. Eu tenho minha família aqui, pouquíssimos 77


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amigos que dá pra contar numa mão e eu vivo para esse trabalho quando eu tô aqui. Mas eu deixei de, realmente, tomar a frente das coisas porque me sentia como pessoa non-grata: “Ah, lá vem o Marcelo de novo, gringo”. Então, sim, tem uma relação de amor e ódio grande com isso aqui. Agora, eu tô de novo voltando pra Europa porque não tem dinheiro aqui, não tem uma lei que nos beneficie pra fazer nossos trabalhos anuais. Eu tô aqui desde que eu sai do teatro, na verdade. Até 2012 nós tivemos Petrobras para o 1000 Casas e a gente era pago. Mas, desde que acabou, em 2012, eu não recebo nenhum tostão daqui. Então, as pessoas perguntam se eu moro aqui, eu não posso dizer que eu moro aqui porque o lugar que você mora é o lugar que você recebe dinheiro. Eu não moro aqui. Victória - Como você enxerga a dança que é produzida aqui diante de um cenário nacional e internacional? Marcelo - Muito bem, muito bem. Rio e São Paulo estão saturados. As pessoas têm uma curiosidade, entende? A gente recebe artistas que vêm de fora em residência. A gente recebe pessoas, todo mundo no Brasil conhece o Galpão do Dirceu, o Núcleo do Dirceu. Por mais que eu saiba que eu não faço parte dessa autoestima baixa, eu nunca imaginei que a gente, com o nome de Teresina, no Piauí, com a arte feita aqui, com pessoas daqui pudéssemos ocupar o espaço que a gente ocupa no cenário nacional. É uma coisa que me impressiona o respeito que as pessoas têm pelo o que a gente faz aqui. O interesse de pessoas que querem vir pra cá, o nível de diálogo e a escrita ao nosso respeito. Ultimamente, não sei se você viu a coisa do Hermano Vianna, que eu fiquei muito assim porque é um cara que... dizer 78


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que o 1000 Casas foi um dos grandes eventos artísticos brasileiros deste início de século? Eu levo a sério as coisas. Eu acho até que ele exagerou. Fico assim porque eu não sei lidar com posições: sou o melhor, sou o único. Eu acho que a gente vê o preço das passagens Teresina-Centro do Brasil e a gente consegue viajar, consegue ser convidado constantemente, a gente consegue se misturar, o nome Teresina está em todo lugar. Eu chego no Japão, em Quebec, na Bélgica, em Portugal e tá Teresina, Teresina, Teresina nos cartazes escrito, nos programas. Claro que as pessoas sabem que existem Rio e São Paulo, claro que as pessoas de fora sabem, os próprios paulistas e cariocas sabem, mas é uma coisa que me impressiona honestamente, de uma maneira que até me deixa tímido. Eu tenho dado palestras e workshops sobre a implementação do Núcleo do Dirceu na América Latina. Eu fiz isso no Peru, no Equador, no Uruguai, de me levarem daqui para lá só para eu falar da implantação desse projeto e de como funciona. Eu não podia esperar mais. De novo, eu não tô dizendo isso como: “Nós somos os únicos”. O que eu gostaria que fosse é que os coreógrafos daqui, a Luzia Amélia, o Sidh Ribeiro e outros conseguissem sair com seus projetos, conseguissem produzir mais. Eu já ouvi de coreógrafos assim: “Ah, eu ganho muito mais com festa de debutante e com festa não sei de que, isso é mercado de dança”. Mais ou menos. Isso não é mercado de dança. Isso é um mercado - com todo respeito pelo mercado. Eu tô falando de dança como arte, como criação, como alavancar o pensamento, como fazer parte de uma comunidade. A arte tem um lugar muito específico no mundo, e no Brasil, hoje em dia, é uma das únicas coisas que a gente tem. É a possibilidade artística de promover coisas. A nossa inteligência, a nossa subjetividade, a nossa sensibilidade. Então assim, não vamos colocar tudo no 79


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mesmo saco. Festa de debutante, casamentinho, festa da medalha, festa não sei de que. Isso é um outro tipo de dança, com todo respeito. Eu tô falando de arte, de cultura, de criação, de alguma coisa que tem uma potência, não vamos misturar as coisas. Não quer dizer que a arte é melhor que o mercado, mas são mercados distintos. Teatro não é igual a televisão. Não é. E eu acho que teatro é melhor que a televisão. A televisão tem o selo capitalista, um sistema de manipulação, de nivelamento por baixo do povo brasileiro. Eu acho que é uma das piores coisas que se faz no Brasil é novela. Eu acho aquilo terrível. Victória - Como você enxerga a cobertura jornalística sobre dança aqui no Piauí? Marcelo - Ai...É uma tristeza...É uma tristeza grande...É muito difícil. A gente não tem um crítico de arte. Nós não somos só no Brasil. Na verdade, a maioria dos estados e cidades não têm, nós estamos com a maioria. E eu acho ruim demais. Eu também sofri pessoalmente com a imprensa do Piauí. Quando eu saí do Teatro, eu não recebi nenhum apoio realmente de ninguém. A Prefeitura mandou todo mundo calar. Foi exatamente isso que eles fizeram com o Teatro...Eu acho...Eu acho...Uma lástima. Não tem nenhuma articulação, não tem nenhum conhecimento. O que eu sinto é que as pessoas não entendem nada de arte. Não entendem! Não procuram se especializar. Eu gosto disso aqui mais do que outros lugares e é consciente eu ter voltado para cá. Se não for amar Teresina, eu não sei o que é amar um lugar. Porque se amar Teresina for ficar em coquetel e grupinhos e dizer que somos piauienses, eu não sou piauiense realmente. Dei uma palestra para 80


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o Curso Técnico e pensei: “Quanta gente!”. Foi um frescor para mim, ver pessoas novas, sabe? Tem muita gente que quer dança, é muito bom, eu fico muito excitado com isso. Mas assim, o Jornalismo...Como é que faz? Será que eles querem? Será que eles querem realmente escrever sobre arte, ou não? Ai eu te pergunto, é por que não tem ninguém pra escrever sobre arte? É por que nao tem espaço no jornal? É por que não interessa? É por que não tem importância nenhuma? Quando eu vinha da Europa eu sempre participava de amigo-oculto na TV. Hoje em dia eu não consigo, eu vomito se pensar em participar de um programa de amigo-oculto na TV piauiense. Eu entro em coma. Mas na época, quando eu trabalhava no Teatro, eu era garoto-propaganda, eu dava três, quatro entrevistas por semana. Eu não fazia outra coisa, eu promovia o nome do Teatro, da Prefeitura. Hoje em dia, eu não faço mais nada, eu parei. Eu ainda tinha muita coisa pra falar dentro de mim. Hoje em dia não tenho mais, botei tudo pra fora na Revestrés², foi uma catarse. Não tenho o menor problema em ser entrevistado, sabe? Se precisar de uma entrevista eu dou entrevista, mas não me bote pra fazer dever de casa e ficar respondendo perguntinhas de como é ser glamouroso morando na Europa porque isso não interessa nem a mim, nem a ninguém dessa cidade, que as pessoas não são imbecis. Eu sou artista, eu tenho profissão, eu não sou uma pessoa pra ficar respondendo como é incrível viver na Europa. A Revestrés, por exemplo, eu acho um veículo de comunicação muito corajoso de Teresina, eu acho que representa de alguma maneira o novo jornalismo. Eu ainda acho que eles têm conseguido fazer muita coisa pelo jornalismo mais cultural. Eu também estudei Jornalismo, eu estudei três anos Jornalismo, eu queria ser jornalista quando eu não sabia que eu podia ser artista. Eu fui estudar, fui escrever, eu me interesso, eu leio jornal, 81


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mas os daqui são difíceis né?! Victória - Como você vê formação e mercado para dança no estado? Marcelo - Eu acho que tem muito para se fazer. Tá começando a chegar em um ponto que eu sinto que as pessoas estão tendo necessidade. O Curso Técnico já aponta uma necessidade coerente das pessoas aqui de estudarem dança. É, realmente, uma disciplina que precisa ser estudada. Formação em dança é uma coisa muito séria, tá sendo discutida muito no Brasil e no mundo porque ainda não se tem um modelo claríssimo do que é formação em dança. Inclusive, os cursos universitários que estão abrindo são muito criticados, não estão formando as pessoas. As próprias pessoas da PUC-SP, do curso de Artes do Corpo que é um dos mais conhecidos do Brasil e um dos melhores pra mim, se questionam muito sobre o que é a formação, se as pessoas estão saindo formadas ou não. Então, eu sinto que a gente não está sozinho nisso. Sinto que a gente precisa ainda dar uma atenção a isso. É imprescindível que a cidade e o estado se engajem nisso, coloquem dinheiro, façam espaços, façam programas. Sem isso, não vai ter criação, não vai ter mercado, não vai ter formação. Nós não podemos fazer isso sozinhos. O curso na Universidade vai alavancar, mas isso não vai solucionar. Eu, na verdade, acredito muito em formação como grupos de trabalho e de estudo, o que a gente faz aqui há três anos na Oficina de Pensamento, toda segunda-feira, pra mim é um projeto de formação, que eu diria, um dos mais importantes daqui. Não é o único, não é o melhor e não é “bastou fazer a oficina de pensamento”. Acho que falta isso, um lugar na cidade em que as pessoas possam ir trocar, fazer aulas, fazer seu treinamento, sua prática, se 82


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manter. E outra instância de estudos, de trocas, de residências, de pessoas que vêm para que esse conhecimento seja um pouco mais espalhado, não venha só pra cá ou só para lá. Mas é uma discussão grande sobre o que é formação na realidade. Victória - Às vezes tem 20 pessoas, às vezes tem 100 pessoas assistindo seu trabalho no Galpão. Como você enxerga a relação do público com a dança aqui no Piauí? Marcelo - Difícil, difícil. As pessoas não estão preparadas para uma coisa que elas não entendem. O teatro fica cheio pra assistir um espetáculo de gente de novela. Pra mim, na verdade, é uma tristeza ver o teatro cheio de pessoas que vão buscar esse tipo de informação. A gente fez muito ali no Teatro para formação de público, mas não o suficiente. O público tem melhorado, por incrível que pareça. As coisas que vêm de fora são sempre muito cheias. A gente tem tido um público muito diversificado que eu acho interessante. É sempre comunidade, gente da universidade, amigos, artistas, tem segmentos diferentes. Eu acho mais interessante ter um público mais heterogêneo. Agora, Teresina tem uma classe média altíssima, riquíssima, pessoas que realmente não podem trazer seus carros para o Dirceu porque são muito ricos e muitos importantes. Eu fico muito impressionado em como as pessoas se acham nessa cidade. As pessoas saem para assistir peças no Rio de Janeiro, tem coisa mais triste do que isso? Então, a classe média não vem e eu realmente não sinto falta dela. A gente não faz nada assim, popular, no sentido, banda de forró. Nós estamos realmente interessados em uma produção de novas artes, de novas possibilidades. Pra te falar 83


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a verdade, eu tenho sentido nos últimos dois anos, só de forma positiva o público aqui, mesmo quando é só 40, 30, 20. Não tem problema. Não acho que a gente tem que pensar em público sempre em quantidades grandes. Eu acho que, no público, o mais importante são as pessoas que vêm, que voltam, que trazem uma pessoa. Mas eu acho muito complicado, ainda, público para dança; acho que a própria linguagem é difícil. Eu não vou a nada. Honestamente eu não vou. Eu sei que quando tem novela o teatro lota. Entende? Lota o Teatro 4 de Setembro. Sei que para os humoristas tem público sempre, ganham dinheiro. Não vou, não vou a nada. Agora assim, eu tô acostumado a ir em São Paulo, que tem 20 milhões de habitantes e tem 20 pessoas vendo dança, é muito normal. Assim, ou 80 pessoas quando é um espetáculo incrível que veio da Bélgica. Isso não é só aqui, é uma coisa geral, dança é uma linguagem difícil, não sei se as pessoas não têm paciência para esse tipo de subjetividade. Mas não é uma coisa que eu me preocupe em: “Ah, eu tenho que fazer alguma coisa pra somar muita gente”. Não, eu faço o que eu preciso fazer, o que eu tenho urgência de fazer. Eu sei que a minha arte não é fácil, de fácil acesso, é difícil, mas eu também não tô aqui pra facilitar porque eu não acho que as pessoas são idiotas, eu não acho que eu tenho que fazer chapeuzinho vermelho, não é meu caso. Victória - Como você enxerga a política cultural para dança aqui no Piauí? Marcelo - (Risos). Não tem. É inexistente. Não temos uma lei, temos o SIEC, que é a lei do Estado que não funciona e temos a lei A. Tito Filho que não paga. Nós não temos política cultural, nós temos que dizer isso em alto 84


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e bom tom: Nós precisamos de política cultural. A política cultural aqui é feita pelos artistas do Galpão, é feita por você que se interessa em falar disso, é feita pelo Sidh Ribeiro, pela Luzia Amélia, pelo Frank Lauro, pelo Helly Batista Jr, pelo Datán Izaká, Janaína Lobo, Weyla Carvalho, à sua maneira. São as pessoas que estão fazendo coisas, produzindo coisas e levando para fora. Essa é a política cultural que existe aqui. Não existe política da parte dos políticos em Teresina. Isso é um absurdo. Eu ganhei o SIEC para fazer o Matadouro em 2009 e eu nunca fui pago nenhum tostão. Eu tô há cinco anos esperando a subvenção de um espetáculo que já tá rodando. Não existe política cultural, não existe respeito com cultura. Cadê a Lei A. Tito Filho? Cadê o SIEC? Cadê os novos dirigentes? Quem vai ser o Secretário de Cultura agora? Eu não tô falando de dinheiro. Política cultural não tem a ver diretamente com dinheiro. Tem a ver com articulação, com interesse, com engajamento. E aí o dinheiro tem que tá também porque assim como a saúde, o trânsito têm, a cultura também tem que ter o orçamento dentro de todos os orçamentos de estado, de país, de cidade que a gente não vê. Não me venha com a história de fazer um Folguedos, um São João e dizer que isso é política cultural. Não me venha com gincana, com festinha de aniversário de cidade. Não tem política cultural aqui e é um escândalo. É uma coisa escandalosa.

___ ² Revestrés - Revista cultural bimestral que existe no Piauí desde 2012.

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“Não me venha com a história de fazer um Folguedos, São João, festinha de aniversário de cidade e dizer que isso é política cultural”. 87


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“Eu sei que a minha arte não é de fácil acesso, mas eu também não tô aqui pra facilitar porque eu não acho que as pessoas sejam idiotas”.

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“Eu me pergunto qual é a companhia de dança que tem seis espetáculos rodando pelo mundo? Se a Déborah Colker tem, se o Grupo Corpo tem porque a gente tem”.


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Frank Lauro - Um começo -

Fotos: Acervo pessoal

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Do karatê ao balé. Um dos primeiros homens a praticar dança no Piauí, Frank Lauro defende: “Tem espaço para todo mundo”. 94


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No palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, ensaiava o coral piauiense do maestro Reginaldo Carvalho. No meio do grupo, um dos coralistas reparava nas aulas de balé que aconteciam ao lado. Irritado, o maestro parou a regência e repreendeu: “Lauro, você quer cantar ou dançar?”. Da curiosidade dos passos assistidos, surgiu o interesse pela dança do bailarino e coreógrafo Frank Lauro. Filho único, saiu de Parnaíba com destino a Teresina acompanhado dos pais. “A gente morava em Parnaíba e veio morar em Teresina já em 1966. Meus avós moravam aqui, meu pai queria outra vida, se aposentou e viemos morar na cidade”, conta. Se o pai olhou torto quando o filho começou a dançar, hoje Lauro olha com orgulho para a filha Anne Jullieth, de 13 anos, premiada em festivais Brasil afora e que já competiu em Nova York no Youth America Grand Prix (YAGP). “A Jullieth está despontando no Piauí, no Brasil”, orgulha-se. Coreógrafo do Balé Popular do Piauí, fundado em 1986, Lauro teve seu primeiro contato com arte neste coral do maestro Reginaldo Carvalho, artista paraibano que veio ao Piauí a convite do então governador Alberto Silva e faleceu em 2013. “No final de 1974 ele foi nas escolas escolher alunos para participar de um coral e em 1975 a gente se apresentou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Foi onde eu me interessei por dança. Quando eu voltei para cá, ainda não havia dança no Piauí. Eu fiquei cantando no coral até que conheci Eleonora Paiva e fui para a academia da Dona Lenir”, diz Frank Lauro. Além da experiência de coralista, Lauro trabalhou como ator durante 12 anos no Grupo Teste de Espetáculos sob a direção do teatrólogo 95


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Tarcísio Prado, um dos primeiros diretores do Teatro 4 de Setembro. Mas foi com Eleonora Paiva que iniciou sua carreira na dança. “Ela já tinha uma experiência bem legal. Então, eu a conheci em 1977 e a gente começou a trabalhar. Ela formou o primeiro grupo de dança do Piauí chamado Avoantes”. Marcelo Evelin, Lenora Lobo, Zeca Nunes. Todos convidados por Eleonora Paiva para ministrar oficinas nos anos de 1987, 1988, 1989. “Ela trouxe muita gente para o Piauí. A gente começou a pegar a forma de um trabalho mais contemporâneo”, relembra. Com coreografias de Eleonora Paiva, o grupo durou cerca de cinco anos e era formado por artistas como Viviane Maranhão, Manoel Messias o Nezinho, Cleber Moura Fé e chegou a viajar pelo interior do Piauí e fora dele. “Ela fez um trabalho chamado Sentinela com as músicas de Milton Nascimento. Em 1981, a gente foi para São Paulo e tivemos a oportunidade de conhecê-lo. Ele recebeu a gente muito bem, mas disse que era uma pena não poder assistir ao nosso espetáculo porque era no mesmo horário do seu show. Uma pessoa muito simples”, conta Lauro. Sucessivamente, Frank Lauro conheceu Lenir Argento e começou a fazer aulas em sua academia. De volta ao Piauí em 1976, Dona Lenir era famosa pela rigorosidade. “Ela dava aulas de clássico e foi quando eu comecei a fazer aula de balé. Então, eu fazia dança clássica com Lenir Argento e à noite a gente ensaiava com o grupo Avoantes. Logo em seguida, foi todo mundo chamado para a Escola de Dança do Estado do Piauí, fundada em setembro de 1985”, relembra quando se refere ao início da escola onde foi 96


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professor durante a maior parte do tempo e onde chegou a assumir a direção já nos anos 2000. Nessa trajetória, conheceu o interior do Piauí realizando oficinas artísticas e participando de eventos oficiais do estado. Com a proposta de trabalhar a linha folclórica, surgiu, então, o Balé Popular do Piauí em 1986, com apoio do Governo do Estado através da FUNDAC, que ficou certo tempo desativado, mas existe até hoje. “O Balé já vai fazer 29 anos”, conta. Na busca de uma referência consistente, encontrou inspiração no trabalho de Márika Gidali. “Sempre montei meus trabalhos inspirado nela. Tive a oportunidade de conhecer o pessoal do Ballet Stagium, de fazer aula com eles. Eu fui, fiz meu trabalho, conversei, fiquei encantado. O meu trabalho do Balé Popular sempre foi espelhado no trabalho do Ballet Stagium, foi uma companhia que me deu muita experiência”, considera. Com mais de 30 anos de dança, Frank Lauro passou pelo canto e teatro, mas também pelo esporte e artes marciais. Foi nadador e é faixa marrom de karatê. Quanto ao ambiente de trabalho no Piauí, é enfático: “A minha tecla é que tem espaço para todo mundo, cada um faça o seu trabalho e pronto!”. Victória - Quando você decidiu dançar, o que sua família pensou à respeito? Existia preconceito? Lauro - Tinha, demais. Tanto que meu pai ficou meio assim. Eu saia de casa com a malha por baixo do quimono do karatê. Quando eu ia trocar de 97


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roupa no karatê os meninos ficavam brincando comigo e inventaram um apelido, me chamavam de “balatê”, mistura de balé com karatê. Eu fui nadador, representei o Piauí em competições de natação, em jogos escolares brasileiros. Quando sai da natação fui para o karatê, sou faixa marrom. Fui professor do Círculo Militar, participei de campeonatos do Norte-Nordeste em Fortaleza. Ganhei e perdi. O atleta ganha e perde. É como a dança. Você vive de competições. Eu sou uma pessoa muito de competição, mas sem grilo. Ganhou, ganhou; perdeu, perdeu. Se perdeu, tem alguma coisa errada pra você trabalhar e chegar a algo melhor. Dando aula no Círculo Militar, encontrei uma bailarina, ela fazia capoeira. A gente começou a se cruzar e terminou ela me levando para a Academia da Dona Lenir. Era a Ana Eudes, a gente namorou e ela me levou para o balé. Eu disse: não dá pra mim. Ela falou que, para a gente namorar, eu teria que fazer balé. Ela saiu da capoeira e foi para o karatê. Ela deixou a capoeira por minha causa e eu fui para o balé por causa dela. Não tinha homem lá e eu fui o primeiro a fazer isso. Depois é que foi aparecendo. A minha ida já foi boa porque começou a trazer outras pessoas. Victória - Como se deu sua relação com o folclore? Lauro - Quando eu assisti Dança das Cabeças, do Stagium em São Paulo eu fiquei fascinado. Pensei: Lá no Piauí tem tanta coisa linda. É importante em uma cidade, que é capital, ter um grupo de dança folclórica. Tem muito grupo de dança contemporânea, muito trabalho clássico, mas tem pouca 98


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gente trabalhando na linha folclórica. Desde a fundação do Balé Popular em 1986, eu já montei o Cabeça de Cuia, a lenda de Zabelê com coreografia do Sidh Ribeiro, entre outros trabalhos. Então, de certo tempo para cá, já há 10 anos, eu comecei a trazer os ex-alunos do Balé Popular para montar trabalhos. Chamei Sidh, depois chamei a Socorro Bernabé, que fez um boi, ganhou aqui, ganhou em São Paulo, foi para Belém no Festival Internacional. Por último agora eu conheci o José Nascimento, que fez um trabalho mais contemporâneo, que foi o Casa de Taipa. E agora eu vou remontar um poutpourri coreográfico. Eu quero começar esse trabalho em janeiro com novo elenco. Victória - Enquanto se dava o trabalho com o Balé Popular, seus contemporâneos produziam de que forma? Lauro - Na época aqui? Era pouca gente. A produção da dança aqui veio começar depois que a Escola se mudou para a Central de Artesanato. Surgiu o Balé da Cidade, a companhia da Luzia, a companhia do Sidh, tinha as academias do Júlio César, do Helly Batista. Victória - Como você percebe a dança no Piauí? Lauro - A dança cresceu muito. Isso é muito bom para a gente. Tem espaço para todo mundo. Cada um faz o seu trabalho. O caminho é esse. Muita gente viaja. Hoje em dia tá muito fácil viajar. O leque tá muito aberto, 99


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já vieram muitas pessoas para cá, como ainda vêm no Festival, tem gente ganhando bolsa. As pessoas se preocupam em querer aprender, se preocupam em ir atrás das informações. Isso é muito importante. Victória - Então, isso é diferente de uma realidade mais antiga? Lauro - Naquele tempo era pouca gente que saia do Piauí pra ir a São Paulo, por exemplo. Hoje em dia não, você tá indo é pra Europa. Faz ponte, vai e volta. Isso é muito bom. Só temos a ganhar. Antigamente até pra você ouvir uma música era difícil. Hoje não, você não precisa nem ir na loja. Você baixa pela internet uma boa música. Uma trilha. Victória - Como você enxerga a dança do Piauí diante de um cenário nacional e internacional? Lauro - A dança do Piauí não deixa nada a desejar para a dança nacional. Porque várias pessoas aqui do Piauí estão ganhando prêmios em São Paulo, no Rio de Janeiro. Não só a dança, o teatro também, a música. Então, o Piauí é muito rico. Mas a dança eu conheço, eu viajo, eu vejo o que está acontecendo lá fora. Os grandes profissionais da dança do sul do país, dos festivais que eu digo de São Paulo, de Joinville, eles vêm para cá para serem jurados e levam bons trabalhos. Victória - Você atribui essa consequência a alguém, a algum trabalho ou 100


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grupo? Lauro - O Helly Batista morou em São Paulo. Ele era mais velho que eu pouco tempo, mas teve oportunidade de morar em São Paulo. Eu só fui, mas não morei. Vou e volto. Quando ele chegou ao Piauí, praticamente depois que a Dona Lenir chegou, veio morar na cidade dele e sempre quis trazer novidade pra cá. Conseguiu trazer muita gente importante. Ele criou um festival que trazia muita gente para cá. Era lá na Academia dele e convidava muita gente. Então, ele criou isso, um vínculo com políticos e teve a ideia de fazer a Escola de Dança do Piauí. Então, na época ele levou o projeto para a Secretaria de Educação e convidou várias pessoas pra entregar esse documento e foi aceito. Ele se preocupou com a dança. Victória - Como você vê formação em dança e mercado no Piauí? Lauro - A Dança cresceu muito, mas a universidade não tem a cadeira de dança. Tem muita gente trabalhando nisso e eu acho que está andando. Isso é muito importante para que a dança cresça mais. Na Escola de Dança tem vários profissionais que são formados, não na área de Dança, mas na área de Educação Física. A própria Escola de Dança tem condições de formar, como já fez com muita gente. É uma escola que cresceu de brincadeira e os governos que entraram com o recurso para poder legalizar a documentação, ouviram por um lado e saiu pelo outro. E a coisa vai passando. Mas, tem mercado. Tem lugar para todo mundo. Muita gente está fazendo um 101


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trabalho legal. Poxa, temos o Festival de Dança de Teresina. Não é obrigado você ir participar do festival, mas vai lá conhecer, fazer uma oficina, um curso, procurar se informar. Eu vejo grupo no interior que procuram a gente pra conversar, pra ministrar uma oficina uma semana, dar uma aula, conversar. Victória - Como você enxerga a cobertura jornalística da dança no Piauí? Lauro - Tem pouca coisa. Se você é jornalista, você tem que ir atrás das informações. Aí tem um espetáculo tal dia e eu ligo pra televisão. No meu tempo de teatro eu fazia assim ó, vai ter um espetáculo de teatro aqui, dá pra tu vir aqui? A televisão: ah não dá não porque a gente foi fazer outra coisa. Quer dizer, hoje em dia tem, mas não é muita coisa. No próprio Festival de Dança da Prefeitura, eu vi uma reportagem lá. Quer dizer, era pra ter muita gente, é um evento importante. Então, eu acho que não tá muito bom, que deveria estar melhor. A imprensa é muito grande, tem jornal, televisão, tem muito programa, a gente não tem que ir atrás. Victória - Como você enxerga a política cultural para dança no estado? Lauro - Tem reuniões que às vezes a gente é chamado, às vezes não é. Tem reuniões que é só para o pessoal brigar, entendeu? Eu já tô me aposentando, já fiz o meu trabalho, continuo fazendo, então quem quiser alguma coisa que me procure, eu mesmo não vou procurar ninguém porque as pessoas 102


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gostam muito de brigar, discutir coisas que não tem nada a ver, coisas pessoais. Isso aí não leva a nada. Acho que você tem que chegar, dizer: Vamos fazer isso. E fazer. A minha tecla é que tem espaço para todo mundo, cada um faça o seu trabalho e pronto. Mas que tem que ter essa política cultural, tem que ter porque se não, não vai adiantar nada. Falta iniciativa é dos governos. Mesmo os artistas estando organizados, quando levar o pepino pra descascar lá, quando chega para o governo ou para o prefeito, a coisa não acontece. Ai termina todo mundo indo embora do Piauí, fazendo seu trabalho independente. Não sei até onde vai isso. Eu acho que falta verba porque vontade todo mundo tem. Quando chega na despesa, não vemos. Às vezes, eu faço a parte da coreografia todinha, que depende só de suor e tempo pra montar o trabalho, mas quando chegar no figurino, no adereço, cadê a verba? Tarcísio Prado foi montar um trabalho uma vez, ele montou o trabalho todinho, mas quando ele foi para o governador, o cara pulou bem acolá. Quer dizer, quando a gente tem uma produção boa, o artista faz um trabalho bonito porque tem dinheiro para aquilo.

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“O atleta ganha e perde. É como a dança. Você vive de competições”.

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“A dança do Piauí não deixa nada a desejar para a dança nacional”.

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“A minha tecla é que tem espaço para todo mundo, cada um faça o seu trabalho e pronto”

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Sidh Ribeiro - 1,50 de Dança -

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Se tamanho não é documento, para Sidh Ribeiro muito menos. Bailarino e coreógrafo, conquistou prêmios Brasil à fora e defende: “Nós somos os empíricos da dança”.

Foto: André Gonçalves 112


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De um namoro adolescente surgiu a exigência de saber dançar. “Eu tinha uma namorada e ela reclamava que eu não sabia dançar. Algum tempo mais tarde, dois amigos de infância se revelaram muito bons dançarinos nas festas. Eu vi aquilo e achei fantástico. Isso me despertou”, diz Sidh Ribeiro, bailarino e coreógrafo. De Carnaubal, no Ceará, Sildemonio Ribeiro é o caçula de quatro filhos. Os pais chegaram a morar em Codó, no Maranhão, mas foi em Teresina que se estabeleceram. “Eu vim para Teresina há mais de 30 anos”, diz ele, ao contar que, quando adolescente, ajudava os pais vendendo cocada, frutas e verduras. No outro turno, praticava futebol no Clube de Jovem Mafrense, zona Norte de Teresina. “Lá eu jogava minha bola, fui entrando para os times e, paralelo a isso eu fazia artes marciais. Eu nunca soube dançar. Eu era jogador de futebol dos 12 aos 15 anos”, revela. O pai, vendedor de verduras e analfabeto, não interferiu na sua decisão de dançar, apesar da resistência à princípio. “Meu pai trabalhava na Ceasa. E sempre indagavam: ‘Você não se incomoda de ter seu filho dançando? Falam que quem dança tem essas coisas de viado’. No ato, o pai não titubeou: “Eu não tenho nada a ver com negócio de viado. Ele vai ser o que quiser”, enfrentou. Os amigos criaram um grupo no bairro e dançavam Michael Jackson, a partir dos passos vistos na televisão. “Na realidade, a namorada foi só o ponto de dizer assim: eu vou pra arte. Já jogava bola, já fazia karatê e capoeira. Então, o corpo já tinha um certo gingado. Isso era meados de 1985, quando eu tinha 17 anos”, conta. A brincadeira se tornou algo sério quando Sidh Ribeiro foi convi113


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dado por um dos colegas do grupo a fazer uma aula de dança. “Então, a gente foi para um lugar onde quem dava aula era o Frank Lauro e a dona da academia era Marinês Mendes Medrado, ex-diretora da Escola de Dança do Estado do Piauí”. Apesar do primeiro contato, foi o curso seguinte que o fez seguir carreira. “Em 1986 nós fomos alagados. A zona norte inteira foi invadida por água. Um belo dia, isso eu lembro, 17 de fevereiro de 1986, eu estava passando na frente do Teatro 4 Setembro; alagado, morando na casa de parente e um cara assobia pra mim. Quando eu olho é o Lauro. ‘Ê rapaz, sobe aqui’. Eu nunca tinha entrado no teatro”. Aos 18 anos, Sidh foi convidado para fazer o curso de dança com Helly Batista, Eleonora Paiva, Manoel Messias - o Nezinho, Ana Eudes e Frank Lauro. Após o intensivo, continuou os estudos na Escola de Dança do Estado, integrou o primeiro elenco do Balé Popular do Piauí e dirigiu uma oficina no Teatro do Boi que deu origem ao Balé da Cidade de Teresina, companhia municipal que completou 21 anos. “A dança tem que tirar o chapéu para Helly Batista, tem que reverenciar porque nós conhecemos muitos bailarinos famosos por causa dele. Ana Botafogo e Cecília Kerche são só dois nomes mais conhecidos, mas teve muito mais gente, que vieram de Brasília, Bahia, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. Tivemos o privilégio de trabalhar com Marcelo Evelin, Lenora Lobo, Eleonora Paiva, Dongo Monteiro, Zeca Nunes e Marly Tavares”. Aluno desses profissionais e colega de palco de artistas como Ivoneide Ribeiro, Adalmir Miranda, Edimilson Augusto, Andira Gomes, Sidh 114


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tem um ídolo especial: Mikhail Baryshnikov. “O meu ponto de fusão para a dança, para me desenvolver chama-se Mikhail Baryshnikov”. Enquanto fundador do Balé da Cidade de Teresina e diretor por 11 anos criou espetáculos que foram premiados em festivais como o Passo de Arte, em Santos (SP) e Festival Internacional de Dança de Joinville (SC) com coreografias como Fantasia Nordestina e Por Nós o Silêncio. “No primeiro elenco tinha pessoas como Ivoneide Ribeiro, Roberto Freitas e Fernando Freitas. Foi aí que formamos o Balé da Cidade de Teresina, chamada anteriormente de Balé Experimental do Teatro do Boi”, explica. Com 1,51 de altura, Sidh subverteu alguns paradigmas da dança clássica ao provar que tamanho não é mesmo documento. “Eu sempre gostei de trabalhar com a coisa heterogênea. Porque tudo que eu ouvi a minha vida inteira foi: Ah Sidh, você não seria o primeiro bailarino porque você não tem altura. E, realmente, por muitos anos foi assim. Então, já que eu não posso isso, não posso aquilo, se eu tiver a possibilidade de dirigir e coreografar eu jamais vou querer alguém igual. Eu trabalho com magro, gordo, alto, baixo, feio, bonito, pé torto, pé correto, pé em X, pé cambota”, defende. No Balé da Cidade de Teresina, inspirado pelo sopro da vida, Sidh criou espetáculo em homenagem à sua mãe que foi hospitalizada. “Eu estava dando aula quando minha irmã ligou e disse que a válvula do coração dela estava com problema. Saí voando. Quando eu parei, eu ouvi o sopro do carro. Fomos para o hospital. Eu fiquei um mês com minha mãe hospitalizada para fazer cirurgia do coração enquanto minha irmã estava grávida na maternidade”. 115


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Sidh se dividia entre um hospital e outro: a mãe na UTI e o sobrinho na encubadora. A respiração falha, as mãos de um bebê se mexendo, a iminência do início de uma vida e do fim de outra deram início ao espetáculo Vida (1999). “Eu via os bracinhos do bebê com minha irmã, minha mãe fazia um gesto, na UTI, pra me chamar. Isso me chamou a atenção”. O movimento que marcava o espetáculo era soprar os dedos se mexendo em frente ao rosto. Emocionado, o coreógrafo revela que a mãe resistiu à cirurgia e chegou a assistir ao espetáculo. “O sopro é a vida em movimento. Eu disse: Mãe, vou criar um balé em sua homenagem e vai se chamar Vida. A voz vai saindo pouca agora, os olhos vão enchendo de lágrimas porque é isso”, conta emocionado. Na trajetória de três décadas formou-se em Marketing pelo Centro Internacional da Uninter e especializou-se em Metodologia do Ensino de Artes pela mesma instituição. Conheceu o Nederlands Dans Theater, companhia de dança contemporânea na Holanda à convite de Marcelo Evelin e montou a academia de dança Le Ballet, fundada há 18 anos em parceria com a sócia e então esposa Ivoneide Ribeiro. Quanto à arte local define a política cultural para dança como ineficiente: “Já ouviu a expressão ‘varrer para debaixo do tapete’? Todo mundo acha que está tudo limpinho, mas a sujeira está lá debaixo”. Victória - Como você percebe a dança no Piauí? Sidh - Quando se teve o primeiro registro de dança, eu acredito que foi mais no sentido cultural com o grupo Avoantes de Eleonora Paiva. Os meninos e 116


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as meninas adoravam dançar. Não se tinha, além deles, tantos grupos, não havia competição. Mais tarde, veio as academias, criaram o Balé Popular do Piauí, que foi o grupo logo depois do Avoantes, que também era um grupo social, onde as pessoas dançavam porque adoravam dançar. Ninguém estava preocupado com dinheiro. Nunca ouvi ninguém dizer: Ah, hoje eu não vou pro balé porque eu não tenho vale. Hoje a gente escuta muito os bailarinos dizerem isso, mas naquele época, a gente ia porque curtia. Volto a repetir, todo mundo dançava por prazer. Hoje não. Logo após o Balé Popular se criou as academias e vários outros grupos até a chegada do Balé da Cidade de Teresina, que também, no início, era apenas um grupo totalmente cultural, onde todos os bailarinos iam para o Teatro do Matadouro de graça. Nós voltávamos à pé, do Matadouro para o Centro, e eu acabava parando no seu Abrahão e, lá, a gente comprava alguns sucos, alguns pães e dividíamos. Era uma época muito bonita. Mais tarde, o Balé saiu do Teatro do Matadouro e foi para a Casa da Cultura, já com esse nome de Balé da Cidade, porque até então era Balé Experimental do Teatro do Boi. Começamos a viajar, que foi uma sugestão minha, começamos a ganhar alguns prêmios, e quando voltamos, a Fundação instituiu uma ajuda de custo. Logo mais tarde, o Balé da Cidade começa a ganhar proporções, começa a dançar muito em Teresina, começa a ser chamado para todos os eventos da cidade, e aí chegou-se à conclusão que o Balé precisava receber. Aí nós começamos a receber nossos primeiros salários. Isso era fantástico porque pela primeira vez na história do Piauí um grupo recebia salário mínimo para dançar. Mais tarde, uma nova conquista foi quando o grupo passa a receber um plano de saúde. E aí eu instituí junto ao grupo para que 117


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nós depositássemos 10% para o fundo de grupo, que mais tarde chegou a 20%. Não sei como está hoje, mas para a pergunta inicial, os grupos vivem de forma muito mais política. Não saberia te dizer se isso por falta de um projeto que fosse mais audacioso ou por acomodação, não dá pra definir. Hoje, você tem um milhão de editais, um milhão de pessoas que sabem trabalhar culturalmente. Então, eu acho descanso, tanto dos grupos oficiais quanto dos competentes secretários que entram para essas pastas. Na minha época, eu era diretor, coreógrafo, relações públicas, era ensaiador, era bailarino, era o cara que ia atrás de tudo. Os grupos têm tudo isso, têm secretários, assistente de direção, coreógrafos residentes, coreógrafos convidados, figurinistas, têm uma gama de coisas que na minha época eu fazia sozinho. Então, se eu fazia só e a gente tinha êxito, agora era pra ter muito mais. Eu acho que nós vivemos hoje, culturalmente, um pouco abaixo. Nós tivemos bons trabalhos, boas representações de trabalhos de dança com Marcelo Evelin, mas as pessoas ainda não estão aptas a receber essas informações, que é complicado, até pra gente que trabalha com dança. É uma outra vertente. Eu brincava muito com o Marcelo: Marcelo querido, eu ainda gosto da velha dança. E ele começava a rir. “Não existe velha dança, nova dança não”. Eu disse: Olha, o que você faz é a nova dança. Eu gosto da velha dança, do dois igual, do três igual, um diferente do outro, mas depois todo mundo igual. É uma figura que eu tenho que reverenciar sempre que eu tenho oportunidade de falar sobre isso porque eu aprendi muito. Eu respeito, é um cara que eu tenho o maior carinho. Vivenciou meus trabalhos, me ajudou muito, ia sempre ao Balé da Cidade. Lauro também é uma figura que eu tenho que agradecer muito, assim como Eleonora Paiva. 118


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Todas as pessoas que passaram por mim foram bem vistas. Os piores também, porque deles eu tirei a certeza de que eu jamais trabalharia no futuro. Mas tem um aprendizado. Mesmo os professores não tão bons, os amigos não tão bons, os bailarinos não tão bons, os que nos trouxeram problema, nos deram um oportunidade ímpar de ver o mundo com outra visão para que a gente melhorasse. Então, a dança é muito isso. Ah, eu não gosto do trabalho de fulano, mas eu respeito, vou assistir aos espetáculos, estou lá para aplaudir, quando eu não gosto, também não critico. Mas essa é uma política minha. Hoje, eu sinto que nós estamos aquém do que já fomos. E com toda tecnologia, todo os investimentos que a gente tem hoje, acho que temos que buscar novos horizontes. Victória - Como você enxerga a dança produzida aqui no Piauí, diante do Brasil e do mundo? Sidh - Nós ainda estamos capegando um bocadinho. Acho que poderíamos estar melhor porque muitos dos nossos grupos não saem mais daqui. Eu costumo dizer que os festivais competitivos vão existir sempre. Eu sou adepto dos festivais competitivos como sou adepto das mostras. Algumas pessoas criticam que os festivais competitivos não servem, mas a nossa vida é uma competição! Você acorda e já é uma competição. Então, o universo é competitivo. Acredito que se nossos secretários dessem mais atenção ou delegassem essas funções a um grupo, não digo uma só pessoa, digo um grupo de pessoas competentes no setor cultural, nós já teríamos conquistado outros espaços. As pessoas tem muitas conquistas lá fora. Tem grupos 119


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que fazem projetos, como o pessoal da Semana Maranhense de Dança, os meninos vão atrás das coisas. Nós fazemos um (festival) aqui, mas que deixa um pouco a desejar. Por que eu digo a desejar? Porque o que está pra mim no edital, é o que tem que valer no final. Quer dizer, no final de um festival desses, chega a ser criado 10 prêmios fora do edital. Eu não posso, de forma alguma, pensar que um festival desses tem seriedade. Então, o que falta é nós arriscarmos um pouquinho mais. Em São Paulo e em outros festivais, eu descobri que as pessoas têm uma visão totalmente errônea do que somos no Nordeste. Então, as pessoas não acreditam que nós temos coca-cola e TV à cabo, elas ainda acham que somos índios. Isso foi bom pra mim porque eu consegui, com um pouco de trabalho, mostrar que o Piauí tem cultura. Lógico, eu não posso esquecer. Quem já vinha mostrando isso? Eleonora Paiva, Marcelo Evelin, Lenora Lobo, que sempre, indiscutivelmente, mesmo estando na Holanda, nos Estados Unidos, em Londres, em qualquer lugar, não deixaram de dizer: Olha, eu sou do Piauí. Eu, Sidh Ribeiro, não sou piauiense, de nascimento, mas sou piauiense de alma. Eu sinto em Teresina que, quem faz alguma coisa é muito “eu”. Eu! Eu! Eu! Dificilmente você escuta “nós”. Eu trabalhei com o Balé da Cidade somente com essa possibilidade do nós. Eu nunca quis trabalhar sozinho, afinal de contas eu tenho horror à solidão. Pra mim, grupo, entidade, qualquer coisa que dê certo é uma equipe. Eu não acredito em grupo que não há equipe, não acredito em grupo que, para sobreviver tenha que acabar com o outro profissional, tenha que fazer montinho numa porta, ridiculamente, de um secretário de cultura. As pessoas aqui dizem assim: Se colocar fulano pra fazer isso, nós vamos retroceder. Como se as pessoas achassem que retro120


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ceder é feio. Retroceder talvez seja um dos momentos mais importantes da vida de um ser-humano para ele avaliar o que ele pode fazer no futuro. Só que as pessoas aqui pensam diferente. Nós estamos aquém por isso. Porque não temos uma política cultural definida, não temos uma política social pública também definida. As pessoas estão trabalhando, cada um no seu quadrado. As pessoas tem que deixar de ser cigarra e ser formiguinha. Todos trabalhando para chegar no mesmo objetivo. Victória - Enquanto se dava sua produção, o que você lembra de produção dos seus contemporâneos? Sidh - Tinha pouca gente trabalhando em dança. O Balé da Cidade era o grupo que tinha. O único grupo que antecedeu o Balé da Cidade foi o grupo Avoantes, que dançava Lauro, Eleonora e uma gama de muitas outras pessoas. Fora o Balé da Cidade, já quase capengando era o Balé Popular do Piauí. Por trás vinha o grupo de teatro Harém. Victória - Como você enxerga a política cultural para dança no Piauí? Sidh - Muito ruim. Mas não tenha sombra de dúvidas. Essa política cultural do Piauí é uma política cultural de...Já ouviu a expressão “varrer para debaixo do tapete”? Todo mundo acha que está tudo limpinho, mas a sujeira está debaixo do tapete porque nada funciona. Nós não temos um projeto que faça um grande evento ou que possibilite esses grupos culturais existentes fazerem um trabalho. Quando você vê: Ah, o Le Ballet foi dançar 121


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em Joinville. O Le Ballet pagou para os bailarinos irem para Joinville! Ah, o Sidh viajou para a Europa. O Sidh viajou com o dinheiro dele para a Europa e quando o Sidh vem, que dá aula em um projeto da Prefeitura, ele aplica todos os conhecimentos dele no projeto da Prefeitura, só que a Prefeitura não pagou nada pra ele! Já percebemos que nenhum indivíduo até o momento que se intitula da cultura pode assumir uma pasta e dizer que fez alguma coisa. Não! Se o cara é da música, ele só quer saber da música, se o cara é da literatura ele só vai para a literatura. Quer dizer, nós precisamos de órgãos culturais e administradores com visão de cultura. Fazer projetos pequenos. As pessoas querem fazer projetos gigantescos aí fica tudo no papel. Faz pequenos projetinhos, faz uma mostra de dança, de teatro, de música, leva para o bairrinho daqui, leva para a escolinha dali. Por que o Balé da Cidade se tornou, quando eu fui diretor, a maior referência na cidade e um pouquinho fora dela? É que nós começamos pelas escolas. Nós estávamos na mente das crianças. A gente fazia com que as crianças entendessem que aquilo era arte. E respeitar. No início era fogo. Era viado pra cá, baitola pra lá. Depois esses nomes foram sendo trocados para “como eu faço pra fazer dança?”, “onde eu encontro vocês?”. Quer dizer, nossas secretarias de cultura não são secretarias, são fundações e, enquanto fundações, não valem absolutamente nada, vivem de migalhas. Fica dentro de um grupinho de pessoas que estão lá só para se ajeitar. No dia que entrar um secretário que formar uma equipe com o pessoal da dança e discutir quais são as necessidades, provavelmente, começamos. Mas os caras querem fazer o que? É dança? É teatro? É música? É cinema? Vamos fazer o maior do mundo! E o maior do mundo vira realmente a maior burrice do mundo. 122


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Victória - Como você enxerga a cobertura jornalística sobre dança aqui no Piauí? Sidh - Eu tenho alguns amigos jornalistas que ligam para mim e perguntam, o que você tem de novo pra fazer? Quando eu dirigi uma companhia, eu tinha novidade todo dia. Continuo tendo novidade? Tenho, mas não adianta você falar de coisas que você poderá vir a fazer. É legal você falar de uma coisa que está pronta. O que nós não temos é um vínculo tão bom, talvez de alguns diretores dessas entidades com os jornalistas porque as pessoas também se embebedaram pelas mídias sociais. As mídias são fantásticas, mas uma coisa direcionada é muito mais prazerosa. Se eu coloco algo na minha página e você está na minha página, você vai ler. Mas se eu coloco em um veículo de acesso, todo mundo vai ver. Agora, tem alguns jornalistas também que são terríveis. Saem dizendo um monte de coisas, coisa que a gente nunca disse na vida, troca o nome da companhia. Quer anotar no papelzinho? Anota, mas deixa o gravador. Não entendeu aquele assunto? Liga pra fonte de novo. Victória - Qual a relação do público com a dança produzida aqui? Você acha que existe ou falta? Sidh - Se eu falar de hoje, falta. Tem um evento de dança e tem sempre as mesmas caras. Eu disse isso para o Marcelo Evelin: Marcelo, que diabos de formação de plateia é essa que hoje vem o Sidh, a Victória, a Maria e o 123


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João e amanhã vem o João, a Maria, a Victória e o Sidh? Não é formação de plateia. Eu não vejo, hoje, fora as academias. E academia é diferente, a mãe leva todo mundo pra assistir a filha dançando. Isso é fantástico. Mas daquele universo da academia, um número bem pequenininho vai ver o trabalho de dança no teatro de uma companhia de fora. Talvez veja mais a Marília Pêra ou um Porchat daquele. Artistas globais ou televisivos. Hoje, você não vê nem mesmo bailarino indo assistir ao balé dos outros. Ou então, quando vai, vai para criticar de forma desonesta. Talvez, hoje, nós não temos uma produção de dança em Teresina que consegue ter um público diferenciado em suas apresentações. Ou é a namorada do bailarino, o namorado da bailarina, ou é a mãe, ou é a tia, ou é alguém que disse olha, por favor, vai me ver. Entendeu? Ou então, quando você diz assim: Nós vamos apresentar e depois nós vamos dar um coquetel. Todo mundo vai pelo coquetel, pela apresentação não. É só você servir o coquetel primeiro que você vai ver que vai ficar você e as cadeiras. Victória - Como você percebe a formação para o artista da dança e o mercado aqui no Piauí? Sidh - Olha, hoje nós temos muito mais recursos de formação. Nós somos os empíricos da dança porque nós começamos com o achismo. Nós fomos aprendendo e reproduzindo de acordo com nosso entendimento e fomos formando outros bailarinos. Os que realmente quiseram trabalhar com dança, viajaram e fizeram cursos. Tivemos a oportunidade de trazer outros profissionais para cá. Mas não temos um campo para isso. Não te124


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mos como empregar porque temos apenas um grupo que emprega esses bailarinos, que no caso é o Balé da Cidade e, do meu ponto de vista, está devendo uma resposta à sociedade, no sentido de ter esse campo ampliado e ter um trabalho para ser mostrado. Fora isso, nós temos a Escola de Dança, as academias que contratam esses profissionais. As academias não têm condição de pagar salários porque é algo muito volátil. Hoje, você tem uma turma com 20 alunos e se a menina tirar uma nota baixa, ela simplesmente não vai mais para o balé enquanto não recuperar essa nota. Por outro lado, os profissionais que estão nessas escolas e recebem um valor X para trabalhar, conhecem todas as pessoas que fazem eventos culturais, aniversários, casamentos, gincanas que os contratam por saber que é um profissional competente. Políticas culturais para colocar esses bailarinos no mercado, só temos o Balé da Cidade e oficinas da Prefeitura e do Estado. Agora, para colocar bailarino mesmo, a gente não tem. No Brasil, você encontra algumas companhias, como Déborah Colker, Balé da Cidade de São Paulo, Balé da Cidade de Niterói, algumas companhias como a Quasar. Talvez porque não tenhamos faculdades de dança e Teresina é uma cidade recém-nascida, basicamente. Então ainda não tem essa visão. Agora, isso só vai melhorar quando os grupos oficiais da cidade produzirem verdadeiras obras de arte que induzam as pessoas. Aí vão ter empresas que vão dizer: Vamos apostar nesse grupo, que vão ter subsídios privados e governamentais. Aí a cidade se transformaria em um celeiro cultural. Então, ninguém precisa gostar de ninguém não, acho que a gente precisa respeitar as pessoas. Dar valor a quem tem trabalho. Eu estou falando do Piauí, mas isso vai para outros estados também. 125


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“Nossas secretarias de cultura não são secretarias, são fundações e, enquanto fundações, não valem absolutamente nada, vivem de migalhas”.

“Eu não acredito em grupo que, para sobreviver, tenha que acabar com o outro, que tenha que fazer montinho numa porta, ridiculamente, de um secretário de cultura”.

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Foto: Reginaldo Azevedo

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“Nós somos os empíricos da dança porque nós começamos com o achismo. Nós fomos aprendendo e reproduzindo de acordo com nosso entendimento”.

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Foto: Lopes Medina

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Roberto Freitas - Artista?! Como? -

Fotos: Acervo pessoal

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Sonhou ser bailarino da Broadway. Enfrentou a família e recebeu prêmios pelo Brasil. Roberto Freitas desabafa: “Como se tornou difícil ser artista em Teresina e no Piauí”.

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Influenciado pelos filmes Flashdance e Embalos de Sábado Continuam, Roberto queria dançar na Broadway. O sonho adolescente não se realizou, mas a dança acompanhou sua trajetória. “Eu sempre fui uma pessoa muito inquieta corporalmente. Quando começou meu interesse pela dança, eu queria ser artista da Broadway (risos)”, diz Roberto Freitas, bailarino e coreógrafo. Chegado o momento de escolher uma profissão, optou pela Educação Física. “O que mais se aproximava da dança era a Educação Física e eu já tinha um histórico de ter treinado vários esportes”. Graduou-se pela Universidade Federal do Piauí-UFPI e lecionou na área. Paralelo ao ensino e docência, seguia pela carreira artística. “A Educação Física influenciava a Dança, que influenciava a minha vida familiar e assim ia”, conta. Considera como marco profissional o ano de 1990. “Foi quando eu ingressei no grupo Balé Popular do Piauí e, em seguida, no curso de Balé Clássico da Escola de Dança do Estado do Piauí”. Trabalhou com Frank Lauro e, logo depois, com Sidh Ribeiro. Fez aula com Manoel Messias, o Nezinho, Viviane Maranhão e Elisabeth Freitas, mas foi com Júlio César que vivenciou o balé clássico. “Dancei muito pelo Júlio César, que foi meu mestre maior em balé clássico. Foi por onde eu passei mais tempo dançando e por onde eu fiz carreira no balé”, considera. No entanto, para dançar, teve que enfrentar a família. Irmão do meio de uma família com três filhos, os pais se separaram quando Roberto tinha 11 anos. “Eu tive momentos difíceis e havia uma relação conflituosa em casa. Isso formou minha personalidade como uma pessoa que não desiste fácil das coisas”. Em uma reunião de família, um tio tomou notícia de que Roberto, 133


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aos 17 anos, tinha começado a dançar e fez uma provocação. “Ele disse na frente da família inteira: ‘Dança é coisa de viado!’. E eu, sem titubear, levantei como se fosse fazer um pronunciamento: ‘Olha, eu queria falar para que todos escutassem, de preferência de uma vez só. Se dança for coisa de viado, eu vou ser um’. E todos se calaram”, desafiou. A relação ainda chegou a gerar alguns conflitos, até mesmo com a mãe, que foi professora da rede estadual e hoje é aposentada. “Eu cheguei a ser malvado com a minha própria mãe. Quando surgiu essa questão de prêmio e de sair na mídia, ela veio me perguntar: ‘Você nunca mais me trouxe um convite’. E eu fui malvado: ‘Pra quê, se você não se interessa? Vocês nunca me apoiaram. Se você quiser, compra teu ingresso e assiste’”. No entanto, como era de se esperar, fizeram as pazes. “Tempos depois, é lógico, eu reconheci que isso foi uma malvadeza da minha parte. No lançamento do livro, eu fiz uma homenagem e não consigo nem lembrar sem dar vontade de chorar”, conta emocionado ao se referir ao lançamento do livro Ousadia-20 anos de história do Balé da Cidade de Teresina, publicado em 2014 e organizado por Roberto Freitas e Flávio Brebis. Passou a fazer aulas com outros professores. “A primeira pessoa de fora que eu tive um trabalho foi um cearense chamado Valdemar Queiroz”, relembra. Constituiu carreira no balé clássico. “Eu fui considerado melhor bailarino do estado, premiado no Festival de Dança de Teresina, que era o que as pessoas consideravam que dava esse pseudo-título. Quem competisse fazendo Grand Pas de Deux e ganhasse, já eram considerados os primeiros bailarinos clássicos”, diz. Mas foi como integrante do Balé da Cidade de Teresina, desde a fundação da companhia em 1993, que conquistou prêmios Brasil à fora em 134


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festivais como Passo de Arte e Festival de Dança de Joinville. “Hoje eu defendo que os festivais de dança competitivos têm a sua função. Em nenhum momento eu defendo o fim. Mas acho muito pertinente a luta para terem outros eventos que não haja competição. Eu acho que as duas coisas têm a sua razão de existir”, analisa. Dirigiu o Balé da Cidade de Teresina a partir de 2005. “Eu só me ausentei do Balé durante os 20 anos quando eu sai da primeira vez em que eu fui diretor, de 2008 para 2009”. Alguns trabalhos lhe chamaram atenção enquanto bailarino, entre eles E Por Nós o Silêncio e Vida, ambos de Sidh Ribeiro. “O professor Sidh ministrou oficina no Teatro do Matadouro e convidou pessoas que procuravam dança com um pensamento de profissionalização. A única dificuldade é que não tínhamos verba”. Essa vivência deu origem ao Balé da Cidade de Teresina. “Sidh era diretor, professor, coreógrafo, produtor e isso acabava sendo uma forma artesanal de trabalhar. A única dificuldade, ao longo desses 20 anos, foi a ideia que ainda hoje é resistente, de que uma companhia profissional tem que ter uma estrutura profissional”, reivindica. Seguiu por esse caminho, mas também conheceu outros. Ganhou prêmios, mas hoje se dedica a um projeto no bairro Renascença, zona Sudeste de Teresina. “A família hoje sabe que a dança não é um simples hobby, é uma profissão. E foi isso que me levou a criar o Cordão Grupo de Dança”. No ano de 2000, passou em um concurso para integrar a rede municipal de ensino enquanto professor de Educação Física. Acabado o estágio probatório, em 2003, passou a trabalhar na recém-inaugurada escola Porfírio Cordão, no bairro Renascença. Em 2004, propôs uma turma de dança na escola. “De início, teve alguma resistência por parte dos pais. Mas 135


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aos poucos eu fui fazendo esse trabalho de conscientização de que a dança ia ser utilizada pra estudo”. O primeiro trabalho foi uma apresentação com a música Rosa de Hiroshima, interpretada por Ney Matogrosso. O estudo coreográfico dos efeitos da Segunda Guerra Mundial resultou na fundação do Cordão Grupo de Dança, que vai completar 10 anos em 2015. “Desde a primeira formação eu tenho alunos com necessidades especiais”. Criou-se espetáculos sobre temáticas que se considerava importante discutir. “Eu comecei a refletir com eles outras questões, além muros da escola”. Victória - Como você enxerga a dança no Piauí e também como você a enxerga diante de um cenário nacional e internacional? Roberto - Olha (pausa). Acho que desde o princípio a dança piauiense sempre teve seus representantes que levavam essa comunicação para fora né. Marcelo Evelin, Lenora Lobo, Eleonora Paiva, Lina do Carmo e mais algumas outras pessoas que não foram da minha convivência. Agora, o Balé da Cidade de Teresina teve uma importância muito grande nos anos 90 quando chamou os olhares do Brasil inteiro para cá. Num primeiro momento, éramos tidos como...sei lá, índios. Alguém chegou a me perguntar em um festival de São Paulo: “Quer dizer que no Piauí tem dança? Eu pensei que lá o povo dançava era assim: uh uh uh uh (fazendo som de índio)”. E aí quando o Balé da Cidade de Teresina começou a ganhar alguns prêmios, o discurso mudou em alguns anos. A gente começou a cativar as pessoas e mostrar um trabalho de qualidade, que ganhava prêmios. E os concorrentes que queriam dizer alguma coisa já falavam assim: “Cadê o pessoal do 136


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Piauí? Porque se vierem ninguém ganha mais nada. Eles que ganham tudo”. Fomos para Mar del Plata com quatro trabalhos e trouxemos sete prêmios e um deles era a coreografia Vida. O outro trabalho era um dueto chamado Duelo que eu dancei com Fernando Freitas, que foi destaque no Festival Internacional de Joinville. Nesse ano, só três bailarinos receberam esse prêmio. Então assim, foi chamando a atenção do Brasil inteiro e de fora do país porque o júri era internacional. Os festivais competitivos foram um fator muito importante para a divulgação da arte piauiense. Agora, chegou um momento que os próprios jurados fizeram uma indicação: “Olha, o Balé da Cidade de Teresina passou da fase de ser um grupo de competição. Vocês ganharam todos os prêmios no Brasil que poderiam ser almejados”. Ganhamos o prêmio de melhor grupo, melhor coreografia, melhor coreógrafo, destaque para bailarino. Então, começou-se a pensar que as produções do Balé da Cidade de Teresina seriam pautadas na ideia de uma produção artística mais apurada e não em trabalhos de competição em festivais. Victória - Quais eram as outras produções do cenário local? O que os seus contemporâneos estavam produzindo? Roberto - Outro grupo mais atuante foi o Balé Popular do Piauí que parou alguns anos, mas na maior parte do tempo sempre esteve presente, dançando mais folclore, mas de vez em quando alguma coisa contemporânea. A Luzia Amélia depois que saiu do Balé da Cidade de Teresina criou o Balé Folclórico de Teresina, que teve uma boa atuação também. Muita gente ainda se lembra da Dança do Calango, que foi um espetáculo que teve um alcance muito bom. A Luzia Amélia se juntou com a Mara Raquel e com a 137


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Máurea Oliveira e elas três juntas faziam os trabalhos em um grupo intitulado Ânima de Dança, que durou pouco tempo, mas também chamou a atenção. Já nos anos 2000, o Marcelo Evelin dirigiu o Teatro João Paulo II e instituiu o Núcleo de Criação do Dirceu, onde começou uma criação diferenciada, que conseguiu movimentar a cena trazendo pessoas de fora, fazendo um intercâmbio de pessoas que vinham, pessoas que iam daqui para a Europa. Muito bom esse trabalho que ainda hoje continua com o Galpão do Dirceu. Que bom que nós temos isso, que é uma outra referência. Victória - Como você enxerga a política cultural para dança no Piauí? Roberto - Deficitária. A política cultural é muito deficitária. Como se tornou difícil ser artista em Teresina e no Piauí. No âmbito municipal e estadual. Ano passado, em 2013, eu participei da Conferência de Cultura Municipal, Conferência Estadual, todas eleito delegado, fui para a Conferência Nacional e a conversa é a mesma: são coisas que a cultura precisa, mas que depende da decisão dos políticos e na hora que chega na votação, os políticos não votam à favor, não querem e não estão nem aí pra gente. Só que, mascaram por trás de um discurso do “quero, vou”, mas nunca vai, nunca sai. Em nível local, a gente vê que, de 2013 para 2014, houve uma ausência de financiamento para manutenção e fomento de novas questões. É importante segurar o que você tem de bom e dar condição de funcionar e fomentar novas atividades, novas iniciativas. Se o Teatro João Paulo II, que era a única casa daquela região do grande Dirceu, que abriga um número populacional muito grande não está funcionando direito, é uma perda para a cultura. Os artistas não podem se apresentar direito, a população não 138


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pode consumir arte de uma forma mais apropriada ou mais adequada para aquele formato. Não quero dizer que a arte tem que ser desenvolvida só dentro do teatro, não. Eu acho que ela tem sim que ir para as ruas, só que tem trabalhos no teatro que têm a sua função educativa e social de levar a população ao teatro, que também é um tipo de vivência. E você consumir arte na praça, numa escola pública, em um outro ambiente que seja no meio da rua é um outro tipo de relação. Que é maravilhosa, que tem que ser fomentada, mas a população tem que passar por essas várias vivências. Não posso querer consumir arte só no meio da rua porque vai ser um consumo deficitário também. Victória - Como você percebe formação, mercado e público de dança aqui? Roberto - A formação é um quesito deficitário, mas que tem crescido nos últimos três ou quatro anos no debate. Ano passado, em 2013, nós passamos o ano quase todo com um movimento chamado Conversas de Dança, onde as pessoas da dança se reuniam para discutir dança. E uma das pautas mais fortes da conversa é a formação. Ainda bem que tem algumas pessoas que provocam e procuram isso em âmbitos diferentes. Por exemplo, a Luzia Amélia está correndo atrás de botar pra frente a ideia de que a Universidade Federal do Piauí tem que ter uma graduação em Dança. A gente ajuda na medida do possível. Já tem, em Teresina, o Curso Técnico em Dança; lá pelo Portífirio Cordão eu consegui aprovar um projeto que se chama Estação Cordão de Cultura, onde a gente ofereceu gratuitamente aulas de dança e de teatro. No meio desses cursos, o foco do estudo são coisas necessárias para áreas de atuação na arte, que não só o de ser artista performático, 139


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mas de ser uma pessoa que vai ministrar aulas, que vai pensar criação de trabalhos. Em Teresina, há uma carência muito grande de iluminadores, de cenógrafos, de figurinistas, de bailarinos, de professores, de produtores, meu deus do céu, cadê as pessoas pra produzirem? Eu faço isso no Cordão artesanalmente, mas eu estou o tempo todo incentivando os mais velhos porque não tem como centralizar em uma só pessoa e nem é interessante. O mercado de trabalho, a arte como um todo em Teresina, no Piauí, é deficitária ainda, principalmente no quesito apoio e financiamento. É uma realidade que não é só local, é uma realidade brasileira. Em termos de mercado de trabalho, é um mercado grande. Infelizmente, muitos políticos não entendem ou não acreditam nessa afirmação, embora muitos tenham um discurso que sim, que gostam, que apoiam, que é necessário. Mas na hora do vamos ver, esse apoio não aparece, não é concreto. Em termos de trabalhos em nível educativo, tem um mercado porque todas as escolas querem um professor de dança. Infelizmente a gente tem notícia de escolas particulares que tem pessoas ministrando aulas de dança que, talvez, não fossem as pessoas mais capacitadas para desenvolver esse trabalho porque não é só fazer uma dancinha para uma data festiva. Então, em termos de mercado de trabalho, eu acho sim que existe e ele precisa ser ocupado e ocupado por pessoas que sejam capacitadas. Essa capacitação está vindo a passos lentos, mas está vindo, está chegando. Eu acho que sempre teve essa preocupação e ela vem crescendo em um nível mais significativo nos últimos cinco anos. Foi quando a Luzia Amélia saiu para fazer mestrado, a Janaína Lobo é graduada em Arquitetura e Urbanismo, mas é especializada em Dança. Então cresce esse pensamento que as pessoas têm que estudar dança, não só praticar. As pessoas que adquiriram conhecimento não têm 140


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o direito de guardar isso só para elas porque nós vemos que a sociedade precisa disso. Nem que seja brigando com os políticos, nem que seja fazendo um trabalho de protesto, mas precisamos disso sim. É difícil formar novos artistas sem ter essa perspectiva. Ai já envolve mais o poder público, já envolve mais outras questões, que não só o da formação em si. Porque tem a Escola Técnica Gomes Campos, que forma atores, que está trabalhando, bem ou mal, com dificuldades, mas está trabalhando; o Cordão está trabalhando; a Luzia está trabalhando. Mas, ai eu te pergunto, e a perspectiva pra esses novos artistas, qual é? Viver de cachê? Que cachê? Porque as pessoas também não querem pagar caro. Elas pagam caro por um show de humor. Algum tempo atrás, uma pessoa me disse uma coisa que também me chamou muita atenção. Que o piauiense fazia as coisas ao contrário. Porque o trâmite normal é você preparar um projeto, conseguir um financiamento e depois você faz o trabalho. O piauiense não, faz o trabalho, corre atrás do dinheiro pra pagar e, se der, se mantém com isso. Eu prestando atenção era verdade. E, hoje em dia, ainda acontece isso. Também teve uma pessoa que me disse: “Quem sabe elaborar os projetos? Quem consegue chegar nesse finalmente?”. Eu falei, é, pior que hoje são poucas pessoas que tem esse conhecimento. Então, realmente não é fácil. Ai o acesso fica restrito a poucas pessoas e isso é ruim. Victória - Como você enxerga a cobertura jornalística da dança aqui? Roberto - Com a mesma palavra. Deficitária. Eu procuro me informar e ver como isso se processa porque a área de comunicação é muito séria. Se ela comunica errado, a população pensa errado. Então, em dança, tem 141


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muitas pessoas que comunicam dança sem ter conhecimento dos próprios termos. Um exemplo bem presente foi a confusão que foi criada entre projeto Escola Balé de Teresina, que é da Luzia Amélia, e Balé da Cidade de Teresina, que é um grupo de dança contemporânea mantido pela Prefeitura de Teresina. Quando foi criado isso, os jornalistas confundiam muito e a maioria deles não se dava ao trabalho de verificar, de fazer uma revisão e publicavam muita coisa trocada: Foto do Balé da Cidade nos projetos da Luzia, foto da Luzia em matéria do Balé da Cidade de Teresina. É só um dos exemplos, mas é bem presente, mas que é muito sério e que muitos jornalistas não ligam para isso. Fiz muitos trabalhos para programas de televisão e batia na questão de que plano deve ser mostrado. Ai eles mostravam o bumbum das bailarinas, os pés dos bailarinos. Não! A comunicação tem que se interessar por outra coisa, que não mostrar esse pé bem ai, que não é mostrar essa bunda bem ai, que você vai estar formando um pensamento diferente. Então, eu ainda vejo a cobertura jornalística de forma deficitária, não só escrita, mas também televisiva. Embora, tenha melhorado. Se fizer uma comparação de hoje com 10 anos atrás, é lógico que está melhor, mas poderiam ter um pouco mais de atenção com isso e minimizarem os erros. Victória - Você acha que existe uma identidade na dança do Piauí? Se existe, como poderia ser definida? Roberto - Particularmente não me atrevo a dizer que existe uma identidade exclusivamente nossa. Nos últimos anos, com a globalização, com o acesso à informação, com a mistura de elementos, de informações, eu não consigo ver uma coisa que seja uma identidade específica. Eu admito, vejo, coi142


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sas que são manifestações específicas. Como por exemplo, nós temos um reisado, nós temos um bumba-meu-boi, nós temos manifestações de uma cultura local, mas até essas manifestações já são influenciadas por outras linguagens. Você vê que o Marcelo Evelin já fez espetáculos com uma linguagem completamente não-folclórica. A linguagem dele é uma linguagem vanguardista, mas com uma temática que se comunica com o folclore local. Então é assim, eu acho que a arte se influencia.

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“São coisas que a cultura precisa, mas que depende da decisão dos políticos e na hora da votação, os políticos não votam à favor, não querem e não estão nem aí pra gente”.

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“Em Teresina, há uma carência muito grande de iluminadores, de cenógrafos, de figurinistas, de produtores, meu deus do céu, cadê as pessoas pra produzirem?”.

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“Mas, ai eu te pergunto, e a perspectiva pra esses novos artistas, qual é? Viver de cachê? Que cachê?”.

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Nazilene Barbosa

- Pra se falar a mesma língua -

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Dançou na Quasar Cia de Dança e coreografou obras como Só não Falamos a Mesma Língua, Nazilene Barbosa acredita: “A dança tem sua potência, com suas alegrias e mazelas”.

Foto: Adriana Ribeiro

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No colégio, teve o primeiro contato com o que iria praticar por tanto tempo na vida. Aos cinco anos de idade, a apresentação escolar e o figurino infantil iriam lhe despertar para a dança. “Lembro da roupa branca rodada, do chocalho na canela, da multidão de pessoas e da música ‘Morena de Angola’. Foi lúdico e divertido”, diz Nazilene Barbosa, bailarina e coreógrafa. Aos sete anos, a mãe recebeu recomendação médica para que a filha fizesse atividade física, pois estava abaixo da altura recomendada para uma criança de sua idade e precisava ser estimulada ao crescimento. “Levou-me ao teatro para ver uma apresentação de dança. Lembro de ficar curiosa com o teatro, encantada com os personagens que se apresentavam e um pouco tensa com a quantidade de pessoas que ali estavam”, relembra. Os estudo de balé clássico só começaram no ano seguinte, em 1987, na Academia de Ballet Lenir Argento, com o professor Júlio César. “Um mundo completamente novo que me atraía por algum tipo de possibilidade de exercício da comunicação, pois era uma criança tímida e tinha dificuldades com a expressão pela palavra”. Estreou com as sapatilhas de ponta em 1989, interpretando seu primeiro papel de destaque ao encenar Cupido da obra Dom Quixote. “Seria meu último ano na Academia Lenir Argento, pois no ano seguinte o professor Júlio César inaugurava sua academia própria, onde segui meus estudos”. Como bailarina clássica, até 2001 dançou balés de repertório como O Quebra-Nozes, A Bela Adormecida, Dom Quixote, O Lago dos Cisnes, La Bayadere, Paquita, Sylvia, O Corsário, Romeo e Julieta, Pas De Deux de 151


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Tchaikovsky e Carmen. “Representei por mais de uma década a academia do professor Júlio César, interpretando os primeiros papéis de obras clássicas”, afirma. Era destaque nos jornais locais ao se apresentar pela Academia de Ballet Júlio César e em festivais competitivos como integrante do Balé da Cidade de Teresina onde, mais tarde, viria a se tornar professora, coreógrafa e diretora da companhia. “Colírio para os amantes da dança”, “Bailarinas piauienses impressionam a Bahia”, “Piauí acerta o passo em Festival de Dança”, eram as manchetes dos jornais na década de 90, muitos deles ilustrados com fotos de Nazilene. Parceiro de dança em muitas dessas ocasiões, Roberto Freitas hoje revela: “É uma das pessoas mais profissionais e éticas que eu já trabalhei. Sempre gostei muito dela como partner e cada dia sou mais fã como coreógrafa”, disse em entrevista concedida para este trabalho. No entanto, recebeu pressões da família para que, cedo, desistisse da dança. “Fui criada dentro de uma atmosfera de pouco envolvimento com as artes e onde a dança era vista apenas como uma atividade lúdica para crianças. Além disso, havia um estigma muito grande na minha família, onde as mulheres que dançavam eram vistas como prostitutas”, diz. Os anos se passaram e Nazilene trabalhou suas habilidades. “Naquele momento, já sabia que não queria me desfazer daquele caminho”. Integrou o elenco do Balé da Cidade de Teresina entre 1994 e 1999 e, em 2000, o Balé do Teatro 4 de Setembro, instante em que dança obras contemporâneas como Bolero de Ravel, Penitência, Malandragem, De Repente um Tango, E Por Nós o Silêncio, Fantasia Nordestina, Órfãos, todas de Sidh 152


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Ribeiro; Fuga de Dongo Monteiro; Quase Deus de Marcelo Evelin; Passagens de Maurício Ribeiro, dentre outros trabalhos. Ainda em 2000, segue para Curitiba, no Paraná e passa a integrar o elenco do Balé Teatro Guaíra até 2004, momento em que dança obras como O Segundo Sopro, de Roseli Rodrigues; Trânsito de Ana Vitória; Nem Tudo Que Se Tem Se Usa de Chamek e Lernner; Prelúdios de Rodrigo Pederneiras; Pastorale de Sparembleck; Exultate Jubilate de Vasco Wellemcamp; O Grande Circo Místico de Luiz Arrieta e Espaços de Henrique Rodovalho, participando do histórico de mais de 40 anos da companhia curitibana. Em um segundo momento, de 2004 a 2006, passa a integrar o elenco da Quasar Cia de Dança, de Goiânia, quando dança obras de Henrique Rodovalho como Coreografia para Ouvir, Empresta-me Teus Olhos, O+, Mulheres e Só Tinha de Ser Com Você, esta última reconhecida como um dos melhores espetáculos de dança do Brasil. Retorna à Teresina em 2007, onde atua como professora, coreógrafa e diretora do Balé da Cidade de Teresina. “A opção pelo trabalho com dança foi então para mim consequência de uma trajetória construída ao longo de anos”, considera. A lista é enorme, mas para constar nomes relevantes desta trajetória, Nazilene cita Júlio César, Sidh Ribeiro, Roberto Freitas, Maurício Ribeiro, Ana Verônica Coutinho, Jair de Moraes, Angela Nolf, Toshie Kobayashi, Elaine de Markondes, Suzana Braga, Ana Vitória, Roseli Rodrigues, Luiz Arrieta, Dani Lima, Henrique Rodovalho, Vera Bicalho, Lavínia Bizzoto, Adriano Bittar, Rafael Spindola. “Muitas pessoas foram de grande importância, dentre professores, coreógrafos, diretores, ensaiadores e bailarinos”, 153


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declara. Como coreógrafa, criou as obras Atrás da Porta (2007); Só Não Falamos a Mesma Língua (2009); Carmen - O Ciúmes (2012), para o Balé da Cidade de Teresina e Como Dizer Adeus? (2010), para a Só Homens Cia de Dança. E para que se fale a mesma língua, já se vislumbra algum caminho. “Vejo um cenário diferente, caminhando com tentativa de novas propriedades”, crê. Victória - Enquanto se dava seu trabalho, seus contemporâneos produziam de que forma? Nazilene - Os bailarinos atuavam artisticamente em grupos, financiados ou não pelo Estado, nos espetáculos de final de ano das academias de balé ou em eventos sociais esporádicos na comunidade. Grande parte também desenvolvia trabalho paralelo de cunho educativo, ministrando aulas de dança em instituições públicas ou privadas, numa tentativa principal de complementar a renda que era mínima. Poucos tinham a oportunidade de continuar com a dança e cursar uma universidade. Victória - Como você percebe a dança no Piauí? Nazilene - A dança no Piauí, como em todo lugar, tem sua potência, cheia de talentos em todos os aspectos. É resultado direto de sua cultura e política, com suas alegrias e mazelas. Observando o fato de que nosso Estado esteve por muitos anos à margem da informação, pois pouco passava ou 154


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chegava, acredito que uma dinâmica natural de proteção foi desenvolvida, o que contribuiu para uma dança pouco estudada e questionada e mais intuitiva. Hoje, com o advento da tecnologia e globalização, vejo um cenário diferente, caminhando com tentativa de novas propriedades, sem perder de vista o contexto histórico, social, político e cultural no qual está inserido. Victória - Como você enxerga a dança no Piauí diante do cenário nacional e internacional? Nazilene - A dança produzida aqui no Piauí teve repercussão nacional/ internacional, por intermédio de poucos artistas que aproveitaram oportunidades para expor sua dança, seja pelo viés dos festivais nacionais, turnês ou construindo carreira em outros estados/países. Dentro das minhas vivências, de forma geral, o Piauí sempre foi visto como um Estado de poucas perspectivas em dança. Atualmente o cenário é outro: mesmo com certa resistência, que atribuo ao percurso histórico, existe uma classe artística mais disposta a encontrar meios de troca e intercâmbio com o contexto nacional. Victória - Como você enxerga a cobertura jornalística sobre dança no Piauí? Nazilene - A cobertura jornalística no Piauí, em geral, cumpre o papel de informar o que está acontecendo na cidade com relação aos eventos de dança, mas me parece entender pouco sobre a real importância da produ155


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ção artística para a cidade e os contextos na qual está inserida. Victória - Como você percebe a formação, ensino e mercado profissional na área de dança no Piauí? Nazilene - Apenas recentemente, a formação em dança tem recebido caráter técnico e estuda-se a primeira graduação em dança do Piauí, o que é de extrema importância para o desenvolvimento da área. Mas, não muito diferente do movimento nacional, ao longo de muitos anos, o ensino foi realizado de forma intuitiva, por meio de poucos professores que tiveram contato mais profundo com referências de base ou de professores que, com pouco preparo, cedo iniciavam na docência por necessidade financeira. Uma grande contribuição foi o aumento nos últimos anos de professores com grau de instrução superior completo, mesmo que em áreas outras que não a dança. Outros pontos importantes são a deficiência na reciclagem dos professores e a tendência a um caráter paternalista, que limita os horizontes da formação e do aprendizado. O mercado profissional é escasso, com maior abertura à docência. Victória - Qual a relação do público com a dança produzida no Piauí? Nazilene - Infelizmente percebo que, em geral, o público piauiense não tem o hábito de consumir arte. Com a dança não é diferente. Os grandes públicos são encontrados quando se tem estabelecido um vínculo familiar ou político com o evento de dança. Para mim, isto está relacionado com uma cultura que não viabiliza a arte como alimento, com o consequente des156


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prestígio que o profissional da arte tem na sociedade e com a função predominante e superficial da dança como simples entretenimento. Os projetos de formação de plateia têm acontecido e são de grande importância nesse aspecto, pois tentam driblar essa deficiência. Victória - Se há uma definição, qual seria para “identidade piauiense da dança”? Nazilene - Se por um lado a dança tem caráter universal, por outro ela também reflete as dinâmicas de uma sociedade. Prefiro não definir uma “identidade piauiense na dança”, pois mesmo sendo resultante de todos os processos locais, ela está enredada e se comunica com um todo que está além dos nossos limites geográficos. Victória - Como você enxerga a política cultural para a dança no Piauí? Nazilene - Atualmente tenho pouca relação com as políticas culturais no Estado, mas as vejo como precárias. São poucas e esbarram nos entraves formatados de um sistema que não reconhece a dança como parte essencial para o desenvolvimento humano. .

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“A dança no Piauí, como em todo lugar, tem sua potência, cheia de talentos em todos os aspectos. É resultado direto de sua cultura e política, com suas alegrias e mazelas”.

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Foto: Tom Lisboa

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Foto: Tom Lisboa

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“Atualmente, existe uma classe artística mais disposta a encontrar meios de troca e intercâmbio com o contexto nacional”.

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“Outros pontos são a deficiência na reciclagem dos professores e a tendência a um caráter paternalista, que limita os horizontes da formação e do aprendizado”

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Foto: Tom Lisboa

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Luzia Amélia

- Nós não somos coitadinhos! -

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Do interior de Altos para a dança. Luzia Amélia criou A Dança do Calango e Mercado Central e adianta que não somos coitadinhos: “É assinando embaixo o que o colonizador quer dizer da gente”.

Foto: Evelin Santos

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Era 1972 e tudo começou no parto. No bairro Piçarra, zona sul de Teresina, nascia uma criança em casa. De saída para a maternidade, a mãe sentiu as contrações da gestação e a solução foi ter o bebê pelas mãos de uma parteira na própria residência. “O meu nascimento já foi um contato cultural”, diz Luzia Amélia, bailarina e coreógrafa. No interior de Altos, na casa dos avós, Luzia absorveu referências utilizadas em seu trabalho. Imagens da seca e do sertão, o choro das mulheres nos velórios e a festa de São Gonçalo marcaram a memória infantil que, futuramente, deu forma aos espetáculos de dança. “Eu pude perceber isso na primeira montagem que eu fiz que foi realmente a Dança do Calango. Tudo aquilo veio como um vômito”, diz. Aos 15 anos, foi assistir uma aula de jazz da amiga Ana Nísia Cardoso na Academia Agitaite. “Depois, nunca mais saí da dança”. Passou a frequentar as aulas, momento em que conheceu artistas de outras cidades, a exemplo do cearense Valdemar Queiroz. “Ele foi realmente uma referência que ainda hoje é forte como algo de que eu queria muito ser”. Na década de 1980, à convite de Ludmila Olicar, passa a integrar o Balé Popular do Piauí, grupo de folclore mantido pelo Governo do Estado fundado em 1986 que existe até hoje. “Aí eu venho conhecer a dança mesmo. Quando eu chego lá, tive um impacto porque eu sempre fui uma figura de ter muita opinião e isso é caro. Afinal, o que eu fiz de errado além de ter nascido negra e pobre? Eu sentia que a minha força na dança era grande e isso foi me configurando, me mostrando como eu ia ser”. Aproximou-se do trabalho do coreógrafo Sidh Ribeiro, que a convida para ensaios no Teatro do Boi, encontros que dariam início ao Balé da Cidade de Teresina, companhia que passou a ser mantida pela Prefeitura 167


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Municipal de Teresina e que completou 21 anos em 2014. “As pessoas que eu passei mais tempo trabalhando foram o Sidh Ribeiro e o Valdemar Queiroz. A minha história de trabalho com o Sidh realmente é longa, de ver toda a luta dele para manter o grupo”. Formado por artistas como como Luzia Amélia, Sidh Ribeiro, Lívia Leão, Roberto Freitas, Ivoneide Ribeiro, Fernando Freitas, Ana Melo, Francisco Moreno, o elenco estreou o primeiro trabalho com “Crispim, a Lenda” em 1993. “Ai rompi com o Balé da Cidade. Como sempre, isso não é uma coisa só minha, é da própria história da dança”. De maneira independente, no bairro São João, zona Leste de Teresina, reuniu alunos que iriam configurar o grupo Alternativo de Dança, momento em que Luzia produziu suas primeiras coreografias em meados de 1994. “Lá, eu trabalho com um grupo de jovens como Antônia Luciana, Jean das Neves, Marcelo Lopes e Weyla Carvalho”. Do Ciarte São João, o grupo passou pela Casa da Cultura, mas foi no Teatro do Boi que foram desenhados os primeiros esboços do que seria a Dança do Calango. Ainda na década de 90, de um encontro com as bailarinas Mara Raquel e Máurea Oliveira, surge o grupo Ânima, companhia formada por três mulheres que existiu pelo período curto de três anos. “Que também rompeu com os padrões de dança naquela época e foi super interessante”, considera. Em 1996, Luzia Amélia fundou e dirigiu o Balé Folclórico de Teresina, que estreou em 1997 a Dança do Calango no Teatro do Boi. “Eu digo sempre que o Calango foi criado a partir dos erros dos bailarinos. Tudo que eles erravam eu dizia: Isso aqui é bom. O Calango é um dos trabalhos mais vibrantes e que evidencia muito o meu jeito de fazer”. 168


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“Vem Magalenha Rojão/Traz a lenha pr’u fogão/ Vem fazer armação/ Hoje é um dia de sol/ Alegria de coió/É curtir o verão”, cantou Sérgio Mendes na música Magalenha Rojão, que se tornaria emblemática, juntamente com os passos firmes e a ligeireza dos bailarinos intérpretes dos calangos do sertão. Em seguida, Luzia cria uma série de espetáculos nos anos subsequentes, dentre eles, Piauiês e Mercado Central, que chegaram a ser apresentados na Alemanha. “O Mercado foi assim: o Lívio Lima veio para Teresina e fez uma coreografia comigo, que foi a primeira coreografia do Mercado. E a partir dessa coreografia eu construi o trabalho todo. Então, é fruto de uma parceria com o Lívio Lima. Foi bem interessante porque eu pude trabalhar com outro coreógrafo”. Entre os artistas que passaram por esses processos coreográficos estão Drika Monteiro, Andreia Barreto, Débora Radassi, Paulo Beltrão, Datan Izaká, Jean das Neves, Samara Pereira, Antônia Luciana, Valdemar Santos e Marcelo Lopes; alguns ainda trabalhando direta ou indiretamente com Luzia Amélia. A companhia deu origem ao Projeto Balé de Teresina, escola que disponibiliza aulas de balé clássico e funciona no centro de Teresina, também como sede para criação das coreografias de Luzia Amélia. “Eu não sou uma pessoa do balé. Fiz pouquíssimas aulas de balé. A nossa escola trabalha com balé mas com um objetivo bem diferente”, diz ela. Luzia chegou a assumir a gestão da Escola de Dança do Estado do Piauí Lenir Argento e, já nos anos 2000, cria a Cia Luzia Amélia de Dança com Andreia Barreto e Drika Monteiro, com quem trabalhou o espetáculo Sangue (2010). Entre 2005 e 2007 desenvolveu o projeto “1 Minuto Para a 169


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Dança”, uma série de intervenções na paisagem urbana de Teresina. Graduada em Artes Visuais pelo Instituto Camilo Filho-ICF, é mestre em Dança e Estudos Contemporâneos pela Universidade da Bahia-UFBA e dispara que a dança do Piauí não precisa de identidade: “Eu acho que a dança do Piauí não tem uma identidade e ela não precisa ter. Eu não acredito mais nessa ideia de identidade”. Victória - Você falou que teve uma infância pobre e que isso a marcou. Quais foram seus primeiros contatos com manifestações culturais? Luzia - Meu primeiro contato foi meu nascimento. Porque eu nasci em casa, nas mãos de uma parteira. É um super contato com uma manifestação cultural. Eu ia para a maternidade, mas não deu tempo. Quando minha mãe percebeu, já estava nascendo e não tinha mais jeito. Eu digo assim, infância pobre, mas é que as pessoas atribuem muitos estereótipos. Meu pai é tratorista, empregado federal, minha mãe dona de casa, mas uma mulher extremamente inteligente. Os dois são vivos e sempre tivemos uma relação muito boa. Mas minha família era pobre assim: eu realmente não tinha o que queria, estudava em escola pública. Eu tinha amigas que tinham o poder aquisitivo melhor que o meu e eu percebia a diferença. Elas estudavam no Colégio das Irmãs, e eu estudava na escola Lourdes Rebelo, lá pertinho. Isso me marcou porque eu percebia a diferença. Na casa da minha avó, quando passava muito tempo sem chover, as mulheres se reuniam pra fazer as orações e saiam por dentro dos matos, rezando pra chover no interior de Altos. Minha avó fazia a festa de São Gonçalo. Nessa festa tinha que buscar o santo em um lugar muito longe e todo mundo tinha que vir cantando 170


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com esse santo, dançava até o dia clarear. Isso criança e boa parte da adolescência. Até a fase dos 15 anos eu tinha um contato muito forte com a minha infância. E aquilo ficou muito em mim. Eu pude perceber isso na primeira montagem que eu fiz que foi realmente a Dança do Calango. Tudo aquilo veio como um vômito. Hoje eu percebo que ainda tem muita coisa para colocar para fora. Eu passei muito tempo tentando esconder isso, não sei porquê. Para ser aceita talvez, mas hoje eu vejo que isso, ao mesmo tempo me enfraquece, isso também me fortalece. Esse entendimento, eu percebo, que é muito pelo o que eu vivi. Tudo aquilo é tão forte. O choro da minha mãe quando meu avô morreu, como ela chorou, como ela recebeu a notícia. O artista vê muito o mundo de um jeito, não vou dizer mais especial, eu não acho que é mais especial, mas eu digo que a percepção dele é muito apurada. E isso é um problema pra quem é criança, é artista e não sabe ainda. Uma criança que tem um potencial criativo em si não sabe como lidar com isso. Então eu era meio que atormentada também. O folclore é tão forte, uma coisa tão rica e o meu nascimento já foi um contato cultural. Victória - Já em um sentido profissional quando começou a coreografar, quem eram seus professores, seu contatos e as principais pessoas com as quais você trabalhou? Luzia - Eu acho que eu trabalhei com Valdemar Queiroz e Sidh Ribeiro durante muito tempo. Quando eu rompi com o Balé da Cidade, as pessoas que estavam lá me odiavam. Quem era meu professor, não interessava, eu estava ali para competir. Eu tive que entrar naquela guerra, meio que sem entender porquê. Quando você começa uma coisa, às vezes você nem en171


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tende. Mas gente, o que que eu faço mesmo de errado, a não ser ter nascido pobre e negra? Entende? Porque isso é muito forte. As pessoas criam estereótipos de você. Elas nem te conhecem e já falam mal de você. A dança para mim teve um aprendizado muito difícil também. Quando eu comecei a coreografar para o Balé Folclórico eu só queria fazer meu trabalho porque eu sabia que tinha potencial. Então eu meio que me fechei. Que que aconteceu? Eu não tive muito apoio. Quem nunca me tratou assim foi a Lina, que sempre apoia criadores, é uma pessoa que sempre olhou pra mim e disse “Dá certo, tem potencial”. Mas ela nunca tentou me diminuir, me ridicularizar. Foi difícil pra mim essa palavra referência porque eu queria muito ter tido. Porque minhas referências, quando eu procurava, meu mundo caía. Tinha que procurar em mim, nas minhas lembranças, no que eu achava que podia. Eu conheci o Jone Clay Macedo, que foi meu marido por 15 anos. Ele me apoiou muito na criação do Calango, me dando suporte, me ajudando a estudar, me ajudando com os bailarinos. Tenho referências de dança que não são muito da dança. Já os outros estavam lá me ajudando a construir. As pessoas criam uma Luzia, que de repente nem existe. Mas quando eu pensava em pessoas tinha ali o Valdemar Queiroz, a Ana Eudes, a Zozilena Froz. Eu fui lidando com isso até o momento que eu pude trocar com pessoas do Brasil e olhar para as pessoas daqui de um jeito diferente. Victória - Enquanto existiam essas produções, o que seus contemporâneos estavam produzindo paralelamente? Luzia - Eu lembro do Balé da Cidade de Teresina. O Balé da Cidade esta172


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va montando E Por Nós o Silêncio, depois Fantasia Nordestina, o Marcelo Evelin viajava o tempo todo, mas vinha aqui de vez em quando e montou Ai, ai ai. A dança na cidade não era tão forte como hoje. A Escola de Dança era muito centrada no balé. Tinha também o Balé Popular do Piauí. Mas, na época bem forte era o Balé Folclórico de Teresina e o Balé da Cidade de Teresina. Desses grupos é que saíram esses bailarinos que estão aí com companhias. Victória - Como você enxerga a cobertura jornalística sobre a dança no Piauí? Luzia - Péssima. Infelizmente. Eu acho que tem muita boa vontade, mas eu acho que precisa de repórteres mais comprometidos com a dança. Pessoas específicas. Porque os jornalistas de Teresina, inclusive os que eram de dança, eles confundem dança com matéria social. Qual a novidade? Ligam pra você: Luzia, qual a novidade? Eu não tenho novidade nenhuma, que eu não estou nem querendo ser vereadora. Não tem nenhuma novidade. A novidade é você olhar para a dança de um jeito diferente. É você fazer a matéria de um trabalho apenas para acompanhar a produção daquele trabalho sem necessariamente ele ser evidenciado no palco. Então eu acho que a gente precisa de um repórter que tenha um comprometimento com essa arte. Nós não temos um caderno de dança. Nós não temos uma revista. Então, a gente precisa de alguém que olhe para a coisa com um certo distanciamento e respeito. Porque o distanciamento coloca isso. E percebo que a imprensa não tem esse cuidado. Por ignorância mesmo. 173


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Victória - Como você percebe a dança no Piauí? Luzia - Eu acho que a dança do Piauí não tem uma identidade e ela não precisa ter. Eu não acredito mais nessa ideia de identidade. Eu acredito mais em singularidades, penso que a gente se transforma o tempo todo, que a gente se relaciona com um todo. Acho que tem lugar para todo mundo. Tem lugar para o trabalho do Marcelo, tem lugar para o trabalho do Balé da Cidade, tem lugar para o nosso trabalho, tem lugar para a Escola de Dança e tem lugar para trabalhos de coreógrafos que estão aí mostrando que são super criativos, que é o caso do Samuel Alves, da Só Homens. Eu olho para o trabalho dele e vejo que ele é interessado em criar e isso me interessa. Eu não pretendo absolutamente fazer o que as pessoas faziam comigo que era com o objetivo de cortar você. Vejo Samuel, vejo a Cynthia, vejo o próprio Valdemar Santos. No Núcleo eu vejo que vão sair pessoas criadoras, como é o caso da Weyla Carvalho - digo ela porque está com um trabalho interessante, circulando (referese ao “Menu de Herois”). O trabalho de dança em Teresina precisa é disso que está acontecendo. Da criação de um curso técnico sabe, que é o primeiro do estado que está funcionando aqui no Balé de Teresina e, posteriormente, uma graduação ou pós-graduação para que a gente possa alimentar o campo. A questão de Teresina não é só criação. É discussão em torno dessas criações. Porque as pessoas criam. Todas as produções do Marcelo estão aonde? Só falta dançar em Marte porque já foi dançar no mundo todo, mas não tem registro. É preciso que as pessoas pensem mais sobre isso. Eu acho que a dança precisa se preocupar para questões além de prêmios, além de primeiro lugar e além dessas bobagens todas porque eu acho que são bobagens, considerando toda a amplitude 174


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que a dança é. A dança precisa hoje pensar que a pessoa que escreve é um jeito de dançar também. Uma pessoa que fotografa é um jeito de dançar. Que uma pessoa que cria figurino é um jeito de dançar. E isso vai ampliar o mercado. Vai nos fazer conviver melhor. Então é preciso que a gente amplie as discussões. Eu acho que a dança do Piauí é a dança do Brasil e é a dança do mundo. É problemática. Victória - Como você enxerga a política cultural para a dança? Luzia - Não existe. Eu adoraria enxergar. Vislumbrar alguma coisa. A pessoa acha que política cultural é fazer espetáculo. É me dar emprego. A pessoa que está nos cargos se acha capaz de pensar no espetáculo. Como uma pessoa que não está na vida da dança quer pensar em um espetáculo? “Pensei em um espetáculo e eu quero que você venha coreografar”. Não vou coreografar o que você pensou. Você não tem capacidade para pensar em um espetáculo de dança porque são as pessoas da dança que têm que fazer isso. Eles confundem política cultural! Eles não sabem nem o que é. Eu via um pouco de esperança quando a gente fez aqueles fóruns todos no Teatro do Boi, na Casa da Cultura, a gente se reuniu. A gente e o pessoal do Núcleo, o pessoal do Balé da Cidade. Acho que nós temos duas Fundações que não existem. Eu sei que vão me perseguir, mas a fundação do estado e municipal estão em um momento dos piores. Mas estão ali, tomando todos os espaços. Você não vê a criação de uma escola. Você vê a criação de uma escola de balé. Não é uma escola de dança, é uma escola só de balé. Porque escola de dança é outra coisa. Abre para mais pessoas. 175


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Victória - Como você percebe a dança que é produzida aqui diante do cenário nacional e internacional? Luzia - Eu fico preocupadíssima diante desse cenário. Primeiro: Eu considero super relevante o trabalho do Núcleo, o trabalho do Marcelo Evelin. Eu vou já voltar pra esse assunto para arrematar o que eu tô pensando. Eu vi no Globo News uma entrevista com a Marinalva Gamosa. Mas eu fiquei tão triste. Mas não pense que é porque ela apareceu no Globo News não. Não é isso. É como a coisa acontece. Veja, olha a manchete: “Bailarinos do Rio de Janeiro realizam o sonho de meninas carentes de Teresina”. É sempre assim, sempre! A gente não vai ser reconhecido nunca por, realmente, uma qualidade no trabalho. Que que acontece? A Marinalva tem uma escola que é particular e conseguiu passagens para levar as meninas para o Municipal para ver a Coppélia. É sempre o colonizador que vem, nos resgata e nos salva. A gente sabe que essas meninas não são coitadinhas e que elas poderiam ser reconhecidas apenas pelo trabalho de serem bailarinas. Só em a gente ser bailarina já é muita coisa pra sair no Globo News. A gente não precisa dizer que é coitadinha. E o problema que eu acho no Núcleo é esse: É sempre o piauiense que foi pra Europa ai vem, cria um lugar na periferia de Teresina e pega os coitadinhos. Os meninos do Núcleo estão aí circulando pelo mundo todo, 50% por isso: porque são da periferia de Teresina. Isso me entristece. Agora se eu jogo um discurso desse, o que as pessoas vão dizer: ela está sendo cobra! Ela está se cortando porque ela não está viajando. É sempre sendo os coitadinhos? O outro que vai pra Europa, vem e resgatou? É sempre a primeira bailarina que vai levar as meninas pra ver a Coppélia no Municipal? É sempre assim? Então eu me preocupo com 176


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a dança do Piauí porque é sempre vestindo essa máscara de coitadinho. Eu não quero mais ser coitadinha, entendeu? Não é legal pra gente isso. Isso não me anima. Eu acredito muito mais no grupo da Beth, sabe? Que está lá cheia de pessoas potentes. Essas pessoas podem dançar em qualquer lugar. Não precisa dizer que somos coitadinhos. Nós não somos mais coitadinhos. É assinando embaixo o que o colonizador quer dizer da gente. O que me entristece é isso. Mas as pessoas não compreendem assim. Elas acham que é uma pessoa falando mal porque ela não está naquele lugar ali e não é isso. Espero que tenha entendido. Porque se não, o que eu falei é muito sério, pode se transformar numa bola de neve terrível. Mas como é que é visto? Você entra no panorama...você entra! Mas você entra porque é um coitadinho que teve quem foi para a Europa, pegou o verniz da Europa e só assim você entra. É sempre assim? Eu quero que você compreenda porque, com isso que eu falei, você pode achar, se bem que...ache o que quiser, entendeu? Victória - Você acabou de implantar um curso técnico em dança e existe uma discussão na universidade para implementar a graduação em dança. Que consideração pode ser feita sobre mercado e formação? Luzia - Eu acho que ainda não tem um mercado bom porque a gente não dá para a dança a seriedade que ela exige. Os professores que dão aula de dança nas escolas dão aula de balé e a aula de dança na escola não é pra dar balé. Balé é um conteúdo que é pra dar em escola específica. Nas escolas é preciso dar um conteúdo de dança educativa que é um conteúdo para qualquer pessoa. Então a gente perde...e se a gente tivesse noção disso, os 177


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diretores respeitariam mais porque a gente teria um projeto de trabalho. É como se a gente entrasse em uma sala de aula e visse um monte de pessoas potentes mas eu só tenho olho para aquela menina que é boa no balé. E as outras meninas também são boas, mas elas são boas em coisas que você ainda não enxerga porque o seu olho só vê o balé. Eu acho assim, que tem um espaço muito grande para a gente ocupar e a minha preocupação de ampliar conhecimento no sentido técnico, de graduação, de pós-graduação é porque eu acredito que isso vai favorecer a muitas pessoas que são potencialmente boas para estarem na dança. Você não pode tirar de mim o desejo de dançar só porque eu não sou longilínea e en dehors. Isso é absurdo, isso é ridículo e isso acontece atualmente. Mas o campo que está aí, a gente não consegue ver porque o nosso olho está fechado. A gente só consegue ver o que o colonizador quer que a gente veja. O que ele quer que a gente veja? É só o balé, o prêmio, a viagem. E não! Tem coisa pra gente ocupar é aqui! A gente não vai ser só ornamento para os seus eventos. A gente não veio só emoldurar os seus eventos. E a gente está aqui...é só a gente mesmo! Não tem príncipe que veio me salvar não! Não tem ninguém por trás de mim não, sou só eu mesma! O campo está aí e as pessoas precisam entender isso. E eu vejo que nós temos coreógrafos maravilhosos.

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Um degrau de cada vez Três turmas, cerca de 40 alunos em cada uma delas nos turnos da manhã e noite. No ano de 2014 foi implantado o I Curso Técnico em Dança através da Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Estado do Piauí. À princípio, funcionaria na Escola de Dança do Estado Lenir Argento, instituição estadual mantida pela SEDUC, mas foi inaugurado em parceria com a Escola Balé de Teresina. “Quando eu cheguei de Salvador eu fui procurada pela Seduc para implantar o curso técnico. Fomos atrás do Manual Nacional dos Cursos Técnicos e concordou-se em emitir um termo de cooperação entre o Balé de Teresina e a Seduc para que o curso acontecesse aqui”, diz Luzia Amélia. Professora de instituição particular, Luzia Amélia leciona a disciplina de História da Dança na pósgraduação em Dança e Consciência Corporal, voltada para graduados em Educação Física e Pedagogia. À frente da discussão para implementação da graduação em dança da Universidade Federal do Piauí–UFPI, Luzia Amélia acredita que em 2015, a ideia da graduação em dança na Universidade finalmente se concretize. “Nós entregamos o projeto e o pedido de abertura do curso oficialmente para o Reitor. A ideia é que o curso aconteça até julho de 2015”.

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“A pessoa acha que política cultural é fazer espetáculo. É me dar emprego”.

“Eu acho que a dança precisa se preocupar para questões além de prêmios, além de primeiro lugar e além dessas bobagens todas”

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Foto: Acervo pessoal

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“É sempre o colonizador que vem, nos resgata e nos salva. Nós não somos mais coitadinhos. É assinando embaixo o que o colonizador quer dizer da gente”. 182


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Foto: Acervo pessoal

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Foto: Evelin Santos

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Foto: Acervo pessoal

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Helly Batista

- O comendador da dança -

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Foto: Maurício Pokemon

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“Não há recompensa sem esforço”, era seu lema. No circo, despertou seu interesse pelo movimento. Aos 13 anos, Helly Batista foi a um espetáculo circense que chegara na sua cidade. Foi onde teve a certeza de que queria ser bailarino. Falou então para suha família sobre a vontade de ser bailarino e explicou ao seu pai, que lhe disse: “Tenha respeito pela tua profissão e que você viva dela”. Helly Batista segue para São Paulo com sua irmã, Abigail Batista, alguns anos mais velha. Estudou na Escola Municipal de Bailado do Teatro de São Paulo. Durante oito anos de curso, Helly Batista fez aula com mâitres de dança como Marília Franco Ferraz, Josey Leão, Maria Helena Teixeira, Gil Sabóia, Addy Ador, Halina Biernacka, além do mâitre russo Ary Plissessykay. Integrou o Corpo de Baile Juvenil do Teatro Municipal de São Paulo e foi convidado a participar da Companhia Decamera Ballet, onde dançou ao lado de Cecília Kerche, Lumena Macedo e Pedro Kraszczuc, sendo dirigido pela coreógrafa e professora russa Halina Biernacka. Em 1979 decide retornar a Teresina, sua cidade natal, no intuito de desenvolver o ballet clássico. Com frequência, trazia nomes da dança nacional para se apresentar em Teresina, os quais também deram cursos, palestras e workshops organizados por Helly Batista. Condecorado com a comenda do Conselho Brasileiro de Dança, órgão vinculado ao Cônsul Internacional de la Danse, foi membro efetivo exercendo o cargo de delegado da dança do Estado do Piauí. Investe no seu compromisso com a arte e cria a Academia de Ballet Helly Batista, criada em 1980. Desde então, a escola promove espetáculos e cursos de técnica clássica, difundindo a dedicação do seu fundador. 189


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Foto: Acervo pessoal

Depoimentos: “O Helly Batista morou em São Paulo. Ele era mais velho que eu pouco tempo. Sempre eu e Helly tivemos uma proximidade muito grande” - Frank Lauro 190


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“O Helly sempre trazia pessoas de fora. A dança tem que tirar o chapéu, tem que agradecer, tem que reverenciar porque nós conhecemos muitos bailarinos por causa do Helly” - Sidh Ribeiro 191



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Lenir Argento - Dama da dança -

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Foto do acervo: Maurício Pokemon

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Estudou no Rio de Janeiro com Tatiana Leskova e Johnny Franklin. No Piauí, foi a grande pioneira do balé clássico. Responsável pela formação inicial de parte dos bailarinos profissionais do estado, Lenir Argento é a primeira-dama da dança piauiense. Ainda na infância, na cidade de Porto, a 198km de Teresina, Lenir encantava-se com desenhos de bailarinas. Anos mais tarde, vivenciou no Rio de Janeiro os sonhos de criança. Na adolescência, precisou fazer tratamento médico e o pai a mandou para a casa de uma prima na capital carioca, Maria Nair Santos, que passou a levá-la para as aulas de balé que fazia. Adiou sua volta à terra natal e acabou estudando Desenho e Arte na capital carioca. De volta a Teresina, passa a lecionar artes plásticas no Liceu Piauiense e no Colégio Sagrado Coração de Jesus. As amigas se interessaram pela novidade e Lenir passou a ensinar as primeiras aulas de balé em sua própria casa. Abre sua primeira escola em 1957, nomeada apenas de Escola de Ballet Clássico, que funciona até 1960. Retorna ao Rio de Janeiro, momento em que conhece o marido e permanece até 1972. Retorna a Teresina onde cria a Academia de Ballet Lenir Argento, que funciona de 1972 a 1997. Foi homenageada pelo Ballet Bolshoi em visita a Teresina, recebeu menção honrosa pelo pioneirismo e é nome de rua no bairro Mário Covas. Aos 78 anos, deixou dois filhos em 2003, ano em que a Escola de Dança do Estado do Piauí é rebatizada com seu nome.

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Foto do acervo: Maurício Pokemon

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“Dona Lenir chegou aqui, mas eu não a conhecia. Em 1977 eu conheci Eleonora Paiva e logo em seguida eu fui trabalhar com a Dona Lenir” – Frank Lauro

“A tia Lenir é uma figura famosíssima. Fui para a Escola de Dança e, aí sim, comecei a fazer aula mesmo. De lá fui para a academia da Dona Lenir” – Sidh Ribeiro

“Eu já tinha 14 ou 15 anos quando eu conheci a Dona Lenir Argento. Comecei a frequentar o pequeno estúdio dela. A dança me chamava muita atenção. Sempre me impressionou muito a ideia do movimento dos braços e das mãos, mas eu nunca me senti um príncipe” – Marcelo Evelin “Ela pintava. Ela dava aula com essas saias justas e com a vitrola, você acredita? Conheci ela pessoalmente, mas eu fui desprivilegiada. Eu não tive aula com a Dona Lenir” – Lina do Carmo “Na época quase não existia muita coisa aí. Só a Eleonora e Dona Lenir praticamente” – Lenora Lobo

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Eleonora Paiva - A arte do mundo -

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Foto: Acervo pessoal

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Não considera sua formação puramente piauiense. A arte de Eleonora é a arte do mundo todo. Hoje vive na Holanda, onde mora há 26 anos. Teve a avó como figura inspiradora: Adalgisa Paiva era maestrina e pianista, aluna de Villa Lobos. A mãe, Ilza Oliveira, foi cantora no final dos anos 40 e inaugurou a rádio pioneira de Teresina. “Tive o previlegio de nascer em uma familia altamente musical”, considera Eleonora Paiva, cantora, atriz e coreógrafa. Em sua casa se ouvia de Luiz Gonzaga a George Gershwin, de Villa Lobos a Bach. “Minha formação foi eclética e vasta em todos os campos da arte. A liberdade de expressão era latente e isso me trouxe aonde eu estou agora”, diz Eleonora. Além de inspiração, a avó foi sua primeira diretora. No jardim de infância, aos quatro anos dançou coreografia criada por ela, O relógio - a dança das horas. “Foi a minha primeira apresentação pública”. Na família, Eleonora teve ainda como parceira, a tia, Lenir Argento, pioneira da dança clássica no Piauí. Apesar do temor da família quanto ao futuro de artista, sempre foi uma inspiração expressa. “Claro que tenho meus grandes mestres de inspiração como Isadora Duncan e Vaslav Nijinsky, mas minha família foi sempre minha pedra de apoio”, diz Eleonora que ainda tentou cursar Psicologia. “Mas a arte me tomava por inteiro e não consigo me ver fazendo outra coisa na vida”, destaca. Diz amar as artes e se considera uma pessoa universalista. “Eu me sinto em casa em todas as formas de arte e em qualquer lugar do mundo”. Foi 201


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autodidata em suas atividades artísticas, mas começou a dançar com Lenir Argento nos anos 60. No Rio de Janeiro, estudou com Eugênia Feuderova, inclusive, ganhando bolsa para estudar em Moscou, na Rússia. A pouca idade não conquistou a permissão dos pais. Anos depois, entre 1971 e 1973, teve a oportunidade de estudar dança moderna nos Estados Unidos e conheceu professores como Gus Giordano, influência que diz ter até hoje em sua vida. Produziu balés clássicos com Lenir Argento; fundou o primeiro grupo de dança do Piauí nos anos 80, chamado Avoantes e foi diretora da Escola de Dança do Estado do Piauí, momento em que trouxe artistas e grupos como o Ballet Stagium de São Paulo para apresentações e workshops. Foi precursora do jazz, sapateado, dança moderna e contemporânea nos palcos do Piauí. Fora do Brasil, montou vários espetáculos em Amsterdã, Colônia, na Alemanha e Paris. Não fez parte somente da dança do Piauí, mas do teatro, da música e dos desfiles de moda do estado. Hoje, dedica-se ao canto e apresenta ao público no exterior repertórios, principalmente, de Bossa Nova. “Acho que tudo evoluiu. A semente da dança que plantamos no tempo passado cresceu e hoje se expande, evolui e os bailarinos e coreógrafos podem atingir e realizar seus sonhos com liberdade”, é o recado que Eleonora dá.

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Depoimentos: “Em 1977 eu conheci Eleonora Paiva. O primeiro grupo de dança do Piauí chama–se Avoantes, foi feito pela Eleonora, tinha eu, tinha o Cleber (Moura Fé), muita gente que foi embora já. As coreografias eram todas feitas pela Eleonora” – Frank Lauro. “Em 1987 eu criei meu primeiro solo e chamei a Eleonora Paiva para me dirigir. Quem eu gostaria que dirigisse e que me entende é a Eleonora. Eu e ela selecionamos poesias de Torquato Neto e montamos o espetáculo Cogito. Eu acho que ela foi a grande pioneira”. – Lenora Lobo. “A Eleonora me inspirou muito quando eu vi ela dançar. Ela não só fazia aula com a tia como dava aula para as crianças” – Lina do Carmo. “Nós dançamos Peixinhos do Mar no grupo Avoantes, uma coreografia de Eleonora Paiva, com assistência de direção do Frank Lauro. A Eleonora Paiva era a grande coreógrafa” – Sidh Ribeiro.

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Da esquerda para a direita: Lenora Lobo, Eleonora Paiva, Dongo Monteiro, Zeca Nunes.

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Foto: Acervo pessoal

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Para onde dançamos? Ao longo das entrevistas percebeu-se que existe a proposição de instigar os entrevistados a refletirem, entre outros pontos, sobre o processo de formação em dança no Piauí. A partir de suas falas pode-se empreender que o estudo em dança se deu, em sua maioria, de maneira empírica e intuitiva em nível local. É uma lacuna que foi enxergada nas conversas em sua maioria e exige uma reflexão profunda. No entanto, podemos destacar alguns pontos nesta questão. Em 2014, criou-se o I Curso Técnico em Dança, através da Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Estado do Piauí. O curso seria inaugurado na Escola de Dança do Estado do Piauí Lenir Argento, instituição vinculada ao Governo do Estado, mas passou a funcionar por meio de um termo de cooperação no Balé de Teresina. O fato de existirem três turmas, cerca de 40 alunos em cada uma delas nos turnos da manhã e da noite já aponta para uma necessidade local que se tem em estudar dança. Também de forma recente, foi inaugurada uma especialização em Dança e Consciência Corporal em instituição de ensino particular, voltada para graduados em Educação Física e Pedagogia. Outra iniciativa é a tentativa de implantação da Graduação em Dança na Universidade Federal do Piauí. Percebida como uma possibilidade de expandir interpretações sobre a dança e oportunizar formação superior aos artistas locais, a discussão existe há alguns anos, bem como a discussão sobre o formato que seria este novo curso. Logo, já se formula na cidade alternativas de formação para os artistas da dança. Até então, os cursos que se tinham disponíveis eram as acade207


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mias tradicionais de balé clássico, cursos com professores e coreógrafos que vinham de fora para dar workshops e a Escola de Dança do Estado Lenir Argento, que existe há 29 anos. Quanto a esta última, muitos entrevistados fizeram ressalvas. Fundada há 29 anos, a formação na Escola muda a cada quatro anos, sendo que na maior parte do tempo tem o ensino do balé clássico como conteúdo principal da sua grade curricular. Questiona-se, consequentemente, a possibilidade dos alunos estudarem outras técnicas de dança, qual o caráter formador que a escola assume e a própria validade do certificado que se recebe ao fim do curso. No entanto, a discussão sobre formação em dança se dá no Brasil e em outros lugares do mundo no sentido de debater qual o modelo de formação apropriado, se é que existe um apenas. Universidades como a Universidade Estadual de Campinas-Unicamp, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC e Universidade Federal da Bahia-UFBA, maiores expoentes em termos de pesquisa também se colocam a refletir sobre o assunto, como pode se ver no recorte. De acordo com a dissertação “A constituição do campo acadêmico da dança no Brasil”, de Rita Aquino, da Universidade Federal da Bahia-UFBA, podemos apontar a participação do Piauí quanto à pesquisa em dança. De acordo com a estudiosa, o Piauí possui apenas 2 publicações de dissertações e teses contra 327 do estado de São Paulo, estado que mais produz. O Piauí ganha apenas de Alagoas e Mato Grosso, com apenas 1 publicação, cada.

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Desse modo, pode-se ver que no quesito pesquisa, o Piauí fica atrás de outros estados, porém, esse dado reflete outras realidades como, obviamente, como existirá pesquisa se não há graduação e pós-graduação na área de dança no Piauí? Além disso, a formação para outras funções também é muito carente. Iluminadores, cenógrafos, fotógrafos, produtores, ensaiadores e até mesmo professores com formação específica para esta função, levando-se em consi209


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deração que dança não é só para quem exerce a função de bailarino. Para ajudar a esclarecer, Ana Maria Rodrigues Costas, no artigo Onde se produz o artista da dança, aponta para alguns pontos, material que foi debatido no 1º Ateliê Internacional da São Paulo Companhia de Dança, que aconteceu em abril de 2014. Entre alguns destaques a autora cita a realização da Classificação Brasileira de Ocupações-CBO/2002, em que os profissionais da dança passaram a ser denominados artistas da dança. “Tal classificação não se constitui como lei, mas tem por finalidade a identificação das ocupações no mercado de trabalho, fornecendo indicadores importantes sobre as transformações nas profissões do país” (COSTAS, 2014). Com isso, a autora cita que, segundo a Lei nº 6.533/78, os possíveis percursos de profissionalização são: anos de estudos no ensino não-formal, nos chamados cursos livres e/ou formação não reconhecidas pelo MEC, como estúdios e academias, obtendo seu registro profissional junto aos sindicatos; a realização de um Curso Técnico (2º Grau) reconhecido pelo MEC ou realizando um Curso de Graduação em Dança (3º Grau). Para ela, portanto, consiste em uma rede de intercruzamento. O artista da dança se produz no intercruzamento dos diferentes espaços de formação, informação, criação, produção e difusão onde ocorrem estudos, pesquisas, experiências e práticas estetico-artísticas as quais deverão ser constantemente problematizadas, contextualizadas, em suas dimensões estéticas, culturais, educacionais, sociais, econômicas e políticas. (COSTAS, 2014, p. 07)

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Entende-se, com isso, que é uma questão complexa e delicada, recheada de percalços e é, além disso, uma grande lacuna a ser preenchida, como as novas tentativas citadas acima vêm experimentando. Outro sentido abordado no roteiro de perguntas solicitado aos entrevistados foi a cobertura jornalística. Apontada como informação deficitária, inconsistente e até mesmo fútil, a cobertura jornalística sobre dança nos veículos de comunicação locais, principalmente televisão e jornal foi apontada, unanimamente, como insuficiente e deturpada. Muitas vezes, a participação de apresentação de dança em programas de televisão, salvo raras exceções, de maneira geral, é vista de forma glamourosa. O balé clássico, por sua vez, é visto de maneira virtuosa. A dança contemporânea, quando está ligada à temática do regionalismo e surge com características de alegria e festividade também é muito bem aceita. No entanto, apresentações de cunho mais conceitual raramente têm espaço na mídia televisiva. Além do tratamento muitas vezes equivocado dado a dança, principalmente por parte dos jornais impressos e na televisão, esses veículos dispõem de pouco espaço para abordar o assunto. Quando não se trata de divulgar uma agenda cultural ou mesmo exibir apresentações aceitáveis em nível de compreensão geral, não se tem espaço para reflexão em dança. Debates e discussões públicas não têm espaço na televisão aberta para a arte, e a dança está inclusa. Desse modo, a dança aparece vinculada à publicidade ou ao colunismo social, em que o artista é visto como celebridade e não como profissional da área. A bailarina clássica é vista de maneira mítica na televisão e até mesmo no jornal impresso e os artistas da dança aparecem nos cadernos de 211


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coluna social quando viajam para eventos fora do estado. Outro grande ponto situado pelos entrevistados foi a falta de checagem dos jornalistas. Nas redações, a rotina diária atropela a produção jornalística. Muitas vezes, o veículo dá prioridade a outras editorias como Política, Polícia e Geral e relega a editoria de Cultura. Inviabiliza veículos para a cobertura de eventos, festivais, exposições e apresentações artísticas; disponibiliza um espaço reduzido nos cadernos diários e até nos cadernos semanais e preocupa-se pouquíssimo com a especialização de jornalistas da área de cultura. Tais rotinas produtivas submetem o jornalista a trabalhar sem sair da redação, a partir de releases enviados pelos grupos, companhias e projetos que, por sua vez, muitas vezes trabalham sem profissionais especializados na área de comunicação que possam providenciar material de texto e fotos - o que nos traz novamente a questão de formação para diversas funções na área de dança. Portanto, a sistematização desse modo de trabalho por parte dos jornalistas e dos artistas contribui para a divulgação de informações incorretas. Baseado nessa precariedade, os donos dos veículos e até mesmo os editoreschefes supõem que cultura não é um assunto de interesse para os telespectadores/leitores e, dessa forma, justificam esta decisão de não-investimento na editoria. A peça da engrenagem talvez seja, portanto, a especialização de jornalistas na área. Críticos de dança, dispostos a se dedicarem à compreensão de dança, bem como disponíveis a colaborarem para a construção de um pensamento edificante e imparcial que se distancie do sentido de coleguismo, eventualmente seja a pressão social que se faça para impulsionar a dança 212


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em um caráter mais profissional. Nesse sentido, Lima (2011) colabora com a necessidade dessa função, algo positivo para o jornalismo e para a dança. É preciso desenvolver modos de garantir o conhecimento especializado no espaço jornalístico, já que o jornal revelase como o lugar apropriado para abrigar a crítica de dança. (...) Assim, é da natureza do jornal produzir senso comum. Por veicular doxa e não discurso científico, e por ser lido por milhares de pessoas, as ideias veiculadas no jornal são facilmente disseminadas entre a população. (LIMA, 2011, p. 74)

Sem profissionais, obviamente não existem revistas e cadernos especializados. Portanto, com isso, diante de todas os pontos colocados, o registro em dança se torna aleatório e vago. Não se tem fotos e informações dos artistas que trabalham na área, bem como não existem críticos especializados, assim como, muitas vezes, os veículos não se disponibilizam a trabalhar com profissionais em condições mínimas para que se estabeleça comunicação na área de dança, divulgando informações equivocadas ou enquadrando ângulos em formatos televisivos que não contribuem para a formação de um pensamento em dança. Apesar de todos esses percalços a dança no Piauí, muitas vezes, é citada na mídia de maneira coerente e responsável. Helena Katz é uma teórica e crítica de dança que escreve para o Estado de São Paulo. Em matérias que já escreveu sobre a produção local, traz a informação de maneira relevante a 213


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cerca do que se faz aqui artisticamente, como na edição do dia 1º de outubro de 2003. Manchetes como “Festival mostra como a arte leva à cidadania”, referindo-se ao 1º Interartes, Helena Katz diz que “ (...) lá na distante Serra da Capivara, plantou-se algo com a força e a densidade necessárias para promover a sua sobrevivência”. Isto nos leva para outro quesito que é o público. De alguma maneira, a dança pode ser considerada uma expressão artística subjetiva e uma linguagem de compreensão não-imediata. Este primeiro caráter pode ser um dos motivos pelo qual a dança não atinge grandes públicos em termos de quantidade, quanto a música, por exemplo. Um acentuante nessa questão é quando não se trata de um repertório de balé clássico e não se tem um enredo linear para apresentar. Em outras vezes, o público de dança é, frequentemente, formado pelos amigos e familiares do artista que saem de casa para assisti-lo. Dessa maneira, quando não se trata de familiares e outros artistas da própria área, dificilmente encontram-se pessoas interessadas em assistir ao espetáculo pelo simples fato de terem sido despertadas para aquele trabalho. O problema pode estar no próprio modo de produção do espetáculo quanto a sua divulgação e a estrutura do grupo/companhia/projeto/artista em articular pessoas que exerçam as funções vinculadas a produção e, dessa forma, possam alcançar níveis na imprensa para divulgar aquele espetáculo em cartaz. Ou mesmo, a dificuldade em formar público pode estar atrelada à falta de hábito de consumir arte. Isto nos leva à compreensão de que arte deve estar presente no cotidiano das pessoas e que elas possam tomar conhecimento em diferentes espaços - tanto os públicos como os institucionalizados. Essas diferentes ex214


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periências, bem como o convívio e familiaridade com a arte tornam pessoas mais sensíveis, dispostas a buscarem discernimento sobre determinadas coisas e, assim, interessarem-se a conhecer o teatro, assistir peças e espetáculos, formando em breve, um público assíduo. No entanto, iniciativas e ações como estas não devem partir apenas dos artistas. A grande compreensão dos três itens citados acima: formação, cobertura jornalística e público estão atreladas a um ponto comum - políticas públicas para a dança. Coelho (1997) faz uma definição básica do que se trata, afinal de contas, política cultural. O conceito de política cultural apresenta-se com freqüência sob uma forma altamente ideologizada. Partindo-se do pressuposto segundo o qual os fenômenos culturais constituem um todo cujos componentes mantêm relações determinadas entre si e estão sujeitos, por princípio mas não inelutavelmente, à lógica geral da sociedade onde ocorrem, e considerando que a cultura é um forte cimento social, não é raro ver a política cultural definida como o conjunto de intervenções dos diversos agentes no campo cultural com o objetivo de obter um consenso de apoio para a manutenção de um certo tipo de ordem política e social ou para uma iniciativa de transformação social. Numa trilha paralela, entende-se a política cultural, juntamente com a política social, como um dos principais recursos de que se serve o Estado contemporâneo para garantir sua legitimação como entidade que cuida de todos e em nome de todos fala. (COELHO, 1997, p. 292-293)

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São muitas as carências no sentido político e artístico, mas uma das mais importantes delas é a atuação das fundações municipal e estadual em Teresina e no Piauí. O fato de não serem constituídas como secretaria faz com que trabalhem com orçamento limitado. Além disso, o apoio a novos projetos bem como a manutenção dos antigos é um dos grandes entraves para a proliferação da arte. O funcionamento e o modo como se dá a gestão nos órgãos públicos - não só no Piauí, mas também no Brasil e isto inclui os órgãos culturais - são repletos de burocracias e, muitas vezes, má vontade no atendimento público, sem falar da morosidade com que se tratam muitos assuntos. Dentro de uma sistematização inócua, o funcionalismo público garante, unicamente, a ineficiência e ineficácia de um serviço público, estacionando no âmbito pessoal e particular das relações. Com frequência, os secretários municipais e estaduais não compreendem as necessidades dos artistas e, raramente, estabelece-se um diálogo entre ambas as partes, em que o poder público acaba, muitas vezes, agindo de maneira arbitrária para acatar ordens orçamentárias ou administrativas de outras instâncias sem que se consulte os envolvidos. Quando se dão reuniões e despaches para desenvolver ações, raramente acontecem da maneira acordada inicialmente, seja no sentido da concepção de um trabalho ou mesmo quanto a remuneração do prestador de serviço. Notadamente, os secretários e seus assessores são nomeados por lideranças municipais e contribuem para a falta de engajamento e iniciativa, imprenscindíveis para o desenvolvimento de um setor fundamental como é o da cultura. Para que se cumpra uma agenda política, o secretário atende es216


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pecificidades de um gestor municipal ou estadual, porém fica sem condições de atender demandas básicas para o mínimo funcionamento da cultura. Mais uma das questões aqui colocadas são as leis de fomento à cultura. A lei municipal A. Tito Filho disponibiliza um repasse reduzido para várias manifestações artísticas que precisam ser divididas entre a dança, o teatro, as artes plásticas, o cinema e a literatura. O Sistema Estadual de Incentivo à Cultura-SIEC, por sua vez, também é apontado pelos entrevistados como ineficiente, defasado e com constantes atrasados no repasse das parcelas, mesmo com a o sancionamento da lei que altera o SIEC e se deu no ano de 2013. Com a mudança, projetos de até R$ 30 mil financiados por empresas privadas poderão ter 100% de abatimento fiscal. O percentual anterior era de até 70%. No entanto, a visão dos empresários locais é outro grande entrave. Dificilmente enxergam na cultura espaço para vincular sua marca e se tornarem apoiadores e patrocinadores oficiais, mesmo com abatimentos fiscais. Isto não se dá apenas na arte, mas também nos esportes e em outras áreas. Apesar de compreender que a arte não pode e nem deve estar apenas em espaços institucionalizados, compreende-se que a falta ou o sucateamento desses lugares contribuem para uma desarticulações de ações e acontecimentos artísticos. As insistentes reformas do Teatro 4 de Setembro, a sub-utilização do Teatro do Boi e a deterioração do Teatro João Paulo II são apenas um dos aspectos problematizantes da questão da falta de espaço para atividades culturais, sem falar de outros espaços culturais de ambiente reduzido que não atendem a demanda de um público ou estrutura de espetáculo como iluminação e sonoplastia adequadas. 217


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Não se tem um centro cultural que atenda todas as demandas específicas das mais variadas classes artístcas e o Centro de Convenções de Teresina é uma incógnita política, financeira e administrativa. A obra que foi iniciada em 2008 e foi paralisada por duas vezes, está orçada em R$ 28 milhões com recursos do Ministério do Turismo e com o prometimento de serem retomadas ainda no ano de 2014. Esses assuntos foram debatidos nas Conferências Municipal e Estadual de Cultura realizadas em 2013, reunindo artistas, produtores e organizações interessadas. A intenção das reuniões era discutir e estimular ações relacionadas às atividades culturais da cidade, bem como escolher delegados para representar o município na estapa estadual e nacional, tendo o Sistema Nacional de Cultura (SNC) como pauta matriz. Diante do que foi dito, entende-se que a cultura não é uma área secundária e passível da desatenção pública, tanto dos gestores, como da própria sociedade. Compreende-se, então, que não se trata apenas de quesito orçamentário, mas de articulações coerentes que proporcionem o desenvolvimento de uma área fundamental e equivalente em nível de importância como qualquer outra da administração pública. Além disso, a compreensão de que dança é uma área de conhecimento autônoma. Discutir sobre o “lugar e o papel” de uma política em dança, sugere observar o entendimento de política em sua natureza conceitual, para então se pensar em ações particularizadas com suas distintas funções e setores que a representam. O viés, aqui apresentado, propicia estimular questionamentos que se inserem na reflexão crítica do próprio concei-

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to como ação, uma vez que abre espaços para discutir os modos pelos quais a dança, exercita sua construção crítica diante de normas generalizantes e institucionalizadas com suas privilegiadas premissas calcadas no consenso. (SEMINÁRIO DE PESQUISA DO PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO EM DANÇA/UFBA, 2013, p. 8)

Existem necessidades básicas que precisam ser sanadas para que se alcance um nível de conexão entre gestores e artistas, mas também em contato com os envolvidos sociais. Não é uma circunstância isolada visto que está se tratando de espaços e atividades públicas com abragência educacional. As escolas, universidades e praças estão ausentes de arte pela ineficiência de questões prioritárias. Embora a articulação de artistas e de alguns segmentos sociais como interessados no meio acadêmico e até mesmo, com exceções, no âmbito público consigam estabelecer ações mais duradouras, não se pode estruturar condições para a disseminação da arte de maneira isolada, tendo em vista que circunstâncias fundamentais são interdependentes.

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Das Incertezas Vamos falar de incertezas. Mas antes delas, uma bem breve certeza: Falta muito. São muitas histórias e pessoas consideradas chaves mestras de uma produção em dança foram ouvidas neste trabalho. Tentou-se destacar vivências biográficas dessas figuras, bem como suas percepções sobre o que nos cerca social, cultural e politicamente. O formato de entrevistas tem esta vantagem: deixar com que expressem a si mesmos. Espera-se, honestamente, que seja uma contribuição, das mínimas e mais simples para um campo que ainda precisa, de todo, não de artistas, que estes têm de sobra - e consideráveis, mas de pessoas dispostas a falar sobre relações. Este trabalho foi, antes de tudo, uma inquietação pessoal, artística e jornalisticamente. Tornou-se, então, um compromisso, repleto de crises, mas acima de tudo: repleto de incertezas. Não se sabe como isto vai reverberar, mas gostaria, profundamente, que alcançasse a auto-crítica de todos nós. Não digo de artistas, entrevistados ou não, nem dos jornalistas, nem mesmo dos gestores. Digo nós, enquanto essência humana, pergunte-se: O que você tem feito pela cultura? Se você pensa que não tem obrigação com isto, ou mesmo, a menor consideração, pergunte-se novamente. A cultura é, antes de dança, bailarino ou teatro, parte do que se é. Ela está nas entrelinhas, no seu sotaque, no seu gesto, no seu tom de falar, no seu olhar, na sua atitude e, por que não, na sua dança? Em meio às incertezas, dificuldades não faltaram. À princípio, o formato deste trabalho seria um livro-reportagem em páginas corridas, diferente da formatação que se deu em entrevistas. Vasculhas e consultas feitas durante um mês e até mesmo a tentativa de catalogação dos jornais de entre221


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vistados não foram suficientes para direcionar uma referência bibliográfica consistente. No meio do percurso, percebeu-se a impossibilidade de cumprir esta meta e partiu-se para um registro mais prático, no entanto, não menos trabalhoso e equiparadamente honesto: compilar figuras da dança em entrevistas, consideradas essenciais. Isto resultou em 15 horas de áudio das conversas que foram transcritos e resultaram em 150 páginas de entrevistas brutas. Foi dada a largada na corrida contra o tempo no dia 21 de outubro, faltando menos de dois meses para entregar o produto final. Como era de se esperar, a influência desses artistas e o envolvimento mais próximo de suas ideias, bem como o conhecimento mais detalhado de sua trajetória trouxe, involuntariamente, reflexões sobre a própria arte e sobre eu mesma. Não deixaria de citar aqui, uma das conversas, pessoalmente mais marcantes com Lina do Carmo. Após quatro horas de conversa via Skype e uma distância de também quatro horas no fuso horário, a sensibilidade se fez presente: “Eu já chorei sendo entrevistada, mas ninguém nunca chorou me entrevistando”, disse Lina do Carmo ao perceber minhas lágrimas. De todo modo, todas as entrevistas foram singulares. Alguns posicionamentos me frustraram, outros mexeram comigo e, outros, ainda, me emocionaram. Porém, se a ideia é tirar do eixo, este papel deve ter sido cumprido com alguma teimosia. Com saudosismo, carinho e até mesmo indignação diante de acontecimentos da própria cultura do estado, creio que diante de tudo que foi dito e diante do que foi dito nas entrelinhas, este trabalho é uma tentativa de enfrentamento diante das acomodações. Das perspectivas que se estabelecem, penso que ficam as histórias de 222


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vida para uma avaliação individual de nós mesmos, no que diz respeito às insistências artísticas, aos enfrentamentos pessoais e às tentativas de proporcionar ações que perpetuem dança. Das impressões, a ideia de que falta muito, porém não tudo e que, de maneira coletiva, com menos vaidade se consiga construir relevâncias, destabilizar terrenos, repensar posicionamentos, desclassificar padrões e romper com paradigmas. Penso que, naturalmente criou-se ambientes para reavaliações, calcadas nas mesmas incertezas. E, sobre elas, eu me despeço com o poema de André Gonçalves no livro Pequeno Guia das Mínimas Certezas. Pequeno Guia das Mínimas Certezas – X para se ter certeza de uma certeza, exponha – a ao sol durante sete dias; se desbotar, cante e sacuda os ombros; se ela se mantiver firme como rocha, insira balas no tambor e gire; se desaparecer, alegre – se: a razão é matéria em estado gasoso. André Gonçalves, In: Pequeno Guia das Mínimas Certezas (2012) 223



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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FIGURAS DA DANÇA DO PIAUÍ

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