Ciberproletários: Tecnologia, educação, trabalho e cultura visual no século XXI

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victor tufani

tecnologia, educação, trabalho e cultura visual no século XXI





Ciberproletários

Tecnologia, educação, trabalho e cultura visual no século XXI Trabalho final de graduação apresentado no curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Orientador Prof. Dr. Aldo Victorio Filho Banca examinadora Profa Dra Ana Valéria de Figueiredo da Costa Profa Dra Renata de Oliveira Gesomino

Victor Tufani Nunes Rio de Janeiro 2019 5



Para o meu avô Arnaldo, que leu para mim antes que eu pudesse ler, e me levou pela mão até o mundo recôndito nas palavras e imagens no papel.



AGRADECIMENTOS Devo a maior parte das escolhas felizes em minha vida aos excelentes professores que tive e cuja influência e exemplo para mim são imensos. Sou grato pela sorte de encontrá-los na escola, na universidade e na vida, e por poder carregar comigo um pouco de cada um. Agradeço à minha mãe, que me apoiou incondicionalmente e sempre me incentivou a seguir em frente diante de qualquer obstáculo. Ao meu pai, por ser um grande amigo, sempre preocupado e presente em minha vida. À minha irmã Vivi, que irrito com minhas brincadeiras, e que vi crescer e se tornar uma mulher inteligente, independente, feminista, responsável, e que tanto admiro. À minha companheira Lisa, com quem divido os momentos mais importantes e felizes da minha vida. Aos professores e professoras da Escola de Belas Artes da UFRJ, que me transmitiram “saberes e fazeres” inestimáveis no campo das artes, que tanto enriquecem e alegram minha vida e que desejo poder transmitir também aos meus futuros estudantes. Especialmente aos professores Rui de Oliveira, Carlos Azambuja e Marcus Dohmann, cujas lições e palavras de carinho guardo preciosamente. Aos professores e professoras do Instituto de Artes da UERJ, instituição em que me senti tão bem acolhido e que me orgulha por ser um modelo de luta pela educação democrática e emancipadora. Também aos professores Zacarias Gama, Marco Antonio da Silva e Paulo Sgarbi da Faculdade de Educação, que me encorajam a ser um educador “inquieto” e engajado na tarefa de contribuir para transformar nossa sociedade. Especialmente aos professores Aldo Victorio, meu orientador neste trabalho, um educador raro, sempre pronto a indicar o caminho e responder às mais difíceis questões com tanta calma, doçura e simplicidade. À professora Renata Gesomino, que para mim é o exemplo de educadora necessária, revolucionária; às professoras Ana Valéria e Isabel Carneiro, que todo o tempo nos abraçam, nos ouvem e nos orientam, e nos inspiram, com seu exemplo de respeito e carinho pelos estudantes, a sermos grandes professores.



RESUMO Este estudo visa explorar os efeitos da automação industrial, da disseminação de tecnologias informacionais e digitais e do avanço das políticas neoliberais sobre o trabalho e a educação mediante uma análise materialista das condições de produção no século XXI e da mobilização dos aparatos ideológicos de Estado dedicados a sujeitar o conjunto das relações sociais aos propósitos de acumulação do capitalismo financeiro, com efeitos desagregadores e de esvaziamento político. Propõe-se um encadeamento entre tecnologia, ideologia e cultura visual, e seu emprego tático contra os processos de mistificação e alienação, através do desvendamento do sentido das imagens e da visualidade nas sociedades contemporâneas. Palavras-chave: Tecnologia, neoliberalismo, trabalho, educação, escola, cultura visual.

ABSTRACT

This study aims to explore the effects of industrial automation, the spread of informational and digital technologies and the advancement of neoliberal policies on work and education through a materialist analysis of production in the 21st century and the mobilization of ideological apparatuses of State dedicated to subordinate the set of social relations to the purposes of accumulation of financial capitalism, with effects of disintegration and political emptying. We propose a link between technologies, ideology and visual culture, and its tactical use against the processes of mystification and alienation, by unveiling the meaning of images and visual communication in contemporary societies. Keywords: Technology, neoliberalism, work, education, school, visual culture.



sumár 15 20 24 37 47 51

INTRODUÇÃO TECNOLOGIA COMO IDEOLOGIA TECNOLOGIA E TRABALHO NEOLIBERALISMO E EDUCAÇÃO CULTURA VISUAL COMO TÁTICA CONSIDERAÇÕES FINAIS



1.INTRODUÇÃO Em abril de 1900, foi inaugurada a mais célebre edição da Exposition Universelle em Paris, uma feira mundial destinada a celebrar o encerramento do século XIX e anunciar os progressos e técnicas prometidos para a nova era que se iniciava1. No auge da Belle Époque, seu caráter era inequivocamente futurístico: o art nouveau ganhou lugar de destaque na arquitetura dos pavilhões e edículas de acesso ao metrô projetadas por Hector Guimard; um imenso telescópio instalado no Palais de L’Optique permitia que os visitantes observassem a lua “como se estivesse a um metro de distância”2; Rudolf Diesel apresentou o inédito mecanismo que levaria seu nome aos motores de automóveis e aviões fabricados apenas depois de sua morte. A feira também encantou os visitantes com shows de luzes, um palácio da eletricidade, panoramas retratando cenas exóticas de diversos países do mundo e uma série de outras novidades técnicas e artísticas. É numa obra de menor destaque, no entanto, que encontramos o melhor exemplo da curiosidade e encantamento com as invenções do futuro, prometidas pelo avanço das técnicas. Às vésperas da exposição, Jean-Marc Côté e um grupo de ilustradores produziram uma série3 de pelo menos 87 cartões representando cenas cotidianas imaginadas para o ano 2000. Entre as mais extravagantes previsões estão carros voadores, soldados e carteiros alados, casas móveis e corridas subaquáticas. Outras ilustrações, no entanto, antecipam invenções de nossa época, como as chamadas por vídeo, tanques de guerra, veículos controlados remotamente, patins elétricos e máquinas autônomas que tocam instrumentos musicais, limpam o chão das residências e executam toda sorte de serviço doméstico. As ilustrações foram concebidas para serem vendidas em caixas de cigarro ou na forma de cartões postais, mas o empreendimento fracassou e elas nunca chegaram a ser comercializadas. A coleção original foi adquirida mais tarde por Isaac Asimov, sendo republicada parcialmente pelo autor na década de 19804. A trajetória desses cartões, de uma feira tecnológica à coleção do grande autor de ficção científica, é um exemplo mais que trivial do limiar em que ciência e narrativa ficcional parecem misturar-se, provocando nossa curiosidade, 1 L‘ Exposition Universelle de 1900 à Paris. [S. l.], 26 fev. 2012. 2 BUREAU INTERNATIONAL DES EXPOSITIONS. EXPO 1900 PARIS. [S. l.], 25 abr. 2016. 3 HILL, David Jay. 19th Century French Artists Predicted The World Of The Future In This Series Of Postcards. [S. l.], 15 out. 2012. 4 ASIMOV, Isaac. Futuredays: A Nineteenth Century Vision of the Year 2000. Nova York: Henry Holt & Co, 1986. 96 p.

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excitação, e muitas vezes o nosso pavor e desconfiança. Jean-Marc Côté e seus companheiros ilustradores não puderam prever o advento das tecnologias digitais. Todos os equipamentos e veículos fantásticos desenhados naquele último ano do século XIX eram dotados de fios, roldanas, engrenagens, braços mecânicos, carenagens e armaduras metálicas, mas é provável que a ideia de um software, um conjunto intangível de instruções lógico-matemáticas capaz de fazer funcionar “cérebros” computadorizados, gerar displays gráficos e animar robôs sem a interferência humana tivesse parecido mera fantasia mesmo para os grandes cientistas e entusiastas de tecnologia daquela época. Hoje, no entanto, quase não podemos imaginar como seria voltar aos — tão recentes — tempos pré-digitais, e lidamos cotidianamente com máquinas inteligentes, capazes de realizar cálculos mais velozes e precisos do que a mente humana, algoritmos complexos e sistemas capazes de absorver conteúdo e se aprimorar de forma autônoma. Não pretendi, neste breve estudo, confinar o entendimento de tecnologia apenas aos limites da chamada alta tecnologia e suas invenções mais recentes. Especialmente porque, ao esmiuçar “novas tecnologias” em períodos de aceleração do ciclo tecnológico, corremos o risco de falar sobre fenômenos passageiros e sem grande impacto. A internet, os jornais e até mesmo a literatura científica oferecem um vasto acervo de informação sobre técnicas e dispositivos que se popularizaram como grandes novidades, mas acabaram substituídos e esquecidos por completo em poucos anos. Investigar o advento de novas técnicas, maquinarias, linguagens e todo o complexo criativo que vem transformando o mundo e as sociedades humanas sem perder de vista o processo histórico maior em que se inserem pode nos ajudar a evitar, pelo menos parcialmente, um risco duplo: o de tratarmos ingenuamente a tecnologia como fator de redenção e panaceia para os problemas sociais, econômicos e políticos; e o de respondermos às inovações de forma estritamente reacionária, tecnofóbica, temendo por nossa vida e nossos empregos. Afinal, os prejuízos do avanço tecnológico não são uma consequência intrínseca ao desenvolvimento das máquinas e técnicas, mas sim dos objetivos por trás de seu uso: “Foi preciso tempo e experiência até que o trabalhador distinguisse entre a maquinaria e sua aplicação capitalista e, com isso, aprendesse a transferir seus ataques, antes dirigidos contra o próprio meio material de produção, para a forma social de exploração desse meio.” (MARX, 2015) Esta reflexão dedica-se a explorar as tecnologias do trabalho no contexto da reestruturação permanente do capital (ANTUNES, 2018), os impactos radicais da automação, da ora chamada economia do compartilhamento e do crescimento do ciberproletariado sobre a forma como ainda concebemos o mundo do trabalho; a sua relação com a cultura visual e a educação, crescentemente aviltada pelo programa neoliberal, e sobretudo de que maneira os 16


arteducadores podem participar dessa mudança de forma ativa, responsável e propositiva. No filme de Vittorio de Sica, “Ladrões de Bicicleta”5, o personagem principal implora por emprego numa fila em Roma. Quando finalmente consegue, é informado de que precisa ter uma bicicleta para trabalhar. Ele penhora seus bens para comprar uma, mas quando é roubado, logo no primeiro dia de trabalho, cabe a ele próprio procurar, desesperadamente, seu veículo e único meio de ganhar a vida. Essa imagem de um cidadão humilhado pela precariedade de sua condição, que lhe exige trabalhar praticamente por conta própria e sem nenhum tipo de garantia, segurança ou autonomia, é evocada no filme como exemplo do efeito intolerável da devastação deixada na Itália pela segunda guerra mundial. O sofrimento do protagonista é então o sofrimento de inúmeros trabalhadores, estudantes, pais e mães, que precisa ser remediado para que a nação recupere a normalidade e a paz interna. As políticas neoliberais e o capital financeiro fabricam hoje trabalhadores em condições tão vis quanto aquelas retratadas no filme: vinculado a um aplicativo, um cidadão filia-se ao serviço de entregas, trabalhando o máximo e o mais rápido que puder, montado em sua própria bicicleta (comprada ou alugada). Se lhe falta o veículo, ele automaticamente se vê impossibilitado de trabalhar. Mas neste caso não há prejuízo para a empresa responsável pelo aplicativo, uma vez que ele nunca foi seu funcionário assalariado, mas um parceiro independente sem qualquer vinculação trabalhista, perseguindo uma renda extra variável. A novidade é que, desta vez, esse fenômeno, que “retoma os argumentos de quarenta anos atrás sobre o trabalho feminino, que não era visto como um trabalho ‘de verdade’” (SLEE, 2017), não se trata de uma tragédia excepcional, mas da gestação de uma nova ordem que não tolera mais o paradigma de trabalho e o modelo de políticas públicas estabelecidos no século passado. Essas inovações são componentes do processo maior de captura, pelo capitalismo, das dimensões de expressão e exercício do poder político (DOWBOR, 2017), da globalização e concentração econômica, e do descompasso entre o progresso tecnológico e social: “O caos que progressivamente se instala no mundo está diretamente ligado ao esgotamento de um conjunto de instituições que já não respondem às nossas necessidades de convívio produtivo e civilizado. Criou-se um hiato profundo entre os nossos avanços tecnológicos, que foram e continuam sendo espetaculares, e a nossa capacidade de convívio, que se estagna ou até regride. Trata-se de uma disritmia sistêmica, um desajuste nos tempos. Este desafio tem sido corretamente conceituado como crise civilizatória.” (ibid., p. 9) 5

Ladri di biciclette. Direção: Vittorio De Sica. Itália: [s. n.], 1948. 35 mm.

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Refletir sobre essa crise e as perspectivas de reorganização social, na tentativa de compreender da melhor forma possível os fenômenos em curso e contribuir para o conjunto de argumentos e práticas elaborados em defesa de uma alternativa hegemônica ao sistema econômico atual não é tarefa apenas de sociólogos, economistas e cientistas políticos, mas também do professor e da professora de artes, sobretudo porque os mecanismos que visam submeter a escola, o trabalho, a cultura, o lazer e os afetos à lógica econômica pura, convertendo tudo em mercadoria e fazendo do gozo consumista “a forma social dominante do prazer” (LAVAL, 2019) recorrem quase todo o tempo ao emprego de imagens para nos atrair e nos convencer de que a resposta definitiva para a contradição “entre as aspirações igualitárias condizentes com o imaginário de nossas sociedades e a divisão social em classes” (ibid, p. 20) é a progressiva privatização e atomização dos serviços e direitos, a que corresponde um distanciamento cada vez maior entre as pessoas e o seu esmagamento diante das mercadorias. A financeirização da economia impõe a participação de um ator subjacente ao ciclo de produção e consumo, cuja função é meramente subtrativa. As carteiras de investimentos parasitam os excedentes oriundos do trabalho num apetite insaciável por repetidos e crescentes aportes financeiros, que posteriormente, em vez de retornarem à sociedade na forma de investimentos nos setores produtivos ou de políticas públicas, apenas fazem girar a roda dos juros e da acumulação incessante de capital por elites globais muito minoritárias, no controle de monopólios cada vez mais poderosos. Esse jogo predatório submete com ainda maior intensidade as relações de trabalho à forma de coação primordial ao capitalismo — a ameaça da fome — mas também a forças ideológicas e simbólicas que exploram uma das mais importantes características de nossa época: Uma inteligibilidade baseada na profusão de imagens que acompanham ou substituem outras formas discursivas, resultando numa “tendência crescente a visualizar coisas que em si próprias não são visuais” (MIRZOEFF, 1999). Valores, discursos e sentimentos circulam embalados em imagens ilusórias, que fazem, por exemplo, com que o trabalhador intermitente ou informal seja chamado a “empreender”, sobretudo a se parecer com um empresário, alguém de maior status do que um assalariado comum, a despeito da precariedade de sua situação real. Essas imagens atingem indiscriminadamente todos os estratos sociais gerando uma necessidade imperiosa de consumo, apoiada na comparação e competição com outras pessoas (cada vez mais facilitadas pelas redes sociais), e na introjeção de sentimentos de angústia, inveja, vergonha, medo da inadequação e da derrota etc. Esses afetos nos aprisionam e nos mobilizam para o trabalho, mesmo nas piores condições: “Chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos. Pois o Homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o do acaso, a cujo poder está a tal ponto 18


sujeitado que é, muitas vezes, forçado, ainda que perceba o que é melhor para si, a fazer, entretanto, o pior.” (SPINOZA, 2017) A primeira parte do desenvolvimento deste estudo está reservada à investigação do sentido de tecnologia e do mundo do trabalho em profunda transformação, na gestação do ciberproletariado, o conjunto de trabalhadores da era automática e digital. A segunda concentra-se na escola; na penetração da práxis neoliberal que visa à mercadização do ensino (LAVAL, 2019), com efeitos segregadores e de esvaziamento político, e ao ajustamento das práticas pedagógicas e curriculares à formação de mão-de-obra para o trabalho intermitente e precarizado. A terceira parte busca o encadeamento entre os fenômenos supracitados e a cultura visual. O espraiamento das tecnologias de informação e comunicação baseadas em interfaces visuais e seu emprego a serviço da geração de imagens nos impõe a necessidade desvendá-las, condição fundamental para que seja possível a elaboração de estratégias de enfrentamento dos aparatos ideológicos e do complexo fetichista mobilizados para nos deslumbrar e nos capturar.

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2. TECNOLOGIA COMO IDEOLOGIA A tecnologia está presente nos mais diversos aspectos de nossas vidas, e quanto mais se complexifica o mundo da técnica; quanto mais se intensifica a relação entre seres humanos e máquinas, interfaces, veículos e dispositivos, maior é a sua influência sobre nossos comportamentos e desejos, sobre a organização da economia e da política, sobre a educação, a cultura e as artes. Essa crescente centralidade da tecnologia reforça a necessidade de compreendermos seu significado numa perspectiva teórico-crítica. É certo que seu sentido tem se alargado e transformado, mas para melhor entendermos sua relação com o trabalho, a escola e a cultura visual, devemos ser capazes de identificar esse sentido sem restringi-lo. Uma conceituação de tecnologia também envolve o questionamento acerca de suas possibilidades e de como orientá-las (SILVA, 2013), uma vez que os fenômenos tecnológicos atravessam relações de poder, desequilibrando disputas e concentrando a autoridade de experts e tecnocratas que tanto podem contribuir para projetos emancipatórios, democráticos e sustentáveis, como para a manutenção e o aprimoramento de regimes e dispositivos de exploração, vigilância e repressão. Vieira Pinto (2005) admite quatro acepções centrais para o termo “tecnologia”, embora não rejeite outras. Elas são: a tecnologia como estudo (logos) da técnica; a tecnologia como sinônimo da técnica; tecnologia como o conjunto de todas as técnicas à disposição de uma sociedade em determinado momento histórico; e a tecnologia como ideologia, significado a que o autor dá maior atenção, e também o que mais nos interessa neste estudo. A primeira hipótese, de tecnologia como investigação da técnica, é defendida pelo autor como o seu sentido primordial, uma vez que a técnica, na qualidade de ato produtivo e procedimento através do qual os seres humanos interferem na natureza a fim de acomodá-la às suas próprias necessidades, suscita um conjunto de indagações epistemológicas (ibid., 2005, p. 220) que por sua vez demandam a organização de um campo do conhecimento humano capaz de lidar com essas questões. Esse campo, a ciência das técnicas, que incluirá a sua classificação, história e função social, recebe o nome de tecnologia. A compreensão teórica da técnica é, neste caso, fundamental para que sejamos libertados de servi-la (SILVA, 2013). Quando creditamos à técnica pura a totalidade do processo de produção das condições materiais e simbólicas necessárias à manutenção das sociedades humanas, perdemos de vista a noção de tecnologia enquanto capacidade de projetar, dirigir e criticar esse ato produtivo.

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Para as estruturas capitalistas, que orientam de maneira hegemônica o desenvolvimento tecnológico em função de sua própria valorização, é vantajoso que se esvazie o sentido de tecnologia reforçando sua confusão, ou equivalência, com a própria técnica. Isso abre caminho para que o corpo tecnocrático se ocupe meramente do ato produtivo (técnico) como uma totalidade criativa, sem que se reflita criticamente a respeito de sua finalidade, consequências e de sua própria validade. Esse rebaixamento do conceito de tecnologia está relacionado diretamente ao seu sentido ideológico. Quando a tecnologia é tomada como o conjunto das técnicas disponíveis numa dada sociedade, corre-se o risco de esse conjunto ser generalizado e instrumentalizado em favor de uma classificação hierárquica, em comparação com outros grupos sociais em disputa. Segundo Vieira Pinto (2005), esse fenômeno, ainda associado à lógica do capital, propicia o apagamento da centralidade humana, favorecendo a projeção do modelo tecnológico das áreas mais desenvolvidas economicamente, que passa a ser encarado como o único modelo existente (SILVA, 2013). Isso fica evidente nos movimentos de transferência tecnológica: “Ocorre que no processo de transplantação de tecnologia há uma preocupação muito maior com os lucros dos que fazem a transição e dos que serão proprietários dela do que com a realidade da sociedade que irá acolhê-la; além disso, a técnica ganha muito mais centralidade [...] do que o ser humano que reside no local que irá recebê-la.” (ibid., p. 847) É um equívoco pensar que as sociedades periféricas não disponham de tecnologia, ou que a tecnologia que possuem seja necessariamente menos adequada à solução de suas necessidades internas: “[...] As massas estão dotadas das técnicas que lhes são possíveis. A tecnologia das massas é variada, diversificada, consequentemente, não singularizada. Isso quer dizer que uma nova tecnologia tem que se relacionar à antiga, mesmo que [...] entre ambas venha a ocorrer um salto evolutivo.” (ibid.) Atualmente, a promoção do modelo das sociedades centrais como parâmetro absoluto de consumo e desenvolvimento das forças produtivas tem provocado não só o aviltamento das condições de trabalho e educação nas sociedades do capitalismo periférico (evidenciando o apagamento da centralidade humana nessas regiões), como também a aceleração dos processos de alheamento em relação à técnica e ao trabalho. Uma vez que a transferência de tecnologia não leva em consideração o argumento exposto acima, de que deve haver um encadeamento entre a tecnologia existente e uma nova, essa cisão, cujo efeito imediato é a desocupação da mão-de-obra e a transferência forçada para outras atividades de subsistência, contribui ainda, em sentido 21


subjetivo, para a percepção geral de que as massas trabalhadoras estão desqualificadas para exercer qualquer tipo de função, dado o grau de complexidade exigido na nova atividade de trabalho. Elas tornam-se reféns de um processo de produção e consumo que impõe o domínio de saberes e fazeres que elas não obtiveram ao longo da vida escolar. São destituídas, assim, de qualquer autonomia. “A alienação (ou alheamento) significa, para Marx, que o Homem não se vivencia como agente ativo de seu controle sobre o mundo, mas que o mundo (a natureza, os outros e ele mesmo) permanece alheio e estranho a ele. Eles ficam acima e contra ele como objetos, malgrado possam ser objetos por ele mesmo criados. Alienar-se é, em última análise, vivenciar o mundo e a si mesmo passivamente, receptivamente, como o sujeito separado do objeto.” (FROMM, 1966) Diante da constatação da perda de controle dos trabalhadores sobre os saberes técnicos necessários à sua integração ao mercado de trabalho e consumo, poderíamos defender, por exemplo, que as escolas se tornassem oficinas, que priorizassem o ensino de manualidades, ou que os últimos anos de formação fossem dedicados integralmente ao ensino da técnica empregada na indústria uniformizada segundo o modelo dos países centrais. “Solução” meramente contingencial, uma vez que a marcha constante dos ciclos tecnológicos sempre imporá necessidades de atualização do ensino aos países periféricos, agravando as relações de dependência, em vez de minimizá-las ou superá-las. Por que então, para tomar o caso brasileiro recente como exemplo, a ampliação da oferta de ensino técnico e profissionalizante nas escolas regulares tem sido defendida como estratégia para “aproximar as escolas à realidade dos estudantes de hoje”?6 Trata-se de um ajuste político integral aos interesses do capital, sem qualquer preocupação com o desenvolvimento social responsável e sustentável. A ideologização da tecnologia consiste na sua conversão em uma espécie de mitologia social (SILVA, 2013). Crê-se que, da técnica e de sua porção corporificada — as máquinas — advem um potencial demiúrgico ilimitado, dirigido automaticamente para a realização de um mundo de abundância e satisfação das necessidades gerais. Assim é que a reflexão a respeito da técnica, propósito da tecnologia enquanto ciência, é substituída por uma postura acrítica que converte o ser humano num instrumento de adoração e preservação dos dispositivos criados por ele próprio. Esses dispositivos, fetichizados, são postos imediatamente a serviço de interesses econômicos. Paralelamente, o progresso técnico é convertido em reserva moral, implicando que uma sociedade capaz de produzir as maravilhas tecnológicas de nosso tempo só poderia ser superior a todas as anteriores. Assim, a crítica política é mitigada sob o argu6 BRASIL, Ministério da Educação. Novo Ensino Médio – perguntas e respostas. [S. L.], 5 dez. 2018.

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mento de que os males do presente, em comparação com os do passado, não tem real importância e significado, e que as reivindicações do conjunto da classe trabalhadora estão eivadas de intenções destrutivas, perturbadoras do “enfeitiçamento” geral (VIEIRA PINTO, 2005). Esse mecanismo faz da tecnologia a grande ideologia de nossa época (ibid.). É como se não houvesse outra opção a não ser promover as adaptações necessárias na escola, na cultura e no trabalho para atender ao seu metabolismo particular. O consumo incessante dos dispositivos-mercadoria torna-se gradativamente a nossa única fonte de excitação e conforto. O resultado é a geração de uma cultura hedonista e intolerante às necessidades coletivas e ao bem comum, quando este é visto como obstáculo à massificação do modo de vida característico da “era tecnológica”. Voltaremos a falar de ideologia. Cabe, portanto, esclarecer o significado atribuído ao termo ao longo deste estudo. De maneira vulgar, podemos tratar a ideologia como um conjunto de ideias partilhadas por determinados grupos, ou ainda como uma espécie de véu que, posto diante dos olhos, nos impediria de enxergar e compreender objetivamente o mundo à nossa volta, mergulhando a todos em “meras ilusões e aparências” (GRAMSCI, 1977). Essa definição de ideologia como processo ilusório é parcialmente correta, mas insuficiente, e pode nos induzir ao erro de pensar que basta “remover o véu” para se que chegue à análise isenta dos fenômenos sociais. O que Marx demonstrou é que “as teorias e os sistemas filosóficos ou científicos, aparentemente rigorosos e verdadeiros, escondiam a realidade social, econômica e política” (CHAUÍ, 2000). Ideologia, portanto, é um tecido imaginário de imagens e discursos de que estamos impregnados simplesmente por vivermos em sociedade, e que reproduzimos continuamente. O mais importante, então, é que saibamos identificar e reagir quando ela é empregada como “justificador do mundo tal como ele parece ser” (ibid., p.171). Como estamos todos imersos nesse processo, não me preocupei, no desenvolvimento deste estudo, em restringir o sentido e o uso das expressões tecnologia, técnica, dispositivo, maquinaria etc., mas tentei comunicar os conceitos e argumentos da forma mais clara e trivial que pude. É suficiente que saibamos que, concretamente, esses fenômenos, corpos e ações não se misturam: cada um deles cumpre seu papel, e o processo ideológico que os envolve pode e deve ser desafiado.

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3. TECNOLOGIA E TRABALHO Por que iniciar um estudo sobre arteducação falando de trabalho? Discutir a relação entre a formação escolar e o mundo do labor pode ser uma tarefa desagradável para muitos estudantes, profissionais e pesquisadores de educação. Todos gostamos de pensar que a instituição escolar cumpre objetivos mais nobres do que simplesmente formar trabalhadores, chefes ou empregados. Segundo Pierre Bourdieu (2003), “continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social”, embora a escola tenha sido até hoje, majoritariamente, não um vetor de redução das desigualdades através do tempo, mas um poderoso instrumento de sua conservação, na medida em que “sanciona a herança cultural [...] como dom natural” (ibid., p. 41) e legitima a reprodução da divisão social em classes. Em torno dessa constatação, reúnem-se vertentes de conservadorismo dissimulado que vendem uma interpretação fatalista a respeito das desigualdades e da necessidade de competição generalizada e pretendem reduzir o papel da escola ao ensino instrumental de línguas, matemática e alguns outros poucos saberes. Contra essa perspectiva antipedagógica, elitista e antiética, sustentamos o propósito de formar cidadãos, socializar crianças e jovens, promover a justiça social, dotar os educandos de senso crítico, estimular-lhes a criatividade, a curiosidade etc. Conquanto esses últimos objetivos sigam norteando a crítica pedagógica e institucional relacionada à escola, investigar as diretrizes do trabalho em nosso tempo é fundamental para compreendermos até que ponto o projeto de uma educação transformadora pode concretizar-se, e de que maneira a intervenção direta do capital no ensino representa um obstáculo. Isto é, há um conjunto de melhorias no campo da educação e do trabalho que podem ser implementadas mas que, apesar de sua aparência emancipadora, tem como efeito sujeitar-nos ainda mais à lógica da mercadização, pois “se do ponto de vista das personificações [...] toda melhora no padrão de vida e nas condições de trabalho são conquistas contra seu antagonista histórico, o capital; do ponto de vista [deste último], toda melhoria relativa [...] é uma concessão, que o capital concede somente quando logra acomodá-la ao sistema” (LUCE, 2018). O trabalho e o aprendizado dizem respeito à utilização da vida humana e são as atividades que nos distinguem como seres sociais, viabilizando a reprodução das condições materiais e simbólicas necessárias à vida comum. O amadurecimento do modelo capitalista acelerou enormemente o processo de desagregação dos aspectos sociais do trabalho, portanto, da própria vida. As relações sociais desenvolvidas nas comunidades pré-capitalistas foram desincrustadas de seu lócus original, para utilizar o termo empregado por Karl Polanyi7, e racionalizadas: reincrustadas no sistema econômico. O significado 7 POLANYI, Karl. A grande transformação: As origens políticas e económicas do nosso tempo. Edições 70: [s. n.], 2012. eBook Kindle.

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dessa grande transformação é que uma economia de mercado só se sustenta numa sociedade de mercado, organizada racionalmente, de maneira que todo o conjunto das relações se torne obediente aos propósitos de acumulação, comércio e barganha da instituição mercadológica, que passa a adquirir um status especial. O movimento de aceleração tecnológica, que é o pano de fundo desse sucessivo processo de sofisticação do capital a partir do desenvolvimento da indústria e seus dispositivos não pode ser interpretado apenas através de uma retórica tecnicista e determinista, como se as novas tecnologias fossem produto do engenho humano por si só desvinculadas das relações de trabalho e sem interferência dos governos. Sem o controle político e social dos ritmos de transição do trabalho provocados pela substituição tecnológica, os efeitos da aceleração poderiam, há muito tempo, ter deixado de ser vantajosos para tornarem-se deletérios: “... o ritmo do progresso teria sido ruinoso e o processo, no seu conjunto, poder-se-ia ter tornado um fenómeno degenerativo em vez de construtivo. Porque era do ritmo do processo que dependia a possibilidade ou a impossibilidade de os expropriados [...] virem a descobrir novas ocupações através das novas oportunidades indiretamente ligadas à transformação em curso, ou ainda de os efeitos [...] virem a permitir àqueles que o processo de mudança privara dos seus postos de trabalho a descoberta de novas fontes de subsistência.” (POLANYI, 2012) O ritmo das transformações, portanto, está diretamente vinculado a uma homeostase social que é sempre pressionada nos períodos de grande mudança tecnológica. Se descartamos o potencial de ação do conjunto das sociedades sobre esse ritmo, ou pior ainda, “se consideramos um sacrilégio qualquer tentativa de interferência nele” (ibid. l. 2623), sob o pretexto de promover o “livre mercado” que não se realiza na prática, ou pela adoção de um raciocínio tecnocêntrico e uma fé cega no desenvolvimento espontâneo provocado por mais tecnologia, não só ignoramos a experiência histórica como descartamos qualquer possibilidade de manobra sobre a nova grande transição que atinge o mundo do trabalho e da escola em nosso tempo. Ainda hoje, esse ritmo de transformação obedece predominantemente aos interesses do sistema econômico. As tecnologias avançam em velocidade exponencial. Cada vez que uma tecnologia se torna completamente obsoleta em relação a outra considerada seu substituto direto e mais sofisticado, encerra-se um ciclo tecnológico. Estávamos acostumados, até o século passado, a comparar esses ciclos com intervalos geracionais, de mais de uma década. Hoje, uma tecnologia nova estará completamente obsoleta daqui a onze ou

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treze meses.8 Contudo, esse formidável incremento, por si só, não implica na adesão imediata em escala global às novidades tecnológicas. De fato, a classe proprietária historicamente age, quando lhe é conveniente, no sentido de refrear a invenção, controlando a seu favor a variação da força produtiva do trabalho, que corresponde ao emprego de técnicas e máquinas que, facilitando o trabalho humano, permitem produzir mais sem a necessidade de aumentar o tempo da jornada ou sua intensidade. Além disso, a substituição também provoca o desemprego em massa e reforça, nos países de capitalismo periférico, que não dispõem de recursos para acompanhar a marcha da fronteira tecnológica, a prática da superexploração como mecanismo de compensação: “Na década de 1980, a média exigida [na atividade do corte da cana-de-açúcar] era de 5 a 8 toneladas de cana cortada/dia por trabalhador; em 1990, passa para 8 a 9; em 2000 para 10 e em 2014 para 12 a 15 toneladas! Estas cifras assustadoras ilustram este exemplo [...] em um ramo que passou por um processo de mecanização nos anos 1990 e 2000, sob pressão de órgãos de fiscalização trabalhista. No entanto, como é característico das contradições do mundo do capital, a substituição do corte manual pelo uso da máquina não abrangeu o conjunto do ramo em questão e aqueles usineiros e proprietários rurais que não substituíram braços humanos pela introdução da maquinaria [...] passaram a exigir metas ainda mais aviltantes de seus trabalhadores, para compensar a produtividade menor que se apresentou frente à daqueles capitalistas agrários que lançaram mão da mecanização.” (LUCE, 2018) Ainda segundo Mathias Luce, “para saber se estamos diante de uma manifestação concreta enquanto tendência estrutural, a análise deve adentrar mais a fundo, através de sucessivas aproximações” (ibid.). Em primeiro lugar, então, é preciso conceituar o trabalho produtivo e investigarmos de que maneira o excedente de valor produzido por um trabalhador é apropriado pelo capital financeiro que ora emprega as tecnologias à sua disposição a fim de adequar ao seu processo de reestruturação também o trabalho improdutivo e imaterial, incluindo o dos professores e artistas.

3.1. Tecnologia e precarização As categorias de trabalho produtivo e improdutivo estão presentes ao longo de toda a obra de Marx. Fundamental, no entanto, “não é qualificar se o trabalho é produtivo ou improdutivo [provocando uma cisão], mas identificar a relação social estabelecida, ou seja, onde se insere no circuito de produção e reprodução de valor” (DUARTE, 2017, grifo nosso), até porque o mesmo tra8

Big Think. Ray Kurzweil: The Coming Singularity. 2009.

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balhador pode exercer função produtiva ou improdutiva sem mudar de área, como veremos a seguir. Produtivo é todo trabalho assalariado em que o trabalhador produz, além do valor dispendido em seu salário, mais-valor para o capitalista. A diferença não se dá, portanto, em relação à natureza do produto desse trabalho, mas em função de uma relação social que valoriza diretamente o capital mediante a venda da força de trabalho pelo trabalhador e sua compra pelo capitalista: “O trabalhador [produtivo] não produz para si, mas para o capital. Não basta, por isso, que ele produza em geral. Ele tem de produzir mais-valor. [...] Se nos for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produção material, diremos que um mestre-escola é um trabalhador produtivo se não se limita a trabalhar a cabeça das crianças, mas exige trabalho de si mesmo até o esgotamento, a fim de enriquecer o patrão. Que este último tenha investido seu capital numa fábrica de ensino, em vez de numa fábrica de salsichas, é algo que não altera em nada a relação. [...] Ser trabalhador produtivo não é, portanto, uma sorte, mas um azar.” (MARX, 2015) Os trabalhadores que não produzem mais-valor são, na análise marxiana, considerados improdutivos, o que não quer dizer dispensáveis. Empregados do comércio, autônomos, professores, empregados domésticos, atores, cantores, músicos, funcionários públicos, prestadores de serviço de maneira geral, trabalhadores cuja função “perece no instante do desempenho e não se fixa nem se realiza num objeto durável [...] ou mercadoria vendável, destacada deles mesmos” (DUARTE, 2017, p. 293, apud MARX, 1980), embora exteriores à produção de mais-valor — improdutivos, portanto — exercem funções interiores ao processo de produção e circulação de capital. Levando em consideração o trabalho dos professores e artistas, pode-se dizer que: 1) o professor funcionário público é trabalhador improdutivo cuja fonte salarial é a arrecadação de impostos, que corresponde “a uma parte do rendimento [...] apropriada pelo Estado”, que por sua vez “é uma instituição absolutamente necessária ao sistema capitalista” (ibid., p. 293 apud. TEIXEIRA, 1988); 2) o professor empregado de uma instituição de ensino privada é trabalhador produtivo na medida em que do seu trabalho não se consome apenas seu valor de uso, mas “a venda [pelo empresário que é dono da instituição] desse serviço ao público lhe possibilita não somente o pagamento da força de trabalho comprada, sob a forma de salário, como também lhe propicia o lucro” (ibid., p. 293 apud MARX, 1980), garantindo que o trabalho seja comprado mais uma vez e tantas outras quanto se desejar; e 3) o professor autônomo, ou particular, é improdutivo na medida em que o serviço que oferece é esgotado em seu valor de uso, e não visa à produção de um sobrevalor: “Se contratado por um trabalhador, seu salário será parte do salário deste trabalhador; se contratado por um empresário, seu salário será parte do mais-valor; se contratado por um 27


proprietário de terras, seu salário será parte da renda fundiária” (TEIXEIRA, 1988), e assim por diante. Em todos os casos, “é da redistribuição do valor [...] anualmente criado no processo imediato de produção que provêm os salários desses trabalhadores”. (ibid., p. 20) De forma análoga, o artista é trabalhador improdutivo enquanto comercializa autonomamente seu ofício, mas se associa-se a um empresário cuja atividade é traficar o resultado de seu trabalho, será incorporado à cadeia de valorização do capital, da mesma forma que o resultado do trabalho do professor pode ser capturado pelo dono da instituição privada de ensino que lucra por traficar conhecimento. Em ambos os casos, como dito acima, o rendimento dos trabalhadores improdutivos é, ainda assim, oriundo da produção realizada coletivamente, e é a racionalidade do sistema capitalista que justifica a expropriação desse bem comum (cultura, educação) e sua apropriação privada pelo capital. O que se depreende dessa categorização é que uma mesma função pode servir simultaneamente à produção de valores de uso ou de troca; que a complexificação do trabalho não liquidou nem tornou abstratas as noções de classe trabalhadora e interesses de classe em nosso tempo (embora estes sejam atenuados tanto quanto possível pela regulação estatal do capitalismo); que a renda e o assalariamento do trabalhador improdutivo também dependem, direta ou indiretamente, da distribuição do valor gerado na atividade produtiva, uma vez que ambos são interiores ao sistema capitalista. Assim, os efeitos da reestruturação econômica pelo capital financeiro são sofridos por todos os trabalhadores. Essa reestruturação, que obedece à lógica de expansão global de acumulação, tem como resultado “[a exigência da] diminuição do custo da força de trabalho, o aumento da produtividade [...] e a diminuição e quase desaparição dos direitos sociais sobre o trabalho” (SILVA JÚNIOR; PIMENTA, 2014), sem distinção entre a esfera pública e privada. Para que a ampliação da acumulação se realize é preciso intensificar, em escala global, a exploração do mais-valor. É neste ponto que as tecnologias, em sentido lato, entram em jogo, simultaneamente incorporando o trabalho imaterial (intelectual) e improdutivo ao ciclo de valorização direta do capital e suprimindo todo o trabalho improdutivo desnecessário, seja por meio da fusão entre funções antes distintas e que passam a ser realizadas pelo mesmo trabalhador (ANTUNES, 2018), seja pela incorporação de práticas privadas no interior do serviço público ou pela subsunção do trabalho à maquinaria industrial ou informacional-digital. David Graeber (2013), ao falar pela primeira vez a respeito do que chamou de “empregos inúteis”, debruçou-se sobre o fenômeno de transformação do trabalho carreado pelas novas tecnologias, evidenciando o caráter multitendencial do processo de substituição tecnológica em nosso século: Ao mesmo tempo em que a implementação de maquinário tornava uma infinidade de 28


trabalhadores descartáveis, sobrantes e desempregados, outras funções surgiam absorvendo parte desse exército industrial de reserva para funções que o autor considera fúteis e desnecessárias, como o telemarketing, serviço de entregas, cuidados estéticos de animais domésticos, até a montagem de slides para apresentações. A predição de Keynes sobre a crescente automação, que faria com que a jornada de trabalho fosse reduzida a 15 horas semanais até a virada do século em países como a Inglaterra e os Estados Unidos (ibid.), parecia cada vez mais utópica. O equívoco de Graeber, no entanto, está no fato de não haver investigado justamente o processo de expansão da extração de valor como ferramenta de acumulação do capitalismo financeiro, o que o levou a justificar moralmente a reabsorção parcial da mão-de-obra sobrante e a admitir que não entendeu a razão do movimento: “É como se alguém estivesse lá fora criando empregos com o intuito exclusivo de nos manter trabalhando. E aqui, precisamente, reside o mistério. [...] De acordo com a teoria econômica, pelo menos, a última coisa que uma empresa interessada em lucros fará é desperdiçar dinheiro com trabalhadores de que ela realmente não precisa. Ainda assim, de alguma forma, é o que acontece.” (ibid., tradução nossa) Longe de uma orientação moral ou estritamente política, as novas técnicas e os trabalhadores a elas associados são empregados, neste caso, em benefício da acumulação. Como explica Ricardo Antunes (2018, ll. 1435-36): “... em paralelo à ampliação dos grandes contingentes que se precarizam ou perdem seus empregos, presenciamos também a expansão de novos modos de extração do sobretrabalho, capazes de articular um maquinário altamente avançado. [...] É como se todos os espaços existentes de trabalho fossem potencialmente convertidos em agregadores de mais-valor, desde aqueles que ainda mantem laços de formalidade e contratualidade até os que se pautam pela aberta informalidade, [...] não importando se as atividades realizadas são predominantemente manuais ou mais intelectualizadas, dotadas de conhecimento.” Sem a intelecção da absoluta impessoalidade desse movimento global de reestruturação, o mesmo equívoco seria cometido inúmeras vezes, com potencial especialmente negativo nas escolas e universidades, em que os profissionais da educação, crendo nessa equivocada motivação moral por trás dos processos de precarização do trabalho — “as classes dominantes entenderam que uma população feliz e produtiva com tempo livre nas mãos é um perigo mortal” (GRAEBER, 2013) — podem ser conduzidos à elaboração de uma crítica e uma prática estéreis. 29


A parcela desocupada de trabalhadores exerce papel funcional para o sistema pressionando negativamente a média salarial da parte empregada, como já era observado no capitalismo industrial do século XIX. De acordo com a exposição de Marx (2015), a própria classe trabalhadora cria as condições de sua superpopulação, seja através do aumento do número de filhos observado nos períodos de incremento salarial e acesso ao consumo, seja através da criação de novas tecnologias no cotidiano do trabalho, de que participam diretamente os trabalhadores. Apesar da distância de mais de 150 anos, Marx já observava em seu tempo que o aumento da intensidade, da duração das jornadas e a revolução técnica dos meios de produção tornavam-se vetores de desocupação dos trabalhadores, que eram em seguida usados para aviltar os ganhos e as condições de trabalho da parte ocupada: “A condenação de uma parte [...] à ociosidade forçada em razão do sobretrabalho da outra parte, e vice-versa, torna-se [assim] um meio de enriquecimento do capitalista individual.” (ibid., l. 12156) Mais do que esse metabolismo relativo à produção da mão-de-obra excedente, que Marx descreve como um movimento cíclico, ligado às sucessivas crises e afluxos do sistema capitalista, é interessante observar como a substituição tecnológica toma lugar nesse processo: “Entre 1849 e 1859, [...] ocorreu nos distritos ingleses um aumento salarial que, na prática, foi apenas nominal. [...] Isso foi consequência da evasão extraordinária da superpopulação agrícola, causada pela demanda bélica9. [...] Seja como for, os arrendatários gritaram de indignação [...] com relação a esses salários de fome. O que fizeram, então? Esperaram até que os trabalhadores rurais, graças a essas remunerações esplêndidas, tivessem se multiplicado tanto que seu salário teria novamente que cair, tal como costuma ocorrer no cérebro do economista dogmático? Eles introduziram mais maquinaria, e num piscar de olhos, os trabalhadores voltaram a ser supranumerários. [...] Agora havia mais capital investido na agricultura do que antes, e de forma mais produtiva.” (ibid. ll. 12192-93) Em relação ao ciclo descrito por Marx, é importante frisar que o autor o faz a partir da observação de uma economia central, onde se desenvolveu uma aristocracia operária que mais tarde tornou-se herdeira do welfare state (ANTUNES, 2018). Nas economias periféricas como a nossa, herdeiras, por outro lado, da escravidão, em que a dependência e a superexploração são os traços estruturantes das relações de trabalho, a precariedade dessas mesmas relações não é apenas cíclica ou conjuntural, mas uma constante histórica e condicionante do capitalismo. Não se trata, portanto, de corrigir “assimetrias” entre os países do Norte e os do Sul através de reformas pontuais, mas de compreender que o capitalismo em vigor na América Latina, África e parte 9

Para a guerra da Crimeia de 1853-56.

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da Ásia, em que o proletariado se confunde com o precariado, é todo o capitalismo possível nessas regiões. A superação de suas contradições internas corresponderia à sua descaracterização total como modelo econômico. Se, ainda no exemplo de Marx, a introdução de mais maquinaria com a finalidade de reduzir o número de assalariados e manter o valor dos salários em patamares de crise poderia ser considerada uma saída heterodoxa para os economistas, em nosso tempo esse fenômeno se repete sistematicamente, tanto mais quanto maior é o volume de maquinário à disposição das classes proprietárias: “Já não tem mais sentido computar os contributos ao capital para investimentos [...] no desenvolvimento sobre a base do valor da força de trabalho não qualificada (simples), se o progresso técnico e científico se tornou uma fonte independente de mais-valia frente à fonte de mais-valia [...] tomada em consideração por Marx: a força de trabalho dos produtores imediatos tem cada vez menos importância.” (HABERMAS, 2007) Essa constatação guarda uma relação direta com as mudanças que vão contribuir para saídas como a terceirização e o trabalho intermitente e o distanciamento dos paradigmas de trabalho do século XX, com a substituição da mão-de-obra assalariada e a exploração do maquinário digital como mediador do trabalho informal, sem que se apresente uma solução satisfatória para o desemprego dos trabalhadores não qualificados, que ficam à margem do processo de complexificação e especialização do trabalho carreado pela crescente automação. A terceirização se tornou um “mecanismo vital do capitalismo para intensificar a extração de mais-valor” (ANTUNES, 2018, l. 968), o que se verifica de forma mais clara quando a prática é incorporada ao serviço público, espaço do trabalho improdutivo. O funcionário terceirizado deve ser produtivo para a empresa que representa e que oferece seu serviço no mercado, ao contrário do servidor público assalariado, cuja função original é produzir “valores socialmente úteis, como saúde, educação, previdência etc.” (ibid., l. 974). A terceirização, assim, não só rebaixa as condições de trabalho e organização, desnaturalizando os sindicatos, os laços contratuais que asseguram direitos trabalhistas, a estabilização da jornada de trabalho etc. como também corrói por dentro a res publica, mais uma vez subvertendo o bem comum social em mercadoria. Outra forma de ampliação da exploração é a ora chamada “economia do compartilhamento”, categoria em que se inserem os aplicativos de entrega, carona, empréstimo de objetos, hospedagem etc. As empresas que gerenciam esses aplicativos não se apresentam como instituições tradicionais, mas baseiam-se “numa visão igualitária construída mais em relações de troca de 31


igual-para-igual do que em organizações hierárquicas” (SLEE, 2019). A estratégia dessas empresas envolve o emprego extensivo de imagens e subtextos, de maneira que o seu processo de assimilação tem um forte componente estético e está definitivamente imbricado na cultura visual. Na contramão da tendência de concentração de maquinário, essas empresas só podem se colocar no mercado como facilitadoras de serviços na medida em que abrem mão de parte do capital fixo. Tomemos como exemplo o Uber: apesar de ser uma empresa de caronas, ela não dispõe de uma frota. O trabalhador é que deve usar seu próprio veículo, comprado ou alugado, enquanto a empresa age apenas como intermediária. Recai sobre ele o custo desse “ativo”: compra (ou aluguel), manutenção periódica, limpeza, combustível etc., que deverá ser subtraído de seu rendimento bruto mensal. Se há prejuízo para o trabalhador nos contratos sem jornada fixa, férias remuneradas e demais direitos trabalhistas, aqui a relação torna-se ainda mais insidiosa, na medida em que o trabalhador não está vinculado de fato a empresa alguma, mas age como autônomo associado à empresa (agora incorporado ao ciclo de valorização do capital), recebendo uma porcentagem do valor pago por cada usuário através do aplicativo — valor calculado por um algoritmo sobre o qual o próprio motorista não tem controle, embora as corporações saibam exatamente quanto reter ou “conceder” ao prestador do serviço10. Se há, por exemplo, um aumento no número de motoristas numa capital, fazendo cair a demanda por veículos, mas atendendo ao objetivo da empresa de ampliar a oferta de caronas (e a extração de valor), os motoristas é que serão individualmente penalizados com a menor demanda e o consequente barateamento da própria mão-de-obra. Esse descontrole quase total sobre o rendimento por parte do trabalhador tem possibilitado, na prática, a manutenção de serviços que exigem longas jornadas em troca de ganhos irrisórios. Mais uma característica da reforma estrutural/tecnológica sob o capitalismo financeiro em nossa época, de que participam as empresas ligadas à economia do compartilhamento, é a subsunção do trabalho ao maquinário digital. Antes de explicá-la, no entanto, é preciso lembrar que as tecnologias digitais, embora destituídas de materialidade e aparentemente independentes de outros processos, não são a priori constitutivas e nem resultado do trabalho estritamente intelectual: “Sem a produção de energia, de cabos, de computadores, de celulares e de uma infinidade de produtos materiais [...], sem o lançamento de satélites ao espaço para carregar seus sinais, sem a construção de edifícios onde tudo isso é produzido e vendido, sem a produção 10 Sobre a mensuração da extração de mais-valor nos casos em que o cálculo não é explícito, Ricardo Antunes (2018, ll. 955-956) comenta: “Por que será que a Apple não fabrica seus smartphones na Califórnia? Se o mais-valor fosse imensurável e intangível, essa resposta seria um enigma.”

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e condução de veículos que viabilizem sua distribuição [...], a internet não poderia ser sequer conectada.” (ANTUNES, 2018) A exigência dessa infraestrutura material é evidência de como o conjunto do trabalho intelectual “ainda é minoritário, quando se considera a totalidade do trabalho.” (ibid. l. 922). É a parcela do ciberproletariado improdutivo que se torna progressivamente descartável na medida em que os processos de trabalho são subsumidos à própria tecnologia digital. O trabalho não é de fato suprimido, mas realocado, por exemplo, como etapa do consumo: Se até pouco tempo atrás, querendo comprar uma passagem para outra cidade, estado ou país, eu deveria me dirigir até o aeroporto, estação de trem ou rodoviária, onde um trabalhador tomaria meus dados e, de frente para uma tela, selecionaria data e horário da viagem, assentos etc., agora eu mesmo posso acessar o site da companhia de viagens e fornecer esses dados numa plataforma online. Ou, se antes, num fast food, eu deveria me dirigir ao caixa onde um trabalhador registraria diante de uma tela meu pedido, agora esse assalariado foi substituído por totens automáticos, embora o seu trabalho, de selecionar as opções do cardápio, processar o pagamento e gerar o cupom, tenha sido apenas transferido para o consumidor, que o exercerá individualmente em contato com a máquina, eliminando-se, assim, todo o trabalho improdutivo desnecessário. O trabalho dos artistas também é cada vez mais afetado por esse processo. Se, até as últimas décadas do século passado, cineastas, comunicadores visuais, escritores e músicos negociavam diretamente a publicação e circulação de suas obras com as companhias responsáveis pela sua comercialização na forma de livros, discos, filmes etc., atualmente, com o desenvolvimento dos oligopólios produtores de dispositivos digitais de mídia, e consequentemente do conteúdo “original” a ser consumido através desses dispositivos — a exemplo da Netflix, Amazon, Apple e Google — os artistas independentes tem sido convertidos em “produtores de conteúdo” para essas empresas, num franco movimento de proletarização: “Isso aproxima seu trabalho ao de outros profissionais intelectuais, como desenvolvedores de software, programadores, e exige que acumulem funções que antes não eram de sua responsabilidade, [...] além de afrouxar a noção de propriedade intelectual. [...] Mesmo os artistas que trabalham de forma ‘tradicional’, fora do mercado, são obrigados cada vez mais a barganhar com essas grandes corporações.” (HUWLS, 2015) Essa geração incessante de desempregados por substituição tecnológica e o aumento da massa do ciberproletariado são os “dois polos de uma relação de influência recíproca que se constitui como uma totalidade” (TROJAN, 2016): A dialética particular do trabalho em nosso tempo.

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3.2. Ciberproletários Ricardo Antunes (2018), ao referir-se aos trabalhadores de serviços vinculados a aplicativos e equipamentos digitais, emprega o termo “infoproletário”. Optei por utilizar “ciberproletário”, porque seu significado pode ser ampliado. Para Ursula Huws (2015), o impacto dos dispositivos tecnológicos sobre a extração de valor e a transformação das relações sociais tem longa data. Com a expansão das redes elétricas, houve uma avalanche de commodities domésticas oriundas das economias industrializadas centrais: máquinas de lavar, aspiradores de pó, toda sorte de dispositivos que mobilizaram mudanças radicais nos hábitos de consumo e na própria cultura. De fato, o trabalho doméstico, até então compreendido como trabalho simples — físico — quase sempre de responsabilidade da mulher, baseado no uso de instrumentos (e não máquinas) passa a ser incorporado a uma cadeia de consumo. As facilidades, a economia de tempo e esforço prometidas por esses novos aparelhos faz com que o conjunto da classe trabalhadora se torne cada vez mais dependente deles e passe a inclui-los no rol de bens de primeira necessidade. É certo que essa adesão não é automática nem imediata, e depende das condições socioeconômicas particulares de cada região. No entanto, a generalização desse perfil de consumo é apenas questão de tempo nas sociedades de mercado, uma vez que os efeitos da industrialização e da globalização mobilizam todos os aspectos da vida em sentido uniformizante, a fim de ampliar o máximo possível o mercado consumidor, e consequentemente os lucros. “Racionalização significa [...] a ampliação das esferas sociais, que ficam submetidas aos critérios da decisão racional. A isto corresponde a industrialização do trabalho social com a consequência de que os critérios da ação instrumental penetram também em outros âmbitos da vida (urbanização das formas de existência, tecnificação do tráfego e da comunicação).” (HABERMAS, 2007) Essa “urbanização das formas de existência” provoca uma mistificação do significado de classe social. A melhoria nas condições de trabalho e remuneração, fundamentais para a democratização do acesso aos novos bens de consumo, é escamoteada em função de uma falsa concepção de “meritocracia” e da afirmação de uma noção cosmopolita de classe média como parâmetro geral, ainda que sua forma careça de objetividade e só possa “ser apreendida em sua especificidade, nos laços e relações que as conectam com os processos sociais” (ANTUNES, 2018). Uma vez que “classe média”, no singular ou plural, não é um termo que se refere a uma classe social em sentido estrito, mas antes a um estrato determinado pelo seu poder de consumo, ideário e valores simbólicos (ibid., l.997), a pressão pela diferenciação (até em âmbito estético) da classe operária recai sobre todos os trabalhadores de maneira indiscriminada, com consequências óbvias nos dias atuais: 34


“Há um apelo irresistível pela novidade, modernidade, conveniência, pelo crescente barateamento [...], mas principalmente o prazer de possuir algo que antes foi um luxo de que somente os ricos poderiam dispor. [...] A criança que tem o mais moderno smartphone pode ostentá-lo como sinal de distinção social. E aquelas que não tem (cujos pais estão desempregados, ou são imigrantes, solteiros ou simplesmente pobres demais para adquirir o mesmo dispositivo) tornam-se vulneráveis a um sentimento de inadequação e exclusão em adição àqueles que já estão presentes há mais tempo nas sociedades de consumo (como vestir a marca ‘errada’ de tênis ou roupas). A colonização da sociabilidade pelo mercado não só revelou uma nova fonte de extração de lucro, como também facilitou a assimilação da lógica de mercado na vida social, minando as bases da solidariedade futura.” (HUWS, 2015, tradução e grifo nossos) Toda vez que tornamos indispensáveis determinados dispositivos, tratamos de agregá-los, para usar a expressão marxiana, ao “elemento histórico-moral do valor da força de trabalho”. Em outras palavras, esse valor é determinado historicamente e está vinculado a uma “cesta básica” que não poderia contabilizar apenas o custo dos alimentos e da moradia, mas também de todos os bens materiais e culturais compreendidos como necessários para garantir parâmetros mínimos de dignidade a cada indivíduo. Se incorporamos dispositivos eletrodomésticos e eletrônicos, por exemplo, a essa soma, o seu preço passa a pressionar a massa salarial média: “Quanto mais produtos são necessários no dia a dia, maior é a necessidade de uma fonte de recursos financeiros suficiente para consumi-los, e mais apertado é o laço do capitalismo sobre a vida de cada trabalhador” (HUWS, 2015, tradução nossa). A superposição do capital financeiro ao simbólico; a necessidade de adequação, ainda que superficial, ao modo de vida urbano e de classe média; a multiplicação das redes sociais baseadas em imagens e a comparação constante com os outros indivíduos; todos esses fatores combinados com o clima permanente de oscilação e incerteza diante do extermínio dos direitos trabalhistas, dos serviços públicos e das formas indiretas de assalariamento engendram um processo de violência neuronal (HAN, 2015) cujos sintomas são o mal-estar social generalizado, o cansaço, a depressão e demais doenças psicológicas. É a esse conjunto de trabalhadores-consumidores em tempo integral, dependentes de um número cada vez maior de dispositivos, confinados ao trabalho conectado, tecnológico, mas precário; que sofrem os efeitos do atravessamento permanente da lógica de mercado e da competição generalizada em todos os aspectos da vida, que Ursula Huwls se refere como cybertariat (adaptado aqui para “ciberproletariado”).

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Andreu Navarra (HARBOUR, 2019), outro pesquisador que emprega o termo, amplia o seu sentido a partir da observação do cotidiano escolar. O plano de gestação do ciberproletariado, em contraste com o “modelo” de trabalhador dos séculos passados, atropela as instituições de ensino sequestrando a atenção, a paciência e a capacidade de concentração das crianças e adolescentes. Os processos automáticos, imediatos e a profusão de estímulos visuais tem contribuído para empobrecer a experiência escolar e agravar a expropriação de conhecimento aos estudantes: “Conhecemos vários capitalismos e agora estamos no capitalismo da atenção, em uma economia de plataformas que mercantilizam a atenção. Se você está vendo algumas mensagens, alguém ganha dinheiro, e se vê outras, outro alguém ganha.” (ibid.) Navarra, no entanto, defende equivocadamente o “regresso do mundo virtual” e a “educação analógica” como reação ao que parece um cenário de terror, em que se prenuncia um futuro de desesperança, malgrado as maravilhas prometidas pelo progresso tecnológico industrial. Convém repetir que os prejuízos de que falamos até aqui não advem da tecnologia e do trabalho em si mesmos, mas das contradições inerentes ao processo social que os dirige, e sobretudo que a oposição a esse processo não consiste na defesa da neutralidade da técnica ou em sua negação, nem no endeusamento das tecnologias ou na moralização de seu progresso, mas na sua politização.

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4. NEOLIBERALISMO E EDUCAÇÃO Acompanhando a tendência de expansão das formas de valorização do capital associadas ao uso de dispositivos e maquinário digital no mundo do trabalho, foi desenvolvida, principalmente desde os anos 1990, uma série de análises a respeito da necessidade de adaptação das escolas e universidades para a formação de trabalhadores/consumidores ajustados às necessidades do capital financeiro. Essas análises resultaram no atual conjunto de discursos e práticas do neoliberalismo escolar: “...uma estratégia ‘incremental’, pensada pelos promotores do neoliberalismo escolar: consiste em mudar o funcionamento do sistema educacional por meio de medidas isoladas, que atingem zonas específicas do sistema, de modo que só adquirem sentido quando são relacionadas umas com as outras.” (LAVAL, 2019) Escolas e universidades são instituições destinadas à produção de bens socialmente úteis que as democracias do século XX procuraram promover ao status de direitos. Nenhum cidadão poderia deixar de receber educação formal. Contudo, essa determinação não interfere sobre a forma e o conteúdo da educação escolar e universitária, uma vez que os currículos nacionais devem ser periodicamente reformulados para melhor atender às necessidades do conjunto das sociedades, em constante mudança. A interferência neoliberal consiste em sequestrar a narrativa sobre esses interesses e necessidades, associando-os aos das classes dominantes. O neoliberalismo não é um dispositivo ideológico nem uma doutrina, mas um programa político que defende medidas pragmáticas de adaptação ao jogo concorrencial econômico em todas as esferas sociais (LAVAL, 2019). A luta contra a infiltração da lógica concorrencial de mercado na educação não pode ser travada apenas nos limites da teoria pedagógica e da crítica institucional. Ela está ligada à luta generalizada das classes sociais contra o ajustamento compulsório ao regime de acumulação do capitalismo financeiro em todos os aspectos da vida. Portanto, é necessário ao menos questionarmos a eficiência de soluções superficiais que se limitam, por exemplo, a defender o “setor público” sem levar em consideração a sua transformação interna provocada pela incorporação de uma série de práticas privatizantes (a exemplo da terceirização no campo do trabalho) e pela “construção de um sistema hierarquizado do qual [o setor público] é apenas uma parte” (ibid., p. 14). A mesma reflexão é necessária quando nos deparamos com a crítica da educação elaborada como manual de etiqueta. Muito do que se propaga gratuitamente (frequentemente por “especialistas” da área) a respeito do que deve ser a escola ideal, ou como devem se comportar os professores e estudantes, não deixa nunca o terreno da mera exortação. Em primeiro lugar porque o cotidiano escolar não é um campo vazio de significado, à espera de objetivos e estratégias formatados do lado de fora das escolas, em gabinetes 37


etc. E porque as reformas restritas ao campo da didática ou, pior ainda, as tentativas de moralização do comportamento dos educadores não são por si só capazes de interferir na infraestrutura de onde emanam as determinações “irreformáveis” do capital, reforçadas pelo neoliberalismo.

4.1. Infraestrutura e superestrutura A tradição marxista (ALTHUSSER, 1974) concebe o conjunto das sociedades organizado a partir de duas categorias articuladas entre si: A infraestrutura econômica, que diz respeito à unidade das forças produtivas e às relações de produção, e a superestrutura, de que emanam o complexo político-jurídico e ideológico. A articulação entre essas categorias se explica com uma metáfora visual: A sociedade é um prédio de 3 andares, em que a base é a sua infraestrutura, seu andar térreo. A superestrutura, que compreende no andar intermediário os governos e o aparato repressivo de Estado (polícias, exércitos, tribunais e prisões), e imediatamente acima o aparato ideológico (educação, religião, família, cultura, arte, mídia, partidos políticos, movimentos sociais e organizações de classe — acrescentamos aqui também a tecnologia), não pode prescindir da base, tanto quanto os pavimentos superiores de um prédio não poderiam se sustentar no ar. Os fatores superestruturais são assim determinados, em última instância, pelo sistema econômico/infraestrutural (ibid., p. 27). Isto significa dizer que as possibilidades de concretização das demandas populares no campo da educação, da política e da cultura estão sujeitas ao caráter anticapitalista da própria crítica e ao seu alcance pretendido. Simultaneamente, não há meio de superar as demais contradições (de classe, gênero, etnia, orientação sexual, a degradação ambiental etc.) sem a desnaturalização das características inerentes ao modo de produção capitalista. Uma constatação assim nos leva a outras questões: 1) Se as mudanças superestruturais não são determinantes para a superação das contradições sociais, então o que pode ser feito?; 2) Por que, apesar de o capitalismo ser até hoje o modelo hegemônico no mundo todo (comprovando sua manutenção em nível infraestrutural), há sensível progresso social e tecnológico? Para respondê-las, devemos antes separar os dois “níveis” da superestrutura: o aparato repressivo de Estado (que é o Estado propriamente dito), que compreende os governos, a burocracia, a polícia, as forças armadas, o poder judiciário etc. e opera quase integralmente através da violência (física ou simbólica), e minoritariamente através da ideologia; e os aparatos ideológicos de Estado que, contrariamente, operam quase completamente através da ideologia, mas também recorrem, derradeiramente, à violência — a exemplo das sanções escolares sistematicamente aplicadas contra os estudantes que não se ajustam voluntariamente às normas institucionais, e que envolvem toda sor38


te de humilhações e, até muito recentemente, o castigo físico. Para garantir a reprodução das relações de produção, que sob o capitalismo “são [...] relações de exploração” (ibid., p. 56), as classes dominantes não podem abrir mão do poder de Estado e da racionalização da ideologia e repressão, de forma a “harmonizá-las” tanto quanto possível. As mudanças de governo, neste caso, podem ocorrer sem que se modifique o caráter do aparato repressivo e ideológico de Estado. Isto é, mesmo diante da tomada do poder político (superestrutural) por partidos ou grupos ligados aos interesses das classes subalternas, os aparatos continuam operando a serviço das classes dominantes até que sejam revolucionados. A consciência desse processo, um dos motivos da separação, no passado, entre os socialistas utópicos e aqueles que buscavam superar os antagonismos estruturais (MÉSZÁROS, 2008), continua hoje a distanciar a tradição materialista das vertentes “liberais-democráticas” de esquerda, cuja práxis se inscreve nos limites do sistema capitalista. Os materialistas reconhecem o fracasso da sucessão de governos na sua forma “tecnológica” (como automatismo imanente à estrutura social contemporânea) e reivindicam a retomada da centralidade humana nos processos políticos. “As sociedades contemporâneas se apresentam [...] como corpos inertes atravessados por gigantescos processos de dessubjetivação que não correspondem a nenhuma subjetivação real. Daqui o eclipse da política que pressupunha sujeitos e identidades reais (o movimento operário, a burguesia etc.), e o triunfo [...] de uma pura atividade de governo que não visa a outra coisa senão à própria reprodução. Direita e esquerda, que se alternam hoje na gestão do poder, tem por isso bem pouco o que fazer [...] e dão nome simplesmente a dois polos — aquele que aposta sem escrúpulos na dessubjetivação e aquele que gostaria de recobri-la com a máscara hipócrita do bom cidadão democrático — de uma mesma máquina governamental. (AGAMBEN, 2005) A importância do aparato ideológico aumenta junto à constatação de que nenhuma classe social até hoje “pôde duravelmente exercer o poder de Estado sem exercer simultaneamente sua hegemonia [no âmbito da ideologia]” (ALTHUSSER, 1974, p. 49). Portanto, a tecnologia, a cultura, as artes, a mídia, a família, a educação e as organizações políticas são o local, por excelência, da luta de classes. Isto é suficiente para responder às duas questões postas acima: embora reconheçamos que a estrutura econômica é o fator de superação das contradições sociais “em última instância”, a superestrutura ideológica ainda pode exercer pressão sobre a infraestrutura e tem relativa autonomia em relação a esta. Daí o equívoco tanto daqueles que pretendem resolver definitivamente a “questão social” rejeitando a perspectiva revolucionária, propondo-se a remediar os piores efeitos do capitalismo sem eliminar seus fundamentos causais 39


(MÉSZÁROS, 2008), quanto dos que adotam o pragmatismo fatalista característico do neoliberalismo. A este respeito, quero compartilhar aqui o relato de Slavoj Žižek sobre seu debate com Will Self, um escritor liberal britânico, em 2017: “Nós fizemos o debate e ele [Will Self] admitiu que estamos nos aproximando de uma crise ecológica e social, e que daqui a [...] no máximo quarenta anos haverá um colapso. Então eu lhe perguntei: ‘Certo, mas o que podemos fazer a respeito?’, e ele respondeu: ‘Nada! Apenas não falemos sobre nenhuma atitude radical revolucionária, porque isto terminaria em catástrofe. Tudo o que podemos fazer é, modestamente, tomar consciência dos perigos, pagar nossos impostos, sermos bons cidadãos (isto é importante!) e aproveitar ao máximo a vida privada.’ Em resumo, há uma expressão vulgar na língua inglesa para exemplificar a sua tese: Go home, drink beer and masturbate [Vá para casa, beba cerveja e se masturbe].”11 (tradução nossa) O filósofo conclui com uma provocação: “o cinismo é a mais perigosa ideologia de nosso tempo”. Mais do que a defesa apaixonada de qualquer saída política, uma vez que a piora recente nas condições de vida da classe trabalhadora (a maior parte da humanidade) é consequência objetiva do desenvolvimento das forças produtivas na era do capital financeiro, como pudemos observar na parte dedicada à tecnologia e trabalho, e advém diretamente da infraestrutura social. O cinismo dos nossos tempos reside no fato de que não há mais sequer a tentativa de negar ou esconder os problemas inerentes à perpetuação desse mecanismo econômico. Eles são reconhecidos por todos, e, no entanto, o aparato ideológico se encarrega de difundir o imobilismo e a resignação em tom de ameaça, como se qualquer alternativa ou tentativa de refrear os processos em curso fossem desencadear consequências ruinosas.

4.2. Capitalismo e mistificação A contradição fundamental entre capital e educação não difere qualitativamente daquela entre capital e trabalho. Em seus parâmetros estruturais fundamentais, o capitalismo deve permanecer incontestável (MÉSZAROS, 2008), ainda que marginalmente incorpore suas personificações mais “carinhosas”, para o que mobiliza forças não só no campo ideológico e político, mas também tecnológico. O desenvolvimento de parâmetros democráticos, pluralistas, até emancipadores em educação ao longo dos últimos dois séculos só foi possível mediante uma longa jornada de concessões e conquistas arrancadas ao sistema econômico para que a forma da educação abandonasse “a extrema brutalidade e 11

Slavoj Žižek – Cynicism is a simptom of ideology. 2017. (13m22s).

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violência legalmente impostas” (ibid., p. 43), inquestionavelmente aceitas e defendidas por muitos “homens de razão” do início do período iluminista. Essas mudanças não foram fruto de considerações humanitárias, mas do processo de racionalização que permitiu às classes dominantes concluírem que a gestão inflexível do ensino, erigido sobre a moralização e criminalização da pobreza — e o consequente extermínio de pobres — era um desperdício econômico. Uma ressalva: a realidade brasileira, legatária da escravidão, desafia essa noção geral de progresso. Nesta segunda década do século XXI, o índice de mortes violentas ainda é trinta vezes maior aqui do que nos países de economia central, e mais de 70% das vítimas são pretas ou pardas12 (majoritariamente pobres). A soberania das classes dominantes em nosso país, portanto, ainda procede da apartação sociorracial e do poder de ditar quem vive e quem deve morrer (MBEMBE, 2016). Esse fenômeno afeta profundamente as determinações educacionais gerais da nossa sociedade, tanto no âmbito formal como informal. E todos os educadores e demais trabalhadores ligados às escolas populares tem de lidar com essas contingências cotidianamente, o que torna nosso caso particular ainda mais problemático. Não é de se admirar que o Brasil tenha chegado antes de outros países ao estágio mais recente do “capitalismo escolar e universitário” (LAVAL, 2019), uma vez que as condições objetivas de vida da classe trabalhadora são precárias, e as instituições fragilizadas pela falta de uma alternativa hegemônica e pela desnaturalização histórica do bem comum e do serviço público. A ação mistificadora do capital sobre a educação nos dias de hoje consiste na mobilização do conjunto dos aparatos ideológicos de Estado para: 1) restringir a percepção do “acontecimento” educativo aos espaços formais; 2) reduzir, da forma mais tacanha possível, os processos de ensino-aprendizagem a movimentos intelectuais destinados a perpetuar “os ‘padrões civilizados’ dos que são educados para governar contra a ‘anarquia’ e a ‘subversão’” (MÉSZÁROS, 2008); 3) fazer da educação um ato de legitimação da herança cultural, simbólica, financeira e social das elites, e de naturalização, pelos indivíduos das classes subalternas, da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social (ibid., p. 44); 4) estruturar a educação em torno de sistemas que reproduzem o modo de produção em função da especialização dos saberes, hierarquias e comercialização de títulos que habilitam os indivíduos a disputarem posições no mercado de trabalho, expropriando à classe trabalhadora todo conhecimento “desnecessário” à sua adequação às perspectivas globais da sociedade mercantilizada; e 5) incentivar, entre educadores, pesquisadores e gestores da área a predileção por abordagens “realistas”, “graduais”, pretensamente democráticas, mas de caráter elitista e alienante, na medida em que excluem as massas de trabalhadores do âmbito da ação como sujeitos da própria educação, tratando-as como objeto das determinações dos especialistas e tecno12 MADEIRO, Carlos. Com 62,5 mil homicídios, Brasil bate recorde de mortes violentas. [s. l.] 5 jun. 2018.

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cratas. Dissemos que as classes dominantes não podem deixar de disputar o poder de Estado mesmo nos períodos em que exercem influência hegemônica sobre seus aparatos repressivo-ideológicos. Isso porque o controle do Estado está para além da política. De maneira análoga, a manutenção duradoura da ordem social não depende apenas da produção de determinações formais, mas de sua constante reprodução e da luta pelo seu controle. A educação é assim estruturada como um dispositivo autoritário destinado a induzir o conformismo e a internalização generalizada das atribuições de classe geração após geração (ibid., p. 53). Entretanto, os processos de aprendizagem estão presentes em nossas vidas muito além do tempo que passamos nas escolas. Eles representam um elemento social contínuo e permanentemente ligado à nossa capacidade de comunicação. Portanto, somente a menor parte do que aprendemos e ensinamos pode ser controlado imediatamente pela estrutura formal. O poder instalado recorre então à propaganda e à massificação de discursos voltados à desqualificação de todo conhecimento apreendido fora dos limites “oficiais”. Esses conhecimentos marginalizados envolvem todo o complexo de saberes da “cultura popular”, que são submetidos ao escrutínio estético e técnico das camadas detentoras do capital cultural e imediatamente descartados ou desqualificados como formas de saber fortuitas, ingênuas, pouco sofisticadas. O acúmulo técnico das classes trabalhadoras também é destituído de seu elemento intelectual. Tudo isso com o objetivo de “manter o proletariado ‘no seu lugar’” (ibid., p. 49). Sobre os educadores, esse controle é exercido frequentemente na forma da lei e através dos currículos que determinam os “conteúdos” exigidos pelas instituições de ensino e por toda a comunidade escolar. Desde a formação, muitos professores são levados a internalizar a ideia de que o ensino não constitui um campo de atividade, mas sim um conjunto de habilidades cuja serventia é determinada por gestores e organismos exteriores à própria escola. “O problema do ensino é um problema dos adultos e é por meio dele que procuram perpetuar determinada ordem social. É um sistema fechado, produtivista, que só procura sua reprodução. [...] Situa-se nesse contexto o problema dos professores, que durante anos aprenderam a ensinar, [mas] entendem por ensino aquilo que necessitam ensinar, isto é, ensinam a si próprios para assegurar pessoalmente suas posições.” (TRAGTENBERG, 1980) A noção de expropriação de conhecimento à classe trabalhadora é distorcida quando somos levados a pensar, mesmo com as melhores intenções, que o que falta às escolas é mais tempo, mais disciplinas, mais conteúdo, de 42


maneira que entre pobres e ricos as oportunidades sejam aproximadas. Esse conteúdo ausente que se reivindica quase nunca compreende aquilo que poderia ser aproveitado das experiências e reflexões dos indivíduos nos espaços “rebeldes” do cotidiano escolar ou nos ambientes informais de aprendizagem. Ao contrário, os sujeitos desse processo de ensino-aprendizagem dificilmente são ouvidos, e as determinações de conteúdo sobre o tempo passado na escola quase sempre provêm da noção de utilidade das classes dominantes, mesmo que superficialmente pareçam vantajosas à classe trabalhadora. A proposta de uma “educação financeira” nas escolas, por exemplo, é vista com bons olhos por uma imensa parcela da sociedade, mas quando se põe em questão a forma dessa educação, o que se defende, frequentemente, é que seja empregada para impedir o endividamento das camadas populares. Uma proposta de educação financeira emancipadora, que desvendasse à classe trabalhadora o funcionamento do capital financeiro (e seus mecanismos de superexploração e aviltamento das condições de vida dessa mesma classe) dificilmente seria oficialmente instituída. O que o capital não pode dirigir por completo, então, é mistificado. O dilema, da perspectiva do sistema, é que por mais que o desenvolvimento tecnológico, em constante marcha, seja instrumentalizado para o aprimoramento da propaganda e dos dispositivos de vigilância e captura de nossa atenção, desejos etc., não se pode neutralizar por completo a sensibilidade e nem excluir a intervenção intelectual de nossa ação produtiva, que necessariamente deve ser mobilizada como condição indispensável da extração de mais-valor. Como Gramsci (1967) afirmou peremptoriamente, “o Homo Faber não pode ser separado do Homo Sapiens”.

4.3. Mercadização do ensino13 O desenvolvimento histórico da educação até a sua democratização não é linear. Até o século XIX, a lógica predominante na escola ainda podia ser classificada como “político-cultural” (ibid., p. 32), atendendo a uma necessidade de integração moral do indivíduo à Nação. Contudo, essa concepção concorria desde o século XVI com alternativas utilitaristas determinadas a fazer a educação coincidir com uma noção geral de sociedade mais técnica, científica e produtiva, e menos religiosa e tradicional. Com o desenvolvimento da indústria, as perspectivas utilitaristas aderiram ao espírito do capitalismo e se somaram ao conjunto liberal, tomando o mercado, as profissões e os negócios como 13 Utilizei o termo “mercadização” proposto por Christian Laval (2019), no lugar de “mercantilização”, para tratar das modificações impostas ao ensino nos últimos anos. O termo “mercantil” ainda guarda uma forte relação com “troca”, e o movimento que acomete as escolas atualmente tem muito mais a ver com a desintegração progressiva de seu status institucional e com seu definitivo rebaixamento à condição de commodity do que com o ajustamento a qualquer sistema de relações que possa ser considerado, mesmo pelo senso comum, minimamente “livre” ou “justo”.

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parâmetro de determinação das políticas escolares. O escalonamento global da indústria forçou a adoção de métodos quantitativos nas escolas, para que a oferta de trabalhadores qualificados pudesse atender às demandas provocadas pelo revolucionamento técnico dos meios de produção. Na segunda metade do século passado, somaram-se aos investimentos financeiros e estruturais as ferramentas de “gestão simbólica” dos fluxos de mão-de-obra a fim de se alcançar um ajuste favorável entre diplomas, qualificações e assalariamento, segundo as necessidades das economias nacionais (ibid., p. 35). Gradativamente, a defesa da modernização da educação, compartilhada por tecnocratas, liberais e por parte do campo progressista, “que não viu dificuldade em aderir a esse discurso, pois parecia ir de encontro aos promissores avanços da ciência e do desenvolvimento das forças produtivas” (ibid., p. 36), fez prevalecer a noção de escolas e universidades como empresas dotadas da mesma lógica que pode ser aplicada a outros setores da produção. A sua dimensão político-cultural, associada ao humanismo tradicional, apesar de reforçada continuamente no campo teórico por críticos desse movimento de sujeição à lógica de mercadização, na prática sofreu um enorme retraimento. A novidade do neoliberalismo é a sua natureza política particular que lhe permite acelerar enormemente a transformação da racionalidade capitalista em lei social geral. Diferentemente de períodos passados, não vivenciamos hoje a simples proeminência de uma ou outra forma de conceber e organizar a educação e outras esferas da vida social separadamente, mas um processo de reestruturação permanente do capital cuja tendência é a generalização da concorrência entre todas as sociedades e todos os setores interiores a elas. A ingerência de organismos financeiros e econômicos internacionais permite que as diferenças e particularidades regionais, ainda que não sejam completamente suprimidas (nem é esse o objetivo da “gestão” em escala global), deixem de representar um obstáculo à mobilização das normas trabalhistas, fiscais, educacionais, salariais etc. todas na mesma direção. As sociedades de mercado, atualmente em franco processo de destituição até mesmo dos atenuantes prescritos pela fórmula social-democrática no século passado, favorecem o aprofundamento das desigualdades e a marginalização de amplas camadas da sociedade. A complexificação das funções produtivas e o progresso tecnológico agravam o processo de subsunção do trabalho ao capital, ora representado na forma de poderosos oligopólios. O emprego extensivo de maquinário industrial e digital pressiona os currículos das escolas e universidades, demandando às instituições de ensino abordagens de perfil “profissionalizante”, capazes de qualificar tecnicamente os estudantes para o trabalho futuro, em contato direto com essas formidáveis máquinas e dispositivos.

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Parece contraditório que, mesmo diante da demanda crescente por mão-de-obra qualificada e “flexível”, dotada de “competências múltiplas”, preparada para o acúmulo de funções etc., o programa neoliberal pretenda atender às exigências do mercado apostando paralelamente na redução do gasto público e da carga tributária e na privatização de serviços (ibid. p. 37). “Daí as campanhas [...] implantadas [...] tanto nacional quanto mundialmente e em todos os níveis da atividade educacional, para diversificar o financiamento do sistema (clamando muito mais abertamente pelo gasto privado), administrar mais ‘eficazmente’ (como fazem as empresas), reduzir a cultura ensinada na escola às competências indispensáveis para a empregabilidade dos assalariados, promover a lógica de mercado [...] e a competição entre as famílias pelo ‘bem escasso’ (e, consequentemente, caro) da educação.” (ibid.) O capital financeiro, em sua sanha acumuladora, torna as sociedades de mercado cada vez mais incompetentes para corresponderem às necessidades culturais e simbólicas das massas de trabalhadores. O trabalhador precarizado não o é apenas por ter sido destituído dos bens salariais (diretos ou indiretos, na forma de remuneração e direitos, respectivamente) necessários à própria sobrevivência e dignidade. Ele também é privado do acesso à cultura, ao lazer, às artes, não consegue enxergar sentido no próprio trabalho, que lhe toma todo o tempo e é reduzido a operações repetitivas de produção de bens que agregam cada vez menos valor socialmente útil. Para refrear os impactos desse empobrecimento geral, o capital mobiliza ações de governo e propaganda a serviço da “integração” pelo consumo, sacralizado como única possibilidade restante de gozar a vida. Paulo Freire (2011) já antevia as consequências funestas dessa estratégia, especialmente nas sociedades periféricas: “Estávamos convencidos, e estamos, de que a contribuição a ser trazida pelo educador brasileiro à sua sociedade em ‘partejamento’, ao lado dos economistas, dos sociólogos, [...] haveria de ser a de uma educação crítica e criticizadora, [...] que tentasse a passagem da transitividade ingênua à transitividade crítica, ampliando a capacidade [de] colocar o Homem brasileiro em condições de resistir aos poderes de emocionalidade da própria transição.” (ibid.) A centralidade das políticas sobre a renda visando estabelecer o consumo como a forma hegemônica de relação social, sem a concorrência de uma educação adequada a essa mudança, desencadearia um processo de emersão popular ajustado não pelo reforço da crítica e pela valorização subjetiva das classes até então subalternizadas, mas pela acentuação das diferenças de classe como fenômeno “psicologicamente necessário” (ibid.), na medida em que as camadas mais empobrecidas, buscando identificar-se, mesmo su45


perficialmente, com o estilo de vida das classes dominantes através da “socialização-atomização” mercantil (LAVAL, 2019), perceberiam definitivamente “a visualização que fazem delas as elites, [inclinando-se] a respostas autenticamente agressivas” (FREIRE, 2011). A resposta das elites, diante dessa emersão, é procurar domesticar as massas populares recorrendo à força ou a soluções paternalistas. Podemos acrescentar, passado meio século desde que Paulo Freire escreveu sobre os efeitos do apagamento da crítica e da sujeição da cultura à perspectiva econômica, que a “saída” apresentada pelo neoliberalismo é capaz de conjugar à repressão e ao paternalismo um terceiro elemento: a mobilização dos desejos dos indivíduos, transferindo as relações de poder para a esfera do consumo. Esse movimento completa o processo de desintegração e desvalorização da escola, na medida em que a emancipação pelo conhecimento — objetivo da educação humanista, cuja referência é o Homem completo, que não deve se preocupar exclusivamente com o trabalho, mas também com o florescimento de todas as suas faculdades intelectuais, morais e físicas (LAVAL, 2019) — torna-se uma ideia obsoleta. A constituição da própria subjetividade passa a conformar-se em função do acesso ao capital financeiro. A escola perde seu status institucional, convertendo-se num bem privado à disposição das famílias num mercado concorrencial, prescindindo de seu papel educador e obedecendo exclusivamente à demanda consumidora. Os professores, além dos prejuízos materiais intensificados pelo processo de proletarização da profissão, perdem muitos de seus benefícios simbólicos, tendo que adequar-se às políticas de ranqueamento e às determinações de empresas “do ramo” educativo, que sistematizam desde fora do ambiente escolar currículos, metodologias, livros didáticos, apostilas etc. Os estudantes, por sua vez, sofrem uma crescente pressão das mídias, são vítimas do stress neuronal e psicológico causado pelo bullying, pela comparação constante com seus pares, pela superexposição em redes sociais baseadas em imagens e pelo fim progressivo da “reprodução direta [...] dos ofícios e postos de trabalho” (ibid., p. 15). A aceleração dos processos de substituição tecnológica e a reforma estrutural do capitalismo na era informacional-digital, que pressionam os trabalhadores por qualificação e ajuste às novas formas de subsistência, também impõem sobre os estudantes, futuros trabalhadores, uma incerteza cada vez maior em relação à validade dos princípios normativos herdados da família e da escola.

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5. CULTURA VISUAL COMO TÁTICA Dissemos que as transformações provocadas pela intensificação da lógica de valorização do capital associada ao uso de novas tecnologias tem levado à piora das condições de vida das classes trabalhadoras, e que as classes dominantes, para aplacar os efeitos dessa piora, tem recorrido ao uso deliberado dos aparatos repressivos e ideológicos de Estado a fim de submeter as massas ao metabolismo econômico do capitalismo financeiro, sem que se visualize uma alternativa. Uma das estratégias de conformação mais importantes atualmente é o emprego extensivo de imagens pelas corporações e governos. A massificação das formas visuais “tradicionais” — como a pintura e a fotografia reproduzidas nas mais diversas superfícies, de livros a camisetas, objetos decorativos etc. até o cinema — e a disseminação de dispositivos de captura e transmissão, na forma de câmeras de vigilância, televisores, computadores, celulares e monitores de vídeo instalados em exposições de arte, centros comerciais, escolas, automóveis e aviões tem colocado à nossa disposição um volume incessante de imagens que hoje são produzidas cotidianamente por qualquer pessoa, e não mais apenas por artistas e profissionais de comunicação, o que justifica dizer que a característica distintiva das sociedades pós-modernas é o crescente predomínio da visualidade sobre os demais sentidos. Esse deslocamento da centralidade dos discursos verbais e escritos para os discursos imagéticos impõe uma enorme responsabilidade sobre os profissionais ligados às artes e comunicação visual, sobretudo os arteducadores. Também justifica a emergência do campo de estudos relacionado à cultura visual. Segundo Nicholas Mirzoeff (1999), a profusão de imagens em nossa época se dá em ritmo mais acelerado do que nossa capacidade de analisá-las criticamente, até o ponto em que “a simples visualização do cotidiano não significa mais que saibamos o que estamos vendo” (ibid., l. 327). A caracterização da sociedade pós-moderna como sociedade visual parte da constatação de que as sociedades industriais, passando por um acelerado processo de complexificação das relações sociais e produtivas, fomentaram o desenvolvimento da habilidade de absorver e interpretar informação visual que “teríamos tremenda dificuldade de compreender, desvendar e conciliar através do método discursivo” (BUCK-MORSS, 1995). O emprego crescente de imagens também se deu em função da percepção de um “público observador” e da necessidade de conexão imediata com ele: “O olhar, o vislumbre, as práticas de observação e vigilância motivam questões tão relevantes como as várias formas de leitura (decifração, decodificação, interpretação etc.) e a ‘experiência visual’ pode não ser tão facilmente explicável apenas através do modelo de textualidade.” (MITCHELL, 1994, tradução nossa) 47


Os estudos em cultura visual se diferenciam das formas tradicionais de pesquisa das artes visuais na medida em que priorizam a investigação da experiência visual do dia a dia em detrimento de modelos imagéticos “formais e estruturados, como o cinema e a galeria de arte” (MIRZOEFF, 1999). O volume e a velocidade de fabricação dessas imagens cotidianas aumentou tão dramaticamente nas últimas décadas que a sua circulação se tornou gradativamente um fim em si mesmo (ibid. l. 451), fonte de produção de subjetividades, afirmação de padrões de consumo e prazer visual. O descompasso entre a produção de imagens e a crítica necessária a seu adequado entendimento abre espaço para a apropriação da visualidade cotidiana pelo capital e seu uso como instrumento ideológico. Numa economia globalizada e altamente conectada, esse expediente torna-se ainda mais simples: Uma vez que a produção de imagens está intimamente ligada à totalidade da vida social, que, regulada pelo hedonismo e individualismo inerentes às sociedades de consumo, torna-se “uma constante busca de satisfações que confiram [ao indivíduo] um sentimento de poder” (LASKI, 1973), trata-se então de identificar (e fabricar ativamente) os “perfis” estéticos utilizados para comunicar noções de sucesso individual, afirmação de poder, a ostentação de bens de consumo etc. e orientá-los em escala global a serviço do sistema econômico. Em 2019, os brasileiros gastaram em média 225 minutos por dia (quase quatro horas) comunicando-se através de redes sociais14. Nessas redes, baseadas predominantemente em imagens, se reproduzem de forma acentuada as relações de poder nas sociedades pós-modernas. A superexposição e a comparação constante com amigos, parentes, colegas de trabalho, celebridades e “influenciadores digitais” poderia não ser uma atividade tão relevante em nossos tempos, não fosse o fato de que o próprio mecanismo das redes nos provoca a continuamente estetizar o cotidiano, transformar imagens privadas em públicas (publicáveis), para o que elas necessitam atender a determinados parâmetros, o que Manuela Salazar (2017) chamou de imagens “instagramáveis” (em referência ao Instagram). O que se vê não é o compartilhamento genuíno de fatos e estilos de vida, mas a fabricação de “vidas” artificiais que só se realizam no instante do enquadramento, da manipulação e da seleção das imagens. “A fotografia e o filme criaram uma relação nova e direta com a realidade a ponto de acatarmos a ‘veracidade’ do que vemos através das imagens. Uma fotografia necessariamente nos mostra algo que em certo momento ocorreu concretamente diante da câmera. [...] Hoje, a imagem fotográfica ou filmada não serve mais como índice do real, porque todos sabemos que elas podem ser manipuladas de 14 DUARTE, Fernando. Brasil é ‘vice’ em tempo gasto em redes em ranking dominado por ‘emergentes’. [s.l.] 6 set. 2019.

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forma indetectável.” (MIRZOEFF, 1999, tradução nossa) Essa forma de disputa e afirmação de poder através de imagens representa um enorme reforço aos mecanismos de valorização do capital, na medida em que somos mobilizados para o consumo — e consequentemente para o trabalho, até nas piores condições — em função de visualidades que nos comunicam a todo momento em que consistem os valores simbólicos de aceitação, popularidade, sofisticação, atração etc. Valores devidamente metabolizados pela lógica do capital, alcançáveis por aqueles que puderem pagar. Por outro lado, é aqui que se constata o potencial da crítica sobre a visualidade e a “vantagem” que ela dispensa à abordagem do arteducador. Para Lukács (1966): “A reflexão sobre a estética a partir das mediações que se estabelecem entre a vida cotidiana e o processo de produção de objetos artísticos possibilita compreender [...] a dimensão das atividades humanas e estabelecer sua vinculação ideológica e fundacional ao modo de produção econômico e social.” Muito embora a visualidade cotidiana não compreenda apenas a produção de objetos artísticos, a que o autor se refere, a fabricação dessas imagens não escapa à noção maior de poiesis. Há uma massa continuamente crescente de imagens que se relacionam (porque buscam comunicar substancialmente os mesmos valores) mas não necessariamente se repetem, uma vez que o ineditismo é imprescindível à manutenção da “narração” do cotidiano individual. Assim, essas imagens, uma vez tomadas como objeto de investigação de pesquisadores e educadores, também podem servir como vetor de desvendamento de seu próprio “partidarismo ideológico” (TROJAN, 2016), revelação que permite à estética abrir-se “ao campo da contradição, importante para a contestação e manifestação de pontos de vista opostos [...] no contexto da luta de classes” (ibid., l. 2838). Poderíamos ainda acrescentar a isto a acepção mais geral de Mirzoeff (1999) sobre a cultura visual: “Cultura visual é essa percepção da crise informacional e da sobrecarga de imagens na vida cotidiana. Ela pretende encontrar meios de ação nesta nova realidade (virtual). Para adaptar a descrição de Michel de Certeau, a cultura visual é uma tática. [...] E a tática só pode se realizar na visualização total do inimigo, a sociedade de controle em que vivemos. Apesar de alguns considerarem ultrapassada a implicação militarista do termo, argumentamos que as táticas são essenciais para evitar a derrota.” (ibid., l. 457) Essa compreensão da cultura visual como tática é fundamental para explorarmos as possibilidades alternativas às práticas hegemônicas de controle e mistificação da vida. A decifração da visualidade cotidiana e o emprego de 49


imagens na elaboração da crítica e expressão de demandas alternativas são artifícios fundamentais para nos defendermos dos processos de alienação promovidos pelo capital e descortinarmos as brechas e contradições em seu mecanismo.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS “A teoria de que os seres humanos são produto das circunstâncias e da educação e de que, portanto, Homens modificados são produto de circunstâncias modificadas, esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos, e que o próprio educador precisa ser educado. [...] A coincidência da modificação das circunstâncias e da atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendida como práxis revolucionária.” Karl Marx Se houvesse respostas e soluções definitivas à questão social de que tratamos, a elaboração de um estudo assim não seria possível, muito menos necessária. A tremenda força do capital, sua afirmação irresistível sobre o cotidiano, sua capacidade de revolucionar as próprias estruturas, adaptando-se às mais intricadas contingências, e a forma como é capaz de mobilizar forças destacadas de forma racional e eficiente (ao menos na superfície) podem nos fazer crer na sua eternidade, na inevitabilidade de seus imperativos. O fracasso das abordagens teleológicas que pretendiam torcer a História para fazer suas contradições, seus momentos de avanço e retrocesso caberem em perspectivas messiânicas de redenção e gradual “conscientização” do Homem, e a dissolução do bloco socialista, que, com todos os seus equívocos (que devemos justamente criticar e condenar) ainda impunha certa “concorrência” aos planos de hegemonia capitalista (ao menos contribuindo para que as classes trabalhadoras arrancassem aos governos das economias centrais do ocidente o conjunto de políticas de bem estar social), fizeram com que parte do campo progressista capitulasse, acatando o modelo de democracia liberal, que passou a ser quase consensualmente considerado o único regime político legítimo em nosso tempo. Enfeixando seus discursos e práticas em torno de uma perspectiva de “resistência” sem qualquer possibilidade criativa, parte da esquerda aderiu à chamada agenda do respeito (MÉSZÁROS, 2008), moralizando suas proposições e empreendendo a ilusória tarefa de resolver a crise de valores “por um apelo retórico à consciência dos indivíduos, postulando, em vão, o adequado ‘apreço pelos valores da cidadania democrática’” (ibid., p. 93). Essa expectativa não leva em consideração o valor utilitário das diversas formas de opressão interiores à classe trabalhadora (de gênero, etnia, orientação sexual etc.) e da sujeição ideológica dos indivíduos para a reprodução do ciclo de valorização do capital em condições ótimas. A insistência em temas como a “tolerância” e a aceitação de reformas “graduais” são expressões elitistas e autoderrotistas 51


que devemos rejeitar se não nos resignamos com os efeitos nefastos do capitalismo sobre nossas vidas. Ao longo do século XX, cristalizou-se entre amplos setores das sociedades a noção enganosa de que a ordem democrática só pode ser perturbada por movimentos autoritários e violentos: Golpes de Estado, guerras, a instauração de ditaduras, derrubada de governos por forças militares. Hoje os mecanismos do capital financeiro tem comprovado a máxima de Boaventura de Sousa Santos, de que “as democracias também morrem democraticamente”15. Assistimos à acelerada extinção de direitos, ao recrudescimento da moral reacionária, à sucessão de governos incapazes de alicerçar mudanças relevantes e duradouras, ao cinismo das classes dominantes e de parte cúmplice das classes médias, que admitem abertamente o sequestro das democracias, a destruição dos ecossistemas, o uso irresponsável dos recursos naturais e a distribuição extraordinariamente desigual das riquezas, pretendendo fazer dessa política criminosa um novo consenso, um “centro” de neutralidade, cuja razão destrutiva devemos apenas compreender e aceitar em termos lógicos, “técnicos”. Aos poucos vamos nos voltando para a vida privada, para a alienação voluntária. Alguns depositam suas esperanças no progresso científico e tecnológico, que já sabemos não ser dotado em si próprio de capacidades emancipatórias. Essa crença cega nos dispositivos supostamente destinados a corrigir todas as injustiças e desequilíbrios, que, no entanto, nunca se realizam de fato e permanecem para sempre como promessas de um futuro maravilhoso de abundância e liberdade, não é mais do que outra forma de teologia. Em sentido oposto, há o aniquilamento de todas as perspectivas de mudança, a rejeição ao novo, a convicção igualmente equivocada de que vivemos em sociedades amorfas, em que os sujeitos e identidades foram liquidados, de que a História não é capaz de produzir o inédito. A essa “nuvem espessa, negra, de pessimismo, capaz de oprimir até os mais hábeis e responsáveis militantes”, Gramsci se referiu quase um século atrás16, alertando sobre os perigos do ceticismo em relação ao futuro. Escolhi a epígrafe acima porque ela ilustra um rumo possível para o conjunto de nossas reflexões. Ao criticar o materialismo de Feuerbach, Karl Marx (1977) reivindicou o significado das transformações sociais não como objeto de contemplação dos intelectuais, mas como atividade sensível humana. Trata-se de desafiar cotidianamente a norma de reificação da vida e personificação das coisas, que colocam os seres humanos a serviço dos objetos e discursos — de fato, maravilhosos — por eles mesmos produzidos, quando deveria ocorrer o 15 SANTOS, Boaventura de Sousa. As democracias também morrem democraticamente. [s. l.], 21 out. 2018. 16 GRAMSCI, Antonio. Contra o pessimismo. Turim: L’Ordine Nuovo, 22 nov. 2019.

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contrário. A construção de uma alternativa hegemônica só será possível na medida em que se resgate a centralidade humana nos processos sociais e históricos. Não defendemos, portanto, a formulação de “passos isolados com o pretexto da finalidade e do fechamento” (MÉSZÁROS, 2008), mas a adesão positiva e consciente ao desenvolvimento contínuo — coletivo e nunca completado — da consciência socialista. A História não tem capítulo final.

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