Uncanny Valley - A Estranheza na Percepção de Humanos Digitais - Victor Yamakado

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uncanny valley a e s t r an he za n a p e r c e p ç ão de hum an o s dig itais v ic t o r yam ak ado

Trabal ho d e Concl u s ão d e Cu rs o apres entad o à Es col a d e Comu ni cações e A r tes d a Univers i d ad e d e S ão Pau l o para a obtenção d o tí tu l o d e B acharel em Comu ni cação S oci al c om habi l i tação em Pu bl i ci d ad e e Propag and a.

Orientador | luli radfarer

Esc ola d e C omuni c aç ões e Artes Uni v ersi dad e d e São Paulo 2015


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ARTE DA CAPA E CONTRACAPA Agradecimentos especiais para o artista Lukáš Hajka, que gentilmente concedeu a permissão de publicar imagens do seu trabalho "crossing the uncanny valley", como arte da capa, contra-capa e exemplos durante o texto.


u n c a n n y

v a l l e y

a estranheza na percepção de humanos digitais

v i c t o r ya m a k a d o

trabal ho de concl usão de curso Orientador | l ul i radfahrer

Escol a de Comunicações e Artes Universidade de São Paul o 2015


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banca examinadora

Orientador

membro titul ar

membro titul ar

s達o pa u lo,

de

de


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ag r ad ec i m e nt os

agradecimentos Ao meu amado pai Décio e minha amada mãe Lúcia, que são as pessoas a quem eu dedico todas as minhas conquistas e alegrias, pois reconheço o quanto batalharam para que eu fosse quem sou hoje. A minha namorada Gabriela Massuda, pelo imenso apoio e força que me deu em todo esse ano (e sempre), me ouvindo, me acalmando e me dando conselhos, além de toda a sua ajuda determinante nos momentos finais deste trabalho. Ao meu professor orientador Luli Radfahrer, por ter sido uma peça fundamental no início da minha carreira, o primeiro a realmente abrir meus olhos para a percepção das artes visuais e gráficas, além de ser um educador exemplar, que mesmo com todos os pesares da vida acadêmica, dedica-se intensamente para fazer a diferença, pois o seu maior intuito é realmente ensinar. A todos meus amigos e colegas de profissão que tanto me incentivaram, me ouviram e se interessaram pelo assunto e pelo meu trabalho. Ao artista Lukáš Hajka, por servir de enorme inspiração para o meu trabalho profissional, atingindo novos patamares de qualidade e compartilhando informação, pela inspiração na descoberta do tema e pela gentileza em me permitir o uso de imagens do seu trabalho. Ao amigo Denis Mercaldi, pelo singelo insight que me direcionou à escolha do tema, que de uma forma ou de outra, conseguiu reunir todos os meus gostos e interesses, como objeto de estudo. Aos convidados Alceu Baptistão e Monica Tavares, que gentilmente aceitaram o meu convite. A toda a comunidade acadêmica e artística internacional, que têm possibilitado o alcance de novos patamares de realismo no 3d. A diversos outros grandes artistas e professores que tanto me ensinaram e me servem de inspiração, para eu continuar evoluindo e desenvolvendo a qualidade do meu trabalho: Maurício Takiguthi, Fábio Doná, Danilo Athayde, Alex Oliver e diversos outros.


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resumo

Uncanny Valley é uma hipótese que busca explicar a sensação de estranheza percebida em representações da figura humana altamente realistas. Esta hipótese, introduzida em 1970 por Masahiro Mori, defende que quanto mais semelhante for uma reprodução da figura humana, mais atrativa esta será, até o momento em que ela se dê de forma tão realista, que ao invés de ser mais atrativa, começará a provocar repulsa e estranheza no seu observador. Tendo em vista a escassez de literatura disponível sobre este assunto, este trabalho busca propor ao leitor uma contextualização sobre este fenômeno e também uma categorização de aspectos determinantes para a sua ocorrência. Palavras-chave: uncanny valley; humanos digitais; realista


r esum o | abs t rac t

abstract

Uncanny Valley is a hypothesis that tries to explain the feeling of eerie perceived in highly realistic representations of the human figure. This hypothesis, introduced in 1970 by Masahiro Mori states that the more similar is a reproduction of the human figure, the more attractive it will be until the moment it take so realistically that instead of being more attractive, it begins to cause disgust and strangeness in its spectator. Given the lack of literature available on this subject, this paper seeks offer to the reader a contextualization of this phenomenon as well as a categorization of determining factors for its occurrence. Keywords: uncanny valley; digital humans; realistic


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s u m á ri o

sumário INTRODUÇÃO

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Contexto histórico 17 Primeiros passos 19 Década de 70 21 Década de 80 25 Década de 90 33 Anos 2000 e os dias atuais 39 Uncanny Valley 61 Conceito de uncanny 63 Ernst Jentsch 65 Sigmund Freud 68 O Fenômeno do Uncanny Valley 79 Teoria de Masahiro Mori 79 Discussão teórica 84 Aspectos determinantes 109 Anatomia 111 Aspectos Físicos 139 Capacidade Técnica 157 Expressão emocional 179

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Bibliografia

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i n t r odu ç ão

introdução Uncanny Valley é uma hipótese que busca explicar a sensação de estranheza percebida em representações da figura humana altamente realistas. Ao se notar, por exemplo, um androide, um boneco de cera ou mesmo um personagem 3d em um filme, uma vez que estes possuam um nível de realismo muito alto, no entanto, ainda não o suficiente para que sejam percebidos como um humano real e saudável, o que se percebe é uma forte estranheza. A sensação da estranheza foi primeiramente estudada por escritores da Psicologia como Ernst Jentsch em 1906 e Sigmund Freud em 1919, entretanto foi em 1970 que o professor de robótica Masahiro Mori publicou a hipótese do Uncanny Valley. Nesta hipótese, o professor propõe um gráfico entre similaridade humana e atratividade, no qual uma curva é traçada a fim de explicar a ocorrência desta estranheza. O gráfico defende que quanto mais semelhante a um humano for uma representação da figura humana, mais atrativa aos olhos de um observador esta representação será. Isto segue se intensificando até um momento crítico em que esta representação se tornou tão similar a um humano - porém ainda é não um humano real -, que ao invés de ser mais atrativa ainda, ela cai num vale da atratividade e passa a gerar repulsa, o que seria representado como uma atratividade negativa, no gráfico. Ainda que a ideia deste fenômeno tenha sido proposta pela primeira vez em 1970, somente nos dias de hoje é que ela tem voltado a atrair atenção. Com o avanço tecnológico, tanto as técnicas de computação gráfica quanto às de robótica têm possibilitado o alcance de níveis de realismo extremamente altos em suas produções. A partir disso, cada mais tem se intensificado o uso da computação gráfica a fim de se reproduzir humanos perfeitamente percebidos como reais. No entanto, em meio a esse processo, 13


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diversas produções têm sido, na verdade, um enorme fracasso na recepção do público. Em virtude disso, a hipótese do Uncanny Valley, tem assumido o papel de ser a explicação mais plausível para estes fracassos. Assim, esta temática tem sido objeto de atenção tanto para as indústrias do entretenimento, que fazem uso deste tipo de representação da figura humana, quanto da comunidade acadêmica. Mesmo assim, existe pouca literatura disponível sobre o assunto, sobretudo em língua portuguesa. Desta forma, este trabalho busca assumir um caráter referencial para a discussão do assunto, principalmente no que diz respeito à ocorrência do Uncanny Valley em personagens 3d de imagem estática. Primeiramente, apresentou-se uma contextualização histórica de toda a reprodução de humanos em ambiente digital, desde as primeiras tentativas em 1959 e 1972, por William Fetter e Edwin Catmull, respectivamente, até as grandes produções cinematográficas dos dias atuais, em que se distinguir os personagens digitais de humanos reais não é uma tarefa para olhares desatentos. Em seguida, buscou-se proporcionar ao leitor uma contextualização teórica sobre tudo o que tem sido discutido na pesquisa acadêmica sobre o assunto do Uncanny Valley. Através de uma leitura mais complexa e profunda, apresentou-se um grande panorama que conta com trabalhos da Psicologia, discussões de orientação filosófica e estudos empíricos que debatem e verificam a ocorrência deste fenômeno, seja no âmbito da robótica, da computação gráfica ou mesmo na vida real. Logo depois, uma vez o leitor estando mais contextualizado ao assunto, apresentou-se uma proposta de categorização de quatro aspectos gerais que devem ser determinantes para a ocorrência deste fenômeno em personagens 3d humanos, quando percebidos através de uma imagem estática. Por fim, foram feitas algumas considerações finais, contando até mesmo com a proposta de uma nova configuração para a curva no gráfico do Uncanny Valley.

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i n t r odu รง รฃo

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CONTEXTO HISTÓRICO

Através do acelerado desenvolvimento tecnológico, a produção digital de personagens humanos tem atingido níveis cada vez mais realistas. No entanto, nem sempre a recepção do público diante dessas reproduções se dá de maneira positiva. Em meio a sensações de estranheza e de repulsa, a temática do Uncanny Valley tem se tornado um foco de discussão bastante presente nas mais diversas indústrias da Comunicação e do Entretenimento. A fim de se obter respostas para os questionamentos de hoje, é necessário primeiramente compreender quais são suas origens no passado. Em uma breve apresentação das principais produções na história da computação gráfica, este capítulo busca fornecer uma contextualização histórica de como se deu a representação da figura humana em ambiente digital. Realizou-se uma abordagem partindo desde os primeiros passos com William A. Fetter em 1959 e Edwin Catmull em 1972, até as produções atuais, em que se distinguir o real daquilo que é fruto de computação gráfica tem se tornado uma tarefa cada vez mais complicada.


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co n t e x t o h i st ó r i co | pr i m e i r o s pa s s os

PRIMEIROS PASSOS

1. FETTER, 1978. 2. THALMAN, N; MAGNENAT-THALMANN, D. 2004.

FIG. 01 ”First Man”. Boeing,1959. FIG. 02 “Norelco TV Commercial”. Graphcomp/Boeing/CGI, 1970.

Embora existam muitos contribuintes na história da reprodução da figura humana em ambiente virtual, o primeiro passo é amplamente atribuído a William A. Fetter. Considerado como um dos primeiros a empregar o termo “computação gráfica”, ou “computer graphics”, William trabalhava para a Boeing no desenvolvimento de descrições ergonômicas para o uso das aeronaves. Foi em 1959, com a produção do “Landing Signal Officer (LSO)”, que William criou o chamado “First Man”, a primeira representação digital da figura humana. Usado para simular a visibilidade do cockpit de uma aeronave durante o pouso em um porta-aviões, este modelo era composto de diversas linhas que desenhavam as superfícies anatômicas de um corpo humano. Estas linhas eram capazes de realizar movimentos de corpo semelhantes aos dos pilotos, através de articulações nas regiões do pescoço, dos ombros, dos cotovelos e da pelvis. Esta representação da figura humana também é muitas vezes conhecida pelo termo “Boeing Man”.1 Ao atrair grande atenção da mídia, “First Man” foi sendo cada vez mais aprimorado. Com o desenvolvimento de maior precisão nas técnicas de antropometria, buscou-se refinar suas dimensões e proporções anatômicas. Além disso, foram adicionadas mais 12 articulações, o que possibilitou a primeira sincronização do movimento labial de um personagem durante a fala. Este modelo aprimorado daria origem ao então chamado de “Second Man”. Em 1970, através de uma parceria firmada entre a Boeing Company e a Computer Graphics Inc, este segundo modelo foi utilizado na produção do comercial considerado como o primeiro anúncio publicitário que fez uso da perspectiva da computação gráfica. Um comercial de televisão de 30 segundos, para a marca Norelco, que fabricava equipamentos eletrônicos como barbeadores.2 19


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co n t ex t o h i st ó r i co | d écada de 70

DÉCADA DE 70

FIG. 03 Imagens retiradas do filme “A Computer Animated Hand”, 1972.

3. PIXAR. “40 Years Old 3D Computer Graphics”,1972. Disponível em https:// vimeo.com/16292363. Acesso em: 25/02/15

A representação de Fetter, embora gerada por meio da computação gráfica, restringia-se às linhas de superfícies, ou seja, ainda não apresentava dimensões de volume. Durante o início da década de 70, muitas tecnologias de computação gráfica foram desenvolvidas a fim de se aprimorar a representação de superfícies em ambiente tridimensional. Técnicas de interpolação entre pontos, linhas e polígonos dariam origem ao que hoje denominamos como “shading”. Este termo diz respeito a algoritmos que determinam como a luz vai reagir aos objetos tridimensionais e como o volume deste objeto será representado a partir da suavização de sua superfície. Em 1972, foi criado o primeiro vídeo em que foram empregadas estas técnicas. O americano Edwin Catmull, até então futuro co-fundador da Pixar Animation Studios e atual presidente da Pixar and Walt Disney Animation Studios, em conjunto com seu colega Frederic Parke, outro grande nome pioneiro na história da computação gráfica, produziram durante a graduação na University of Utah um curta experimental chamado “A Computer Animated Hand”.3 Considerado um grande marco na história da computação gráfica, este vídeo apresenta uma versão animada do modelo digitalizado da mão esquerda de Catmull. A partir do molde físico do modelo real, foram desenhados 350 triângulos e polígonos em sua superfície e então este modelo foi digitalizado e recriado em ambiente virtual, de forma que esses polígonos deram origem às linhas da malha do objeto. O vídeo começa apresentando um panorama do modelo digital da mão em sua versão shaded, ou seja, em que foram aplicados os algoritmos de interpolação para que, através de sombreamento e suavização da superfície do objeto, fosse simulado seu volume. 21


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FIG. 04 Imagens retiradas do filme “A Computer Animated Hand”, do trecho “Computer Animated Faces”, 1972.

Segue-se então com um breve making of de parte do processo de reprodução do modelo. Mostra-se que foi feito um molde da mão real, depois polígonos foram desenhados em sua superfície, para que se pudesse digitalizá-lo. A informação obtida através disso foi transformada em linhas virtuais e assim surgiu a malha do objeto. O vídeo parte para uma breve animação da mão digital em sua versão wireframe, ou seja, versão em malha, somente com linhas, ainda sem superfície. A mão fecha e abre os dedos, enquanto rotaciona diante da câmera virtual. O filme segue apresentando mais duas sequências do modelo: uma sem smooth shading, ou seja, com superfície, porém sem a interpolação que suaviza o sombreamento entre os polígonos; e outra com smooth shading, em que ocorre essa interpolação dos polígonos. Mais algumas animações dos dedos são apresentadas e também uma breve visualização do interior do objeto da mão. Além disso, o vídeo segue com a animação de uma válvula de coração também recriada digitalmente e então se dá sequência ao trecho “Computer Animated Faces”. Nesta parte do filme, Frederic Parke digitalizou a face de sua esposa, utilizando as mesmas técnicas criadas por Catmull ao reproduzir sua mão esquerda. Contando com aproximadamente 250 polígonos, esta cabeça foi animada, de forma que cada quadro desta animação demorou cerca de 2 a 3 minutos para ser renderizado em um equipamento de computadores que valia, na época, cerca de $400.000.


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4. PARKE, Frederic. “Computer Generated Animation of Faces”. University of Utah, 1972. Disponível em: https://www. cs.drexel.edu/~david/Classes/Papers/p451parke.pdf Acesso 25/02/2015

FIG. 05 | 06 | 07 Imagens retiradas do filme “Faces”, produzido por Frederic Parke, 1974.

Semelhantemente ao vídeo de Catmull, o trecho começa com uma breve animação dos lábios da face, em sua versão de malha wireframe. Na sequência, visualiza-se a mesma animação labial, porém nesta, o rosto já se apresenta na versão shaded, com superfície e diferenciação de tons, de modo que se torna possível diferenciar a pele, dos cabelos, dos olhos, dos cílios e dos lábios. Esta foi a primeira cabeça humana reproduzida com volume e animada digitalmente. Uma descrição mais técnica e detalhada do processo de reprodução desta cabeça pode ser encontrada no paper “Computer Generated Animation of Faces” 4, publicado por Frederic Parke em 1972, pela University of Utah. Frederic Parke continuou com os avanços em sua pesquisa sobre a representação 3d da cabeça humana e, dois anos mais tarde, em 1974, lançou outro curta-metragem que denominou “Faces”. Neste curta ele conseguiu, pela primeira vez na história da computação gráfica, representar virtualmente a animação de uma grande variedade de emoções e expressões faciais humanas. Também introduziu a sincronização labial em modelo tridimensional, prática que se tornou hoje quase que indispensável para qualquer animação de um personagem 3d.

Em 1976, após serem descobertos pela indústria cinematográfica, estes dois curtas-metragem foram incorporados ao filme de ficção científica “Futureworld”, dirigido por Richard T. Heffron. Pela primeira vez na história do cinema, utilizaram-se imagens tridimensionais geradas por computador em um grande filme. A fim de trazer maior apelo futurista ao filme, os curtas eram apresentados em pequenos monitores em um laboratório, onde se programavam andróides. A ideia era demonstrar como estes robôs seriam produzidos primeiramente no computador, para então se tornarem reais. 23


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5. “CGI” ou “Computer-generated imagery”: imagens geradas por computador. 6. Fotogrametria é definida como a ciência aplicada a fim de se extrair medidas e dimensões através de informação fotográfica. 7. CROW, F. 1978, p.17.

FIG. 08 Etapa do processo de formação da cabeça virtual do ator Peter Fonda, no filme Futureworld, 1974.

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Além dos dois famosos curtas, uma outra aparição de um modelo 3d ocorre no filme Futureworld. Criado pela empresa de tecnologia “Information International, Inc.” ou “Triple-I”, como também era amplamente conhecida, um modelo 3d da cabeça do ator Peter Fonda também fez parte da primeira utilização de CGI5 em um filme de cinema. Os animadores digitais Gary Demos e John Whitney Jr foram os responsáveis pela produção da cabeça do androide digital. Na sequência de 40 segundos, um fino pedaço de papel aos poucos toma a forma da cabeça do ator. O modelo digital atinge um resultado realmente impressionante para a época. Seu processo de produção também foi bastante inovador: através de variadas técnicas de fotogrametria6, uma malha de referência de volume foi projetada na cabeça real do ator e então fotografias foram cuidadosamente registradas de maneira simultânea, em três posições diferentes. As informações das dimensões obtidas pelas fotografias foram transformadas em coordenadas 3d e através desta base, polígonos foram recriados manualmente em ambiente virtual. Pode-se considerar esta técnica como uma espécie primitiva do que hoje conhecemos como scan tridimensional.7


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DÉCADA DE 80

FIG. 09 - 16 Imagens retiradas do filme “Looker”, 1981.

No ano de 1981, a companhia Information International, Inc. continua a contribuir com produções que foram marcos na história da CGI, apresentou duas grandes produções que também contavam com representações virtuais da figura humana. A primeira delas foi o filme Looker, dirigido por Michael Crichton. No filme, a atriz Susan Dey tem seu corpo digitalizado em diversas cenas. Este foi considerado o primeiro personagem humano recriado inteiramente em 3d.

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8. Mocap ou Motion Capture: Processo tecnológico em que se gravam informações do movimento realizado por atores reais, a fim de transmiti-lo para a animação de personagens digitais.

A segunda grande produção foi o lançamento do curtametragem “Adam Powers, The Juggler”. Basicamente, um curta animado por computador, em que o personagem 3d de um mágico faz malabares com elementos geométricos básicos como a esfera, o cone e o cubo. Além de apresentar outras animações diversas, o curta foi o primeiro a contar com a tecnologia de mocap8 para a captura de movimentos da animação do personagem.

FIG. 17 Curta-metragem “Adam Powers, The Juggler”, Information Internetional, Inc., 1981.

É importante notar que em trabalhos como no “Handbook of Virtual Humans” editado por N. Magnenat-Thalmann e D. Thalmann (2004), descrevem-se diversos outros modelos de humanos virtuais que foram criados com fins de estudos de ergonomia para a indústria automotiva e aeroespacial. No entanto, não adentraremos em maiores detalhes, uma vez que em termos de desenvolvimento, estes modelos podem ser considerados menos complexos do que aqueles que já foram descritos até então na abordagem cronológica deste presente trabalho. Foram estes os modelos para estudos 26


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de ergonomia: “Anybody” (1986); “Anthropos”; “Apolin”; “Boeman” (Dooley, 1982); “Buford” (Dooley, 1982); “Combiman” (1978); “Crew Chief ”; Cyberman (Dooley, 1982); “Ergoman”; “ErgoShape”; “Franky”; “Jack”; “Mannequin”; “Mintac”; “Sammie (1972)”; “Tadaps”. Encontrase maior detalhamento de cada projeto no trabalho “Evaluation of Human Work: A Practical ergonomics methodology”, editado por E. Nigel Corlett e John R. Vilson (1995).

FIG. 18 Boeman (Doole, 1982); Buford (Dooley, 1982); Cyberman (Dooley, 1982); Sammie (1972).

FIG. 19 | 20 “Tron: Uma Odisséia Eletrônica”, Walt Disney Pictures,1982.

Em 1982, mais um grande avanço acontece na história da computação gráfica e seu uso na indústria do cinema. Foi lançado o filme de ficção-científica Tron, dirigido por Steven Lisberger e produzido pela Walt Disney Pictures, em parceria com a já especialista no ramo Triple I ou Information International, Inc. O filme é fortemente caracterizado pelo primeiro uso extensivo de CG em um longametragem de cinema. São mais de 20 minutos de imagens criadas inteiramente em computador. Além de todo um cenário digital feito para simular o ambiente físico de um programa de computador, o personagem antagonista é uma espécie de personalidade virtual do próprio programa, que é o Master Control Program, ou MCP. Basicamente, é representado por um rosto 3d, com algumas animações faciais.

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FIG. 21 | 22 | 23 Imagens de “Tony de Peltrie”, “Hard Woman” e “Money for Nothing”, respectivamente, 1985.

9. Morph effect: efeito de transição de imagens em que um objeto se transforma suavemente em outro.

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Alguns anos mais tarde, no ano de 1985, outro importante curta apresentou um personagem humano em 3d. Desta vez, em Tony de Peltrie, claramente se buscou um efeito de caricaturizar o personagem, a fim de enaltecer suas proporções emocionais, já que pela primeira vez se desenvolveram tantas expressões faciais em uma animação digital. Ainda neste mesmo ano, uma personagem mulher foi criada em computador para o videoclipe da música “Hard Woman”, do cantor Mick Jagger. Esta, juntamente com os personagens criados para o videoclipe da música “Money for Nothing”, do grupo Dire Straits, foram as primeiras utilizações de personagens digitais em vídeos de música.

Com o desenvolvimento da tecnologia, em 1986, o filme “Star Trek IV: The Voyage Home” apresentou a primeira sequência cinematográfica em que se fez uso do software Cyberware: um dos primeiros sistemas que se podia escanear pessoas e objetos, para então reproduzí-los como modelos 3d em um computador. No filme, as cabeças dos personagens foram escaneadas e apresentadas de maneira que se transformavam suavemente umas nas outras através de um efeito chamado morph9. Em 1987, um ano após o lançamento do seu primeiro curta “Luxo Jr”, a Pixar Animation Studios apresenta um novo trabalho, o curta-metragem “Red’s Dream”, em que o personagem cartoon de um palhaço 3d realiza malabares em cima de um monociclo. O personagem já conta com boa movimentação corporal além de algumas expressões faciais. Nesse mesmo ano, outro curta deu um grande passo na arte da representação da figura humana em 3d. Com direção e produção de Nadia Magnenat-Thalmann e Daniel Thanlmann, dois pioneiros na pesquisa sobre humanos virtuais, o curta “Rendezvous in Montreal” apresentou uma simulação virtual da personalidade


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FIG. 24 | 25 | 26 Imagens de “Star Trek IV: The Voyage Home”,1986; “Red’s Dream”, 1987; e “Rendez-vous in Montreal”, 1987, respectivamente.

Marilyn Monroe e do ator Humphrey Bogart. Em ambas as representações, os modelos virtuais já contavam com um bom nível de semelhança em relação aos atores reais. Além disso, também apresentavam animação que simulava a fala dos personagens, expressão de emoções e também movimentação geral, por exemplo, das mãos.

No ano de 1988, a Pixar Animation Studios lança outra animação 3d, o curta-metragem “Tin Toy”. Este foi o primeiro curta feito em computação gráfica a ganhar um prêmio na academia do Oscar, ganhou a estatueta de melhor curta animado, no festival do mesmo ano. Dirigido por John Lasseter, o filme conta um episódio na história de um bebê que interage com seus brinquedos, os quais se mostram assustados ao esperar a reação do seu dono. O vídeo foi uma grande fonte de inspiração para o futuro sucesso Toy Story. O modelo 3d do bebê possui uma abordagem realista, porém, ainda que para a época representasse um grande avanço tecnológico, este ainda se mostrava bastante assustador na maioria de suas aparições durante do vídeo.

FIG. 27 “Tin Toy”, Pixar Animation Studios, 1988.

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10. ROBERTSON, B. Mike, the Talking Head. Computer Graphics World, 1988.

FIG. 28 Imagens de “Mike The Talking Head”, 1988.

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Ainda em 1988, foi lançada a primeira “marionete digital” - como então fora chamado o modelo “Mike the talking head”. Considerado um enorme passo na animação digital, o modelo foi criado com o intuito de ser visualizado em tempo real, ou seja, era possível movimentar o modelo como se fosse uma marionete, e conforme ele se movimentava a imagem respondia com o modelo animado na tela, instantaneamente. Para a sua produção foram feitos scans da face de Mike Gribble, em diversas expressões, durante a execução de fonemas da fala. Esses modelos foram recriados digitalmente e, assim, eram sincronizados conforme o movimento determinado pelos dispositivos de animação. Estes dispositivos eram basicamente uma luva controladora e um sistema de reconhecimento de expressões faciais.10

Para o fim da década de 80, ainda contamos com dois curtas animados e um longa-metragem, que apresentam modelos de humanos virtuais. O vídeo “Synthespian: Nestor Sextone for President”, criado por Jeff Kleiser and Diana Walczak, em 1988, na KleiserWalczak Construction Company, que no ano seguinte, em 1989, também criaram o video-clipe da dançarina virtual “Dozo”, que canta e dança sua música “Don’t Touch me”.


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Ainda no final da década, foi lançado também em 1989 o filme de ficção científica “The Abyss”, ou “O segredo do Abismo”, título do lançamento brasileiro. O longa foi dirigido por James Cameron, futuro diretor de grandes sucessos que também marcaram história na utilização da computação gráfica no cinema, como “Titanic” e “Avatar”. No filme, foi criado um modelo fotorrealista de uma cabeça humana feita de água, que interagia com os personagens da trama. A produção deste modelo atrasou a data de lançamento do filme, tendo em vista que seu processo demorou um pouco mais do que seis meses para atingir o realismo desejado pelo diretor. No entanto, esta demora foi recompensada com uma estatueta vencedora do Oscar, de melhores efeitos visuais.

FIG. 30 “The Abyss”, 1989.

FIG. 29 Imagens de “Synthespian: Nestor Sextone for President”, 1988 e “Dozo Don’t Touch Me”, 1989, respectivamente.

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DÉCADA DE 90

FIG. 31 Imagens de “Robocop 2”, 1990 e de seu making of, respectivamente.

Durante os anos 90, podemos dizer que a tanto a tecnologia quanto as mais variadas técnicas de computação gráfica avançaram muito. O mundo deu início a um processo mais democrático no acesso ao computador pessoal e, desta forma, o interesse pela criação de imagens em computador também cresceu. Assim, podemos observar uma grande evolução nas criações gráficas, principalmente no seu uso em efeitos especiais para o cinema, como também o início de uma representação mais humanizada nos jogos de video-game da época. No cinema, logo no início da década, em 1990, foi lançado o longa-metragem “Robocop 2” como sendo o primeiro filme a usar gráficos gerados em tempo real. Fazendo uso da mesma tecnologia desenvolvida no projeto “Mike the talking head”, 1988, o ator Tom Noonan foi escaneado e o dados gerados pela scan foram usados para animar a cabeça do personagem Cain. Este personagem teria sido transformado, na história do filme, em um robô, no qual sua cabeça virtual em 3d aparece em um pequeno televisor acoplado ao robô. Essa cabeça foi animada como se fosse uma marionete digital, em que o modelo virtual responde em tempo real a movimentos capturados por dispositivos ligados ao ator real ou ao manipulador do modelo.


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FIG. 32 | 33 Imagens do andróide T1000 em “Terminator 2”, 1991 e de Meryl Streep em “Death Becomes Her”, 1991, respectivamente.

11. Animatronic: Bonecos ou fantoches mecanizados,

que

se

movimentam

através de mecanismos de robótica, a fim de parecerem ter vida.

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Logo no ano seguinte, em 1991, outro filme de sucesso foi lançado, o “Terminator 2: Judment Day", com direção de James Cameron, em que foi apresentada uma versão líquida do personagem T1000, um androide mimético, principal antagonista da trama. Desde “Young Sherlock Holmes” (1985) que não se utilizava um personagem CG em um filme com tamanha importância e tempo de aparição durante o longa. Ambos os filmes, tiveram seus efeitos especiais produzidos pela companhia Industrial Light & Magic (ILM). Em 1992, outro grande avanço foi dado na indústria cinematográfica com o filme de comédia “Death Becomes Her”, ou na versão brasileira, “A Morte lhe Cai Bem”, em que pela primeira vez foi utilizada a CG para se criar pele fotorrealista. No trecho, a personagem da atriz Meryl Streep consegue fazer peripécias com sua cabeça, como por exemplo rotacioná-la além do natural, esticar demais seu pescoço etc. A pele fotorrealista foi recriada digitalmente para se mesclar esses movimentos não naturais de uma pessoa.

Embora não contenha nenhum personagem humano criado em 3d, no ano de 1993, o filme “Jurassic Park” foi um verdadeiro ponto de virada para a história do CG e seu uso na indústria do cinema. O longa-metragem dirigido por Steven Spielberg contou com a produção de efeitos visuais de duas grandes produtoras, a Industrial Light & Magic, responsável pela computação gráfica, e a Stan Winston Studios, que criou os animatronics do filme. O filme deu vida aos animais pré-históricos, realizando para isso a reconstituição virtual dos dinossauros, e em algumas cenas, a utilização dos robôs animatronics11. O que em um primeiro momento foi planejado por Spielberg em se realizar através de stop-motion, mostrou-se impossível após alguns testes. Foi então que a computação gráfica triunfou trazendo resultados incrivelmente realistas.


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12. Fur: A palavra de origem inglesa fur é utilizada como um termo em computação gráfica para designar todo tipo de pêlos e penugem criados em computador. Geralmente é fruto de um cálculo extremamente complexo e demorado.

13. SIGGRAPH: É o nome da maior e mais importante conferência mundial de

computação

gráfica.

Convocada

pela organização ACM SIGGRAPH, a conferência acontece anualmente desde sua primeira vez, em 1974.

14.

ALEXANDER;

ROGERS;

Em seguida, diversos outros filmes de bilheteria também passaram a aderir de maneira muito mais intensa o uso da computação gráfica para resolver problemas de efeitos especiais. O avanço tecnológico possibilitou também o lançamento do filme “The Flintstones”, em 1994, no qual o primeiro fur12criado digitalmente foi utilizado em um filme de cinema. Já em 1995, outros dois importantes títulos foram lançados: “Casper”, em que o fantasminha semi-transparente foi o primeiro personagem principal de filme de cinema feito inteiramente em CG; e o primeiro filme da série “Toy Story”, produzido pela Pixar Animation Studios. Durante o final da década de 90, podemos dizer que a computação gráfica estaria atingindo o seu primeiro grande auge com relação ao alcance de realismo. Filmes passaram a integrar cada vez mais a CG na de produção de efeitos visuais, e nesta área, quanto mais imperceptível for este processo, maior é a credibilidade de realismo atribuída. Em 1997, contamos com um dos maiores marcos na história dos efeitos visuais, o filme Titanic. No ano de 1999, um dos grandes mestres da indústria de efeitos visuais, Dr. Mark Sagar lançou um projeto que se tornaria um verdadeiro ponto de referência para a representação realista de humanos digitais para a época. O projeto chamado “The Jester” foi apresentado pela primeira vez na SIGGRAPH 9913 e foi considerado um ponto alto para o evento com a tecnologia mais promissora até então. O filme mostra uma versão digital da atriz Jessica Vallot, com um chapéu de bobo da corte, lendo um poema para o espectador. A face da atriz foi escaneada em três dimensões através de um processo a laser e sua versão digital foi texturizada através da mescla de diversas fotografias da atriz, meticulosamente editadas. Seus movimentos faciais foram capturados através da tecnologia de motion capture, em que pontos desenhados na face da atriz serviram como base para a animação facial de sua versão digital. O projeto foi depois estendido para se criar uma versão velha da atriz, na animação que foi chamada “Young at Heart”.14

LAMBETH;CHIANG; DEBEVEC, 2009

FIG. 34 Imagens de “The Jester”, 1999, LifeFX.

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FIG. 35 Imagens de “Fight Club”, 1999.

Em seguida, ainda em 1999, foi lançado o filme “Fight Club”, dirigido por David Fincher, em que pela primeira vez em um longa-metragem de cinema se apresentou uma cena com personagens humanos fotorrealistas criados inteiramente em CG, interagindo entre si, de maneira bastante crível. Na cena em que os personagens de Marla e Tyler realizam uma fantasia sexual, nada é real, tudo o que acontece foi criado em CG. Este também foi o primeiro filme a utilizar a técnica de fotogrametria para recriar um ambiente em 3d, no caso, o ambiente inteiro da cena do filme em que a cozinha explode foi escaneada com o uso desta técnica e recriada em computador para que se reproduzisse uma explosão controlada.

Outra cena que só se tornou possível em “Fight Club” devido a sua produção em CG, acontece no final do filme, em que o personagem principal e narrador de toda a trama, interpretado pelo ator Edward Norton, numa tentativa mal sucedida de suicídio, coloca uma arma na sua própria boca e atira. Após diversas tentativas de produzir a cena utilizando cabeças de silicone, a companhia francesa “BUF Compagnie”, responsável pelos efeitos visuais, juntamente com o diretor David Fincher, decidiram reproduzir a cena inteira em CG. Escanearam a cabeça do ator em quatro ângulos diferentes e recriaram a animação da bala ricocheteando em um plano de câmera lenta. A cena conta com um incrível nível de realismo.

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FIG. 36 Imagens de “Fight Club”, 1999.

Ainda no ano de 1999, outros grandes filmes que marcam presença na história do CG foram lançados. Foi o caso de “The Matrix”, com o desenvolvimento da tecnologia que possibilitou o efeito bullet time, em que a câmera rotaciona em slow motion o personagem principal, a fim de transmitir a sensação de que o tempo parou ou teve sua velocidade diminuída. Também os filmes “The Mummy”, produzido pela Universal Pictures, e “Star Wars Episode I: The Phantom Menace”, produzido pela Lucasfilm, contribuíram enormemente com seus efeitos visuais para a história da computação gráfica, trazendo diferentes personagens e ambientes criados inteiramente em computador.

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ANOS 2000 E OS DIAS ATUAIS Com a entrada do século XXI, o uso de efeitos especiais em meio às filmagens se intensificou gradativamente. A forma como se percebiam estes artifícios deixava de ser uma distração e estes começaram a se integrar melhor em cena. Isto deu início a um processo de mudança nos paradigmas em relação aos humanos digitais. O que até então se restringia a produções que seriam percebidas como fruto de um efeito digital, agora se transformava em algo que propunha substituir atores reais, assumindo papéis e interagindo com o ambiente. Assim, na sequência desta apresentação, concentrou-se nas inovações de cada produção isoladamente, de forma que, entre os grandes marcos na história da computação gráfica, restringiu-se apenas àqueles em que houvesse representações da figura humana. 2001 | Final Fantasy The Spirits Within FIG. 37 Imagem do filme de “Final Fantasy: The Spirits Within”, 2001.

Dirigido por Hironobu Sakaguchi e lançado em 2001, pela Columbia Pictures, “Final Fantasy The Spirits Within” é um filme de ficção científica baseado em uma série de RPG homônima. É considerado por muitos como o primeiro filme de personagens e cenários fotorrealistas inteiramente produzidos em CGI. Ainda que tenha sido um enorme passo para a história do cinema e dos efeitos visuais, este filme foi um verdadeiro fracasso nas bilheterias. O filme contou com grandes avanços na representação da pele humana, de cabelos e também no movimento realizado pelos personagens. No entanto, o resultado ainda não foi suficientemente convencedor, os olhos dos personagens tinham aspecto de olhos sem vida, os cabelos se movimentam exageradamente e a animação facial não era compatível com o que estamos habituados na realidade. Estes e outros fatores provocaram uma percepção bastante negativa para o longa. O filme se tornou um grande caso 39


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15. GOLDER, 2011.

para estudo de atratividade em personagens de humanos virtuais realistas. Foi a primeira vez em que uma enorme quantidade de pessoas se deparou com o fenômeno que será discutido neste trabalho, o Uncanny Valley.15 2002 | The Lord of the Rings: The Two Towers

16. Live-action: Termo utilizado no

Ainda que não tenha no filme nenhuma cena em que se utilizou CGI para representar um humano virtual, o filme “The Lord of the Rings: The Two Towers” também foi um grande divisor de águas na história da computação gráfica. Lançado em 2002, com direção de Peter Jackson e produção de efeitos especiais realizada pela Weta Digital, o longa-metragem apresentou o personagem Gollum, totalmente remodelado, utilizando o mais complexo sistema de captura de movimento, o sistema chamado de “Performance capture”, em que foram capturaras e reproduzidas as atuações do ator Andy Sirkis. Gollum foi o primeiro personagem animado através de motion-capture que interagiu diretamente com outros atores filmados em live-action16. 17

cinema, teatro e televisão para definir os trabalhos que são realizados por atores

2003 | Animatrix: Final Flight of the Osiris

reais, ao contrário das animações. 17. SEMLYEN, 2010.

FIG. 38 Imagens de “Animatrix: Final Flight of Osiris”, 2003.

Em 2003, a mesma equipe responsável pela produção de “Final Fantasy: The Spirits Within” lançou um dos contos da coleção de 9 curtas-metragem chamada Animatrix. O conto “Final Flight of the Osiris”, que se passa no mundo de Matrix, o mesmo do longa-metragem, apresenta diversos personagens humanos criados totalmente em CG, assim como todo o ambiente em que se passa a história. Os personagens possuem um alto nível de detalhes, em cenas de close up é possível se ver até mesmo os vincos e poros da pele. No entanto, ainda assim o filme está longe de ser convincente como uma produção verdadeiramente realista. Pode-se observar um grande exagero na representação do brilho no material de pele de alguns modelos, assim como diversas outras incoerências com a natureza humana, o que mantém essa produção em uma estética quase que cartoonesca.


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2003: Hulk

FIG. 39 | 40 | 41 “Hulk”, 2003; “The Incredible Hulk”(2008); “Avengers”, 2012, respectivamente.

Ainda no ano de 2003, foi lançada a primeira versão do personagem Hulk criada inteiramente em CGI. O personagem verde foi recriado novamente em 2008, no filme “The Incredible Hulk” e, na sua versão mais realista, em 2012, no filme “Avengers”, no qual foi utilizado um sistema inteiramente novo para captura de performace facial do ator Mark Ruffalo, que será melhor detalhado no item dedicado ao filme “Avengers” deste trabalho.

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2004 | Spiderman 2

18. SEYMOUR, 2013.

FIG. 42 Imagens da recriação digital do ator Alfred Molina (Doctor Ock) em ”Spiderman 2”(2003). A versão digital à esquerda na imagem e o ator real à direita.

Paul Debevec e sua pesquisa em torno do comportamento da luz em faces humanas realizada em 2002 atraíram a atenção do supervisor de efeitos visuais da Sony Pictures Imageworks , Scott Stokdyk, que acabou convidando o pesquisador para recriar digitalmente de maneira fotorrealista os atores Alfred Molina e Tobey Maguire para o filme Spider-man 2. Através da segunda versão da estrutura de iluminação criada por Debevec e seu grupo de pesquisa, o Light Stage 2, a equipe conseguiu reproduzir fielmente o rosto dos atores, para que estes fossem então re-iluminados e integrados em cena, alcançando assim um enorme nível de realismo no longa-metragem que foi lançado em 2004. A tecnologia foi utilizada em aproximadamente 40 cenas e ajudou o filme a ganhar o Oscar de Melhores Efeitos Visuais em 2004, dando assim um enorme passo na caminhada em direção à representação realista da figura humana.18


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2004 | The Polar Express

19. CHILD, 2007.

FIG. 43 Imagens de “The Polar Express”, 2004.

The Polar Express, ou “O Expresso Polar”, lançado também em 2004, foi o primeiro filme em que se utilizou a tecnologia de motion capture em todos os personagens da trama. Sua proposta era ser um filme natalino, extremamente cativante, e que apresentasse uma estética mais realista dos seus personagens, a fim de produzir maior afinidade com o público. No entanto, o longa-metragem foi uma verdadeira desgraça nas bilheterias e, sobretudo, na crítica. Ao produzirem personagens mais fiéis a seres humanos, porém não perfeitamente realistas, o filme estancou em um meio termo. Diferentemente do que se esperava disso, a percepção desta estética foi extremamente negativa. Essa tentativa de reproduzir um certo realismo exaltou ainda mais as diferenças nos aspectos que trariam naturalidade e, assim, a animação se mostrou quase que assustadora, em certos momentos. Seu nome “The Polar Express” chegou até mesmo a ser fruto de piada, sendo chamado de “The Zombie Express”, pois o público relacionava a ausência de vida nos personagens como uma grande animação de zumbis ou corpos mortos. Apesar de usarem a tecnologia motion capture, muitas das expressões faciais e até mesmo a movimentação corporal dos personagens não foram convincentes e, portanto, chamaram ainda mais a atenção para suas incoerências. A principal queixa na percepção dos personagens foi a sensação de “olhar morto, sem vida”. Essa dificuldade na representação realista, ao invés de aumentar o nível de atratividade da trama, ocasionou numa grande repulsa, característica do fenômeno do uncanny valley. Hoje o filme é tomado quase como um símbolo para o fenômeno. 19

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2006 | Pirates of Caribean 2 Em 2006, outra grande contribuição para a história do desenvolvimento de personagens em CGI surgiu com a produção do vilão Davy Jones para sua primeira aparição em “Pirates of the Caribbean: Dead Man’s Chest”. O personagem apresentou um realismo impressionante, mesmo não se tratando exatamente de uma criatura humana. Ele foi enormemente elogiado e até mesmo nomeado na época pela revista americana Entertainment Weekly como o personagem criado em computador mais convincente da história do Cinema. Extremamente atentos à possibilidade do personagem cair no fenômeno do Uncanny Valley, cada mínimo movimento ou expressão dos olhos do personagem foi fruto de muito estudo e análise de referências humanas.

FIG. 44 Davy Jones, personagem do filme “Pirates of the Caribbean: Dead Man’s Chest”, 2006.

20. “Marlon Brando as Jor-El”: Maiores detalhes do processo de reprodução do falecido ator Marlon

2006 | Superman Returns

Brando em https://www.youtube.com/ watch?v=kMXWCeQJ7l4.

FIG. 45 Imagens do processo de reprodução do ator Marlon Brando e sua atuação no filme Superman, 1978 e para a breve reaparição em “Superman Returns”, 2006.

No ano de 2006 também foi lançado o filme “Superman Returns” em que a computação gráfica teve um papel inovador, reviveram o ator Marlon Brando com sua atuação no papel de Jor-El, o pai do herói super-homem, na versão do filme “Superman” de 1978. Através de diversas técnicas de modelagem e de projeção de texturas, foi possível recriar digitalmente o rosto do ator e reproduzir sua atuação em outros ângulos no contexto do novo filme.20


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2007 | Beowulf

FIG. 46 Imagens de “Beowulf ” (2007).

Do mesmo criador de “The Polar Express”, em 2007 foi lançado o filme “Beowulf ”. Nos mesmos moldes do seu antecessor, o filme buscou apresentar uma estética realista, porém também sofreu com as deficiências deste tipo de representação e se tornou outro grande destaque no estudo do fenômeno Uncanny Valley. Mais uma vez evidente durante o filme, a movimentação facial e corporal dos personagens não fez jus ao realismo de suas criações. Ainda que o filme tenha um visual muito bem produzido, o termo “olhar morto” marcou boa parte de sua crítica. Mesmo assim, o diretor Robert Zemeckis continua a realizar filmes com a mesma estética, sempre sendo alvo de críticas a respeito do fenômeno Uncanny Valley em seus trabalhos. Ele também dirigiu “A Christmas Carol”, que estreou em 2009, e “Mars Needs Moms”, em 2011, ambos com a mesma estética “cartoon-realista”.

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2008 | The Digital Emily Project

21. “The Digital Emily: Achieving a Photoreal Digital Actor” - http://gl.ict.usc. edu/Research/digitalemily/ acesso 05/04/2015

22. PLANTEC, 2008. (tradução nossa) É

absolutamente

impressionante

-

incrível. Eu sou um dos críticos mais duros de captura rosto, e até mesmo eu tenho que admitir, esses caras acertaram em cheio. Esta é a primeira sequência de humanos virtuais animados que escapa completamente de todos os meus alertas subconscientes. Eu percebo Emily como uma pessoa. Toda a sutileza está lá. Isto não é uma propaganda, é a coisa real... Eu pronuncio oficialmente que a Image Metrics finalmente construiu uma ponte sobre o Uncanny Valley e nos trouxe para o outro lado.

FIG. 47 Imagens de “The Digital Emily Project” (2008).

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Começando em 2007 com a ideia de demonstrar uma nova tecnologia de animação facial, o projeto “The Digital Emily: Achieving a Photoreal Digital Actor” 21 apresentado na SIGGRAPH de 2008, em colaboração com o grupo Image Metrics e o USC ICT Graphics Lab, foi um enorme passo na caminhada para se alcançar a reprodução fotorrealista de um ator digital. A ideia do grupo de pesquisa comandado por Paul Debevec era filmar uma atriz, modelar sua face e então reconstruir seus movimentos e expressões faciais em ambiente digital de maneira que fosse o mais fiel possível à performance original que foi filmada da atriz. Foram feitos múltiplos scans faciais da atriz Emily O’Brien, durante sua atuação em uma espécie de entrevista. A partir destes scans, sua face e animação facial foram totalmente reconstruídas e mescladas com o vídeo original. O resultado foi impressionante e marcou mais um grandioso avanço na reprodução digital de seres humanos. O trabalho foi considerado como “finalmente uma ponte que nos trouxe ao outro lado do Uncanny Valley”, por Peter Plantec, artista digital, escritor e grande pesquisador sobre a temática de humanos virtuais: It is absolutely awesome - amazing. I’m one of the toughest critics of face capture, and even I have to admit, these guys have nailed it. This is the first virtual human animated sequence that completely bypasses all my subconscious warnings. I get the feeling of Emily as a person. All the subtlety is there. This is no hype job, it’s the real thing... I officially pronounce that Image Metrics has finally built a bridge across the Uncanny Valley and brought us to the other side. 22


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2008 | The Curious Case of Benjamin Button

23. Light Stage 5 É a quinta versão da tecnologia desenvolvida por Paul Debevec e seu grupo de pesquisa na USC ICT, com colaboração da Image Metrics. É uma estrutura de iluminação e captura de reflectância, textura e movimentação, com a qual se tornou possível atingir níveis ultra-realistas de escaneamento e reprodução digital. A quinta versão é formada por um globo com 152 fontes luminosas de LEDs, capazes de reproduzir qualquer tipo de iluminação ambiente, que envolvem o ator ou objeto a ser capturado. Todas as fontes de luz, assim como a câmera de captura, possuem filtros polarizadores, que tornam o sistema capaz de isolar a informação de brilho, cor e superfície da pessoa ou objeto capturado.

FIG. 48 Imagens de “The Curious Case of Benjamin Button”, 2008.

Em 2008, foi lançado o filme “The Curious Case of Benjamin Button”, ou “O Curioso Caso de Benjamin Button”, em que se contou a história de um personagem que já nasceu velho e com o passar do tempo, ao invés de envelhecer ainda mais, ele se tornava jovem. Pode-se dizer que, pela primeira vez na história do cinema, ultrapassou-se com sucesso o fenômeno do Uncanny Valley em um longa-metragem. A ideia do filme foi reproduzir uma versão idosa do ator Brad Pitt, que contaria a vida do personagem durante sua velhice precoce, durante os primeiros 52 minutos de filme. Para isso, ocorreram diversas tentativas de reprodução do ator em moldes de silicone, mas a tecnologia de computação gráfica foi o caminho escolhido, uma vez que se mostrou atingir resultados incríveis. Em colaboração com o mesmo grupo de Paul Debevec, responsável pelos maiores avanços tecnológicos na área da representação humana em ambiente digital, foram realizados scans tridimensionais que digitalizaram três versões de maquetes que reproduziam a face de Brad Pitt em versões envelhecidas do ator, com 80, 70 e 60 anos, aproximadamente em cada maquete. A partir desses scans, que só foram possíveis através da tecnologia da ferramenta Light Stage 5 23 desenvolvida por Debevec e seu grupo, criaram a versão digital do ator e, juntamente com a captação minuciosa de toda a expressão facial durante sua atuação no set de filmagem, animaram magistralmente o personagem envelhecido, dando vida ao modelo digital. O filme foi reconhecido com três estatuetas da academia do Oscar, entre elas a de Melhores Efeitos Visuais, na cerimônia do ano 2009.

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2009 | The Social Network

FIG. 50 Imagens de “The Social Network”, 2009.

Contando com a mesma tecnologia de escaneamento digital desenvolvida por Paul Debevec e seu grupo de pesquisas, em 2009 foi lançado o filme “The Social Network”, que utilizou o sistema Light Stage 3 e tornou possível a reprodução digital do ator Armie Hammer na criação do personagem que é um gêmeo do ator. Na cena em questão, o ator interage remando junto com seu irmão gêmeo criado digitalmente. Para isso, o ator teve seu rosto capturado, reproduzido em CG e re-inserido na sequência, com técnicas de composição.

2009 | Avatar

FIG. 49 Imagens de “The Curious Case of Benjamin Button”, 2008.

No ano seguinte, em 2009, mais uma vez quebrando barreiras em se reproduzir realidades inexistentes, o diretor James Cameron e a Weta Digital, com o desenvolvimento de uma nova tecnologia de captura de movimento e performance dos atores, lançaram o filme “Avatar”. Mais um histórico sucesso de bilheterias, o filme venceu dificuldades na representação virtual de emoções e expressões faciais em seus personagens de forma nunca vista antes. Isto foi fruto de um intenso trabalho da produção, que desenvolveu um “sistema de captura de performance facial baseada na imagem”. Neste sistema, utiliza-se uma câmera posicionada na cabeça para gravar com precisão as mínimas nuances do desempenho facial dos atores, durante suas atuações no set de filmagem. Essa informação é transformada em uma base para a animação dos personagens virtuais, que é refinada com referência nas mesmas filmagens da câmera embutida. O processo permitiu uma enorme coerência do que foi capturado na realidade e, portanto, fez com que os personagens 49


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produzissem a empatia desejada pelo diretor, parecendo personagens realmente vivos e com sentimento, mesmo que fisicamente diferentes de seres humanos. Toda essa complexidade também foi reconhecida com diversos prêmios, entre eles o Oscar de Melhores Efeitos Visuais de 2010.

2010 | TRON: Legacy FIG. 51 | 52 Imagens do making of do filme “Avatar”, 2009.

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Em 2010, o filme Tron: Legacy expandiu ainda um pouco mais o trabalho da Digital Domain de face replacement realizado no filme “The Curious Case of Benjamin Button”. A fim de se trazer ao presente uma versão mais jovem do ator Jeff Bridges, a companhia


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FIG. 53 Imagens do processo de reprodução do ator Jeff Bridges, em uma versão jovem; a versão jovem reproduzida; e o ator real, durante o filme , 2010.

produtora de efeitos especiais recriou uma versão digital, que começou inicialmente com um scan 3d do ator e foi modificada com base em diversas fotos de referência do ator quando ele tinha por volta de 30 anos. Este modelo foi animado conforme a performance de Bridges, que foi capturada durante sua atuação no set de filmagem através de quatro câmeras acopladas à sua cabeça. Este modelo virtual animado foi totalmente re-iluminado, renderizado e composto à gravação original, para interagir com o ator real. O resultado se mostrou bastante impressionante, contendo apenas algumas pequenas sequências em que um olhar mais atento pode se sentir desconfortável com tal inserção digital, já que no geral, o efeito pareceu bastante convincente ao público.

2011 | The Adventures of Tintin: Secret of the Unicorn

24. ROSE, 2011.

No ano de 2011, novamente Steven Spielberg apresenta uma grande produção com a estréia do filme “The Adventures of Tintin: The Secret of the Unicorn”. No entanto, desta vez a recepção do filme talvez não tenha sido tão boa quanto se esperava. Spielberg decidiu reproduzir a história do famoso personagem dos quadrinhos e do desenho animado em uma versão 3d. O grande problema foi que o aclamado diretor dos efeitos especiais de Jurassic Park e Indiana Jones optou por reproduzir a mesma estética que mistura cartoon e realismo utilizada nos filmes “Polar Express”, “Beowulf ” e “Mars Needs Moms”. Mais uma vez, seus personagens passaram a confundir o público, e causaram a famosa sensação de estranheza descrita pelo fenômeno do Uncanny Valley. Assim como disse o jornal britanico The Guardian24, “os personagens do filme parecem muito humanos e ao mesmo tempo nada 51


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humanos, seus olhos possuem um aspecto vítreo e de vazio, ao invés de representarem vida animada.”. Ainda que o filme surpreenda em um aspecto técnico, sua atratividade certamente foi prejudicada com essa escolha.

2012 | Digital IRA FIG. 54 Imagens do filme “The Adventures of Tintin: The Secret of the Unicorn”, 2011.

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Com o avanço da tecnologia de hardware, em 2012, o grupo de pesquisa comandado por Paul Debevec no USC ICT realizou uma parceria com a companhia produtora de jogos para Games Activision e lançaram o projeto “Digital Ira”. O projeto consiste em se criar pela primeira vez um ator digital fotorrealista que fosse renderizado em tempo real, ou seja, que pudesse gerar expressões, falar e se movimentar ao mesmo tempo em que lhe fora dado estes comandos, sem que fosse preciso esperar um lento processamento de dados para reproduzir sua imagem. Lembrando que para isso, o projeto tem que ser muito mais otimizado e contar com diversas tecnologias que simulam o comportamento de materiais, como a pele. Estas tecnologias restringem muito o cálculo realizado e assim, dificultam ainda mais o progresso de se atingir uma imagem fotorrealista. Esse projeto representou um enorme salto na direção da captura e renderização de expressões faciais em tempo real, e da mesma forma, deu uma amostra do nível de realismo que será possível de se esperar nos personagens dos jogos que virão pela frente. Mesmo que o personagem criado ainda crie certa estranheza no olhar, o nível de credibilidade atingido com suas expressões faciais não foi nunca antes atingido por outra produção de personagem


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em tempo real. Toda a gama de movimentos realizada pelo rosto digital foi capturada pela tecnologia do Light Stage desenvolvida por Debevec e seu grupo, que a cada novo projeto vem sendo mais aprimorada.

2012 | The Avengers FIG. 55 Imagens do projeto “The Digital Ira”, 2012.

Outra reprodução da figura humana que contribuiu com enorme avanço na história da computação gráfica aconteceu com o lançamento do filme “The Avengers”, que teve o título brasileiro “Os Vingadores”, no ano de 2012. Foi o caso do processo de produção do personagem “Hulk”, no qual a ideia do diretor Josh Whedon e de sua equipe começou um pouco diferente do que nas outras versões do grande monstro verde. Desta vez, esperava-se que o personagem mantivesse o máximo possível das características físicas, também chamadas de likeness, do ator Mark Ruffalo, o qual teria seu personagem transformado no “Hulk” através da mutação que ocorre em sua história. Para conseguirem tal efeito, optaram por primeiramente reproduzir a cabeça do ator o mais fiel possível, para só então dar início à transformação do rosto na versão do personagem verde. Criou-se também um enorme acervo de expressões faciais do ator, que serviram como base para se produzir toda a animação facial do personagem “Hulk”. Desta maneira, a equipe conseguiu criar a versão mais convincente do personagem, já que foi praticamente uma enorme adaptação de uma pessoa real e não apenas uma criação, que parte do zero, no que diz respeito ao nível de fidelidade à um ser humano. 53


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2014 | Maleficent FIG. 56 Imagens de comparação do modelo virtual de Mark Ruffalo e do ator real, para o processo de produção do personagem Hulk no filme “The Avengers”, 2012.

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Em 2014, a Walt Disney Pictures resolveu recriar a história da animação “A Bela Adormecida” de 1959, em uma versão retratada a partir da perspectiva da personagem antagonista, eles produziram o filme “Maleficent”, ou “Malévola”, no título brasileiro. Seguindo a mesma linha de raciocínio utilizada no processo de criação do personagem Hulk, em “The Avengers”, os produtores da Digital Domain, companhia responsável pelos efeitos visuais, recriaram em CGI além do rosto da personagem principal, representada por Angelina Jolie, para a inserção digital em algumas cenas de transição, mais três personagens coadjuvantes da trama que são as fadas “Fauna”, “Flora” e a “Primavera”. Para dar um aspecto cativante para as personagens, no entanto manter o realismo do filme, o diretor Robert Stromberg, em conjunto com sua equipe de efeitos especiais optaram por primeiramente recriar no computador o rosto das atrizes que interpretaram as personagens e então partirem para a animação de uma versão estilizada em miniatura das pequenas fadas, com base na captura facial da performance das atrizes no set. O processo de produção, ao ser dividido em mais etapas,


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FIG. 57 | 58 Imagens do processo de criação das fadas no filme “Maleficent”, 2014.

possibilitou maior atenção a cada fase, pois uma vez que se parte de uma base extremamente realista, que é proveniente do escaneamento digital do rosto das atrizes, é possível se atentar ainda mais a outros detalhes como ajustes na animação facial, na vivacidade dos olhos, nas inúmeras nuances e sutilidades de cada movimento gerado em uma expressão, assim como outros variados parâmetros que permitiram dar vida às personagens digitais.

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2015 | Wikihuman + Digital Human League

25. Chaos Group Lab: Área especial da Chaos Group dedicada a pesquisas no avanço da filmagem digital, realidade virtual e representação de humanos digitais.

Fundada

em

1997,

Chaos

Group é a empresa desenvolvedora do software de renderização Vray, o mais utilizado na indústria de efeitos visuais. Foi responsável pela criação de diversas soluções de physically-based rendering e de softwares de simulação digital para artistas e designers.

26. VFX: Abreviação de visual effects ou efeitos visuais.

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Com a temática da criação de humanos digitais gerando cada vez mais interesse - seja para a indústria cinematográfica ou para a indústria de games -, em 2015 o grupo da Chaos Group Lab 25 decidiu reunir os maiores especialistas da área acadêmica e da indústria do VFX 26 para confrontarem um enorme desafio: atingir o nível de se produzir “Believable Digital Humans”, ou em sua tradução, humanos digitais acreditáveis, que possuam credibilidade. Criar humanos digitais sempre foi o maior desafio da história da computação gráfica. Fazer com que eles se movam e que se pareçam verdadeiramente humanos orgânicos tem sido um importante objetivo das mais variadas indústrias. No entanto, o fenômeno do Uncanny Valley, que será foco da discussão deste trabalho, tem se tornado um poderoso caminho para descrever a reação negativa que as pessoas sentem quando se deparam a uma criação “quase humana”, mas ainda não tão humana o suficiente. Mesmo que algumas produções cinematográficas tenham reproduzido a figura humana com tamanha fidelidade e credibilidade do público, alguns estudiosos ainda acreditam que talvez o fenômeno nunca tenha sido ultrapassado. Desta forma, um dos principais problemas em se recriar humanos em ambiente digital é que a resposta emocional resultante do fenômeno do Uncanny Valley costuma ser tão forte que isto acaba se tornando o maior empecilho no seu processo de criação. Cria-se uma barreira que impede o artista ou o produtor de enxergar aquela representação de uma maneira racional e assim saber distinguir exatamente o que está errado, ainda que se saiba que algo esteja incoerente com a natureza humana. Diante deste desafio, Christopher Nichols, o diretor criativo da Chaos Group, uniu-se ao pesquisador Paul Debevec, diretor visual da USC Institute for Creative Technologies (ICT), com a ideia de formarem um grupo que teria como foco exatamente a produção de humanos digitais críveis. Incluíram ainda no grupo diversos outros participantes do ICT, especialistas da indústria VFX - como por exemplo o ganhador do Oscar Steve Preeg (The Curious Case of Benjamin Button)-, pesquisadores científicos do assunto, como Angela Tinwell autora do livro “The Uncanny Valley in Games and Animation”-, vários desenvolvedores e programadores de software, e também alguns dos melhores artistas digitais do mundo, na área


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27. Open-source: Código-aberto. Diz respeito à softwares de livre distribuição e com códigos-fonte disponíveis para livre edição.

FIG. 59 Busto do pesquisador Paul Debevec reconstruído pela artista Matieu Aerni, na Digital Human League.

da produção de personagens humanos - como Lukas Hajka e Mathieu Aerni. Aliando assim equilibradamente profissionais das mais diversas áreas do conhecimento que envolvem a produção de humanos digitais, foi formada a chamada “The Digital Human League”. Assim, partindo de uma motivação tanto artística quanto científica, o grupo deu início a um projeto chamado “The Wikihuman Project”. A grande missão deste projeto seria criar uma solução open-souce 27, capaz de quebrar as barreiras de estranheza na percepção de humanos digitais, característica básica do fenômeno do Uncanny Valley. Atualmente o grupo persegue explorando os mais variados aspectos que fazem distinguir um humano real de um falso, ou mesmo de um humano morto. Descobrir os meandros de detalhes, na aparência anatômica ou na movimentação facial da criatura, para que então se descubra o que define a aparência de um ser humano com vida. Já que as maiores queixas geradas a partir da percepção de reproduções humanas dizem respeito exatamente a esta ausência de vida, com aparência de zumbi. O grupo até o presente momento apresentou dois bustos digitais extremamente realistas. Um primeiro, produzido a partir de informações geradas no escaneamento tridimensional do próprio pesquisador Paul Debevec, e um segundo, chamado “Digital Emily 2”, criado a partir de informações geradas pelo scan da atriz Emily O’Brien, a mesma do primeiro grande projeto no ramo. Estes dados foram artisticamente interpretados pelos artistas das liga, que desenvolveram as primeiras tentativas desta reprodução digital.

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FIG. 60 Busto “Digital Emily 2”, reconstruído digitalmente na Digital Human League.

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UNCANNY VALLEY

O fenômeno do Uncanny Valley, introduzido primeiramente por Masahiro Mori, em 1970, deriva de uma sensação que já havia sido objeto de estudo na Psicologia durante o início do século XX. Esta sensação foi analisada por grandes pensadores, como Sigmund Freud (1919) e Ernst Jentsch (1906). Este capítulo terá início justamente com a exposição das ideias obtidas por ambos os pensadores, sobre a psicologia do uncanny, ou em sua tradução do termo, a psicologia do estranho. Havendo o leitor compreendido o conceito, segue-se com a contextualização da proposta feita por Masahiro Mori, na qual ele introduz a hipótese do fenômeno Uncanny Valley. Este termo surgiu no âmbito da robótica, no entanto se aplica a diversas outras áreas de reprodução da figura humana, seja em ambiente digital ou real. Em seguida, o trabalho tem continuidade na discussão do aglomerado teórico elaborado por Joshua Redstone no ano de 2013, com o trabalho Beyond the Uncanny Valley: A Theory of Eeriness for Android Science. O entendimento dos conceitos de Uncanny e sua aplicação no Uncanny Valley é de extrema importância para o que será apresentado no capítulo três deste trabalho, pois a partir desta fundamentação teórica, será proposta uma categorização dos aspectos determinantes para a ocorrência do Uncanny Valley na produção 3d de personagens humanos.


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CONCEITO DE UNCANNY1

1. Ao se considerar que o leitor deste trabalho não é obrigado a ter o conhecimento prévio das obras teóricas sobre este assunto, buscou-se realizar uma revisão da literatura que, na medida do possível, fosse mais didática do que os textos originais. No entanto, até mesmo por conta da concisão, esta pode se apresentar em uma leitura ainda muito densa, dado que a temática de discussão já é, por sua vez, bastante complexa e até certo ponto, um pouco abstrata. Portanto, recomenda-se ao leitor uma atenção maior na leitura deste capítulo. 2. FREUD, 1919, p.2

A fim de contextualizar o leitor deste trabalho em relação ao conceito que deu origem à ideia do fenômeno Uncanny Valley, mostra-se necessário justificar a escolha do uso deste termo na sua tradução da língua inglesa ao invés da sua utilização em português. Primeiramente, deve-se deixar claro que o conceito de uncanny surgiu da tradução do termo “Unheimliche”, do alemão. Este termo foi bastante discutido por Sigmund Freud (1919), no seu artigo “Das Unheimliche” - “El Sinistro”, na tradução espanhola; “L’Inquiétante Etrangeté” na edição francesa; ou, em algumas traduções para o português, “O Estranhamente Familiar”, ou meramente “O Estranho”. Ainda assim, Freud não foi o primeiro dar inínio na literatura a respeito deste assunto. Quem deu os primeiros passos na discussão teórica desta sensação de estranheza foi Ernst Jentsch, com a publicação do seu artigo “Zur Psychologie des Unheimlichen”, em 1906. Em ambos os teóricos, é feita preliminarmente uma breve análise do termo originário em alemão. Segundo Jentsch (1906), a palavra aparece para expressar algo estranho ou desconhecido, que aconteceu para alguém de maneira não familiar o bastante. Freud (1919), por outro lado, analisa mais profundamente o estrito significado do termo. Em busca da origem do vocábulo unheimliche, Freud analisa o termo oposto “heimlich”, ou “heimisch”, que se refere a algo “doméstico”, “do lar”, ou mesmo “nativo”. Seguindo este significado, justifica ele que, naturalmente, seria tentador concluir que “unheimliche” diz respeito a algo que é assustador, justamente porque não é conhecido, não é de casa, não é familiar. Esta seria a abordagem de Jentsch (1906) que Freud (1919) critica e diz que é um início para a discussão, mas que não compreende ainda o que o termo propõe. “Nem tudo o que é novo e não familiar é assutador. Algo deveria ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para torná-lo estranho, ou ‘unheimliche’.”. 2 63


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3. Circunlocução diz respeito a um grupo de palavras que expressam uma ideia, impossível de ser manifestada somente através de um vocábulo.

4. Dicionário Alemão-Português Michaelis. 2009.

5. REDSTONE, 2012, p.43-44.

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Freud conclui então que a tradução literal do termo não seria suficiente para sua análise e em sequência ele buscou significado em outras línguas. Porém, ainda assim, Freud afirma ter a impressão que muitas línguas não possuem uma nuance particular do que seria “unheimliche”. No latim, uma tradução aproximada se define no que teríamos como “um lugar estranho”, ou “numa estranha hora da noite”. No grego, “estranho, estrangeiro”. No inglês, “unconfortable, uneasy, gloomy, dismal, uncanny, ghastly; (of a house) haunted; (of a man) a repulsive fellow”. No francês, “inquiétant, sinistre, lugubre, mal à son aise”. No espanhol, “sospechoso, de mal agüero, lúgubre, siniestro”. E tanto no italiano quanto na língua portuguesa, Freud diz que as línguas se contentam em palavras que se aproximam a circunlocuções3. No árabe e no hebreu, o termo teria traduções ainda mais intensas à ideia de algo assustador, assumindo os adjetivos “demoníaco, horrível”. Em consequência, Freud parte para uma análise ainda mais minuciosa através de um exame linguístico do termo e suas aplicações na literatura. Em uma aproximação às aplicações brasileiras do termo, verificou-se no dicionário Alemão-Português4 que a tradução do adjetivo “unheimlich” refere-se a algo “medonho, pavoroso, terrível; inquietante; estranho, misterioso”. Contudo, a partir da análise dos textos de ambos os pensadores Ernst Jentsch e Sigmund Freud, pôde-se concluir que uma abordagem mais viável do termo seria em sua tradução inglesa uncanny. Tendo em vista toda essa margem de variação conceitual nas traduções do termo unheimliche, e consequentemente, a incapacidade de determinadas línguas conseguirem comportar toda a carga significativa do conceito - principalmente na língua portuguesa, em questão -, mostra-se plausível a opção pela tradução do termo na qual é mais popularmente conhecida, seja na literatura internacional científica do assunto, seja nas indústrias as quais se têm aplicação do efeito. Portanto justifica-se assim o uso em inglês, sobretudo ao se considerar a aplicação mais conhecida do termo no fenômeno Uncanny Valley, o objeto principal da análise neste trabalho. Percebe-se que em algumas abordagens brasileiras, a tradução se refere como “O Vale da Estranheza” ou mesmo “O Vale Inquietante”. No entanto, veremos através de uma análise maior dos pensadores, que esta não seria uma expressão completa de suas nuances de significado. Por outro lado, assim como nos explica Joshua Redstone5 em seu trabalho “Beyond the Uncanny Valley - A Theory of Eeriness


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6. Tanto Ernst Jenstch (1906) quanto Sigmund Freud (1919) analisaram o uso do efeito uncanny na literatura do texto Der Sandmann de E.T.A. Hoffman. Em sua análise, Freud (1919) contrapõe-se

for Android Research”, publicado em 2012, a opção pela tradução em inglês do termo também se justifica por conta da aproximação conceitual que uncanny atinge em relação ao unheimliche do alemão. Seguindo o raciocínio de Jentsch (1906) no qual unheimliche diz respeito a algo “que não é de casa, que não é familiar ou doméstico”, e assim definiu a “falta de orientação” sobre algo como grande precursor do efeito, o termo em inglês uncanny vem da oposição ao vocábulo “canny”, derivado de “can”, o qual diz respeito ao conhecimento de algo, ao saber fazer, a uma habilidade. Ou seja, também ambas as traduções admitem uma abordagem conceitual bastante próxima, no que se refere à falta de conhecimento de alguma coisa. E da mesma forma, uncanny também geralmente é associado àquilo que se mostra “arrepiante”, “misterioso”, “assustador”, assim como o faz o termo unheimliche, de acordo com Freud (1919) em suas análises linguísticas da literatura que se apropria do efeito.6 Em sequência a esta justificativa pela escolha da tradução inglesa, pode-se adentrar agora em maiores esclarecimentos a respeito do efeito uncanny, a partir da análise dos teóricos Ernst Jentsch e Sigmund Freud.

ao que disse Jentsch, defendendo que o fator de uma incerteza intelectual não

Ernst Jentsch

teria um papel significante neste conto, para a geração do efeito uncanny no leitor.

7. JENTSCH, 1906, p.2.

O primeiro teórico a estudar o conceito de uncanny foi Ernst Jentsch em seu trabalho Zur Psychologie des Umheimlichen publicado em 1906, e traduzido para o inglês como “On the Psychology of the Uncanny”. Neste ensaio, Jentsch (1906) dá início à literatura desse tipo de sensação, que mais tarde foi bastante desenvolvido por Sigmund Freud. No geral, ele relaciona a sensação de uncanny com aquilo que é novo e não familiar, sendo assim o efeito fruto de uma falta de orientação ou conhecimento a respeito de determinada coisa. Without a doubt, this word appears to express that someone to whom something ‘uncanny’ happens is not quite ‘at home’ or ‘at ease’ in the situation concerned, that the thing is or at least seems to be foreign to him. In brief, the word suggests that a lack of orientation is bound up with the uncanniness of a thing or incident. 7

O autor inicia a discussão propondo reflexões acerca da percepção ou da experiência daquilo que é novo para alguém e daquilo que é antigo. Propõe que seria compreensível estabelecer a correlação do que é antigo com o que é conhecido, que já faz parte 65


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do discernimento da pessoa, e, portanto, é percebido como familiar. Da mesma forma, aquilo que é novo merece ser ainda descoberto e, então, é tomado com a concepção de estranho, com maior cautela, uma vez que apresenta a probabilidade de ser hostil. Jentsch enfatiza também o surgimento do efeito uncanny a partir de experiências incertas ou indecidíveis. Defende que é natural o surgimento de sensações de incerteza psíquica, no que concerne a algo que não é do conhecimento anterior da pessoa. Ele define que esta carência de orientação ou instrução a respeito de determinada coisa pode facilmente ocasionar o que seria um efeito de estranheza, ou uncanny. Este efeito, ele defende que seria a sensação de um grande desconforto em relação a algo que é novo e que não é familiar.

8. JENTSCH, 1906, p.4-5.

9. Autômato diz respeito a uma máquina ou robô que se opera de maneira automática.

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It is thus comprehensible if a correlation ‘new/foreign/hostile’ corresponds to the psychical association of ‘old/known/familiar.’ In the former case, the emergence of sensations of uncertainty is quite natural, and one’s lack of orientation will then easily be able to take on the shading of the uncanny. 8

Em meio à grande amostra de incertezas psíquicas que são causadoras deste efeito, Jentsch atenta para uma em particular, que se aparenta de maneira mais regular e genérica entre todas as pessoas. Seria a incerteza que surge na percepção de algo aparentemente vivo, que pode começar a se movimentar a qualquer momento, e assim gera inquietudes e estranhamento, pois a este logo se contrapõe a ideia de que um objeto, caso não tenha vida, de fato não pode ser animado. Este tipo de questionamento interno, perante a uma aparente animacidade, produziria na pessoa uma enorme incerteza, tornando sua consciência obscura em relação à esse objeto. Nesta abordagem, Jetsch exemplifica o efeito peculiarmente sentido em pessoas quando visitam exposições de figuras e bonecos de cera, ou mesmo de autômatos9 engenhosamente construídos. Em muitos casos, o visitante experimenta dificuldade para distinguir se aquilo que ele observa é apenas uma reprodução em tamanho real de uma pessoa feito em cera, ou se é realmente uma pessoa verdadeira. Essa incerteza, defende ele, produz uma impressão desprazerosa ao visitante, uma vez que se torna difícil saber se aquilo poderá se mover ou não. Nestes casos, ele defende que quanto maior for o nível de detalhes anatômicos, maior será a contribuição para a produção deste efeito no visitante. Este efeito,


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mostra-se ainda mais claro quando a imitação humana apresentar funções corpóreas e mentais, que seria o motivo das pessoas se sentirem tão estranhas quando presentes às figuras que possuem um movimento automático e independente. A este exemplo, Jentsch também acrescenta outros casos comuns na ocorrência do efeito uncanny, decorrendo da presença de algo novo e não familiar, algo desconhecido ou incompreensível. Um deles seria a tendência natural dos humanos de inferirem que coisas do mundo externo à sua espécie são também animadas ou que se animam da mesma forma que eles, o que neste caso, Jentsch defende que quanto mais primitivo o nível de desenvolvimento intelectual do sujeito, maior seria a ocorrência desse efeito. É o caso da naturalidade em que as crianças, segundo ele, concedem broncas à objetos inanimados, como uma cadeira, uma colher, ou um pedaço de pano velho, na tentativa de puní-los. No entanto, essa mesma postura, pode gerar enorme medo e inquietude, quando se atribui a estas coisas características físicas de animacidade, como assemelhando aquilo a criaturas, em especial antropomórficas, em um sentido poético ou mesmo fantástico, por exemplo. Seria este o caso em pessoas imaginam a forma de uma face satânica na sombra de alguma coisa, ou quando se vê um olho de um monstro ao se observar a forma de um lago etc. Outra relação que Jentsch faz com a ocorrência do efeito uncanny é na percepção de pessoas com doença mental ou de origem nervosa. Ele assume que a quebra na harmonia psíquica do doente perturba o espectador daquela situação ao gerar neste um questionamento obscuro em relação à origem daquele processo mental. É o caso de pacientes com epilepsia, por exemplo. A geração de um processo mecânico independente, faz surgir no espectador uma situação que não teria familiaridade com aquilo que ele considera como uma movimentação natural. Estes processos se encaixam assim no que Jentsch define como a “incerteza intelectual” a respeito de determinada coisa ou situação, causando o efeito de uncanny no espectador.

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Sigmund Freud Paralelamente à problemática da tradução do termo unheimliche e sua decorrente perda de significado ou nuances essenciais de seu conceito, vale salientar ao leitor uma maior cautela na leitura do texto “Das Unheimliche”, originalmente publicado por Sigmund Freud em alemão, no ano de 1919. O texto em questão possui diversas traduções, entre elas a sua versão em inglês “The Uncanny”, primeiramente publicada em 1925, com a tradução de Alix Strachey; assim como a versão em português “O Estranho”, publicada em 1996. Pode-se dizer que, principalmente na versão em português, diversas lacunas de significado foram encontradas em decorrência do processo de tradução. Algumas abordagens chegam até mesmo a produzir distorções significativas no conceito discutido. Por este motivo, recomenda-se ao leitor, se possível, a verificação do texto em suas diferentes traduções, a fim de um maior entendimento e clareza na discussão do assunto. Com a publicação do texto “Das Unheimliche”, Sigmund Freud (1919) deu sequência ao estudo deste efeito, iniciado por Jentsch, sendo até hoje um trabalho muito importante para a discussão teórica sobre a temática do “estranho”. Ao investigar a atribuição de significado ao termo unheimlich no decorrer da história, Freud percebe que obviamente o conceito é empregado como um oposto do termo heimlich, que diz respeito ao que é familiar, doméstico ou nativo. Desta forma, seria sensato pensar que unheimlich trata daquilo que é oposto ao que é familiar e, consequentemente, que o unheimlich seria assustador pois é desconhecido, percebido como novo e não familiar. Esta foi exatamente a abordagem de Jentsch (1906), que justificou na incerteza intelectual, ou falta de orientação, produzida a partir daquilo que é novo e desconhecido, a origem do efeito uncanny ou ‘estranho’. De acordo com Jentsch (apud Freud, 1919), o estranho seria sempre algo que não se sabe abordar e, assim, quanto maior a orientação da pessoa à respeito daquilo que lhe é estranho, menor seria esta impressão de estranheza. No entanto, desde o início de sua investigação sobre o assunto, Freud se contrapõe à abordagem de Jentsch, caracterizando-a como um estudo “fértil, mas não exaustivo” (FREUD, 1919/1996, p.2), dado que a restrição à equação “estranho = não familiar”, não se sustenta ao considerar que nem tudo o que é novo e não familiar é assustador, mas ainda assim, aquilo que é novo pode facilmente se tornar

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10. FREUD, 1919/1996, p.2.

assustador e estranho. Algumas novidades são assustadoras, mas de modo algum todas elas.10

Freud defende a insuficiência desta relação entre o novo e não familiar em que se apoia Jentsch:

11. FREUD, 1919/1996, p3.

“Algo deve ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para torná-lo estranho.”11

A partir desta abordagem, Freud dá início à sua investigação através da exposição dos conceitos atribuídos ao termo alemão heimlich, já que neste se baseia o seu termo oposto unheimlich. Freud aborda quatro grupos de significados para o termo heimlich: (a) doméstico, pertencente à casa ou à família (utilização já considerada obseleta); (b) domesticado, capaz de fazer companhia ao homem, em oposição ao selvagem; (c) íntimo, amigavelmente confortável, que desperta uma sensação de repouso agradável e de segurança, como alguém em sua própria casa; e por fim, uma abordagem paradoxal que, ainda que não se contradiga, difere-se muito em relação às anteriores, (d) escondido, oculto, de modo que os outros não consigam saber, sonegado aos outros, obscuro, inacessível ao conhecimento. Nota-se, assim, uma forte ambivalência na utilização do termo heimlich, já que uma de suas matizes de significado (d) exibe um conceito que se caracteriza com enorme proximidade ao seu termo oposto unheimlich, no qual a adição do negativo ‘un’ define aquilo que é misterioso, sobrenatural, que desperta terrível temor, conforme sua utilização na literatura, exposta por Freud. A partir de uma maior investigação sobre esta outra categoria de significado para heimlich, Freud percebe que na relação com o seu oposto unheimlich, este somente é utilizado em oposição ao primeiro grupo de significado de heimlich (a)-(b)-(c), e não ao segundo (d). Ainda que nas definições de dicionários, expostas por Freud, nada dizem respeito à uma possível conexão entre esses dois significados de heimlich, Freud se atenta à uma citação de Schelling (apud Freud, 1919, p.6), em que “unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz”. Esta citação incita claramente a abordagem de que tudo aquilo que é heimlich pode vir a se tornar unheimlich, caso retorne após ter sido oculto. Freud conclui que heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com

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12. FREUD, 1919/1996, p.7.

o seu oposto unheimlich. Unheimlich é, de um modo ou de outro, uma subespécie de heimlich.12

Curiosamente, além dos exemplos expostos por Freud (1919), podemos acrescentar outros apresentados por Martini e Coelho Junior (2010), sendo um bastante próximo aos falantes de português: “a palavra ‘estranhar’ é comumente utilizada para a situação em que o cão não reconhece seu dono ou alguém conhecido, ou seja, uma situação que deveria lhe ser “familiar.” O outro exemplo diz respeito à tradução em espanhol, em que “estrañar” significa ‘sentir saudades’ - remete a algo familiar que não está mais presente”. Freud se apoia então na sua teoria da angústia, elaborada através da Psicanálise, em que defende

13. FREUD, 1919/1996, p.16.

se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, se reprimido, transforma-se em ansiedade, então entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode se mostrar ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o estranho.13

E assim, junto com a abordagem de Schelling, Freud compreende a derivação do uso linguístico de heimlich em direção ao seu oposto unheimlich, ao concluir que

14. FREUD, 1919/1996, p.16.

estranho não é nada novo ou alheio, porém é algo familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo da repressão.14

Ou seja, para Freud (1919/1996) o ‘estranho’, ‘uncanny’ ou ‘unheimlich’, em suas respectivas traduções no inglês e no alemão, diz respeito àquilo que uma vez foi familiar, mas que por conta de um processo de repressão, foi esquecido, porém não completamente, deixando resquícios na lembrança. Assim, ao retornar em uma experiência, submete-se ao efeito de estranhamento. Por outro lado, restringir o conceito de ‘estranho’ ao simples retorno do familiar que uma vez fora reprimido, seria desprezar toda uma preciosa oscilação do texto de Freud, que se promove através de densas discussões com nuances, aberturas e vacilações à respeito do ‘estranho’, que podem muito bem serem frutos para novas abordagens do conceito, em análises futuras. Assim, mostra-se importante apresentar, mesmo que 70


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15. FREUD, 1919/1996, p.12.

brevemente, como Freud chega a essa conclusão. Freud discutiu uma série de fatores psíquicos que são exemplos determinantes na produção da percepção de estranheza, os quais podemos concentrar em quatro grandes grupos: o fenômeno do duplo; a incerteza intelectual, discutindo a abordagem de Jentsch; a problemática da repetição; e o retorno à modos primitivos de pensamento. O primeiro deles, o ‘fenômeno do duplo’ diz respeito à separação entre as realidades internas e externas, entre o ‘eu’ e o ‘outro’. Tem a ver com tudo o que é uma duplicação, divisão ou intercâmbio do próprio ‘eu’, ou também chamado ‘self ’. O tema é fruto de discussão por Otto Rank (apud Freud, 1919/1996, p.12), em que foram abordadas diversas ligações que o ‘duplo’ estabelece, tais como na relação com reflexos em espelhos, sombras, espíritos guardiões, com a crença na alma e com o medo da morte. O primeiro ‘duplo’ consistiu na crença da alma ‘imortal’. Esta que, originariamente teve um importante papel de segurança para o homem primitivo, como defesa contra sua extinção e garantia da imortalidade, quando superada, inverteu seu papel e se transformou em um estranho anunciador da morte. Como exemplo para o primeiro caso, temos o fato da reprodução de imagens do morto em materiais duradouros como o ouro, na sociedade dos antigos egípcios, e para o segundo caso, um grande exemplo seria o medo característico de fantasmas, na sociedade atual. O ‘duplo’ para Freud15 assume um papel primordial no desenvolvimento do psiquismo, na etapa de se ultrapassar o narcisismo primário. O ‘duplo’ tem uma atuação especial na formação de uma atividade, que consegue resistir ao resto do ego, que tem a função de observar e criticar o ‘eu’ (self) e de exercer uma censura dentro da mente, atividade esta que conhecemos como a “consciência”. No entanto, conforme o ‘eu’ alcança estados mais complexos de desenvolvimento, ultrapassando o narcisismo primário dos primeiros anos de vida, este mecanismo do ‘duplo’ se torna uma armadilha. O que antes era uma proteção, assume um papel de perseguição, transformando-se em figuras demoníacas e assustadoras, que anunciam exatamente o que se buscava escapar, como a morte. No caso, por exemplo, dos ‘delírios de observação’ (Freud, 1919/1996) ou também chamados ‘delírios de sermos vigiados’, dentre outras disfunções da atividade mental, a ideia do ‘duplo’ é tomada como um parâmetro de perturbação para o ego, uma ofensa para o mesmo, já que esta seria uma regressão à um 71


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modo primitivo de pensamento, o retorno a uma fase inicial no desenvolvimento da consciência, um momento em que o ego ainda não se distinguiu do mundo externo e de outras pessoas. Em outras palavras, a percepção de um delírio caracteriza uma ofensa para o ego do sujeito observador, já que a consciência se torna uma atividade mental isolada, dissociada do ego, remetendo à períodos de formação da consciência em que o ego ainda não se distinguia nitidamente de outras pessoas. Um segundo grupo de fatores relacionados à produção de efeito ‘estranho’ nas pessoas diz respeito à ideia da incerteza intelectual. Em seu texto, Freud retoma essa discussão a partir daquilo que introduziu Jentsch (apud Freud, 1919/1996) ao dizer que Ao contar uma história, um dos recursos mais bemsucedidos para criar facilmente efeitos de estranheza é deixar o leitor na incerteza de que uma determinada figura na história é um ser humano ou um autômato, e fazê-lo de tal modo que a sua atenção não se concentre diretamente nessa incerteza, de maneira que não possa ser levado a penetrar no assunto e esclarescê-lo imediatamente.

Freud compartilha do argumento de Jenstch, em que a incerteza intelectual pode ser um grande artifício para se produzir o efeito de estranheza no leitor. O mesmo se dá com relação à percepção dos quase vivos bonecos de cera, ou dos autômatos engenhosamente construídos, ou até mesmo na percepção de estranheza em processos mecânicos e automáticos quando se presencia um ataque epilético ou qualquer manifestação de insanidade. No entanto, Freud não se contenta com tal argumentação como base maior para o surgimento do estranho. Para tal discussão, Freud nos traz um longo exame do conto “O homem da areia” de Hoffmann, o qual não caberia retomar nessa pesquisa. Mesmo assim, vale reafirmara que no caso da análise deste conto, Freud conclui ser irrelevante o aspecto da incerteza intelectual como geradora de estranheza nesta história. Tanto a incerteza ao saber se a boneca da história é um ser vivo ou não, quanto à incerteza se a história é um fato real ou apenas fruto de um delírio do personagem principal, são por si só insuficientes para serem geradoras de estranheza, uma vez que tais dúvidas, no decorrer da história são sanadas e em nada se diminui tal efeito. Lembrando que Freud obtém tal conclusão apenas com relação ao efeito ‘estranho’ neste conto de Hoffman. Não se pode, 72


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assim, afirmar que Freud assume firmemente a postura contrária à questão da incerteza intelectual, inicialmente proposta por Jentsch. Outro importante fator que Freud (1919/1996, p.1315) trata como determinante na produção de efeito estranho é a problemática da repetição. Qualquer que seja o estímulo, caso remeta a uma íntima ‘compulsão à repetição’ - amplamente discutida em seu texto -, é percebido como estranho. Freud defenderia que a repetição involuntária, seja de fatos, seja de aspectos, características ou vicissitudes, resulta numa aura de estranhamento em torno de eventos e coisas que, tomados individualmente, seriam tratados com normalidade e passariam despercebidos. Esta peculiaridade da ‘repetição’ como fator de produção de estranheza teria relação não somente com a ideia de um movimento regressivo do funcionamento mental, mas também com uma natureza subversiva desta atividade, a qual apresenta de maneira intrínseca um efeito de desumanizar, de irromper a integridade do self. Isto porque, conforme o que nos apresenta Freud,

16. FREUD, 1919/1996, p.14.

é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma ‘compulsão à repetição’, procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos - uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o Princípio do Prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco.16

Seria assim tomada esta ‘compulsão a repetição’ como uma atividade que aparenta prevalecer até mesmo ao Princípio do Prazer. Portanto, tudo o que nos remeta a esta íntima atividade é percebido como estranho, uma vez que esta põe em xeque a soberania no domínio do próprio. É o que se pode constatar, por exemplo, na impressão causada pela percepção desta atividade em processos mecânicos e automáticos, quando encontrados no âmbito de tudo o que é vivo. Um sujeito que repentinamente passe a realizar movimentos repetidos, sem motivo aparente, indubitavelmente será percebido como estranho, seja qual for sua integridade. Ambos os fatores discutidos anteriormente se relacionam com uma espécie de retorno a um modo primitivo de pensamento. O estudo de alguns dos fatores que procedem o efeito ‘estranho’ conduziu Freud à ideia da antiga concepção animista do universo. Esta concepção animista refere-se a um período primitivo no desenvolvimento do homem e é considerada como a primeira forma de conhecimento do homem. Consiste na visão de universo em que não há separação entre o mundo espiritual e o mundo 73


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material. Desta forma, tudo o que existe é por sua vez possuidor de uma essência espiritual. Os homens primitivos animavam as coisas e os fenômenos, atribuindo-lhes vontade, alma e espírito. Se os fenômenos ajudavam a sua existência, eram bons e justos. Se os aterrorizavam, os submetiam, os violentavam, eram maus e injustos. Assim explicava-se a vida, a morte, a fartura, a seca, o dia, a escuridão, enfim, todos os fenômenos. Com o decorrer do desenvolvimento do homem primitivo, esta crença foi superada. O homem deixou de acreditar e animar tudo o que está a sua volta e passou a estabelecer seus fundamentos no estudo e na razão. No entanto, ao ultrapassar esta fase de desenvolvimento, preservaram-se resíduos e traços, que ainda são capazes de se manifestar. Esta etapa de superação assume um papel repressivo, no qual se fundamenta a concepção de Freud de que o ‘estranho’ consiste na ideia do ‘familiar reprimido que retorna’. Nós - ou os nossos primitivos antepassados -

17. FREUD, 1919/1996, p.20

acreditamos um dia que essas possibilidades eram realidades, e estávamos convictos de que realmente aconteciam. Hoje em dia não mais acreditamos nelas, superamos esses modos de pensamentos; mas não nos sentimos muito seguros de nossas novas crenças, e as antigas existem ainda dentro de nós, prontas para se apoderarem de qualquer confirmação. Tão logo acontece realmente em nossas vidas algo que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação do estranho.17

18. FREUD, 1919/1996, p.15

No que Freud defende este retorno a um modo primitivo de pensamento como gerador de estranheza, ele nos propõe que tudo aquilo que satisfaz a condição de tocar aqueles resíduos de atividade mental animista dentro de nós e darlhes expressão, nos surpreende como ‘estranho.18

É o que ocorre em diversos exemplos cotidianos que Freud discute em seu texto, como ao que se refere o princípio da ‘onipotência dos pensamentos’ (1919/1996, p. 15). Crença esta que, pertencente à concepção animista do universo, caracteriza-se na possibilidade de tornar real qualquer desejo, vontade ou ambição. Deste princípio também suscitou a crença na magia e nos poderes ocultos. O retorno da crença na onipotência dos pensamentos se expressa em diversas situações percebidas como ‘estranho’, tais como na superstição do ‘medo de mau-olhado’, ou ‘medo da inveja 74


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dos outros’; na percepção de pessoas consideradas ‘estranhas’, pois a estas são atribuídas intenções maldosas ou demoníacas, que poderiam se expressar através de poderes ocultos ou especiais; no efeito estranho da epilepsia e da loucura, uma vez que o leigo percebe nestas enfermidades a ação de forças desconhecidas; na percepção de membros arrancados, ou de partes do corpo tomadas individualmente, principalmente quando aparentam ter a capacidade de movimento independente. Ao se submeter a estes tipos de experiências, o indivíduo está sujeito a tais lembranças residuais da concepção animista de universo, ocasionando assim o efeito estranho. No entanto, após discorrer sobre o retorno a modos primitivos de pensamento como gerador de estranheza, Freud nos aponta a um outro aspecto determinante nessa discussão. Ele defende que

19. FREUD, 1919/1996, p.20.

qualquer um que tenha se livrado, finalmente, de modo completo, de crenças animistas será insensível a esse tipo de sentimento estranho. (...) A coisa toda é simplesmente uma questão de ‘teste de realidade’, uma questão da realidade material dos fenômenos.19

Portanto, ao se submeter a uma experiência que possa resgatar resíduos animistas, o indivíduo estaria sujeito a um questionamento sobre a realidade material deste fenômeno, a um julgamento sobre a existência física daquilo. Este conflito a respeito da validez deste fenômeno seria então responsável pelo despertar do efeito estranho. Novamente, pode-se perceber uma perfeita relação com a ideia de ‘incerteza intelectual’ proposta por Jentsch (1909). Em ambos os casos, o surgimento do efeito estranho depende de um questionamento a respeito daquilo que gera estranheza. Contudo, Freud não desenvolve muito mais esse aspecto, a não ser por uma discussão fundamental em que este ‘teste de realidade’ anteriormente comentado não acontece, que é o caso de tudo o que ocorre no reino da fantasia. Freud nos diz que o escritor imaginativo, no caso da literatura fantasiosa, tem a total liberdade de poder escolher o mundo de representação em que se passará a sua história. Pode-se assim, criar um universo totalmente independente das leis que regem a realidade material das coisas e ainda assim, o questionamento a respeito da real existência desses fenômenos não exercerá influência estranha, mesmo que estes resgatem, por exemplo, o sistema animista de 75


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crenças:

20. FREUD, 1919/1996, p.21-22.

Nós aceitamos as suas regras em qualquer um dos casos. Nos contos de fadas, por exemplo, o mundo da realidade é deixado de lado desde o princípio, e o sistema animista de crenças é francamente adotado. A realização de desejos, os poderes secretos, a onipotência dos pensamentos, a animação de objetos inanimados, todos os elementos tão comuns em histórias de fadas, não podem aqui exercer uma influência estranha; pois como aprendemos, esse sentimento não pode despertar a não ser que haja um conflito de julgamento quanto a saber que coisas que foram ‘superadas’ e são consideradas incríveis, não possam ser possíveis.20

Feud exemplifica seu pensamento ao diferenciar o efeito estranho produzido por contos de horror e nos contos de fadas. Em ambas as temáticas, podem existir os mesmos elementos, os mesmos fenômenos acontecendo na história, porém somente no conto de horror que se produz o efeito estranho. Isso se deve ao fato de que, nos contos de fadas, abdica-se desde o início dos parentescos com a nossa realidade e se aceita as regras que regem a realidade criada pelo autor. Tudo o que poderia ser estranho se acontecesse no mundo real, não tem efeito nos contos de fadas, porque tais fenômenos têm seu caráter alterado, passam a fazer parte e a compor a narrativa fantasiosa. Já em contos de horror, Freud escreve que “por uma habilidade narrativa do autor” somos envolvidos pela leitura numa experiência que se aproxima muito daquilo que realmente se experimentaria no mundo real e, portanto, torna-se possível experimentar também o sentimento estranho. Freud ressalta que esta observação dos contos de fadas poderia ser motivo para questionar sua argumentação feita até então. Mesmo chegando à conclusão de que o estranho está sempre relacionado com o que é secretamente familiar, que foi reprimido e que, então, retorna sob condições específicas, continua faltando algo para se compreender inteiramente este sentimento, já que o campo da fantasia invalida esta sua ideia. No entanto, Freud defende que devem haver outros elementos responsáveis pelo surgimento do estranho, mas que estes pertencem exclusivamente ao domínio da estética, e que assim escapariam do campo psicanalítico, no qual se submete à experiência real dos fenômenos. Ele aponta ao seu favor que os elementos fora de seu âmbito da psicanálise são exclusivamente do 76


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domínio da ficção, da literatura, da fantasia, enquanto tudo o que é realmente experimentado como estranho, pode invariavelmente se remeter a sua explicação. Ao retomar sua linha de pensamento na explicação da experiência do estranho, Freud apresenta outros contos em que o sentimento ocorre, mesmo no âmbito da fantasia. Nestes casos ele aponta justamente para o fator da experiência vivida pelo leitor, que por conta da “habilidade narrativa do autor”, aproxima-se tanto daquilo que seria experimentado no real, que então se obtém a mesma qualidade do sentir. Sendo assim, mais importante do que esta distinção entre o real e a fantasia proposto por Freud, mostra-se como um último elemento determinante para o estranho o fator da experiência vivida subjetivamente pelo ‘eu’. Quer o fenômeno se dê na vida real ou seja fruto da leitura de um conto, os autores Nelson E. Coelho Junior e André de Martini (2010) defendem através da leitura de Freud (1919) que o eu (self) deve experimentar a vivência momentânea de colapso entre os domínios do que é familiar e do que é estrangeiro. Nem todo pensamento mágico, nem toda repetição ou retorno do recalcado produz o efeito do estranho, mas tão somente aqueles que produzem esse “efeito narrativo”, este descentramento do self em relação ao terreno que lhe é habitualmente familiar.

No caso, portanto, da literatura fantasiosa, o fator da experiência vivida através da leitura da história é que se mostra como o elemento determinante no surgimento do estranho. É um fator narrativo que nos coloca no centro da experiência, independente de que ela seja ou não real.

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o fenômeno do UNCANNY VALLEY Uma vez compreendido o conceito de uncanny através dos escritos de Jentsch (1906) e Freud (1919), pode-se dar início à apresentação da discussão teórica que se tem acima do fenômeno Uncanny Valley. Embora muito conhecido como sendo uma teoria, este fenômeno consiste em uma hipótese elaborada por Masahiro Mori (1970), a qual ainda não é perfeitamente fundamentada e exaustivamente testada para ser considerada como tal pela comunidade científica. Basicamente, esta hipótese busca explicar a percepção de estranheza em reproduções da figura humana que se apresentem de forma muito realista. Isso pode ser aplicado tanto no âmbito da robótica, quanto para personagens digitais e diversos outros meios. Por conta disso, a temática do Uncanny Valley voltou a ser foco de atenção ao passo que as novas tecnologias têm proporcionado um nível cada vez maior de realismo para a produção da figura humana, sobretudo em ambiente digital. Sendo assim, a fim de se proporcionar uma compreensão mais aprofundada do fenômeno, além da introdução da hipótese por Mori, o trabalho terá sequência com a apresentação do quadro teórico sobre Uncanny Valley, reunido por Joshua Redstone (2013). Teoria de Masahiro Mori A teoria do Uncanny Valley foi proposta pelo professor de robótica Masahiro Mori, no ano de 1970 com a publicação do seu ensaio em japonês, traduzido para o inglês como “The Uncanny Valley”. Neste ensaio, Mori analisa a recepção emocional positiva de um indivíduo ao perceber uma representação da figura humana, seja ela um robô, um autômato ou um personagem animado, um manequim, uma boneca, um fantoche etc. 79


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Basicamente, Masahiro Mori analisa essa recepção a partir de dois fatores: a afinidade - shinwakan, do japonês, traduzido para o inglês como affinity - ou, como também podemos entender, a atratividade daquela criação; e o grau de semelhança que aquilo tem com relação a um ser humano real e saudável. Com isso, Mori propõe que a recepção emocional de uma criação tende a ser cada vez mais positiva, quanto maior for seu grau de similaridade humana. Até um momento, em que esta criação apresenta um grau tão elevado de semelhança com um humano, mas ainda não é um ser humano real, aparentam imperfeições que saltam ao olhar, ou mesmo deixam de apresentar fatores importantes do comportamento humano. Assim, ao invés de proporcionar maior afinidade na sua resposta emocional, ela passa a gerar uma enorme sensação estranha e até mesmo uma repulsa ao seu observador. Masahiro Mori propôs esta ideia através da formulação de um gráfico com as variáveis similaridade humana no eixo horizontal e o grau de afinidade no eixo vertical. Em um primeiro momento, a curva da resposta emocional do observador seria quase que uma função de crescimento linear, até a chegada a um momento crítico, em que ao invés de continuar crescendo, essa curva cai num vale da atratividade. Este seria um momento, matematicamente falando, de grau negativo, o que, portanto, representaria o oposto da afinidade, a repulsa. Esta curva somente voltaria a subir conforme essa criação atingisse um nível de similaridade humana correspondente a um humano real e saudável.

FIG. 1 MORI. Gráfico representativo do Uncanny Valley, 1970.

Para que se entenda melhor sua proposta, Mori inicia sua explicação a partir de um exemplo da nossa relação com robôs 80


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industriais. O design desses robôs costuma ter meramente fins de funcionalidade. Ainda que tenham sido criados para performarem funções similares a humanos operacionais, estes apenas costumam se aproximar a um grau de similaridade humana por conta de seus braços robóticos. Neste caso, estes robôs ainda se diferenciam de outras máquinas no geral - que não possuem forma alguma que relembre um ser humano -, contudo, ainda assim o grau de afinidade na recepção emocional destes robôs industriais é mínimo, então estes estariam localizados logo no início da curva no gráfico. Por outro lado, o design de um robô de brinquedo certamente estará mais focado na aparência do que em suas funções. Desta forma, um robô de brinquedo passa a ter formas mais humanoides, ao possuir cabeça, dois braços, duas pernas e um tronco. Assim, os robôs de brinquedo são muito mais atraentes para uma resposta emocional positiva do que robôs industriais ou mesmo um maquinário funcional. Por este motivo, podemos situá-los um pouco mais acima na curva do gráfico proposto. Este nível de afinidade da determinada criação continua aumentando conforme maior for o grau de semelhança em relação aos seres humanos. Contudo, essa relação se mantém somente até que a determinada criação alcance um ponto em que o grau de similaridade humana seja tão alto, mas ainda não é um humano real. Neste momento, esta criação deixará de se tornar atrativa e passará a gerar uma forte sensação estranha, seguida de repulsa. Para explicar melhor este momento do vale na curva do gráfico, Mori usa como exemplo a nossa recepção emocional quando interagimos com membros protéticos. Ele comenta que os grandes avanços na tecnologia têm possibilitado um grau de realismo tão alto na produção de mãos protéticas, que até mesmo alguns chegam a dizer que não se nota nenhuma diferença em relação a uma mão real. Alguns modelos simulam vincos, veias, unhas e até mesmo impressões digitais. No entanto, a partir do momento que um indivíduo passe a interagir com essa mão protética, como num simples aperto de mãos, por exemplo, aquela mão que até então era percebida como real, passa a sugerir uma falta de ossos, uma textura estranha e uma frieza, não característica de mãos de verdade. Quando isso acontece, aquele indivíduo perde totalmente sua sensação de afinidade e aquela mão se torna uncanny, ou seja, estranha para ele. Portanto, ainda que a mão protética aparente ser quase humana, seu grau de afinidade é negativo, o que faz ela se situar dentro do vale na curva, o qual Mori propõe chamar de Uncanny Valley, ou Vale da 81


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Estranheza, Vale Inquietante, como sugerem algumas traduções para o português.

FIG. 2 Mão protética hiperrealista. Custom Prosthetic, Ltd.

FIG. 3 Marionete tradicional japonesa bunraku.

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Ainda assim, Mori sugere um terceiro momento na curva do gráfico, em que esta volta a crescer em direção ao grau de afinidade de um humano real. Ele situa nessa parte da curva uma tradicional marionete japonesa chamada bunraku. Mori comenta que, mesmo que este tipo de marionete não seja completamente igual a uma pessoa real, ao assistir a um espetáculo em um teatro, sua afinidade às marionetes se mostra alta. Isso, segundo ele, acontece pois com a distância que se tem das bonecas durante o espetáculo, o tamanho delas deixa de ser tão relevante e acaba sendo ignorado. Além do mais, a aparência das bonecas, assim como sua movimentação, são muito próximos a de humanos reais, então sugere ele que a nossa tendência é de absorver aquilo como uma forma de arte e assim sentirmos um alto grau de afinidade. Por conta disso, Mori situa a boneca bunraku num terceiro momento da curva de afinidade, após o uncanny valley, subindo novamente em direção ao ponto de afinidade com seres humanos reais e saudáveis. Seguinte à explicação do conceito do Uncanny Valley, o professor de robótica se atenta a mais um detalhe no acontecimento


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deste fenômeno. Ele se refere ao efeito que o movimento tem sobre a resposta emocional gerada a partir dessas representações da figura humana. O movimento é um fator natural para todos os seres vivos, principalmente o seres humanos. A resposta emocional de uma representação humana em movimento tem sua intensidade amplificada, seja ela para um grau de maior afinidade ou de menor. Conforme o que Mori propõe, um robô em movimento gera muito mais afinidade do que um robô desligado. Da mesma forma, um manequim que gere estranheza, seria imensamente mais estranho e assustador caso estivesse se movimentando de maneira inesperada. Portanto, ele propõe uma segunda curva em que as criações são dinâmicas e possuem movimento. Esta é uma versão intensificada da primeira curva na qual se categorizam apenas criações estáticas.

FIG. 4 MORI, 1970. Gráfico comparativo da curva do Uncanny Valley para representações estáticas e em movimento da figura humana.

Contudo, em movimento existem muito mais variáveis que podem contribuir ou não para a verossimilhança humana. Mori se atenta a um exemplo que ilustra isso. No ano de 1970, ocorreu uma exposição mundial de robótica em Osaka, no Japão, na qual se apresentou um robô facial que tinha como proposta ser extremamente realista. O robô possuía 29 pares de músculos artificiais, o mesmo número de músculos faciais que os humanos possuem. Esse número seria então necessário para poder recriar exatamente as mesmas deformações faciais de um sorriso expresso por humanos. No entanto, de acordo com o próprio designer do robô, um sorriso não é somente uma sequência de deformações faciais, mas também, estas precisam ocorrer necessariamente em uma dinâmica - leia-se velocidade, aceleração, desaceleração e sincronismo - determinada, para que seja realista. Ao demonstrar a tais deformações em 83


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metade da velocidade, aquilo que deveria se parecer com um sorriso humano e, portanto, produzir afinidade, tornou-se algo assustador, fortemente repulsivo. Este é um forte exemplo de como a variável do movimento pode ser muito mais complexa e também intensificar ainda mais a profundeza do uncanny valley. Discussão Teórica Em sua primeira publicação sobre a hipótese do fenômeno do Uncanny Valley o professor do Instituto de Tecnologia de Tokyo, Masahiro Mori, não obteve a repercussão desejada. Houve pouco interesse sobre o assunto e a matéria divulgada na época, em 1970, pelo jornal japonês “Energy” foi, de certa forma, esquecida por um bom tempo. Recentemente – a partir dos anos 2000 –, o conceito do Uncanny Valley voltou a ser alvo de discussão dentro do circuito científico e o que antes havia sido pouco relevante, passou a atrair a atenção das mais diversas áreas, principalmente roboticistas e integrantes da indústria do entretenimento, mais especificamente do Cinema e da Indústria de Games. A ideia do fenômeno do Uncanny Valley se tornou relevante para essas áreas devido ao processo de criação de personagens realistas. A indústria cinematográfica e de games conseguiram, a partir do desenvolvimento tecnológico, atingir níveis de realismo e de semelhança humana em suas produções, nunca antes observados, tanto na criação de personagens animados em CG, como de robôs, androides, etc. Esta possibilidade tecnológica tem, por sua vez, gerado uma forte tendência – e como muitos consideram, até mesmo uma obsessão – caracterizada por um consumo extremado de hiper-realismo nos efeitos visuais das produções no geral. Indústrias cinematográficas como a de Hollywood investem a cada ano bilhões de dólares na produção de filmes repletos de efeitos e, no entanto, nem sempre este investimento gera o retorno esperado na recepção do público. Empresas como a Disney, por exemplo, fracassaram filmando The Polar Express (2004) e Mars needs moms (2011), perdendo milhares de dólares em investimentos para se produzir personagens cartoonescos, mas com características extremamente realistas, o que resultou em números irrisórios de bilheteria e uma crítica que frequentemente se resumiu a “filmes de mortos-vivos”. 84


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FIG. 5 Imagens de trechos dos filmes “The Polar Express” (2004) e “Mars Needs Moms” (2011), respectivament.

FIG. 6 Geminoide F, Geminoide HI-4 e Geminoide DK, com seus respectivos modelos humanos.

O mesmo se vê na busca pela criação de um androide perfeitamente realista, tal como se deu na produção dos chamados “geminoides” de Hiroshi Ishiguro. O roboticista e sua equipe produziram androides que buscam ser detalhadamente iguais aos humanos dos quais a réplica se originou. Entretanto, ainda que estes sejam considerados os robôs mais parecidos com humanos na atualidade, eles continuam assustando muito mais do que atraíndo o público.

Por conta disso, a temática do Uncanny Valley tem aproximado novamente os olhares para o entendimento deste fenômeno. Definir o que exatamente ele é, por que ele acontece e então obter a resposta de ouro para a pergunta “como ultrapassálo?” tem direcionado cada vez mais a atenção dos profissionais do mercado para uma aliança com a pesquisa acadêmica a fim de se obter maiores sucessos em suas produções. É fato que muito do que é testado nos estudos empíricos da academia ainda se dá de forma defasada em comparação 85


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com o nível de realismo alcançado nas indústrias ou mesmo nos trabalhos pessoais do meio artístico. Enquanto criações imperfeitas são utilizadas como parâmetros de máximo realismo em algumas pesquisas que mediam estranheza, por outro lado existem trabalhos como o busto 3d hiper-realista criado pelo artista eslovaco Lukáš Hajka, o qual pode ser uma das criações digitais mais perfeitamente realizadas até o momento – certamente um dos bustos mais minuciosamente realista produzido atualmente em um trabalho pessoal.

FIG. 7 Busto 3d hiper-realista produzido como um trabalho pessoal do artista eslovaco Lukáš Hajka.

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20. Para maior concisão na definição destas representações da figura humana, Redstone (2013) os define como artefatos de semelhança humana, ou “human-like artifacts”, no inglês.

Mesmo assim, a pesquisa científica a respeito do fenômeno tem se intensificado a cada ano, com a introdução de novos pesquisadores no ramo, com a realização de novos estudos empíricos e mesmo com a melhora na qualidade dos objetos a serem testados. Em busca de uma contextualização teórica de tudo o que tem sido discutido na área acadêmica sobre o fenômeno do Uncanny Valley, este trabalho buscou apoio na tese elaborada por Joshua David Bruce Redstone, um pesquisador da University of Carleton. Ainda que seu viés tenha sido para o meio da pesquisa científica de androides, a partir de sua tese chamada Beyond the Uncanny Valley: A Theory of Eeriness for Android Science Research, publicada em 2013, Joshua Redstone oferece um aglomerado do quadro teórico disponível sobre o fenômeno do Uncanny Valley no geral, assim como uma discussão de orientação filosófica a respeito de tudo o que já foi discutido sobre o assunto, seja no fenômeno com robôs, androides, manequins, bonecos de cera, autômatos, personagens CG para filmes e games, etc.20 Redstone (2013) oferece uma revisão dos maiores pensadores do assunto do Uncanny Valley, tais como Ramey (2005) – que propôs a dificuldade na categorização ontológica dos artefatos como sendo a principal causa do fenômeno –, Misselhorn (2009) – que propôs a falha da ignição no processo de empatia como a principal causa do fenômeno, assim como introduziu sua teoria da “Percepção Imaginativa” –, MacDorman (2005; 2009a) – que além de haver proposto a hipótese de “Mortalidade Saliente” nos artefatos de semelhança humana, propôs uma analogia da tensão psicológica causada no fenômeno com a ideia de uma dissonância cognitiva, introduzida por Festinger (1957) e também propôs a ativação de um mecanismos neurológicos chamados “Sistema de Neurônios Espelho” na percepção de artefatos semelhantes a humanos –, como também outros pesquisadores externos à discussão do Uncanny Valley, mas que proveram muitas bases para aquilo que se foi discutido. Para maior esclarecimento e justificativa das discussões teóricas e filosóficas a respeito do Uncanny Valley, Redstone (2013) também discute o resultados de estudos empíricos realizados pelas equipes de pesquisadores como Ho (2008), Iacoboni (2009), Saygin (2011), Gray & Wegner (2012), Looser & Wheatlhey (2012), Burleigh (2013), Yamada (2013), dentre outros. Assim também, Redstone (2013) apresenta uma “Teoria da Estranheza” (Theory of eeriness) na qual ele discute e busca uma 87


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definição desta emoção, a qual foi muito pouco discutida na história, a não ser pelos estudos de Jentsch (1906), Freud (1919) e alguns outros teóricos, nos quais Redstone (2013) se apoia para fundamentar sua teoria da estranheza. Primeiramente, é importante saber que Joshua Redstone (2013) assume uma distinção entre os dois diferentes termos do inglês que se traduzem em “estranheza” quando no português: “eeriness” e “uncanny”. Na sua abordagem, Redstone restringe o termo “erriness” à ‘sensação’ de estranheza, enquanto “uncanny” diz respeito ao ‘atributo’ de um objeto que causa esta estranheza. Em relação ao conceito de “uncanny”, não necessariamente este seria negativo, existem ambos os atributos “uncanny” positivos, quanto os atributos “uncanny” negativos. Um “uncanny” positivo define aqueles atributos de estranheza em que objetos ou situações produzem sensações e emoções proveitosas, como por exemplo, o fato de pessoas irem ao cinema para assistir um filme de horror. Ainda que o filme esteja repleto de coisas estranhas, a situação não deixa de ser menos atrativa, uma vez que este é exatamente o intuito do filme, causar estranheza. Já um “uncanny” negativo se dá quando um atributo causa uma resposta emocional negativa no sujeito que o percebe. É o que ocorre ao se perceber um androide altamente realista, ou mesmo membros protéticos. A resposta emocional fruto da interação com esses objetos se traduz em uma repulsa característica. Ainda que esta diferença na recepção possa ser uma questão de gosto, é através do conceito de “uncanny” negativo que Redstone (2013) trabalha sua discussão. Para o termo “uncanny” de sentido negativo encontramse alguns sinônimos provenientes da língua inglesa, os quais se traduzem para o português da seguinte forma: “eerie” = misterioso; “creepy” = arrepiante; “spooky” = asustador; “weird” = esquisito; “odd” = ímpar. De uma forma ou de outra, todos esses termos podem ser utilizados para descrever situações ou objetos “uncanny”. Contudo, para “uncanny” em específico pode-se destacar a tradução para os termos “estranho”, “inquietante” ou a mistura deles, “estranhamente inquietante” e “inquietantemente estranho”. Em sua tese, Redstone (2013) apoia a discussão do conceito de “uncanny” em uma abordagem na qual se mostra coerente o emprego da tradução para o termo “estranho”, no português. Interessado na origem da discussão conceitual de “estranheza”, Redstone (2013) também analisa as obras dos autores Ernst Jentsch (1906) e Sigmund Freud (1919), sobre a Psicologia do 88


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21. Ambos os pensamentos de Jentsch (1906) e Freud (1919) foram melhores desenvolvidos e explicados na seção "Conceito de uncanny". deste capítulo.

estranho. Em sua leitura, a principal diferença entre os autores é que Jentsch (1906) concentrou-se na discussão das condições psíquicas essenciais para a ocorrência da sensação de estranheza – a ideia de incerteza psíquica sobre algo – enquanto Freud (1919) propõe uma orientação a respeito daquilo que é a essência do estranho – o retorno do familiar reprimido. Ainda que os pensadores propuseram visões com focos diferentes, é possível encontrar fortes similaridades nas suas ideias. Para Jentsch (1906), a estranheza, que é fruto da incerteza psíquica, tem seu ponto alto no questionamento se algo é, de fato, animado ou inanimado, assim como na dúvida sobre a existência de funções mentais em um determinado objeto. Já para Freud (1919), uma leitura semelhante encontra-se no resgate de uma visão animista de universo e na crença da onipotência de pensamentos.21 Redstone (2013) concorda com Freud e acredita que o resgate do animismo pode assumir um importante papel para o fenômeno do Uncanny Valley, no entanto, ele deu preferência às ideias de Jentsch (1909), pois além destas serem mais consistentes com o pensamento de Mori (1970) – em que o Uncanny Valley teria uma explicação evolucionária, sendo fruto ou parte do nosso instinto de auto-preservação – Jentsch também antecipou uma ideia básica da qual Redstone entende como uma das causas do fenômeno do Uncanny Valley, que é a dificuldade na categorização de um objeto estranho. Para Jentsch (1906, p.227), Uma certeza intelectual proporciona um abrigo, uma segurança psíquica, na luta pela existência, na qual a falta de tal certeza é equivalente à ausência de uma cobertura na infinita guerra da sobrevivência entre humanos e o mundo orgânico.

Por outro lado, ambos os pensamentos de Jentsch (1906) e de Freud (1919) acerca do estranho podem ser, indiscutivelmente, reduzidos à ideia de uma percepção falha dos atributos de animacidade e de agência, como explicação da origem da sensação de estranheza. Por exemplo no caso dos androides altamente realistas, eles se movem e portanto, aparentam ser animados, e eles também tendem a agir com um certo objetivo aparente em mente, quando são programados para realizarem uma determinada tarefa, então aparentemente os androides possuem funções mentais e corporais características de um organismo autônomo, como os seres humanos. Isto, de forma ou de outra, entra em conflito com aquilo que se sabe sobre robôs e outros artefatos, que naturalmente 89


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22. Richard Lazarus foi professor no Departamento de Psicologia, na University of California, em Berkeley, onde foi nominado um dos mais influentes psicólogos, pela American Psychologist. Lazarus foi pioneiro no estudo das emoções e do stress, especialmente em suas relações com a cognição. 23. Jesse J. Prinz é um notável professor de filosofia e diretor do Committee for Interdisciplinary Science Studies na City University of New York, Graduate Center. Seus trabalhos concentram-se primariamente em filosofia da psicologia e ética. Já escreveu diversos livros e mais de 100 artigos sobre emoções, psicologia moral, estética e consciência.

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são incapazes de possuírem animacidade ou mesmo a capacidade de agir – agência. Este conflito resultante da percepção ou atribuição errônea dos atributos de animacidade e agência é o principal fator causador da sensação de estranheza, de acordo com o que Redstone desenvolve em sua tese. Antes de adentrar à discussão a respeito do fenômeno do Uncanny Valley em si, é importante uma breve apresentação da grande contribuição formulada na tese de Redstone (2013): o autor introduz a sua “Teoria da Estranheza” ou, como a chamou, “Theory of Eeriness”. A estranheza é uma emoção historicamente não muito estudada e, portanto, seu conceito não havia sido ainda claramente definido. A fim de determinar o que é exatamente a emoção da estranheza, Redstone introduz primeiramente uma reflexão acerca do conceito de ‘emoção’. Em meio às diferentes abordagens para a definição de ‘emoções’, Redstone discute duas em especial. Na primeira abordagem, apresentada no trabalho de Richard Lazarus22 (1991, p.38-39), emoções são “processos cognitivos em que são feitos julgamentos a respeito de como eventos do ambiente podem afetar o sujeito”. Assim também, emoções são indicadores de qual categoria se encaixa determinado evento vivido pelo sujeito, podendo este ser de três tipos: prejudicial, nocivo, perigoso; ameaçador, alarmante; ou então benéfico, vantajoso, proveitoso. (Lazarus & Lazarus, 1994, p.4) Por outro lado, em uma segunda abordagem na definição de ‘emoções’, Jesse Prinz23 (2004) defende que estas são mais de caráter perceptivo do que cognitivo. Emoções seriam estados corporais que representam a relação de um sujeito com o seu ambiente. No entanto, enquanto para Lazarus as emoções são julgamentos construídos a partir da cognição, ou seja, frutos do conhecimento e do pensamento, para Prinz (2004) as emoções são julgamentos percebidos, tais atributos já fazem parte da característica do ambiente e apenas são adquiridos pelo sujeito ao se inserir em meio a este. Para formular sua teoria da estranheza, Redstone se preocupa primeiro em determinar que tipo de emoção é a estranheza. Portanto, para isso, ele faz uso de alguns elementos da abordagem conceitual de Lazarus, mas no geral, sua teoria é mais compatível com o que defende Jesse Prinz. Nesta investigação, os estudos empíricos de Ho et al (2008) e de Burleigh et al (2013) possibilitaram um caminho a ser seguido. Ambos os pesquisadores buscaram descrever as emoções sentidas


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na interação de sujeitos com criações de semelhança humana, sejam elas robôs ou personagens CG. Ho e seus colegas (2008) fizeram testes em que mediram a movimentação dos olhos, assim como outras respostas fisiológicas de participantes enquanto assistiam a vídeos com robôs, sendo alguns destes robôs muito semelhantes a humanos e outros com aparência mais mecânica. Enquanto os participantes assistiam os vídeos, eles eram requisitados a responderem questionários onde descrevessem as emoções sentidas durante a sessão. No resultado dos testes, Ho e sua equipe concluíram que os participantes associaram predominantemente as palavras “eerie” – estranho – e “creepy” – arrepiante – com os vídeos dos robôs. Além disso, estas palavras foram frequentemente associadas com os conceitos de “medo”, “choque”, “desgosto” e “nervosismo”. Mais recentemente, os testes empíricos de Burleigh et al (2013) alcançaram resultados semelhantes aos de Ho et al (2008). Burleigh e sua equipe usaram as palavras “medo”, “desgosto” e “atratividade” como medidas para se analisar a emoção de estranheza nos testes aplicados. Os resultados encontrados correlacionaram positivamente as medidas de “estranheza” com as de “medo” e “desgosto”, contudo, “estranheza” foi correlacionada negativamente com as medidas de “atratividade”. Ainda que ambos os estudos não tenham se concentrado em definir a emoção da estranheza, pôde-se concluir através destes que a emoção de estranheza está fortemente associada com o medo, ao menos quando se trata da interação com objetos de semelhança humana. Estes estudos são uma indicação de que sentir estranheza é próximo do que se sentir assustado. Esta conclusão concorda com a proposição elaborada por Freud (1919), em que as sensações associadas ao estranho fazem parte da categoria emocional do medo. No entanto, existem diversos tipos de medo. O medo causado através de um susto provoca sensações diferentes de um medo de se perder um ente querido ou um objeto de valor. A sensação de pânico difere muito de uma sensação de terror ou de nervosismo, assim como a ansiedade também é um medo bastante específico. A fim de se determinar a qual tipo de medo a emoção de estranheza faz parte, Redstone (2013) aborda o que foi proposto por Lazarus & Lazarus (1994) a respeito da diferenciação do medo em duas categorias. A primeira delas é a categoria do medo característico de uma ameaça concreta ao bem-estar, sendo esta 91


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ameaça causada a partir de um objeto direto, intencional. Esta categoria engloba as emoções de medo como choque, susto, pavor, horror. A segunda é a categoria da ansiedade. Em paralelo com a teoria da emoção e julgamentos cognitivos de Lazarus (1991), diferentemente do pavor, espanto ou susto, a ansiedade é um medo muito mais ambíguo e incerto, pois nela não se tem um objeto específico. Alguém que sinta ansiedade pode não ser capaz de articular exatamente porque se sente assim, ou mesmo podem não existir razões aparentes para esta reação emocional. Ainda em acordo com Lazarus (1991, p.234), as principais marcas psicológicas da ansiedade são a incerteza e a ambiguidade, as quais produzem uma tensão psicológica no sujeito que as sente. A partir deste posicionamento, Redstone (2013) propõe um paralelo entre a tensão psicológica associada com a ansiedade e a sua relação com a ideia de incerteza psíquica discutida anteriormente por Jentsch (1906). A análise de ambos os casos resultam na conclusão de que a estranheza é muito mais coerente com a categoria de ansiedade do que a de pavor ou susto. Assim, apoiando-se na ideia de Freud (1919) de que a estranheza faz parte de alguma categoria emocional do medo, Redstone (2013, p.70) conclui que a emoção da estranheza é um tipo medo, característico da ansiedade: A estranheza é uma forma de ansiedade pois um sujeito encontra problemas ao articular por que alguma coisa estranha lhe causa tal sensação. Em outras palavras, se alguém encontra um objeto, pessoa ou situação estranha, este pode não ser capaz de te dizer exatamente por que, mas apenas considera como estranho tal objeto, pessoa ou situação.

Uma vez assumida ideia de que a estranheza é um tipo de ansiedade, fruto da incerteza ou ambiguidade de algo, e que esta gera uma espécie de tensão psicológica, semelhante à discutida por Jentsch (1909), Redstone (2013) aproveita para então apresentar e discutir a hipótese de Mortalidade Saliente - “Mortality Salience” -, formulada por MacDorman (2005), na qual este defende uma possível causa para a estranheza percebida em robôs, androides de outros artefatos semelhantes a humanos. Seguindo a linha de pensamento de Becker (1973), MacDorman (2005) propõe que tais objetos seriam conscientes ou inconscientes lembretes da morte e por isso causam estranheza em quem os percebe. Sendo assim, MacDorman levanta a hipótese de 92


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que sujeitos, ao interagirem com artefatos de semelhança humana, empregam estratégias de manejo de terror, para lidarem com a angústia existencial e com a ideia da morte inevitável. Passam então a apelar para outras visões de mundo culturalmente suportadas, nas quais diferentes crenças sobre a natureza da morte justificam e amenizam essa angústia. Seria o caso da crença na vida pós a morte, na reencarnação, na possibilidade de comunicação com os mortos, dentre outras. Redstone (2013) concorda em parte com MacDorman (2005) de que alguns robôs e androides podem ser lembretes da morte e que causam aos sujeitos que os percebem apelar para estratégias de manejo do terror. Sobretudo se tais artefatos possuírem já inicialmente o intuito de se assemelharem a cadáveres, seja por sua aparência ou por movimentações não humanas – este foi o caso para MacDorman (2005), em sua tese foram utilizados robôs bastante realistas, mas que desde o início apresentavam movimentos e atitudes bizarras, como virar os olhos para trás, entre outras. No entanto, Redstone não acredita que esta seja a verdadeira causa da estranheza na interação com artefatos semelhantes a humanos, uma vez que estas criações podem não ser assustadoras de uma maneira semelhante à percepção de cadáveres. Ainda que estas ideias tenham alguma relação com o fenômeno do Uncanny Valley, já que Mori (1970) posiciona os cadáveres em um ponto bem ao fundo do vale no gráfico, Redstone retoma o argumento de Jentsch (1906) como uma explicação para a estranheza característica em cadáveres. Jentsch (1906, p.15) escreve que o horror causado por um corpo morto pode ser explicado pelo estado latente de animacidade, ainda aparente nestes corpos. Em outras palavras, Redstone (2013, p. 76) explica: Geralmente se espera que outro humano apresente animacidade. Um cadáver, especialmente aquele fruto de uma morte recente, pode parecer de certa forma como se a qualquer momento pudesse levantar e então se movimentar novamente, como se apenas estivesse dormindo ou em coma.

Assim, diferentemente do que propõe MacDorman (2005), Redstone acredita que a estranheza produzida como resposta na percepção ou interação com cadáveres não é fruto exatamente do medo ou ansiedade da morte, mas sim um produto da incerteza psicológica ao saber se um corpo, aparentemente humano, está 93


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24. Esta ideia basicamente representa a teoria da Percepção Imaginária, apresentada por Misselhorn (2009), a qual será posteriormente discutida e retrabalhada na abordagem de Joshua Redstone (2013).

vivo ou não. Ainda que se tenha a absoluta certeza de que este não é mais um ser vivo, um cadáver recente produz nas pessoas uma tensão psicológica, já que sua aparência é tão similar à de uma pessoa ainda viva. Mesmo de forma não consciente, um sujeito continua a projetar atributos característicos de seres com vida24. Esta percepção errônea de atributos de seres vivos – como por exemplo animacidade ou funções mentais – em cadáveres é uma das explicações que Redstone se baseia para a formulação de sua teoria da estranheza. Esta seria também a explicação para Mori (1970) posicionar os zumbis no ponto mais profundo do vale da estranheza, no gráfico do fenômeno do Uncanny Valley. Os zumbis, ou mortos-vivos, são seres que se movem e possuem um objetivo em mente, mas que basicamente deveriam estar mortos. Uma vez que um organismo vivo morreu, este não pode voltar a apresentar características de um ser vivo, tais como a capacidade de se mover de maneira autônoma ou mesmo de aparentar ter objetivos a cumprir. A percepção de atributos de seres vivos em organismos mortos é algo que naturalmente causa estranheza. Torna-se incerto definir com certeza se aquele organismo é algo realmente vivo ou não. Em um retorno à ideia de que o Uncanny Valley e a estranheza possuem uma explicação evolucionária, Redstone (2013, p.77-78) ressalta também a importância de se ter a certeza se algo é vivo ou não: Se, por exemplo, um sujeito está certo de que algo vivo encontra-se no seu mesmo ambiente, uma vez que esta coisa viva possa ser tanto um predador quanto um ser da mesma espécie, este sujeito está numa melhor posição para sobreviver e evitar ameaças do que alguém que não esteja certo disso. De fato, saber o que é vivo e o que isso pensa de você é uma parte integral da vida, da mesma forma como o foi evolutivamente para nossos ancestrais, já que somos animais altamente sociais.

Tendo isto em mente, não é difícil pensar em como a incerteza ao afirmar se algo é animado ou não e se possui realmente funções mentais possa causar ansiedade no sujeito, especialmente se este está incerto sobre um ou ambos os atributos presentes em algo tão semelhante a um humano, quanto um androide ou personagem CG altamente realista. Ainda na discussão da hipótese de Mortalidade Saliente de MacDorman (2005), Redstone justifica não desenvolvê-la ainda 94


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mais, pois, nesta hipótese, a estranheza causada por artefatos de semelhança humana estaria subordinada a uma resposta de desgosto, devido à preocupação de se evitar patogenias ou mesmo fruto da opção por uma estética evolucionária, como se concluiu nos estudos de MacDorman et al (2009a e 2009b), de MacDorman & Ishiguro (2006) e de Etcoff (1999). Ou seja, em outras palavras esta hipótese também defendia a ideia de que um sujeito se sentiria estranho ao perceber um robô, um androide ou personagem CG altamente realista, por relacionar atributos destes artefatos a características de pessoas doentes – tanto doenças mentais como psicopatias, quanto doen – ou mesmo de pessoas feias, esteticamente falando. No entanto, para Redstone o desgosto possui uma fenomenologia distinta da estranheza, que é o real foco de sua discussão. Para ele, tanto o desgosto quanto a estranheza podem ocorrer simultaneamente, assim o desgosto pode realmente assumir um papel no fenômeno do Uncanny Valley. Mas em um processo de ordenação, Redstone (2013, p.134) defende que “um sujeito que sinta desgosto por algo doente ou feio deve primeiro determinar o que de fato é tal coisa, para depois se questionar se tal coisa é doente ou feia”. Desta forma, Redstone rejeita a hipótese de Mortalidade Saliente, de MacDorman (2005), como sendo esta uma explicação para a sensação de estranheza no fenômeno do Uncanny Valley e, seguindo o mesmo raciocínio de seu contra-argumento para esta hipótese, dá início a apresentação de uma linha de pesquisa de diferentes autores que defendem exatamente a dificuldade na categorização de alguma coisa como um dos principais fatores causadores da sensação de estranheza observada em artefatos de semelhança humana. Entendendo a ‘categorização’ como “processos psicológicos que as pessoas usam para reconhecer e entender as coisas no mundo”, Redstone (2013, p.82-83) denominou esta abordagem como “Categorical Anomaly Hypothesis” (CAH), ou a hipótese de Categorização Anômala, em português. A partir da sugestão de Ramey (2005) e dos estudos empíricos de Burleigh et al (2013) e Yamada et al (2013), esta hipótese sugere que artefatos de semelhança humana, como robôs, androides e personagens CG, compartilham atributos de mais de uma categoria ontológica, de forma que a dificuldade na categorização precisa destes artefatos resulta na tensão psicológica responsável pela sensação de estranheza no fenômeno do Uncanny Valley. Categorias ontológicas, neste caso, dizem respeito às categorias universais dos diferentes seres – conjunto de processos 95


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e atributos que usamos para caracterizar e diferenciar um tipo universal de ser em relação a outro tipo, por exemplo, um ser humano não é um robô, nem um personagem CG é tão pouco um ser humano. (Redstone, 2013, p.82-86) Ramey (2005) foi o primeiro teórico a sugerir que o fenômeno do Uncanny Valley resulta da ambiguidade categórica de um objeto estranho, ou seja, que um objeto é estranho pois apresenta atributos ambíguos. Basicamente ele defende que um objeto pode se tornar estranho quando possuir atipicidades categóricas, ou como Redstone (2013) os chama, “atributos anômalos”.

25. Ramey apud Redstone, 2013, p.88

Artefatos com semelhança humana podem ser anomalias paradoxais de categorização, caso estes sejam suficientemente antropomórficos. Quando um artefato apresentar atributos suficientes para se aproximar a uma fronteira categórica, torna-se difícil para um sujeito determinar a qual categoria ontológica pertence aquele artefato – humano/não humano, natural/artificial, animado/inanimado, etc. 25

De fato, existe pouco material empírico a respeito da dificuldade de categorização e sua participação no fenômeno do Uncanny Valley. No entanto, estudos recentes de Yamada et al (2013) e Burleigh et al (2013) concluíram que a dificuldade no processo de categorização de um objeto pode resultar geralmente em uma avaliação negativa deste objeto. Nos estudos de Yamada et al (2013), participantes dos testes foram requisitados a avaliarem a agradabilidade e a categorizarem imagens de objetos, que através da técnica de morphing transformavam-se uns nos outros, por exemplo, um bicho de pelúcia, que se transformava gradualmente em um ser humano e que depois se transformava em um personagem cartoon. Nestes testes, a latência – o intervalo de tempo – para a categorização de um objeto em um determinado momento de sua transformação foi usado como um parâmetro para indicar a ambiguidade de categorização deste estado do objeto. Em todos os três estudos de Yamada e sua equipe (2013), observou-se que quanto mais características de categorias distintas possuía um objeto em determinado estado de transformação, maior foi o tempo que se levou para categorizá-los. Da mesma forma, observou-se que os menores níveis de agradabilidade ocorreram quando o tempo que se levou para categorizar os objetos fosse maior. Através destas circunstâncias observadas, Yamada e sua equipe 96


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(2013) concluíram uma forte correspondência entre a avaliação negativa de alguma coisa e a ambiguidade de categorização desta. Ou seja, quanto mais categoricamente ambíguo for determinado objeto, pior será sua avaliação de agradabilidade. Defenderam então que a falta de fluência no processo de categorização de um objeto é o principal fator que promove a avaliação negativa deste objeto. Um detalhe interessante encontrado no terceiro estudo de Yamada et al (2013) é que a ambiguidade entre as categorias “homem” e “mulher” tem menor efeito na dificuldade de categorização de um objeto do que a ambiguidade entre seres de diferentes categorias ontológicas como humano/bicho de pelúcia, humano/robô, etc. Redstone (2013, p.90) comenta que isso se deve, provavelmente, ao fato de que ambas as categorias “homem” e “mulher” pertencem à categoria mais universal “ser humano real”, enquanto que as categorias “bicho de pelúcia” e “personagem cartoon” são ontologicamente muito mais distintas. Assim, tornase muito mais difícil de se categorizar um objeto que situa-se na fronteira categórica, ao possuir atributos de ambas as diferentes categorias. Mesmo assim, Redstone (2013) defende que esta falta de fluência não pode ser a única condição suficiente para a avaliação negativa, tendo em vista o contra-argumento de Freud (1919) e outros para a ideia de Jentsch (1906), de que nem tudo o que não é familiar e desconhecido pode causar estranheza. A fim de explicar as outras condições para a avaliação negativa, Redstone procede com a apresentação dos estudos de Burleigh et al (2013). Nos estudos de Burleigh e sua equipe (2013), ao invés de avaliar a agradabilidade de um determinado estímulo, mediu-se o nível de estranheza deste, assim como seus níveis de ambiguidade na categorização. Burleigh et al (2013) concluíram que quanto mais ambíguo for uma determinada representação, maior é o nível de estranheza. Nos resultados encontrados no estudo, entre o morfismo da figura de um bode e a figura de um ser humano, os maiores níveis de estranheza foram encontrados no grau intermediário de transformação bode-humano, isto é o que Redstone (2013, p.94) chamou de “fronteira categórica”. Esta se passa onde a representação apresenta numerosos atributos tanto da categoria “bode”, quanto da categoria “humano”, o que dificulta escolher apenas uma entre elas durante o processo de categorização. Outro estudo empírico analisado por Redstone (2013) foi o de Looser & Wheatley (2012). Através de experimentos, este estudo concluiu que as pessoas normalmente começam a conceder 97


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26. Os termos “objetos transcategóricos” e “objetos liminares” foi utilizado pela primeira vez por Kang (2011, p.3235) ao definir os autômatos como a anomalia categórica mais extremada. Kang descreve os autômatos como “objetos artificiais que agem como se estivessem vivos; são feitos de material inerte, mas se comportam como se fosse de carne e osso; são uma representação que recusa permanecer como uma versão estável do seu representado; são do mundo do inanimado, mas possuem características de uma criatura animada; e, finalmente, são coisas produzidas a mão que imitam mimicamente seres vivos.” (Kang, 2011, p.36)

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atributos de diferentes categorias, como atribuir animacidade e agência a coisas inanimadas e não pensantes, justamente a partir do momento em que essas coisas passam a se encaixar nas fronteiras entre categorias ontológicas distintas entre si. Os estudos de Looser & Wheatley (2012) usaram imagens com morfismos entre manequins e humanos reais. Eles observaram que o ponto em que os indivíduos testados começaram a atribuir animacidade à imagem de morfismo manequin-humano esteve fortemente correlacionado com o ponto em que se atribuiu também funções mentais, ou seja, a existência de uma mente pensante por trás daquela figura. E estes pontos sempre foram marcados no limite entre as categorias de seres animados e inanimados, ou seja nos momentos em que o estímulo pertencesse à mais ambígua situação categórica. Assim, de maneira coerente com aquilo que foi proposto por Jentsch (1906) – de que a estranheza é causada pela incerteza se alguma coisa é animada ou inanimada e se esta apresenta funções mentais ou não – no que diz respeito à interação com artefatos semelhantes a humanos, as pessoas que sentem estranheza percebem atributos – como animacidade e agência – que fazem parte de uma categoria ontológica diferente da categoria deste artefato estranho – seja esta a categoria de robôs, androides, personagens CG, etc. A percepção de atributos de uma categoria diferente daquela que realmente pertence o artefato entra em conflito com aquilo que o sujeito sabe sobre tal artefato – de que ele não deve apresentar tais atributos. Este conflito entre o que o sujeito percebe e aquilo ele sabe sobre a categoria de artefatos assemelha-se com o que foi proposto tanto no estudo de Burleigh et al (2013), quanto nas ideias de MacDorman (2009b). Foi sugerido uma analogia entre a tensão psicológica que um estímulo categoricamente anômalo causa e o estado psicológico conhecido como “dissonância cognitiva”, introduzido pela teoria de Leon Festinger (1957). Os pesquisadores sugerem que diferentes áreas e níveis de processamento mental – os quais estão associados a estímulos de categorias diferentes – acabam sendo ativados por objetos liminares, ou transcategóricos 26 , como as criações com semelhança humana – robôs, autômatos, androides, personagens CG, etc. Ou seja, alguns elementos cognitivos e perceptivos dessas criações são processados simultaneamente no sujeito que os percebe e, neste, são dissonantes entre si. Um robô, por exemplo, se altamente realista, poderia ser percebido como um artefato, uma criação produzida pelo homem, ao mesmo


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tempo em que determinados atributos de semelhança humana simultaneamente ative áreas de processamento mental associadas à percepção de humanos reais. Tais processamentos mentais se contradizem e isso resulta numa tensão psicológica. Por outro lado, Redstone (2013) defende que esta dissonância de elementos, que ocorre na interação ou percepção de artefatos semelhantes a humanos, dá-se de maneira um pouco diferente daquela introduzida por Festinger (1957). Em sua teoria da “dissonância cognitiva”, Festinger (1957, p.761;770-771) defende que um indivíduo experimenta uma inconsistência na sua tomada de decisão, ao se submeter ao processamento mental – cognição – de dois ou mais elementos que não são coerentes entre si. Basicamente, esta dissonância consiste numa incongruência entre aquilo que o indivíduo acredita e aquilo que ele faz, ou a maneira como ele se comporta. Esta incongruência, por sua vez, ocasiona no indivíduo um desconforto, que permanece até que ele encontre formas para amenizar esta dissonância. Neste caso, o indivíduo deve se esforçar para retornar a uma situação de consonância entre suas crenças e a maneira como se comporta. Ele pode modificar crenças antigas, adquirir ou trocar por novas, ou mesmo assumir outros comportamentos. Por conta disso, a “dissonância cognitiva” de Festinger (1957) possui um caráter ‘motivacional’, ou seja, ela estimula o indivíduo em dissonância a alterar um dos elementos incongruentes, ou mesmo a trocar um destes elementos por um novo, para que então o indivíduo retorne a uma situação confortável. No entanto, isso não se dá de maneira automática, é preciso um esforço consciente do indivíduo para que este substitua elementos em sua cognição. Esta dissonância difere daquela defendida por Redstone (2013) na ocorrência do fenômeno do Uncanny Valley. Apoiandose nas ideias de Prinz (2004), Redstone (2013, p.101) defende que a fenomenologia das emoções é melhor descrita de forma perceptiva do que cognitiva. Desta forma, a emoção de estranheza, ou mesmo a sensação de medo e ansiedade no geral, são frutos de julgamentos percebidos no ambiente e não julgamentos construídos cognitivamente. Por exemplo, se por um estímulo determinado um indivíduo se assuste e fique com medo, sua experiência é mais similar à fenomenologia de outras sensações corporais como a fome ou a dor, do que se fossem fruto de um pensamento. Suas sensações são automáticas e não necessitam de um controle consciente, como os são os pensamentos. 99


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Desta forma, diferentemente de um ‘resultado de cognições dissonantes entre si’ – as quais seriam frutos de processos conscientes – Redstone (2013) defende que dissonância causada no fenômeno do Uncanny Valley é fruto da discordância entre “propensões inatas ou habituais de se responder a um estímulo de maneira determinada”. Este é o conceito de alief, introduzido por Tamar S. Gendler, em 2008. Gendler (2008) defende que alief seria um estado mental no qual respostas comportamentais são geradas automaticamente através da associação de imagens mentais, que são incitadas de imediato através da percepção de estímulos do ambiente. Ou seja, é um estado em que o sujeito apresenta atitudes habituais a um determinado estímulo, de maneira automática. Por exemplo, uma pessoa que assiste a um filme de drama, no qual acontece uma tragédia com os personagens da história, ainda que esta pessoa saiba e tenha a certeza de que tudo se passa em um mundo ficcional, seus aliefs a fazem chorar interminavelmente. Sua atitude de choro não é fruto de uma cognição, ela apenas chora, pois está habituada a chorar ao presenciar acontecimentos tristes, como uma tragédia. Neste caso, trata-se de aliefs norma-discordantes, em que ‘saber que a história se passa numa ficção’ é uma norma, da qual ‘chorar sem motivos reais’ é discordante. Este estado mental também é caracterizado por ser mais primitivo do que outros estados, como crenças, imaginações, desejos etc. Desta forma, ele não pode ser um fator para se alterar crenças, como ocorre no caso da Dissonância Cognitiva de Festinger (1957). No caso do fenômeno do Uncanny Valley, acontece que um sujeito, mesmo estando perfeitamente confiante de que uma criação com semelhança humana não é um humano real – sendo esta proposição uma norma – ao interagir com este artefato, o sujeito apresenta atitudes e comportamentos característicos dos que se tem na interação com humano reais – o que é então discordante – e isto se dá de maneira automática, logo ao associar a percepção de estímulos categoricamente ambíguos, como aparente animacidade e aparentes funções mentais, em um ser altamente realista. Isto acontece devido a uma aplicação errônea e automática daquilo que Dennet (1989) nomeou como “posturas intencionais”. Estas consistem no tratamento de objetos inanimados como se fossem agentes racionais, e portanto, como se possuíssem intenções. Ao perceber uma criação com semelhança humana, um sujeito nota que o estímulo em questão aparenta ser animado e, desta forma, seus movimentos aparentam ter um objetivo, uma intenção. E para 100


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27. Referência à pág. 94 deste trabalho.

se comportar desta maneira, provavelmente esta coisa deva ter funções mentais. Assim, ao atribuir intenções ao artefato humano, o sujeito interage com ele, como se tal artefato fosse um agente racional e autônomo. Estas aplicações errôneas ocorrem automaticamente pois são frutos de habilidades cognitivas sociais que não exigem um nível de processamento consciente. Os mecanismos que dão base para estas habilidades são chamados por Bargh & Chartrand (1999) como “mordomos mentais” (mental butlers, no inglês). Estes se definem por processos que deixam habilidades de alta cognição livres para novos estímulos e situações, sendo assim processados paralelamente e sem esforço consciente. Esta automaticidade justifica também, em acordo com Dennett (1989), o fato de frequentemente se atribuir tais “posturas intencionais” a coisas que não são verdadeiramente racionais, como no caso de quando se fala que uma árvore quer crescer mais na primavera, ou de um computador, que não quer deixar alguém vencê-lo numa partida de xadrez virtual. Isto é o que ocorre na percepção de artefatos com semelhança humana. Ao atribuir intenções e perceber uma aparente animacidade – ou a possibilidade desta, em um ser com aparência altamente realista – um sujeito encontra-se habituado a tratar aquela criação como se fosse um ser com funções mentais, ou seja, o sujeito tende a se comportar como se estivesse perante um ser humano real. Uma vez que se tenha percebido funções mentais, automaticamente o indivíduo busca entender aquele ser através da ignição de um processo de empatia e isso se dá como um reflexo inconsciente. O indivíduo tenta determinar empaticamente o que aquele ser está pensando, sentindo, no que aquilo acredita e quais são suas intenções, a fim de se estabelecer em uma situação segura. Já foi discutido a importância de se poder afirmar com certeza se algo é vivo ou não e o que isto pensa de você, uma vez que essa coisa possa ser um predador ou alguém que represente uma ameaça ou um problema a ser evitado 27. Este processo pode se dar através de uma empatia cognitiva, a qual seria uma forma de se tentar entender aquilo que o outro pensa, ou através de uma empatia afetiva, que consiste na tentativa de se entender aquilo que o outro sente. Para Crane (1995), empatia cognitiva é aquilo que ele também chama de “Psicologia de senso-comum” ou “Folk Psychology”, em inglês. Crane dá esse nome pois defende que esta consiste em 101


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uma série de princípios de senso-comum, que as pessoas costumam projetar sobre as outras, através da experiência do dia-a-dia, a fim de se saber o que os outros estão pensando. Para esta empatia cognitiva, Redstone (2013) se concentra em duas ideias principais. A primeira diz respeito ao que Maibom (2007a; 2007b) chama de “Teoria da teoria”, em que um sujeito forma uma “teoria” sobre o comportamento do outro, baseado naquilo que ele sabe do seu próprio comportamento. A segunda ideia é aquela que Crane (1995) chama de “Teoria da Simulação”, na qual um sujeito simula a situação do outro, ao se imaginar ele próprio na mesma situação, deduzindo assim o que o outro pensa, e qual será o comportamento e as atitudes do outro perante tal situação. No fenômeno do Uncanny Valley, Redstone (2013) defende que a empatia cognitiva com criações semelhantes a humanos é possível devido à ativação de mecanismos neurológicos que MacDorman (2009b) chama de “Sistema de Neurônios Espelho”. Trata-se do sistema de mecanismos neurológicos que são ativados igualmente tanto quando uma ação é performada, quanto durante apenas a observação de uma ação. Por exemplo, um sujeito A que percebe a atitude de outro sujeito B ativa mecanismos neurológicos da mesma forma como se o próprio sujeito A estivesse realizando a mesma atitude performada por B. Redstone (2013) defendeu a ativação desses mecanismos neurológicos e, consequentemente, a possibilidade da empatia cognitiva com artefatos de semelhança humana através de duas linhas de estudos empíricos. Uma delas, realizada por Gazzola (2007), no qual ele concluiu e comprovou a ativação do “Sistema de Neurônios Espelho” durante a percepção de um braço robótico em funcionamento. Através da movimentação do braço robótico, a qual era orientada e objetivada – ou seja, aparentava ser intencional – Gazzola (2007) verificou a ativação de mecanismos neurológicos semelhantes aos ativados na percepção de ações orientadas realizadas por seres humanos. A partir disso, Redstone (2013) propõe que esta ativação destes mecanismos se dá também com outros tipos de artefatos de semelhança humana, como robôs, androides, personagens CG, etc. Não restringindo, assim, este comportamento apenas a artefatos com aparência industrial. A outra linha de pesquisa contou com estudos empíricos realizados por Saygin e sua equipe (2011). Nestes estudos, semelhantemente se concluiu que os níveis de atividade mental ao se perceber ações intencionais realizadas por robôs e seres humanos se 102


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correspondiam entre si. No entanto, em um dos estudos percebeuse que houve um aumento na atividade mental destes mecanismos neurológicos ao se perceber um androide, o qual apresenta atributos mais ambíguos do que um robô ou um ser humano. Ficou concluído que tanto a aparência mecânica de um robô, quanto a aparência biológica de um humano correspondiam ao que fosse esperado. Já um androide, apresentou maior atividade mental, característica de uma tensão, pois a percebida aparência biológica do androide era inconsistente com sua percebida movimentação mecânica. Assim também se concluiu que quando o cérebro recebe um estímulo não previsível, pois este contém características categoricamente anômalas, como aconteceu com este caso do androide, ocorrem erros na previsibilidade de suas ações. Esta ideia, justifica através da ativação de mecanismo neurológicos a aplicação errônea de “posturas intencionais”, conceito de Dennett (1989) no qual se lida com objetos inanimados como se possuíssem intenções, ou seja, como se fossem seres racionais. Além do processo de empatia cognitiva, um sujeito que interage com um artefato estranho também inicia um processo de empatia afetiva, na qual o sujeito busca entender aquilo que o outro sente, quais são suas emoções. Uma das explicações para o conceito de empatia afetiva se encontra no trabalho de Maibom (2012), em suas discussões sobre habilidades empáticas. De acordo com Maibom (2012, p.254-255), empatia afetiva é a habilidade de se perceber estados emocionais dos outros e de experimentar emoções em consonância com eles. Esta ideia estrutura-se em um quadro teórico discutido por Maibom (2007a): um sujeito ‘S’ sente uma emoção ‘E’ em outra pessoa ‘O’. Esta emoção ‘E’ é resultante da crença do sujeito ‘S’, de que a outra pessoa ‘O’ sente a emoção ‘E’. Esta crença da emoção de ‘E’ em ‘O’ se dá porque ‘S’ se imagina sentindo ‘E’, como se estivesse também na mesma circunstância ‘C’, a qual se encontra ‘O’. Ou seja, esta empatia afetiva pode ser explicada, em outras palavras, através de um exemplo fictício: Um rapaz chamado Pedro, ao perceber que um morador de rua está morrendo de frio, retira sua blusa e a cede ao morador de rua para que ele se aqueça. Neste caso, Pedro sentiu empatia pelo morador de rua, pois se imaginou naquela situação, no frio que estaria sentindo e como estaria sofrendo, caso morasse na rua e não tivesse sua blusa para se aquecer. Ao se imaginar em tamanho sofrimento, Pedro abdica do seu conforto, a fim de atenuar o sofrimento do morador de rua. Assim a empatia afetiva de Pedro foi fruto de sua auto projeção na 103


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28. A experiência de Milgram foi uma experiência científica desenvolvida e realizada pelo psicólogo Stanley Milgram em 1963. Esta experiência pretendeu inquirir de que forma é que os indivíduos observados no teste tendem a obedecer autoridades, ainda que estas contradigam o bom-senso individual. Um maior detalhamento da experiência pode ser observado em: https://www.youtube.com/watch?v=MDoyN1jXh70 acesso 06/11/2015

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circunstância do morador de rua. Através do conceito de empatia afetiva, Redstone (2013) se apoia na conclusão de Misselhorn (2009), de que a empatia afetiva também é possível com artefatos de semelhança humana. Misselhorn (2009) propõe isto a partir de estudos empíricos realizados por Bartneck et al (2005) e Slater et al (2006). Ambos os estudos contaram com experimentos no estilo Milgram28 . Nestes experimentos, os participantes foram requisitados a dar choques elétricos nos artefatos de semelhança humana, como uma espécie de tortura por estes responderem a questões de forma errada. A intensidade do choque deveria aumentar a cada resposta errada, até chegar ao ponto de um choque letal. No entanto, no experimento original de Milgram, em 1963, toda esta situação foi forjada, a fim de se analisar o poder de submissão e propensão das pessoas a fazerem coisas maldosas a outras pessoas, em justificativa a uma ordem proveniente de autoridade – um ator se passa por um professor cientista, o qual ordena o participante a, ainda que este não queira mais dar choque no indivíduo, continue a dar o choque no outro participante e com cargas cada vez maiores. Ao utilizarem artefatos de semelhança humana – nestes casos, robôs – estes estudos de Bartneck et al (2005) e Slater et al (2006) buscaram medir se os participantes agiriam de forma mais ou menos cruel com um robô ou personagem CG do que com humanos. Como conclusão desses testes e em comparação com os dados obtidos pela experiência original de Milgram, ainda que os participantes tenham tido menor preocupação em dar choque nos robôs do que nos humanos, eles reportaram sentir compaixão com os artefatos, sobretudo quando eles puderam ver e ouvir as reações dos robôs aos choques. E isso foi diferente no teste com objetos inanimados não-antropomórficos, perante os quais os participantes do teste não reportaram compaixão alguma. Existem outros estudos que complementam a proposta de Misselhorn (2009). Dentre eles, Redstone (2013) comenta ainda um estudo realizado por Rosenthal-von der Pütten et al (2013). Neste estudo, foram examinadas as respostas neurais da ativação de regiões do cérebro relacionadas aos processos de empatia. Para isso, exibiram vídeos aos participantes em que robôs de brinquedo, humanos e objetos inanimados não-antropomórficos eram tratados tanto de maneira afetuosa, quanto de maneira violenta. Os testes resultaram na ativação de tais regiões cerebrais responsáveis pela habilidades empáticas de maneira semelhante nos robôs e nos seres humanos maltratados, ainda que em menor grau para os


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robôs. No entanto, não se obteve praticamente nenhuma ativação dessas regiões a partir dos vídeos de objetos inanimados nãoantropomórficos sendo maltratados. A partir destes resultados, Misselhorn (2009) pode comprovar a existência de empatia afetiva com artefatos de semelhança humana. Assim, para explicar esta ocorrência de empatia com artefatos, Misselhorn (2009) formula a hipótese da “Percepção Imaginativa”. Esta hipótese propõe que mesmo um artefato sendo um objeto inanimado produzido pelo homem, as pessoas podem sentir empatia afetiva com ele através de uma percepção imaginária de emoções “sentidas” pelo objeto inanimado. Ou seja, a partir da interação de um sujeito com um artefato semelhante a humano, o sujeito projeta, através da sua imaginação, emoções que o artefato estaria sentindo e então ele se auto projeta na mesma circunstância do artefato, sentindo assim as mesmas emoções anteriormente projetadas ao objeto inanimado. Misselhorn (2009) defende que devido à similaridade de aspectos entre duas determinadas coisas, a “percepção imaginativa” de emoções em uma delas pode ativar conceitos pertencentes à outra. Misselhorn (2009, p. 354) exemplifica esta relação: Características humanas percebidas no rosto de uma boneca podem ativar conceitos de uma face humana real, por esta razão, a experiência de se perceber sorriso em uma boneca soa como perceber um sorriso em um ser humano.

Desta forma para Misselhorn (2009), o nível de similaridade nas características entre as duas coisas seria então determinante para ativação dos conceitos de uma na outra. A partir da formulação desta hipótese, Misselhorn (2009) propõe uma explicação para a estranheza sentida no fenômeno do Uncanny Valley. Misselhorn defende que se as características similares não forem suficientes para sustentar a aplicação de conceitos de uma coisa na outra, o resultado é a sensação de estranheza. Assim, para Misselhorn (2009), essa estranheza seria fruto de uma alternância na aplicação de conceitos pertencentes às duas coisas. Quando a ‘percepção imaginativa’ falha ao acontecer, esta da espaço a uma oscilação na aplicação de conceitos que Misselhorn diz ser semelhante ao fenômeno da Gestalt, em que o sujeito alterna de maneira extremamente rápida entre aplicar ou deixar de aplicar determinados conceitos em uma coisa. A partir desta oscilação, a experiência de se perceber ou interagir com essas criações de semelhança humana vem a se tornar extremamente estranha. Isso 105


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para Misselhorn (2009) caracteriza o fenômeno do Uncanny Valley. Redstone (2013) concorda com Misselhorn (2009) que o fenômeno do Uncanny Valley seja fruto de uma falha na ignição no processo de empatia. No entanto, Redstone contrapõe a hipótese da “Percepção imaginativa” ao argumentar que o que ocorre no fenômeno não é uma alternância na aplicação de conceitos de uma coisa na outra, mas sim aquilo que foi discutido sobre aliefs de norma-discordantes. Redstone (2013) argumenta que esta aplicação de conceitos não se dá de maneira consciente, ou seja, fruto de uma iniciativa consciente do sujeito, como é a imaginação. Para se imaginar alguma coisa, é necessário um esforço consciente do sujeito. Enquanto para Redstone (2013), o fenômeno do Uncanny Valley se dá por um comportamento errôneo gerado automaticamente – como fruto de um reflexo –através da percepção de atributos categoricamente anômalos. Ainda que Misselhorn (2009) tenha esclarecido em seu trabalho que este processo de imaginação se daria de maneira inconsciente, Redstone (2013) defende o conceito de alief, já que para este não seria necessário uma intuição sobre uma aplicação diferente do habitual a respeito do termo ‘imaginação’. Portanto, para a Redstone (2013), a fenomenologia do Uncanny Valley se dá na seguinte forma: Um sujeito inicia a percepção ou interação com artefatos de semelhança humana, sejam estes robôs, androides, personagens CG, manequins, bonecos de cera, etc. Ao fazer isso, este sujeito nota quase que de maneira instantânea que aquilo se trata apenas de um artefato, ou seja, não passa de um objeto inanimado produzido pelo homem. No entanto, durante sua percepção ou interação, este sujeito nota atributos que dificultam seu processo de categorização ontológica daquele artefato. O indivíduo percebe características como aparência altamente realista e similar a um humano, aparente capacidade de realizar movimentos – animacidade –, aparente capacidade para experiência e capacidade para agir, assim como o sujeito passa a então atribuir funções mentais para aquele ser. Entretanto, isto é uma atitude reflexiva, pois o sujeito ainda tem plena consciência de aquilo se trata de um artefato. Mesmo assim, ao perceber tais atributos de difícil categorização – o sujeito percebe tanto atributos que são característicos de humanos, quanto atributos caraterísticos de um artefato, objeto inanimado – e então ao atribuir erroneamente funções mentais àquela criação, o sujeito então inicia automaticamente um processo de empatia com aquele artefato, a fim de entender o que aquilo está pensando, o que está sentindo e quais serão suas próximas atitudes. No entanto, como os atributos 106


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daquela criação com semelhança humana não são suficientes para tornar aquilo um humano real, saudável e verdadeiramente com funções mentais, ocorre uma falha na ignição deste processo de empatia com o artefato. Esta falha gera uma tensão psicológica fruto da incerteza na categorização daquele objeto. Esta tensão psicológica é um tipo de ansiedade, a qual se chama de sensação de estranheza. A partir de toda esta discussão e orientação filosófica a respeito do fenômeno do Uncanny Valley, Redstone (2013) explicou então como a resposta emocional positiva na interação com artefatos de semelhança humana se altera para uma resposta emocional negativa, que é a estranheza, característica do fenômeno. Ao concluir a revisão da explanação teórica apresentada por Joshua Redstone (2013), este trabalho encerra a apresentação do contexto histórico a respeito do fenômeno do Uncanny Valley. Este capítulo teve a intenção de possibilitar ao leitor um aprofundamento conceitual na temática do fenômeno. Com a apresentação do próximo capítulo, será proposto ao leitor uma aplicação prática de alguns conceitos até então discutidos, o que pode clarear também muitas dúvidas de orientação filosófica que surgiram durante a apresentação da teoria. A partir de uma discussão um pouco mais centrada na ocorrência deste fenômeno na produção de personagens 3d estáticos, este trabalho irá propor um agrupamento de quatro aspectos gerais que devem ser determinantes para a ocorrência ou não do fenômeno do Uncanny Valley e, isto, em consonância com os conceitos discutidos pelos autores, aqui apresentados.

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Aspectos determinantes Uma vez que tenha sido feita a contextualização histórica e teórica a respeito da representação digital da figura humana e fenômeno Uncanny Valley, o leitor deste trabalho estará mais bem preparado para discutir uma proposta de categorização dos aspectos gerais determinantes para a ocorrência deste fenômeno. Neste seguinte capítulo, é proposto que todos os elementos passíveis de provocar estranheza durante a percepção de um personagem digital humano podem se encaixar em algum dos aspectos gerais então descritos. Estes devem ser entendidos como se fossem grandes pilares do conhecimento, nos quais devese atentar durante o processo de representação da figura humana, a fim de não provocar ou não estranheza no observador. Sendo assim, defende-se que a estranheza característica do Uncanny Valley é determinada pela desarmonia em algum desses aspectos: coerência anatômica; coerência com aspectos regidos pelas leis da Física; capacidade técnica suficiente para uma reprodução perfeitamente real; e por fim, coerência na expressão emocional do personagem. Contudo deve-se deixar claro que esta proposta se concentra na sensação de estranheza percebida através do Uncanny Valley em uma imagem estática. Para o estranho em movimento, uma série de outras variáveis também podem ser determinantes para a ocorrência de estranheza - mesmo assim, algumas ainda possam se encaixar em algum dos quatro aspectos abordados para criações estáticas -, como por exemplo: sincronia da fala do personagem; compatibilidade do tipo de voz; dinâmica da execução dos movimentos, que diz respeito à velocidade, aceleração e desaceleração desta execução; intensidade e intermitência de movimentação, já que humanos reais não costumam se movimentar constantemente, existem diferentes intensidades e pausas entre os movimentos; entre diversos outros aspectos, os quais podem ser objetos de estudo para uma outra pesquisa.


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anatomia

FIG. 01 - 04 Fotografias de Phillip Todelano: Exemplos de exageros na cirurgia plástica, causadores de estranheza por conta da artificialidade nas formas, incoerentes com a natureza da anatomia humana.

Um dos principais aspectos que este trabalho defende como determinante para a ocorrência do fenômeno do Uncanny Valley é a coerência com a anatomia humana. Certamente, o leitor pode pensar que isto seja óbvio, uma vez que a representação de alguma coisa busca geralmente ser o mais fiel possível do seu modelo original. No caso da representação da figura humana, obviamente o que se espera é uma coerência de formas, estruturas, volumes e nuances características de um ser humano real. O ser humano é um ser social e, portanto, possui a capacidade inata de reconhecer outro ser da sua espécie. Indivíduos que não apresentarem esta capacidade são entendidos como deficientes mentais. Doenças como o autismo caracterizam a ausência desta capacidade de se entrar em sintonia afetiva e cognitiva com os outros. Por isso, é natural que os seres humanos cresçam percebendo-se uns aos outros e acumulando uma biblioteca visual do que consiste ser um humano real e saudável. Por conta disso, automaticamente somos capazes de identificar características físicas não naturais de seres humanos. Percebe-se, logo de início, quando pessoas realizam cirurgias plásticas que alteraram suas formas e estruturas para idealizações não naturais, o que consequentemente se considera como estranho. Da mesma forma, pessoas com deficiências físicas comumente também causam estranheza na percepção, assim como tudo o que foge ao natural, ao ordinário, causa estranheza e, neste caso, não se trata do conceito de beleza, mas sim de natureza humana. O feio, ainda que cause estranheza e desgosto, é por sua vez natural, diferente daquilo que causa estranheza e desgosto por ser artificial e incoerente com sua natureza. No caso do fenômeno do Uncanny Valley, incoerências 111


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FIG. 05 Image do filme da Disney “A Christmas Carol”: Exemplo de estilização cartoonesca em personagem com feições realistas. A estrutura óssea do queixo foi fortemente exagerada e, ao ficar incoerente com a naturalidade humana do resto do rosto, o personagem da direita na imagem é percebido com grande estranheza.

anatômicas podem, logo de início, não serem passíveis de detecção imediata durante a percepção de uma criação de semelhança humana estranha, como um personagem CG hiper-realista. No entanto, mesmo que não se consiga identificar exatamente o que é que esteja incorretamente representado no personagem, alguma forma ou nuance que seja incoerente com a natureza humana certamente influencia na percepção deste personagem. Ao se notar, por exemplo, um busto 3d no qual se exagerou erroneamente ao definir o volume das estruturas ósseas do rosto enquanto se tentava reproduzir uma pessoa gorda, ainda que o seu observador não tenha a plena consciência de qual forma ou volume esteja incoerentemente representado, o sujeito notará o busto como estranho. O exagero no volume das estruturas ósseas do rosto, como no caso do osso zigomático, por exemplo, afeta e muito a sua noção de verossimilhança com a figura humana.

Desta forma, este trabalho propõe que quando o intuito é de se evitar a estranheza característica do fenômeno do Uncanny Valley, a coerência anatômica é um dos principais aspectos na estética de uma reprodução humana percebida como realista, seja em ambiente digital ou físico. Por coerência anatômica, este trabalho entende como o correto tratamento das estruturas da anatomia em, por exemplo, um artefato de semelhança humana. Estas estruturas se mostram corretas para um observador e, portanto, são percebidas como 112


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reais, quando se dão de forma coerente com o que se encontra na Natureza. Da mesma maneira que um ser humano real possui uma estrutura esquelética, responsável por suportar um sistema muscular com sua respectiva dinâmica, um artefato que busque representar fielmente a figura humana deve também apresentar formas, volumes, nuances, cores e texturas que sugiram perfeitamente a relação daquilo com o real. Assim, é de se esperar que um artista deva investigar a estrutura humana a fim de expressar suas formas corretamente. Para se reproduzir com naturalidade uma figura que seja agradável ao olhar e portanto, não cause estranheza, o estudo de maneiras que possibilitam a correta integração entre as partes do corpo humano sempre esteve presente através dos sistemas de proporções. A proporção diz respeito à relação entre as partes que formam, organizam e dão sentido para o todo. O estudo das proporções é importante pois uma coisa tem q fazer sentido com a outra para que se obtenha um conjunto coerente. Por exemplo, um braço pode estar perfeitamente condizente com a anatomia humana no que diz respeito à suas formas e volumes, no entanto, uma vez que ele esteja desproporcional com o tamanho da caixa torácica, sua dimensão incoerente continuará sendo determinante na ocorrência da estranheza. Com este fim, os artistas no decorrer da História perceberam que a representação da figura humana poderia se dar de forma mais harmônica ao se partir de alguns modelos específicos de proporções para o corpo humano. Por outro lado, é do conhecimento de todos que na Natureza não existem regras de proporções, existem humanos com as mais variadas dimensões possíveis e, ainda assim, não deixam de ser reais e mesmo saudáveis. No entanto, a não ser que este seja realmente um objetivo a se atingir, na arte da representação fiel da figura humana normalmente se busca fugir de formas desarmônicas que, mesmo existentes no mundo real, são geralmente percebidas como erros de retratação, causando estranheza e desgosto no observador. Na busca desse equilíbrio de proporções para a representação de seres humanos, diversos povos desenvolveram seus chamados “cânones”. Estes consistiam em sistemas de medidas, tamanhos e proporções do corpo humano, tanto para fins científicos como para a representação artística. Ainda no Egito Antigo, o cânone já era utilizado para representar as figuras humanas de maneira equilibrada. A referência era o comprimento do pé e, a partir de sua medida, determinava-se 113


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FIG. 06 Esculturas gregas “Doríforo” de Policleto e “Apolo de Belvedere” de criador desconhecido, respectivamente, com seus modelos de proporção da figura humana baseados em 7 e 9 cabeças de altura.

o resto das dimensões do corpo. Este cânone egípcio evoluiu e na Grécia Antiga se desenvolveu em um dos sistemas de proporção mais utilizados até mesmo nos dias atuais. Os gregos passaram a assumir a da altura da cabeça como unidade de medida padrão para a proporção do corpo. Durante o século V a.C., Policleto introduziu o cânone das 7 cabeças de altura para o corpo humano. Este sistema se eternizou na representação de sua escultura “Doríforo”, a qual foi considerada por muito tempo como a perfeição harmônica nas proporções humanas. Outro sistema de proporções se estabeleceu com a escultura grega “Apolo de Belvedere”, de datação imprecisa entre 140-120 a.C. Esta, por outro lado, já demonstra um corpo mais alongado do que a escultura de Policleto e conta com aproximadamente 9 cabeças de altura, ao invés de 7 cabeças.

Estes sistemas foram constantemente modificados ao longo da história, como durante a Renascença, quando Leonardo da Vinci apresentou a sua obra “O Homem Vitruviano”. Nesta obra, Leonardo propunha a construção do corpo humano ideal em que a cabeça representava 1/8 da altura do corpo todo, sendo assim 114


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1. LOOMIS, 1943, p.28.

o sistema de 8 cabeças de altura. Em contrapartida, Michelangelo costumava representar suas figuras através de nove, dez ou até mesmo doze alturas de cabeça, que apesar de fugirem bastante do ideal encontrado na Natureza, eram frutos de artimanhas para se burlar a percepção da perspectiva do observador em suas esculturas. Atualmente estes sistemas são diversamente adotados e modificados por cada artista, de acordo com o seu intuito. No entanto, artistas como Andrew Loomis1 sintetizaram estes sistemas de proporções a partir de alguns padrões específicos de representação:

FIG. 07 Sistema de proporções sintetizado por Andrew Loomis (1943, p.28) que relaciona padrões específicos através de estereótipos da figura

Em um sistema de sete cabeças e meia de altura estaria a representação mais comum na Natureza, mais ordinária e, portanto, mais genérica, percebida como normal. O corpo humano ideal estaria representado no sistema de oito cabeças de altura e ao se partir para além desta relação, estariam as figuras de padrões fashion e heroico, os quais seriam estruturados em oito cabeças e meia e nove cabeças, respectivamente. Estes últimos, por serem mais alongados, assumiriam percepções mais alegóricas a figuras com extremo poder e destaque. A proposição destes sistemas não se restringiu somente a representações do corpo masculino ideal. O mesmo sistema de padrões sintetizado por Loomis (1943) também pode ser aplicado 115


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2. ZARINS, 2014, p.91-93.

FIG. 08 Coletânea de alguns dos sistemas de proporções organizados por Uldis Zarins (2014), de acordo com as diferenças de idade e gênero

na representação de mulheres. Já com relação às diferenças de idades e etnias, existem outros diversos sistemas que propõem proporções mais harmoniosas para cada uma: nos modelos de proporções reunidos por Uldis Zarins2 por exemplo, para a representação de bebês recém-nascidos se utiliza frequentemente o sistema de quatro cabeças de altura; para bebês já um pouco mais desenvolvidos, que já começaram a andar, o sistema de cinco cabeças de altura é bastante aceito visualmente com coerência; em uma criança, esta proporção aumenta para cinco cabeças e meia ou mesmo seis cabeças de altura, a depender da idade, etnia, etc; já para adolescentes e idosos, no geral, o sistema de sete cabeças de altura costuma ser mais bem percebido de maneira harmônica.

O estabelecimento dos sistemas de proporção, na verdade, é não mais do que apenas um guia para se trazer sentido ao conjunto e também para auxiliar na atribuição de personalidade e contexto a um artefato de semelhança humana. Claramente proporções relacionadas a anormalidades morfológicas como nanismo ou gigantismo assumiriam diversos outros sistemas de medidas. No entanto, para isso também, deve se acontecer de forma coerente a proporcionalidade entre características menores, que justifiquem estas anomalias. Como por exemplo, as dimensões da mandíbula, 116


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dos membros como mãos e pés, todos costumam apresentar proporções exageradas nestes casos de anormalidades. Desta forma, não somente um sistema de proporção para a altura do corpo deve estar coerente com a natureza humana, mas também todas as inter-relações entre os diversos elementos do corpo humano. É claro que existem infinitas variações nas proporções internas do corpo. Duas pessoas com a mesma altura nem sempre terão os elementos que compõem seu corpo distribuídos através de uma mesma proporção. Isto é o que dá a variedade na população humana. No entanto, ainda assim, uma certa coerência com esses sistemas de proporções ideais terá sempre seu papel em uma representação da figura humana que busque fugir da produção de estranheza no seu espectador.

FIG. 09 Imagem de comparação entre duas mulheres com a mesma altura, porém com proporções internas diferentes.

Por exemplo, nesta imagem acima, duas mulheres com a mesma altura apresentam proporções internas de seus elementos de maneira bastante diferente uma da outra. Pode-se perceber 117


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FIG. 10 Sistema de proporções proposto por Robert B. Hale (1977) em que a unidade de medida é a largura do crânio.

diferenças claras na altura das costelas, da linha dos mamilos, da altura do umbigo, da espinha da pélvis (ASIS), do final da púbis, da altura onde acabam as mãos, dentre outros elementos como a posição dos joelhos etc. Mesmo assim, ambas são reais e saudáveis. No entanto, talvez por conta de uma relação de harmonia, se estas fossem reproduzidas em uma versão digital, alguma delas poderia produzir maior sensação de estranheza do que a outra. Por conta disso, a busca por proporções harmônicas na representação de figuras humanas pode ser também um aspecto determinante na percepção de estranheza. Além dos sistemas que utilizam a altura da cabeça como unidade de medida, existem outros sistemas que propõem uma aparente correlação entre a medida da largura do crânio e diversos outros elementos do corpo. Em um sistema organizado por Robert Beverly Hale (1977), a largura do crânio, especificamente, corresponderia às distâncias: do topo da cabeça até a base da fossa nasal; da base da fossa nasal até a altura da primeira costela na caixa torácica; a altura do osso esterno; da base do esterno até a altura da 10ª costela; da 10ª costela até o ponto de referência da pélvis chamado espinha ilíaca anterior superior (abreviado no inglês como ASIS); deste ponto ASIS até a base do osso da pélvis; dentre diversas outras medidas como o comprimento das mãos; o tamanho da clavícula e também a altura e a largura da escápula.

Não somente foram propostos sistemas de proporções para elementos do corpo humano, como também surgiram moldes para se estruturar medidas e posicionar de maneira harmônica os diversos elementos da face humana. São os sistemas de proporção 118


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FIG. 11 Ilustração do livro de Andrew Loomis (1956, p.43). Sistema de proporções da cabeça mais genericamente utilizado por artistas.

do rosto da figura humana. Semelhantemente aos sistemas de proporções do corpo, existem uma série de abordagens diferentes, por diversos autores, mas ainda que todas essas configurações sejam extremamente maleáveis na diversidade da população mundial, a percepção de estranheza se minimiza a partir da seguinte configuração, a qual a grande maioria dos artistas, que se utilizam de princípios racionais, busca estruturar em suas criações ou ao menos dão início às mesmas a partir desta:

Através de padrões e simplificações observados na Natureza, este sistema propõe que, em uma cabeça genérica e idealizada para ser percebida de maneira harmoniosa, seria possível dividir as dimensões de largura, altura e profundidade, da seguinte forma: divide-se a largura da cabeça em três unidades de medida e, tanto a altura quanto a profundidade, em três unidades e meia. A partir dessas divisões, obtém-se: na altura da cabeça (primeira e segunda imagem), a linha da primeira meia unidade corresponderia à chamada linha do cabelo, que é a região onde se começa a nascer cabelos na região superior à testa; a partir desta meia unidade, conta-se uma unidade inteira para baixo e se obtém a altura das sobrancelhas, assim como do ponto mais alto das orelhas; mais uma unidade de medida abaixo, estaria a base da fossa nasal e o ponto mais baixo das orelhas; e, por fim, no último terço, ou seja, na última unidade de medida, é onde se termina a cabeça, na 119


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FIG. 12 | 13 Comparativo da percepção de diferentes distâncias entreolhos. Na imagem da esquerda, olhos bastante próximos, enquanto na imagem da direita, olhos mais distantes.

3. Imagens originais do busto de Robespierre, produzido pela Visual Forensic, podem ser verificadas em http://www.visualforensic.com/ VisualforensicRobespierre.html acesso 01/10/2015

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basa do queixo. Na largura da cabeça (primeira imagem), as linhas correspondentes às extremidades da segunda unidade de medida situam a posição dos olhos, sendo nestas o estabelecimento das pupilas. Já na profundidade da cabeça (segunda imagem), obtémse que a metade da profundidade do crânio - o que não conta as cartilagens do nariz - corresponde à posição das orelhas, ou seja, conforme a imagem, esta seria a linha da segunda unidade de medida. Este também costuma ser o ponto mais alto da cabeça. É fato que existem muito mais proposições de medidas e proporções entre o rosto humano ideal, no entanto, dentre todas estas proposições, talvez a mais determinante para a percepção de estranheza seja a distância entreolhos. Sendo esta distância mais genericamente idealizada e mais harmoniosamente percebida a partir da medida de um olho entre as extremidades internas de cada olho, é possível se perceber claramente que nas pessoas em que essa distância se faz maior ou menor, uma aparente estranheza é percebida. Isto se tornou também um forte recurso na estilização de personagens cartoonescos. Cria-se personagens com menores distâncias entre os olhos para se atribuir personalidades fofas e distâncias maiores quando se quer proporcionar um distanciamento da figura humana, como no caso dos estereótipos alienígenas, os quais possuem esta grande distância bastante evidenciada.

No caso, por exemplo, da criação de personagens digitais, estas distâncias podem fortemente estar associadas à percepção de estranheza. No exemplo das figuras ao lado, foi realizado um simples retoque, em um programa de edição de imagem, em um modelo do busto de Robespierre, produzido pela empresa Visual Forensic.3 Na versão original publicada pela empresa, o modelo do busto se mostra com proporções da face extremamente alargadas,


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FIG. 14 | 15 Imagens do busto de Robespierre (Visual Forensic) : Versões sem e com o retoque proposto, no qual se diminuiu a largura da cabeça, retirouse os buracos na pele e se aumentou sutilmente o tamanho dos olhos, corrigindo assim também a distância entre eles.

assim como também conta com elementos incoerentes com a natureza humana, como buracos profundos na pele e olhos extremamente pequenos em relação ao resto da cabeça. Tendo sido estas ocorrências propositais ou não do artista que produziu o busto digital, fica claro que estes elementos descritos acima intensificaram a percepção de estranheza do busto. A partir de um retoque rápido de imagem no qual se buscou atenuar esses elementos, percebe-se a enorme diferença na naturalidade do modelo. Ainda que possa haver alguma estranheza na percepção do mesmo, esta se mostra bastante atenuada com as alterações realizadas no retoque.

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FIG. 16 | 17 | 18 Trabalho L’Enfant Exterieur, do fotógrafo Cristian Girotto.

Outro exemplo muito claro da percepção de estranheza por conta da alteração de proporções se dá no trabalho L’Enfant Exterieur, do fotógrafo Cristian Girotto. O trabalho consiste numa série de fotografias normais, de pessoas comuns, porém Girotto editou essas fotografias através de retoque digital, a fim de que estas pessoas adultas apresentassem proporções de crianças. Desta forma, o resultado apresenta humanos com total coerência anatômica em suas formas, a não ser pela proporção que estas assumem.

Mesmo assim, é fato que o corpo humano não se apresenta tão rigorosamente dentro de um padrão de medidas, tendo em vista a imensa diversidade humana devido a fatores como etnia, gênero ou idade, por exemplo. No entanto, estes preceitos e modelos de medidas costumam ser um excelente ponto de partida para a determinação destas variações em questão. Além de se estabelecer proporções e relações entre elementos de forma coerente na figura humana, outro aspecto anatômico que este trabalho defende como importantíssimo ao se determinar a ocorrência de estranheza na percepção de uma figura é a correta apresentação das estruturas que compõem o corpo humano, através de coerentes representações de formas, volumes, trocas de planos e nuances características de um ser humano real. Entre as estruturas do corpo humano, as mais importantes para a definição daquilo que se é percebido visualmente são as estruturas óssea, a estrutura muscular e a estrutura das massas gerais como peles, gorduras e cartilagens. 122


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FIG. 19 | 20 Imagens de um écorché humano produzido digitalmente pelo artista digital Adam Skutt. Este tipo de trabalho écorché é bastante realizado no estudo de anatomia por artistas, como um estudo para o entendimento das estruturas do corpo humano. Nele são apresentados as estruturas ósseas, muscular e das massas gerais, como se fosse em um processo de dissecação do corpo humano.

Para se representar coerentemente os volumes que determinam a forma do corpo humano, é necessário primeiro saber diferenciar estas estruturas umas das outras. No rosto de um homem, por exemplo, é importantíssimo determinar que uma proeminência no seu volume é fruto da forma estável de um osso como o zigomático, que é o responsável por dar formato à maçã do rosto, ou se esta proeminência é devido a uma contração muscular, a qual ocasionou um acúmulo momentâneo de pele e gordura em determinada região, como por exemplo no caso de um sorriso, a forma do rosto se altera devido à contração de músculos específicos que fazem concentrar uma quantidade maior de massa na região das bochechas e da maçã do rosto. Nos dois casos descritos acima, uma mesma região do rosto possui seu formato determinado através de diferentes elementos. Se esta representação não condiga com as estruturas que estão por baixo da pele, deformando o volume no rosto, o artefato certamente provocará estranheza no seu observador. Ainda no rosto, por exemplo, semelhantemente aos modelos de proporções ideais, existem diversos modelos que também podem auxiliar na determinação dos planos que compõem a face humana, já levando em consideração estas formas estruturais do ser humano. Ao se planificar o rosto, cria-se também um caminho 123


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FIG. 21 - 29 Sistema de planificação das formas do rosto humano proposto pelo artista John Asaro. O modelo contém um dos lados com maior proeminência óssea e o outro com menor, para representar pessoas com diferentes idades ou mesmo porcentagem de gordura corporal.

- um ponto de partida - mais coerente para o refinamento realista desse rosto, dificultando assim o erro na representação anatômica coerente. Esta planificação permite ao artista estabelecer uma leitura facilitada das formas gerais do rosto, uma vez que a partir da diferente intensidade que a luz reflete em cada uma das faces é possível se perceber mais claramente a forma que aquele elemento assume. Esta é uma abordagem bastante racional no processo de criação de rostos realistas. Ainda que não se realize exatamente esta planificação como a que foi feita na imagem abaixo, ao se produzir um personagem humano realista é importante estar sempre atento a estas formas, pois estas se dão exatamente por conta dos sistemas estruturais acima descritos - a estrutura óssea do crânio, por exemplo.

E quando isto se dá na percepção de um rosto realista, o comportamento das formas e volumes determina plenamente a maneira como a luz reage e, consequentemente, a percepção destas formas. Através de nuances entre claro e escuro, percebemos os volumes que se dão nesse rosto. Caso estes tenham sido representados de maneira incoerente com o que se espera de um humano real, isto saltará na percepção de uma construção estranha. Novamente, não se sabe dizer exatamente o que causa, mas confirma-se a estranheza, e isto se dá por conta de uma incorreta representação das formas. Este aspecto merece importância não só na determinação de formas gerais da face ou mesmo do corpo, mas também em todo e qualquer volume a ser representado em um artefato de semelhança 124


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FIG. 30 - 33 Escultura que demonstra a relação entre uma correta estruturação dos planos da face e o acabamento de um rosto realista, conforme diferentes fontes de luz.

humana. A coerência na representação de uma massa ao sofrer ação da força da gravidade ou mesmo na ação de forças internas - como a contração muscular e a consequente formação de rugas, vincos e dobras -, estaria subordinada a uma correta estruturação desses planos, provenientes do comportamento da pele e das massas.

Ainda para a representação coerente dessas estruturas que dão forma ao corpo, é importantíssimo se levar em consideração a dinâmica de cada estrutura. Por exemplo, a estrutura óssea apenas se desloca e rotaciona, não possui uma mutabilidade na sua forma, tal como acontece no sistema muscular ou das massas. Mesmo que se uma pessoa se movimente, faça algum esforço ou permaneça relaxada, as formas superficiais de seu corpo que são determinadas por uma estrutura óssea permanecem as mesmas, apenas sofrendo variações por conta de deslocamentos. O corpo possui uma série de regiões em que parte da estrutura óssea é totalmente determinante da forma que aquela região assume, pois nestas regiões, áreas específicas de alguns ossos 125


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se mostram aparente na superfície do corpo, com pouquíssimas variações na sua intensidade de aparecimento, conforme a posição e atributos morfológicos da pessoa. Por exemplo, obviamente em uma pessoa com maior porcentagem de gordura, essas estruturas ficarão muito mais sutis na forma. Essas são as chamadas landmarks, ou em uma tradução para o português, os pontos de referência, do esqueleto.

FIG. 34 | 35 Imagens geradas a partir do aplicativo para celular “L’Écorché”, em que se destacam as regiões das “landmarks”, ou pontos de referência, do sistema esquelético do corpo humano. São as regiões ósseas que se mostram mais aparentes na forma geral do corpo.

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Assim, por exemplo, a região da espinha da escápula, que se mostra aparente na forma de sua região nas costas, apenas se altera através da rotação e do deslocamento dos braços, para cima e para baixo, para os lados e para frente e atrás. É uma dinâmica específica do comportamento da escápula, a qual mesmo determinando diversas variações no comportamento dos músculos ao seu entorno, esta se permanece a mesma. Outro exemplo que ilustraria esse ponto é a região da ulna - olecrano -, popularmente chamada de “osso do cotovelo”. Esta região, independente da posição


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em que o braço se encontra, permanece determinando a forma do cotovelo sem, no geral, se alterar, pois é uma estrutura óssea.

FIG. 36 Imagens retiradas do livro de Uldis Zarins (2014, p.90), que ilustram a dinâmica do osso da escápula e suas determinações na forma da superfície das costas.

FIG. 37 Ilustração que demonstra o antagonismo da musculatura do braço.

Já no caso das estruturas musculares, a dinâmica das formas é muito maior. Os músculos se contraem e se relaxam, de forma que, enquanto realizam estas atividades, alteram drasticamente sua forma. Além disso, a musculatura funciona a partir de um sistema de antagonismos. Enquanto um determinado músculo se contrai para realizar um esforço, seu músculo antagonista, o qual é responsável por realizar o esforço contrário, naturalmente se relaxa. Isto torna a representação dessa dinâmica muscular muito mais complexa ao se pensar que a musculatura em determinadas posições não deve estar em sua totalidade contraída. Por exemplo, alguém que exerça o esforço para levantar um objeto pesado, por conta da flexão do braço, naturalmente tem seu bíceps contraído e, assim, fica com maior volume, enquanto o músculo antagonista neste mesmo movimento, o tríceps - que é responsável por realizar o movimento contrário, a extensão do braço -, estará em relaxamento, com um menor volume e sem grande definição na superfície da pele. A partir do conhecimento da configuração muscular do corpo humano, o artista pode interpretar de maneira coerente as formas e volumes que se encontram presentes na superfície de seu modelo. Para isso, é necessário ter a consciência de como se dá o 127


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FIG. 38 Estátua de Écorché criada pelo artista Rafael Grassetti.

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funcionamento do sistema muscular humano. Deve-se conhecer os locais de origem e inserção de cada musculatura nos seus respectivos ossos que os sustentam, pois os músculos agem muitas vezes como se fossem alavancas para os ossos e é através da contração e do relaxamento que eles realizam o movimento de membros ou de partes específicas do corpo. Uma vez tendo a consciência de que em determinada posição, certa musculatura estará ativa, o artista pode representar corretamente as formas e nuances que se dão na superfície desta região. Na busca deste conhecimento, uma técnica de estudo da anatomia bastante comum no meio artístico consiste na realização do écorché. A palavra originária do francês se traduz basicamente na ideia de “esfoliar”. Isso porque a palavra faz uma menção às práticas de dissecação de corpos, realizadas desde a Renascença, as quais tinham o intuito de se compreender as estruturas do corpo humano. O écorché consiste em uma representação da figura humana, sem a camada da pele, apenas com sua musculatura e parte da estrutura óssea aparente, como se fosse um defunto realmente dissecado.


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Por outro lado, é importante ressaltar também que existem grandes variações nas estruturas da figura humana de acordo o seu gênero, idade e etnia. Na estrutura óssea, por exemplo, apesar de haver apenas uma arquitetura esquelética humana, existem várias diferenças estruturais entre os esqueletos masculino e feminino. A caixa torácica, por exemplo, nos homens costuma ser mais larga do que nas mulheres. Os homens possuem os principais ossos do braço - úmero, ulna e o rádio -, mais espessos e maiores do que os presentes nas mulheres. O mesmo vale para os membros inferiores, com os ossos da perna e também para as falanges dos dedos. Ambos são maiores nos homens, o que consequentemente afeta também o tamanho das pernas e das mãos. O osso da pélvis talvez seja o mais diferente entre homens e mulheres. Devido à capacidade de dar à luz aos bebês, a pélvis feminina é mais rasa, mais larga e possui uma cavidade interna maior, com uma forma circular, o que permite espaço para passar a cabeça e os ombros do bebê. O osso da pélvis nas mulheres também é muito mais inclinado. Esses fatores afetam diretamente a forma e a silhueta do corpo feminino. O crânio também é uma das estruturas ósseas que mais apresenta diferenças significativas na forma, tanto entre homens e mulheres, quanto em relação a diferentes etnias. No crânio masculino, por exemplo, a protuberância na parte de trás da cabeça, conhecida como protuberância occipital externa, geralmente é mais pronunciada, enquanto no crânio feminino tende a ser mais arredondada e pontiaguda. Os ossos da região da sobrancelha são muito mais proeminentes nos homens do que nas mulheres. O osso do zigomático - responsável por dar forma à maçã do rosto - é muito mais evidenciado no crânio feminino do que no masculino. Assim como todo o crânio, no geral, possui as formas mais angulares no homem do que nas mulheres, em que as formas são mais sutis. Semelhantemente, o crânio apresenta diversas outras distinções quando se comparam as etnias caucasianas, asiáticas, africanas etc. Existem algumas características específicas, que se dão com maior frequência em cada uma dessas etnias. Essas singularidades do crânio constituem as bases principais da enorme variedade de formas encontradas nos rostos de pessoas das mais diversas regiões do mundo. Da mesma forma, uma correta representação das características do crânio é determinante na percepção de um rosto masculino ou feminino. Muitos erros no processo de representação de mulheres, as quais ficam parecendo masculinizadas, dão-se por conta de um incorreto entendimento peculiaridades da estrutura óssea de cada gênero. 129


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FIG. 39 Bones Clones (2013) - Imagem comparativa de crânios masculinos e femininos de africanos, asiáticos e europeus.

FIG. 40 Regiões em destaque apresentam a tendência de maior acúmulo de tecido adiposo no corpo da mulher. (Zarins, 2014, p.57-59)

Além da estrutura óssea e da muscular, ao se reproduzir uma figura humana é necessário conhecer o comportamento das massas e das camadas superficiais do corpo. Estas consistem nas regiões de acúmulo de gordura, na camada da pele, nas cartilagens e também no sistema venoso. Existem regiões específicas do corpo nas quais se dão maior ou menor acúmulo de tecido adiposo. Obviamente, isso se difere de acordo com o gênero, idade e biotipo da figura representada. Mulheres naturalmente apresentam uma porcentagem maior de gordura no corpo, portanto, é mais incomum a forma do corpo feminino ser determinada por muita musculatura de volume aparente. As nuances do corpo se dão de forma mais sutil, dado que uma maior quantidade de tecido adiposo se encontra acima da camada muscular.

Em conjunto com a camada de gordura, encontra-se a pele, a qual também possui um comportamento bastante específico, determinante para a forma e para a característica da superfície da figura. 130


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FIG. 41 - 42 Menores níveis de gordura em idosos e em pessoas musculosas caracterizam uma pele mais fina, com maior definição muscular, aparência da estrutura óssea e maior visibilidade da vascularização.

Além da ação da gravidade, através da contração e extensão da musculatura a pele forma vincos e dobras. Existem as dobras momentâneas, específicas de cada movimento ou posição, e também as dobras permanentes, que caracterizam as rugas do rosto, por exemplo. Por conta do envelhecimento, a pele acaba perdendo a sua elasticidade e se tornando aparentemente mais seca e enrugada. Da mesma forma, uma pele mais envelhecida tende a perder gordura e se tornar mais fina, assumindo assim uma aparência menos lisa e menos firme, ou seja, mais flácida. Nas pessoas idosas, isso se percebe claramente, pois juntamente com o fato de que os idosos tendem a ter menor porcentagem de volume muscular devido à atrofia, eles frequentemente apresentam maior acúmulo de pele flácida. Isso possibilita também, maior visualização das veias e em determinadas regiões, maior definição da musculatura e da estrutura óssea. O mesmo se dá com pessoas musculosas. Devido ao baixo nível de gordura corporal, a pele tende a ser mais fina e, assim, é possível se perceber maior vascularização e definição muscular.

A partir do conhecimento dessas estruturas, o artista pode recriar as formas da figura humana, interpretando o que é cada volume na superfície do corpo. Sugere-se regiões em que a estrutura óssea se encontra aparente, regiões que terão maior dinâmica no volume devido a contração e relaxamento dos músculos e regiões que sofrerão maior efeito de forças internas e externas, como a gravidade afetando a queda de massas do tecido adiposo, ou mesmo dobras específicas da pele. 131


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Existem tecnologias médicas de processamento de imagem, em que se faz possível visualizar as diferentes camadas das estruturas internas do corpo. Através de um tipo específico de interpretação imagens de ressonância magnética - 3d MRI, ou 3d magnetic resonance imaging -, foi possível se recriar e apresentar, na imagem a seguir, a origem de cada volume em um torso feminino.

FIG. 43 Imagem de um torso feminino reconstruído em ambiente tridimensional, através da informação obtida em ressonâncias magnética.

FIG. 44 Imagens de um andamento no processo da criação de um busto hiper-realista pelo artista Lukáš Hajka. Na primeira imagem, um destaque na reprodução da penugem que recobre o rosto, a qual possibilita a formação de uma leve silhueta na forma do busto, quando iluminada por uma luz vinda de trás do personagem. Na segunda imagem, o rosto por inteiro, ainda não finalizado e, na terceira imagem, apenas a penugem isolada. Pode-se perceber o diferente tratamento para cada região específica do rosto.

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Ao se isolar cada estrutura, pode-se perceber, principalmente na segunda imagem, o quanto da silhueta do torso é definido pelo acúmulo de tecido adiposo. No entanto, ainda que estas interfiram na superfície de maneira muito mais sutil, a camada da musculatura e dos ossos também se encontram determinantes na forma superficial de algumas regiões, conforme se pode notar na primeira imagem. Uma representação incorreta dessas formas, certamente saltaria ao olhar de um observador, de forma a produzir estranheza. Em um último instante, porém não menos importante, o detalhismo minucioso na representação da estrutura superficial se mostra também determinante para sensação de estranheza em um modelo. Tratar da superfície da pele com uma correta configuração de poros, texturas e cores é essencial para a percepção de realismo naquela figura. Assim também, busca-se um correto estabelecimento de pêlos, tanto os mais aparentes como os cabelos, barbas e pêlos corporais, como a sutil penugem que recobre a pele em diversas regiões - esta penugem é bastante conhecida, no inglês, a partir do termo peach fuzz, que faz uma alusão à penugem encontrada nos pêssegos.


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FIG. 45 Na primeira imagem, uma demonstração na diferente configuração dos poros da face apresentada pelo artista Glauco Longhi. Nas demais imagens, scans tridimensionais realizados pela empresa Ten24.

FIG. 46 Exemplo criado por James Gurney, para se ilustrar genericamente as diferentes zonas de cor da face humana.

A configuração dos poros no rosto, por exemplo, apresenta uma grande diferenciação entre cada região específica. O formato dos poros aparentes na superfície da testa costuma ser bastante diferente do formato dos poros que se encontram na superfície do nariz ou mesmo na maçã do rosto. Alguns poros são mais esticados em determinadas regiões, outros são mais pontuais, outros mais sutis etc. Assim como a formação dos vincos de pele no rosto humano - as chamadas rugas -, os poros também têm sua configuração determinada a partir da movimentação realizada através contração e do relaxamento da musculatura facial. Da mesma forma que os vincos se dão geralmente no sentido perpendicular ao sentido que ocorre a contração do músculo, os poros do rosto também têm seu formato direcionado perpendicularmente ao sentido destas contrações musculares - apesar de alguns serem mais genéricos e não dependerem tanto da sua forma a partir disso.

Semelhantemente aos poros, a coloração da pele assume diferentes nuances de tons, manchas e pintas, que em muito auxiliam na reprodução realista de uma figura humana que não cause estranheza no observador. Em uma generalização, o rosto masculino de um caucasiano, por exemplo, costuma apresentar uma configuração nos tons de pele mais amarelados na região da testa, tons mais avermelhados na região da maçã do rosto e do nariz e tons levemente esverdeados ou azulados ao redor da boca e na região do queixo e maxilar. O mesmo pode se dar em diversas outras regiões do corpo, de acordo vários aspectos como os diferentes níveis de circulação sanguínea de cada região, a porcentagem de gordura ali presente, proximidade com uma estrutura óssea, maior ou menor localização de pêlos, entre diversos outros motivos. Isto obviamente não é 133


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nem de longe uma regra, no entanto, apenas uma ilustração de que entre toda a coloração da pele, existe também uma coerência e uma justificativa para cada tipo de nuance, que se retratada de forma incerta, pode acarretar em uma percepção de estranheza na reprodução.

FIG. 47 Imagem de um progresso no andamento de um trabalho pessoal do artista Mike Nash. É possível observar uma enorme variação nos tons de pele na reprodução deste corpo feminino em 3d

No entanto, toda esta etapa da estrutura superficial depende totalmente de um correto tratamento das estruturas internas. De nada adianta uma excelência na representação desses detalhes finos se os volumes e formas encontram-se incoerentes com aquilo que deveria se apresentar na Natureza. Através da apresentação de diversos elementos, este subcapítulo buscou demonstrar a tamanha importância em se retratar uma anatomia coerente na produção de um personagem 3d realista. A exposição desses elementos, no entanto, está extremamente distante de ser suficiente para se caracterizar uma anatomia com coerência. Mesmo porque, ao se considerar as infinitas variações de formas e nuances de cada pessoa no mundo, é impossível reunir uma receita ou uma fórmula em que reproduzindo determinados elementos principais, a produção estará perfeitamente coerente com a natureza humana. Cabe ao artista interpretar as incontáveis minuciosidades do corpo humano, a fim de se criar uma figura que não produza 134


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estranheza. Este subcapítulo buscou elucidar uma série de preceitos existentes nos quais podem se dar a coerência anatômica em uma reprodução da figura humana. A fim de se evitar ou evidenciar a estranheza percebida no fenômeno do Uncanny Valley, estes preceitos podem evidentemente ser trabalhados e se tornarem uma ferramenta para o artista, ou mesmo um ponto de partida para a sua elaboração minuciosa a partir da observação do natural. Nesse processo, cada mínimo detalhe tem sua devida importância. Até mesmo um detalhe que mal é percebido a olho nu - como, por exemplo, as microgeometrias da pele -, pode ser essencial para se dar coerência ao todo. Desta forma, ao propor a anatomia coerente como um dos quatros aspectos principais para a determinação de estranheza em uma reprodução da figura humana, este trabalho apenas tentou evidenciar como existem inúmeros elementos a se notar e trabalhar isoladamente, dado que tudo na anatomia humana possui uma justificativa e uma função para ali estar presente. Uma vez ausente ou mesmo, quando presente, apresentado de maneira incorreta, estes elementos podem saltar à percepção como atributos determinantes para a ocorrência de estranheza. E essa proposta também se mostra perfeitamente coerente com o que tem sido discutido a respeito do Uncanny Valley. Em uma aplicação dos conceitos teóricos abordados no capítulo 2 deste trabalho, seja através do conceito de estranho para Freud (1919), Jentsch (1906) ou mesmo Redstone (2013), a coerência anatômica se mostra plenamente como determinante para a ocorrência ou não da estranheza. No caso de Freud (1919), em que o estranho se resume basicamente no retorno do familiar reprimido, pode-se entender a coerência anatômica como um aspecto naturalmente familiar. O ser humano, desde o seu nascimento, possui a capacidade inata de reconhecer seres da sua mesma espécie e, portanto, identificar se algo lhe parece artificial. Assim, conforme uma incoerência anatômica ocorre em uma determinada representação da figura humana, esta incoerência assume o papel de repressor daquilo que lhe é natural, familiar. No entanto, ainda que esta incoerência reprima o ideal familiar de naturalidade em um determinado momento, este continua a retornar, a partir da percepção de outros aspectos ainda coerentes. Ou seja, ao perceber, por exemplo, um personagem CG que se mostra extremamente realista e muito bem executado, porém este possui uma configuração totalmente incoerente na musculatura do seu torso, certamente, ainda que ele seja perfeitamente realista 135


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nos outros aspectos, o personagem causará estranheza em quem o percebe, uma vez que a artificialidade na sua configuração muscular do torso assume uma contínua repressão de toda a naturalidade do resto, extremamente real. Em uma leitura de Jentsch (1906), na qual o estranho consiste basicamente na ideia da incerteza intelectual a respeito de algo que não é familiar, a leitura se mostra bastante similar. Um personagem que possua incoerências anatômicas apresenta atributos visualmente percebidos como não familiares, uma vez que estes não são naturais daquilo que o sujeito conhece sobre a natureza humana. Estas incoerências seriam então as causadoras de uma tensão psicológica a qual Jentsch define como a estranheza. O mesmo se dá em uma aplicação do quadro teórico apresentado por Redstone (2013). Neste quadro teórico, apenas para reforçar, um sujeito percebe atributos de categorização anômala e, mesmo tendo a consciência da natureza artificial de determinado artefato, o sujeito passa a se comportar como se estivesse em frente a um ser humano, assim atribuindo funções mentais a este artefato e, então, iniciando um processo de empatia com o mesmo. Por conta da percepção constante de atributos de diferentes categorias ontológicas, a ignição deste processo de empatia falha. Esta falha na ignição do processo de empatia e a dificuldade na categorização de determinados atributos ocasiona um tipo de ansiedade advinda da incerteza sobre a natureza daquele artefato. Este tipo de ansiedade é a estranheza. Desta forma, a incoerência anatômica é uma peça fundamental na percepção de atributos de categorias distintas. Ainda que, por exemplo, um personagem CG seja perfeitamente bem executado tecnicamente - que tenha sido renderizado com a mais avançada tecnologia fotorrealista -, uma vez que este personagem apresente uma incoerência anatômica, por mais sutil que ela seja, como uma nuance errada na representação de uma determinada estrutura óssea da face ou uma troca de planos incoerente com a natureza humana, esta incoerência será percebida naturalmente como um atributo de difícil categorização. Um sujeito sentirá uma tensão psicológica ao definir se aquilo que ele percebe é um ser humano real ou se é um personagem CG, uma vez que ele esteja percebendo alguma coisa artificial, por menor que esta seja, em relação a todo o resto extremamente real. Ao perceber um todo extremamente realista, o sujeito tenderá a se comportar como se estivesse perante um humano e, então, dará início a um processo de empatia com este personagem CG, projetando nele 136


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emoções e pensamentos que ele sentiria e pensaria, caso estivesse na mesma situação do personagem. No entanto, o sujeito volta a perceber algo de artificial, algo incoerente com a natureza humana e, assim, ocasiona uma falha na ignição dessa empatia. A partir daí, o sujeito nota enorme estranheza naquele personagem e sua resposta emocional, que deveria ser positiva, passa a ser negativa, como uma repulsa. No entanto, a coerência anatômica não é o único aspecto que este trabalho defende como determinante para a origem deste processo de estranheza. Além disso, o modelo deve ainda apresentar também uma coerência em relação aos aspectos físicos que interagem com ele e que determinam uma série de características de sua anatomia. Para isso também, uma correta apresentação destes aspectos somente é possível através de uma reprodução plenamente capaz, em termos tecnológicos, de retratá-la com fidelidade. Por fim, nada disto tem validade se um último aspecto se dê de maneira incoerente, que é a naturalidade na expressão emocional do personagem. Estes outros aspectos gerais serão discutidos e explicados nos seguintes subcapítulos.

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aspe ct o s d et e r m i n an t e s | a spect o s f í s i c os

ASPECTOS FÍSICOS

FIG. 01 - 03 Trabalho de escultura digital do artista Steve Lord. FIG. 04 Desenho da figura por Shane Wolf. FIG. 05 Fotografia de Alexander Yakovlev.

Este subcapítulo busca propor os aspectos físicos, como um dos quatro grandes aspectos determinantes para a ocorrência de estranheza numa reprodução da figura humana. Com a expressão “aspectos físicos”, este trabalho entende como o conjunto de atributos que são determinados pela Física, propriamente dita. Dentre todos os conceitos existentes nas leis da Física, os que mais devem exercer influência naquilo que se dá visualmente quando na representação da figura humana em ambiente digital, podem ser divididos em dois grandes grupos: os conceitos de Mecânica e os conceitos de Óptica. Em relação aos conceitos de Mecânica, devem ser levados em consideração os princípios da Gravitação, que analisam a força da gravidade; os princípios da Cinemática, a qual analisa o movimento dos corpos, contudo estes são mais relevantes ao estudo do Uncanny Valley em movimento; os princípios de Dinâmica, que analisam a causa e os efeitos desse movimento dos corpos, como por exemplo, as forças aplicadas, a inércia e o atrito; e, por fim, os princípios de Estática, que analisam basicamente quando as causas desses movimentos se anulam e o resultado é o equilíbrio. Já em relação aos conceitos de Óptica, estes dizem respeito principalmente ao comportamento da luz. A maneira como a luz se propaga, como ela produz sombras e penumbras, a maneira como ela se reflete e se refrata, dentre outras. O comportamento da luz também vai ser determinante no comportamento dos materiais que compõem o objeto representado. No caso da representação da figura humana, os diferentes materiais que compõem o ser humano, como por exemplo o material da pele, dos olhos, dos pêlos e cabelos, das unhas, dos dentes, das partes interiores da boca, assim como o material dos acessórios que acompanham aquela figura humana, por exemplo, as roupas e adereços no geral. 139


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1. KNOPLICH, 1935/1989.

2. OKUNO & FRATIN, 2003.

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Este trabalho não propõe resgatar fórmulas, nem explicações muito aprofundadas dos conceitos de Física, mas apenas ilustrar como a coerência nestes aspectos pode ser determinante na percepção de estranheza de um modelo digital humano. No que diz respeito à aplicação dos conceitos de Mecânica, este trabalho buscou reunir a aplicação dos princípios da Gravitação, da Dinâmica e da Estática nos principais aspectos que determinam o correto tratamento visual da ação da gravidade, das forças aplicadas e do equilíbrio, o qual pode ser estático ou dinâmico, quando em uma representação visual. Todos estes devem ser apresentados coerentemente com aquilo que se daria na Natureza, a fim de se atingir uma percepção de realismo. Obviamente, é necessário, em um primeiro momento, compreender-se o conceito de força. Esta diz respeito a qualquer agente externo que modifica o movimento de um corpo livre ou causa deformação em um corpo fixo. A aplicação desta força gravitacional na massa de um corpo é o justamente a força Peso deste corpo. Como a gravidade é uma das forças mais fundamentais da natureza, talvez a principal força que possa determinar ou não a coerência na representação visual de uma figura humana seja justamente a força gravitacional e sua aplicação, o peso. Um modelo pode estar perfeitamente coerente com a natureza anatômica do ser humano, no entanto, uma vez que este modelo se encontre interagindo de maneira incoerente com a ação da gravidade, este provavelmente deverá saltar aos olhos como uma reprodução estranha. A representação do equilíbrio no modelo também se relaciona diretamente com uma correta ação da força da gravidade. A gravidade age em todos os pontos de um objeto ou mesmo no segmento de um objeto. No corpo humano, a força gravitacional se dá de igual maneira como para qualquer outro sólido existente na Terra. A força gravitacional assume alguns princípios básicos: ela é uma força aplicada constantemente e sem interrupções; ela é aplicada em somente uma única direção - ao centro da Terra -; e ela atua sobre cada uma das partículas do corpo1. O corpo humano possui massa e em toda essa massa, exercem-se forças externas, como a gravidade, e forças internas, como as provenientes da musculatura do indivíduo. Sendo assim, o ponto em que se concentram todas as forças aplicadas em um corpo ou em um sólido, é chamado de centro de gravidade. Neste ponto, é como se toda a massa do corpo estivesse concentrada2.


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3. CAMPOS, 2000.

FIG. 6 Centro de gravidade do corpo humano em posição anatômica (Campos, 2000).

Geralmente esse ponto se localiza no centro de massa dos objetos. No corpo humano, a localização do centro de gravidade depende de diversos fatores que determinam a distribuição de massa deste corpo no espaço em que ele se encontra. Entre eles, a postura e as diversas condições anatômicas e morfológicas da pessoa são determinantes para a sua localização. No geral, em uma posição de sentido, o centro de gravidade do corpo humano localiza-se a mais ou menos 4 centímetros a frente da primeira vértebra sacral3. De acordo com o posicionamento desse ponto em diferentes posturas, a musculatura de um corpo humano é mais ou menos requisitada a fim de se estabilizar em uma posição de equilíbrio. Desta forma, em posições que esta musculatura não é suficiente para sustentar todo o peso do corpo, naturalmente o corpo deve cair em direção ao solo, ao sofrer ação da força gravitacional. Por conta disso, o corpo sempre busca maneiras de se estabilizar, posicionando o seu centro de massa de forma que ele fique o mais estável possível. Uma aplicação prática destas ideias pode se dar em algumas experiências simples e cotidianas. Por exemplo, quando se está parado, em pé, é muito fácil levantar os calcanhares para se ficar em uma posição mais alta. No entanto, para realizar isso, o nosso corpo sempre se desloca sutilmente para frente, a fim de estabilizar o seu centro de gravidade. Ao se tentar fazer isso, por exemplo, de frente para uma parede e bem próximo a ela, verifica-se que não é possível levantar os calcanhares e assim permanecer, sem que se busque pressionar a parede ou então cair para trás. Isso porque ocorre um deslocamento do centro de gravidade e, devido ao obstáculo que a parede impõe, torna-se difícil se manter estável.

FIG. 7 Ilustração da experiência de se tentar levantar os calcanhares de frente e bem próximo a uma parede. Não se consegue estabilizar pois ocorre um deslocamento do centro de gravidade do corpo.

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Assim, como o ambiente digital não é necessariamente subordinado a ação de uma física real, é possível se criar modelos que não respeitem essa força, sem que o modelo caia em direção ao solo. No entanto, uma representação do corpo humano que se apresente de uma forma que não esteja respeitando a ação desta força gravitacional, facilmente seria detectado na observação como um acontecimento impossível. Isto seria percebido como um atributo não realista e que, ao lado de toda uma reprodução extremamente real, muito provavelmente causaria estranheza no seu observador. Desta forma, o correto tratamento da ação desta força gravitacional deve ser determinante para a ocorrência do fenômeno do Uncanny Valley, seja no estabelecimento de uma postura possível de se dar na realidade - que respeite as noções de equilíbrio das massas -, seja no comportamento dos tecidos, das massas corporais e dos elementos que compõem a representação da figura humana - como regiões de pele flácida ou tecido adiposo, que caem devido ao peso, ou mesmo os cabelos e adereços externos ao corpo, os quais também devem se submeter às forças gravitacionais. Para as posturas nas quais o modelo de humano digital se apresenta, deve-se haver um equilíbrio visualmente percebido de forma que os pés ou as regiões do corpo, em que este se encontra apoiado, devem transmitir um “senso de segurança ou de balanço”, como dizem alguns artistas, para o observador deste modelo. As bases da figura devem ser apresentadas de maneira visualmente balanceada, sugerindo que estas estejam capazes de sustentar o peso das massas do corpo.

FIG. 8 Demonstração de balanço na figura, através de modelos scaneados pela empresa Ten24.

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4. BRIDGMAN, 1943, p.34.

FIG. 9 Situações de equilíbrio dinâmico: mesmo em movimento, é sugerido o breve retorno à uma posição estável.

5. NEWTON, Isaac. The Principia - A new translation by I.B. Cohen and A. Whitman, University of California press, Berkeley, 1999. 6. BRIDGMAN, 2009, p.34.

Neste raciocínio, George Bridgman4 defende que esta segurança visual se dá através da “transmissão de uma sensação de continuidade”. Ou seja, mesmo que uma imagem do modelo seja capturada quando este se encontre em movimento, sua postura corporal deve sugerir ao observador a segurança de que o modelo retornará a uma posição de estabilidade, em que o seu centro de gravidade se situe em um local sustentado pelas estruturas musculares do corpo e que as regiões de apoio do mesmo estejam balanceadas de forma a suportar o peso de suas massas. Desta forma, tanto o equilíbrio estático - quando a figura se encontra em uma posição parada, sem movimento -, quanto o equilíbrio dinâmico - quando a figura se encontra em movimento devem ser representados visualmente coerentes com a aplicação da força gravitacional.

Isto também está fortemente relacionado a uma correta representação da inércia, que basicamente se resume na tendência de um corpo resistir à mudança de movimento em que se encontra. Em outras palavras, se um corpo está em repouso, terá a tendência a continuar em repouso, contudo, se estiver em movimento, terá também a tendência a permanecer em movimento5. A representação disto, trata exatamente da “sensação de continuidade” denominada por Bridgman6. Além da influência na postura corporal do modelo, a 143


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FIG. 10 | 11 Acúmulo de pele flácida sofrendo a ação da gravidade, representado minuciosamente nesta máscara de silicone aplicada no ator Robin Williams.

força da gravidade deve estar coerentemente representada no comportamento das estruturas que compõem o modelo. No corpo humano, tanto a pele quanto o tecido adiposo mais interno não possuem a mesma rigidez no que diz respeito à fixação de sua forma, como a que se tem com a musculatura, por exemplo, que permanece mais estável, fixado às estruturas ósseas. Assim, quanto maior for o acúmulo destes tecidos no personagem representado, maior se dá a ação da gravidade em forçá-los em direção ao solo. E isso deve ser respeitado em todas as estruturas do corpo, seja na reprodução da barriga de uma pessoa gorda, seja no acúmulo de pele flácida que se dá em idosos, por exemplo.

Por outro lado, além do correto tratamento na representação da força gravitacional, deve-se atentar também para a coerência na representação das forças internas ao sujeito. Estas dizem respeito às forças exercidas pela própria figura humana representada. Por exemplo, em situações como quando um personagem 3d realiza 144


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um grande esforço para empurrar um objeto enorme pelo chão. Neste caso, além da força peso determinada pela ação da gravidade na massa do objeto, ainda deve-se levar em consideração o atrito do objeto e o chão, o qual oferece também uma resistência para o esforço que o personagem deverá retratar. Ou mesmo quando um personagem esteja levantando alguma coisa pesada, toda essa situação deve ser reproduzida de forma coerente: o personagem deve se mostrar contraindo a devida musculatura que seria ativada neste processo; ele deve estar em uma postura coerente com a realização deste movimento, de forma que se perceba tanto o esforço sendo ali exercido, como a constante ação de forças externas a ele - a gravidade, por exemplo; assim como tudo o que se encontra interagindo com ele deve respeitar de igual maneira todos estes princípios - dobras de tecidos, caimento dos cabelos na forma do corpo, etc.

FIG. 12 | 13 | 14 Aplicação da postura do contrapposto nas esculturas “Davi” de Michelangelo, “Apoxyomenos“ de Lísipo e a representação rascunhada das forças internas aplicadas nesta pose.

Mesmo para a apresentação do modelo em uma postura estática, a ação das forças internas costuma reagir à ação de agentes externos, como a força da gravidade ou a inércia, a fim de se manter o corpo mais estável possível. Em uma postura específica chamada contrapposto, a qual é bastante conhecida na escultura, 145


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7. Óptica - Fundamentos. Luz: Comportamento e princípios. Disponível em: http://www.sofisica.com. br/conteudos/Otica/Fundamentos/luz.php acesso 03/11/2015

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no desenho e na moda, por representar a naturalidade em uma pose de descanso, o sujeito se mantém em pé, de uma maneira extremamente estável devido à distribuição harmônica de suas massas e, consequentemente, das suas forças internas. Esta postura se dá através da contraposição das partes superiores e inferiores do torso. Nesta pose, uma das pernas se apresenta semiflexionada, enquanto a outra assume a principal sustentação do peso do corpo. Automaticamente, a parte inferior do torso se inclina na direção da perna semiflexionada, enquanto a parte superior do torso se inclina em posição contrária. O resultado é uma pose bem distribuída, em que tanto as forças internas do sujeito quanto a força da gravidade se harmonizam e dão estabilidade ao sujeito, física e visual. Talvez por isso, esta seja uma das posturas mais apreciadas entre os artistas. Por outro lado, ainda referente aos aspectos regidos pelas leis da Física, que podem determinar a percepção de estranheza numa reprodução da figura humana, está a aplicação coerente dos conceitos de Óptica. Além de todos os fatores que podem causar estranheza na reprodução de uma figura humana, que foram discutidos até então, um dos que se mostra com maior importância na determinação dessa ocorrência consiste em uma iluminação bem reproduzida no ambiente digital. O comportamento das luzes no ambiente digital pode-se dar tanto de maneira extremamente realista, como de forma totalmente irreal. Pode-se criar luzes que são na verdade invisíveis, luzes com frequências de cores incomuns, rebatimentos de luz totalmente inconsistentes, luzes que não emitam sombras, entre uma infinidade de possibilidades não condizentes com o comportamento físico da luz na Natureza. No entanto, no objetivo de uma representação da figura humana que não cause estranheza, a percepção do comportamento da luz tende a exigir o que for o mais natural possível. Uma luz possui diversas características que podem determinar o seu comportamento de formas distintas. O primeiro ponto a se levar em consideração, é que a luz pode ser de uma fonte primária ou de uma fonte secundária7. Luzes de fontes primárias, também chamados de corpos luminosos, são corpos que emitem luz própria, como por exemplo, o Sol, as estrelas, a chama de uma vela, uma lâmpada, etc. Por outro lado, luzes de fontes secundárias, também chamados de corpos iluminados, são os corpos que enviam a luz que recebem de outras fontes, como por exemplo, a Lua, os planetas, as nuvens e todo quanto é objeto que realiza o rebatimento de luz oriunda de uma fonte luminosa, ou seja, todos os objetos


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visíveis. Sendo assim, a iluminação de um personagem em ambiente digital pode-se dar através de ambos os tipos de fontes luminosas. Uma fonte emissora de luz determinará a iluminação de “raios primários” - como é chamado nos softwares 3d -, e o rebatimento dessa luz, tanto nas partes do modelo quanto no ambiente no qual ele está inserido, determinará a iluminação de “raios secundários” - outra denominação utilizada nos softwares 3d. Geralmente, a intensidade da iluminação oriunda dos raios primários, ou seja, da fonte luminosa, deve ser maior do que a intensidade da luz rebatida, assim como se dá na Natureza. Isto se deve a conceitos específicos da conservação de energia, que determinam que sempre haverá perda na energia quando esta for transmitida de um corpo a outro, uma vez que parte da energia é absorvida e parte é refletida. Assim, uma primeira conclusão é que se um personagem é iluminado por fontes em que o rebatimento de luz é muito maior do que a luz emitida, algo soará estranho, caso a intenção seja retratar um personagem realista.

FIG. 15 Comparativo da iluminação de uma cena a partir somente da luz direta (raios primários), na primeira imagem, e na segunda imagem, com a ação da luz direta e a luz rebatida (raios secundários). Percebe-se que a iluminação indireta é bem menos intensa do que a iluminação direta, mas auxilia a preencher todo o ambiente.

Um segundo fator a se considerar no comportamento da luz diz respeito à origem e o tipo de luz emitido pela fonte luminosa. Com relação à origem, a fonte de luz que ilumina um personagem 3d naturalmente deve ser a mesma a fonte de luz que ilumina o ambiente no qual ele está inserido, para que assim se consiga uma interação e uma integração correta do personagem na cena. Desta forma, a origem de uma luz diz respeito a principalmente à posição desta fonte luminosa. Um ambiente iluminado com uma fonte de luz diferente da luz que ilumina o personagem pode soar como artificial e, assim, saltar à percepção do observador em busca de coerência. Obviamente que isto não deva ser também uma regra, já que no Cinema, por exemplo, uma das práticas mais exercidas na gravação de modelos reais é exatamente essa de se iluminar o 147


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ator separadamente de forma que ele se destaque do ambiente. No entanto, deve-se ressaltar que este possa ser um fator determinante de estranheza, caso mal trabalhado em uma reprodução digital, na qual a busca por coerência com a natureza física das coisas é praticamente uma constante. Com relação ao tipo de luz, uma fonte luminosa pode apresentar uma gama enorme de variedades, tanto de formas, como de frequências e comprimento de onda. A forma de uma fonte emissora de luz pode basicamente ser de dois tipos diferentes: uma luz puntiforme, ou seja, uma fonte de luz pontual, de tamanho bastante pequeno, ou que esteja a uma distância realmente grande, como o Sol; ou uma luz extensa, a qual assume uma superfície da qual serão emitidos os seus raios luminosos. No que se trata das diferenças de frequência dessa luz, cada frequência se dá devido a um comprimento de onda diferente. Estas diferenças no comprimento de onda de uma luz são o que determinam a gama de cores diferentes para o espectro das luzes. Cada comprimento de onda diferente haverá uma cor distinta. Isto acontece da seguinte forma: quanto menor o comprimento de onda de uma luz, mais ela assumirá uma coloração fria, se aproximando de tons azulados, esverdeados, etc. Por outro lado, quanto maior o comprimento de onda da luz, mais ela apresentará uma coloração quente, com tons mais amarelados, alaranjados e avermelhados.

FIG. 16 Ilustração do espectro visível da luz e a determinação das cores, a partir do comprimento de onda.

A forma de uma fonte emissora de luz também determinará o comportamento da sombra que será projetada através da interrupção física dessa luz. No primeiro caso, em que a fonte de luz é puntiforme, ou seja, emitida através de um “ponto” único e extremamente distante, como o Sol, os raios luminosos 148


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FIG. 17 | 18 Na imagem da esquerda, a fonte luminosa é o sol, por isso uma sombra dura, com pouca região de penumbra. Já na imagem da direita, a fonte de luz é extensa e está perto da modelo (pode ser uma janela ou um refletor, por exemplo), por isso a sua sombra projetada é muito mais difusa.

emitidos serão o mais paralelos possíveis. Isto, consequentemente faz a luz projetar uma sombra paralela e dura, ou seja, uma sombra que praticamente não apresenta uma região de penumbra. Já no caso de uma fonte de luz extensa, o comportamento da sombra projetada ao se bloquearem esses raios luminosos será determinado justamente pela relação de tamanho e posição da fonte luminosa com o objeto responsável por receber e interceptar esses raios. Assim, quanto maior for a extensão da superfície emissora de luz, em relação ao objeto, maior será a a região de penumbra, que é a região parcialmente sombreada, parcialmente iluminada, ou seja, é a região de transição entre a área plenamente iluminada e a área de sombra.

Outro aspecto importante do comportamento da luz é que toda fonte luminosa, salvo a luz solar - em termos práticos -, apresenta uma atenuação da sua intensidade conforme o espaço percorrido por ela. Esta atenuação se dá de forma bem específica: quanto mais próxima da fonte, maior será a intensidade luminosa 149


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dessa luz e quanto mais distante, menor será esta intensidade, no entanto, esta atenuação se dá de maneira muito mais brusca quanto mais próxima da fonte luminosa. Após determinada distância, essa atenuação se dá de forma muito mais sutil e gradual.

FIG. 19 Demonstrativo da atenuação da luz em ambiente digital.

Desta forma, uma luz que se apresente extremamente próxima de um modelo em ambiente digital deve ser reproduzida de tal maneira que sua intensidade seja realmente mais forte, mais intensa, quanto mais próxima do modelo esta fonte estiver. Assim, é natural que, neste caso, uma luz emitida por cima de um personagem digital ilumine de forma muito mais intensa o topo da cabeça do que o queixo deste personagem, por exemplo. Já se esta fonte luminosa se encontrar mais distante do modelo, a atenuação desta luz deve ser muito mais sutil.

FIG. 20 | 21 Comparativo de atenuação de uma luz próxima e uma luz distante de um modelo.

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FIG. 22 Nesta imagem, o mesmo modelo apresentado anteriormente, porém reproduzido a partir de uma iluminação mais artificial.

FIG. 23 | 24 Reflexão especular: Brilho concentrado em superfície lisa e brilho espalhado e superfície rugosa.

8. Fundamentos dos Fenômenos Ópticos. Disponível em: http://www.sofisica.com.br/conteudos/Otica/ Fundamentos/luz2.php acesso 04/11/2015 9. HANRAHAN, P.; KRUEGER, W. 1993, p.165.

Apesar deste ser um aspecto externo ao modelo, a coerência no comportamento da luz é de extrema importância na percepção de realismo em uma representação digital da figura humana. Um mesmo modelo, com os mesmo materiais e texturas, pode ser percebido de forma totalmente diferente a partir da iluminação pela qual este é apresentado. Desta forma, uma luz que seja reproduzida de forma artificial, incoerente com o natural, pode muito provavelmente influenciar na percepção de estranheza deste modelo. A luz é um aspecto externo ao modelo, entretanto a maneira como ela se comporta quando se encontra com a superfície do modelo também é determinante para o comportamento dos materiais dos quais os personagens são representados em ambiente digital. Ao incidir sobre a superfície de um objeto, a luz pode sofrer os seguintes fenômenos ópticos8: a reflexão, que diz respeito ao retorno dos raios luminosos ao mesmo meio no qual eles se originaram; a refração, que se dá quando a luz incide e atravessa esta superfície, a fim de continuar a se propagar em outro meio; e a absorção, quando os raios luminosos ou uma parte deles são absorvidos pelo interior do objeto. A maneira como se dão um ou mais desses fenômenos durante a interação da luz com um objeto vai determinar diversas características do material deste objeto, como por exemplo o brilho, a sua translucência, o aspecto de sua superfície, a sua cor etc. Com relação ao fenômeno da reflexão, esta pode se dar de duas maneiras9: a reflexão especular, que ocorre quando os raios luminosos incidem a superfíciem e retornam ao meio de onde vieram através de um mesmo ângulo de incidência; e a reflexão difusa, que ocorre quando o ângulo de reflexão dos raios luminosos é diferente do ângulo de incidência. A reflexão especular é a que vai determinar a reflexão do tipo espelhado da luz. Neste tipo de reflexão que se forma o brilho em um objeto. Este brilho pode ser mais concentrado ou espalhado, conforme a superfície deste objeto. Quanto mais lisa for esta superfície, mais reflexiva será e, portanto, mais concentrado será o seu brilho. No entanto, quanto mais rugoso for a superfície de um objeto, mais o seu brilho se dará de forma espalhada na superfície, pois ainda que os raios se reflitam em um ângulo igual a ângulo de incidência, a micro superfície deste objeto rugoso é totalmente irregular, o que faz com os raios se reflitam em sentidos variados. 151


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FIG. 25 O couro é um material de superfície rugosa, por isso o seu brilho é espalhado, diferente de um material polido, em que o brilho é concentrado.

FIG. 26 Busto produzido por Lukas Hajka. Exemplo das diferentes características de brilho da pele.

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Isto é o que vai diferenciar, por exemplo, os diferentes tipos de brilho na pele de um personagem digital. A pele é uma superfície naturalmente rugosa e, portanto, possui naturalmente um brilho bastante espalhado. No entanto, quando a pele da pessoa é mais oleosa, uma camada líquida de óleo corporal transforma a característica do brilho da pele, deixando-o mais pontual. Isso ocorre, porque o líquido possui uma superfície perfeitamente lisa. O mesmo acontece com a transpiração ou mesmo devido à umidade de determinada região. Na face das pessoas, por exemplo, existem regiões que naturalmente apresentam diferentes níveis de oleosidade e de umidade. A zona formada pela testa, nariz, queixo e embaixo dos olhos geralmente é conhecida por conter mais oleosidade do que o resto da face e, por conta disso, o brilho nessas regiões é mais concentrado. O mesmo se dá nos lábios e na região de contato com os olhos, já que estas áreas são úmidas. Até mesmo os olhos, eles são tão brilhantes justamente porque estão constantemente úmidos.


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Por outro lado, nas regiões em que a pele é mais seca, o brilho se dá de forma mais espalhada e menos intensa. Já a reflexão difusa, esta ocorre por conta de outro fenômeno ótico da luz, a absorção. Quando os raios luminosos atingem a superfície de um objeto, estes podem retornar ao meio de onde vieram através de uma reflexão pura, de forma que nenhum raio é absorvido pelo objeto e, assim, todos se refletem. Isto é o que ocorre em espelhos e em materiais cromados. No entanto, nos materiais que não são espelhados, o que ocorre é a reflexão difusa da luz. Este é basicamente o fenômeno que determina a cor propriamente dita de um objeto, pois parte dos raios luminosos que atingem sua superfície são absorvidos e parte são refletidos. Estes que são refletidos, são os raios de reflexão difusa, pois não necessariamente estes retornam em um mesmo ângulo de incidência. Um objeto de cor azul, por exemplo, absorve todos os raios que atingem sua superfície, menos aqueles que possuem o comprimento de onda determinante da cor azul - estes são refletidos difusamente para o meio de onde vieram, por isso se enxerga o objeto azul.

FIG. 27 | 28 A escultura "Cloud Gate", em Chicago, é uma superfície toda espelhada, ou seja, os raios luminosos se refletem totalmente, pois não são absorvidos pelo objeto. Já um vaso azul é desta cor pois todos os raios luminosos de outro comprimento de onda, a não ser o azul, são absorvidos, e assim, somente os raios azuis se refletem.

10. YOUNG, 1807, p.413.

No fenômeno da refração, por outro lado, os raios ultrapassam a superfície do objeto e tendem a atravessar o meio no qual eles incidiram. Isto ocorre em superfícies translúcidas e transparentes, tais como o vidro, o acrílico, ou mesmo em materiais orgânicos como a pele, por exemplo. Durante o percurso de travessia deste segundo meio, através do fenômeno da refração, os raios luminosos podem sofrer alterações na sua velocidade, devido à mudanças na densidade do novo material. Desta forma, a direção destes raios luminosos se altera de acordo com as características do material no qual eles se inserem. Isto é determinado pelo chamado índice de refração10. Cada material possui um índice de refração diferente. Este índice determina o quanto é alterada a direção dos raios luminosos em um 153


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determinado meio. Por isso, quando se observa um lápis dentro de um copo com água, este parece estar torto, ou mesmo deslocado em outra posição, em comparação à parte que fica fora da água.

FIG. 29 Refração da Luz na água. O índice de refração na água difere do ar, assim se percebe uma mudança na direção dos raios, criando este efeito de deslocamento do objeto inserido

No entanto, um mesmo material pode apresentar diversas camadas de diferentes densidades e composições. Sendo assim, ao incidir nestes tipos de materiais, a luz tende a sofrer ambos os fenômenos de reflexão e de refração de maneira totalmente diferente a cada nova camada, uma vez que cada uma assume propriedades diferentes uma da outra. Nesta interação, a luz é transmitida e refletida entre estas camadas inúmeras vezes e em

FIG. 30 Subsurface scattering ou dispersão da luz em superfícies com várias camadas. (Hanrahan, P.; Krueger W., 1993)

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11. HANRAHAN, P.; KRUEGER, W. 1993, p.165.

FIG. 31 | 32 Subsurface scattering da pele. Fenômeno de dispersão da luz em camadas da pele humana.

ângulos irregulares, de forma que ao retornar à superfície, ela é transmitida com características que podem ser bastante diferentes daquelas que seriam se isto se passasse em um meio regular, sem essa diferença de camadas. Este fenômeno específico é bastante conhecido pelo termo do dispersão sob camada, ou subsurface scattering - como é mais utilizado no meio digital. Isto se dá em diversos tipos de materiais, sobretudo nos orgânicos, tais como o material da pele, dos cabelos, das unhas, dos olhos, entre diversos outros. Em materiais inorgânicos este fenômeno também pode acontecer, como por exemplo no caso do mármore, da cera, do acrílico leitoso, etc. É o caso de materiais em que, no geral, a luz penetra no meio em questão e, ao sair, permite a sensação de volume existente neste meio. Na pele humana, por exemplo, este fenômeno é facilmente percebido quando regiões de finas camadas de pele são observadas contra uma fonte luminosa. Isto ocorre em regiões como nas orelhas, nas mãos, no nariz, assim como em diversas áreas do corpo, onde é possível notar tons levemente avermelhados, ao observados contra a luz. Neste caso, este avermelhamento se dá devido ao espalhamento da luz em meio à circulação sanguínea, interna ao corpo.

Porém, para a representação coerente deste tipo de comportamento físico, tanto das luzes quanto dos materiais em questão, é imprescindível o devido domínio da técnica necessária para que esta reprodução aconteça de forma fiel. Por conta disso, este é também defendido como um dos aspectos gerais mais determinantes na ocorrência de estranheza.

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aspe ct o s d et e r m i n an t e s | capaci da d e t é c ni c a

capacidade técnica

FIG. 01 | 02 Busto de auto-retrato produzido pelo artista Marco Di Lucca.

Conforme foi abordado na categorização dos dois aspectos anteriores, ao se reproduzir ambiente digital uma figura humana que seja perfeitamente coerente com a Natureza é primeiramente necessário atingir coerência tanto com relação à anatomia humana, em suas formas, volumes, nuances e dinâmicas, quanto com os aspectos físicos que interagem e influenciam o comportamento dessa anatomia. No entanto, há de se concordar que ambos os aspectos da anatomia e os que são regidos pela Física dependem de um desenvolvimento técnico que seja perfeitamente capaz de reproduzir tais características intrínsecas da natureza humana. Desta forma, para o intuito de uma representação digital que atinja a naturalidade humana, este subcapítulo pretende propor um terceiro aspecto que pode ser determinante na ocorrência de estranheza. É o aspecto da “capacidade técnica”. Pode-se entender este aspecto como a plena compreensão das ferramentas técnicas necessárias para que a reprodução se dê de maneira mais fiel possível com o que se tem na realidade. Isso envolve as mais diversas tecnologias de computação gráfica - como os softwares utilizados nesse processo de produção e suas respectivas ferramentas -, assim como toda a tecnologia utilizada para se alcançar o nível de realismo em elementos que se aplicam nos softwares de produção digital - como as tecnologias de fotogrametria, scan tridimensional, iluminação baseada em imagens de grande alcance dinâmico (HDRi), captura de texturas isoladas (cor, brilho, detalhes) através da polarização da luz em imagens fotográficas, etc. Em um primeiro momento, o pleno domínio dos mais distintos softwares de produção digital deve ser a base estrutural deste pilar do conhecimento determinado pela capacidade técnica. Isto envolve o conhecimento da interface visual desses programas, as ferramentas e soluções por eles oferecidas, os processos de 157


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FIG. 3 Interface padrão do programa Zbrush 4R7, da Pixologic.

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produção específicos de cada um, a inter-relação entre os diferentes programas, a tecnologia de hardware necessária para a execução destes, etc. A reprodução de uma figura humana em ambiente digital geralmente segue um fluxo de trabalho bastante específico, levando em consideração as suas possíveis variações para cada equipe de produção. No geral, este fluxo, conhecido pelo termo em inglês workflow, determina os processos a se seguir na produção, tendo em vista que a sequência de uma etapa geralmente depende da conclusão de sua etapa anterior. Sendo assim, na produção de um personagem 3d humano, o fluxo de trabalho conta com as seguintes etapas: modelagem e escultura digital; texturização; iluminação; desenvolvimento dos shaders - que trata, basicamente, da configuração dos materiais dos quais o personagem é constituído; render - que pode ser explicado pela interação dos elementos que compõem o ambiente em 3d (como a malha do personagem, a texturas, a setagem dos materiais e da luz etc) através da conversão destes em um arquivo visual, uma imagem; e a pós-produção. Cada etapa do trabalho contém soluções tecnológicas específicas que vêm sendo desenvolvidas e aperfeiçoadas todos os anos. Na modelagem e na escultura digital, as soluções são inúmeras. Dentre todas, os principais softwares utilizados nas produções são Pixologic Zbrush e Autodesk Mudbox, para escultura digital, e Autodesk Maya, Autodesk 3d Studio Max, Autodesk Softimage e Luxology Modo, para a modelagem e finalização.


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FIG. 4 Aparelho de escaneamento tridimensional da marca Artec 3d scanner.

Assim, a partir da observação de referências reais, nesta etapa o artista trabalha a figura de maneira escultural, aplicando todos os conceitos e fundamentos disponíveis no estudo da figura humana, os quais geralmente são provenientes da arte tradicional, mas que se aplicam de igual maneira na arte digital. No entanto, para esta etapa do trabalho, uma série de novas tecnologias têm sido desenvolvidas e, cada vez mais, integradas ao processo de produção de humanos realistas. Tratam-se das tecnologias de reconstrução tridimensional. Estas, consistem no processo de captura de informações da forma e da aparência de objetos reais, a fim de reconstruí-los em ambiente digital. Ao invés de depender plenamente da capacidade escultural do artista para se criar um modelo humano do zero - partindo apenas de referências anatômicas, fotográficas e, claro, da bagagem visual do artista -, com as tecnologias de reconstrução têm-se conseguido obter níveis de exatidão anatômica que antes nunca seriam possíveis em uma representação digital. Existem diversas tecnologias disponíveis para este processo, no entanto, as duas mais conhecidas e utilizadas são a reconstrução a partir da fotogrametria e do escaneamento tridimensional. Ambos possuem suas devidas vantagens e desvantagens, mas obviamente isso também é tão sujeito à dinâmica acelerada do desenvolvimento tecnológico, que a vantagem de um sistema hoje pode ser considerada uma desvantagem logo amanhã. Diferentemente da fotogrametria, o escaneamento tridimensional se dá a partir de poucas fontes de informação. Geralmente um único scanner basta. Isso porque durante a captura, o scanner deverá percorrer todo o objeto a fim de se obter a sua reconstrução digital.

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FIG. 5 Reconstruções digitais feitas com o scanner da Artec 3d.

Geralmente esse aparelho projeta um ponto de laser, ou uma linha, na superfície do objeto e, a partir de um sensor interno, mede a distância até ele. Essa informação é processada internamente pelo próprio sistema de coordenadas do aparelho e então é repassada como posição de pontos em espaço tridimensional para um computador que deve reconstruir o modelo digital.

Apesar de ser um sistema que permite um maiores resoluções de detalhamento do que a fotogrametria, sua captura não se dá instantaneamente, normalmente é preciso um segundo ou mais para se capturar a informação de uma parte do modelo escaneado. Isso pode não parecer muito, mas quando se trata de se escanear pessoas, mesmo a mais sutil movimentação poderá causar problemas na reconstrução digital. Enquanto na fotogrametria, esse processo de captura se dá de forma instantânea e, ao depender do número e da qualidade dos aparelhos, pode alcançar níveis semelhantes de detalhe. Basicamente, a fotogrametria é a ciência de se obter medidas precisas através de imagens fotográficas. O resultado da obtenção de tais medidas pode ser, entre outras coisas, modelos 3d de objetos, animais, ambientes e pessoas reais. Esta técnica já era bastante usada como recurso nas engenharias, no mapeamento topográfico, na arquitetura, em 160


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investigação policial, na meteorologia e mesmo em arqueologia, porém começou recentemente a se tornar uma forma bastante acessível de reconstrução digital para pós-produção na cinematografia e também na produção de games. Para se criar as réplicas digitais utilizando a fotogrametria, um sistema multi-câmeras é precisamente montado em um estúdio com iluminação controlada. Este sistema consiste em dezenas ou as vezes centenas de câmeras fotográficas situadas em locais determinados a obterem uma enorme gama de ângulos diferentes do modelo real, o qual fica centralizado em meio às câmeras. Assim, a partir do disparo de fotos simultâneas de todos os ângulos do modelo, as informações de forma e textura do modelo são capturadas e processadas através de técnicas de triangulação de pontos, em softwares como o AGISoft Photoscan, resultando em um modelo geométrico recriado em ambiente digital.

FIG. 6 | 7 Ten24: Sistema de fotogrametria e interface do software de processamento das imagens Agisoft Photoscan.

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Apesar de ser um método com o qual se atinja muita precisão, o modelo reconstruído através da fotogrametria costuma apresentar um grande nível de ruído. Isto se dá principalmente devido à quantidade e à qualidade das fontes de captura - no caso, as câmeras situadas em diferentes ângulos em relação ao modelo. Quanto maior o número de câmeras, maior será a triangulação e, portanto, menor o ruído no modelo reconstruído. Da mesma forma, com relação à qualidade, obviamente as características das câmeras, como a resolução, o nível de ruído e mesmo a calibração de cada uma delas em relação ao foco por completo no modelo, são aspectos determinantes. Por fim, um complexo sistema de iluminação, o qual possibilite que o modelo seja iluminado por completo e de igual maneira, tem sido também o grande segredo no sucesso desta tecnologia.

FIG. 8 Ten24: Material cru de uma reconstrução digital por fotogrametria, a partir do qual se realizam a limpeza de ruídos, separação e remodelagem de formas, e também a reprojeção de detalhes finos.

Mesmo assim, apesar do nível de ruido obtido em uma reconstrução por fotogrametria, com os processos de limpeza e refinamento dos modelos têm-se conseguido excelentes resultados tanto na indústria cinematográfica e de games, como em diversas outras indústrias, tais como a de impressão 3d. 162


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FIG. 9 Ten24: Render realista realizado em um modelo reconstruído por fotogrametria e refinado manualmente.

O uso das técnicas de fotogrametria em todas essas áreas tem certamente sido um dos maiores avanços tecnológicos, sobretudo na representação de humanos digitais, pois uma vez que as informações de forma, volume e textura são capturadas diretamente a partir de um modelo real, torna-se possível atingir uma coerência anatômica e da reprodução das dinâmicas morfológicas de forças externas e internas nesta anatomia, de forma muito mais exata e fiel. Sendo assim, restam aos artistas de escultura e modelagem da equipe de produção apenas os processos de limpeza e refinamento dos ruídos provenientes da reconstrução e, num segundo momento, também a reprojeção do detalhamento fino, que são os poros, rugas e vincos característicos da superfície anatômica do modelo reconstruído. Torna-se mais fácil, portanto, atingir uma reprodução com naturalidade e realismo, que não cause estranheza no observador, dado que os dois primeiros aspectos determinantes dessa estranheza - conforme proposto na categorização deste trabalho - já foram reproduzidos com grande sucesso através dessa reconstrução. No entanto, a etapa de construção da forma e volume de um modelo digital é apenas uma das fases do processo de reprodução de uma figura humana. Na sequência, uma vez terminada esta etapa, geralmente se dá início à texturização deste modelo. Este processo nada mais é do que a pintura das cores que compõem o personagem, já que até então, um modelo construído digitalmente ainda não possui nenhuma informação de textura. Quando o modelo for modelado e esculpido do zero, o artista deve realizar a pintura manual das mais variadas nuances de cores que se apresentam na pele humana e em toda a superfície de 163


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FIG. 10 Interface gráfica do software The Foundry Mari 2.6v4.

roupas e acessórios do modelo. Outra alternativa bastante comum é projetar imagens fotográficas, em um processo que pode ser bidimensional ou um então tridimensional, a depender da técnica utilizada pelo artista. Para esta etapa do processo, existe também uma gama completa de softwares e ferramentas específicas de texturização, no entanto, os mais utilizados neste processo podem ser as seguintes soluções: Pixologic ZBrush, Adobe Photoshop, The Foundry Mari, Substance Painter & Designer, Autodesk Mudbox, Quixel Suite, entre diversas outras.

Por outro lado, ao se utilizarem os processos de reconstrução digital através de imagens, como a fotogrametria e o escaneamento digital, já se obtêm, consequentemente, as imagens de textura, provenientes das fotografias de diversos ângulos do modelo real. Isto também possibilitou um enorme avanço na qualidade deste processo de texturização, tendo em vista o alcance fiel das infinitas particularidades da pele humana, tais como níveis diferentes de capilarização, poros, dobras, pintas, manchas etc. Uma vez terminada a etapa de texturização do modelo, na continuidade do processo se tem a etapa da iluminação do modelo digital e do ambiente no qual ele se insere, caso este também esteja presente na cena. Considerando que até pouco tempo era muito complicado de se reproduzir padrões com alto grau de realismo na iluminação digital - devido ao nível da tecnologia disponível -, esta costumava 164


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1. DEBEVEC, 1998.

ser uma das etapas que mais denunciava estranheza em um modelo digital. Era preciso configurar os mais diversos aspectos do comportamento das luzes nos softwares de renderização e ainda assim, nem sempre se conseguia um realismo esperado. Isto porque grande parte dos motores de renderização - ou seja, a estrutura dos cálculos realizados para converter as informações tridimensionais em uma imagem - era constituída de algorítimos não baseados em uma física fotográfica. Muitos deles eram restritos à configuração de parâmetros específicos da programação do software, sem quase nenhuma relação com a forma de como aquilo se dá na Natureza. Era preciso, portanto, ter o domínio deste comportamento da luz, dos materiais e da câmera, de forma a reproduzi-los com coerência. No entanto, com o desenvolvimento destas tecnologias, cada vez mais foram introduzidos novos tipos de cálculos, os quais eram baseados na física e no comportamento fotográfico. Sendo assim, tem se tornado cada vez mais automatizado este processo de iluminação, ficando restrito apenas ao direcionamento artístico das ferramentas disponibilizadas. Contudo, em nada tem a ver esta automatização do processo com a certeza sobre a qualidade de uma imagem final. Da mesma forma, é preciso o discernimento do artista para que a iluminação do seu personagem se dê com coerência e que se encaixe nas intenções do mesmo. Talvez a maior de todas as conquistas tecnológicas no que diz respeito ao processo de iluminação tenha sido a invenção do chamado “Image-based Lighting”, ou “Iluminação baseada em imagens” 1. Através desta tecnologia, tornou-se possível iluminar cenas inteiras em ambiente digital a partir da informação de radiância capturada em locais reais. Esta informação é extraída de imagens em diversas exposições nestes cenários desejados. Desta forma, pôde-se alcançar extrema naturalidade e coerência neste processo de iluminação. Em meio aos principais trabalhos da linha de pesquisa sobre iluminação em ambiente digital, tem sido uma peça fundamental o pesquisador Paul Debevec, do Institute for Creative Technologies da University of Southern California, nos Estados Unidos. Debevec foi o grande responsável pelo desenvolvimento das mais diversas tecnologias de iluminação e reconstrução de modelos a partir de imagens, utilização de imagens com grande alcance dinâmico e captura de reflectância a partir da polarização da luz. Contando com o lançamento de diversos trabalhos anualmente desde 1996 - os quais foram verdadeiros divisores de 165


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águas para a história da computação gráfica e a reprodução realista -, Debevec e sua equipe (1997) foram os primeiros a desenvolver um método para a fusão de diversas imagens fotográficas de um mesmo ponto, mas que contivessem diferentes níveis de exposição luminosa, através da interpolação entre estas. Tratava-se assim do primeiro uso fotográfico dos chamados “mapas de grande alcance dinâmico”, que no termo mais conhecido, do inglês possui a sigla “HDR” (High Dynamic Range).

FIG. 11 DEBEVEC, 1997. Recovering High Dynamic Range Radiance Maps from Photographs.

FIG. 12 DEBEVEC, 1997. Rendering with Natural Lights.

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A partir do desenvolvimento deste método, Debevec e sua equipe (1998), logo no ano seguinte, aplicaram pela primeira vez esta tecnologia como uma fonte de informação para a iluminação em ambiente digital. Ao capturar diversas exposições da iluminação de um determinado local, Debevec aplicou esta informação de radiância das imagens como parâmetros de intensidade e de cor na luz ambiente do sistema digital. Desta forma, conseguiram reproduzir as mesmas condições luminosas de um ambiente real, em uma produção digital. Obtiveram assim, o primeiro uso da tecnologia de “Image Based Lighting”, tão utilizada nos dias de hoje. Esta tecnologia passou a ser aplicada na grande maioria das produções cinematográficas, sendo, por exemplo, responsável pela iluminação dos atores digitais que foram reconstruídos em diversas cenas dos filmes da trilogia The Matrix. Desde então, esta tecnologia se desenvolve cada vez mais e se torna quase que imprescindível nos sistemas de iluminação atuais, seja para as pequenas, médias


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e grandes produções ou para o desenvolvimento de trabalhos pessoais.

FIG. 13 Exemplo de uma imagem HDR, em um formato esféricoplanificado, utilizado na projeção de “Image-based Lighting”.

Na sequência do processo de produção de um humano realista, uma vez definido a iluminação deste, pode-se seguir com a configuração dos parâmetros de comportamento dos materiais que compõem este personagem. O pleno domínio técnico necessário para essa configuração é fundamental para a representação correta das características físicas dos materiais. Ao se reproduzir uma figura humana, obviamente o material mais importante é o material da pele. Ainda que todos os outros sejam de igual valor para a determinação de estranheza em um modelo, a pele é onde mais se pode errar, dado a sua enorme complexidade no comportamento físico. Conforme já comentado, a pele é um material composto por uma série de diferentes camadas, as quais apresentam propriedades distintas umas das outras. Ao interagir com este material, a luz se dispersa em meio a estas camadas, resultando em um comportamento bastante específico. Trata-se do fenômeno de subsurface scattering ou dispersão da luz em camadas sob a superfície. Para a simulação do comportamento da pele em ambiente digital, no ano de 2001, o pesquisador dinamarquês Herik Wann Jensen e sua equipe (2001) desenvolveram uma tecnologia específica de cálculos capazes de reproduzirem o transporte e a difusão da luz deste efeito. Foi a invenção do shader SSS, que nada mais é do que a sigla para subsurface scattering. Através deste, tornou-se possível reproduzir materiais com aspectos de volume na translucência como o material da pele, da cera, do mármore, entre outros. Com este feito, a tecnologia de SSS se tornou fundamental 167


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na reprodução de materiais realistas. Jensen e equipe receberam o prêmio de Oscar técnico em 2004, com a simulação da pele reproduzida no personagem Gollum, no filme The Lord of the Rings. A correta configuração deste material é importantíssimo para a coerência na representação da pele. Este material depende de algumas informações específicas, como todo e qualquer material configurado em um sistema de render. Estas informações são alteradas através de parâmetros numéricos e de imagens, as quais são chamadas de “mapas”. Estes “mapas” basicamente são imagens em versões planificadas do modelo digital, que fornecem padrões numéricos diferentes em decorrência de cada região na superfície do modelo, não se restringindo assim a um parâmetro numérico geral.

FIG. 14 Demonstrativo de alguns dos “mapas” que compõem um shader de pele em um render fotorrealista.

Ainda que cada renderizador exija uma estrutura diferente na reprodução de um material de pele SSS, no geral, este material vai depender de imagens - mapas - que deem informações das três camadas da pele, mapas que determinem o relevo da superfície da pele e, por cima de tudo, mapas que informam o comportamento 168


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FIG. 15 | 16 Ten24 - Busto scaneado, renderizado com SSS em duas iluminações diferentes, pelo artista James Busby.

do brilho dela. Geralmente as três camadas se dão da seguinte forma: uma primeira camada mais dessaturada para representar a epiderme que é a camada “morta” da pele; uma segunda camada mais amarelada, representando a derme e hipoderme, que são constituídas de elementos fibrilares e tecido adiposo; e uma terceira camada, que representa a subderme, ou seja, o tecido profundo da pele, de alta vascularização, portanto, mais avermelhado. O relevo desta superfície é determinado pelos mapas de “displacement” e “bump”, originários da modelagem. Já o brilho, este geralmente se dá através de duas camadas: uma de brilho mais espalhado e outra de brilho mais concentrado. Todos estes mapas se interagem na arquitetura do material de pele e resultam em um shader bastante complexo, com uma infinitude de possibilidades mais ou menos realistas e coerentes com a natureza humana. Este é, de fato, um dos materiais mais complicados de se reproduzir digitalmente, no entanto, um dos que é mais determinantes na percepção de realismo em um personagem. Basicamente, este material possibilita o efeito de que a luz, ao interagir com o modelo, tenha parte de sua radiância penetrada e absorvida pelo modelo - iluminando-o, assim, internamente algumas regiões a depender da espessura - e que parte seja refletida, tanto em brilho especular, como em difusão da cor da pele do modelo. Este efeito é claramente perceptível em regiões com menores espessuras. Por isso, ao se posicionar uma fonte luminosa atrás de um modelo, as orelhas dele se tornarão vermelhas, por exemplo.

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No entanto, não somente nas orelhas que esse efeito se mostra presente, mas em toda a superfície do personagem. Podese notar na figura seguinte - um comparativo entre um modelo renderizado sem e com essa tecnologia SSS - uma enorme diferença na percepção do material de pele. Na versão sem SSS, percebese um material praticamente inorgânico, sem vida, plástico, uma vez que ele não aparenta ter nenhum tipo de translucência e nem volume interno. Devido ao isso, a figura se apresenta com regiões de sombreamento escuro, sem profundidade alguma no material. Em contrapartida, na versão renderizada com SSS, o modelo aparenta se constituir de um material orgânico, com translucência e absorção da luz, e também sombreamentos “acesos” devido à dispersão interna nas camadas deste material.

FIG. 17 | 18 Activision: Modelo Lauren renderizada tem tempo real, sem e com a tecnologia otimizada de SSS.

FIG. 19 - 22 Comparativo da modelo Lara Croft, renderizada em tempo real no jogo Rise of the Tomb Raider, em versões sem e com o uso da tecnologia otimizada de SSS.

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Recentemente este também passou a ser um recurso não mais exclusivo das tecnologias de renderização offline2, mas também foi implementado nas renderizações em tempo real, ou real time3. Semelhantemente, porém de forma mais otimizada, foi desenvolvido um tipo de cálculo que busca simular essa dispersão da luz nas camadas internas de materiais volumétricos como a pele. Mesmo não sendo baseado a partir de cálculos tão fisicamente corretos quanto na renderização offline, este efeito possibilita também uma enorme diferença na percepção de realismo no material, principalmente devido à dispersão de uma luz traseira e também à iluminação dos sombreamentos internos neste material.


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2, 3 Render offline e real-time: O render pode se dar de maneira "offline", em que se utilizam cálculos e processos bastante complexos e de conclusão demorada, ou em “real-time”, em que a imagem final é gerada em tempo real, ou seja, ao mesmo tempo em que se interage com a cena, rotacionando o ponto de vista, alterando iluminação etc. No primeiro modo, offline, é necessário esperar a conclusão de todos os cálculos para que se possa visualizar a imagem, no entanto, devido a esta complexidade, o resultado costuma ser muito melhor e mais realista do que no modo real-time. No entanto, têm-se obtido resultados incrivelmente bons para esta tecnologia, de forma a se equiparar à qualidade do offline.

Além da representação do comportamento da luz que penetra a pele, este material também tem como principal fator determinante de realismo o seu brilho específico, que diz respeito ao comportamento da luz que é refletida, ao incidir na pele. Conforme também já foi discutido neste trabalho, o brilho da pele se apresenta em duas camadas, uma com brilho mais espalhado e outra com brilho mais pontual. Isto acontece devido aos níveis de umidade e oleosidade da pele, mas também, principalmente, devido à maneira como se dá o relevo na superfície. Até alguns anos atrás, os “mapas” que forneciam as informações determinantes para o comportamento deste brilho eram pintados manualmente a partir das informações de cor e da modelagem dos detalhes finos da pele. Ainda que mais minuciosa e detalhadamente possível fosse este processo, o nível de refino desta modelagem ainda era insuficiente para reproduzir corretamente o brilho da superfície da pele. O efeito de um brilho mais espalhado e, por cima, um brilho concentrado, deveria ser simulado através de algumas edições e manobras específicas. Com a introdução do processo de fotogrametria para a reconstrução de pessoas e objetos reais no ambiente digital, posteriormente foi introduzido um processo mais fiel para a captura das informações do brilho da pele. Através do desenvolvimento de um sistema de polarização para a luz, durante a captura da fotogrametria, Debevec e sua equipe (2007) conseguiram isolar a informação de radiância refletida especularmente - o brilho, propriamente dito -, da informação de radiância refletida de maneira difusa - a cor. Além disso, conseguiu-se captar também a informação de reflectância de cada região do rosto, que determinaria onde seria mais reflexivo e onde seria menos. Assim, tornou-se possível reproduzir as estruturas reais do relevo superficial da pele e, consequentemente também, o comportamento do brilho nesta.

FIG. 23 Imagens demonstrativas do processo de captura da reflectância, através da polarização da luz.

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FIG. 24 Imagens demonstrativas do processo de captura da reflectância, através da polarização da luz.

FIG. 25 Mapas representativos de um fragmento de micro e meso estruturas, e suas respectivas mesclas.

FIG. 26 | 27 Comparativo entre o resultado no brilho de um modelo sem e com o uso das micro geometrias.

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No entanto, como é através do brilho que se consegue observar os detalhes extremamente pequenos de uma superfície, a resolução das estruturas reconstruídas com este processo de fotogrametria ainda não era suficiente para reproduzir o verdadeiro comportamento do brilho da pele. Assim, no ano de 2012, Debevec e sua equipe (2012) avançaram ainda mais nesta pesquisa e desenvolveram um sistema capaz de incrementar as estruturas do relevo da superfície da pele obtidos na fotogrametria. O que antes se tratavam da resolução de mesoestruturas - poros, vincos e dobras -, provenientes da fotogrametria, a partir de então seriam incrementados com a informação de microestruturas da pele, que consistem em micro fissuras características da elasticidade e porosidade microscópica que ela apresenta. Através da captura de um fragmento quase que microscópico da reflectância da pele em diversas regiões do rosto, replicou-se estas micro-estruturas, mesclando às informações de meso escala. O resultado atingiu efeito que mal se pode notar a nível de relevo da superfície, mas que em relação ao comportamento do brilho, alcançou-se um nível de fidelidade com a pele humana até então inalcançável através das técnicas anteriores de simulação material.

Em alguns trabalhos apresentados esta aplicação acontece de forma mais sutil, em outros ela é mais perceptível. No geral, pode se parecer um exagero do nível de detalhismo a um leitor de primeira viagem, mas na representação da figura humana, o nível mais minucioso de detalhe pode fazer toda a diferença na percepção de realismo e, consequentemente, de estranheza nesta criação, pois conforme a explanação teórica do fenômeno do Uncanny Valley realizada no


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FIG. 28 Comparativo no uso da micro-geometria para a representação da pele, no trabalho pessoal de Brett Patrick Sinclair. Ainda que seja um busto fantasioso, como se nota na proporção das orelhas, é percebido de forma impressionantemente realista.

capítulo 2 deste trabalho, verificou-se que qualquer mínimo atributo que permita uma ambiguidade na categorização de determinado artefato pode, por sua vez, ser determinante para a falha da ignição do processo de empatia com o modelo. Assim, com um olhar atencioso, é possível perceber notavelmente a diferença na percepção de realismo do material da pele, quando aplicado esta técnica. Sem sua aplicação, a pele assume um caráter mais plástico, sutilmente incoerente com aquilo que se observa no real. Já quando se dá esta aplicação, pode-se perceber, por exemplo neste comparativo no trabalho pessoal do artista Brett Patrick Sinclair, que a pele com micro-geometria apresenta sutilmente maior profundidade e organicidade no material do que na versão sem esta aplicação, mesmo que neste caso, a pele tenha ficado com um aspecto mais seco e não tão oleoso. Ainda assim, é mais viva do que sem a aplicação. Esta pode ser uma percepção extremamente sutil, durante uma análise como esta, mas certamente em um primeiro contato, esta pequena diferença pode ser determinante para a percepção.

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FIG. 29 Trabalho pessoal de Brett Patrick Sinclair, com a aplicação de microgeometrias da pele.

Contudo, a representação dos materiais não se restringe ao material da pele. Além deste, o material de todos os outros elementos do corpo humano, como cabelos, pêlos, unhas, olhos, dentes, também devem se comportar com coerência em qualquer tipo de iluminação. Qualquer mínimo detalhe incoerente também pode ter seu papel na produção da sensação de estranheza no seu observador.

FIG. 30 Material de pele, cabelos e pêlos faciais funcionando em iluminações diferentes no personagem Drake, do jogo Uncharted 4.

Dentre todos os outros materiais, talvez o mais importante para a percepção de realismo seja o material do olhos. Este, envolve não somente a estrutura física do material, determinada pela refração da córnea, pelas nuances de cores da íris, pelo brilho que envolve a esclera, mas também o relevo de sua superfície e a dinâmica de suas formas. Os olhos naturalmente são a região em que mais se pode perceber realismo ou estranheza em um personagem digital, 174


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FIG. 31 - 34 Disney Research Zurich: High-Quality Capture of Eyes. 2014

conforme comprovado por Tinwell et al (2011). Sendo assim, qualquer detalhismo, ainda maior do que o se deu na elaboração do material da pele, assume um papel fundamental no resultado percebido. Por conta disto, o pesquisador Pascal Berard e sua equipe (2014) - todos pesquisadores da Disney Research Zurich - buscaram e conseguiram desenvolver um sistema de captura extremamente fiel destes atributos dos olhos. Mesmo com os olhos humanos sendo uma das características mais centrais da aparência individual de cada um, a forma dos olhos recriados digitalmente não passava de aproximações e grandes simplificações até o desenvolvimento deste trabalho. Fazendo uso dos mais diversos sistemas de captura de imagens, a equipe conseguiu isolar as informações de superfície e de textura tanto da esclera, quanto da córnea e da íris. Além disso, também se captou a dinâmica na variação dessas informações de acordo com diversas situações como, por exemplo, os diferentes tamanhos da pupila, em decorrência da dilatação por maior ou menor luminosidade. Com essas informações, a equipe de pesquisa conseguiu reproduzir com extrema precisão cada micro detalhe da superfície de todas as partes visíveis do olho. Sendo assim, através deste sistema também se tornou possível atribuir pela primeira vez uma grande individualidade dos olhos de cada pessoa em uma reconstrução digital.

Além de representar de maneira coerente todos os materiais que compõem os elementos do corpo humano, da mesma forma, devem se dar a apresentação de todos os outros materiais das roupas e acessórios utilizados pelo personagem. Cada material no mundo real possui um comportamento determinado para o seu reflexo da luz, para o relevo de sua superfície, sua translucência ou opacidade. Ainda que sejam elementos externos ao corpo humano propriamente, uma incoerência na representação destes também pode se tornar um atributo ambíguo na percepção deste personagem e consequentemente provocar estranheza no observador. 175


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FIG. 35 - 38 Personagem Drake do jogo Uncharted 4 e personagem Lara Croft do jogo Rise of the Tomb Raider, ambos com a representação de variações fisiológicas e da interações dos modelos com o ambiente.

Da mesma forma, também devem ser representadas as diferentes variações fisiológicas em um modelo. Reproduzir níveis diferentes de oleosidade da pele, retratar a transpiração de um modelo em decorrência de esforços ou situações características, reproduzir a sujeira e umidade absorvida pela interação com o ambiente no qual o personagem se insere, tudo isso também deve ser levado em consideração.

Por fim, no processo de produção 3d de uma figura humana, estão as etapas de render e de pós-produção. Na etapa de render, o modelo que foi criado e configurado até então vai se tornar uma imagem, através do processamento de todos os cálculos de interação entre os elementos configurados. Já na pós-produção, costuma-se realizar algumas edições desta imagem final, a fim de se reproduzir algumas características típicas de artefatos da fotografia. Desta forma, ainda no processo de render, é necessário ter o domínio de um conhecimento técnico de fotografia, pois esse pode influenciar tremendamente no resultado final desta representação. Mesmo que isto se submeta a qual motor de renderização for escolhido nesta fase, a grande maioria assume um determinado 176


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nível de cálculo baseado em uma física fotográfica. Assim, é preciso configurar todos os parâmetros que se configura em uma câmera fotográfica manual, desde à distância focal a se capturar a imagem, como também níveis de exposição, desfoques etc.

FIG. 39 Imagem de andamento no progresso do trabalho pessoal de Lukás Hajka, na comparação entre diferentes distâncias focais a se capturar a imagem do modelo.

Já na última etapa, durante a pós-produção essa imagem é devidamente editada para se reproduzir outras características fotográficas tais como a granulação do filme, aberrações cromáticas sutis, um leve efeito de vignette, que é uma espécie de sombreamento nas bordas da imagem proveniente da lente da câmera, etc. No entanto, estes últimos detalhes dificilmente assumirão um papel tão importante quanto os outros aspectos discutidos até então, para um resultado que determine ou não a sensação de estranheza, pois estes são aspectos mais externos à representação da figura humana. Desta forma, buscou-se demonstrar alguns dos incontáveis aspectos técnicos que podem dificultar a reprodução realista dos dois aspectos gerais discutidos anteriores: a coerência anatômica e os aspectos físicos. Uma vez que não se tenha a capacidade necessária para tal perfeição na representação de detalhes e características específicas do corpo humano, a estranheza pode ser determinada não por uma incoerência decorrente dos outros aspectos, mas sim por uma incapacidade técnica em reproduzi-los fielmente. No entanto, mesmo que tudo seja reproduzido da maneira 177


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mais fiel possível, este trabalho propõe a categorização de um último aspecto geral, que pode invalidar toda esta perfeição na fidelidade de representação da figura humana feita até então. Tratase do aspecto da expressão emocional coerente, a ser discutido no próximo subcapítulo.

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a spect o s d et e r m i n an t e s | e x pr e ssão e m oc i ona l

expressão emocional

FIG. 1 Personagem Commander Shepard, do jogo Mass Effect.

Mesmo coerente com os três aspectos determinantes de estranheza apresentados até então na proposta de categorização deste trabalho, muitas representações da figura humana continuam sendo percebidas como estranhas e também provocando repulsa, inquietude, desgosto, entre outros sentimentos. Um modelo digital, por exemplo, pode ter atingido um altíssimo nível de fidelidade com a anatomia humana, assim como ter tido os aspectos morfológicos regidos pela Física muito bem representados e tudo isso através de um excelente domínio técnico, plenamente capaz de reproduzir tais atributos com o máximo de realismo. No entanto, este modelo digital pode continuar a provocar estranheza uma vez que se apresente com uma expressão emocional incoerente ou mesmo a falta dela. Um modelo pode ser completamente realista, mas ao se apresentar com olhares de tristeza e um boca de sadismo, por exemplo, certamente ele deve soar estranho ao seu observador, pois esta não é uma manifestação emocional natural para o ser humano.

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1. Emotional Competency discussion of emotion Disponível em http://www.emotionalcompetency.com/ emotion.htm acesso 10/11/2015

2. RODRIGUES, 1989.

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Neste raciocínio, este trabalho propõe a coerência na expressão emocional como um último grande aspecto que possa ser determinante para a ocorrência do fenômeno do Uncanny Valley, quando em uma imagem estática de um personagem 3d. Seja ela na expressão de uma emoção específica ou mesmo em uma emoção neutra, deve-se haver coerência na representação de todas as sutilizas físicas e visuais de cada uma. Para esta abordagem, primeiramente, deve-se estar claro o conceito de emoção. Em uma aproximação literal da raiz do termo, a palavra emoção tem como significado a ideia de exteriorizar o movimento, uma vez que se derivem o prefixo e- na ideia de “fora” e -moção na ideia de “movimento” 1. Por outro lado, pode-se entender, basicamente, que quando um indivíduo se emociona, ele expressa para o exterior uma experiência subjetiva, um estado psicológico do ser, e isto se dá através de determinados indícios na linguagem do corpo, nas expressões faciais e nas alterações fisiológicas2. Tal como se deu na leitura de Lessa (2008), as emoções são constituídas tanto por aspectos psicológicos, quanto por aspectos físicos ou visuais. Como os aspectos psicológicos das emoções não são verdadeiramente percebidos por um observador, mas sim transmitidos através dos aspectos físicos que são expressados pelo indivíduo, no que é de interesse para esta discussão, será analisado apenas aquilo que é manifestado visualmente na expressão das emoções. Estes aspectos físicos ou visuais também são denominados como manifestações periféricas das emoções. Basicamente, as manifestações periféricas das emoções são exteriorizadas pelo indivíduo através de uma comunicação não verbal, pois seu principal meio de transmissão da mensagem não é através de sinais verbais, mas pela linguagem corporal do indivíduo. Em seu trabalho, Lessa (2008) exemplificou que estas manifestações periféricas podem se revelar através de diversos atributos como: expressão facial, gestos e movimentos, postura corporal, dilatação da pupila, frequência respiratória, batimento cardíaco, sudação cutânea, atividade muscular, pressão sanguínea, etc. Tudo isso pode ser percebido visualmente por outro sujeito e, uma vez que cada tipo de emoção costuma ser determinado por reações específicas, é natural que o ser humano cresça adquirindo diariamente uma infinita bagagem visual do que consistem ser as manifestações periféricas de cada emoção. Desta forma, a partir da manifestação de atributos respectivos a determinados tipos emocionais, é possível se distinguir indícios do estado psicológico de uma pessoa e, assim,


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tentar entender quais são seus sentimentos e suas emoções. Esta é uma capacidade inata do ser humano, da qual ele é dependente para exercer suas funções sociais através da interação com os outros. Conforme o que já foi apresentado, o que se dá é uma produção análoga de respostas emocionais, denominada como empatia afetiva. Por conta disso, é natural, por exemplo, que ao notar uma pessoa sorrindo, um sujeito possa se perceber induzido a sorrir também. No entanto, ao se perceber, por exemplo, duas ou mais manifestações periféricas oriundas de diferentes tipos de emoção, ambas apresentadas simultaneamente em um mesmo indivíduo, uma reprodução análoga dessa mesma situação no sujeito que as percebe se torna incapacitada. O mesmo acontece quando se dá uma ausência destas manifestações, visto que mesmo em uma expressão neutra, de repouso, por exemplo, existem características visuais com as quais se consegue distinguir este estado de neutralidade. Sendo assim, ambos os casos de ocorrência simultânea de mais de uma emoção ou de ausência de uma delas são percebidos por um indivíduo observador como uma aberração na expressão emocional daquela figura, pois o que se percebe é incoerente com aquilo que o sujeito conhece da sua própria natureza como ser humano. Além disso, mesmo uma ínfima distorção de alguma dessas formas de expressão emocional na linguagem do corpo também pode ser um forte agente para este resultado. No que diz respeito a representações da figura humana, a grande maioria dos pesquisadores defende que a maior percepção destas incoerências na expressividade emocional se encontram na expressão facial dos personagens. Entre eles, a pesquisadora Angela Tinwell (2014), especialista que estuda o impacto do Uncanny Valley na empatia e usabilidade em jogos, na Universidade de Bolto, verificou que a falta de uma expressividade emocional assume um papel ainda mais determinante na percepção de estranheza durante o fenômeno. E isto se intensifica quando esta falta se dá principalmente na região superior da face. Com certeza, a percepção de olhos mortos, sem vida, é a primeira queixa ao se perceber um personagem que não apresente um direcionamento natural do olhar. Esse é um dos erros mais comuns cometidos na produção de personagens realistas 3d. Os personagens costumam se apresentar como se fossem vesgos, ou então, sem nenhuma intenção no olhar. Por conta disso, costumase percebê-los como vazios e sem vida, mesmo que o personagem seja perfeitamente realista nos outros aspectos. Tinwell defende que 181


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3. TINWELL, 2014, p.41.

a expressividade emotiva na região superior da face humana tende a fazer toda a diferença na percepção de estranheza. Milhões de anos de evolução afinou nosso cérebro para detectar até mesmo a mais sutil percepção de algo incoerente em um rosto humano e, assim, passar a desconfiar dele3.

FIG. 2 | 3 Personagem do jogo Medal of Honor Warfighter. Comparativo com e sem a percepção dos olhos

A região superior da face, de acordo com Tinwell (2014) é a região com maior expressividade emocional devido à sua potencialidade na comunicação não verbal. Além da importância na representação fiel de aspectos físicos que dão coerência na reprodução desta região, como o material da pele, dos olhos e dos pêlos faciais, é nesta área da face que se dão as alterações morfológicas provenientes da musculatura de forma mais determinante para esta comunicação não verbal. Essas alterações compõem a formação de vincos e dobras na região dos olhos, das pálpebras, das sobrancelhas e da testa. Qualquer mínimo erro na representação desta região é prontamente percebido com estranheza. Tinwell comenta sobre isso, na percepção de sorrisos falsos, sobretudo na animação, como 182


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um resultado da imperfeita reprodução de características físicas da região dos olhos, por exemplo:

4. TINWELL, 2014, p.90-95.

Sorrisos falsos são particularmente comuns porque a fidelidade da pele simulada abaixo dos olhos nas produções digitais ainda não é alta o suficiente para mostrar as linhas e protuberâncias que podem ser criadas por um sorriso genuíno4.

FIG. 4 Enrugamento da pele ao redor dos olhos, característico da expressão de um sorriso espontâneo e genuíno. (Tinwell, 2014, p.92)

Em toda essa região, a menor sutileza na alteração de um determinado elemento pode alterar completamente a percepção da emoção expressa. Um simples volume a mais na pálpebra inferior ou um milímetro a menos na cobertura dos olhos pelas pálpebras pode fazer com que a percepção de uma emoção de alegria, por exemplo, se torne uma emoção vazia, sem definição, ou mesmo pode converter a percepção desta emoção para outra completamente diferente, como uma emoção sádica.

FIG. 5 | 6 A porção dos olhos que é coberta pela pálpebra superior, de acordo com a coerência com cada emoção expressada, pode determinar uma falta de expressividade na região superior da face.

O mesmo pode se dar com relação aos aspectos dinâmicos dos olhos, como os diferentes níveis de dilatação da pupila, a orientação e posicionamento do olhar, todas essas variações envolvem sutilezas características para cada tipo de emoção, que são responsáveis pela comunicação não verbal dessas emoções. Na língua inglesa existe um termo característico para a representação de intenção no olhar. Trata-se do conceito de “gaze”, 183


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5. Gaze em The Free Directionary: http:// www.thefreedictionary.com/gaze acesso 13/11/2015

popularizado pelo psicanalista Jacques Lacan. Este conceito consiste no olhar de forma constante, atenta e com um ponto fixo.5 Em uma abordagem ainda mais aprofundada na teoria deste conceito, Ribeiro (2012) defende através da leitura de Sartre, Merleau-Ponty e Lacan que a percepção deste tipo de olhar assume uma participação destacada na constituição psíquica de um ser, ou seja, um dos maiores indícios para se perceber funções mentais em um ser humano.

FIG. 7 Gaze, ou intenção no olhar, no trabalho do artista Lukas Hajka

Desta forma, é coerente entender a importância desta região superior da face para expressividade de um personagem como introduziu Tinwell (2014). 184


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6. TINWELL, 2014, p.19-20

Obviamente a região da boca também é extremamente expressiva e deve ser reproduzida com coerência em relação aquilo que foi representado na região superior, assim como todo o resto. No entanto, um exemplo que Tinwell6 verificou foi que “as pálpebras, sobrancelhas, mesmo as pequenas rugas nesta região do rosto que aparecem durante a fala são o que dá a maior autenticidade a um personagem”. Ou seja, mesmo que a região da boca seja extremamente determinante, os olhos são sempre o maior foco de atenção em uma figura humana, e portanto, tendem a ser maior indício de autenticidade de uma expressão emocional.

FIG. 8 Imagens de partes isoladas do personagem Digital IRA. A região dos olhos é a mais determinante de estranheza.

Com uma verificação prática desta ideia, ao se isolar as regiões da face do personagem Digital IRA, por exemplo, podese perceber claramente esta maior influência na percepção de 185


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FIG. 9 Busto hiperrealista produzido pelo artista Jonas Tornqvist.

FIG. 10 - 13 Trabalhos realizados pelos artistas Lukáš Hajka, Yang Le, Oleg Koreyba e Lei Shi, respectivamente.

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estranheza na região dos olhos. Lembrando que este personagem possui toda sua animação e formas reconstruídas a partir da captura por fotogrametria de um ator real, a não ser por seus olhos, os quais foram recriados e animados manualmente pelos artistas envolvidos. Pode-se notar nele uma incoerência tanto representação anatômica dos olhos e das pálpebras, como também uma estranheza por conta do material que constitui esse olho, que está muito mais “aceso” e brilhante do que o normal. Porém, mais do que todos esses aspectos, o posicionamento desses olhos ou mesmo a orientação deles pode estar afetando completamente a percepção da emoção expressada por este personagem. Da forma como ele está representado, é difícil discernir se o personagem está assustado, surpreso, ou apenas atento. Por outro lado também não é possível imaginar um ponto determinado ao qual ele está fixando seu olhar. O resultado é notadamente uma sensação de estranheza no personagem como um todo. E o curioso é que, ao se atentar isoladamente para as partes, pode-se perceber que tanto a região do nariz, quanto à da boca, não provocam tanta estranheza quanto à região dos olhos. O mesmo se percebe no busto realizado pelo artista Jonas Tornqvist. Ainda que seja um trabalho bastante realista e que o modelo se aparente em uma emoção neutra, ele parece estar vesgo, fato este que pode intensificar a sensação de estranheza percebida no modelo. Esta diferença é notável ao se comparar com modelos que conseguiram expressar essa intenção no olhar com muito mais coerência, como no caso dos personagens realizados pelos artistas Lukáš Hajka, Yang Le, Oleg Koreyba e Lei Shi. Pode-se claramente perceber uma expressão emocional coerente, já que esta foi comunicada com sucesso nestes trabalhos. Uma explicação para isto foi proposta por Tinwell (2014). Ela verificou que a percepção de traços de psicopatia está relacionada à percepção de estranheza em personagens digitais humanos, sendo que este efeito se intensifica ainda mais quando se percebe uma aberração na expressão emocional deste personagem. A pesquisadora concluiu através de estudos empíricos que os indivíduos falham em estabelecer uma relação de empatia quando se percebe uma incoerência na expressão emocional, o que concorda plenamente com o contexto teórico abordado por Redstone (2013). Tinwell (2014) explicou que a ausência na expressão emocional, sobretudo da região superior da face pode ser


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interpretada como uma evidência para a tentativa de se esconder traços não prazerosos à respeito da personalidade destes personagens, como por exemplo, desordens de personalidade ou mesmo outras psicopatias. Em meio a isso, automaticamente se consideram também todas as complicações pessoais e sociais destes problemas. Desta forma, os personagens que são percebidos como estranhos, na verdade, acabam por violar as expectativas do seu observador, já que este normalmente espera uma interação segura e saudável, no entanto, terminam entendendo aquilo como uma possível ameaça. Por outro lado, não somente a expressão facial é determinante para a comunicação não verbal das emoções, mas a postura e toda a linguagem corporal exercida através de gestos e movimentos também são sujeitas à percepção de estranheza. Desde o modo como o personagem se mantém em repouso, à maneira como ele se porta durante a realização de uma atividade, qualquer mínimo posicionamento incoerente com uma expressão emocional determinada pode ser objeto de uma percepção inquieta e desconfiada. Ou seja, ainda que um personagem possua a anatomia perfeitamente correta e funcional, a partir do momento em que sua postura se dá de forma artificial, deve-se percebê-lo como uma falha do próprio personagem durante a tentativa de comunicar o seu estado emocional. Por exemplo, um personagem está em um momento no qual seria esperado que ele transparecesse um cansaço físico, no entanto, sua postura é ereta e formal. Enquanto o seu rosto pode estar expressando perfeitamente a maneira como ele se sente, uma vez que o seu corpo está neutro, percebe-se uma falta de unidade em meio as manifestações periféricas das emoções expressadas. Não se comunica com sucesso nem uma emoção de cansaço nem uma emoção de neutralidade. O que se percebe, assim, é uma forte sensação de estranheza. Por conta desses aspectos, deve-se considerar ainda que esta situação de incoerência na expressão emocional se intensifica conforme maior for o realismo desse personagem, já que quanto mais real ele for, mais ambígua será a percepção do mesmo. Sendo assim, não apenas um personagem digital deve ser perfeitamente coerente com a anatomia humana, com os aspectos físicos e, para isto, ser representado tecnicamente o mais perfeito possível, mas também deve-se possuir uma coerência em expressar e comunicar suas emoções ao observador. Somente assim é que deve ser possível se representar uma figura humana que não provoque estranheza no seu espectador. No entanto, esta nem de longe deva ser uma tarefa fácil. 188


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FIG. 14 Rob么 humanoide Replica Q2, Index Osaka.

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Considerações finais Tendo em vista a escassez na literatura científica a respeito do fenômeno do Uncanny Valley, sobretudo em língua portuguesa, este trabalho buscou oferecer um material de enorme referência para o estudo do assunto. Primeiramente tratou-se de reunir a grande maioria das produções que contaram com a representação digital de figuras humanas, desde o início dessas, em 1959 e 1972, até às grandes produções atuais, em que mal se distingue um personagem digital de um ator real. Em um segundo momento, apresentou-se um panorama de grande parte do que já tenha sido discutido sobre o assunto da estranheza e do próprio fenômeno do Uncanny Valley em si. Por fim, este trabalho demonstrou um conjunto de aspectos gerais, os quais podem determinar ou não a ocorrência do fenômeno Uncanny Valley, sobretudo em meio a criações que não se apresentam em movimento. A partir desta proposta de categorização dos aspectos determinantes, fica bem claro o altíssimo grau de dificuldade ao se representar com sucesso a figura humana de maneira coerente com o que se tem na Natureza. Mesmo assim, também foi possível observar que em meio às representações estáticas, numerosos trabalhos se mostram de forma tão realista que poderiam ter passado despercebidos por olhares desatentos, os quais mal imaginariam que tais imagens são fruto de uma produção digital. Além desses, observaram-se trabalhos que até mesmo com uma enorme atenção, mostra-se difícil discernir de uma fotografia de alguém real - vide o trabalho de capa, produzido por Lukáš Hajka. Considerando também que esta análise se concentrou em imagens estáticas, não se atentou intensamente em conferir trabalhos animados nos quais se perceba o mesmo efeito. Mesmo assim, alguns 191


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FIG. 1 Personagem Benjamin Button na fase idosa, no filme The Curious Case of Benjamin Button (2009).

trabalhos apresentados na contextualização histórica podem ter surpreendido o leitor de igual maneira, na medida em que se descobre que determinado ator em cena era fruto de uma reprodução digital perfeitamente realista. Um exemplo muito claro está no filme “The Curious Case of Benjamin Button” (2009). Mesmo em movimento, boa parte do seu público assistiu o filme inteiro sem nem suspeitar de que aquilo não se tratava de um ator, mas sim uma cabeça 3d criada digitalmente.

Estes casos ilustram e justificam uma postura bastante contrária aos teóricos que contradizem a possibilidade de se ultrapassar com sucesso o fenômeno Uncanny Valley. No entanto, no que consiste verdadeiramente se ultrapassar este vale da estranheza? Mesmo que esta seja uma resposta para uma análise ainda mais profunda, este trabalho se arrisca em propor uma consideração à respeito disso. De acordo com a curva do gráfico proposto para ilustrar a sua teoria, Mori defendeu que uma vez ultrapassado o vale, o nível de atratividade, ou de empatia - a depender da tradução -, do personagem tende a se tornar ainda maior do que antes de se cruzar o vale. Isto se intensifica até o momento em que esta atratividade seria a máxima possível, ao se atingir a similaridade plena de um humano real e saudável. No entanto, este trabalho propõe que deve haver maior esclarecimento para que isso se dê como verdade, pois conforme o que foi observado, a cena de um personagem que passou despercebido como sendo uma produção digital - dado o seu 192


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FIG. 2 Gráfico proposto por Masahiro Mori (1970) para ilustrar o fenômeno do Uncanny Valley.

praticamente perfeito nível de semelhança humana - tende a ser compreendida meramente como a atuação trivial de algum ator. Nesta percepção, pode-se ter atribuído alta ou baixa qualidade à cena, entretanto, para isto, não se considerou a dificuldade técnica de se produzir tal artefato, uma vez que não se saiba ainda que se trate de uma produção. Imagina-se tratar apenas de uma captura qualquer. O mesmo se dá com imagens estáticas. Ao perceber um busto extremamente realista, uma vez que ainda não se tenha a consciência de que se trata de uma criação digital - ou seja, que a pessoa não exista realmente e que seja fruto da imaginação de alguém -, a tendência é de se perceber a imagem desse busto apenas como uma mera fotografia. A determinação de sua qualidade fica sujeita somente aos critérios fotográficos. Avalia-se a imagem como bela ou feia, devido a fatores como o enquadramento, a iluminação, composição da cena, momento de captura, expressão da pessoa etc. Sendo assim, esta imagem pode ser percebida como um simples retrato fotográfico de alguém, o qual não impressiona em nada, sobretudo atualmente, em meio à constante exposição da sociedade a este tipo de imagens. Contudo, a partir do momento em que se toma consciência de que tal busto se trata de uma imagem inteiramente feita por computação gráfica, a atribuição de valor a esta imagem se dá de forma totalmente diferente. Projeta-se nela o tamanho esforço e conhecimento técnico que lhe foi necessário para que ela fosse produzida e então, da ideia de uma simples fotografia esta imagem passa a ser percebida como uma preciosidade, uma obra de arte, ou mesmo um enorme feito. 193


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O que se deu é uma mudança no conceito da percepção daquela imagem. O que antes fora percebido como uma banal captura da realidade, agora é compreendido como uma reprodução perfeita daquilo que é o real. Este deve ser o contexto de uma imagem que realmente ultrapassou o fenômeno do Uncanny Valley. Uma representação da figura humana somente terá ultrapassado o vale da estranheza com sucesso se esta foi então percebida como uma simples captura da realidade. No entanto, diferentemente com o que foi proposto por Mori, não necessariamente esta representação será mais atrativa do que uma produção que se situou anteriormente ao vale, no que diz respeito à similaridade humana.

FIG. 3 Personagem Russel do filme Up (2009), produzido pela Pixar.

Dificilmente um ator qualquer de uma telenovela será mais atrativo do que um personagem cartoon, como o de algum filme da Pixar, por exemplo. Ao apresentar o personagem Russel para alguém que nunca tenha visto o filme Up (Pixar, 2009) e, ao mesmo tempo, apresentar também o personagem de Benjamin Button (2009) na sua fase idosa, para alguém que nem imagine que este tenha sido criado em CG, uma vez que se demande a essa pessoa para que responda qual personagem mais a atraiu, muito 194


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dificilmente esta responderá o idoso Benjamin Button. É muito provável que sua resposta seja o carismático personagem Russel. Talvez mesmo depois de saber que o personagem Benjamin Button foi produzido digitalmente, ainda assim o indivíduo questionado poderá manter sua resposta com a preferência pelo personagem cartoon. Isto se dá pois são abordagens totalmente diferentes para a avaliação de atratividade em cada personagem. Em um, a abordagem é através de um argumento emocional, o qual permite uma identificação muito maior por parte do observador - como é o caso de Russel e dos personagens que se situam antes do vale da estranheza, aqueles que se baseiam na estilização. Enquanto em outro, a atratividade daquela criação é avaliada por conta de argumentos racionais, como a projeção da complexidade envolvida no seu processo de produção - tal como acontece em personagens extremamente reais, como Benjamin Button na fase idosa, ou no busto criado por Lukáš Hajka. Pode-se ainda arriscar dizer que uma abordagem emocional é muito mais eficiente na avaliação de atratividade de um personagem, pelo motivo de que deve ser mais fácil projetar sentimentos, emoções e pensamentos em uma criação simplificada, do que assumir o processo de se imaginar a complexidade na produção de um personagem realista, já que isto envolve projetar elementos desconhecidos pelo observador. Ou seja, imaginar o quão difícil é produzir um personagem realista pode ser uma atividade muito mais nebulosa do que se colocar na mesma situação de um personagem simplificado e carismático, e assim se identificar com suas atitudes. Além do fato que personagens cartoons naturalmente exaltam ainda mais suas emoções, justamente para proporcionar uma leitura facilitada do personagem, definindo com melhor exatidão a sua personalidade, sem deixar margens para incertezas e inquietudes durante sua percepção. Em virtude disso, este trabalho ainda propõe que, diferentemente do que é defendido no gráfico de Mori para o Uncanny Valley, após a ultrapassagem do vale da estranheza, o grau de atratividade, ou de empatia, de uma reprodução da figura humana deve se dar de forma menos intensa do que aquelas situadas anteriormente ao vale no gráfico, já que uma se percebe como trivial e de leitura complexa - racional - enquanto outra se percebe como mais original e de fácil leitura - emocional. No caso da reprodução que ultrapassou o vale, esta pode ter sua recepção positiva intensificada apenas após o conhecimento do seu 195


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FIG. 4 Proposta de nova configuração para o gráfico representativo do Uncanny Valley.

observador de que tal imagem é fruto de uma reprodução digital, no caso de uma criação extremamente realista. No entanto, o grau de intensificação nesta avaliação dependerá de pessoa para pessoa, de acordo com o seu envolvimento com os processos de produção e, portanto, a depender da consciência da complexidade envolvida neste processo. Propõe-se então que a partir do cruzamento do vale no gráfico, a curva de atratividade se apresentará menor do que o pico da curva anterior ao vale, podendo assim subir ou se manter estável, a depender dos fatores subjetivos de cada observador, conforme o que foi discutido. O gráfico assumiria uma representação aproximada da seguinte forma:

A definição desta nova curva para o gráfico do Uncanny Valley justificaria também uma proposição que já se tornou senso comum em meio a discussão do assunto. Trata-se da ideia de que uma das maneiras mais eficientes de se evitar a ocorrência do fenômeno em uma produção é evidentemente escolher uma posição segura na curva do gráfico representativo do Uncanny Valley. Ao basear, por exemplo, a criação dos personagens de um novo filme animado em um nível de semelhança humana anterior ao vale da estranheza, a probabilidade de se atrair um público maior é muito mais garantida 196


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FIG. 5 Personagens cartoons da Pixar Animations Studios.

nesta posição do que ao se arriscar ultrapassar o vale com uma representação extremamente real. Esta postura tem sido assumida fortemente por estúdios como a Pixar, que sempre prezaram por evidenciar na construção de seus personagens que estes são realmente uma produção fantasiosa e estilizada, sem pretensão alguma de parecer humanos reais. Mesmo que em alguns personagens possa haver um alto grau de refinamento técnico na representação de certas características, ainda assim o personagem se mantém estruturado como uma criação estilizada e cartoonesca, sem apelar para um tratamento muito realista.

Sendo assim, a nova curva proposta neste trabalho explicaria a maior segurança de sucesso nestas produções estilizadas, quando comparado com a tentativa de se recriar humanos realistas. Mesmo atingindo um resultado perfeitamente real, este tipo de produção dificilmente será percebido de forma mais atrativa do que se fosse baseada em uma abordagem emocional. Por outro lado, mesmo com essa proposição, a representação realista de humanos digitais deverá aumentar gradativamente a sua participação em diversas produções, conforme os resultados perfeitamente coerentes se tornem cada vez mais acessíveis a partir do desenvolvimento e aprimoramento das técnicas de produção. A utilização de personagens realistas permitirá cada vez mais a gravação de cenas que eram impossíveis de serem realizadas antes do uso desta prática. Isto já tem sido feito como uma ferramenta para se representar novamente em cena pessoas que já morreram, momentos anteriores da vida de atores, cenas impossíveis de se filmar, entre diversas outras situações. Muito se discute até mesmo a respeito de uma probabilidade em não mais se utilizarem atores reais nos filmes por 197


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1 | 2. The Virtual Humans Forum @ FMX 2015 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hVKV-

conta da facilidade de reproduzí-los digitalmente. Isto certamente é tolice, pois a atuação plena de personagens digitais jamais será tão profunda e subjetiva quanto à atuação de atores reais, tendo em vista que um personagem digital, por mais real que seja, não pode sentir nem se emocionar verdadeiramente, como o fazem humanos reais. Desta forma, a pesquisa a respeito do Uncanny Valley deve continuar a atrair muito a atenção tanto da indústria como da comunidade científica, pois conforme o que disse uma vez Christopher Nichols1, diretor da Chaos Group, entender melhor as razões a que se devem a estranheza no Uncanny Valley, além de ser um caminho para resolver essa problemática, é também uma forma de compreender um pouco mais o que faz de nós seres humanos.

EFvJ1Q acesso 13/11/2015

Muitas pessoas dizem: ‘Não parece que está vivo’ Mas então, o que é ser vivo?

A lot of people say: ‘It doesn’t look alive’ so, what is alive? FIG. 6 Bruce Lee reconstruído no

(Chris Nichols, The Virtual Humans Forum, FMX 2015)2

comercial Johnnie Walker "Game Changer" pela The Mill. FIG. 7 Arnold Schwarzenegger na fase jovem, reconstruído no filme Terminator Genisys (2015) pela MPC. FIG. 8 Paul Walker reconstruído no filme Fast & Furious 7 pela Weta Digital. FIG. 9 Bebê inteiramente recriado digitalmente no filme Lemony Snicket’s A Series of Unfortunate Events, pela ILM. FIG. 10 Audrey Hepburn reconstruída para um comercial do chocolate Galaxy, produzido pela Framestore. FIG.11 Marilyn Monroe reconstruída para o comercial J'adore da Dior, pela TBWA\Paris FIG. 12 Hugo Weaving reconstruído digitalmente para simular a cena de um soco no Agente Smith, em The Matrix Revolutions, produzida pela ESC Entertainment.

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