Teste da montagem

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Vila de todas as cores Texto: Marcelo Fray • Fotografia: Muriel Krolikowski


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aredes corroídas pelo tempo, telhados incompletos, quartos já sem portas, pisos em construção e estruturas deixadas para trás há décadas. Esta pode parecer a descrição de um espaço morto e esquecido pela humanidade, mas no caso do Vila Flores a situação é bem diferente. O projeto coletivo de arquitetos e produtores culturais buscam não só trazer entretimento à comunidade do bairro Floresta, mas dar a aquela área uma nova vida, tanto no dia a dia com uma maior circulação de pessoas como nos projetos que eles recebem – gerando reflexão e questionamentos sociais relevantes. Isto através da revitalização da morada coletiva construída na década de 1920 por José Lutzenberger. O projeto arquitetônico original fez parte de uma série de construções da época que levaram a assinatura do arquiteto alemão originário da Bavária. Lutzenberger era um ilustrador que atuou como artista gráfico no seu país de origem principalmente durante a primeira guerra mundial, fazendo um renomado trabalho com ilustrações de edificações em aquarela. Depois da derrota dos germânicos, o artista buscou refúgio na capital do Rio Grande do Sul, continuando a produzir as suas gravuras, mas também passando a exercer sua formação acadêmica. Neste período, o arquiteto contribuiu com grandes estruturas importantes para diversas zonas da cidade. Uma delas, relevante até os dias de hoje, é o Pão dos Pobres. Ainda nessa época, foi pensada também uma moradia coletiva para os trabalhadores do Quarto Distrito, região que então era conhecida pela grande concentração de indústrias. Foi assim que nas-


ceu o embrião do Vila Flores. A edificação é grande, ocupando boa parte da quadra da Rua Hoffman, do bairro Floresta. No entanto, por maior que seja sua entrada é uma porta singela com uma segunda porta de grade - já enferrujada - e que hoje só indica o longo período de esquecimento. Uma pequena porta recebe os visitantes do prédio. Com ferros enferrujados e uma leve rajada de ar, uma sensação de solidão pode enganar quem visita a edificação. No entanto, uma luz literalmente ao fim do corredor dá boas vindas para os visitantes do Vila Flores, apresentado-os a uma enorme variedade de elementos culturais. O complexo composto por dois edifícios e um galpão apresenta o verdadeiro contraste do novo - contestador e diferente - com o velho - formal e sólido. O hall de entrada praticamente inexiste, um escuro corredor é o que conduz o visitante tanto para dois lances de escadas quanto para o pátio central. As escadarias acomodavam o intenso fluxo de pessoas que moravam lá. Os primeiros andares reservavam apartamentos para as famílias dos operários da época. Além da sala integrada de cozinha, banheiro e dois quartos, todos os cômodos possuem uma varanda com tanque – onde os moradores podiam escorar-se e relaxar. Hoje, os líderes do Vila Flores reformam estas acomodações para abrigar apoiadores que pretendem transformar o ambiente em sedes de suas empresas, start ups e escritórios. Acima destes três andares, o que poderia ser um sótão foi projetado para ser mais uma área de moradia. Quartos mínimos foram construídos

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alinhados para receber trabalhadores de menor renda. Ao fim deste corredor, que intercala os cômodos com lances de escada, há também um local reservado para a vida em comunidade, com cozinha, banheiro e lavação. Sua finalidade era criar uma convivência entre estas pessoas que viviam sozinhas. O edifício foi levantado por uma importante construtora alemã - usando de materiais importados de qualidade e ideias que ainda não eram postas em prática aqui. João Wallig, atual proprietário, admira a precisão da obra: “Naquela época eles criaram um sistema de ventilação de ar cruzado e fizeram com que todos os apartamentos tivessem exposição solar controlada(evitando que os cômodos fossem muito quentes ou muito frios)”. Mas destaques positivos não faltam. Todas as acomodações construídas lá ficaram voltadas para o pátio, espaço verde que estimula até hoje a interação de quem ocupa o complexo. Atualmente o pátio central continua exercendo sua função original. Os organizadores do projeto de revitalização atuam como head hunters buscando atividades que possam tornar o local um patrimônio cultural tanto para o bairro quanto para o município. Mas, depois de meia década trabalhando em prol deste novo significado do edifício, diversas companhias de teatro, músicos, pintores e escultores já buscam o Vila para apresentarem seus trabalhos nesse novo local emergente. A área central está sob os holofotes de todos que habitam a construção de José Lutzenberger. O prédio principal é todo voltado para este pátio onde as


pessoas gozam de momentos de descontração. Ao seu lado direito, existem mais alguns prédios de moradia. Inabitáveis e destroçados pelo tempo, estes se tornaram quase que obras de arte. Com escadarias aos pedaços, fios desencapados e azulejos despedaçados, estas pequenas construções conjugadas são embelezadas por grafites e colagens fotográficas que indicam uma preocupação com o trabalho de vanguarda. Alinhadas uma ao lado da outra, alguns coletivos ainda buscam sua reabilitação, apesar de alguns deles servirem apenas de banheiro. Já do lado direito há o galpão, construção que originalmente abrigava o estábulo. No início do século passado, o cavalo ainda fazia a função de meio de transporte - e tanto os operários quanto visitantes que vinham de longe usavam do espaço para cuidar de seus animais. A localização foi pensada estrategicamente, assim, todos que chegassem no interior da morada estariam ao olhos dos presentes.

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Passados quase cem anos, a cavalaria ainda está de pé, mostrando a incrível qualidade dos materiais usados na construção. Mas hoje o estábulo virou galeria - e uma bela galeria. A madeira foi envernizada, as baias derrubadas e o piro refeito. Artistas buscam um espaço para exibir suas obras e criam um contraste entre a arte moderna e o clássico galpão dá década de 1920. Com o passar dos anos, o edifício de Lutzenberger foi se tornando envelhecido, perdendo sua cor, sua vibra-


ção e sua vida. Em paralelo a isso, Porto Alegre foi se tornando um município mais violento. A população da região passou cada vez mais a se proteger em suas casas, principalmente após o estabelecimento da Vila Terezinha - que trouxe o tráfico de drogas e o crime para a zona. O Floresta agora era frequentado por pessoas que não só buscavam a droga, mas também dinheiro e objetos de troca. Luiz Alberto Rigotti, presidente da ACC (Associação Cristovão Colombo), organização oficial de moradores da região, afirma: “Não existe um policial no bairro, eu nunca vi”. A Brigada Militar foi procurada e não quis se manifestar a respeito da ineficácia de seu trabalho. Rigotti ainda busca reuniões com vereadores e BM, mas sem obter resultados concretos: “Eu mesmo tenho que subir até a boca e negociar questões de seguranças com o chefe do tráfico”. O projeto Vila Flores nasceu nesse contexto. A construção, grande e cheia de quartos vagos, havia se tornado um abrigo para viciados e moradores de rua. Em meia a esta situação, que os parceiros João Wallig - herdeiro do prédio - e Aline Bueno viram a necessidade de alguém que fosse algo além um zelador, uma espécie de guardião. Foi então que surgiu Amável Batis-


ta, atualmente o único morador de um lugar que foi construído para abrigar diversas famílias e operários. Bueno e Wallig precisavam de Amável tanto quanto este necessitava da dupla. O mineiro de 54 anos estava encerrando sua carreira de marceneiro em Porto Alegre e o Vila foi uma oportunidade de dar um novo rumo à sua vida: “Euestava longe da minha família, e eles me ofereceram para morar aqui”. A revitalização teve início em 2010, e o zelador foi fundamental: “Quando eu cheguei tava tudo quebrado. A gente teve que expulsar invasores, trocar as portas, arrumar a fiação e alguns canos”, diz Amável. Mas a estrutura não era o único problema segundo o mineiro: “Nas primeiras noites eu tive medo que alguém entrasse aqui, mas graças a Deus nunca aconteceu nada comigo até hoje”. O ex-marceneiro atualmente tem um quarto para chamar de casa: “Eu pretendo ficar aqui. Só se um dia eles não quiserem mais”. Com armários reformados por ele mesmo, e uma cama com cobertas para aquecerem-lo nas noites de inverno, Amável trabalha aos pouquinhos no seu novo lar. Mas sem nunca se esquecer de suas origens. Através de um netbook, ele consegue acessar o Facebook por onde consegue contato com a sua família,


que ainda mora em Minas Gerais: “Um dia eu quero visitar eles”. Passados cinco anos, o cenário mudou muito, conforme afirma o ex-marceneiro: “Agora tá muito melhor. Eu vejo a rua cheia de gente, e é difícil de estacionar até para quem vem visitar”. Aline Bueno, que organiza a ocupação e as atividades culturais, concorda com Amável: “O Vila tem dado muito mais vida ao Floresta e trabalhado não só com a vida cultural, mas com uma ressignificação dessa região”.

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No entanto, nem todos os habitantes da região reconhecem o valor do projeto de revitalização do prédio de Lutzenberger na vida do Floresta. Beto Rigotti, presidente há 14 anos da Associação Cristovão Colombo, explica: “Eu desconheço o que acontece lá. A última vez que houve um contato deles (coletivo do Vila Flores) comigo foi em 2012”. A associação dos moradores do bairro existe há quase 50 anos e também atua incessantemente em busca de benefícios para o lugar onde moram. Beto ainda afirma com ousadia: “Poucas pessoas sabem, mas quem trouxe o Shopping Total para a Cristóvão Colombo fomos nós”. No início, Wallig assume que houve problemas com barulho: “No começo os vizinhos reclamaram, mas nós fomos mantendo contanto e criando um diálogo com os moradores do bairro”. Desde então foi instaurado um horário de silêncio que inicia às 22h para qualquer evento que ocorre no local: “Estamos construindo uma relação com os moradores, e convidamos todos para que participem das atividade


des”. E, segundo Amável, os convites estão sendo atendidos: “Quem vem mais é gente daqui, eu vejo muito morador no dia a dia”. Desta forma, o prédio começa a ganhar uma importância para quem mora no Floresta, como era na sua origem. O grupo tem cultivado inclusive uma proximidade com a Associação Refloresta, que também trata de questões da região. Como afirma o herdeiro da construção: “Realizamos diversas ações em parceria com eles justamente para trazer moradores para cá”, afirma o arquiteto. Se a ideia principal da revitalização era dar um novo significado à construção do arquiteto alemão, pode se dizer que o time formado por João Wallig conseguiu o que queria. A antiga morada de operários da indústria local agora é um elemento vivo e pulsante. Bandas procuram o Vila Flores para apresentar seus discos lá, companhias de teatro conhecidas querem fazer do edifício de Lutzenberger palco de seus espetáculos e o galpão hoje abriga quantidades cavalares de obras de arte. E hoje existe um trabalho para desenvolver projetos que incentivem tanto a cultura como a vida dos moradores da região. Depois de cinco anos se envolvendo com a vida do Floresta, parte desses moradores não deixam de visita-lo e acompanhar a sua agenda mensal. E, mesmo que outros ainda ofereçam resistência a esse novo local e às pessoas que o frequentam, uma coisa é fato: desde a criação do Vila, passou a ser mais difícil estacionar naquele quarteirão.



ENSAIO BY FULANITO UM TEXTINHO CHORUMENTO, UM TEXTINHO CHORUMENTO, UM TEXTINHO CHORUMENTO, UM TEXTINHO CHORUMENTO, UM TEXTINHO CHORUMENTO, UM TEXTINHO CHORUMENTO, UM TEXTINHO CHORUMENTO, UM TEXTINHO CHORUMENTO, UM TEXTINHO CHORUMENTO, UM TEXTINHO CHORUMENTO, UM TEXTINHO CHORUMENTO, UM TEXTINHO CHORUMENTO.









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