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Fernando Pessoa, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade
Antologia
A simplicidade das coisas
Vinicius Cordeiro
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INTRODUÇÃO ................................................................................................04 FERNANDO PESSOA ....................................................................................05 ACHO TÃO NATURAL QUE NÃO SE PENSE.....................................06 SOU UM GUARDADOR DE REBANHOS ............................................07 MÁRIO DE ANDRADE....................................................................................08 O PERU DE NATAL .............................................................................09 POEMAS DA AMIGA ...........................................................................14 MANUEL BANDEIRA......................................................................................15 BELO BELO .........................................................................................16 PNEUMOTÓRAX .................................................................................17 CECÍLIA MEIRELES .......................................................................................18 A ARTE DE SER FELIZ .......................................................................19 HISTÓRIA DE BEM-TE-VI ...................................................................21 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE ..........................................................23 COMO COMECEI A ESCREVER ........................................................24 SENTIMENTAL ....................................................................................25 CONCLUSÃO .................................................................................................26 REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO ..................................................................27
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A literatura na modernidade é brilhante. Os padrões, antes obrigatórios, agora não são mais barreiras, que impedem os escritores de fazerem o que mais sabem, que é escrever. Todos são livres para dizerem o que quiserem, não precisando seguir normas. Nada mais é um reflexo, tudo é novo, surpreendente. As rimas não precisam existir, os versos agora são livres, o cotidiano é parte importante nos textos, e a ironia, o humor e a piada tomam conta das ideias. A literatura da modernidade permite que o leitor não só leia, mas faça parte da leitura. Tudo fica mais comum, tudo fica mais atraente, tudo fica mais gostoso. O poeta pode apontar onde estão os erros, pode dizer o que pode mudar. Ele tem o poder em seus dedos, em seus dizeres. A construção de um novo tempo é contínua. O passado já passou e o presente está em sendo feito. E é assim que é a literatura moderna.
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FERNANDO PESSOA
(1888 - 1935) Fernando António Nogueira Pessoa foi um poeta e escritor português, considerado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa. Por ter crescido na África do Sul, para onde se mudou aos sete anos em virtude do casamento de sua mãe, Pessoa foi alfabetizado em Inglês, e por isso publicou obras nessa língua e se dedicava a traduções deste idioma. Durante sua discreta e pacata vida, atuou no Jornalismo, na Publicidade, no Comércio e, principalmente, na Literatura. Como poeta, desdobrou-se em diversas pessoas conhecidas como heterônimos, em torno das quais se movimenta grande parte dos estudos sobre sua vida e sua obra. Ao tratar de temas subjetivos e usar a heteronímia, torna-se enigmático ao extremo. Seus heterônimos eram Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Fernando Pessoa ainda fez questão de escrever uma biografia diferente para cada heterônimo seu. Alberto Caeiro era conhecido como o camponês sábio, Álvaro de Campos era o neoclássico, racionalista e semipagão, e Ricardo Reis era tido como o futurista, neurótico e angustiado Fernando Pessoa morreu de cirrose hepática aos 47 anos, na cidade onde nasceu. Sua última frase foi escrita em Inglês: "I know not what tomorrow will bring…” ("Não sei o que o amanhã trará").
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ACHO TÃO NATURAL QUE NÃO SE PENSE Por Alberto Caeiro Acho tão natural que não se pense Que me ponho a rir às vezes, sozinho, Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa Que tem que ver com haver gente que pensa Que pensará o meu muro da minha sombra? Pergunto-me às vezes isto até dar por mim A perguntar-me cousas. . . E então desagrado-me, e incomodo-me Como se desse por mim com um pé dormente. . . Que pensará isto de aquilo? Nada pensa nada. Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem? Se ela a tiver, que a tenha... Que me importa isso a mim? Se eu pensasse nessas cousas, Deixaria de ver as árvores e as plantas E deixava de ver a Terra, Para ver só os meus pensamentos ... Entristecia e ficava às escuras. E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.
O heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, é complexo e enigmático e despreza qualquer tipo de pensamento filosófico, e essa sua característica fica bem evidente no poema. Caeiro afirma que pensar retira a visão, e não permite ver o mundo simples e belo. Se pensasse, ficaria em um mundo complexo e problemático, onde tudo é incerto e obscuro.
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SOU UM GUARDADOR DE REBANHOS Por Alberto Caeiro Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto. E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.
A negação da metafísica e a valorização do conhecimento através das sensações não intelectualizadas são mais características de Alberto Caeiro que são expostas neste poema. Sua contrariedade a interpretação do real pela inteligência pode ser vista em trechos como “Pensar uma flor é vê-la e cheirála”. Logo, ele mostra que não se pensa uma flor com a inteligência e sim com os sentidos.
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MÁRIO DE ANDRADE
(1893 - 1945) Mário Raul de Morais Andrade foi um poeta, romancista, crítico de arte, musicólogo, professor universitário e ensaísta brasileiro. É reconhecido como um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século XX. Mário nasceu em São Paulo e passou praticamente toda a vida na cidade que apaixonado. Criou vínculos com grandes artistas brasileiros, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Considerado o escritor mais nacionalista e múltiplo dos brasileiros, Mário de Andrade construiu um caráter revolucionário na literatura brasileira, que se iniciou com Paulicéia Desvairada, onde analisa a cidade de São Paulo e todos seus elementos (provincianismo, aristocracia, burguesia, rio Tietê, Avenida Paulista). Considerado também um dos primeiros musicólogos do país, adorava ritmos nordestinos, nos quais tentou pesquisar e valorizar. A importância de Mário de Andrade continua sendo ativamente expressa nos dias atuais, e ainda se fala sobre sua obra seja para estudo ou para a investigação do Brasil: o filósofo Leandro Konder considera que talvez essa atualidade seja resultado pelo destaque que Mário tinha sobre os outros nomes do modernismo, "pela amplitude de sua cultura, pela vastidão dos seus conhecimentos […] [porque] tinha uma visão panorâmica abrangente [e] dispunha de um quadro de referências muito mais rico do que todos os outros."
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O PERU DE NATAL Por Mário de Andrade O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres. Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto. Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada. Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras": — Bom, no Natal, quero comer peru.
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Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto. — Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo... — Meu filho, não fale assim... — Pois falo, pronto! E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, dizque vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa. Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Diabo aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja. Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral: — É louco mesmo!...
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Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão. — Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso! Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas. — Eu que sirvo! "É louco, mesmo" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru: — Se lembre de seus manos, Juca! Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime. — Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não! Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.
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Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido. Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora. — Só falta seu pai... Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste: — É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família. E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso. Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever “felicidade gustativa”, mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber. Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade! A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois
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vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação. Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...
Na obra “O Peru de Natal”, o personagem principal procura demonstrar para a família o ambiente de hipocrisia que estavam vivendo, trazendo para dentro de casa um verdadeiro ambiente familiar, contrário ao que estavam acostumados. E é bem isso o que acontece muitas vezes nas reuniões familiares. Muitos estão ali apenas pela comida, outros pelos presentes, mas Mário de Andrade vem por meio do filho para provar que essas tradicionais reuniões são apenas fachadas. Será que era o pai que fazia das festas uma monotonia ou será que todas, com ou sem ele, eram assim. Então, o personagem traz a ternura, o compartilhar e a comunhão para sua família, e consegue mudar toda a trama. Isso faz com que o leitor identifique-se com a situação, chegando até a lembrar de próprias festas, e perceber a realidade da sociedade, onde muitos vivem de fachada, de aparências, não querendo assumir seu “fracasso familiar”. Mário de Andrade também busca uma linguagem mais brasileira e valoriza temas do cotidiano, que são características da literatura modernista.
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POEMAS DA AMIGA Por Mário de Andrade A tarde se deitava nos meus olhos E a fuga da hora me entregava abril, Um sabor familiar de até-logo criava Um ar, e, não sei porque, te percebi.
Escondam no Correio o ouvido Direito, o esquerdo nos Telégrafos, Quero saber da vida alheia Sereia.
Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança. Estavas longe doce amiga e só vi no perfil da cidade O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa, Mexendo asas azuis dentro da tarde.
O nariz guardem nos rosais, A língua no alto do Ipiranga Para cantar a liberdade. Saudade...
Quando eu morrer quero ficar, Não contem aos meus amigos, Sepultado em minha cidade, Saudade. Meus pés enterrem na rua Aurora, No Paissandu deixem meu sexo, Na Lopes Chaves a cabeça Esqueçam.
Os olhos lá no Jaraguá Assistirão ao que há de vir, O joelho na Universidade, Saudade... As mãos atirem por aí, Que desvivam como viveram, As tripas atirem pro Diabo, Que o espírito será de Deus. Adeus.
No Pátio do Colégio afundem O meu coração paulistano: Um coração vivo e um defunto Bem juntos.
A lembrança do passado traz saudade para o eu lírico. Algumas coisas devem ser esquecidas, outras bem que podiam voltar. “Poemas da Amiga” é um dos poemas de Mário de Andrade que prenunciam a produção modernista madura e equilibrada dos anos 1930. A visão da cidade vertical, como uma “estrutura americana”, explicita a visão exaltada do autor pela urbanização febril, milionária e enorme da cidade. Cada região que Mário relembra é onde cada parte de seu corpo poderia ser colocada. Deste jeito, ele adjetiva os lugares com seus pedaços, fazendo o leitor pensar e refletir sobre os gostos do autor pelas partes de seu passado.
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MANUEL BANDEIRA
(1886 - 1968) Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho foi jornalista, redator de crônicas, tradutor, integrante da Academia Brasileira de Letras e também professor de História da Literatura no Colégio Pedro II e de Literatura Hispano-Americana na faculdade do Brasil, Rio de Janeiro. Teve seu talento evidenciado desde cedo, quando já se destacava nos estudos. Durante o período em que cursava a Faculdade Politécnica em São Paulo, Bandeira precisou deixar os estudos para ir à Suíça na busca de tratamento para sua tuberculose. Após sua recuperação, ele retornou ao Brasil e publicou seu primeiro livro de versos, Cinza das Horas, no ano de 1917; porém, devido à influência simbolista, esta obra não teve grande destaque. Dois anos mais tarde este talentoso escritor agradou muito ao escrever Carnaval, onde já mostrava suas tendências modernistas. Posteriormente, participou da Semana de Arte Moderna de 1922, descartando de vez o lirismo bem comportado. Passou a abordar temas com mais encanto, sendo que muitos deles tinham foco nas recordações de infância.
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BELO BELO Por Manuel Bandeira Belo belo belo, Tenho tudo quanto quero. Tenho o fogo de constelações extintas há milênios. E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes. A aurora apaga-se, E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora. O dia vem, e dia adentro Continuo a possuir o segredo grande da noite. Belo belo belo, Tenho tudo quanto quero. Não quero o êxtase nem os tormentos. Não quero o que a terra só dá com trabalho. As dádivas dos anjos são inaproveitáveis: Os anjos não compreendem os homens. Não quero amar, Não quero ser amado. Não quero combater, Não quero ser soldado. - Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
Em Belo belo, Manuel Bandeira se refere ao seu real estado. Com tuberculose, ele afirma que tem tudo o que quer, mas as coisas que ele deseja, não pode conseguir, provavelmente pois a doença o impede. No poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, ele traduz o lugar ideal, onde ele poderia tudo fazer e ter. Um lugar onde tudo é possível, e onde sua doença não existe. Logo, ambos os poemas são formas dele expressar-se e demonstrar o que a doença o faz.
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PNEUMOTÓRAX Por Manuel Bandeira Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse. Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três. - Trinta e três... trinta e três... trinta e três... - Respire. - O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Mais uma vez, Manuel Bandeira se refere à doença que o acompanhou toda a vida – a tuberculose. A expectativa da morte marca toda a poesia de Bandeira. No poema, o médico sugestiona apenas esperar a morte, dançando um tango argentino. Fica claro também a utilização de versos livres e liberdade na escolha de palavras, características essas da modernidade literária.
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CECÍLIA MEIRELES
(1901 - 1964) Cecília Benevides de Carvalho Meireles foi poetisa, pedagoga, pintora, professora e jornalista brasileira. Ela foi uma das mais habilidosas, apresentando cuidadosa seleção vocabular, numa linguagem que explora simbolismos complexos frequentemente simples na forma. Uma poesia que contém imagens sugestivas, sobretudo as de forte apelo sensorial, reflexiva, de fundo filosófico. Abordou, entre outros, temas como a transitoriedade da vida, a efemeridade do tempo, o amor, o infinito, a natureza, a criação artística. Além disso, a frequência com que os elementos como o vento, a água, o mar, o ar, o tempo, o espaço, a solidão e a música aparecem em sua poesia dá-lhe um caráter fluido e etéreo, que confirmam a inclinação neo-simbolista da sua poesia, confirmando sua importante posição na literatura brasileira do século XX. Entre 1925 e 1939, dedicou-se a sua carreira docente publicando vários livros infantis e fundando, em 1934, a Biblioteca Infantil do Rio de Janeiro. A partir desse ano, ensinou Literatura Brasileira em Portugal (Lisboa e Coimbra) e, em 1936, foi nomeada para a Universidade Federal do Rio de Janeiro, recém-fundada. Cecília reaparece no cenário poético, depois de 14 anos de silêncio, com “Viagem” (1939), conceituado um marco de maturidade e individualidade na sua obra: recebeu o prêmio de poesia daquele ano da Academia Brasileira de Letras. Daí em diante, dedicou-se à carreira literária, publicando regularmente até a sua morte.
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A ARTE DE SER FELIZ Por Cecília Meireles Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz. Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma ficava completamente feliz. Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega; era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas d’água que caiam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz. Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não a podia ouvir, da altura da janela e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz. Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
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Mas, quando falo dessas pequenas felicidades que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Em “A arte de ser feliz”, Cecília Meireles valoriza as pequenas coisas que acontecem em seu dia-a-dia. Coisas comuns, que para muitos, até nos dias de hoje, não são possíveis de serem enxergadas, pela correria. São essas pequenas coisas que, segundo ela, fazem alguém feliz. Cecília pode enxergar essa simplicidade, e assim faz passá-las de modo que introduza o leitor em seus cenários. A valorização de temas ligados ao cotidiano e o urbanismo são partes principais da crônica de Cecília Meireles, e características da literatura modernista.
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HISTÓRIA DE BEM-TE-VI Por Cecília Meireles Com estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que passarinho é coisa só de jardim zoológico; e outras até acham que seja apenas antigüidade de museu. Certamente chegaremos lá; mas por enquanto ainda existem bairros afortunados onde haja uma casa, casa que tenha um quintal, quintal que tenha uma árvore. Bom será que essa árvore seja a mangueira. Pois nesse vasto palácio verde podem morar muitos passarinhos. Os velhos cronistas desta terra encantaram-se com canindés e araras, tuins e sabiás, maracanãs e "querejuás todos azuis de cor finíssima...". Nós esquecemos tudo: quando um poeta fala num pássaro, o leitor pensa que é leitura... Mas há um passarinho chamado bem-te-vi. Creio que ele está para acabar. E é pena, pois com esse nome que tem — e que é a sua própria voz — devia estar em todas as repartições e outros lugares, numa elegante gaiola, para no momento oportuno anunciar a sua presença. Seria um sobressalto providencial e sob forma tão inocente e agradável que ninguém se aborreceria. O que me leva a crer no desaparecimento do bem-te-vi são as mudanças que começo a observar na sua voz. O ano passado, aqui nas mangueiras dos meus simpáticos vizinhos, apareceu um bem-te-vi caprichoso, muito moderno, que se recusava a articular as três sílabas tradicionais do seu nome, limitando-se a gritar: "...te-vi! ...te-vi", com a maior irreverência gramatical. Como dizem que as últimas gerações andam muito rebeldes e novidadeiras achei natural que também os passarinhos estivessem contagiados pelo novo estilo humano. Logo a seguir, o mesmo passarinho, ou seu filho ou seu irmão — como posso saber, com a folhagem cerrada da mangueira? — animou-se a uma audácia maior. Não quis saber das duas sílabas, e começou a gritar apenas daqui, dali, invisível e brincalhão: "...vi! ...vi! ...vi! ..." o que me pareceu divertido, nesta era do twist. O tempo passou, o bem-te-vi deve ter viajado, talvez seja cosmonauta, talvez tenha voado com o seu team de futebol — que se não há de pensar de bem-tevis assim progressistas, que rompem com o canto da família e mudam os lemas dos seus brasões? Talvez tenha sido atacado por esses homens que agora saem do mato de repente e disparam sem razão nenhuma no primeiro indivíduo que encontram. Mas hoje ouvi um bem-te-vi cantar E cantava assim: "Bem-bem-bem...te-vi!" Pensei: "É uma nova escola poética que se eleva da mangueira!..." Depois, o
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passarinho mudou. E fez: "Bem-te-te-te... vi!" Tornei a refletir: "Deve estar estudando a sua cartilha... Estará soletrando..." E o passarinho: "Bem-bembem...te-te-te...vi-vi-vi!" Os ornitólogos devem saber se isso é caso comum ou raro. Eu jamais tinha ouvido uma coisa assim! Mas as crianças, que sabem mais do que eu, e vão diretas aos assuntos, ouviram, pensaram e disseram: "Que engraçado! Um bem-te-vi gago!" (É: talvez não seja mesmo exotismo, mas apenas gagueira...)
Nesta crônica, Cecília Meireles novamente faz uso da simplicidade. As coisas simples, que muitos não enxergam. Porém, desta vez brinca com o cotidiano. Ela não só fixa uma realidade, mas capta o instante, rememora outros, denuncia o que lhe parece mais esdrúxulo, tudo isso inspirado no bem-te-vi. As crianças, que são símbolos da inocência, também aparecem na crônica, como aquelas que não pensam para falar, falam o que acham, e que deveria ser assim com todos, extinguindo a mentira e a falsidade. Assim como Fernando Pessoa, parece que Cecília mostra não é preciso pensar, basta sentir. A valorização de temas ligados ao cotidiano, o humor e a liberdade na escolha de palavras, que misturam o português e o inglês, são traços da crônica de Cecília Meireles, e características da literatura modernista.
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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
(1902 - 1987) Carlos Drummond de Andrade foi um poeta, contista e cronista brasileiro. Nascido e criado na cidade mineira de Itabira, Drummond levaria por toda a sua vida, como um de seus mais recorrentes temas, a saudade da infância. Precisou deixar para trás sua cidade natal ao partir para estudar em Friburgo e Belo Horizonte. Formou-se em Farmácia, por conta da insistência da família em graduarse. Trabalhou em Belo Horizonte como redator em jornais locais até mudar-se para o Rio de Janeiro, em 1934, para atuar como chefe de gabinete de Gustavo Capanema, então nomeado novo Ministro da Educação e Saúde Pública. Em 1930, seu livro "Alguma Poesia" foi o marco da segunda fase do Modernismo brasileiro. O autor demonstrava grande amadurecimento e reafirmava sua distância dos tradicionalistas com o uso da linguagem coloquial, que já começava a ser aceita pelos leitores. Drummond também falava sobre temas como o desajustamento do indivíduo, ou as preocupações sócio-políticas da época, como em “A Rosa do Povo” (1945). Apesar de serem temas fortes, ele conseguia encontrar leveza para manter sua escrita com humor e uma sóbria ironia. Produzindo até o fim da vida, Carlos Drummond de Andrade deixou uma vasta obra. Quando faleceu, em agosto de 1987, já havia destacado seu nome na literatura mundial. Com seus mais de 80 anos, considerava-se um "sobrevivente", como destaca no poema "Declaração de juízo".
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COMO COMECEI A ESCREVER Por Carlos Drummond de Andrade Aí por volta de 1910 não havia rádio nem televisão, e o cinema chegava ao interior do Brasil uma vez por semana aos domingos. As notícias do mundo vinham pelo jornal, três dias depois de publicadas no Rio de Janeiro. Se chovia a potes, a mala do correio aparecia ensopada, uns sete dias mais tarde. Não dava para ler o papel transformado em mingau. Papai era assinante da Gazeta de Notícias, e antes de aprender a ler eu me sentia fascinado pelas gravuras coloridas do suplemento de Domingo. Tentava decifrar o mistério das letras em redor das figuras, e mamãe me ajudava nisso. Quando fui para a escola pública, já tinha a noção vaga de um universo de palavras que era preciso conquistar. Durante o curso, minhas professoras costumavam passar exercícios de redação. Cada um de nós tinha de escrever uma carta, narra um passeio, coisas assim. Criei gosto por esse dever, que me permitia aplicar para determinado fim o conhecimento que ia adquirindo do poder de expressão contido nos sinais reunidos em palavras. Daí por diante as experiências foram se acumulando, sem que eu percebesse que estava descobrindo a leitura. Alguns elogios da professora me animavam a continuar. Ninguém falava em conto ou poesia, mas a semente dessas coisas estavam germinando. Meu irmão, estudante na Capital, mandava-me revistas e livros, e me habituei a viver entre eles. Depois, já rapaz, tive sorte de conhecer outros rapazes que também gostavam de ler e escrever. Então começou uma fase muito boa de troca de experiências e impressões. Na mesa do café-sentado ( pois tomava-se café sentado nos bares, e podia-se conversar horas e horas sem incomodar nem ser incomodado ) eu tirava do bolso o que escrevera durante o dia, e meus colegas criticavam. Eles também sacavam seus escritos, e eu tomava parte nos comentários. Tudo com naturalidade e franqueza. Aprendi muito com os amigos, e tenho pena dos jovens de hoje que não desfrutam desse tipo de amizade crítica.
Carlos Drummond de Andrade, nessa crônica, coloca o hábito da leitura e a troca de experiências com outras pessoas em destaque. Quando ele adquiriu o hábito da leitura, descobriu o prazer de conhecer diversos mundos, situações, costumes, lugares, enfim, muita coisa. Logo, ele acabou percebendo que dominava as letras e tornou-se capaz de contar suas próprias histórias. Descobre, após afundar-se na leitura, que pode ser tão bom quanto qualquer outro. E no final faz como uma crítica aos que recusam-se a ler e escrever também.
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SENTIMENTAL Por Carlos Drummond de Andrade Ponho-me a escrever teu nome com letras de macarrão. No prato, a sopa esfria, cheia de escamas e debruçadas na mesa todos completam esse romântico trabalho. Desgraçadamente falta uma letra, uma letra somente para acabar teu nome! - Está sonhando? Olhe que a sopa esfria! Eu estava sonhando... E há em todas as consciências um cartaz amarelo: "Neste país é proibido sonhar."
Neste poema, Drummond surpreende e destrói a expectativa inicial, criada pelo título e pelo primeiro verso do poema, com a palavra “macarrão”. A liberdade na escolha de palavras é uma característica da literatura modernista, assim como a busca por temas do cotidiano. Assim, durante a refeição, o eu lírico sonha com a amada, enquanto tudo ao seu redor colabora para a proibição deste espírito sentimental.
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Fernando Pessoa pode ser considerado como um verdadeiro gênio da literatura. Afinal, conseguir se desdobrar em vários de si mesmo, sem perder a postura e transmitindo traços diferentes para cada um, não é uma tarefa fácil. Se tratando de Alberto Caeiro pode-se falar em outro gênio. Um dos desdobramentos de Fernando Pessoa, Caeiro está certíssimo em dizer que pensar é coisa para tolos e problemáticos. O melhor é sentir o que a vida tem de melhor a oferecer. Mário de Andrade também trata a simplicidade em seu conto “O Peru de Natal”. A obra é extremamente verdadeira e mostra a realidade ainda dos dias atuais, onde as reuniões de família nem sempre transmitem a ternura que deveriam. Manuel Bandeira, nem mesmo as coisas mais simples era capaz de fazer com perfeição. A tuberculose, que o seguiu por boa parte da vida, o impedia de viver. Então, como o poeta não podia fazer muito, escrevia. As características de sua vida eram transpassadas para seus versos, onde nas palavras ele podia ser livre para voar. A poetisa Cecília Meireles escrevia crônicas como ninguém. Os temas de seus textos ainda podem ser tidos como atuais, já que a urbanização e as transformações no ser humano acontecem cotidianamente. A leveza de suas palavras transporta o leitor para dentro de suas crônicas, transformando a leitura cada vez melhor. Já Carlos Drummond de Andrade... Até seus oitenta e cinco anos escreveu brilhantemente. Quando descobriu o prazer da leitura, já estava escrevendo e suas palavras eram cada vez mais surpreendentes. Todos os poetas têm coisas em comum: a simplicidade, o cotidiano. Até mesmo Manuel Bandeira, que mesmo com poemas relacionados à doença, falavam do dia-a-dia simples do poeta. E como seria bom se tudo fosse tão simples como somente sentir.
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Quem dera se todos pensassem como Alberto Caeiro, ou quem sabe ver as pequenas coisas simples da vida como Cecília Meireles. Analisar temas do cotidiano como Mário de Andrade, e amar a leitura como Carlos Drummond. A beleza está na simplicidade das coisas, mas muitos negam vê-la. Pare de pensar e venha sentir. Pois quem pensa não vê a beleza da vida, e vive em um mundo obscuro e repleto de problemas.
Vinícius Cordeiro