Os Fundamentos da Teoria das Inteligências Múltiplas
1
É da máxima importância reconhecer e estimular todas as variadas inteligências humanas e todas as combinações de inteligências. Nós somos todos tão diferentes, em grande parte, porque possuímos diferentes combinações de inteligências. Se reconhecermos isso, penso que teremos pelo menos uma chance melhor de lidar adequadamente com os muitos problemas que enfrentamos neste mundo. Howard Gardner (1987)
Em 1904, o ministro da educação pública de Paris pediu ao psicólogo francês Alfred Binet e a um grupo de colegas que criassem um meio para determinar quais alunos de ensino fundamental estavam “em risco” de fracassar, para que pudessem receber uma atenção remediadora. De seus esforços surgiram os primeiros testes de inteligência. Importada pelos Estados Unidos alguns anos mais tarde, a testagem da inteligência tornou-se muito difundida, assim como a noção de que existia uma coisa chamada “inteligência” que podia ser medida objetivamente e reduzida a um simples número ou escore de “QI”. Quase 80 anos depois de os primeiros testes de inteligência serem desenvolvidos, um psicólogo de Harvard chamado Howard Gardner desafiou esta crença comum. Afirmando que a nossa cultura definira a inteligência de forma muito limitada, ele propôs, em seu livro Estruturas da Mente (Gardner, 1983), a existência de pelo menos sete inteligências básicas. Mais recentemente, ele acrescentou uma oitava, e discutiu a possibilidade de uma nona
(Gardner, 1999b). Em sua teoria das inteligências múltiplas (teoria das IM), Gardner tentou ampliar o alcance do potencial humano além dos confins do escore de QI. Ele questionou seriamente a validade de se determinar a inteligência de um indivíduo tirando-se este indivíduo do seu meio ambiente natural e pedindo-lhe para fazer tarefas isoladas que jamais fez antes – e provavelmente jamais escolheria fazer novamente. Em vez disso, Gardner sugere que a inteligência tem mais a ver com a capacidade de (1) resolver problemas e (2) criar produtos em ambientes com contextos ricos e naturais.
As Oito Inteligências Descritas Uma vez adotada esta perspectiva mais ampla e mais pragmática, o conceito de inteligência começou a perder sua mística e se tornou um conceito funcional que podíamos ver operando na vida das pessoas de várias maneiras. Gardner ofereceu um
14 THOMAS ARMSTRONG meio de mapear a ampla gama de capacidades dos seres humanos, ao agrupar essas capacidades em oito categorias ou “inteligências” abrangentes. Inteligência Lingüística. A capacidade de usar as palavras de forma efetiva, quer oralmente (por exemplo, como contador de histórias, orador ou político), quer escrevendo (por exemplo, como poeta, dramaturgo, editor ou jornalista). Esta inteligência inclui a capacidade de manipular a sintaxe ou a estrutura da linguagem, a semântica ou os significados da linguagem, e as dimensões pragmáticas ou os usos práticos da linguagem. Alguns desses usos incluem a retórica (usar a linguagem para convencer os outros a seguirem um curso de ação específico), a mnemônica (usar a linguagem para lembrar informações), a explicação (usar a linguagem para informar) e a metalinguagem (usar a linguagem para falar sobre ela mesma). Inteligência Lógico-Matemática. A capacidade de usar os números de forma efetiva (por exemplo, como matemático, contador ou estatístico) e para raciocinar bem (por exemplo, como cientista, programador de computador ou lógico). Esta inteligência inclui sensibilidade a padrões e relacionamentos lógicos, afirmações e proposições (se-então, causa-efeito), funções e outras abstrações relacionadas. Os tipos de processo usados a serviço da inteligência lógico-matemática incluem: categorização, classificação, inferência, generalização, cálculo e testagem de hipóteses. Inteligência Espacial. A capacidade de perceber com precisão o mundo visuoespacial (por exemplo, como caçador, escoteiro ou guia) e de realizar transformações sobre essas percepções (por exemplo, como decorador de interiores, arquiteto, ar-
tista ou inventor). Esta inteligência envolve sensibilidade à cor, linha, forma, configuração e espaço, e às relações existentes entre esses elementos. Ela inclui a capacidade de visualizar, de representar graficamente idéias visuais ou espaciais e de orientar-se apropriadamente em uma matriz espacial. Inteligência Corporal-Cinestésica. Perícia no uso do corpo todo para expressar idéias e sentimentos (por exemplo, como ator, mímico, atleta ou dançarino) e facilidade no uso das mãos para produzir ou transformar coisas (por exemplo, como artesão, escultor, mecânico ou cirurgião). Esta inteligência inclui habilidades físicas específicas, tais como coordenação, equilíbrio, destreza, força, flexibilidade e velocidade, assim como capacidades proprioceptivas, táteis e hápticas. Inteligência Musical. A capacidade de perceber (por exemplo, como aficionado por música), discriminar (como um crítico de música), transformar (como compositor) e expressar (como musicista) formas musicais. Esta inteligência inclui sensibilidade ao ritmo, tom ou melodia, e timbre de uma peça musical. Podemos ter um entendimento figural ou “geral” da música (global, intuitivo), um entendimento formal ou detalhado (analítico, técnico), ou ambos. Inteligência Interpessoal. A capacidade de perceber e fazer distinções no humor, intenções, motivações e sentimentos das outras pessoas. Isso pode incluir sensibilidade a expressões faciais, voz e gestos; a capacidade de discriminar muitos tipos diferentes de sinais interpessoais; e a capacidade de responder efetivamente a estes sinais de uma maneira pragmática (por exemplo, influenciar um grupo de pessoas para que sigam certa linha de ação). Inteligência Intrapessoal. Autoconhecimento e a capacidade de agir adap-
INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS NA SALA DE AULA 15
tativamente com base neste conhecimento. Esta inteligência inclui possuir uma imagem precisa de si mesmo (das próprias forças e limitações); consciência dos estados de humor, intenções, motivações, temperamento e desejos; e a capacidade de autodisciplina, auto-entendimento e auto-estima. Inteligência Naturalista. Perícia no reconhecimento e classificação das numerosas espécies – a flora e a fauna – do meio ambiente do indivíduo. Inclui também sensibilidade a outros fenômenos naturais (por exemplo, formação de nuvens e montanhas) e, no caso das pessoas que cresceram num meio ambiente urbano, a capacidade de discriminar entre seres inanimados como carros, tênis e capas de CDs musicais.
A Base Teórica da Teoria das IM Muitas pessoas olham para as oito categorias citadas – especialmente a musical, a espacial e a corporal-cinestésica – e perguntam-se por que Howard Gardner insiste em chamá-las de inteligências, em vez de talentos ou aptidões. Gardner percebeu que as pessoas estão acostumadas a ouvir expressões como: “Ele não é muito inteligente, mas tem uma aptidão maravilhosa para a música”; assim, ele usou a palavra inteligência de forma muito consciente e intencional para descrever cada categoria. Ele disse, numa entrevista: “Eu estou sendo deliberadamente um pouco provocativo. Se eu dissesse que existem sete tipos de competências, as pessoas bocejariam e diriam: ‘Sim, sim’. Ao chamá-las de ‘inteligências’, estou dizendo que tendemos
a colocar num pedestal uma variedade que chamamos de inteligência, mas que na verdade existe uma pluralidade delas, e algumas são algo que jamais consideramos como sendo uma ‘inteligência’” (Weinreich-Haste, 1985, p. 48). Para oferecer fundamentos teóricos sólidos para suas afirmações, Gardner estabeleceu certos “testes” básicos nos quais cada inteligência teria de ser aprovada para ser considerada uma inteligência habilitada e não simplesmente um talento, habilidade ou aptidão. Os critérios que ele utilizou incluem os oito fatores a seguir. Isolamento Potencial por Lesão Cerebral. No Boston Veterans Administration, Gardner trabalhou com indivíduos que tinham sofrido acidentes ou doenças que afetaram áreas específicas do cérebro. Em vários casos, as lesões cerebrais pareciam ter prejudicado seletivamente uma inteligência, deixando todas as outras intactas. Por exemplo, uma pessoa com uma lesão na área de Broca (lobo frontal esquerdo) poderia ter uma porção substancial de sua inteligência lingüística danificada, e assim experienciar uma grande dificuldade para falar, ler e escrever. Mas ela ainda poderia ser capaz de cantar, fazer contas, dançar, refletir sobre sentimentos e relacionar-se com os outros. Uma pessoa com uma lesão no lobo temporal do hemisfério direito poderia ter as suas capacidades musicais seletivamente prejudicadas, enquanto lesões no lobo frontal poderiam afetar principalmente as inteligências pessoais. Gardner, então, defende a existência de oito sistemas cerebrais relativamente autônomos – uma versão mais sofisticada e atualizada do modelo de aprendizagem de “cérebro-direito/cérebro-esquerdo”, popular na década de 70. O Quadro 1.1
16 THOMAS ARMSTRONG Quadro 1.1 – Mapa Resumido da Teoria das IM Inteligência
Componentes Centrais
Sistemas Simbólicos
Estados Finais Superiores
Lingüística
Sensibilidade aos sons, estrutura, significados e funções das palavras e da linguagem
Linguagens fonéticas (por exemplo, inglês)
Escritor, orador (por exemplo, Virginia Woolf, Martin Luther King, Jr.)
LógicoMatemática
Sensibilidade a/e capacidade de discernir, padrões lógicos ou numéricos; capacidade de lidar com longas cadeias de raciocínio
Linguagens de computador (por exemplo, Pascal)
Cientista, matemático (por exemplo, Madame Curie, Blaise Pascal)
Espacial
Capacidade de perceber com exatidão o mundo visuoespacial e de realizar transformações nas próprias percepções iniciais
Linguagens Artista, arquiteto (por ideográficas (por exem- exemplo, Frida Kahlo, I.M. plo, chinês) Pei)
CorporalCinestésica
Capacidade de controlar os movimentos do próprio corpo e de manipular objetos habilmente
Linguagem de sinais, braile*
Musical
Capacidade de produzir e apreciar ritmo, tom e timbre; apreciação das formas de expressividade musical
Sistemas notacionais Compositor, maestro (por musicais, código Morse exemplo, Stevie Wonder, Midori)
Atleta, dançarino, escultor (por exemplo, Jesse Owens, Martha Graham, Auguste Rodin)
Interpessoal Capacidade de discernir e responder adequadamente aos estados de humor, temperamentos, motivações e desejos das outras pessoas
Sinais sociais (por exemplos, gestos e expressões faciais)
Conselheiro, líder político (por exemplo, Carl Rogers, Nelson Mandela)
Intrapessoal Acesso à própria vida de sentimento e capacidade de discriminar as próprias emoções; conhecimento das forças e fraquezas pessoais
Símbolos do self (por exemplo, nos sonhos e trabalhos artísticos)
Psicoterapeuta, líder religioso (por exemplo, Sigmund Freud, Buda)
Perícia em distinguir entre membros de uma espécie, em reconhecer a existência de outras espécies próximas e em mapear as relações, formalmente ou informalmente, entre várias espécies.
Sistemas de classificação de espécies (por exemplo, Lineu); mapas de habitat
Naturalista, biólogo, ativista animal (por exemplo, Charles Darwin, E. O. Wilson, Jane Goodall)
Naturalista
* Pesquisas recentes sugerem que muitas linguagens de sinais, como a Linguagem Americana dos Sinais, também têm uma base fortemente lingüística (veja, por exemplo, Sacks, 1990). Continua
INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS NA SALA DE AULA 17 Quadro 1.1 – Mapa Resumido da Teoria das IM
(Continuação)
Inteligência
Sistemas Neurológicos (Áreas de Base)
Fatores Desenvolvimentais
Lingüística
Lobos frontal e temporal esquerdo (por exemplo, áreas de Broca/de Wernicke)
“Explode” na infância Histórias orais, narração de inicial; permanece vigo- histórias, literatura, etc. rosa até a velhice
LógicoMatemática
Lobo parietal esquerdo, hemisfério direito
Tinge seu pico na adolescência e no início da idade adulta; as introspecções matemáticas superiores declinam depois dos 40 anos
Descobertas científicas, teorias matemáticas, sistemas de contagem e de classificação, etc.
Espacial
Regiões posteriores do hemisfério direito
O pensamento topológico na infância inicial dá lugar ao paradigma euclidiano por volta dos 9-10 anos; o olho artístico continua vigoroso na velhice
Trabalhos artísticos, sistemas de navegação, projetos arquitetônicos, invenções, etc.
CorporalCinestésica
Cerebelo, gânglios basais, córtex motor
Variam, dependendo do componente (força, flexibilidade, etc.) ou do domínio (ginástica, beisebol, mímica, etc)
Artesanato, desempenhos atléticos, trabalhos dramáticos, formas de dança, escultura, etc.
Musical
Lobo temporal direito
É a inteligência que se desenvolve mais precocemente; os prodígios freqüentemente passam por uma crise desenvolvimental
Composições, execuções, gravações musicais, etc.
Interpessoal Lobos frontais, lobo temporal (especialmente o hemisfério direito), sistema límbico
Apego/vinculação durante os primeiros três anos é crítico
Documentos políticos, instituições sociais, etc.
Intrapessoal Lobos frontais, lobos parietais, sistema límbico
A formação da fronteira Sistemas religiosos, teorias entre o self e o outro psicológicas, ritos de pasnos três primeiros anos sagem, etc. é crítica
Naturalista
Áreas do lobo parietal esquerdo são importantes para distinguir entre seres “vivos” e “inanimados”
Surge dramaticamente em algumas crianças bem jovens; a escolarização ou a experiência aumenta a perícia formal ou informal
Formas Valorizadas pelas Culturas:
Taxionomias raciais, conhecimento das ervas, rituais de caça, mitologias sobre espíritos de animais
Continua
18 THOMAS ARMSTRONG Quadro 1.1 – Mapa Resumido da Teoria das IM
(Continuação)
Inteligência
Origens Evolutivas
Presença em Outras Espécies
Fatores Históricos (relativos aos Estados Unidos atualmente)
Lingüística
Notações escritas encontradas datando de 30.000 anos
Capacidade de nomear dos macacos
Transmissão oral mais importante antes da imprensa
LógicoMatemática
Encontrados calendários e sistemas numéricos muito antigos
As abelhas calculam a distância através de suas danças
Mais importante com a influência dos computadores
Espacial
Desenhos nas cavernas
Instinto de territorialidade em várias espécies
Mais importante com o advento do vídeo e de outras tecnologias visuais
CorporalCinestésica
Evidências de uso antigo de instrumentos e ferramentas
Uso de instrumentos nos primatas, tamanduás e outras espécies
Era mais importante no período agrário
Musical
Evidências de instrumentos musicais já na Idade da Pedra
Canto dos pássaros
Era mais importante durante a cultura oral, em que a comunicação era de natureza mais musical
Interpessoal Grupos de vida comunal eram necessários para caça/ coleta
Apego materno obser- Mais importante com o vado em primatas e em aumento na economia de outras espécies serviços
Intrapessoal Evidências antigas de vida religiosa
Os chimpanzés se localizam diante de um espelho; os macacos sentem medo
Continua sendo importante, com a sociedade cada vez mais complexa exigindo a capacidade de fazer escolhas
Instinto de caça em numerosas espécies permitindo distinguir entre a presa e os outros animais
Era mais importante durante o período agrário, depois diminuiu de importância durante a expansão industrial; atualmente, a “capacidade referente à Terra” é mais importante do que nunca para preservar ecossistemas em risco
Naturalista
Instrumentos de caça primitivos revelam entendimento de outras espécies
mostra as estruturas cerebrais de cada inteligência. A Existência de Savants, Prodígios e Outros Indivíduos Excepcionais. Gardner sugere que em certas pessoas nós po-
demos ver inteligências únicas operando em níveis elevados, como uma imensa montanha se erguendo contra um horizonte plano. Os savants são pessoas que demonstram capacidades superiores em parte de
INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS NA SALA DE AULA 19
uma inteligência, enquanto suas outras inteligências funcionam num baixo nível. Parecem existir savants em todas as oito inteligências. Por exemplo, no filme Rain Man (baseado numa história verídica), Dustin Hoffman desempenha o papel de Raymond, um savant lógico-matemático. Raymond calcula mentalmente, e com rapidez, números com múltiplos dígitos, e realiza outras façanhas matemáticas espantosas, mas tem um relacionamento inadequado com seus semelhantes, um funcionamento lingüístico insuficiente e uma falta de introspecção em relação à própria vida. Também existem savants que desenham excepcionalmente bem, savants que possuem memórias musicais fantásticas (por exemplo, tocam uma composição depois de ouvi-la apenas uma vez), savants que lêem materiais complexos, mas não entendem aquilo que estão lendo (hiperlexia) e savants com uma sensibilidade excepcional à natureza ou aos animais (veja, por exemplo, Sacks, 1995). Uma História Desenvolvimental Distintiva e Um Conjunto Definível de Desempenhos Peritos de “Estados Finais”. Gardner sugere que as inteligências são galvanizadas pela participação em alguma atividade culturamente valorizada, e que o desenvolvimento do indivíduo nessa atividade segue um padrão desenvolvimental. Cada atividade baseada numa inteligência tem sua própria trajetória desenvolvimental, isto é, cada atividade tem seu momento de surgir na infância inicial, seu momento de pico durante a vida, e seu próprio padrão de declínio rápido ou gradual conforme a pessoa envelhece. A composição musical, por exemplo, parece estar entre as atividades culturalmente valorizadas que se desenvolvem mais cedo num nível elevado de proficiência: Mozart ti-
nha apenas cinco anos quando começou a compor. Numerosos compositores e músicos trabalharam ativamente até os 80 ou 90 anos, de modo que a perícia na composição musical também parece continuar relativamente vigorosa na velhice. A perícia matemática superior, por outro lado, parece ter uma trajetória um pouco diferente. Ela não surge tão cedo quanto a capacidade de composição musical (as crianças de cinco anos de idade ainda estão operando muito concretamente com idéias lógicas), mas atinge um pico relativamente cedo na vida. Muitas grandes idéias matemáticas e científicas foram desenvolvidas por adolescentes como Blaise Pascal e Karl Friedrich Gauss. De fato, uma revisão da história das idéias matemáticas sugere que depois dos 40 anos as pessoas têm poucos insights matemáticos originais. Quando as pessoas atingem esta idade, são consideradas velhas demais como matemáticos superiores! Entretanto, a maioria de nós pode respirar aliviada, porque este declínio geralmente não parece afetar habilidades mais pragmáticas, tais como controlar o talão de cheques. Por outro lado, a pessoa pode tornarse um romancista bem-sucedido aos 40 ou 50 anos de idade, ou mesmo mais tarde. A pessoa pode inclusive ter mais de 75 anos e decidir pintar: foi o que Grandma Moses fez. Gardner salienta que nós precisamos usar vários mapas desenvolvimentais diferentes a fim de compreender as oito inteligências. Piaget oferece um mapa abrangente para a inteligência lógico-matemática, mas talvez precisemos recorrer a Erik Erikson para um mapa do desenvolvimento das inteligências pessoais, e a Noam Chomsky ou Lev Vygotsky para modelos desenvolvimentais da inteligência lingüística. O Quadro 1.1 inclui um resumo das
20 THOMAS ARMSTRONG trajetórias desenvolvimentais de cada inteligência. Finalmente, Gardner (1994) salienta que a melhor maneira de ver as inteligências operando em sua plenitude é estudar os “estados finais” das inteligências na vida de indivíduos realmente excepcionais. Podemos ver a inteligência musical funcionando ao estudar a Nona Sinfonia de Beethoven, a inteligência naturalista na teoria evolutiva de Darwin, ou a inteligência espacial nas pinturas de Michelangelo na Capela Sistina. A Quadro 1.1 inclui exemplos de estados finais de cada inteligência. Uma História Evolutiva e uma Plausibilidade Evolutiva. Gardner conclui que cada uma das oito inteligências passa no teste de ter suas raízes profundamente inseridas na evolução dos seres humanos e mesmo anteriormente, na evolução de outras espécies. Assim, por exemplo, a inteligência espacial pode ser estudada nos desenhos da caverna de Lascaux e na maneira pela qual certos insetos se orientam no espaço quando procuram flores. Igualmente, a inteligência musical pode ser traçada até as evidências arqueológicas de instrumentos musicais muito antigos, assim como por meio da grande variedade de cantos de pássaros. O Quadro 1.1 inclui notas sobre as origens evolutivas das inteligências. A teoria das IM também tem um contexto histórico. Certas inteligências parecem ter sido mais importantes em épocas antigas do que são atualmente. As inteligências naturalista e corporal-cinestésica, por exemplo, eram mais valorizadas nos Estados Unidos cem anos atrás, quando a maioria das pessoas morava em ambientes rurais e a capacidade de caçar, colher grãos e construir silos era socialmente
muito apreciada. Da mesma forma, certas inteligências podem tornar-se mais importantes no futuro. Na medida em que uma porcentagem cada vez maior de cidadãos recebe suas informações por filmes, televisão, vídeos e tecnologia de CDROM, o valor atribuído a uma grande inteligência espacial pode aumentar. Atualmente também há uma necessidade cada vez maior de pessoas peritas na inteligência naturalista, para ajudar a proteger ecossistemas em risco. O Quadro 1.1 apresenta alguns dos fatores históricos que influenciaram o valor percebido de cada inteligência. Apoio de Achados Psicométricos. As medidas padronizadas de capacidade humana oferecem o “teste” que a maioria das teorias da inteligência (assim como muitas teorias de estilo de aprendizagem) utilizam para determinar a validade de um modelo. Embora Gardner não seja nenhum paladino dos testes padronizados, e de fato tenha sido um ardente defensor de alternativas à testagem formal (veja o Capítulo 10), ele sugere que muitos testes padronizados existentes apóiam a teoria das inteligências múltiplas (mas Gardner certamente diria que os testes padronizados avaliam as inteligências múltiplas de uma maneira incrivelmente descontextualizada). Por exemplo, a Escala Wechsler de Inteligência para Crianças inclui subtestes que requerem inteligência lingüística (por exemplo, informação, vocabulário), inteligência lógico-matemática (por exemplo, aritmética), inteligência espacial (por exemplo, arranjo de figuras) e, numa extensão menor, inteligência corporal-cinestésica (por exemplo, montar objetos). Outros testes também avaliam as inteligências pessoais (por exemplo, a Vineland Society Maturity Scale e o Coopersmith Self-
INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS NA SALA DE AULA 21
Esteem Inventory). O Capítulo 3 inclui um exame dos tipos de testes formais associados a cada uma das oito inteligências. Apoio de Tarefas Psicológicas Experimentais. Gardner sugere que, ao examinar estudos psicológicos específicos, podemos perceber as inteligências operando isoladas umas das outras. Por exemplo, em estudos em que os sujeitos dominam uma habilidade específica, tal como leitura, mas não conseguem transferir essa capacidade para uma outra área, como a matemática, vemos o fracasso da capacidade lingüística de transferir-se para a inteligência lógico-matemática. Da mesma forma, em estudos de capacidades cognitivas como memória, percepção ou atenção, podemos ver evidências de que os indivíduos possuem capacidades seletivas. Certos indivíduos, por exemplo, podem ter uma memória superior para palavras, mas não para rostos; outros podem ter uma aguda percepção de sons musicais, mas não de sons verbais. Cada uma dessas faculdades cognitivas, então, é específica de uma inteligência; isto é, as pessoas podem demonstrar diferentes níveis de proficiência nas oito inteligências em cada área cognitiva. Uma Operação ou um Conjunto de Operações Centrais Identificável. Gardner diz que assim como um programa de computador requer um conjunto de operações (por exemplo, DOS) a fim de funcionar, cada inteligência tem um conjunto de operações centrais que servem para acionar as várias atividades inerentes àquela inteligência. Na inteligência musical, por exemplo, esses componentes podem incluir a sensibilidade ao tom ou a capacidade de discriminar entre várias estruturas rítmicas. Na inteligência corporal-cinestésica, as operações centrais podem incluir a capacidade de imitar os movimen-
tos físicos dos outros ou a capacidade de dominar rotinas motoras finas estabelecidas para construir uma estrutura. Gardner especula que essas operações centrais serão um dia identificadas com tal precisão que poderão ser simuladas num computador. Suscetibilidade à Codificação em um Sistema Simbólico. Um dos melhores indicadores de comportamento inteligente, segundo Gardner, é a capacidade dos seres humanos de usar símbolos. A palavra “gato” que aparece aqui na página é simplesmente uma coleção de sinais impressos de uma maneira específica. Mas ela provavelmente lhe sugere uma grande variedade de associações, imagens e memórias. O que ocorre é que trazemos para o presente (“re-present-ação”) algo que na verdade não está aqui. Gardner sugere que a capacidade de simbolizar é um dos fatores mais importantes separando os seres humanos da maioria das outras espécies. Ele observa que cada uma das oito inteligências na sua teoria satisfaz o critério de poder ser simbolizada. Cada inteligência, de fato, tem seu próprio sistema simbólico ou notacional. Para a inteligência lingüística, existem várias linguagens faladas e escritas, como inglês, francês e espanhol. A inteligência espacial, por outro lado, inclui uma variedade de linguagens gráficas usadas por arquitetos, engenheiros e desenhistas, assim como certas linguagens ideográficas, como o chinês. O Quadro 1.1 inclui exemplos de sistemas simbólicos para as oito inteligências.
Pontos-Chave na Teoria das IM Além da descrição das oito inteligências e seus fundamentos teóricos, certos pontos do modelo precisam ser lembrados:
22 THOMAS ARMSTRONG 1. Toda pessoa possui todas as oito inteligências. A teoria das IM não é uma “teoria de tipos”, para determinar qual inteligência se ajusta. Ela é uma teoria do funcionamento cognitivo, e propõe que cada pessoa tem capacidades em todas as oito inteligências. Evidentemente, as oito inteligências funcionam juntas de maneira única para cada pessoa. Algumas pessoas parecem possuir níveis de funcionamento extremamente elevados em todas ou na maioria das oito inteligências – por exemplo, o poeta-estadista-cientista-naturalista-filósofo alemão Johann Wolfgang von Goethe. Outras pessoas, como as internadas em instituições para pessoas com problemas de desenvolvimento, parecem possuir apenas os aspectos mais rudimentares das inteligências. A maioria de nós se encaixa em algum lugar entre estes dois pólos – sendo altamente desenvolvido em algumas inteligências, modestamente desenvolvido em outras, e relativamente subdesenvolvido nas restantes. 2. A maioria das pessoas pode desenvolver cada inteligência num nível adequado de competência. Embora um indivíduo possa lamentar suas deficiências numa determinada área e considerar seus problemas como inatos e intratáveis, Gardner sugere que praticamente todas as pessoas podem desenvolver todas as oito inteligências num nível razoavelmente elevado de desempenho, desde que recebam estímulo, enriquecimento e instrução apropriados. Ele menciona o Programa Suzuki de Educação de Talentos como um exemplo de como indivíduos de dotação musical biológica relativamente modesta conseguem atingir um nível sofisticado de proficiência no violino ou no piano, por meio de uma combinação das influências ambientais certas (por exemplo, a ajuda
de um dos pais, exposição à música clássica desde bebê e instrução precoce). Esses modelos educacionais podem ser encontrados também em outras inteligências (veja, por exemplo, Edwards, 1979). 3. As inteligências, normalmente, funcionam juntas de maneira complexa. Gardner salienta que todas as inteligências, conforme descritas anteriormente, são uma “ficção”: na vida não existe nenhuma inteligência isolada (exceto, talvez, em casos muito raros, em savants e indivíduos com dano cerebral). As inteligências estão sempre interagindo umas com as outras. Para preparar uma refeição, precisamos ler a receita (lingüística), possivelmente dividir a receita pela metade (lógico-matemática), criar um menu que satisfaça a todos os membros da família (interpessoal) e aplacar também o próprio apetite (intrapessoal). Da mesma forma, quando uma criança joga bola, ela precisa da inteligência corporal-cinestésica (para correr, chutar e pegar), da inteligência espacial (para orientar-se no campo e para antecipar as trajetórias das bolas) e das inteligências lingüística e interpessoal (para conseguir defender seu ponto de vista durante uma disputa no jogo). As inteligências foram retiradas de contexto na teoria das IM apenas com o propósito de examinarmos seus aspectos essenciais e aprendermos a usá-las efetivamente. Não podemos esquecer de colocá-las de volta em seus contextos específicos culturalmente valorizados quando terminarmos de estudá-las formalmente. 4. Existem muitas maneiras de ser inteligente em cada categoria. Não existe um conjunto-padrão de atributos que precisamos ter para sermos considerados inteligentes numa área específica. Conseqüentemente, uma pessoa pode não saber ler, mas
INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS NA SALA DE AULA 23
ser altamente lingüística, porque consegue contar uma história maravilhosamente ou tem um rico vocabulário oral. Da mesma forma, uma pessoa pode ser muito desajeitada num campo de futebol, mas possuir uma inteligência corporal-cinestésica superior quando tece um tapete ou cria uma mesa de xadrez marchetada. A teoria das IM enfatiza a rica diversidade de formas pelas quais as pessoas mostram seus talentos dentro de uma inteligência e também entre inteligências. (Veja o Capítulo 3 para mais informações sobre as variedades de atributos em cada inteligência.)
A Existência de Outras Inteligências Gardner salienta que seu modelo é uma formulação experimental: após novas pesquisas e investigações, algumas das inteligências da lista podem não satisfazer alguns dos oito critérios já descritos, e portanto deixar de qualificar-se como uma inteligência. Por outro lado, podemos identificar novas inteligências que satisfaçam os vários testes. De fato, Gardner agiu de acordo com esta crença acrescentando uma nova inteligência – a naturalista – depois de decidir que ela satisfazia os oito critérios. Uma nona inteligência – a existencial – que também satisfaz a maioria dos critérios (veja o Capítulo 14 para uma discussão detalhada da inteligência existencial), está sendo considerada por ele. Outros autores e pesquisadores propuseram outras inteligências, incluindo espiritualidade, sensibilidade moral, humor, intuição, criatividade, capacidade culinária (cozinhar), percepção olfativa (sentido de olfato), capacidade de sintetizar as outras inteligências e capacidade mecânica. Resta
ver, todavia, se estas inteligências propostas realmente podem satisfazer todos os oito critérios descritos.
A Relação da Teoria das IM com Outras Teorias da Inteligência A teoria de Gardner das inteligências múltiplas certamente não é o primeiro modelo a tratar da noção de inteligência. Existem teorias da inteligência desde épocas antigas, quando se pensava que a mente residia em algum lugar do coração, fígado ou rins. Em épocas mais recentes, surgiram teorias da inteligência variando de um tipo de inteligência (o “g” de Spearman) a 150 tipos (a Estrutura do Intelecto de Guilford). Um crescente número de teorias de estilo de aprendizagem também merece ser mencionado aqui. Gardner tentou diferenciar a teoria das inteligências múltiplas do conceito de “estilo de aprendizagem”. Ele escreve: O conceito de estilo designa uma abordagem geral que o indivíduo pode aplicar igualmente a qualquer conteúdo. Em contraste, uma inteligência é uma capacidade, com seus processos componentes, aplicável a um conteúdo específico no mundo (tal como sons musicais ou padrões espaciais) (Gardner, 1995, p. 202-203)
Segundo Gardner, ainda não existem evidências claras de que uma pessoa com uma inteligência espacial extremamente desenvolvida, por exemplo, vai mostrar essa capacidade em todos os aspectos da sua vida (por exemplo, lavar o carro espacialmente, refletir espacialmente sobre idéias, relacionar-se espacialmente em ter-
24 THOMAS ARMSTRONG mos sociais). Ele sugere que essa tarefa seja investigada empiricamente (para um exemplo de uma tentativa nessa direção, veja Silver, Strong e Perini, 1997). Ao mesmo tempo, é um projeto tentador relacionar a teoria das IM a alguma das teorias de estilos de aprendizagem que conquistaram adeptos nas últimas duas décadas, uma vez que os aprendizes expandem sua base de conhecimento ligando informações novas (neste caso, a teoria das IM) a esquemas ou modelos existentes (o modelo de estilo de aprendizagem com o qual estão mais familiarizados). Mas esta tarefa não é um empreendimento assim tão fácil, em parte devido ao que sugerimos acima e em parte porque a teoria das IM tem um tipo de estrutura subjacente muito diferente do da maioria das atuais teorias de estilo de aprendizagem. A Teoria das IM é um modelo cognitivo que tenta descrever como os indivíduos usam suas inteligências para resolver problemas e criar produtos. Diferentemente de outros modelos que são ori-
entados principalmente para o processo, a abordagem de Gardner trata especialmente de como a mente humana opera sobre os conteúdos do mundo (isto é, objetos, pessoas, certos tipos de sons, etc.). Uma teoria aparentemente relacionada, o modelo Visual-Auditivo-Cinestésico, na verdade é bem diferente da teoria das IM, no sentido de que é um modelo de canal sensorial (a teoria das IM não está especificamente ligada aos sentidos; é possível ser cego e ter inteligência espacial ou ser surdo e ser muito musical). Uma outra teoria popular, o modelo de Myers-Briggs, é na verdade uma teoria da personalidade, baseada na formulação teórica de Carl Jung dos diferentes tipos de personalidade. Tentar correlacionar a teoria das IM com modelos como esses é como tentar comparar maçãs com laranjas. Embora possamos identificar relações e conexões, nossos esforços podem assemelhar-se aos dos Homens Cegos e o Elefante: cada modelo tocando num aspecto diferente do aprendiz total.
INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS NA SALA DE AULA 25
PARA ESTUDOS ADICIONAIS Neste capítulo, apresentei os princípios básicos da Teoria das Inteligências Múltiplas de maneira breve e concisa. A Teoria das IM tem conexões com uma ampla variedade de campos, incluindo a antropologia, a psicologia cognitiva, a psicologia desenvolvimental, os estudos de indivíduos excepcionais, a psicometria e a neuropsicologia. Existem amplas oportunidades de explorar a teoria em seu próprio direito, separadamente de seus usos educacionais específicos. Tal estudo preliminar pode na verdade ajudá-los a aplicar a teoria em sala de aula. Aqui estão algumas sugestões para explorar os fundamentos da teoria das IM em maior profundidade. 1. Criar um grupo de estudo sobre a teoria das IM usando como texto o livro seminal de Gardner, Estruturas da Mente: A Teoria das Inteligências Múltiplas (Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994). Cada membro pode responsabilizar-se por ler e relatar um capítulo específico. 2. Usar a extensa bibliografia de Gardner sobre a teoria das IM encontrada no livro Inteligências Múltiplas: A Teoria na Prática (Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1995) ou seu livro mais recente Intelligence Reframed: Multiple Intelligences for the 21st Century (Nova
York: Basic Books, 1999b) como uma base para leituras mais amplas sobre o modelo. 3. Propor a existência de uma nova inteligência e aplicar os oito critérios de Gardner para ver se ela se qualifica para ser incluída na teoria das IM. 4. Reunir exemplos de sistemas simbólicos em cada inteligência: ler o livro de Robert McKim, Experiences in Visual, Thinking (Boston: PWS Engineering, 1980), para exemplos de várias “linguagens” espaciais usadas por desenhistas, arquitetos, artistas e inventores; livros sobre história musical, que trazem exemplos de sistemas mais antigos de notação musical, e assim por diante. 5. Ler sobre os savants em cada inteligência. Algumas das notas de rodapé de Estruturas da Mente, de Gardner, identificam fontes de informação sobre savants nas inteligências lógico-matemática, espacial, musical, lingüística e corporal-cinestésica. Além disso, o trabalho de Oliver Sacks apresenta estudos de caso fascinantes de savants e outros indivíduos com lesões cerebrais específicas que afetaram suas inteligências de maneiras intrigantes (veja Sacks, 1985, 1993, 1995). 6. Relacionar a teoria das IM a um modelo atual de estilo de aprendizagem.