Revista VOX #1

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Quilombo da Serrinha

2018

Relatos de uma comunidade que luta pela demarcação pg. 18

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JULHO Perfil de uma índia Xavante A história contada pelo corpo marcado pelo preconceito

pg.23

Ciganas não trabalham com previsões Conheça mais sobre a cultura e costumes desse povo pg. 08

A luta pela terra é a luta pelo amor A comunidade acampada relata sua batalha pela regulamentação do território pg.12

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Foto: Mariana Martins

pg. 08

sumário 03 EDITORIAL 03 EXPEDIENTE 04 OPINIÃO 05 ENTREVISTA 06 FONTE DA FÉ 08 DERIVA CIGANA 12 AS MÃOS EM PURO CALO SÓ QUEREM PLANTAR

14 CRÔNICA 15 HQ 16 TIRE O VENENO DA SUA MESA! 18 TERRA QUE DEMARCA 22 INDÍGENA 23 A PELE FALA

pg.

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Foto: Junior Heitor

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VOX


EDITORIAL As vozes não se calam Esta é a primeira edição da Revista Vox, que significa “A Voz”. O intuito é abrir espaço para diferentes comunidades representarem seus lugares de fala. O processo de criação envolveu mãos quentes e olhos sedentos de curiosidade destes futuros jornalistas com ânsia em conhecer, o que para eles também, era um universo misterioso. Tentamos desmistificar a imagem pré-concebida dessas comunidades, não sabemos se de fato conseguimos, mas os momentos vivenciados nas reportagens ficarão marcados em cada um de nós. Esta revista que você está prestes a folhear contém muitas co-

res e dores, históricas únicas de resistência à opressão, violência e preconceito e muito orgulho, luta e superação. Você terá acesso a um perfil da índia Xavante, Ababy Porã, que resistiu e enfrentou o preconceito na pele. Fontes e informações sobre povos indígenas do país trazem um panorama da diversidade desses povos. Conhecerá também a história de uma comunidade quilombola, localizada na Quineira, região de Frutal, em que mostra a luta de um povo pela demarcação das terras e a reintegração de 530 alqueires retirados por fazendeiros. Terá a oportunidade de entender que o sistema carcerário no Brasil

possui uma metodologia mais digna, como é o caso dos recuperandos da APAC – Frutal. A Vox traz a luta contra o agrotóxico e a perseverança da Comunidade que Sustenta à Agricultura em divulgar uma filosofia de vida que propicia uma alimentação mais saudável. Você vai apreciar a gana de Dona Rosa no Acampamento Beira Rio, em Fronteira, e irá se surpreender pela bela narrativa da vida ciganada, os costumes e os casamentos. Não deixe de ler até o final, você terá uma pequena amostra da pluralidade deste país

Editora-Chefe de Redação KAROL CASTANHEIRA Editor-Chefe de Diagramação ANTONIO ARAUJO REDAÇÃO Redatores CAROL EDUARDA HIGOR LONEL PEREIRA JACKLINE SOUSA JUNIOR HEITOR MARIANA MARTINS RAFAELA RIBEIRO SÉRGIO GOMES SUÍLA CAMARGOS TAHINE NETTO TALITA DIAS THAÍS FONTES VITOR HUGO GIROTTO ARTE Diretor de Diagramação VITOR HUGO GIROTTO Ilustradores SÉRGIO GOMES e IONEI DUTRA Terceiro Período de Jornalismo

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OPINIÃO

Comum a nós Por

O ser humano tem a incrível capacidade de viver em grupos e compartilhar o território, as experiências e os sentimentos de afetividade com outros indivíduos, ele vive em comunidade. Esse lugar comum me faz pensar se é possível conceituar algo tão específico, ou se essa não seria uma tarefa para os pesquisadores e antropólogos. Mas a ideia do que é comunidade ainda martela na minha cabeça, principalmente enquanto futuro jornalista e por ajudar a escrever e pensar essa revista, um pequeno espaço para tantas vozes. Quando falamos em comunidade o sentimento que expressamos leva-nos a pensar em um lugar físico, como a nossa rua, nosso bairro, onde

vivem os nossos amigos e familiares, uma comunidade que divide o mesmo território, costumes e tradições. Com a popularização da internet e das redes sociais, as fronteiras tornaram-se menos distantes e os modelos de comunidade começaram a vencer os limites territoriais, em uma velocidade até então não vista, elas se tornaram muito mais numerosas, e aquele modelo que antes compartilhava um mesmo território passou a compartilhar “ideais”. Alguns grupos de pessoas que dividem ideais semelhantes encontraram nas redes sociais uma forma de ampliar as fronteiras territoriais que limitavam as suas ações comuns. O grupo LGBTQI, por exemplo, vem conquistando espaço na grande mí-

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JUNIOR HEITOR

dia e nas redes sociais, e assim aproximando ainda mais os seus membros. Porém, a luta contra a homofobia ainda é árdua e permanente, servindo de agência às pautas LGBTQI. Entendo que comunidade hoje já não é mais só um lugar no qual as pessoas vivem juntas, que nem sempre compartilham dos mesmos objetivos e ideais, mas se tornou também grupos de pessoas que têm interesses em comum, trocam ideias, experiências dentre outras ações em conjunto, mas que não precisam mais dividir o mesmo espaço territorial; as diversas identidades permitiram marcar as inúmeras diferenças e ressaltar o que é comum a nós.

Ionei Dutra

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VOX


Reintegração . Por

ENTREVISTA

SUILA CAMARGOS

A APAC (Associação de Assistência aos Condenados) é uma entidade civil, sem fins lucrativos, que visa recuperar os condenados à prisão e reintegrá-los à sociedade. Em meados de 2005 foi criada uma diretoria para instalar uma unidade da associação em Frutal, mas só em 2010 o centro de reintegração foi inaugurado. Desde então, mais de três mil penitenciários passaram pelo processo de recuperação no município. Atualmente há 230 recuperandos e a Unidade é considerada a melhor do país. O único critério para fazer parte é ser condenado e querer se recuperar. Além da APAC masculina, a Unidade também está construindo a feminina e tem um projeto de um centro socioeducativo para trabalhar apenas com menores de idade que cometeram algum delito. Trata-se de uma experiência que não foi feita em nenhuma outra Unidade. Em entrevista, o recuperando Rodrigo Oliveira Silva, de 30 anos, que esta há três anos na Associação contou um pouco sobre como está sendo sua experiência:

Como era sua vida antes da APAC? R: Era no presídio comum, onde eu fiquei um ano e seis meses, era muito triste, muito desumano a vida que eu vivia, num “barraco” onde moram 45 pessoas, mas cabem somente 15, superlotado. Minha vida era

o trabalho que aqui é feito, quando a gente precisa às pessoas abraçam a gente como se fôssemos da família deles.

Como funciona esse companheirismo entre vocês? R: É quando eu ajudo o meu irmão a enxergar que aquilo que ele está fazendo é errado, é eu ajudar ele em um momento de necessidade, porque a prisão não é fácil, em dias difíceis você precisa de alguém para desabafar.

Você mudaria alguma coisa aqui dentro? R: Quem tem que melhorar somos nós mesmos, mas o que uma vida muito triste dentro da eu mais queria que mudasse, prisão e fora da prisão também. não é aqui dentro é lá fora, é a sociedade pensar que aqui Você poderia me é um tratamento que cuida contar uma situação que de bandidos, que bandido bom é bandido morto, muitos te marcou aqui dentro? falam isso. Todos nós estamos R: Tempo atrás eu tinha buscando a paz mesmo que seja uma filha recém-nascida e ela num lugar de tormenta. estava passando dificuldade. Estava bastante debilitada e Você se considera machucada, tomava aquele leite totalmente reintegrado? daquela lata cara e eu precisei de ajuda. Eu conhecia muita gente R: Essa é uma pergunta muito do crime, quando eu precisei forte, porque essa recuperação é ninguém levou uma fralda. a cada dia, eu não me considero Aí quando a APAC descobriu recuperado. Eu penso que todo que eu estava passando dia eu vou ter que buscar essa necessidade, a Dona Paula recuperação. É hoje que eu (Diretora da Unidade) pediu para vou ter que dizer não para as os recuperandos e funcionários, drogas, para as bebidas e para dentro de cinquenta minutos as coisas erradas à minha volta juntou R$260,00 fora pacotes e o amanhã vai ser outro dia de de fraldas e latas de leite. Então recuperação e de busca. Essa eu tenho muita gratidão com mudança é dia após dia. VOX

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Por

Foto: Samir Alouan

FONTE DA FÉ .

RAFAELA RIBEIRO e VITOR HUGO GIROTTO

A fé se renova da água que nasce da terra massapé de um vilarejo que cresceu no município de Frutal 6

VOX


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o barro e da água que surgem das terras a oeste do município de Frutal, na microrregião do Baixo Vale do Rio Grande, nascem a esperança e a fé de um povoado que cresceu em volta da Mina Santa e a tradição de peregrinação que movimenta enorme quantidade de devotos à uma caminhada de quilômetros até o local sagrado. A crença começou em 1961 quando Maria Conceição Aparecida ou Maria da Mina Santa, como é chamada Dona Maria, andava no meio dos arbustos que circundam a nascente e ouviu o chamado de uma voz: “Quando eu cheguei naquela fonte, eu vi uma mulher morena, eu nunca vi outra pessoa que parece aquela senhora...”Ela falava: venha! Falava que eu fizesse alguma coisa e era para me banhar naquela fonte”, relata Dona Maria. Sem demora, banhou-se nas águas que brotavam do terreno. Após o episódio relatado, Maria afirmou ter sido curada das suas crises de dor de cabeça. Jerônimo Bernardo, irmão de Dona Maria, em entrevista ao documentário Água Santa: a fé que brota da Mina, disse: “Nos momentos de crise (ela) fugia para o meio do mato. Um dia, um irmão acompanhou ela naquela hora de crise e ela chegou até essa bica. Ela disse que ouviu uma zoada igual enxame de abelha, que cobria a cabeça dela. Ela lavou a cabeça nessa água e falou assim: isso aqui é uma água santa”.

A tradição da romaria A peregrinação de fiéis tem pico no período do dia de Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro, e feriados, segundo Dona Maria. Os romeiros, não só das cidades que formam a região como também de diversos lugares do Brasil, deslocam-se para receber as graças das águas e curar suas aflições. Olinda Silva de Abreu, irmã de Maria, conta como começou e evoluiu a tradição dos peregrinos: “Ela falou que tava curada. Todo mundo ficou curioso e perguntava a

ela e ela contava o jeito que foi e foi vindo as pessoas na água. A gente pensava que aquilo era mais uma loucura dela. Mas aí viu que não era, por que ela mudou o comportamento”. Segundo pesquisa da professora Lucia Elena Pereira Franco Brito na tese de doutorado Pulsações Utópicas E Distópicas Nos Imaginários Urbanos: a cidade de Frutal (MG) nas trilhas dissonantes da história, o território da mina se encontrava dentro do terreno pertencente à fazenda Três Barras. Diante da popularização da romaria, Miguel Batista, proprietário do terreno chegou a colocar à venda. Porém, com a ajuda e donativos dos romeiros Dona Maria comprou Água Santa: “isso daqui o povo doou para ela”. A comunidade conta com uma pequena capela construída com contribuições dos próprios fiéis e mantida pelos mesmos. Deste modo, formou-se o pequeno povoado cercado de árvores centenárias, a água sagrada e a terra pisoteada por centenas de histórias de redenção.

Foto: Samir Alouan

A santidade de Maria

zava pela solidariedade. “Eu via as pessoas receberem graça e ficava emocionada”. Assim disse Maria, que sentia necessidade de cuidar daquelas pessoas. “Aquilo me incomoda com a segurança daquele povo pra mim cuidar, pra mim zelar”. A assistência dada pela senhora da Mina Santa se dá por cuidados com saúde e alimentação, mas conta com o apoio de profissionais que tratam dos romeiros e recolhem as muletas deixadas em gratidão às graças alcançadas.

Maria nasceu numa família pobre e trabalhava desde pequena para ajudar a sustenta-la. Cresceu ao lado do pai que pre- Ponto de encontro dos romeiros ao final da caminhada na capela de Água Santa.

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Deriva

Trocas e mudanรงas marcam a

Foto: Mariana Martins 8


cigana

as vivências dos povos ciganos

À

s margens da rodovia MG255, na cidade de Itapagipe-MG, notam-se três barracas armadas. Um cachorro amarrado a uma árvore, galinha dentro de uma gaiola improvisada, uma criança de aparentemente três anos brinca dentro de um balde com água ao lado da

irmã e da mãe. Dentro da barraca, a avó com seu cigarro de palha e um senhor. Cassiano Alves da Silva, 63 anos, chefe da família. Nascido em Coqueiros, povoado localizado no município de Itapagipe-MG, ele conta sobre a sua tradição cigana. Descreve ainda que a bisavó da sua mãe era índia, pegada no laço. Já a avó de sua mãe

era baiana, acrescenta. Sua esposa e filhos são ciganos legítimos, já os dois genros, uma nora, os netos e sobrinhos são mestiços. Sobre os estudos, Cassiano lembra que teve uma infância difícil. Foi aprender a ler e escrever quando já era adolescente. Tempos muito diferente dos atuais, já que os filhos e netos frequentam a escola regular.

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Por

HIGOR LEONEL PEREIRA e JACKLINE SOUSA

refere sair para acampar em período de férias dos filhos e netos, ou caso contrário, as crianças precisam ficar na casa da avó para não perder aula. “Temos nossas casas onde ficamos a maior parte do tempo por causa da escola, pois hoje é mais fácil estudar, mesmo sendo um cigano”. Cassiano tem um primo que é delegado em Brasília-DF e também tem uma sobrinha que trabalha no Posto de Saúde da cidade onde estão acampados atualmente. Eles vivem de troca. Trocam uma casa por outra, cavalo por moto ou carro. Diferente do imaginário popular as ciganas não trabalham com previsões, dessas oferecidas nos centros mais movimentados por meio da leitura da mão de quem passa. Na maioria do tempo, elas preferem a ocupação dos afazeres diários assumidos pelas donas-de-casa. A culinária é variada, mas só conseguem consumir os pratos típicos quando estão em casa. “Gostamos de kolaco (pão cigano), sopa cigana, braço cigano, (o pão cigano bem temperado, recheado com carne moída, presunto e muçarela). Na dispensa da família não pode faltar carne de porco, frango e vaca. Utilizam muito as especiarias e os temperos de diversas partes do mundo. Frutas, nozes e amêndoas estão sempre presentes em diversos doces. Também são utilizados ovos, manteiga, queijo e frios. As massas são de fabricação caseira e os pães são feitos ritualisticamente para serem oferecidos como alimento para o corpo e o espírito. 10

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A simplicidade do povo cigano é retratada no ambiente que vive.

Tem alguma diferenVocês têm tradição de ça nas tradições de uma dança? determinada família de C.A: “Sim, tem umas danciganos para outra? ças que é o xote e a rancheira. Cassiano Alves: “Tem algumas coisas que talvez sejam diferentes, mas tem muitas que não são. Tem o cigano baiano, que são mais ligados à tradição, usa suas vestes (características), vestidos de saia rodada, joias e cabelo armado; homens de botas, camisa, cordões de ouro e chapéus. Tem o cigano tacheiro, mais caseiro e que faz trocas (animais, casas, material e etc...)”.

A rancheira não é qualquer um que dança, se vocês virem as pessoas mais novas não conseguem dançar como quem era da minha época... É difícil achar gente que dança a rancheira marcando os passos igual as pessoas mais velhas”.

Vocês ensinam para os mais novos, para não perder a tradição? C.A: Ensina, mas os mais no-


Foto: Mariana Martins

vos tá meio bobo, não tá querendo aprender. Os casamentos nosso vai três, quatro (dias), e até uma semana de festa, e geralmente é celebrado na igreja mesmo, com o padre, normal. Só as nossas festas que têm dias a mais, e nós dançamos todos os dias. Quando meu genro casou, eu aluguei um barracão de circo que ficou para a história. Fechou o trevo todinho com o barracão de circo, de longe via aquele barracão. Nos dias que nós vamos fazer as festas aí nós vamos tudo na tradição do cigano. Nós compra roupa, manda fazer, faz na mão mesmo. A

gente costura na mão mesmo, que você olha e fala assim: não, mas isso aqui foi feito na máquina!”

E como vocês fazem para tomar banho? C.A: Tomamos no rio ou na casa de parentes. Quando está frio colocamos os panos e fechamos as barracas (completou ele ao justificar como faz em períodos em que as temperaturas estão mais baixas). criados ao longo do tempo. Quando perguntado sobre

preconceito, Cassiano afirma que até hoje sente na pele tratamento diferenciado puramente por ser cigano. Ainda segundo ele, antigamente essa situação era pior e que a culpa lhes caia por tudo o que era furtado em volta de onde se instalavam. Passaram por vários constrangimentos e, nas escolas, as crianças eram excluídas. Cassiano conta com orgulho que está cotado por um diretor cinematográfico estrangeiro para participar de um documentário sobre a vida cigana. Ele afirma que esse diretor deve vir com sua equipe em meados de agosto para que possam viajar entre as cidades vizinhas de Itapagipe-MG, para a capital mineira Belo Horizonte e para Goiânia a fim de registrarem a realidade cigana. Para ele, o documentário será uma iniciativa importante visto que, segundo o senhor Cassiano, as pessoas, muitas vezes tem algum receio de se aproximar dele e de sua família. Isso seria atribuído, em seu argumento a uma visão errada, ligando a imagem de seu povo a de um povo ladrão, ou que roga praga em cima de outras pessoas. Tais coisas que, pelo menos em sua família e famílias ciganas que são de seu convívio, não acontece. “Isso pode acontecer por causa das coisas que talvez aconteciam no passado” acrescenta. Para ele, esse documentário e pessoas que contem suas histórias são passos importantes, já que assim, a sua cultura e seu modo de vida fica cada vez mais conhecido e livre desses estereótipos criados ao longo do tempo. VOX

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As mãos em puro cal Por

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JUNIOR HEITOR e THAÍS FONTES

No ano de 2013 o município de Fronteira é testemunha da chegada de um pedaço de terra, plantar e produzir

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região do Triângulo Mineiro se destaca pelos latifúndios e a economia agrária, mas parte destas terras está improdutiva. Realidade não diferente no Município de Fronteira na Região do Baixo Vale do Rio Grande, que atrai para a região um significativo número de Movimentos e ações para Reforma Agrária. No ano de 2013, um grupo de mais de 100 famílias levantou acampamento do Movimento Sem Terra, na Fazenda Garça, que pertence à empresa já falida Destilaria Rio Grande. O movimento denominado acampamento Rio Grande, liderado pela trabalhadora Rural Rosa Marta 12

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de Souza (50), conhecida pelos produtores como “Dona Rosa”, travou inúmeras lutas para conseguir o registro no Instituto Nacional de Cadastro de Reforma Agrária (INCRA) para entrar no plano nacional de reforma agrária. O advogado Augusto César da cidade de Frutal MG presta assessoria jurídica para o acampamento e diz que: “O processo de regulamentação é muito demorado... e no período pós-golpe o INCRA vem se tornando mais burocrático e inacessível, dificultando mais ainda as desapropriações de terras”. A grande característica do acampamento é a agricultu-

ra familiar, mas diante de tantas dificuldades ainda não se consegue regularizar a situação dos produtores a fim de terem o “Cadastro de Produtor Rural”, obrigando as famílias que precisam se sustentar a produzirem e comercializarem seus produtos de forma informal. Os membros do acampamento são organizados como uma associação, com todas as suas formalidades e rotina. Cada produtor tem uma área equivalente a um alqueire e meio de terra, que planta e colhe variados tipos de produtos, hortaliças, frutas, aves, suínos, bovinos, leite e derivados. Os produtores do acampamento conseguem vender seus


Foto: Junior Heitor

lo só querem plantar

m movimento social dos trabalhadores rurais que lutam para conquistar um produtos aos moradores da cidade de Fronteira, que compram de forma direta os alimentos produzidos no acampamento. Alguns produtores também levam os alimentos na feira livre aos domingos pela manhã na cidade, e outros de porta em porta durante a semana. “As pessoas têm consciência que através da agricultura familiar ajudam a desenvolver o agronegócio da região, e estão consumindo alimentos com menor quantidade de agrotóxicos,” diz um dos produtores. A falta de infraestrutura no acampamento obriga alguns dos moradores a trabalharem para fazendeiros da região e deste

trabalho tirarem dinheiro para investir na estrutura dos “seus” lotes. Uma das dificuldades está na falta de energia elétrica, inclusive, alguns dos lotes possuem placas de energia solar, mas a energia produzida não é capaz de fazer funcionar um sistema de irrigação, por exemplo.

“A luta pela terra é a luta pelo amor, amor em produzir alimentos de qualidade”

sonha ser seu de verdade: “Este lugar aqui só tinha cana velha... e hoje tem Ipê florindo, as mudas de laranja que plantei dando os primeiros frutos, minha horta produzindo. Olha esses pés de pimentão carregadinhos! E diz que aqui não dá pimentão! Será que existe mesmo terra improdutiva? Ou será que algumas terras só não produzem porque estão em mãos erradas?”. E continua: “A luta pela terra é a luta pelo amor, amor em produzir alimentos de qualidade, e com nossas mãos calejadas a gente não vai desistir de lutar para cultivar uma terra que é nossa”.

Dona Rosa faz uma reflexão olhando o pedaço de terra que VOX

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CRÔNICA Crônica da escravidão moderna . Por

VITOR HUGO GIROTTO

Sentado na mesa em frente ao café, Roberto passava o saquinho de açúcar entre os dedos esperando o garçom trazer o expresso duplo e o biscoito no canto do pires, como sempre fazia. O advogado de 56 anos chegava todas as manhãs às 7h, fazia o mesmo pedido e observava o entra e sai de clientes correndo do café para o trabalho. Havia um sujeito curioso que se sentava sempre na mesma mesa ao lado, perto dos arbustos ornamentais na lateral esquerda, naquele dia excepcional faltou e Roberto sentiu a ausência no ambiente. O jornal aberto à frente do defensor público relatava a morte do morador de rua confundido pela polícia com um assaltante, que havia sido assassinado numa loja do centro com 3 tiros frios no peito. O advogado notou que pessoas comentavam vagamente a distância sobre o ocorrido e reservou-se a olhar pro nada esperando o pedido. Nesse momento cruzou o olhar com uma mulher e seu filho, de 10 anos aproximadamente, parados em frente a vitrine observando os doces. O menino não queria sair, então, Roberto, sentado mesmo, ofereceu dois pedaços de bolo a ambos. Olhando de relance de novo o jornal relembrou a história que o acompanharia ao trabalho mais tarde durante a defesa do policial; O jovem entrara na loja para comprar o presente de dia 14

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das mães de dona Ana, 65, também moradora de rua, quando foi atingido. A mãe recusara o presente, como relatou aos prantos à polícia, não queria ser um peso a mais, o filho insistira para levá-la junto, mas por fim foi sozinho. Entre o momento em que o jovem olhava a vitrine no shopping e entrava pelas portas de vidro não notou os olhares acusadores de dentro para ele e o movimento com o telefone. Em minutos, a polícia estava em cima e ele tentava fugir confuso. Os tiros o derrubaram no corredor enquanto corria. Um baque seco anunciou o fim de sua vida. Roberto, tirando os olhos do jornal olhou para a mulher ainda em pé perto dele, apesar de não convidá-la à sentar, a proximidade ainda era favorável para manter uma conversa. Marta, de 54 anos, contava sobre a casa simples e os cinco filhos que sustentava na comunidade em que vivia. Descendente de escravos, ela se lembrava e estampava o orgulho das histórias do povo no rosto, contou as histórias sobre a formação de sua comunidade que ouviu enquanto crescia sobre a mesma terra que pisaram seus antepassados quilombolas. Mas, esse mesmo rosto carregava marcas do sol, do trabalho duro e de uma escravidão disfarçada pelos tempos modernos. Enquanto conversavam, o empresário de uns 35 anos que sempre estacionava o Audi TT

Coupé no lado oposto da via e caminhava inquieto em direção a mesa ao lado de Roberto no café chegou. Apressado como sempre, não deu o rotineiro aceno de leve com a cabeça, dessa vez surgiu com o olhar pesado sobre a negra que se dedicava às memórias do passado. Dona Marta sentara no lugar do rapaz. O vuco-vuco seguinte foi constrangedor para a senhora que reverberava perdão com a voz carregada. Roberto não conseguia acalmar o homem que começara a jorrar insultos, então ligou para a polícia. Marta foi chamada de suja, preta, macaca e prostituta e o filho envolto em fúria enfrentou o rapaz minutos antes da polícia chegar. Não houve tempo para o advogado notar a semelhança entre a realidade distante do jornal com o decorrer dos próximos eventos. O menino foi ameaçado e jogado no chão antes de conseguir se esgueirar e fugir. Foi atingido na perna enquanto corria, tropeçou e caiu contorcido de dor na rua fria. Foi levado ao hospital. Na manhã seguinte o advogado se sentia culpado por chamar a PM, nesse dia decidiu trocar o café pela visita ao quarto 07 do Hospital Santa Mônica. Quando se despediu da mãe com um abraço e com uma sacudida no cabelo, do garoto, pode ver as correntes dos antepassados ainda presas às mãos do menino.


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Sérgio Gomes

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Tire o veneno da sua mesa! Por

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TAHINE NETTO e MARIANA MARTINS

Comunidade que sustenta agricultura desbanca argumento de que a produção com agrotóxico é saída possível para diminuir a fome no mundo.

Foto: Tahine Netto

Alimentos produzidos pelo CSA são distribuidos em creche.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) para a Alimentação e Agricultura, no ano de 2050 a população mundial chegará a ultrapassar o número de nove bilhões, sendo que 70% residirá na zona urbana. Dessa forma, a demanda de alimentos pode aumentar em 60%. A competição por água, terra e comida ficará ainda mais acirrada. O argumento de que a produção com agrotóxico é a solução para diminuir a fome no mundo devido a sua capacidade de produção em larga escala, ganha destaque 16

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com um diagnóstico alarmante como este. Mas, outras formas de produção estão buscando seus espaços e desconstruindo o discurso que incentiva o uso de veneno, como é o caso da agricultura familiar. De acordo com a ONU, a agricultura familiar produz cerca de 80% dos alimentos consumidos e preserva 75% dos recursos agrícolas do planeta, tendo capacidade para colaborar na erradicação da fome mundial e

trazer uma segurança alimentar sustentável. A coordenadora da pós-graduação em Agroecologia do Cerrado da UEMG Frutal, Vanesca Korasaki, explica que o uso do agrotóxico em larga escala é utilizado para produção de alimentos para os animais e exportação, as chamadas commodities. A verdadeira responsável pela produção dos alimentos que estão em nossas mesas é a agricultura familiar. Uma dessas iniciativas é a Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) formada por pessoas que


procuram uma alimentação agrícola. O objetivo, segundo o saudável e sem agrotóxicos, por site oficial, não é ter lucro, mas meio de consumo de alimentos garantir o cultivo dos alimentos orgânicos.

A CSA A CSA de Frutal foi criada em 2016, mas o conceito surgiu no Japão e se introduziu na Europa em 1960. Atualmente, o município conta com o apoio de 85 co-produtores que buscam às terças-feiras na Creche Pequenino de Jesus uma cesta de produtos sustentáveis cultivados em uma horta próxima ao pedágio, ao lado do quilômetro 22, em direção a cidade de Fronteira. Os agricultores responsáveis da CSA Frutal são o Sr. Lucas Morais e a Sra. Sirlene Soares (Toninha), mas os co-produtores uma vez por mês se reúnem no dia da vivência para ajudar a plantar, decidir quais alimentos serão cultivados e cozinhar receitas com os produtos orgânicos. A filosofia da CSA consiste em manter um grupo fixo de consumidores que se comprometem com o custo da produção

Uma vez por mês se reúnem no dia da vivência para ajudar a plantar, decidir quais alimentos serão cultivados e cozinhar receitas com os produtos orgânicos.

tem que consumi-lo durante a semana, então às vezes, quando você pensa em almoçar em um restaurante, lembra que tem um monte de comida na sua casa e isso te força a fazê-los para não perder. Essa é uma maneira que não é tão correta, mas força a gente a cozinhar.” A respeito de como seria o convite para as pessoas se integrarem a CSA, o co-produtor pontua que é essencial o conhecimento da lavoura onde tudo se inicia, já que os colaboradores possuem a função de visitá-la e ajudar na produção uma vez por mês. O co-produtor que desejar fazer parte e ainda houver vaga disponível irá pagar por mês na cesta inteira R$190 e meia cesta R$ 85. A cesta contém em torno de sete itens, devido a Teoria dos Setênios, que correspondem aos ciclos da vida. Porém, o número de alimentos cultivados pode variar de sete itens em época de escassez, até 20 itens na época de fartura.

independente se é tempo de escassez ou fartura. Em entrevista com o co-produtor Fred Alves, funcionário público da UEMG, as diferenças entre um produto da cesta e do mercado, ele afirma que são perceptíveis no sabor e na diferença visual, visto que o produto sem agrotóxico é de tamanho menor e não tem um formato perfeito. Até mesmo sua prática alimentar passou por transformações devido a este projeto: Saiba mais no site: http:// “Hoje eu cozinho mais. Como agroecologiafrutal.org/csa-fruvocê compra aquele produto, tal/

VOCÊ SABIA? Jhansley Ferreira da Mata, docente da UEMG-Frutal, iniciou o projeto de extensão da implantação da horta agroecológica na APAE. Este plantio ainda é mantido pela própria instituição por meio dos funcionários e alunos do local. Os produtos são produtos 100% orgânicos e não utilizam nenhum tipo de agrotóxico, somente adubação verde, o que não é prejudicial para saúde de quem consome e nem dos alunos especiais que cuidam dela, sendo uma terapia para eles. São plantados alimentos como couve-flor, pepino, repolho, beterraba, entre outros. Um fato interessante é que este projeto vem se expandindo. Já foi executado na APAC, e neste ano, na Escola Polivalente. Jhansley deixa algumas dicas para quem está interessado aderir este projeto: “Deve-se planejar o modelo da horta e a espécie que irá plantar. Levando em consideração o espaço, condições climáticas, solo, palatabilidade das pessoas e plantas ou sementes que encontram na região. Em seguida fazer um curso ou procurar um profissional da área para tirar dúvidas. Assim, poderá cultivar, produzir um alimento de qualidade.”

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TERRA QUE DEMARCA

A luta da comunidade quilombola da serrinha para ter suas terras reconhecidas Por 18

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CAROL EDUARDA


Um pedido de socorro de uma jovem do sorriso tímido, das palavras simples e dos trejeitos desengonçados foi o que nos levou a conhecer a comunidade quilombola da Serrinha, localizada na Quineira. Natália dos Reis Oliveira, uma jovem que luta pelos direitos da sua comunidade contou no II Simpósio Ambiental da UEMG, no dia 24 de maio, um pouco da luta que seu povo enfrenta diariamente para manter suas terras. Nascida e criada no Quilombo, ela sonha com o dia em que poderá dormir tranquila sem que os do-

mas estar subsidiados por políticas públicas do governo. As pessoas que hoje moram na comunidade enfrentam algumas dificuldades, entre elas a pressão dos fazendeiros para que desocupem as terras que por direito são deles, mas que ainda não faz parte das comunidades reconhecidas pelo decreto 4.887. Apenas conseguiram cumprir a primeira etapa de todo o processo, que é o certificado de comunidade quilombola expedido em quatro de dezembro de 2015.

encontramos uma casa simples, mas de alvenaria, com um tanquinho, e o som ambiente não era apenas os cantos dos pássaros, mas sim, as mais tocadas do sertanejo universitário. E as crianças? Bom, havia uma só, que andava de um lado para o outro com seu smartphone. Ainda na casa simples, encontramos um galinheiro, uma horta com pés de alface, cebolinha, tomate e outros alimentos que eles produzem para a autossubsistência e um porquinho em um pequeno espaço afastado. Encontramos poucas das ca-

Foto: Carol Eduarda

Juvenil mostra as estacas em que os porcos ficavam presos na época da escravidão

nos das terras ao redor tentem roubá-las de seu povo e enfatiza que os quilombolas não querem nada que não seja deles por direito, apenas o mínimo para conseguir sobreviver. Há poucos anos atrás, moravam 15 famílias e mais de cem pessoas em 530 alqueires, mas boa parte precisou se mudar para as cidades vizinhas em busca de trabalho para não passar fome. Hoje a comunidade é restrita a apenas um alqueire e menos de vinte pessoas habitam o local, os demais quilombolas aguardam ansiosamente a demarcação para voltar e ter não somente condições de plantar,

racterísticas que imaginávamos

Comunidade da Serrinha ter um quilombo, mas uma em No caminho de Frutal até o Quilombo, a cada buraco que passávamos naquela estrada de terra, nada me dispersava da ideia de como seria o lugar que estávamos indo, como casas de pau a pique, sem nenhum aparelho de tecnologia, famílias com inúmeras crianças que ficam subindo em árvores e brincando com a terra, pessoas com roupas diferentes, mulheres fazendo artesanato e dança, jogando capoeira e outros milhões de estereótipos que crescemos ouvindo. Mas não foi bem assim,

essencial não faltou, pois todo quilombo tem aquele representante, que é uma das almas da comunidade, e essa é o senhor Juvenil Paulin de Queiroz, negro, alto e de traços marcantes, nascido e criado no Quilombo. De início se mostrou uma pessoa tímida, que respondia com poucas palavras e nos olhos tinha sua dose de desconfiança. Porém, mesmo assim, ele fez questão de abrir as portas da sua casa, mas isso aconteceu com a ajuda da Marcileia Alves Ferreira, que para eles é uma madrinha, e hoje está como VOX

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presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Em uma conversa totalmente informal, sentados ao redor de uma mesa de madeira, com uma garrafa de café vermelha, tudo muito simples, mas muito aconchegante. “Vocês aceitam café?” e foi assim que ele começou a nos contar suas histórias... “Uai, nossa história bem dizendo é uma coisa de antigamente, o que foram passando pra nóis é o que nóis sabe. Que tinha umas terra nossa, ai os grandão foram tomando posse, teve meus bisavô que foi até ameaçado, ai esses grandão foram tomando conta das terra

seu cotidiano. A única criança no local nos chamou a atenção e fez questão de dividir conosco suas experiências na comunidade, sonhos, alegrias e um pouco mais. Com uma personalidade totalmente diferente do restante dos adultos que estavam na casa, Adrian não é tímido, gosta de se comunicar, e mexer no celular. Todo espoleto, ele vai contando orgulhoso que já plantou alface, sementes, e tudo quanto é tipo de verdura e que quando as outras crianças vão para lá, eles brincam de pique e pega e esconde-esconde. Para ele, o mais legal de morar na fazenda

jogos e vejo vídeo no youtube”. O menino de nove anos, aluno do quarto ano na escola que fica no Chapadão, que acorda às cinco da manhã para se arrumar e esperar a perua escolar é também o menino que sonha em casar, ter uma família, uma casa com cerâmica e se mudar para a cidade de Frutal. Mas ele ainda ressalta que na cidade não gosta de jujuba, maria mole e bala de goma; e o que ele mais gosta é acordar e ouvir o barulho dos carros. De alqueire em alqueire, os moradores da comunidade iam nos mostrando um pouquinho da história de seus antepas-

Foto: Carol Eduarda

Adrian brinca nas água do córrego onde as quilombolas antigas lavavam roupa.

e fechando nóis até quase pegar tudo”. O homem de poucas palavras ainda nos disse que aguardam ansiosamente para ter suas terras, uma vez que poderiam plantar para sobreviver e parar de trabalhar para os outros. Com um olhar curioso, andando de um lado para o outro, o garoto Adrian acompanhava toda a movimentação, e aquelas pessoas diferentes invadindo 20

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é subir de árvore em árvore e comer frutos direto do pé, como amora, jabuticaba e manga. Ele que nem sempre tem alguém para essas aventuras faz do celular seu companheiro. Adrian não é tão diferente dos meninos da cidade, quando perguntei qual era seu passatempo preferido, me disse: “Sabe um barracão que tem ali em cima? Lá tem wifi, e eu sei a senha de lá e vou para lá mexer no telefone, baixo

sados contada pelas terras. O garoto ia na frente fazendo perguntas inocentes, mas que ao longo da vida ele vai juntando todas as respostas e construindo a história da sua família com o seu olhar. Os cachorros também nos acompanharam, e de todos, eram os que tinham menos medo de desbravar aquelas terras. Passar por de baixo de arrame, pular de buracos, atolar o pé na lama, quase cair em


buracos ou quase rolar morro abaixo. Conseguimos chegar a antigas casas de moradores da comunidade que foram queimadas por fazendeiros, foças, e um antigo curral. Conhecemos a roda d´água que abastece toda a comunidade, uma cisterna ainda do tempo dos antigos e um trecho do córrego onde as mulheres lavavam roupa. Vestígios materiais de uma história marcada pela resistência de escravos e agora descendentes do quilombo. Na volta dessa grande aventura para a simples casa de alvenaria, a vergonha já não existia mais, estávamos nos sentindo em casa, e aquele senhor que estava tímido e meio arredio, sorria e mostrava sua felicidade por estar nos contando um pouco de sua história. Ele ainda me fez colher cebolinha para que trouxéssemos embora e me ensinou que ele não pode agradecer quando eu agradeço por receber um alimento direto da sua terra, “pois Deus dá para que possamos compartilhar”, explica gentilmente.

estudos com os antropólogos acontecerão possivelmente em setembro deste ano. 3º Passo: Análise e julgamento desse relatório. 4º Passo: Portaria que declara os limites deste território. 5º Passo: Decreto presidencial que autoriza a desapropriação e desintrusão no território que irá pertencer aos quilombo-

las. 6º Passo: Após a retirada das pessoas não quilombolas na terra fica garantido o direito dos quilombolas para ter acesso às políticas públicas são de obrigação do governo para com essas famílias.

Entenda os processos de reconhecimento de uma comunidade Quilombola 1º Passo: A abertura do processo no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para o reconhecimento de territórios Quilombolas, onde a comunidade envia para o Instituto os fatos que comprovem que as terras em que eles habitam pertenciam a escravos. 2º Passo: A elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) feito a partir de um estudo na área. No caso da comunidade da Serrinha, os VOX

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Povos que resistem Foto: Eliete Pereira

Paulo, impedindo que eles pratiquem a caça, a pesca e o plantio. No ponto de vista da professora, o projeto Bolsa Família também é um problema para esses povos indígenas, principalmente na questão de alimentação. A taxa de obesidade cresceu e com isso problemas de saúde como a diabetes. Um bom projeto criado pelo Ministério da Cultura é o Ponto de Cultura, comenta Eliete, que proporciona por meio de políticas públicas o uso da internet nas aldeias, trazendo o índio para o meio tecnológico e globalizado das redes. Essa aproximação traz grande preocupação entre os mais velhos, pelo uso extensivo das novas tecnologias brancas, Índia Kayapó pinta o braço da pesquisadora Eliete Pereira por medo de causar distanciaA imagem do índio foi sendo etnia Xavante do Mato Grosso. mento dos mais jovens da cultuconstruída, por mais de 500 anos Seu dialeto materno é uma deri- ra nativa. de domínio das terras brasileiras vação do Tupi Guarani. pelos portugueses, como sujeiHá uma ignorância muito 700 territórios indítos não civilizados e marcados grande da população “não-indígenas foram reconhecipelas suas diferenças com o ho- gena”, por não conhecer ou recodos, mas mesmo assim mem ‘branco’. O presente mostra nhecer, de fato, a cultura, os cosnão são suficientes uma continuidade histórica assi- tumes e a espiritualidade destes nalada pela violência e opressão, povos. Há um desconhecimento mas também de resistência dos profundo, um imaginário de que Mas a forma de uso é muito mais de 150 povos indígenas que “lugar de índio é na floresta”. Elie- positiva na visão de Eliete, por vivem no Brasil hoje. te acredita que é preciso exor- que segundo ela, o uso de reDe acordo com Eliete Perei- cizar as imagens estereotipadas des sociais, por exemplo, é jusra, historiadora e professora na dos povos indígenas, e dar lugar tamente para fazer ativismo de Universidade do Estado de Mi- ao conhecimento e reconheci- uma maneira muito forte. “Alnas Gerais, os povos indígenas mento de que a cultura desses guns deles possuem contatos inbrasileiros possuem dois troncos povos também se transforma, ternacionais de apoio à questão linguísticos e cada um deles tem porque ainda há uma visão muito das permanências enquanto susuas ramificações com variantes preconceituosa sobre eles. jeitos e povos que tem um saber em seus dialetos, o Tupi GuaraAinda segundo a docente, 700 importante. ONGs internacionais ni e o Macro-Jê. Em um evento territórios indígenas foram reco- têm grande interesse nas causas na UEMG no mês de maio, por nhecidos, mas mesmo assim não dos povos indígenas”, finaliza a exemplo, a palestrante Ababy são suficientes. As cidades têm professora da UEMG. Porã, que é formada em diversas crescido e praticamente engoTexto e reportagem: RAFAELA áreas da educação e da psicolo- lido o território de povos como RIBEIRO e TALITA DIAS gia, comentou que faz parte da da aldeia Brucutu na grande São 22

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Foto: Vitor Hugo Girotto

A pele fala

Um perfil com a índia Ababy Poran Por

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CAROL EDUARDA e VITOR HUGO GIROTTO

Ababy Poran Nhande Yara é psicóloga, diretora de escola estadual, palestrante da UFTM e acima de tudo indígena de etnia Xavante, título que carrega na pele, nos adornos e pinturas que marcam seu corpo. As cores dão a primeira impressão de Ababy. De vestido pink, unhas azuis, corpo pintado e poucas penas: “Eu sou uma pessoa muito discreta”, “Eu não ando fantasiada, eu ando assim, vou na padaria assim, trabalho assim e quero ser respeitada assim”, fala sem relutar.

O homem branco Ababy viveu na tribo Xavante até os 17 anos. Aos sete a Funai levou em torno de 30 crianças da aldeia para uma escola de gente branca (maneira de se dirigir aos não indígenas). Chegando lá se encantou com “a linda mulher encostada no quadro negro”, mas em seguida vivenciou a rejeição dos alunos e o medo que

a linda moça sentia dela. Ababy chegou com o corpo nu, coberto de grafismos e penas, além de não ter o domínio da língua portuguesa, só falava a língua materna, tupi-guarani. Passou um mês sem escrever e sem saber como se comunicar com a professora. “O lugar onde Ababy estudava era assim aquele cantinho, lá no final da fila, beirando a janela... Eu levantava da minha cadeira e ela levantava da dela para correr porque tinha medo”. Ao fim dos 30 dias na escola apenas Ababy, dentre os índios da aldeia, continuou. Ela não podia brincar com as outras crianças e nem comer o lanche na mesma mesa, porque seus talheres eram as mãos. Os colegas de sala a achavam selvagem e tinham medo de serem machucados. “[...] As crianças me batiam, me chamavam de bicho”. “A minha vida na escola passou a se limitar ao que as outras crianças da escola faziam, para ser aceita por aquela professora

que eu achava tão linda”. Um dia a professora se deparou sozinha no corredor com a “selvagem” e ninguém para socorrê-la. Sem ter o que fazer se espremeu com as costas à parede para manter à distância. Ababy imitou os movimentos da professora que começou a olhar com curiosidade e entender que a pequena índia estava apenas tentando ser aceita por todos na escola ao fazer o que eles faziam. No dia seguinte, a linda moça que tinha medo da Ababy levou papel, lápis e borracha e começou a dar aulas particulares durante o recreio. “Foi a minha heroína a vida toda”.

Marcas do preconceito A voz de Ababy era estável até este momento. Aos poucos seus olhos se enchiam de sentimentos doloridos, mas já superados. É costume Indígena presentear no dia do índio, 19 de Abril, com algo que é de valor próprio e Ababy fez o mesmo com os colegas. Como não possuía lápis de cor, coletava os restos que os demais alunos jogavam no lixo e começou a guardar. Na data ela ficou na porta entregando os toquinhos de lápis. “Me bateram, fizeram uma fogueira, me jogaram no fogo e eu tenho as costas toda queimada por isso, falando que eu estava dando lixo para eles.” Ababy nasceu nas curvas vermelhas e negras da cultura Xavante e não abandonou suas origens. Casou-se aos 14 anos e aos 17 foi morar na cidade quando começou a fazer faculdade. Os pés desta mulher pisaram na terra rubra do Mato Grosso antes de procurar a vida no concreto preto das ruas de Uberlândia, mas não abandonou as suas origens na cidade. VOX

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