A arte que se perdeu

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A arte que se perdeu A paixão pelo cinema a partir das memórias de Renato Fróes, desenhista de anúncios de filmes entre as décadas de 1940 e 1980 Texto VITOR PAMPLONA vpamplona@grupoatarde.com.br Fotos REJANE CARNEIRO rcarneiro@grupoatarde.com.br

Da Bahia para o mundo: cartaz de Redenção (1958), primeiro longa produzido no Estado

A

camisa não estava à mão. Do fundo do corredor, abafada pelos azulejos do banheiro, a voz de Renato Maria Deolindo Fróes pedia um pouco de paciência. “Já estou indo, estou trocando de camisa”. Abotoada a blusa, o fundo escuro do apartamento de três quartos na Graça revela uma figura esguia, de cabelos bem penteados e notável cautela nos movimentos. Duas ou três frases depois, o veredicto: um homem afetuoso e educado. Os indícios de sensibilidade são atravessados por lembranças de um ofício perdido no tempo. Desenhista de anúncios de filmes impressos entre as décadas de 1940 e 1980 nos principais jornais baianos – a produção teve um intervalo estratégico nos anos 1960 –, Fróes guarda em casa, numa caixa de papelão, resquícios da memória cinematográfica de uma cidade. São dezenas de cartazes feitos com cartolina, cola, nanquim e tinta guache. Em preto-e-branco, iluminam uma era extinta, quando o cinema era “um marca indelével da sociedade”, o artista se encarrega de assinalar. “Nos lançamentos no Cine Liceu, no Pelourinho, as senhoras iam até de vestido longo”, lembra Renato, como quem arrola as provas de um processo ganho. “Foi um tempo fabuloso. Hoje, os jornais nem publicam mais anúncios de cinema. Por isso digo que é uma arte que se perdeu”. As linhas e sombreados entraram tardiamente em sua vida. Começou a rabiscar formas geométricas aos 18 anos, nas aulas de desenho da última série do ginásio (atual ensino médio). Da carteira escolar ao escritório do Cine Excelsior, na Praça da Sé, poucos dias se passaram. O destino bateu à sua porta em uma aula de datilografia, por acaso também frequentada por um funcionário do ci-

Renato Fróes em frente ao Cine Excelsior, na Praça da Sé. O cinema foi o primeiro a contratá-lo para desenhar anúncios

nema. Da máquina de escrever, o contínuo foi soprar no ouvido de José de Araújo, distribuidor dos estúdios Warner, Paramount e RKO em Salvador, o traço preciso contido nos exercícios feitos por Renato para a aula de desenho. Da visita ao Excelsior, naquele ano de 1939, uma das nobres salas de exibição soteropolitanas, Fróes voltou contratado. Imediatamente, começou a dominar a técnica de reproduzir, adaptar ou criar do nada os anúncios que levariam milhares de pessoas, por algumas horas, a se enfurnar no festim diabólico de som e movimento da sala escura.

LINHA DE MONTAGEM O trabalho começava como artesanato. Quando o distribuidor fora do Brasil man-

dava cartazes, a missão era a menos complicada: desenhar por cima dos títulos originais seus equivalentes em português e acrescentar locais e horários de exibição. Se o estúdio enviava só fotos de divulgação, aproveitavam-se as imagens para compor melhor o anúncio. Mas, vez ou outra, existia só o rolo na sala de projeção, e era preciso fazer todo o resto, a começar pela invenção de um conceito capaz de traduzir graficamente o filme – mesmo quando ninguém no hemisfério tinha assistido. Depois de pronto, o cartaz, que originalmente chegava a ter mais de meio metro de largura, entrava na linha de montagem da imprensa para ser comprimido pela produção industrial. Nas mãos do clicherista,

«Nos lançamentos no Cine Liceu, no Pelourinho, as senhoras iam até de vestido longo» Renato Fróes


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era fotografado – antes do filme fotográfico, o negativo era impresso no vidro –, banhado em ácido e zinco para diferenciar partes claras de escuras, em seguida transferido para uma placa de chumbo, até que, como por mágica, reaparecia numa folha de jornal após passar pela rotativa. Páginas inteiras preenchidas pelos cinemas. Fróes, 87 anos completados no último 18 de maio, enumera suas criações preferidas: Vinhas da Ira, de John Ford, seu diretor preferido; Relíquia Macabra, de John Huston; Cantando na Chuva, de Stanley Donen e Gene Kelly; My Fair Lady, de George Cukor; e Redenção, o primeiro filme baiano, dirigido por Roberto Pires. Títulos cuja grandiosidade, beleza ou pioneirismo são partilhados como se o cartazista tivesse um dedo nas produções. “Alguns filmes têm importância maior ainda para mim porque desenhei os cartazes deles”, reconhece.

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL Justiça seja feita, a ordem mais precisa é a inversa. Antes dos cartazes, vieram os filmes. A paixão pelo cinema, a quem foi apresentado na infância por Charles Chaplin, fez a cabeça de Renato Fróes e muitos de seus contemporâneos ainda quando o silêncio reinava nas telas. O advento do som no cinema, que o crítico francês André Bazin (1918-1958) saudou como crucial para uma arte cujo destino era se aproximar ao máximo da realidade, foi apenas a primeira das revoluções assistidas das primeiras filas. Depois da banda sonora, seguiram-se décadas de educação sentimental em sessões que começavam às duas da tarde, com os cinejornais, e iam até a noite, quando eram exibidos os filmes principais. De uma ponta a outra do programa, o espaço era preenchido por episódios dos Três Patetas, um desenho animado, trailers das produções do horário nobre e, antes das grandes atrações, séries como Buck Rogers no Século 25 (a original, de 1940) e Flash Gordon (dois episódios por semana). “Íamos, eu e muitos amigos, direto da escola para o cinema. Passávamos praticamente o resto do dia lá. Ainda dávamos um jeito com o bilheteiro de ficar para as sessões noturnas, proibidas para menores de idade”, recorda Fróes. O gosto pelo cinema foi herdado do pai, o maestro Sílvio Deolindo Fróes, fundador do Instituto de Música da Universidade Católica do Salvador (Ucsal). Amante dos clássicos, o severo professor não simpatizava com modernices. Tocar violão, instrumento àquela altura cada vez mais popular e atraente aos mais novos, seria sempre “coisa de malandéu”. O jazz, ritmo preferido do jovem cartazista, não entrava em casa a não ser secretamente.

A Flauta Mágica, adaptação cinematográfica da ópera de Mozart dirigida por Ingmar Bergman: paixão em preto-e-branco

Com o cinema, seja lá por qual razão, foi diferente. O maestro rigoroso com o DNA das melodias era fã e frequentador assíduo. Mas ainda um pai precavido. À falta de uma classificação etária para os filmes, Sílvio Fróes assistia aos filmes antes para ver se a trama autorizava-o a levar os filhos – além do caçula Renato, duas meninas, Estela e Anita.

GONGO DE VARGAS

De cima para baixo, Tenda dos Milagres (1977), Uma Noite no Rio (1941) e O Eterno D. Juan (1940): arte com recortes

Se o cinema foi o centro de gravidade de sua juventude, a guerra revolucionou a mecânica de sua vida. Precisamente em 25 de junho de 1941 – a memória humana funciona como caixa registradora em momentos dramáticos –, Renato foi convocado a engrossar as fileiras da Força Expedicionária Brasileira. Após ensaiar a disciplina militar no 19º Batalhão de Caçadores, no Cabula, e no Forte de São Pedro, no Campo Grande, já estava conformado com o embarque para os campos de batalha. Foi salvo pelo gongo disparado pelo ditador Getúlio Vargas, que assinou um de-

creto liberando os casados. Para se livrar do fuzil, Renato casou-se com a namorada. “Foi uma catástrofe. Eu não quis ir para a guerra, mas fui para outra muito pior”. O primeiro casamento durou 12 anos e lhe deu quatro filhos. O segundo, mais duas meninas e uma companheira para toda a vida. Adyr, nove anos mais nova que o marido, que a chama de Dida, ilumina-se ao falar da destreza manual de Renato. Os cartazes estão lá, sobre a mesa, mas o talento sublime a que ela se refere é o de restaurador, faceta descoberta por Renato já em idade madura. Imagens de santos, objetos de porcelana ou argila, todo tipo de escultura. Por suas mãos, ele calcula, passaram mais de 50 peças. Praticamente destruídas, talhadas e até em migalhas, obras aparentemente irrecuperáveis ressuscitaram na ponta de seus dedos. “Ele é mesmo fantástico com as mãos, é o melhor que sabe fazer. Ele tem muita habilidade”, decreta Dida. Como a época dos anúncios dos filmes nos jornais, a era dos reparos terminou. O

tempo não teve razão. A velhice tomou de Renato o controle absoluto das mãos, e a última tentativa de restauro transformou-se numa sessão de estresse. “Um dia, senti que ele não tinha mais capacidade de fazer aquilo”, relata Dida. Renato silencia. Subitamente, cita nomes de cartazistas e diagramadores com quem trabalhou ou o influenciaram. Ângelo Martins, desenhista português que depois substituiu na rede de cinemas de Antonio Phiton, Tischenko, clicherista do jornal A TARDE, e Tosca, velho conhecido do Diário de Notícias. Mais segundos de silêncio. Os olhos paralisados viajam no tempo. A mudez é interrompida por uma descompostura em toda uma civilização: “O lamentável é que a Cidade do Salvador não tem memória histórica. Os cinemas não foram preservados. Liceu, Pax, Aliança, Excelsior e tantos outros. O Jandaia, uma sala de luxo em plena Baixa dos Sapateiros, faz pena. Se você visse o teto do Jandaia, só o teto. Era um espetáculo“. «


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