De quem é a música

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De quem é

A MÚSICA

Enquanto as grandes estrelas da música baiana brilham nos trios, arrastando multidões, os compositores das músicas que elas cantam convivem, sem rancor, com o anonimato Texto VITOR PAMPLONA vpamplona@grupoatarde.com.br Foto FERNANDO VIVAS fvivas@grupoatarde.com.br

Nenel Capinan: “Tudo que faço é pensando no trio elétrico”

Alô, minha galera, preste atenção / Rebolation é a nova sensação! / Menino e menina, não fiquem de fora / Que vai começar o pancadão / O suingue é bom / Gostoso demais / Mulheres na frente / Os homens atrás Rebolation, de Nenel Capinan e Léo Santana

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odos os anos a sensação se repete. Quando o Carnaval começa e os trios elétricos espalham pelas ruas os principais sucessos da música baiana, um grupo de artistas sente um aperto no coração. Podem estar em cima do trio, anônimos em meio aos músicos e convidados, ou com pés no asfalto, perdidos na multidão. Pouco importa se estiverem no sofá de casa, espiando tudo pela televisão. No íntimo, sempre pensam: “Fui eu quem fiz”. O caso não é de egocentrismo. Sem eles, não haveria Carnaval. Os nomes podem ser Nenel, Alain Tavares, Samir, J. Telles, Leonardo Reis, Gilson Babilônia, Clóvis Cruz ou outros. Profissão: compositor. Se não soam familiares, é por uma dessas ironias do destino, que faz de pessoas imprescindíveis à maior festa de rua do planeta ilustres desconhecidos para o grande público. Mas o destino também pode sorrir para quem carrega, às vezes calado, a dúbia emoção de ser pai de um filho famoso adotado por outro. Para Nenel Capinan, 40, sorriu na forma do troféu de música campeã do Carnaval passado, fruto de uma ideia obsessiva que orienta suas composições: ”Tudo o que faço é pensando no trio elétrico, na reação das pessoas durante o Carnaval”, diz o autor da inimitável Rebolation. O sobrenome não é uma coincidência. Nenel – Emanoel na certidão de nascimento – é filho do poeta José Carlos Capinan. O passado tropicalista do pai, autor de grandes


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Tava pensando em nós dois / Buscando um jeito inédito / Pra falar de amor / Nem reparei que o tempo passou / Sonhando, pensando, querendo / Meus olhos caçando você / Pensando, sonhando, querendo / Minha boca mirando você Pensando em Nós Dois, de Samir

Alain Tavares é considerado o principal compositor do axé. Já teve mais de 300 canções gravadas e é autor de vários hits

sucessosdaMPBcomoSoyLocoporTiAmerica, já foi usado para constrangê-lo. “Meu pai, com quem pouco convivi, por morarmos em casas separadas, nunca reclamou. Mas amigos dele já me criticaram por eu ser pagodeiro“. O preconceito é combatido com afirmação: “O pagode é massa. Tem muito pagodeiro envergonhado. Se toca pagode é o quê? Tem que assumir”, brada Nenel, fundador das bandas Parangolé, cuja marca lhe pertence, e LevaNóiz. Ex-frentista, ele chegou a ser tenente da Polícia Militar. Só abandonou a farda após uma chance na Timbalada, onde tocou cavaquinho e surdo. “Carlinhos Brown nem sabe disso, mas quem me tirou do quartel foi a Timbalada. Foi uma oportunidade que me fez redescobrir o interesse pela música”, revela Nenel, que aprendeu a tocar bandolim na infância e fez aula de composição clássica, mas deixou a música de lado por um tempo. A carreira só engrenou com a necessidade de alimentar o repertório do Parangolé, no qual Nenel misturou o pa-

gode com uma estética mais próxima do hip hop: propositalmente, nascia o pagode de protesto, com músicas como Tome Baculejo, que refletem a exclusão social. Criar canções de forma racional, determinando tema e melodia, é algo que dificilmente ocorre segundo os compositores baianos. Grandes sucessos, dizem, costumam surgir absolutamente do acaso. Aos 52 anos e com mais de 300 obras gravadas, Alain Tavares é considerado o principal compositor do axé music. É autor de canções inesquecíveis como Arerê, Levada Louca, Mimar Você (com Gilson Babilônia), Vumbora Amar, Rapunzel, Cadê Dalila (com Carlinhos Brown), Um Namoro a Dois e Na Base do Beijo. Esta última, gravada por Ivete Sangalo, é exemplo de como a coisa funciona. Numa briga com a mulher, Alain a ouviu dizer que iria “dar porrada”. “Na hora falei: pois comigo é na base do beijo. Foi um estalo, em segundos fiz a música”. Compor, por esse método, é nunca desligar. “Digo que fico praticando. Um

Comigo é na base do beijo / Comigo é na base do amor / Comigo não tem disse me disse / Não tem chove não molha desse jeito que sou / Quando amo é pra valer / Quando amo é pra valer / Dou carinho, me entrego / Faço o amor acontecer Na Base do Beijo, de Alain Tavares

gesto, uma frase de alguém, você desenvolve”. Com Rebolation, Nenel diz que estava no You Tube e viu um vídeo com “aquele estilo de dança eletrônica”. “Era o pagode na rave”, vibra o compositor, que não hesitou: pôs na canção o nome da dança, criou duas melodias e mostrou a Léo Santana. Escolheram uma versão e, semanas depois, a música invadiu as rádios. Sucessosencomendadossãomaisraros,masobviamenteacontecem. Há três anos, o compositor J. Telles ligou o computador e começou a conversar com o cantor Márcio Victor. A amizade havia começado pouco antes, numa tarde chuvosa em que J. (de Jorge) chegou todo molhado ao estúdio onde o Psirico gravava seu primeiro disco. No bolso, trazia duas músicas que entrariam no CD. Desde então, os dois se tornaram parceiros. Pelainternet,Márciocomentouqueamãeestavachateadacom J. por causa de Metralhada, de sua autoria. “Ele disse que botava as mulheres para baixo e que eu precisava fazer uma música botando elas para cima, porque a mulher brasileira era maravilhosa, toda boa”. Feito o pedido, com palavras de Márcio, J. Telles varou a madrugada compondo Mulher Brasileira (Toda Boa), grande sucesso do Psirico. Mesmo quem diz gostar de música por encomenda afirma que a criação geralmente é esporádica. “Você encontra pessoas, cada uma fala uma coisa e, quando vê, a música está pronta”, alega Samir, autor de Pensando em nós dois, de Ivete Sangalo.

PARCERIAS Compor, porém, exige paciência. Uma ideia pode empacar meses, até anos. A forma de superar os limites da criatividade é pedir ajuda aos outros, daí as parcerias serem tão comuns. “Você vem com uma ideia, às vezes um pedaço da letra, outras uma harmonia ou melodia. Aí o parceiro completa”, explica Clóvis Cruz, que tem 197músicasgravadas,compostassóouemconjunto,comoPipoca

Para Samir, falta espaço para novos autores da axé-music

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(Araketu) e Eu Quero é Te Amar (Chiclete com Banana). “A gente vai na casa um do outro, faz música toda hora”, diz Gilson Babilônia, parceiro habitual de Clóvis e autor de mais de 400 composições. Destas, 292 foramgravadas,comoAvisaaVizinha(Araketu), Saia Rodada (Chiclete) e Empurra Empurra (Ivete Sangalo). “Duas, três cabeças pensam melhor do que uma”, resume Alain, que tem entre os parceiros recorrentes o amigo de infância Carlinhos – como até hoje refere-se a Brown. A frequência das parcerias, porém, esconde muitas vezes um jogo nefasto em que o compositor, para ser gravado, é obrigado a dividir a música com o artista. O assunto é delicado: ninguém aponta nomes. Mas J. Telles, candidato a autor da música do Carnaval deste ano com a extravagante Liga da Justiça (Superman), confirma o toma lá, dá cá. “Acontece muito”, ele ri. “Às vezes não tem alternativa. Se não fizer, não grava”. Aos 31 anos, o compositor revelação do pagode baiano diz que já desistiu de

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gravar canções por discordar da proposta. “Se não faz bem à minha estima, prefiro deixar a música dar bolor. A gente perde tempo, esquenta a cabeça e a pessoa quer entrar sem botar um A?”, reclama. Mas isso não se aplica a parceiros antigos, que dividem músicas sem grilos. É o que Alain Tavares denomina “chamar para a parceria”. Pode faltar uma frase na letra, mas a música é assinada pelos dois.

DOM Seja a parceria autêntica ou consentida, alguém sempre compõe. Ser bom com palavras e melodias é uma condição inata? O compositor de Carnaval – um artista pop em essência – nasce pronto? Algumas respostasindicamquesim.“Amúsicaéumanjo que sopra no seu ouvido”, poetiza Gilson Babilônia. O parceiro Alain, que lembra de fazer melodias aos 11 anos, diz que está no sangue: “É dom. Não sou músico, não tenho formação. Só ganhei um violão aos 28 anos e as pessoas se impressionam quan-

Superman ficou fraco / O Pinguim jogou criptonita / Lex Luthor e Coringa roubaram o laço da Mulher Maravilha / Liga da Justiça toda dominada / Agora só tem uma saída! / Foge! Foge Mulher Maravilha / Foge! Foge! Com Superman Liga da Justiça, de J. Telles

J. Telles, um dos autores de Liga da Justiça, diz que já desistiu de algumas canções por discordar das propostas de “parceria”

Fruta doce / Fruto dos meus sonhos / Cheira tão madura / Flor de todo encanto / Bago de jaca, manga, pinha / Vou te dar na boca / Bago de jaca, manga, pinha / Vou te dar na boquinha / Tum, tum, goiaba Tum, Tum, Goiaba, de Leonardo Reis e Marcio Brasil

do resolvo a música em dois acordes”. Ser músico profissional, no entanto, também abre portas. Leonardo Reis, percussionista desde os 16 anos, tinha em casa o exemplo do irmão Orlando Costa, célebre percussionista oriundo da Banda Mel, que já tocou com Caetano Veloso e Marisa Monte. “É minha inspiração. Sou músico por causa dele”, reconhece. Ex-Banda Eva, Leonardo foi para Rio de Janeiro levado por Gilberto Gil. “Flora (Gil) me ligou um dia e chamou para morar na casa deles. Eu não conhecia nenhum dos dois, imagine. Tenho muito a agradecer a seu Gilberto”. Enquanto tocava com Djavan e Marisa Monte, ele diz que começou a compor. Por quê? “É uma coisa da música brasileira. É rica, você se apaixona por ela, quer fazer”. Tocar percussão, acredita, foi uma vantagem: “O percussionista não se apropria da música como o músico de harmonia. Ele é mais inventivo, quebra regras. Brown abriu isso para nós”. Com o campo aberto,Leonardotemgravadascercade40

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músicas, entre elas Tum, Tum, Goiaba, por Ivete, Anjo, parceria com Saulo Fernandes, e Pessoal Particular, sucesso de Seu Jorge e Ana Carolina, com quem tem tocado. Sem músicos na família, Samir, 31 anos, chegou ao ofício por tocar cavaquinho e violão, e ter “facilidade” com a língua portuguesa. “Me aproximei do circuito do partido alto nos bairros de Salvador e comecei a compor sambas e escrever letras”. O segredo, diz, é “surpreender quem ouve, sem informações óbvias”. Ainda assim, Samir afirma que só decidiu virar compositor após ganhar dinheiro com sua primeira música de sucesso, A Galera, parceria com Augusto Conceição, Fábio Alcântara, Rayala e Elivandro Cuca. “Antes eu não sabia o que era ter quatro mil reais“. “Financeiramente é bom compor, agregareceitaparaomúsico.Mas,noBrasil,ele tem que economizar. Tem fases que ganha bem, faz turnê, e fases que não ganha nada”, diz Leonardo Reis. Quem está na profissão há mais tempo opina: “Não fiquei ri-

Leonardo Reis acha que compositor que é percussionista leva vantagem sobre os outros: “É mais inventivo, quebra regras”


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O Araketu, o Araketu quando toca / Deixa todo mundo pulando que nem pipoca... / O fogo é fogo! / Esquenta! / Esquenta o nosso amor / O fogo é fogo! / Esquenta! / Esquenta que o Ara chegou... Manda Ver, de Clóvis Cruz, Alain Tavares e Gilberto Timbaleiro

co, mas ganhei o suficiente para fazer casas para dois irmãos, ter umacasadepraiaeumapartamentoalugado.Masaindareclamo. Não ganho o que mereço em direitos autorais, ninguém sabe ao certo como o Ecad funciona”, Alain Tavares alfineta a empresa responsável por arrecadar direitos fonográficos no Brasil. Nenel Capinan, que vive numa casa sem luxo no bairro do Rio Vermelho, especula: “Se eu morasse nos Estados Unidos, tinha ficado milionário com Rebolation. Mas aqui é tudo mal explicado”. Mesmo depois de ver sua Liga da Justiça no topo das paradas, J. Telles continua vivendo na Caixa-D’Água, bairro popular onde cresceu, em uma casa modesta que comprou por R$ 12 mil e ampliou quando se casou, dois anos atrás. Em sua conta, diz, não caem muito mais de R$ 3 mil mensais de direitos autorais.

CIÚME

Ex-cantor do Araketu, Clóvis Cruz tem 197 canções gravadas

Fim de circuito: momento divã. Não bate um remorso no compositorpornãoestar,elemesmo,cantandosuamúsicaemcimado trio? Alain Tavares, que prepara seu primeiro disco autoral para este ano, diz que não. “Fiquei viciado em dar música aos outros. Só Ivete canta umas oito minhas no show. Fico feliz com as pessoas curtindo. Só me reto quando o arranjo acaba a música”. Mudariam alguma coisa na música baiana? Leonardo Reis aponta e dispara: falta aos grandes nomes sair da acomodação. “Passa Carnaval, entra Carnaval e pouco muda. É preciso buscar os artistas novos”. Samir tenta entender a lógica dos empresários, e diz que é difícil uma estrutura vitoriosa arriscar. “Quem faz parte dela cria músicas que, todo ano, fazem o produto render. Se eu fosse dono de banda faria a mesma coisa. O problema é que, por falta de atenção, boas canções de compositores desconhecidos são descartadas”. A Bahia, insiste Leonardo, tem espaço de sobra. “De Super-Homem (do benfeitor Gilberto Gil) a Superman”. «

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