Dias de índio

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CADERNO DEZ!

Dias de vpamplona@grupoatarde.com.br

Sobre redes vazias, a lona azul produz uma luz celeste nas barracas do acampamento indígena do 9º Fórum Social Mundial, erguido tal qual um alojamento militar. Ao meio-dia, seus ocupantes enfileiram-se em busca de comida. Arroz, feijoada, farofa e macarrão para o almoço. No espaço destinado aos índios pela organização do Fórum que agitou Belém [PA] na semana passada, ouve-se mais o barulho de talheres do que de vozes. Convidados para ser os rostos da devastação da floresta, poucos se arriscam a exibir pinturas e adereços fora da programação oficial, que os recrutou para meia dúzia de atos simbólicos. Os que se aventuram fora do acampamento têm olhares não familiarizados com a Babilônia em que se transformaram as universidades paraenses. As pequenas cidades da Amazônia estão no mapa cotidiano de quase todos. O que não está são as multidões, os flashes e a exploração do exotismo. Bente Tembé, 20, mora na aldeia sede da etnia tembé, do tronco tupi-guarani, no alto rio Guamá. Vai ao menos cinco dias da semana à cidade de Capitão Poço, no nordeste do Pará, onde trabalha como digitador da Associação dos Grupos Indígenas das Aldeias Sede e Ituaçu [Agidasi]. O convite para o FSM chegou no e-mail da associação. Os índios receberam ajuda de custo para o transporte – a viagem foi de barco – e tiveram que gastar só R$ 2,50 por pessoa, que dava

“O que mais ouvimos é falatório. Não acontece nada, só promessas” Aiteti Tembé, 16, da tribo Tembé, no Pará ❚

direito ao alojamento e três refeições diárias. Os tembés do nordeste paraense têm ainda outra aldeia, a Ipidho. Nas três, Bente conta que vivem cerca de 400 pessoas. Ter um emprego formal é exceção na tribo: “Nossas principais atividades são a caça e a pesca”. Wyrahu Tembé, 19, cabelos descoloridos como os de um surfista, acrescenta: “E tem as danças e tradições, pintura, artesanato”. Em todas as aldeias, há uma escola de ensino médio que funciona regularmente, segundo eles. Depois disso, quem quiser continuar estudando vai para a cidade. Aiteti Tembé, 16, tem tudo planejado: vai entrar para a faculdade de direito. “Quero ser advogado porque nossa aldeia recebe recursos e não tem quem administre”. Mensalmente, a associação ganha R$ 50 mil da Fundação Nacional de Saúde [Funasa]. O dinheiro é para manutenção do carro, combustível, remédios e alimentação. “Contratamos

SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 3/2/2009

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Padre condena capitalismo

foi ao Fórum Social Mundial, em Belém, para contar histórias de quem vive na região pan-amazônica

um branco para administrar o dinheiro e teve desvio. Agora nós estamos cuidando disso”, diz Aiteti. PROMESSAS – Uma das principais bandeiras do FSM, a preservação da Amazônia e dos povos habitantes da floresta é assunto repetido à náusea pelos líderes indígenas. Para os índios sem função de liderança, no entanto, soam como um disco arranhado. Wyery, 26, da aldeia Tekwahau, veio para o Fórum com os dois filhos pequenos, Aupyahu, um menino de três anos, e Dary, uma menina de dois – os nomes significam “homem novo” e “lua”. “Já falamos muito de desmatamento. A gente é quem mais sofre com isso”, diz com absoluta impaciência. A mulher, seis anos mais nova, pronuncia o nome indígena, incompreensível numa primeira audição, e diz que prefere ser chamada de Edileusa. Divide os dias entre a escola, a produção de farinha e de artesanato. Aiteti, Bente e Wyrahu, os três tembés, indicam estar próximos da mesma indagação após terem participado de encontros para debater formas de impedir a livre atuação de madeireiros e garimpeiros nas reservas . “O que mais ouvimos, no Fórum e em outras conferências, é falatório. Não acontece nada, só promessas”, constata Aiteti. Bente completa: “Isso aqui não vai pra frente, não”. Céticos sobre os resultados do Fórum, os tembés têm outra razão para participar do evento. “Aqui, longe da tribo, estamos todos solteiros”, diz Wyrahu. Com promessas de amor suspensas, os três somem, calmamente rumo à multidão.

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FOTOS ELÓI CORRÊA | AG. A TARDE

CAPA ❚ O Dez!

índio VITOR PAMPLONA

SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 3/2/2009

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8 1 – Aiteti, 16, da tribo Tembé; 2 – Edleusa, 20, da tribo Tecuahan; 3 – Marcha na abertura do Fórum Social; 4 – Wyrahu-Tembé, 19; 5 – Índios da tribo Asurini no campus da Universidade Federal do Pará;

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6 – Representante da tribo Asurini; 7 – Apresentação de índio Asurini; 8 – Marcha no primeiro dia do evento

Conservar a floresta amazônica e proteger as comunidades indígenas será impossível enquanto o desenvolvimento econômico for orientado pelo capitalismo. É o que pensa o padre alemão Paulo Suess, assessor teológico do Conselho Indianista Missionário [Cimi], instituição que na Igreja Católica tem o mesmo papel da Fundação Nacional do Índio [Funai] no governo federal. Suess, que hoje mora em São Paulo, mudou-se para a Amazônia no fim dos anos 1960. O tempo em que viveu na floresta trouxe uma certeza: “O capitalismo depende da expansão. E se expandir para onde? A única terra disponível é a dos índios”. No período de floresta, lutou contra a exploração de bauxita por garimpeiros. A paisagem, diz o padre, lembrava a Macondo descrita por Gabriel Garcia Marquez em Cem Anos de Solidão. “Uma terra arrasada, cheia de buracos, completamente abandonada”. Convidado para o lançamento da campanha “Povos Indígenas da Amazônia – presente e futuro da humanidade” no FSM, o presidente da Funai, Márcio Augusto Meira, não compareceu, assim como outros representantes do poder público. A ausência foi interpretada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica [Coica] como desinteresse. “Estamos desapontados. A idéia era discutir nosso papel nisso”, disse Marcos Apurinã, da Coica. A Funai tem apostado em projetos de desenvolvimento sustentável, nos quais os índios produzem e vendem castanha-do-pará , animais e produtos agrícolas. Padre Suess é cético: “Autossustentável é como a tortura. Você vai retirando, retirando, e só para antes da vítima morrer”. Seus argumentos: “O metro cúbico de madeira custa R$ 30 para ser retirado e é vendido por até R$ 3 mil. Que madeireiro não vai querer? É como acertar na loteria”.


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