Em paz, os palancas vão às urnas

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CADERNO DEZ!

SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 9/9/2008

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JOÃO RELVAS| EFE

NA REAL ❚ Após 16 anos sem eleições,

Angola dá um passo rumo à democracia

Em paz, os palancas vão às urnas VITOR PAMPLONA vpamplona@grupoatarde.com.br

Uma guerra civil que durou 27 anos e matou um milhão de pessoas. Um mesmo partido no poder por mais de três décadas. Um presidente superpoderoso, que governa com mão-de-ferro desde 1979. Uma nação pobre, onde dois terços da população vivem abaixo da linha da pobreza, embora seja uma das maiores exportadoras de petróleo do mundo. As páginas centrais da história angolana abriram espaço na última sexta-feira para um capítulo menos trágico. Depois de 16 anos sem eleições, mais de oito milhões de pessoas [quase metade da população] foram às urnas renovar a Assembléia Nacional de Angola, o parlamento do país. Desde 1975, ano que marca a independência de Portugal e o início da guerra civil, os angolanos só haviam ido às urnas uma única vez, em 1992. O clima era o do conflito armado e o cheiro, de pólvora no ar. O resultado favorável ao Movimento de Libertação de Angola [MPLA], do presidente José Eduardo dos Santos, foi contestado pela União Nacional para Independência Total de Angola [Unita] , principal oposição, que saiu daquela eleição com 40% dos votos, contra 47% do MPLA. Sob acusações de fraude, o armistício eleitoral foi suspenso e o país mergulhou em outra década

GUERRA E PAZ ANTES DAS ELEIÇÕES ANGOLANAS

sangrenta, só terminada seis anos atrás, depois da morte em combate do guerrilheiro Jonas Savimbi, líder da Unita. “Foi um conflito imerso nas manobras da guerra fria, em que as partes reproduziram as tensões entre União Soviética e Estados Unidos. Mas não se pode ignorar que nenhum país africano colonizado por Portugal tenha conseguido a independência sem derramamento de sangue”, afirma o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro [Uerj], Zakeu Zengo, coordenador do Fórum de Angolanistas no Brasil. PODER – A segunda experiência angolana com eleições é precedida por um período de paz inédito na história do país, com assustadoras taxas de crescimento econômico, em média 18% ao ano desde 2006. Dos escombros da guerra civil, além de uma economia galopante, ergueu-se uma estrutura de poder completamente favorável aos vencedores, que consolidaram o controle do governo e dos meios de comunicação – duas televisões públicas e os dois maiores jornais. As eleições não fugiram à regra. Um relatório da organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch, publicado há menos de um mês, expressou “dúvidas sobre a realização de eleições livres e justas em Angola, devido à participação reduzida dos partidos da oposição e imprensa”.

Angolana deposita cédula eleitoral na urna de votação: país vive expectativa de tomar rota democrática

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Os principais partidos angolanos surgiram como movimentos pela independência e lutam entre si desde 1960. Marxista-leninista, o MPLA era ligado à URSS. A Unita, anticomunista, foi apoiada pelos EUA. A 3ª força foi a FLNA, sustentada pelo Zaire [atual República do Congo].

Mai. 1991 Com a assinatura de um acordo de paz em Estoril [Portugal], MPLA e Unita põem um fim formal à guerra civil iniciada em 1975 e declaram o armistício. A suspensão dos conflitos, porém, é só aparente.

As críticas começam pela composição da Comissão Nacional de Eleições [CNE], responsável pelo resultado do pleito. Dos dez membros da CNE, dois foram nomeados pelo presidente, dois são ligados a ministérios e ao partido do governo, três indicados pelo próprio partido e apenas três escolhidos pela oposição: dois pela Unita e um pelos outros partidos. Durante o mês de campanha, a oposição reclamou de pouco espaço no rádio e na TV e da intimidação do partido dominante. ”Sempre que realizamos uma atividade política surgem indivíduos ligados ao MPLA com aparelhos de som ensurdecedores, impedindo a nossa atividade“, relatou por e-mail Adalberto da Costa Júnior, secretário de

Comunicação e Marketing da Unita. Além disso, o governo proibiu jornalistas independentes de cobrir as eleições, assunto que motivou um editorial do jornal português Público, que pediu vistos para repórteres em junho, mas não os recebeu a tempo. Em suas poucas declarações no período, o presidente Eduardo dos Santos negou qualquer ingerência. ”Se países organizados como o Brasil e desenvolvidos como os EUA já registraram fraudes, é ao menos ingênuo acreditar que um país até hoje desestruturado como Angola tenha uma eleição limpa“, diz o professor Zengo. ”Para Angola, isso ainda é um projeto possível só no futuro“. Nos primeiros boletins eleitorais, o MPLA tem mais de 80% dos votos.

Set. 1992

Nov. 1994

São realizadas eleições legislativas, as primeiras da história de Angola. O MPLA, partido governista, sai vencedor e a Unita alega fraude. A guerra civil recomeça e, pela primeira vez, chega à capital, Luanda.

Com forte pressão internacional do Protocolo de Lucasa [Zâmbia], o clima de guerra entre Unita e MPLA arrefece, levando o país a viver uma situação de maior tranqüilidade.


SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 9/9/2008

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CADERNO DEZ!

GIANLUIGI GUERCIA | AFP PHOTO

Petrodólares, diamantes e chineses

Menino em frente a carro com propaganda do MPLA, partido do presidente José Eduardo dos Santos, que aparece no cartaz: onipresença política

Após ‘caos’, eleições são declaradas transparentes

O PAÍS Nome oficial República de Angola

CONGO OC

EAN

Luanda

O AT L Â

N

População 16,9 milhões Área 1,25 milhão de km2

ANGOLA

NTICO

Assolada pela guerra, Angola sobreviveu décadas com ajuda do programa de alimentos da ONU. Sua economia só não foi destruída por causa da indústria do petróleo, a única a continuar funcionando durante o conflito. “O petróleo foi decisivo para o MPLA de Eduardo dos Santos se manter no poder. Financiou o partido e orientou a ressurreição econômica”, diz o pesquisador Carlos Serrano, autor do livro Angola: Nasce uma Nação [Editora da USP]. Desde o término dos combates, a produção na costa angolana deu um salto. Em abril deste ano, o país alcançou a marca de 2 bilhões de barris diários e superou a Nigéria como o maior produtor africano do óleo negro [o Brasil alcançou o nível de 1,9 bilhão em julho]. Desde então, os dois países africanos disputam a liderança petrolífera no continente. A riqueza extraída em alto-mar mudou paisagens na capital Luanda. Condomínios luxuosos, construídos também com dinheiro da exportação de diamantes, contrastam com a pobreza geral. Angola tem renda per capita de US$ 5.600 por mês, o que coloca o país no 129º lugar no ranking global. Mas dois terços da população ganha menos de um dólar por dia, segundo a ONU. “É certamente um dos maiores fossos sociais do mundo”, diz Serrano. Mas o dinheiro do petróleo não produziu só desigualdade. Ele tem servido para o governo reconstruir a infra-estrutura do país, arrasada pela guerra. São estradas, linhas de trem e pontes, empreendimentos em que Angola se associou a empresas portuguesas, brasileiras e, sobretudo, chinesas. Ciente da necessidade de recursos para alimentar sua locomotiva econômica, Pequim tem oferecido anualmente empréstimos a Angola e outras nações africanas. Moeda de pagamento: petróleo.

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ZÂMBIA

Renda per capita US$ 5.600 Principais exportações Petróleo, diamantes, minerais

NAMÍBIA

BOTSWANA

FONTE ONU

DIVISÃO DO PODER O partido do governo, MPLA, é dono de 58,9% das cadeiras da Assembléia Nacional angolana. O maior partido da oposição, o UNITA, tem 31,9%. Confira a Composição do parlamento*

UNITA 70

MPLA 129

%

PRS 6

Os primeiros despachos das agências internacionais sobre as eleições em Angola, enviados na manhã da última sexta-feira, chegaram fervendo às redações dos principais jornais do mundo. Programadas para abrir às 8h30 da manhã [horário de Luanda], zonas eleitorais continuavam fechadas, sem urna ou pessoal de apoio, às 11h. A esta altura, pipocavam na internet as declarações da italiana Luisa Morgantini, chefe da missão de observadores da União Européia. “Desastre completo”, relatou a agência de notícia portuguesa Lusa. “Organização péssima”, disse a BBC. ”Todo o processo, nas áreas em que eu estive, está muito complicado e difícil“, resumiu Morgantini segundo a agência Associated Press. Enquanto isso, o governo mandava avisar que ”estava tudo bem“.

Outros 3 FNLA 5 PLD 3 *Existem 220 cadeiras, mas uma está em aberto FONTE Assembléia Nacional de Angola

EDITORIA DE ARTE / A TARDE

CONFUSÃO – Poucas horas depois, o tom dos relatos virou de ponta-cabeça. Os problemas eram pontuais, a tranqüilidade invadira os locais de votação e inspirara uma nova avaliação sobre o

ponta-pé inicial da democracia angolana. ”As eleições foram transparentes, as pessoas votaram em total liberdade e não presenciamos nenhum sinal de violência durante a campanha", declarou, numa conferência de imprensa a mesma Luisa Morgantini, chefe da missão de observadores europeus. Principal força da reduzida oposição, a Unita pediu novas eleições logo que a votação foi encerrada. O líder do partido, Isaías Samakuva, disse ontem que “não é momento para aceitar resultados provisórios“. Samakuva teme a insignificância política. Atualmente, o governo tem 129 das 220 cadeiras do parlamento, contra 64 da Unita. Se confirmados os resultados preliminares, o MPLA do presidente José Eduardo dos Santos vai ampliar seu domínio na Assembléia Nacional, obtendo perto de 176 deputados. Com maré econômica a seu favor, é pouco provável que ele encontre adversários na prometida eleição presidencial do ano que vem, quando completa incríveis 30 anos no palácio presidencial de Luanda.

LUIS D’OREY | REUTERS

Dez. 1998

Fev. 2002

Dez. 2007

Após quatro anos de combates menos sangrentos, os conflitos são retomados. A Unita aumenta volume de ataques e passa a escolher como alvo até aviões com civis.

Após comprar mais armas e contratar mercenários com dinheiro do petróleo, o MPLA consegue destruir o exército da Unita. A morte de Jonas Savimbi, guerrilheiro líder do movimento, simboliza o fim da guerra.

Depois de sucessivos adiamentos, o presidente José Eduardo dos Santos anuncia eleições legislativas para 2008. Embora não tenha definido data, o governo também promete eleições presidenciais para 2009.

Jonas Savimbi, líder da Unita


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