Jorge Amado Século 21

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«As canoas no Porto da Lenha se agitavam e os canoeiros resolveram não voltar naquela noite para as cidadezinhas do Recôncavo»

surpreendente de histórias talvez contadas por Jorge Amado, é a única resposta.

CANOAS E CATRAIAS A algumas dezenas de metros da Ladeira da Conceição, na direção da Igreja da Conceição da Praia, o Mercado Modelo é outro núcleo da Salvador de Jorge Amado. Sede da Barraca São Jorge, de propriedade do obá Camafeu de Oxóssi – que aparece nos livros e realmente existiu –, “o Mercado Modelo era um mundo, onde ao lado do peixe fresco, da carne-de-sol, da alva farinha de mandioca, da pimenta-de-cheiro e da pimenta-malagueta, do azeite-de-dendê, das frutas inúmeras, funcionavam as barracas de comida e as de artesanato. Figuras pitorescas da cidade ali tinham seu habitat, exibiam sua picardia, seu saber, sua arte”, escreveu o romancista. Testemunhas da história, velhos pescadoresdaRampadoMercadorefletemodeclínio no comércio local. “Era caixa, peixe, gente pra todo lado. Acabou tudo”, diz Florisvaldo Oliveira, puxador de redes desde 62,hojeumdosoitoounovemoradoresda Rampa, que dormem embaixo de canoas e catraias e nem sempre trazem do mar o suficiente para um prato de comida. No cais da Rampa do Mercado, saveiristas como Guma, de Mar Morto, não são mais vistos. Barcos a motor, que rebocam navios e transportam seus tripulantes, dominam o atracadouro. “O ferryboat acabou com o transporte de carga para o Recôncavo”, culpa o pescador. E arruinou também o Porto da Lenha, em Itapagipe, na Cidade Baixa, de onde os canoeiros partiam carregados para atravessar a baía. Mas o porto, a rampa, o cais ainda veem saltar no mar seus capitães da areia. Personagens subalternos, como todos os preferidos de Jorge Amado, que continuam a habitar a Cidade da Bahia. «

Mar morto (1936)

O mar do Porto da Lenha: parque de diversão dos garotos da Cidade Baixa

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«Parecia um velho sobrado como os outros, apertado na Ladeira do Pelourinho» Suor (1934)

Texto VITOR PAMPLONA vpamplona@grupoatarde.com.br Fotos THIAGO TEIXEIRA thiagoteixeira@grupoatarde.com.br

O que resta da cidade que inspirou o romancista baiano e que foi imortalizada em seus livros? A equipe de Muito percorreu paisagens que saltaram do real para a ficção

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SÉCULO 21 MARA MÉRCIA / ARQUIVO A TARDE

O Pelourinho, coração cultural e histórico da velha Cidade da Bahia


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«Terreiro de Jesus, tudo misturado na Bahia, professor. O Adro de Jesus, o Terreiro de Oxalá, Terreiro de Jesus» Tenda dos Milagres (1969)

A meia-lua do capoeirista mestre Luís no Terreiro de Jesus: quase um Jubiabá

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m 1944, Jorge Amado sentou-se em frente à máquina de escrever para criar um guia turístico de Salvador. Um guia não convencional. Bahia de Todos os Santos – Guia de Ruas e Mistérios é uma reunião de crônicas de costumes, conduzidas pela descrição da cidade. Ao estranho que a desconhece, o livro instrui: “A Cidade da Bahia se divide em duas: a Cidade Baixa e a Alta. Entre o mar e o morro, a Cidade Baixa é do grande comércio”.Bem,aCidadeBaixadeixoudeser a do grande comércio, que lá minguou, subiu o morro e se espalhou. Mas a explicação prossegue, falando da noite silenciosa, casas comerciais fechadas, saveiros de velas arriadas. É quando “a Cidade Alta movimenta-se para os cinemas, para as festas, para as visitas”. Meio século depois, casarões foram demolidos ou viraram ruínas. Não há mais saveiros e

os cinemas estão quase todos trancafiados nos shopping centers. Mas alguns mistérios sobrevivem na velha Bahia. Na semana em que Jorge Amado completaria 98 anos, Muito homenageia o escritor nascido em 10 de agosto de 1912 com um passeio pela Salvador de seus livros em pleno século 21. Ruas, praças, bairros e personagens que formam uma cidade dentro da cidade e que, antes de despertarem nos livros, são reais.

CORAÇÃO De todos os recantos de Salvador que aparecem na obra de Jorge Amado, nenhum tem mais importância do que o Pelourinho, “o coração da vida popular baiana”.Suasladeiras,igrejas,botecosesobrados testemunharam o velório de Quincas Berro d’Água, esconderam a misteriosa Tenda dos Milagres e abrigaram as prostitutas lideradas por Tereza Batista.

Os casarões do Tabuão, bairro da Tenda dos Milagres, que faz ligação entre o Pelourinho e o Santo Antônio Além do Carmo

“Toda a riqueza do baiano, em graça e civilização, e toda sua pobreza infinita, todo seu drama e toda a sua magia”, escreveu o romancista, “nascem e estão presentes nesta antiga parte da cidade”. Ainda hoje, imerso nas polêmicas em torno de uma nova revitalização, o Pelourinho tem um centro nevrálgico: o Terreiro de Jesus. É onde ficavam as pensões estudantis, onde se armava o ringue de boxe para Antônio Balduíno em Jubiabá e onde sua tia, Luíza, aprontava o tabuleiro para vender mungunzá e mingau de puba. Há décadas, haja turistas ou não, o centro do Terreiro é ocupado por gente como José Luiz Aleluia, 40. “Sou nascido e criado aqui. Fugia da escola para a capoeira”, resume a autobiografia. A profissão virou codinome e valeu a Luiz Capoeira lances de Balduíno. “Tudoénahoracertaenomomentocerto”, expõe as condições para a dança virar luta. “Numa noite, eu estava indo na paz

para casa. Saltei do ônibus e vi uma confusão,pertodeumbar,comumconhecido. Usei minha habilidade como defesa”. Ao contrário de Balduíno, desclassificado de uma luta de boxe por aplicar um golpe de capoeira, foi Luiz quem afastou o adversário.“Opéentrou,comosediznagíria. Ele tombou e viu que não dava”. Para o capoeirista de rua, os baques são outros. A sobrevivência, reconhece, depende da ajuda dos turistas. “O Pelourinho é de fase, tem altos e baixos. Agora, nas férias, está bombando”. Se o movimento enfraquece, a alternativa é buscar o pão em outras praças. “No momento, estou só com a capoeira, mas trabalhei como segurança, com um parente policial. Vigiava loja no Comércio”, detalha.

TOSTÃO Das lojas do Comércio ao Pelourinho, a Ladeira do Tabuão servia, segundo Jorge

Amado, àqueles que economizavam – ou não tinham – o tostão do Elevador Lacerda. Dos fundos da Associação Comercial, ela serpenteia entre fachadas desbotadas até separar a antiga Ladeira do Pelourinho, rebatizada de largo, da Ladeira do Carmo. “A Ladeira do Tabuão, durante as horas do dia, joga gente na Baixa dos Sapateiros e dela recebe gente em busca da Cidade Baixa”, anotou o escritor em Bahia de Todos os Santos. Na literatura, o Tabuão tornou-se célebre por abrigar a mágica Tenda dos Milagres, que reunia pessoas de todos os credos e classes sociais. Os artesãos e santeiros da rua, que noutros tempos fabricavam “indiferentemente imagens católicas, Nossa Senhora e Jesus Cristo, e ídolos negros, Iansã e Ogum”, foram substituídos pelos comerciantes de tecidos e estofados, a ponto de o Tabuão se tornar uma meca dos reformadores de sofá. Mas os sapateiros que deram nome à

«Durante o dia, a vida regurgita, pobre mas ardente, nesta ladeira suja e velha. Durante a noite, um hospital de alucinação. (...) Assim é a Ladeira do Tabuão» Bahia de Todos os Santos (1945)


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«Moças se debruçam nas janelas dos casarões antigos»

A Rampa do Mercado Modelo, que servia de abrigo aos boêmios de Dona Flor, ainda acolhe pescadores sob suas catracas

Baixa continuam lá. Em oficinas precárias e ruínas abjetas. “Reforma-se sapato”, persiste o anúncio na porta, enquanto do lado de dentro dezenas de pares envelhecidos ignoram o esquecimento dos donos. Em lugares como o Tabuão, a Bahia dos livros e da vida real se separa por uma calçada. “O Pelourinho, lugar de mendigos e vadios no século 19, recuperado para o turismo, voltou a ser centro de circulação de uma população negra e mestiça, que afirma sua identidade de forma expansiva”, acredita a pesquisadora Eneida Leal Cunha, especialista na obra de Amado. A paisagem é a mesma dos livros, mas, para a pesquisadora, a questão racial é diluída. “Em Jubiabá, a questão de classe tem preponderância sobre a racial”.

LÁGRIMAS Emsuaobra,JorgeAmadomenciona97 bairros e 46 ruas de Salvador, de acordo

com levantamento do pesquisador Jacques Salah, autor de A Bahia de Jorge Amado, tese que esmiúça a geografia física e social dos livros. Ex-cônsul honorário da França na Bahia, ele expõe o grau de participação da cidade na literatura do baiano. “Ela é personagem, autor, mensagem do romance. Sua função, de cenário natural, é aumentada para cenário vivo”. Salah dedica uma análise aos bordéis e prostitutas, personagens assíduas do universo do escritor. Lembra que, em Tereza Batista Cansada de Guerra, Jorge situa o “vasto e inquietante território da zona do meretrício” da Barroquinha ao Pelourinho, do Maciel à Ladeira da Montanha, do Tabuão à Rua da Carne-Seca – praticamente todo o Centro Histórico. Há casas de luxo, que atraem comerciantes e coronéis de fumo e cacau, e bordéis populares aonde vão boêmios, estudantes e marginais. No primeiro estilo, a casa mais típica era

«Quando pela madrugada saíssem do cabaré, a última dobra da noite da Bahia os atendia nos mistérios do Pelourinho (...), no mar e nos saveiros da Rampa» Dona Flor e seus dois maridos (1966)

a Pensão Monte Carlo, citada em Suor, Jubiabá e Os Velhos Marinheiros. Neste romance, Jorge garante que a pensão de fato existiu, no 1º andar do prédio onde funcionou o extinto Diário da Bahia, no início da Rua Carlos Gomes, perto da Praça Castro Alves. Ali, nos arredores da Montanha, apenas a prostituição popular sobreviveu. Os prédios em ruínas dão abrigo a tragédias, da degradação pessoal a acidentes mais visíveis, como o desabamento que matou uma mulher e feriu outras três pessoas, há um mês, na Ladeira da Conceição. A rua é, há quase três décadas, o endereço de Marinalva Oliveira, 49, segundo a carteira de identidade, mais outros tantos vividos antes do registro civil. Em seu “bar de tolerância”, cercada de boias de navio, Marinalva é amiga, conselheira, mãe e madrinha de jovens prostitutas. “Estouaquihámuitosanos”,desconversa sobre como iniciou sua vida profissional. Ao ouvir o nome de Jorge Amado, sua expressão paralisa. A mão vai à cabeça. Os olhos enchem-se de lágrimas. “Meu grande amigo”, afirma. “Ele vinha muito aqui, mais durante o dia. Sentávamos naquela mesa”, aponta. Chamava-a de Marri. “Conversávamos sobre os problemas da vida, histórias. Ele dizia: Marri, será que vou conseguir publicar isso?”. O que era “isso”? A risada de Marinalva, fonte viva e

MARCO AURÉLIO MARTINS / AG. A TARDE

Capitães da areia (1937)

Marinalva Oliveira, que mantém um prostíbulo na Ladeira da Conceição. Ao lado, a Ladeira da Montanha

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