Paloma não descansa

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SALVADOR DOMINGO 10/4/2011

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Paloma NÃO DESCANSA A cineasta Paloma Rocha dedicou os últimos oito anos a coordenar a recuperação e digitalização de obras do seu pai, o cineasta baiano Glauber Rocha. Paralelamente, também toca projetos pessoais, como o documentário Olho Nu, que conta a história do cantor Ney Matogrosso Texto VITOR PAMPLONA vpamplona@grupoatarde.com.br Foto FERNANDO VIVAS fvivas@grupoatarde.com.br

O

interesse restrito pela obra de Glauber Rocha no exílio,períodode1969a1976,correspondenteà fase menos conhecida de sua produção artística, tem dificultado a conclusão do projeto de restauração dos filmes e escritos produzidos pelo diretor. A análise da cineasta Paloma Rocha é feita após quase oito anos devotados à recuperação de negativos, digitalização de cópias e conservação de um acervo de 80 mil documentos, entre eles correspondências, peças de teatro, poemas, projetos de livros e roteiros deixados pelo pai, morto em 1981. O intervalo de tempo equivale para Paloma a uma “maratona contínua”,semdireitoaférias,ondeocorpoacorpoépermanente, sobretudo nas operações de restauro. “Vou pessoalmente, vejo cada fotograma, não delego porque a responsabilidade é muito grande. As oportunidades são únicas, e, depois, você está lidando com verba pública”. A fotografia de Terra em Transe, a delirante alegoria criada por Glauber para explicar o Brasil, é emprestada para justificar a obstinação. “O filme tem uma luz cinema-novista, estourada, de um país imaginário que é Eldorado. Se não acom-

Paloma Rocha recupera negativos de seu pai, Glauber

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panho, o fotógrafo vai corrigir a luz, e pode corrigir errado”, aponta a cineasta. Tem sido, no entanto, permitido piscar nas sessões de reanimação da obra glauberiana desde que Paloma formou o que define como “uma equipe familiarizada com o cinema de Glauber e o fazer cinematográfico no Brasil”. Capitaneado pelo restaurador digital Fabio Fraccarolli, o time revigorou filmes como Barravento (1960), Terra em Transe (1967), O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) e A Idade da Terra (1977), restaurados em alta definição e lançados em DVD em 2008. Desde o início do projeto, 7 dos 10 longas-metragens realizados por Glauber Rocha foram recuperados. O último foi O Leão de Sete Cabeças (1970), produzido no Congo,cujorestaurofoicusteadopelogoverno da Bahia. Depois, o processo parou. Não há previsão de quando serão recuperados os longas Cabeças Cortadas (1970), História do Brasil (1974) e Claro (1975), curtas-metragens, além da completa restauraçãodigitaleproduçãodeumacópianova em película de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), lançado em DVD em 2002 após ter sido apenas remasterizado. Paloma vai direto ao ponto: “Não tenho patrocínio”. No fim de 2010, a dificuldade para conservar o acervo culminou com a venda de toda obra de Glauber para a Cinemateca Brasileira por R$ 3 milhões. O contrato com o Ministério da Cultura, porém, não inclui direitos comerciais, que continuam com a família do diretor. “A venda é especial porque é para guarda e acesso público. Foi tudo incorporado ao patrimônio cinematográfico do governo brasileiro”, ressalta. A operação representa um fio de esperança para o restauro dos filmes remanescentes. A Cinemateca possui um parque tecnológico especializado na recuperação de obras cinematográficas e teria todo in-


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«O trabalho dele é uma parte da minha vida, não posso me negar» teresse em conservar um patrimônio que agora é seu. Mas, Paloma reconhece, “uma enorme fila do INPS de filmes” aguarda medida semelhante. Além disso, nada é simples na instituição, que tem demandas internas e se situa após o reflexo das mudanças no Ministério da Cultura, afirma Carlos Magalhães, diretor da Cinemateca. Com isso em mente, a cineasta projeta: “Nada impede que consigamos recursos para acelerar o processo”.

PREVISÕES A decisão de negociar o acervo de Glauber contrariou um conselho recebido por Paloma na infância: “Nunca venda, só alugue”, disse-lhe o pai. As orientações incluíam mostrar seus arquivos ao público, “que alimentariam a cultura brasileira por 20 anos”, e recomendava à filha nunca trabalhar na TV, o que acabou acontecendo.Maisumavez,oparecernãolevaraemcontaanecessidade. “Eu era uma pessoa de classe média, pobre, com dois filhos para criar. Precisava trabalhar e encontrei na televisão uma porta”. Foram oito anos na Rede Globo, onde Paloma foi assistente de direção de Jayme Monjardim, Luiz Fernado Carvalho, José Alvarenga

Terra em Transe, de 1967, antes e após a restauração. Ao lado, Paloma e o pai Glauber

TEMPO GLAUBER / DIVULGAÇÃO

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ra organizar pessoas, equipes, recursos. É um grande processo de superação”.

e Jorge Fernando, entre outros. Trabalhou nos humorísticos Casseta e Planeta e Os Normais, em novelas como O Cravo e a Rosa, Pátria Minha e Terra Nostra, e seriados como Chiquinha Gonzaga. As circunstâncias históricas também pesaram em direção à televisão. Poucos anos após Paloma ter começado a atuar profissionalmente,ocinemabrasileiroconheceu Fernando Collor de Mello. Extinta a Embrafilme, estatal que bancava a indústria nacional, a produção foi aniquilada. Paloma Rocha confessa ainda que a decisão tinha carga idealista: “Eu queria descobrir quem matou meu pai”. Não é teoria da conspiração. “De certa maneira, essa grande indústria (a TV) é quem sufoca o cinema autoral. Queria entender o que eles fazem tão bem a ponto de massacrar (o cinema)”. Aprendeu? “Trouxe pra o lado de cá”, ela ri. “Senso profissional, disciplina”. Após dirigir, com o marido Joel Pizzini, documentários sobre a obra do pai que acompanham os DVDs da Coleção Glauber Rocha, Paloma espera concluir este ano o documentário Olho Nu, que conta a história do cantor Ney Matogrosso a partir de 400 horas de arquivo. E voltou a se dedicar a um roteiro, iniciado 12 anos atrás, que considera um projeto especial. “Versa sobre o desejo feminino, a trajetória de uma criança, é uma história livre”, dá pistas. Oito anos de dedicação à recuperação da obra de Glauber não viraram desculpa paracansaço.“Otrabalhodeleéumaparte da minha vida, não posso me negar. Se ficar negando, pode representar a destruição”. Para Paloma, falar de Glauber é vislumbrar “um personagem mítico, catalisador de uma série de coisas, que em 42 anos produziu tudo o que produziu”. “É esse o meu pai. A herança que eu tenho é a obra. E a consciência de ter um pai assim que me dá energia, saúde e força pa-

TEMPO GLAUBER AopassoquepercorreoPaísparabuscar apoio a projetos, a cineasta mantém o olhar focado na Bahia. Um de seus objetivos é viabilizar a restauração de filmes de Fernando Cony Campos, começando por Viagem ao Fim do Mundo (1968). O ponto focal de convergência passa pelo projeto de uma filial baiana do Tempo Glauber, a associação criada por ela, a avó LúciaRochaeoutrosfamiliaresparapreservar e divulgar o legado do diretor. Em 2010, o ex-secretário da Cultura Márcio Meirelles manifestou a expectativa de o projeto sair do papel, numa iniciativa da Cinemateca Brasileira e do governo baiano, com financiamento da Petrobras. O Tempo Glauber Bahia seria instalado num complexo composto pela filial da Cinemateca na região Nordeste e um núcleo de preservação do cinema baiano. A situação, porém, esfriou. De acordo com sua assessoria, o atual secretário, Albino Rubim, afirma que tem “interesse na implantação da Cinemateca Brasileira e Tempo Glauber na Bahia, mas ainda não foi possível tomar nenhuma iniciativa mais concreta sobre essas ações”. Diretor da Cinemateca, Carlos Magalhães diz que a ideia ainda existe. A instituição, inclusive, tem pronto um projeto predial assinado pelo arquiteto Marcelo Suzuki. Mas tudo depende de novas negociações para virar realidade. Paloma opina: “Existe às vezes mais dificuldade psicológica do que política, pois fazer as coisas exige trabalho, mudança de postura. Você querumacoisaenãoconseguepôremprática porque vai demorar 10 anos para aparecer o resultado”. No cinema, é preciso aprender a manipular o tempo. « ARQUIVO FAMILIAR / DIVULGAÇÃO


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