Sob a lei da selva

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CADERNO DEZ!

SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 12/2/2008

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Sob a lei da selva

NA REAL ❚ Ressentimento

étnico e política resultaram em violência no Quênia AFP

VITOR PAMPLONA vpamplona@grupoatarde.com.br

Comparado com países vizinhos, há pouco mais de um mês, o Quênia era a terra prometida. Enquanto Congo, Sudão, Ruanda, Somália e Etiópia convivem há décadas com conflitos armados e até genocídios, a terra natal dos grandes maratonistas seguiu nos últimos anos uma rota de solidez política e crescimento econômico apontada como modelo em meio ao espólio africano das guerras de independência e das antigas rivalidades tribais, fendas permanentes na geopolítica do continente. No final de 2007, decorridos 15 minutos do anúncio da reeleição do presidente Mwai Kibaki, essa reputação começou a ruir. Foi o tempo aproximado entre a divulgação do resultado das eleições de 27 de dezembro e o início de uma onda de violência que se alastrou pelo país, opondo grupos étnicos como os kikuyus, luos, kalenjins e masais. A ignição do conflito, que já matou mais de mil pessoas, teve origem política: derrotado no pleito, o candidato de oposição, Raila Odinga, um luo, contestou a eleição de Kibaki, da etnia kikuyu. Odinga, que liderava com margem confortável no primeiro dia de apuração, foi surpreendido com a reviravolta do oponente e apontou indícios de fraude, exigindo recontagem dos votos. O governo recusou-se a atender ao pedido e o impasse foi instalado. Acusações mútuas de corrupção despertaram ressentimentos contra os kikuyus, que dominam a política e a economia queniana desde a independência da Grã-Bretanha, em 1963. “Há a idéia de que os kikuyus obtiveram essa hegemonia explorando outras comunidades. O presidente só teve apoio maciço nas urnas entre sua própria etnia”, diz John David Bwakili, diretor do Centro de Mídia Independente do Quênia [kenya.indymedia.org]. MASSACRE – Munidos de facões, pedras, arcos e flechas, luos e kalenjins iniciaram uma caçada sangrenta a quem quer que tivesse ancestrais kikuyus. A crise teve

Facões, arcos e flechas foram as armas mais usadas no massacre: ressentimento do domínio histórico dos kikuyus transformado em ódio tribal AFP

Polícia encurrala homem kalenjin acusado de participar da perseguição

“As raízes tribais têm sido exploradas por políticos, o que aumentou o sentimento de desconfiança” John David Bwakili, diretor do Kenya Indymedia ❚

episódios trágicos, como a morte de 50 pessoas queimadas vivas em uma igreja no dia 1º de janeiro. A região do país mais atingida é o Vale do Rift, que ocupa toda a fronteira oeste do Quênia e onde o solo é mais fértil. O banho de sangue no Rift tem uma explicação básica: a disputa por terra. Nos anos 1960 e 1970, kikuyus do centro do país compraram grandes fazendas na região, provocando ressentimentos nos moradores primitivos, kalenjins e masais. “As relações entre economia, política e as raízes tribais têm sido exploradas por políticos, o que só aumentou o sentimento de desconfiança”, explica Bwakili. PRECEDENTE – Na década passada, essa insatisfação provocou uma onda de violência semelhante à atual, desencadeada em condições parecidas. Às vésperas da eleição de 1992, o então presidente Daniel arap Moi, kalenjin que governou o

Quênia de 1978 a 2002, sentiu-se intimidado por uma nascente oposição liderada pelos kikuyus. Pelas mãos da polícia e de líderes tribais, Moi permaneceu no poder ao custo de milhares de vidas, perdidas entre 1992 e 1997. Agora, o massacre em ritmo acelerado exortou os rivais a conversar, o que só ocorreu após mais de um mês de crise e do assassinato de dois deputados da oposição. Mediados pelo antigo secretário-geral da ONU, Kofi Annan, Kibaki e Odinga prometeram agir em suas bases para deter a barbárie. A violência arrefeceu, mas os dois continuam a clamar vitória nas urnas. “Há um pouco de otimismo, mas não vejo Kibaki e Odinga trabalhando juntos”, opina Ory Okolloh, da Comissão de Direitos Humanos do Quênia, não-vinculada ao governo. “Se um acordo não beneficiar ambos os lados, a chama da violência pode acender de novo”.


SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 12/2/2008

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CADERNO DEZ! SIMON MAINA | AFP PHOTO

Kikuyus são ‘fundadores’ do Quênia

cronologia Em pouco mais de um mês, a estabilidade no Quênia se degenerou ❚

Maior grupo étnico do Quênia, com 22% da população, os kikuyus têm íntima relação com o processo de independência do país, que se libertou do jugo britânico em dezembro de 1963. Nas décadas anteriores, emergiu no Quênia o movimento Mau Mau, germe da luta anti-colonialismo liderada pelo kikuyu Jomo Kenyatta, eleito primeiro presidente queniano. Ativista tanto da independência quanto da retomada de antigos direitos tribais sobre as terras, Kenyatta foi preso pelos britânicos em 1951, o que estimulou a expansão Mau Mau. O movimento assumiu gradualmente o controle do país, até a independência ter sido finalmente reconhecida. Em meio à ebulição política da época, surgiram os dois grandes partidos históricos do Quênia, a União Nacional Africana Queniana [Kanu] e a União Democrática Africana Queniana [Kadu], mais tarde integrada ao Kanu, que dominou o país por 40 anos. Só em 2002, com as oposições unidas na Coalisão Nacional Arco-íris [Narc], Kibaki foi eleito e pôs fim ao “reinado” de Daniel arap Moi, governante desde a morte de Kenyatta, em 1978. Apesar de ter elevado a taxa de crescimento de 0,6% para 6,9%, Kibaki não diminuiu sensivelmente a desigualdade social. Prometendo combater os privilégios, Odinga ganhou espaço. É um animal político queniano, que nasceu e sobreviveu nos círculos do poder: filho do primeiro vice-presidente, trocou diversas vezes de partido até se tornar líder do Movimento Democrático Laranja [ODM], dissidência do Kanu.

ONDE FICA SUDÃO

ETIÓPIA N

UGANDA

QUÊNIA

Fonte ❚ Enciclopédia Britânica

OC EA

NO

ÍN

Nairobi

TANZÂNIA

9

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CO DI

27.dez

Os quenianos votam para presidente. Os principais candidatos são Mwai Kibaki, que busca a reeleição, e Raila Odinga ❚

30.dez

Kibaki é declarado vencedor. Odinga reclama de fraude e caos explode ❚

1.jan

50 pessoas são queimadas numa igreja. Governo acusa Odinga de limpeza étnica ❚

5.jan Crianças quenianas recebem alimentação em um campo de refugiados na cidade de Tigoni

Matança já fez mais de 300 mil refugiados, diz ONU

Kibaki propõe governo de coalisão. Odinga não aceita e violência aumenta ❚

22.jan

Kofi Annan, ex-secretáriogeral da ONU, chega ao Quênia para mediar crise LEON NEAL | AFP PHOTO | 29.11.2007

Desde a explosão da violência no Quênia, milhares de famílias abandonaram suas casas em áreas de conflito em busca de abrigo em regiões menos turbulentas. Isso tem ocorrido sobretudo com os kikuyus, alvo preferencial da revolta étnica. Durante as primeiras semanas de janeiro, uma cena se repetiu diversas vezes no Vale do Rift, a oeste do país, onde o banho de sangue foi mais constante. Escoltadas por seguranças ou militares, milhares de famílias de kikuyus e outros grupos étnicos de menor expressão abandonaram a região rumo ao leste do Quênia em comboios de ônibus. Segundo a Organização das Nações Unidas, o número de refugiados ultrapassa 300 mil. Países vizinhos, a exemplo de Uganda, também receberam fugitivos do conflito. De uma forma ou de outra, atrás dos comboios permaneceram casas queimadas e fazendas vazias. É um êxodo em massa jamais visto na história queniana. “Será um trabalho muito difícil restaurar a sensação de segurança a ponto de as pessoas poderem trabalhar e

viver em qualquer parte do país. Em minha opinião, isso vai levar anos”, diz a ativista Ory Okolloh. Para atender refugiados e lutar pela paz, organizações não-governamentais não têm medido esforços. John David Bwakili, do Kenya Indymedia, cita o grupo Concerned Citizens for Peace [Cidadãos Comprometidos pela Paz] como um dos mais atuantes. “É integrado por negociadores quenianos que participaram das conversas pela paz no Sudão e Somália”, explica. Além disso, músicos quenianos criaram um grupo para usar a música para promover a reconciliação. “A Cruz Vermelha lidera os esforços para atender os refugiados, com apoio de grupos locais de ativistas”. ASSISTÊNCIA - Em menor escala, é um trabalho já feito em regiões pobres, como as cinco grandes favelas da capital Nairóbi. Na maior delas, Kibera, onde foram filmadas cenas de O Jardineiro Fiel [2005], moradores convivem com gangues e condições de saúde precárias. Não há sistema de esgoto e os banheiros são

substituídos por sacos plásticos. Mesmo em condições tais como essas, em virtude da estabilidade política conquistada desde a eleição de Mwai Kibaki em 2002, o Quênia é constantemente usado como base operacional de missões da ONU no leste da África. O Programa Mundial de Alimentos [PMA] da organização, por exemplo, que distribui comida no próprio Quênia mas sobretudo em países vizinhos, estendeu sua atuação para as vítimas do conflito. Por razões de segurança, contudo, o ONU solicitou escolta militar para realizar as operações. Uma das piores conseqüências da alta tensão ocorre no Vale do Rift, celeiro agrícola do Quênia, onde a produção de alimentos foi bastante afetada, de acordo com as Nações Unidas. Ory Okolloh, que também é jornalista, compara a situação no país à da abertura de uma Caixa de Pandora, cujo efeito maléfico segue incontornável. Ao menos para a assistência humanitária, a ONU está tranqüila: até o fim de janeiro, gastou só 25% dos US$ 42 milhões disponíveis para as vítimas do flagelo queniano.

Ex-número 1 da ONU, Kofi Annan busca entendimento

24.jan

Odinga e Kibaki se reúnem pela primeira vez

5.fev

Cruz Vermelha afirma que mil pessoas já morreram

8.fev

Negociações prosseguem, mas sem acordo definitivo ❚ Fonte ❚ Arquivo A TARDE


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