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O PERIGO NO USO (E ABUSO) DAS TELAS

O PERIGO NO USO (E ABUSO) DAS TELAS PELAS CRIANÇAS

Especialistas alertam para os prejuízos físicos, psíquicos e sociais que celulares, computadores, videogames e afins podem causar. Hora de rever limites. Não é de hoje que pediatras, psicólogos e outros profissionais defendem mais cuidado e moderação com os meios eletrônicos na infância. Nos últimos tempos, porém, não só rolou uma avalanche de evidências científicas sobre as repercussões negativas desse estilo de vida vidrado nas telas como cresceu a preocupação com o uso cada vez mais precoce e intenso de computadores, smartphones e tablets. E, claro, a Covid-19 bagunçou tudo: com o isolamento social, os limites de tempo na frente das telinhas e telonas caíram por terra. Falo por experiência própria. Tenho gêmeos de 5 anos e ficamos meses dentro de um apartamento com opções de espaço e atividades restritas. O desafio era equilibrar uma rotina sem brincadeiras ao ar livre, com aulas online e os nossos próprios trabalhos e afazeres domésticos. Que atirem a primeira pedra os pais que, em condições parecidas, não liberaram horas a mais de TV ou celular. No fim das contas, quem se deu melhor foram as famílias que conseguiram flexibilizar o acesso à tecnologia sem deixar de lado a interação, o afeto e o mundo fora das telas, retomando as rédeas da situação com a reabertura das escolas e dos espaços de lazer. Mas é inegável que a pandemia atropelou etapas e antecipou tendências. “Desde a entrada da internet discada no Brasil, estamos acompanhando a evolução do uso da tecnologia pelas pessoas. E o que esperávamos ver daqui a cinco ou dez anos aconteceu da noite para o dia”, observa Andrea Jotta, pesquisadora do Laboratório de Psicologia em Tecnologia, Informação e Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Tudo (ou quase tudo) migrou para o universo digital. E, para o bem e para o mal, nos tornamos ainda mais dependentes das telas, especialmente a nova geração. Na visão de Andrea, estávamos a caminho de uma educação digital, aprendendo a utilizar a internet e outros recursos de forma balanceada. Mas a Covid-19 desestruturou essa rota e criou novas dificuldades para controlar o tempo conectado e os conteúdos à disposição dos mais novos.

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da internet. Vai do educador presente fazer valer essa distinção e deixá-la off, incentivando também outras atividades”, recomenda a psicóloga da PUC-SP.

É nítido que a tecnologia já foi adotada como ferramenta pedagógica nas escolas e isso não deve voltar atrás, mas a grande questão (e preocupação) envolve o abuso para fins recreativos. Crianças e adolescentes estão cada vez mais confinados ao entretenimento digital.

“O problema se dá quando esse comportamento concorre com outras atividades, se torna exagerado e ultrapassa os limites da nocividade”, pontua o psiquiatra Guilherme Polanczyk, professor do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Para guiar os pais, entidades médicas mundo afora publicaram diretrizes a respeito. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) orienta um limite de acordo com a idade e as etapas do desenvolvimento infantil.

Para começar, nada de telas antes dos 2 anos. Evelyn Eisenstein, pediatra que coordena o Grupo de Trabalho de Saúde na Era Digital da SBP, explica que, nessa fase, a exposição a telas pode atrapalhar e atrasar processos mentais e cognitivos como a aquisição da linguagem. Nada substitui o contato humano cara a cara. De 2 a 5 anos, o limite para a SBP é de uma hora por dia, sempre sob supervisão. Isso aumenta para até duas horas dos 6 aos 10, e, daí aos 18, chega a três horas diárias.

O que entra na conta Os meios e recursos mais utilizados que fazem as crianças extrapolarem limites saudáveis:

Celular e tablet: não são brinquedos nem deveriam ser dados de presente aos pequenos. O acesso exige regras e controle do conteúdo.

Televisão: parece ser hoje o menor dos males e tem menos potencial viciante, desde que seja assistida de forma adequada e supervisionada.

Videogame: os jogos são os mais associados à dependência eletrônica. Perda do sono, estresse e agressividade estão entre as consequências.

Redes sociais: a promessa era aproximar as pessoas, só que o abuso isola, aumenta o risco de ansiedade e depressão e a exposição ao bullying.

Há limites e limites Achou os limites da SBP rígidos demais considerando estes novos tempos? Há quem defenda medidas ainda mais radicais. O neurocientista Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França, aconselha evitar as telas até os 6 anos de idade.

Em seu livro A Fábrica de Cretinos Digitais (clique aqui para comprar), ele expõe dados e argumentos que impressionam — todos baseados em sua experiência e em estudos que comprovam os perigos de tanta exposição a telas na infância.

Em alguns lares, tem bebê assistindo a cerca de 50 minutos de desenhos animados por dia. Inofensivo? “Isso representa 8% da vigília dele, 15% de seu tempo livre, que deveria ser destinado a observação ativa do mundo, brincadeiras espontâneas, exploração motora e outras atividades. Em 24 meses de vida, são 600 horas gastas”, detalha Desmurget.

A conta é ainda mais alarmante em relação às crianças mais velhas. Pesquisas feitas em países ocidentais apontam que, entre os 2 e os 8 anos, elas dedicam, em média, o equivalente a 1/5 do seu dia às telas. Entre 8 e 12 anos de idade, o tempo de uso recreativo aumenta para 1/3 do período de vigília. quase metade do tempo em que ficam acordados. Fazendo os cálculos, eles chegam a acumular, em média, 2 689 horas, ou 112 dias de um ano, grudados nas telas.

Em outubro de 2021, o Lenstore Vision Hub, plataforma britânica da marca de lentes de contato Acuvue, publicou uma análise de quão dependentes tecnológicas se encontram as crianças de várias nações.

Após revisar e cruzar índices como horas de internet por dia, grau de comportamento sedentário e prevalência de obesidade infantil, foi possível elaborar um ranking por país que dá uma noção de quanto os mais novos vivem frente às telas e os reflexos disso em sua saúde.

O primeiro lugar da lista ficou com os Emirados Árabes Unidos, seguidos pelos Estados Unidos e, logo em terceiro, vem o Brasil, que lidera especificamente o quesito “tempo diário de internet” (mais de dez horas!)

O fato é que crianças e jovens nem sempre têm limites mesmo. “Até certa idade, o ser humano não tem formada uma região do cérebro que dá aquele aviso de que é preciso parar. Essa zona só estará madura entre 20 e 24 anos. Então até lá é preciso que os adultos responsáveis os ensinem e supervisionem”, esclarece Andrea.

Só que a indústria de entretenimento eletrônico e as redes sociais não facilitam as coisas para os pais. A maioria dos programas e dos dispositivos hoje é extremamente intuitiva e envolvente. É fácil aprender a mexer e passar horas e horas conectado ali. Por isso, alguns especialistas defendem a introdução mais tardia das telas.

Desmurget afirma que a exposição precoce pode fazer com que o pequeno se desvie de seus aprendizados essenciais, fechando janelas cerebrais que não se abrirão depois para capacidades como concentração, reflexão e interação social.

“As telas podem privar as crianças de estímulos e experiências essenciais dificílimos de serem recuperados mais tarde”, escreve no livro.

O neurocientista frisa que, salvo ferramentas educativas ou desenvolvidas para ajudar em tratamentos específicos, as pesquisas não comprovam que as habilidades adquiridas no meio virtual se estendam para a vida real. que adquire uma incrível noção espacial dentro de um game não será, em função disso, alguém apto a se locomover melhor numa cidade ou a ter um bom desempenho em atividades do gênero fora das telas.

Desmurget aproveita o ensejo para refutar o termo “nativos digitais”, a geração que seria hipercompetente com a tecnologia. Assim como qualquer adulto, as crianças de hoje precisam aprender a navegar pelo mundo virtual, e, sem instrução, não vão dominar conceitos e práticas básicas na informática.

Mas essa torrente de estímulos não estaria mudando a anatomia do cérebro dos jovens superconectados? Pode até ser, mas o cientista francês faz questão de avisar: “Todo estado persistente e/ou toda atividade repetitiva modificam a arquitetura cerebral. Certas zonas se tornam mais espessas, outras mais delgadas; algumas vias de conexão se desenvolvem, outras se estreitam. Isso é próprio da plasticidade cerebral.

Ou seja, pode haver ganhos mas também perdas nesse processo, e, o principal, esse fenômeno não tem ligação unívoca com os desempenhos cognitivos.

Nesse sentido, Desmurget explica que, em muitos casos, um córtex (a camada superficial do cérebro) mais fino é funcionalmente mais eficiente. “O quociente de inteligência (QI)

do adolescente e do jovem adulto é desenvolvido em associação a um estreitamento progressivo do córtex em inúmeras zonas, especialmente as pré-frontais, que os estudos relativos à influência dos videogames descreveram como sendo mais espessas”, relata.

Sob esse ponto de vista, os games não tornam as crianças mais espertas — estaria mais para o oposto. Convém ressaltar que os prejuízos se acentuam à medida que aumentam as horas de tela.

E englobam, além dos jogos eletrônicos, redes sociais, chats, vídeos… Há efeitos físicos (ganho de peso), psíquicos (ansiedade) e intelectuais (mau desempenho escolar). Tudo depende da idade e da exposição. E o preço que a saúde paga pode ser bem alto.

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