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O Rapto de Sophie

Sarah Gabriel Título Original: Stealing Sophie www.LivrosGratis.net Escócia, 1728 Irresistível Tentação De um dia para o outro, Sophie se vê casada, possuída e aprisionada, por um homem que ela nunca viu antes. Criada em um convento, a última coisa para a qual ela estava preparada era ser mulher e refém de um rebelde atraente e sedutor. Sem escolha, Sophie recorre à única arma a seu alcance: a reputação de moça meiga e boa como uma santa. Ela tenta transformar a vida de Connor num inferno ao criar um ambiente de 1


ternura, paz e harmonia quase celestiais no esconderijo onde ele a mantém cativa, com a esperança de que ele a acabe libertando apenas para se ver livre de sua indesejável influência feminina. Connor, porém, não parece disposto a desistir... e quando seus beijos ardentes e carícias apaixonadas a deixam ansiando por mais, Sophie suspeita de que seu coração já esteja irremediavelmente rendido! Digitalização: Sílvia Revisão: Mel

Capítulo I

Perthshire, Escócia, Primavera de 1728. Connor MacPherson ouviu a aproximação muito antes de eles surgirem. Neblina densa e escuridão ocultavam as colinas e o esconderijo, além de distorcer os sons. Mas o ruído de bridas, o estalar de couro e o tropel de montarias indicavam que o grupo estava perto. A longa espera terminava e o coração disparava. Apertou o punho da espada embainhada. Katherine Sophie MacCarran — Kate — logo seria sua esposa, raptada sem aviso e casada às pressas. A união tinha de ser assim, mesmo que ambos não quisessem. O papel dobrado dentro de sua camisa continha o nome dos dois numa nota assinada pelo irmão dela, proprietário de Duncrieff e chefe do clã Carran. Connor acataria seu pedido. Afinal, havia provocado a captura e a prisão dele, e agora, ouvia-se o boato de sua morte, ocorrida poucos dias antes. A tristeza por isso era mais profunda do que ele queria admitir. Foi em frente, os passos silenciosos sobre o capim e as urzes. Olhou para trás e viu que os dois companheiros o seguiam. As roupas e os rostos ficavam indistintos sob as sombras e a neblina, mas ele viu o brilho das pistolas e das espadas. Os habitantes da região montanhosa estavam proibidos de andar armados. Mesmo assim, os três portavam armas. Escondido atrás de pedras altas, Connor esperou por eles. Pegou a manta xadrez que tinha escondido ali ao preparar o trabalho dessa noite, e colocou-a entre as dobras da sua. Virou-se para trás e indagou em gaélico: — Tudo pronto? — As cordas estão nos lugares e o padre já se encontra na velha capela, nas colinas — Neill Murray, seu ajudante, respondeu. Connor MacPherson observou a neblina. Pronto para saltar como um gato selvagem, ele nem podia distinguir a presa. — Isto não passa de brincadeira. Podemos fazer pior — disse Andrew MacPherson, seu primo. 2


— Não. Já estamos causando problemas demais — Connor declarou. — Existem outras maneiras para se arranjar uma noiva — Neill resmungou. — Não tão rápidas quanto esta — Connor contestou. O barulho estava mais perto. A neblina abriu uma brecha por um instante e ele pôde ver a trilha. Conhecia seu curso pelo vale como a própria mão. Sabia o lugar exato dos dois rios e das pontes. Calculou quanto tempo o grupo levaria para alcançá-las. — Cavalos. Dois montanheses a pé e dois soldados da cavaiaria escoltam a moça e sua acompanhante desde que elas deixaram a casa do magistrado — Neill murmurou. — Isso mesmo. Nós as vimos mais cedo. Depois que jantaram lá, sir Henry as mandou para casa com a escolta — Andrew confirmou. — Gentileza dele — Connor resmungou. — Deixem os homens caírem na água e poupem as damas. Depois, fujam. Se eu for apanhado por roubar uma noiva, serei enforcado sozinho. — Estaremos às suas costas como sempre, Kinnoull — Neill garantiu. Connor ignorou o aperto no coração. Kinnoull. Ele ainda possuía o título, mas não a propriedade. O fato de sir Henry morar em sua casa agora o queimava como ferro em brasa. Cauteloso, fez um gesto para os companheiros e seguiu em frente. Não se abaixaria, pois era muito alto e orgulhoso demais para isso. Escondeu-se atrás de outras rochas e prestou atenção. Ouviu a marcha do grupo e até quase as batidas do coração. Ele ainda podia voltar atrás e escapar dessa loucura. Kate MacCarran era uma jovem excelente e corajosa. Embora a tivesse visto uma única vez, sabia que ela sempre demonstrava entusiasmo e audácia. O próprio irmão tinha confirmado que ela estivera envolvida com espionagem jacobita que apoiava os pretendentes Stuart. Ela seria uma boa parceira para um fora-da-lei, embora muitos afirmassem que Connor MacPherson não servia como marido para mulher alguma. Ele não deveria estar ali, disse a si mesmo. Numa noite como essa nada melhor do que ficar sentado perto do fogo com seu uísque, o violino e os sonhos perdidos. Mas à vontade de prosseguir era como uma fome profunda. O grupo estava mais perto. Connor já vislumbrava os dois montanheses a pé, seguidos pelas mulheres a cavalo e, atrás, os soldados da cavalaria. Ele ainda não queria uma esposa e, muito menos, dessa forma. Mas a nota o prendia à promessa agourenta. Sempre cumpria a palavra dada, mesmo que fosse a um homem já morto. Além do mais, devia esse favor àquele homem e ao seu clã. Duncrieff havia dito que a moça precisava ser roubada e se casar antes que alguém interferisse. Connor rodeou as rochas e firmou mais o olhar. O grupo já se aproximava da primeira ponte. Virou-se para os companheiros e fez um gesto. Neill e Andrew correram para a frente, deitaram-se no chão e pegaram as duas cordas que serpenteavam pelo 3


capim e urzes até o fim de cada ponte. Connor observou os dois montanheses atravessarem a primeira. As mulheres os seguiram, e a uma certa distância vinham os soldados. Já mais perto, Connor podia ouvir o tropel dos cavalos nas pranchas. Também ouvia vozes. Uma das mulheres se queixa va e a outra respondia em tom suave e meigo. O coração dele quase saltou do peito. Voz mágica. A noiva. Tinha certeza disso, e por um instante quase esqueceu que devia se manter oculto. Ouviria aquela voz adorável na sua casa, a cabeça apoiada no travesseiro e, que Deus o ajudasse, nos sonhos. Dizia-se que os MacCarran de Duncrieff possuíam magia passada de geração em geração. Connor não acreditava nessas coisas, mas a voz da moça era atraente e tentadora. Sentiu um arrepio. Irritado, ele concentrou a atenção na tarefa. As montarias das mulheres saíram da ponte e seguiram em direção à outra enquanto os montanheses já pisavam nela. Ao mesmo tempo, os soldados da cavalaria entravam na primeira. Quando as mulheres já estavam isoladas em terra firme, entre os dois rios, Connor emitiu um piar baixo de coruja. Os companheiros sacudiram as cordas retesadas sobre o capim. As duas pontes estalaram e ruíram juntas. Homens vociferavam, cavalos relinchavam e mulheres gritavam. Sophie MacCarran puxou as rédeas, enquanto o cavalo rodopiava. As pontes tinham desmoronado e, com elas, os homens haviam caído na água. Em tal confusão, era impossível saber se estavam seguros ou feridos. Só lhe restava acalmar a própria montaria. A sra. Evans, sua acompanhante, gritava sem parar. Idosa e aflita, não conseguia controlar o cavalo. — Sra. Evans, segure-se bem — Sophie gritou, sem poder ajudá-la. Tentou olhar em volta, mas não enxergou quase nada. Apenas ouviu os primos, Allan e Donald MacCarran, debatendo-se na água e praguejando em gaélico. Atrás dela, os dois soldados da cavalaria gritavam e tentavam segurar as montarias assustadas. Seu cavalo virou-se e Sophie perdeu o senso de direção. A confusão parecia vir de todos os lados. Onde ficavam os rios? Seria arriscado forçar a montaria a descer pela margem. Nunca soubera cavalgar muito bem, menos agora, depois de seis anos passados num convento. Na tentativa de controlar o animal, puxou as rédeas e inclinou o corpo para trás, o que a fez escorregar na sela e quase cair. — Cuidado, moça — ela ouviu, ao mesmo tempo que um braço de homem em sua cintura a endireitava na sela. Em seguida, ele segurou a brida do animal e o acalmou com um murmurar suave. 4


Através da neblina esbranquiçada, ela vislumbrou ombros largos sob manta xadrez, cabelos compridos e escuros e o lado de um queixo sem barbear. — Allan? Donald? — chamou, aliviada, imaginando qual dos seus dois primos montanheses tinha saído da água para a segurar. Seu salvador virou a cabeça e ela viu-se diante de um estranho. Enquanto ele puxava seu cavalo para a frente, Sophie concluiu que deveria ser o arrendatário de algum fazendeiro que tinha vindo para prestar socorro. — Obrigada, senhor. Por um instante, ele virou a cabeça para trás. Tudo que ela viu foi um olhar penetrante, cabelos escuros e a manta xadrez. — Meu cavalo já está bem. Minha companheira precisa de ajuda, bem como os homens na água. Calado, ele continuou a puxar o cavalo por uma encosta. Será que só entendia gaélico? Na infância ela conhecia a língua, mas não se lembrava de quase nada, ainda mais sob tensão. — Tapadh leat — conseguiu dizer. — Obrigada, mas os outros precisam de ajuda — acrescentou em inglês. Porém, o montanhês passou a correr sem largar a brida de seu cavalo e pondo distância entre eles e os rios nos quais sua escolta havia caído. Ainda podia ouvir os gritos da sra. Evans. Alarmada, Sophie inclinou-se para trás e tentou puxar as rédeas. O cavalo relinchou, confuso. — Pare! — gritou para o montanhês. Ele nem olhou e, em silêncio, seguiu em frente. Apenas a mão firme na brida, o braço musculoso e os ombros largos eram visíveis. Então, seu olhar caiu no brilho da arma na cintura. Deus do céu, um salteador! Ao voltar para a Escócia, poucos dias antes, ela ouvira histórias sobre rebeldes e foragidos que moravam nessas colinas, alguns renegados jacobitas, homens sem lei. Durante o jantar oferecido por sir Henry Campbell na Kinnoull House, o magistrado a aconselhara a não atravessar a ravina essa noite. Porém, ela havia se sentido segura na companhia dos primos montanheses e dos soldados da cavalaria designados pelo magistrado. Além do mais, ela e a sra. Evans, cansadas das viagens, sentiam-se ansiosas para voltar ao castelo de Duncrieff ainda essa noite. Na verdade, Sophie não via a hora de se ver livre da companhia de sir Henry. Seu pai, antes de falecer, tinha prometido sua mão a ele, apesar de seus protestos. Após terminar sua educação num convento flamengo, ela havia sido mandada de volta para a Escócia pela mãe viúva a fim de cumprir a promessa do pai de se casar com um homem a quem desprezava. 5


Agora, desejava ter aceitado o convite de sir Henry para passar a noite na Kinnoull House. Os avisos do magistrado sobre rebeldes e foragidos provavam ser válidos. Este montanhês, sem dúvida, não era um morador da região bem intencionado. Conduzia seu cavalo pela neblina densa em vez de voltar para acudir sua escolta. Com o coração disparado, Sophie dobrou os joelhos e tornou a se inclinar para trás. A montaria obedeceu ao homem. Tentou gritar, mas um acesso de tosse a impediu. Desesperada, olhou para trás. Ouvia ainda os gritos da sra. Evans, as vozes dos homens e o relinchar dos cavalos. Ninguém ainda se dera conta de que ela havia sido raptada. — Por Deus, me deixe voltar! — pediu, aflita. Reuniu forças e conseguiu soltar um grito estridente. O montanhês virou-se, pôs o pé no estribo e saltou para a sela, às suas costas. Agiu tão depressa que ela não teve chance de gritar outra vez nem de impedi-lo de pegar as rédeas e tapar sua boca com a outra mão. Dirigiu o cavalo num galope de senfreado, enquanto os braços musculosos prendiam os seus. Ao retorcer-se, Sophie percebeu que o vestido e a capa estavam presos entre as pernas do estranho, as coxas prensadas pelas dele e as costas, pelo peito forte. Com esforço, ela conseguiu soltar um dos braços o suficiente para lhe dar uma cotovelada. — Pare quieta, pois irá comigo — ele disse em tom firme. Aliás, a voz possuía uma inesperada tonalidade rica. Quando sentiu o braço forte puxá-la mais de encontro ao peito, impedindo seus movimentos, Sophie arquejou. No mesmo instante, ele afrouxou a mão sobre sua boca e indagou: — Pode respirar? — O senhor me raptou. Atacou minha escolta. E minha acompanhante? Ela é idosa e deve estar assustada. Por que está agindo assim? — Percebo que respira bem. Ele não tinha o sotaque carregado de escocês e falava um inglês perfeito como um nativo celta da Escócia. As palavras eram proferidas com suavidade e uma leve cadência, o tom profundo e agradável como se creme e uísque tivessem se , transformado em som. — Devia ter ajudado os outros — Sophie reclamou. — Todos ficarão bem. Vim buscar a senhorita, não eles. A respiração dele estava quente em sua face e os braços a apertavam. — Mas, por quê? — indagou meio sem fôlego. Ele não respondeu. Prensou mais o peito contra suas costas e tocou seu braço com os dedos abertos. Sophie forçou-se a escapar da magia que ele parecia irradiar, pois o simples contato e a presença dele pareciam acalmá-la de certa forma. Mas ele a tinha raptado como um ladrão. 6


— Não toque em mim — esbravejou. Bruscamente, ele a soltou. Sophie escorregou para o lado e se viu incapaz de se segurar para não cair. Ele a endireitou e, quando os braços fortes a envolveram outra vez, ela se sentiu aliviada pelo amparo. — Aonde estamos indo? Por que me raptou? Tem certeza de que ninguém ficou ferido? E minha acompanhante? Calculo que o senhor tenha derrubado as pontes de propósito. Como conseguiu? O que quer comigo? — indagou enquanto o cavalo galopava. — Tantas perguntas — ele comentou, mas não respondeu nenhuma. Sophie respirou fundo, prelúdio de um novo grito que não chegou a emitir, pois a manta xadrez caiu sobre sua cabeça. A lã raspava seu rosto e recendia a odores de fumaça, pinho e homem. Tinha a sensação de que sufocaria sob a manta e voltou a se contorcer. O peito do salteador prensou suas costas enquanto as pernas prendiam as suas. — Não se mexa. Tudo acabará bem — ele murmurou. Com os olhos cheios de lágrimas, ela manteve-se em silêncio. Apesar da raiva e da indignação, procurou se controlar e refletir sobre um modo de se salvar. Porém, Sophie lembrou-se que os primos montanheses falavam, lá em Duncrieff, sobre um renegado da região chamado de Fantasma Montanhês. Ele roubava gado, atacava patrulhas de soldados ingleses e até tinha danificado as novas estradas de pedra que as tropas inglesas construíam nas montanhas. Nunca havia sido visto à luz do dia, mas diziam tratar-se de um homem aterrador, violento e esperto que atacava onde e quando quisesse. Um bruto selvagem, rebelde e salteador, os primos tinham garantido. Diziam que ele montava emboscadas nessa ravina. Sophie estremeceu. Devia ter dado ouvidos a sir Henry e ficado em Kinnoull. Seus primos suspeitavam que o Fantasma estava envolvido na prisão do irmão dela. Seria este montanhês ladrão o próprio Fantasma? Talvez ele tivesse derrubado as pontes para afastar seus primos e os soldados da cavalaria. Por que roubaria apenas uma mulher? Deus do céu, ela não queria pensar sobre isso. Sophie retomou a voz e gritou, mas o som foi abafado pela manta. A mão dele tornou a tapar sua boca. — Fique quieta — ele recomendou baixinho no seu ouvido. Sua cabeça rodopiava. Sentia-se estranha como se vagasse por nuvens tempestuosas, ou nos braços de um demônio rumo ao inferno. Roubar uma noiva era um negócio terrível, Connor concluiu. E essa estava dando muito trabalho. Devia tê-la amordaçado e amarrado, pois precisava das duas mãos para controlar o cavalo a galope e com duas pessoas montadas. A moça gritava como uma gralha. 7


— Quietinha — murmurou, passando o braço sobre seu peito e os dedos no queixo, enquanto com a outra mão segurava as rédeas. Ele não gostava de intimidar mulheres, mas sua paciência era limitada. A promessa a Duncrieff o obrigava a levar a cabo esse roubo lamentável. O irmão dela havia dito: Leve-a, tome posse e explique depois. Quando chegasse a hora de consumar o casamento essa noite, Connor não sabia como seria possível fazê-lo sem explicar antes. Não era um bruto capaz de forçar uma mulher a aceitá-lo. Apreciava o ato de amor, especialmente quando a parceira também gostava. E Kate MacCarran seria uma a se deleitar com esse prazer, ele imaginava, baseado nas informações de Duncrieff sobre a irmã audaciosa. Um arrepio de luxúria percorreu-lhe o corpo ao pensar em tocar-lhe a silhueta perfeita, evidente sob as camadas de roupa. Mas parecia-lhe impossível convencê-la a se deitar com o marido, desconhecido até então, e concretizar o casamento. Ele havia calculado tudo com cuidado, pelo menos pensara. Mas, agora que o rapto tivera êxito e a irmã de Duncrieff se retorcia sob a manta, a capela e o padre pareciam muito distantes. A aventura desgraçada tinha apenas começado. MacCarran havia determinado que a irmã fosse completa e legalmente casada. Connor sabia que seu direito e capacidade de defender a esposa tinham de ser inquestionáveis, caso surgissem disputas legais mais tarde. Um pouco antes de ser preso, Duncrieff havia explicado que a irmã estava comprometida com sir Henry Campbell. Mas Rob estava fraco por causa do ferimento sofrido, e informara poucos detalhes. Connor tinha entendido que ela não poderia ter a chance de se casar com Campbell. Mais do que disposto a executar uma vingança contra o magistrado, Connor havia empenhado a palavra de roubar Kate MacCarran e torná-la sua esposa. Suspirou. Nesse momento, ela lhe mordeu a mão com força. Apesar da lã, ele fez uma careta e apertou seu queixo para expressar o desagrado. Sob a manta, ela lhe deu uma cotovelada no estômago. Mesmo o irmão tinha admitido que Kate MacCarran era conhecida por suas atitudes endiabradas. E Connor sabia que ela havia agido como espiã jacobita. Duncrieff tinha mencionado uma outra irmã num convento em algum lugar. Sem dúvida era o oposto dessa criatura feroz. Teria sido bem mais fácil roubar a freirinha do que a gata selvagem, refletiu, malhumorado. Não sabia nada sobre a piedosa irmã de MacCarran, mas apostava que ela nunca exporia outras pessoas e a si mesma com ações imprudentes ou envolvimento com jacobitas. Não era de causar espanto que MacCarran tinha arrancado dele a promessa de se casar com Kate, a Endiabrada, como era chamada. Só mesmo um marido rebelde como ele poderia controlar a moça na ausência do irmão. Quando deixaram o vale para iniciar a subida pelas colinas, 8


Connor sabia que os dois não poderiam compartilhar a sela por muito mais tempo. A pé seria mais seguro e vantajoso. Como não pudesse ver nada em volta, apurou os ouvidos para saber se não estavam sendo seguidos. Cauteloso, instigou o cavalo colina acima, equilibrando a moça à frente dele. Mas, então, ouviu gritos e calculou que os homens já haviam saído dos rios e, tão logo dessem pela falta da moça, iniciariam uma busca. Porém, se Campbell, o arquiinimigo, visse o cavalo sem a dona, aumentaria a confusão e talvez atrasasse a busca. Puxou as rédeas e desmontou com a moça nos braços. Quando a pôs no chão, ela perdeu o equilíbrio e quase caiu. No instante seguinte, o atacava com tapas e pontapés, além de vociferar. Ao vê-la levantar o joelho, Connor desviou-se a tempo de o golpe só o atingir um pouco abaixo da virilha. Praguejou por entre os dentes ao mesmo tempo que a enrolava bem na manta. Então, deu um tapa na anca do cavalo, que partiu a trote colina abaixo. Connor sabia que o animal encontraria o caminho até a escolta. A futura esposa retorcia-se dentro da manta. Ele puxou uma ponta, cobriu sua cabeça e a colocou sobre o ombro. Embora ela lutasse, segurou-a com firmeza, satisfeito que seus protestos estivessem bem abafados. — Pare quieta — advertiu-a ao iniciar a escalada. — Ora, me ponha no chão. Lá atrás, pensei que quisesse me salvar. — Eu a estou salvando. Sossegue e me deixe fazer isso. — O senhor é louco! — É o que dizem — ele concordou enquanto subia a passos largos. Ela não era pesada, e Connor estava acostumado a carregar animais quando ia caçar. Mas esta presa se debatia demais. Mesmo assim, ele conseguia seguir em frente, embora mais devagar quando a subida se tornou muito íngreme. — Por favor, pare e me solte. Por que me roubou de minha escolta? — Agora sou sua escolta — ele afirmou. — O senhor não pretende me levar para minha casa. Não sei o que quer, mas se tem a intenção de me desgraçar, juro que não me submeterei a isso. Jamais! — ela declarou, soluçando. Connor a pôs no chão, afastou a manta de sua cabeça e a segurou pelo queixo — Não sou esse tipo de animal — afirmou, bravo. Com os olhos arregalados, ela o fitou. — O senhor é o Fantasma Montanhês? — O que sabe sobre ele? — Connor indagou, segurando-a pelos ombros e bem perto, a fim de escapar de seus golpes. — Ouvi contar que é ladrão de gado, assassino, ataca onde quer e faz o que bem entende. É o senhor? 9


— Pareço um fantasma? — Não. Mas minha criada ouviu contar que ele tem cabelos escuros, é grandalhão, um verdadeiro gigante. Além de alto, de seus cabelos escuros e roupas de montanhês, o senhor tem aparência feroz. Porém, chega a ter uma fisionomia agradável. Connor balançou a cabeça com ar de desagrado. — Mas uma aparência bonita pode mascarar uma índole lunática — ela acrescentou. — Devo, então, desconfiar da senhorita? Sophie o encarou com a testa franzida. — Espero que também falem algo bondoso sobre o Fantasma — Connor resmungou. Na verdade, não queria falar sobre isso, nem dar mais detalhes além dos que ela já ouvira das más línguas. Com a mão sobre seus ombros, a fez acompanhá-lo na subida. — Para ser justa, um de meus primos afirmou que o Fantasma pode ser generoso com os desamparados. Ele tem ajudado arrendatários e fazendeiros que foram despejados pelos ingleses. Quando o gado é roubado de pessoas pobres, ele o substitui. Também lamenta as vidas que já exterminou. — Ah, muito tranqüilizador. Allan e Donald MacCarran sempre tinham sido bons amigos, e Connor ficava satisfeito que eles falassem bem de suas ações como o Fantasma Montanhês. Mas voltava a se entristecer com o boato da morte do chefe do clã deles. Parecia que a notícia não tinha sido participada à família, e ele não ia mencionar nada até que obtivesse confirmação. Quanto a ser o Fantasma, ele estava menos envolvido em roubo de gado e em proteger os pobres do que em sabotar os esforços do general Wade na construção de estradas militares nas montanhas. O próprio Duncrieff tinha tomado parte em alguns dos ataques, o que resultara em desastre e na promessa apressada que havia arrancado de Connor. — Calculo que toda pessoa tenha seu lado bom — a irmã de Duncrieff disse, fitando-a com sinceridade, embora seus ombros tremessem sob a mão dele. — O que mais a senhorita sabe sobre esse Fantasma Montanhês? — Fui informada de que ele traiu o chefe dos MacCarran — ela respondeu com expressão raivosa nos olhos lindos. "Moça corajosa", Connor refletiu, pois não temia confrontá-lo. Mas a audácia de Kate MacCarran era famosa. — Pode ser. Talvez, não — ele resmungou. — O senhor nega isso? 10


— Sem dúvida, se eu fosse esse Fantasma. — Acabarei descobrindo, agora ou mais tarde. — Temos interesses mais imediatos — ele afirmou, pegando-a pelo braço para continuarem a caminhada. Ela mostrava dificuldade em acompanhar seus passos. Tal vez fosse melhor carregá-la outra vez. Ela parou, forçando-o a fazê-lo também. — Se o senhor é o Fantasma Montanhês, então tenho sérias queixas contra sua pessoa. Como ainda segurasse seu braço, Connor sentiu que ela continuava a tremer. Embora fosse corajosa, estava amedrontada. Isso o perturbou. Detestava o que tinha feito e mais ainda o que restava a fazer. — Sei quais são suas queixas — afirmou. Sophie endireitou bem o corpo e ergueu a cabeça, que alcançava apenas o ombro dele. Seu rosto oval estava pálido e os olhos, muito abertos e prateados. Connor imaginou de que cor seriam à luz do dia. — Por enquanto, implorarei por misericórdia, senhor. Acredito que, apesar de tudo, sua consciência tenha um código de honra. Prove isso me deixando ir. Ao observá-la, Connor viu, além de sua coragem, uma compaixão que ele não merecia. Ela o fitava com olhar de expectativa. — Por favor, me deixe ir. Direi a meus parentes que o senhor me tratou bem. Isso não chega a ser mentira. Juro que o perdoarei. Ele a ouviu perplexo. A moça barganhava benevolência por liberdade. Não esperava isso de Kate, a Endiabrada. Tinha esperado subjugar uma mulher lutadora e forçá-la a se casar. Não sabia como reagir a tal atitude. Katherine MacCarran não era conhecida pela virtude, mas parecia ter seu lado santo. Ou talvez fosse muito esperta. Até certo ponto ela estava certa, pois Connor era um homem decente que obedecia a um código de honra, embora às vezes quebrasse a lei para segui-lo. Porém, ele não tinha tempo para se explicar. O casamento precisava ser realizado depressa, mesmo que fosse à força. — Temos de nos apressar, srta. MacCarran. — Ora, o senhor sabe meu nome! — Não a raptei a esmo. — Então isto foi planejado? — Inteligente, além de bonita. — Mas eu não o conheço. Afinal, é o Fantasma? Connor deu de ombros.

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— Precisamos seguir em frente, srta. MacCarran. — O senhor traiu meu irmão? Contribuiu para a prisão dele? Dizem que sim. Por favor, é essencial que eu saiba. — Não temos tempo para isso. — Ao menos responda o seguinte. Por que me tirou de minha escolta? Estava esperando que atravessássemos o vale? Ele curvou-se e murmurou, a respiração soprando em seu rosto: — Estava, sim. Acho que esperaria para sempre. Diabos, por que havia dito isso? Falara como um idiota apaixonado ou poeta desgraçado. Ela exercia um efeito estranho, uma atração difícil de ser resistida. Não só sua voz melodiosa, mesmo tensa e alta, o afetava, como também seus olhos e silhueta lindos. Ela procurou o olhar dele e murmurou: — E, agora, o senhor deve me deixar ir. Connor não podia. Roçou o nariz na ponta do seu. Sentiu seu corpo amoldar-se nos braços dele como se o poder que o dominava a contagiasse. A vontade de beijá-la foi imensa. Queria enterrar-se nela, satisfazer os sentidos e instigar os seus. Com o coração disparado, por um momento Connor esqueceu a promessa e quase a beijou. Embora não soubesse como a criatura podia tê-lo afetado tão rápida e intensamente, só desejava tocá-la. Não era um homem impulsivo, mas como as bocas estivessem próximas, ele tinha de lutar contra a tentação. Ao vê-la fechar os olhos, puxou-a para mais perto. Tensa, ela o empurrou. — Não dê mais motivos de vingança aos homens de minha família. Eles nos encontrarão. Connor roçou o polegar em seus lábios como se o gesto pudesse satisfazer o anseio inesperado. — Seus parentes não nos encontrarão. Mas não podemos continuar aqui. Vamos embora. Depois de voltar a cobrir sua cabeça com a manta, a pôs sobre os ombros. Os protestos abafados não surtiram efeito. Logo, Connor percebeu movimentação na neblina. Escondeu-se atrás de umas pedras, abaixou-se e a pôs de joelhos de frente para ele. Estreitou-a contra o peito enquanto murmurava: — Fique quieta. Há muitos salteadores perigosos aqui nas colinas. Ela sabia bem a ironia de tais palavras, porém se calou. Provavelmente apenas Neill e Andrew caminhavam por lá. Mas a escolta já podia ter saído do rio, tirado os cavalos e criado coragem para procurá-la pelas colinas. Isso se 12


conseguissem calcular a direção através da neblina. A moça apoiou a cabeça no ombro dele. Sensação deliciosa estreitá-la contra o corpo. Fechou os olhos para apreciar o prazer de ter uma mulher entre os braços. Fazia tanto tempo que isso não acontecia, embora houvesse aliviado o desejo com uma. Ergueu a cabeça e reconheceu pelo andar Neill e Andrew, que se aproximavam. Acenou e, quando chegaram mais perto, eles olharam para a moça enrolada na manta. — Essa é a tal? — Andrew indagou. Connor levantou-se e ajudou-a a se erguer. Apesar da manta, ela pisoteou-lhe os pés e gritou, o que o fez tapar sua boca. — É ela, sim — Neill resmungou em gaélico. — A Endiabrada, como a chamam, não é? — Andrew comentou na mesma língua. — Qualquer coisa assim — Connor respondeu. Andrew inclinou-se para ela e, em inglês, recomendou: — Comporte-se, mocinha, ou o Fantasma a fará pagar caro. Ele é genioso e exigente, portanto, o melhor é não lhe causar problemas. — É ele quem está me causando problemas — Sophie reclamou. Irritado, Connor indagou: — Vocês têm algum relatório para me dar? — Os homens saíram da água praguejando muito, mas apenas encharcados. Agora, estão procurando a moça, pois a montaria voltou sem ela. Pensam que caiu no rio. A outra mulher não pára de gritar — Neill contou. — E o padre está esperando na capela. Deixamos Roderick e Padraig com ele — Andrew avisou. — Aqueles dois?! — Connor exclamou. — O padre seria capaz de escapar deles mesmo se tivesse uma perna só. Desculpe, Neill. — Ora, concordo, embora sejam meus filhos e eu goste muito deles. Andrew, vá até a capela e tome conta do padre. Vou acompanhar Connor para proteger-lhe as costas. — Mande os rapazes ao castelo de Glendoon, Andrew. Iremos para lá depois de terminarmos a questão com o padre — Connor disse. — Muito bem. — Do que estão falando? — a moça indagou sob a manta. — Ela não sabe gaélico? — Andrew perguntou. — Sei, sim. Só que não ouço bem por causa da manta. Por favor, repita. — Chega! — Connor exclamou quando Andrew começou a atendê-la. 13


Depois de pôr a moça de volta sobre os ombros, reiniciou a escalada da colina, seguido por Neill. Ao mesmo tempo e muito mais depressa, Andrew rumou para a capela. Ao senti-la mais pesada do que antes, Connor percebeu que ela, de propósito, relaxava o corpo. Não diminuiu o passo para mostrar que não se deixava enganar. Preferia muito mais estar sentado perto da lareira com o violino, sozinho e em paz. Solidão e música sempre amainavam um pouco as vicissitudes da vida. Em vez disso e por causa da promessa, carregava uma noiva contrariada. Ignorava aonde essa noite o levaria, mas sabia que carregava muito mais do que uma jovem teimosa. Afinal, o que possuía para oferecer a uma esposa? Um castelo em ruínas, um pedaço de terra árida, umas poucas vacas e alguns carneiros. Talvez um tanto de música, se ela gostasse, sonhos para compartilhar, carícias apaixonadas. Apenas isso seria suficiente para uma jovem fina e impetuosa, irmã de um chefe? Ela haveria de querer um marido de quem se orgulhar, além de amar. Amor. Houve uma época em que ele sonhava com isso. Seguiu em frente. Ela havia se aquietado, talvez exausta pelo esforço feito. Parecia mais leve. Estranhamente, Connor tinha a sensação de que carregava o próprio destino.

Capítulo II

Dobrada sobre o ombro duro do bandido e a cabeça inclinada para baixo, Sophie sentia-se mal. Em vão, respirou fundo para se livrar da indisposição. Temia perder o jantar excelente. Precisava respirar ar fresco e frio. — Pare, por favor—suplicou, mas ele não diminuiu o passo. Sophie tentou acalmar o estômago revoltado. Além de ser levada à força, ia numa posição horrível depois do lauto jantar em casa de sir Henry. O espartilho também só piorava o enjôo. Semanas antes, quando havia saído do convento em Flandres para voltar à Escócia, após seis anos de vida tranqüila, sonhava com aventuras estimulantes. O futuro casamento com sir Henry não oferecia isso, nem felicidade. Ela havia querido se ver livre do compromisso e desejado que algo ousado e maravilhoso lhe acontecesse. Nesta noite, enfrentava uma aventura tão incrível que bastaria pelo resto da vida. No convento, a irmã Berthe costumava dizer: Cuidado com o que desejar. Se for sincera, sua vontade se realizará e será responsabilidade sua como agir com ela. Sophie pensou na idosa freira francesa que tinha sido jardineira no convento 14


inglês. Ela sempre aconselhava as alunas a assimilaram a sabedoria das flores. Cultivar graça, beleza e meiguice. Exibir índole radiosa e florescer com bondade e compaixão. Segundo ela, as flores ensinavam o perdão, o amor e o altruísmo. Tudo muito bem num convento. A irmã Berthe tinha passado a vida adulta como freira e desconhecia o mundo secular. Não imaginaria o que fosse ser raptada por um foragido das Terras Altas, jogada sobre os ombros dele como uma saca de cereal e sofrer ameaças. Kate, a irmã mais nova, saberia como reagir. Se não estivesse passando umas semanas em Londres, ela jamais permitiria ser raptada por um montanhês louco. Caso algum tentasse, ficaria caído no matagal, envolto pela neblina. Kate possuída o dom de forçar os homens a se ajoelharem a seus pés e, caso não conseguisse cativá-los, contava com outras armas para se defender, entre elas, a língua ferina. Sophie, porém, não tinha essa coragem nem audácia. Ela e Kate haviam herdado o chamado Dom de Fada, um dom natural que passava pelas gerações das mulheres MacCarran. Sophie, adaptada ao sossego do convento, tinha usado o seu no cultivo de flores. No momento, isso não lhe oferecia a mínima utilidade. Já havia proposto tolerância e perdão, mas o renegado não mostrar interesse. E achava impossível manifestar delicadeza ou calma com a cabeça coberta pela manta mal-cheirosa. — Por favor, sr. Fantasma, preciso de ar fresco. Ele parou, colocou-a no chão e tirou a manta. Ao vê-la cambalear, amparou-a. Tão logo respirou fundo, Sophie foi dominada por um forte enjôo. Ajoelhou-se e regurgitou sobre uma touceira de urzes. Mal percebeu o bandido abaixar-se a seu lado, segurá-la pelos ombros e afastar seus cabelos do rosto. — Água! Depressa! — Connor ordenou a Neill em gaélico. Com a cabeça rodopiando, Sophie sentou-se no chão e tirou a boina de renda. Depois de limpar a boca com ela, atirou-a longe. Não conseguia olhar para o montanhês. Horrível passar mal na presença dele. Seria considerada fraca quando precisava mostrar-se forte. Havia tentado enfrentá-lo, mas o estômago a tinha traído. Por que abusara do banquete de sir Henry? Talvez se sentisse melhor agora. O outro montanhês voltou com um pano encharcado de água e seu seqüestrador o passou por seus lábios. Ela até chupou um pouco. — Obrigada — balbuciou. — Tenho muita sede. Preciso beber água. — Um instante. Pode ficar em pé? — Connor indagou, ajudando-a a se levantar, para depois explicar algo em gaélico para o outro. Passou o braço por sua cintura, o que a fez se sentir curiosamente em segurança. Enquanto o ouvia falar, apoiou-se nele. Sophie notou que estavam na encosta de uma colina alta. A neblina, menos 15


densa ali, filtrava uma réstia de luar. Tinham subido bem mais do que ela se dera conta. Embora o luar fosse fraco, ela podia observar melhor o montanhês. Muito alto e de ombros largos, ele parecia um anjo guerreiro. O rosto era atraente graças à simetria das feições: ossos malares fortes, queixo bem definido e coberto pela barba por fazer, sobrancelhas escuras sobre olhos expressivos que à luz do dia poderiam ser azuis ou verdes. Os cabelos escuros e compridos tocavam o colarinho. Ele a fitou com a testa franzida e expressão enigmática. Sophie inclinou a cabeça para o lado e continuou a observá-lo. Ele irradiava um poder palpável e exibia uma sombra de sorriso matreiro. Percebia-se orgulho e vigor naquele rosto. Ela notou ainda sinais de inteligência e delicadeza nos olhos e nos lábios. Então, deu-se conta de que ele também a observava. Depressa, desviou o olhar. — Se eu não a enrolar na manta, a senhorita irá até onde quero levá-la? — Voltarei para casa — ela respondeu, afastando-se, mas Connor a segurou pelo braço. — A senhorita irá comigo. — Por quê? Connor não respondeu. Conduziu-a por um barranco até a margem de um córrego. Ajoelhou-se, lavou as mãos, juntou-as em concha e as encheu de água. Ao oferecê-la, explicou: — A senhorita disse estar com sede. Não tenho uma caneca. Surpresa, Sophie segurou-o pelos pulsos e sorveu uns goles. A água estava fria, refrescante e a pele dele transmitia um odor viril de terra. Ficar tão perto, tocá-lo com intimidade não a constrangia. Voltava a sentir-se curiosamente protegida. Porém, esse homem não queria socorrê-la. Sem dúvida tinha outra intenção ao raptá-la. Sentiu as faces queimarem ao lembrar-se do momento em que ele quase a tinha beijado e ela quase permitira. Não ao seu seqüestrador, mas ao homem que, intuía, existia sob o montanhês bruto e mal-humorado. Não admitiria isso outra vez. Afastou-se e murmurou: — Obrigada. Connor curvou-se e a ergueu nos braços. — Por favor, não — Sophie protestou. — Vai enjoar mais? — ele indagou, parando. — Talvez, pois ser carregada me faz mal. E o esforço pode ser prejudicial ao senhor. — Eu a raptei e a senhorita está preocupada com minhas costas? — ele indagou rindo, e a pôs no chão. — Se não quer ser carregada, vamos tratar do negócio aqui. Neill, vá buscar o padre — ordenou por sobre o ombro. 16


Embora tivesse dito isso em gaélico, Sophie entendeu. — Não, eu o seguirei — afirmou e, apesar de querer saber para que serviria o padre, não perguntou. — Muito bem, mas vai ter de acompanhar meu passo. — Farei isso — ela garantiu de queixo erguido. — Veremos. Ei, volte aqui — Connor chamou ao vê-la se afastar. Depois de segurá-la pelo braço, pegou um pedaço de corda de dentro das dobras da manta xadrez, presa à cintura. — Corda? Para quê? — ela indagou, assustada. — Eu a trouxe para o caso de a senhorita não querer me acompanhar. — Pois não quero mesmo! Pare com isso! — acrescentou quando ele começou a amarrar seu pulso com uma das pontas. — Mil desculpas — Connor murmurou. — O senhor é um louco! Isso não é necessário. — Não posso deixá-la se arriscar a sair correndo por essas colinas à noite. Poderá se machucar ou se perder. — Ah, e o senhor não me fará mal algum, imagino. — De fato não — Connor concordou numa voz suave. Sophie poderia odiá-lo só por isso. O tom profundo parecia o de um rei ou poeta. Bom demais para um bandido como ele. — Vamos embora. Ainda temos uma boa distância para percorrer. — Para onde está me levando? Sem responder, ele puxou a corda e começou a andar. Só lhe restava acompanhá-lo com olhar furioso. — Meus parentes me acharão, caso o senhor não os tenha matado. — Não sou assassino. — O senhor rouba mulheres, afoga homens e trai os amigos. — Jamais traio meus amigos! Brava demais para se importar, ela reagiu. — O senhor não terá mais chances de trair ninguém—disse, e gritou: — Allan, Donald, venham me socorrer! Estou aqui. As palavras ecoaram pelas colinas. Ele virou-se depressa e a amordaçou com o pano usado para umedecer-lhe os lábios. Sophie lhe dirigiu um olhar furioso, o que não o impediu de continuar a caminhada sem largar a corda que prendia seu pulso. O outro montanhês, homem mais velho, magro, de barba e cabelos grisalhos, 17


aproximou-se e murmurou algo em gaélico. O tom era de censura contra seu montanhês, como Sophie passara a considerá-lo. Embora houvesse esquecido parte do gaélico durante os anos passados na escola do convento, ela ainda entendia um pouco. Como os dois continuassem a falar, ela pensou ter ouvido a palavra padre outra vez. Sentiu um arrepio de alarme. A fé romana era tolerada nas Terras Altas, apesar de o número de católicos ser pequeno, dos quais sua família fazia parte. Porém, os rebeldes dali não iriam confessar os pecados nem assistir à missa a altas horas da noite. Ora, o montanhês planejava se casar com ela essa noite. Ou entregá-la a outro homem que a aceitasse como esposa. Teria sir Henry Campbell ordenado isso? Seu coração disparou de medo. Horas antes, na Kinnoull House, estava tão preocupada com a situação do irmão que não ousara revelar o quanto detestava a idéia de se casar com sir Henry. Porém, ele podia ter percebido isso em sua insistência em se esquivar das carícias do noivo. Seu clã precisava da cooperação do magistrado local para ajudar seu chefe, preso há duas semanas sob acusações vagas. Espionagem, sir Henry tinha insinuado. Embora Sophie não duvidasse, havia se mantido calada. Quem sabe o magistrado tinha sentido sua relutância e repulsa em se casar com ele e providenciado o enlace dessa maneira. — Por favor, nada de padre — pediu através da mordaça. — O quê? — Connor indagou, parando. — Nada de padre. — A senhorita entende mais gaélico do que pensei. — Nesse caso, tome cuidado com o que diz. Continuaram a andar e ele a conversar em gaélico com Neill. Mas falavam tão depressa que ela só entendia uma ou outra palavra. Lembrou-se das mãos frias e pegajosas do magistrado nas suas, do sorriso forçado e do olhar sorrateiro. Teria ele contratado os montanheses para raptá-la no caminho para casa? Se não tivesse, então o montanhês havia planejado isso. Por quê? Como soubesse quem ela era, devia conhecer seu irmão. Será que a imaginava rica por ser irmã do chefe do clã? Ou queria se associar ao nome MacCarran? Mas Duncrieff não era mais uma propriedade muito lucrativa, e Robert estava preso na cadeia de Perth, acusado de traição. Nesta época seria mais provável um período de privações do que de fartura. Sophie tocou o pingente pendurado por uma corrente de prata no pescoço. Era de cristal acinzentado e brilhante, engastado em prata. A pedra antiga tinha sido dada a suas ancestrais por uma fada, muito tempo antes e, para Sophie, incorporava o legendário da família. Seu poder e proteção a acompanhariam pela vida afora, caso a usasse bem, a 18


tradição garantia. O pequeno cristal e a gota de sangue em suas veias herdados da fada a uniam a uma promessa perigosa. Ela só poderia se casar por amor verdadeiro. Se isso não fosse observado, dizia a lenda de Duncrieff, a má sorte atingiria não só a ela como também ao clã inteiro. A felicidade e o futuro dos MacCarran dependiam do uso sensato do cristal por sua proprietária. Sabia-se ainda que ele poderia realizar um milagre, apenas um, se o amor verdadeiro fosse ameaçado. Caso contrário, sua magia poderia provocar confusão para a dona e para quem se ligasse a ela. Sophie sabia que não poderia se casar com sir Henry apesar de o pai ter concedido sua mão a ele antes de falecer. Muito menos com o montanhês estranho que a tinha raptado por capricho. Ela tornou a tocar o cristal em busca de consolo. O contato familiar lhe pareceu diferente, como se brilhasse sob seus dedos. Sem dúvida imaginação sua, pois os cristais de Duncrieff só reagiam sob o efeito do amor, segundo a lenda. Os dois montanheses continuavam a conversar e seu seqüestrador virou-se para observá-la, como se lesse seus pensamentos. Ela abafou um soluço de frustração e raiva. Deu um puxão na corda apenas para irritá-lo. Calado, ele a trouxe para mais perto. Sophie não tinha escolha a não ser acompanhar o estranho que, além de arrancála de tudo que lhe era caro, a tratava ora com tolerância, ora com crueldade. Não fazia idéia dos planos dele e qual seria seu destino num casamento forçado. Irritada, indagou: — Sobre o que estão falando? Por que mencionaram um padre e uma capela? — Ah, senti vontade de rezar, srta. MacCarran — Connor respondeu. — Ela é uma jovem muito delicada para ser amarrada como uma novilha. E a pobre ainda passou mal — Neill censurou. — Detesto isto tanto quanto você — Connor afirmou, tenso. — Se eu a soltar, passaremos a noite procurando-a pelas colinas. — Tão logo derem pela falta dela, muitos homens se espalharão por aí à sua procura. O melhor é a moça já estar casa quando Campbell descobrir que ela sumiu. — Exatamente. Siga para a capela e fique nos esperando ao lado do padre e de Andrew. Eu a levarei pelas colinas do norte. E o caminho mais difícil e eles não terão coragem de percorrê-lo. Vá pela trilha do gado e verifique se ninguém está me seguindo. — Para onde pretende levá-la mais tarde? A busca não terminará até que a moça seja encontrada. — Saberão onde ela se encontra quando eu estiver pronto para avisá-los. Até então, ela será uma esposa feliz. Assim espero. — Se há um homem capaz de satisfazer uma mulher, rapaz, é você, segundo dizem. 19


— Vá embora — Connor ordenou. Sorrindo, Neill sumiu nas sombras. Connor olhou para a moça. Sob a capa longa, seu vestido era da cor de brasas brilhantes. Os cabelos soltos do penteado caíam pelos ombros. Sob o luar, ela resplandecia como uma fada rainha. Por um momento, ele desejou fazê-la feliz, mas tinha começado com o pé errado. As últimas lições dadas pela vida o tinham ensinado que não teria um destino fácil. Só restavam as migalhas que poderia alegar lhe pertencerem, como a música, os livros e os raros momentos em que sonhava com um futuro que jamais se concretizaria. Homem vencido, ex-senhor de terras, jacobita convicto, ladrão de gado persistente, Connor tinha se tornado uma lenda das Terras Altas. Havia sido o pretendente adequado a marido da irmã do chefe de um clã. Então, era o herdeiro legítimo de uma ótima propriedade, filho de visconde, educado na França. Nos últimos três anos, tinha visto o pai ser preso e executado, perdido a mãe e a casa, encarado o interior de uma cela e a possibilidade de ser enforcado. Ele sempre tinha almejado, e ainda almejava, ter um lar, amor e uma família. Por quanto tempo Kate MacCarran ficaria a seu lado depois de descobrir sua responsabilidade na prisão e talvez na morte do irmão dela? Sem dúvida o odiaria. E não estaria disposta a ser a lady do pobretão lorde Kinnoull. Bem, ele se esforçaria para mantê-la em segurança por algum tempo e protegê-la contra a ameaça que Duncrieff havia temido. Cumpriria a promessa pelo tempo que fosse possível. Uma vida alegre e amorosa não passava de expectativa tola. O trabalho dessa noite não renderia esse sonho para ele. Connor ajudou a moça a subir ao topo de uma colina. A trilha era péssima, cheia de pedras, exposta a ventos fortes e muito íngreme. Porém era a mais segura, pois ninguém ousaria subi-la à noite e com neblina, ele sabia. Sem reclamar, ela esforçava-se para acompanhá-lo, o que lhe causava admiração. Connor tinha tirado a mordaça, temendo que ela não pudesse respirar bem. Desde então, a moça havia se mantido calada. Sem dúvida não podia gastar ar com palavras. Preocupado, ele parou para lhe dar a chance de recuperar a respiração. — Como está se sentindo? — Continuo em pé e seguindo em frente. O que mais o senhor espera? — ela perguntou mal-humorada. — Bem, a senhorita passou mal um pouco antes. Não sou tão sem coração como certamente pensa. — Penso, sim. Connor resmungou qualquer coisa e reiniciou a caminhada. A neblina tinha se dissipado ali em cima, mas continuava densa no vale. No céu, 20


a Lua desaparecia sob nuvens e voltava a surgir. Ia chover, Connor refletiu. Virou-se e deu uns passos para trás a fim de ajudar a moça na escalada difícil. Continuariam num passo mais vagaroso. Ela parecia um anjo da Renascença com aquelas roupas lindas. A capa escura farfalhava como asas, o vestido vermelho-dourado brilhava como o fogo. O pingente, pendurado numa corrente de prata em volta do pescoço, reluzia como uma estrela. Sua silhueta era tão delicada. Os pés pequenos calçavam sapatos de bico fino que deveriam ser muito incômodos. Cabelos sedosos coroavam sua cabeça e emolduravam o rosto de feições perfeitas, olhos lindos, lábios exuberantes e queixo de linhas firmes. Ele não tinha esperado que Katherine MacCarran fosse essa beldade. Na verdade, não havia pensado nisso. Aliás, não a tinha conhecido pessoalmente e só a vira a distância. Porém, evitara contatos por causa do envolvimento de ambos na causa jacobita. Lembrava-se de tê-la visto na praça do mercado, numa tarde, e a achara bonitinha, com sua silhueta esguia. Mas não tinha esperado uma beleza tão espetacular. Naquele vestido elegante, ela era uma chama viva. Ao admirá-la, sentiu a pontada do desejo queimá-lo como a fagulha de uma brasa. Aborrecido, Connor lembrou-se de que estava ali porque ela era a Endiabrada e o irmão queria protegê-la com um casamento inesperado, mas seguro. Embora ignorasse isso, ela lhe havia oferecido perdão. Se Kate era um anjo reluzente, ele não passava de um demônio por se prestar a realizar tal plano. Ao alcançar o topo de outra colina, Connor estendeu-lhe a mão para ajudá-la a subir. Com a respiração ofegante, ela estava exausta. Pegou-a pelos ombros, virou-a de costas e mandou: — Solte o espartilho. Depressa, Sophie passou o braço livre pela cintura. — Não, pelo amor de Deus! E quanto ao padre? Ele fingiu entender mal a pergunta. — O padre nem notará se seu espartilho está apertado ou não. Desamarre isso. — De jeito nenhum! — Como se abre isto? — Connor indagou, passando os dedos pela cintura e percebendo que a blusa justa e a saia ampla eram unidas. Mas, então, encontrou ganchinhos nas costas da blusa e começou a soltá-los. Ela não conteve uma exclamação assustada. — Pare! Só um selvagem para fazer isso comigo! — Nesse caso, afrouxe o espartilho. A senhorita mal consegue respirar. Se não obedecer, eu mesmo o farei — ele declarou, sacando o punhal da bainha presa na 21


cintura. — Não! — Sophie protestou. — Pare quieta. Não estou ameaçando sua virtude. — Mas o senhor tem uma faca. — Todo montanhês carrega faca. Oficialmente são as armas que o rei George permite para cortar carne quando comemos. Pelos menos os ingleses pensam — explicou enquanto encontrava o cordão do espartilho. — Deixe eu soltá-lo antes que o senhor estrague minha roupa — ela pediu, passando a mão livre para as costas. Connor permitiu e observou sua maneira ágil de soltar o cordão. Em seguida, ouviu-a respirar fundo duas vezes. Quando vislumbrou a pele alva de sua cintura, foi atingido por nova fagulha de desejo. — Por favor, sr. Fantasma, feche meu vestido. Não posso enfrentar esta escalada terrível com a blusa fora do lugar — ela explicou, tentando puxá-la sobre os ombros expostos. — Ah, sim, obrigada por ter deixado eu soltar o espartilho. — Ora, a senhorita não podia respirar bem — ele resmungou, constrangido com seu agradecimento, enquanto arrumava a blusa. Não conseguiu fechar os ganchinhos na cintura por causa do espartilho solto. Ao notar a curva das costas um pouco abaixo, foi atingido pela terceira fagulha de desejo. Endireitou sua capa e afastou-se, puxando-a pela corda. — Mais depressa. Temos pouco tempo. — O senhor não passa de um animal. — Se está preocupada com seu vestido, eu lhe comprarei outro. — O senhor teria de roubar muitas vacas para pagar por ele. — Gado. Eu teria de roubar muitas cabeças de gado — ele a corrigiu em tom frio. Por algum tempo, seguiram em silêncio. Por dentro, Connor fervia. Sem dúvida um animal, refletiu. Era o pior dos renegados ao arrastá-la pelas colinas acima para, depois, forçá-la a se casar. O comportamento dele era selvagem e a maneira de tratá-la, indesculpável. Como marido, tinha muito pouco a oferecer e não gostava do que isso o lembrava. — Aonde estamos indo? — ela indagou. — Não muito longe. Atrás, ela tropeçou e quase caiu. Connor a amparou a tempo, segurou sua mão e passou a andar a seu lado. — Obrigada — ela agradeceu. Incrível receber sua gratidão depois do que tinha 22


feito e do que ainda pretendia fazer, ele refletiu. — Para uma endiabrada, a senhorita é muito atenciosa. — Endiabrada?! Eu não! Ele riu em tom de dúvida e não soltou sua mão, a corda balançando entre ambos. A energia do montanhês começava a irritar Sophie. — Vá mais devagar. Meus pés estão doendo — ela se queixou. — Falta pouco e a senhorita vai indo muito bem. — O senhor não está galgando montanhas com espartilho, vestido rodado e sapatos para dançar. Eu queria um saiote xadrez e um par de botas firmes. — De fato seria mais cômodo. Se quiser, tire o espartilho e o vestido, mas deixe os sapatos para dançar. Seus pés não estão acostumados a andar descalços. — Não tenho a intenção de perambular por aqui em roupas de baixo. E nenhuma parte de meu corpo está habituada a estas caminhadas. Vá mais devagar. Melhor. Pare e me deixe ir embora. Encontrarei o caminho para casa. Connor parou e virou-se. — Srta. MacCarran, não posso deixá-la ir. Falta só um pequeno trecho, garanto. E eu sempre cumpro minha palavra. Pôs o braço sobre seus ombros para ampará-la. No início, Sophie resistiu, mas a firmeza dele lhe dava a sensação de segurança e a acalmava. Sob o luar, ele parecia um anjo sombrio, as feições atraentes, o porte altivo graças à altura e aos ombros largos. Os movimentos ágeis mostravam que ele se sentia à vontade em contato com a natureza. Esse montanhês rude, de comportamento inflexível, apresentava características intrigantes. Falava como um homem instruído e lhe dispensava certas cortesias como ajudá-la a atravessar córregos ou a enfrentar escaladas mais íngremes. Por essa parte, sentia-se grata e, pelo resto, mais curiosa do que amedrontada. Enquanto caminhavam, ela apreciava a brisa nos cabelos e os odores da vegetação. Durante os anos passados no continente, ela sentia imensa saudade da Escócia. Só agora, e mesmo ao lado desse estranho, a sensação boa de ter voltado a dominava. Por um momento, Sophie teve a impressão de ser igual a ele e não sua prisioneira. Poder e paixão fluíam em seu corpo como a água pelas montanhas. O Dom de Fada parecia instigá-la, o poder que a ajudava a cultivar flores e que, nesse, momento, gostaria de reprimir. Durante a vida tranqüila na escola do convento, ela sonhava enfrentar aventuras. E esse montanhês a desafiava a criar coragem e lutar por sua liberdade. A companhia dele despertava algo em seu íntimo. Tocou o cristal pendurado em volta do pescoço, lembrança constante de seu dever secreto. Para proteger seu dom, ela havia escondido as ambições mais profundas, 23


aprendido a cultivar a paz. Porém, não encontrara ainda a paz verdadeira e a satisfação plena. O tempo todo almejava alguma coisa mais na vida. O montanhês estendeu-lhe a mão para ajudá-la a ultrapassar umas pedras. Ao chegar ao outro lado, ela perdeu o equilíbrio e teria caído se ele não a segurasse de encontro ao peito. Com a maior naturalidade, Sophie enlaçou-o pelo pescoço e prensou o corpo no dele. Ao sentir a firmeza daquele peito e perplexa com a sensação excitante, ela levantou o olhar. mão dele, atrás de sua cintura, escorregou para dentro da abertura do espartilho. — O que tenciona fazer comigo, senhor? — indagou meio sem fôlego. Ele não respondeu. A apertou a mão em sua cintura enquanto inclinava a cabeça devagar. Roçou a ponta do nariz com o dele e juntou os lábios aos seus. O beijo foi suave e ardente, porém, rápido demais. Sophie se viu ansiosa por outro em vez de se sentir ofendida ou amedrontada. Mas só foi capaz de fitá-lo com olhar atônito. Connor pegou sua mão e recomeçou a andar depressa pelo vale entre duas colinas. Sophie o acompanhava, a cabeça rodopiando. Depois de alguns minutos, ele diminuiu o passo e a encarou. — Peço desculpa, srta. MacCarran. — O... o quê? — Peço desculpa. Perplexa, Sophie imaginou se ele se desculpava pelo beijo rápido e ardente ou pelo passo apressado que ela mal conseguia acompanhar. Raptada, arrastada, beijada por um homem cujo nome ela nem sabia, sentiu a irritação retornar. Ele havia lhe contado muito pouco sobre si mesmo e o rapto e nem respondera a suas perguntas. Num espaço de poucas horas, seu mundo tinha vi rado de cabeça para baixo e ele apenas pedia desculpa. Arrebanhou a saia e esforçou-se para acompanhá-lo. Quando pararam no topo de uma colina, ela fechou os olhos, ergueu o rosto e respirou fundo o ar estimulante das Terras Altas. O montanhês tocou seu braço e Sophie abriu os olhos. Logo adiante, ela viu uma capela.

Capítulo III

24


A construção medieval e retangular não tinha mais telhado. As paredes inclinadas juntavam-se no topo. Numa delas havia uma porta aberta e, na outra, duas janelas arqueadas em cima. Uma cruz de pedra erguia-se no pátio. — Conheço este lugar. É a capela de São Fulan e fica nas terras do clã MacCarran — Sophie disse devagar. — Certo. Vamos em frente — Connor ordenou, puxando-a pelo braço. — Não! Sei o que o senhor quer — ela declarou em pânico, o que o fez parar. — E do que se trata? — Eu me recuso a me casar ali. O noivo está esperando lá dentro? Sir Henry lhe pagou para me seqüestrar? — Eu não aceitaria um vintém furado de Campbell. Nós dois vamos nos casar, srta. MacCarran. — O quê?! Além de me raptar, prender como se eu fosse uma criminosa, ainda por cima quer me forçar a casar com o senhor? Aqui nas terras dos MacCarran, como se tivesse permissão de meu clã? Não aceito! — Sophie declarou puxando a corda. — A senhorita não tem escolha, pois é um direito meu. — Direito?! Nem sei seu nome! Onde arranjou essa idéia louca de que tem o direito de me forçar a aceitá-lo como marido? — A senhorita questiona demais um homem. — O senhor merece ser questionado. Ele resmungou algo e a forçou a acompanhá-lo pelo capinzal seco. Mas quando chegaram à entrada de pedra, ela parou. — Chega! — Connor protestou, impaciente, enquanto a carregava para o interior da capela em ruínas. Sophie foi dominada por um misto de terror e de excitação. Sem teto, com as paredes rachadas, o santuário estava vazio, exceto por um altar de pedra lascada, com velas acesas em cima e três homens em pé na frente. Ela reconheceu os dois gaélicos vistos antes. O terceiro vestia batina preta e xale branco. Desesperada, balbuciou: — Não, por favor. Não quero isso. O montanhês a segurou pelos braços. — Nós nos casaremos aqui esta noite. Empenhei minha palavra que faria isso. — Pois eu não empenhei a minha. Em silêncio, Connor a estreitou entre os braços e tocou sua boca. Dessa vez, o beijo foi longo, os lábios dele incrivelmente possessivos. Uma sensação estimulante como a do sol de verão e de sabor de mel aquecido a inundou, levando-a a ceder. Sem querer, 25


amoleceu o corpo entre aqueles braços fortes. Anos antes, ela havia sido beijada algumas vezes por um antigo namorado, mas nunca dessa forma e por um homem igual a esse. As pernas fraquejaram e Sophie agarrou-se às roupas dele para não cair. Em vez de empurrá-lo como tencionava, puxou-o para mais perto. Não queria que o beijo terminasse. O corpo exigia, ansiava por mais. Porém, ele afastou-se. — Agora, a senhorita empenhou sua palavra. Em seguida, conduziu-a em direção ao altar. Nesgas de neblina e de luar caíam pela nave da capela enquanto Sophie, atordoada, seguia em frente. — O padre está embriagado — Connor disse baixinho a Andrew. Depois de se aquietar com o beijo, a moça tentava escapar outra vez. Ele a segurou com firmeza e dirigiu um olhar severo ao sacerdote. Este o ignorou. — O homem mal se agüenta em pé — reclamou para Neill. — Roderick e Padraig deram uma garrafa do melhor uísque de minha mulher para ele enquanto esperavam. O homem estava indócil e exigia pagamento adiantado. Era só o que tínhamos. Ele bebeu demais e o efeito foi rápido — Neill cochichou. — Um tanto do melhor uísque de sua mulher embriagaria qualquer um em questão de minutos, até mesmo um beberrão como ele — Connor disse por entre os dentes. — Foi o único padre que conseguimos. Você disse que queria uma cerimônia católica e nesta capela. Fizemos o que foi possível — Andrew explicou. A noiva arfava, Andrew afastou-se dela, Connor praguejou baixinho e o sacerdote os chamou para mais perto. — Boa-noite — Connor o cumprimentou. — Padre Henderson, da pequena paróquia de Glen, estes são o noivo e a noiva — Neill apresentou. — Mas que noiva bonita — o sacerdote elogiou. Sophie tentou soltar-se, mas Connor a segurou com firmeza e fez um sinal para Andrew ficar de seu outro lado. Este obedeceu e, enquanto estendia a mão, murmurou em inglês: — Aqui, senhorita. — Que lindas! — Sophie exclamou ao receber um buquê de flores do campo e sorrir para Andrew. Connor ficou chocado. Adorável e espontâneo, seu sorriso brilhava como as chamas das velas. Porém, ela virou-se, fitou-o e o sorriso desapareceu de seu rosto. — Não sei por que a senhorita sorriu para Andrew. Ele também ajudou a raptá-la — reclamou, petulante. 26


— Mas ele me trouxe este buquê. Adoro flores. — Não notei nenhuma pelo caminho. — O senhor não as teria colhido caso as houvesse visto. Verdade, Connor refletiu, mas não admitiria. Com a mão nos ombros de Sophie, virou-a para o altar. O padre Henderson cambaleou e Neill teve de ampará-lo. — O que ele tem? — Sophie quis saber. — Bêbedo — Connor respondeu, lacônico. — Eu me recuso a ser casada por um padre embriagado. — Pois vai, assim como eu — ele declarou. Sophie dirigiu-se ao sacerdote numa voz suave: — Padre Henderson, muito prazer em conhecê-lo, mas lamento informá-lo de que não haverá casamento algum. Estes montanheses o levarão para casa agora — ela acrescentou com um olhar enérgico para Connor. — Ninguém vai a lugar algum! — ele declarou. — Não vai haver casamento? Ora, me prometeram um barrilete de uísque — o padre choramingou. — O quê? — Connor indagou, olhando para Neill. — Um barrilete de uísque e uma vaca para a paróquia dele. — O senhor não vai pagar por meu casamento com gado roubado e uísque! — Sophie declarou. Ela havia entendido o diálogo em gaélico, Connor percebeu. — Pelo menos estamos pagando alguma coisa, apesar de sermos salteadores. —Mas esta capela é mal-assombrada. Precisamos sair daqui depressa — ela argumentou, fingindo medo. — Correremos o risco. Nem mais uma desculpa. Prossiga, padre — Connor determinou. — Meus amados irmãos — o sacerdote começou, mas a noiva o interrompeu dirigindo-se a Connor. — O senhor disse que empenhou sua palavra. Para quem? — Explicarei mais tarde. — Estamos reunidos aqui para... — o padre continuou. — Não, o senhor explicará agora — ela insistiu. O padre não disfarçou a surpresa. Andrew e Neill trocaram olhares preocupados. — Senhores, nos dêem licença por um instante — Connor pediu, e levou Sophie para a lateral do altar. 27


— Quem lhe pagou para me raptar? — Ninguém. O roubo de noivas é comum nesta região. Meus próprios pais iniciaram a vida matrimonial dessa forma. — E vejam só o filho que tiveram. Explique logo essa questão da promessa. Connor sorriu. Ela era a combinação de uma gata selvagem e de um filhotinho manso. Com cuidado, escolheu bem as palavras. — Tenho a permissão de seu irmão para me casar com a senhorita. — Não acredito. — Pois então, leia isto — ele disse enquanto tirava um papel dobrado de sob a manta xadrez. Desconfiada, Sophie abriu a página amassada e suja. Ao expô-la à luz das velas, franziu a testa e ergueu o rosto. Connor notou que ela havia empalidecido. — Estas manchas são de sangue? — São. Do dele. Vamos, leia. Num murmúrio, ela obedeceu. — Eu, Robert MacCarran de Duncrieff, solicito e dou permissão a Connor MacPherson... O que são estas palavras riscadas e substituídas por Glendoon? — Isso não tem importância — Connor desconversou, pois não queria contar que as palavras eram lorde Kinnoull. — Connor MacPherson é seu nome? — É, sim. Leia o resto. — ...para se casar com minha irmã, Katherine Sophie MacCarran. Assinado, Robert MacCarran de Duncrieff... — Chefe do clã MacCarran — Connor terminou por ela. — A data é de duas semanas atrás. Tive de esperar esse tempo pelo seu retorno ao castelo de Duncrieff. — A assinatura parece a dele, mas Rob jamais faria isto. — Pois fez. — Ora, meu pai prometeu minha mão para sir Henry Campbell. — Esse compromisso fica desfeito a partir de hoje. Seu irmão me disse que queria impedir o casamento. Fiquei feliz em poder atendê-lo. — Raptando-me? E embebedando o padre para que ele não se lembrasse de quem casaria esta noite? — Essa parte não foi proposital — Connor declarou. — Se isso foi um acordo entre Robert e o senhor, por que o sangue dele manchou o papel? — Robert já tinha escrito o documento e guardado dentro da camisa quando 28


fomos atacados nas colinas. Ele recebeu um tiro de pistola e sangrava muito. Entregou o papel para mim e insistiu que eu prometesse satisfazer-lhe a vontade. — Não acredito. — Pouco importa, pois a vontade dele será atendida. — Se o senhor estava com meu irmão naquela noite, por que não impediu que ele fosse capturado? O coração de Connor disparou. — Fiz o possível e o impossível. — Dizem que o senhor o traiu. — Não é verdade, acredite ou não. Ele ainda não estava preparado para lhe contar que Rob estava muito ferido e descrever seus esforços para salvá-lo. Também não ia revelar os boatos sobre a morte de Robert MacCarran na prisão. Se fosse verdade, a notícia tinha sido mantida em segredo, para evitar novas rebeliões dos montanheses de Perthshire, leais à causa Stuart. Kate, a Endiabrada, tinha ligações com a espionagem, e Connor esperava que ela soubesse parte da história. Engano seu. — Isto não pode ser sangue dele — Sophie murmurou. — Mas é — Connor afirmou. Não queria ter mostrado o papel por causa das manchas de sangue. Porém, Kate tinha o direito de vê-lo, e ele já conhecia sua coragem. Seus olhos encheram-se de lágrimas enquanto tocava o papel. — Como o senhor pode afirmar que é amigo de Robert? — Porque sou e não o traí. Tudo que eu quis foi cumprir a promessa feita a ele e fazer sua vontade, não a minha. A senhorita queria a verdade, agora a tem. — Ele jamais esperaria que eu me casasse com um fora-da-lei. Teria de ser forçada. Magoado e com o orgulho ferido, Connor respirou fundo. — Seu irmão sabia que a senhorita não se casaria de boa vontade, e sugeriu que eu a raptasse. A intenção dele era apenas protegê-la. — Penso que o senhor o forçou a concordar. Primeiro o atacou e exigiu isto, certo de que conseguiria uma noiva rica. Depois o traiu, entregando-o aos ingleses. As palavras o cortaram como um punhal. — Por que eu faria isso? Ainda não preciso de uma esposa. E ele não teve tempo de escrever uma carta detalhada. Acredite em mim, srta. MacCarran, seu irmão já tinha o bilhete dentro da camisa quando nos encontramos. Havia planejado isto e arrancou minha promessa, que cumprirei não importa o quanto custe. 29


— O senhor não pode manter sua palavra se a noiva se recusar. — Moça, chega dessa troca inútil de palavras. Minha paciência esgotou. Com a mão em seu braço, Connor levou-a de volta para a frente do altar. — Duas vacas, padre, e dois barriletes de uísque se o senhor continuar a cerimônia — Connor disse. O próprio demônio a segurava diante do altar enquanto o padre recitava a cerimônia em latim. Sophie relanceou o olhar para Connor MacPherson. A expressão angelical de guerreiro tinha mudado para a de atraente vilão, cujo esquema ela não conseguia decifrar. Sentia o calor do seu corpo, o odor de fu maça de madeira e a pressão do cabo do punhal em suas costelas. Os dedos dele apertavam seu ombro e, se ousasse gritar, eles fechariam sua boca. Já sabia que seus protestos não impediriam o casamento. MacPherson teria contado a verdade sobre o bilhete manchado com o sangue de Robert? Não entendia por que o irmão a tinha dado em casamento a um montanhês fugitivo. Não fazia sentido. Sem dúvida a assinatura era de Robert, mas o montanhês poderia tê-lo forçado a tomar a decisão. Por outro lado, se o irmão quisesse mesmo essa união, talvez precisasse de sua cumplicidade. — Responda — o noivo disse, e o padre tornou a indagar seu nome. Sophie olhou em volta. A capela era a mais antiga de seu clã. De repente ela precisava saber de alguma coisa, conseguir um tipo de prova. — Por que o senhor me trouxe até aqui? Poderia ter encontrado uma igreja mais próxima para nos casarmos. — Seu irmão insistiu que fosse aqui, embora eu não saiba que diferença faz — Connor respondeu por entre os dentes. Essas palavras provavam a veracidade da vontade de Robert. Muitos anos antes, os casamentos do clã MacCarran eram realizados ali. Ela, Robert e Kate, a irmã deles, sempre diziam que se casariam nessa capela. Ainda em silêncio e adiando a resposta, Sophie deu-se conta de que, ao aceitar a escolha do irmão para marido, bandido ou não, ela se veria livre do casamento com sir Henry. Abençoando Robert pela tentativa, apesar de mal planejada, de salvá-la de um futuro terrível, numa voz rouca murmurou: — Katherine Sophie MacCarran. O irmão tinha usado seu nome completo de batismo. Mais uma prova. O padre prosseguiu e ela, automaticamente, repetiu as promessas. Então, foi a vez de Connor MacPherson. Em seguida, foram declarados marido e mulher. Casada. Seu coração disparou enquanto o mundo rodopiava. Connor inclinou-se e a beijou. Os lábios dele estavam quentes e macios nos seus e, embora Sophie não 30


retribuísse a carícia, suas pernas fraquejaram. A capela escura deu a impressão de ruir a seu redor. O corpo amoleceu e ela teria caído se seu montanhês não a segurasse pela cintura. Lutou para não desmaiar, pois não poderia demonstrar fraqueza. Esforçou-se para arregimentar coragem e mantêla. Connor a levou para fora e a fez sentar-se numa pedra. — Respire fundo e bem devagar. Ofegante, ela tentava aspirar ar suficiente. MacPherson dirigiu-se ao montanhês chamado Neill, que lhe entregou um frasco de prata. Ele o abriu e deu a Sophie. — Beba um gole. — Não tomo bebidas alcoólicas — ela disse ao sentir o cheiro forte de uísque. — Esta a reanimará. Não quero que desmaie. A noite ainda não terminou. Sophie o olhou de soslaio, o coração voltando a disparar por causa da alusão à noite. Pegou o frasco e tomou um pouco. Tossiu ao sentir a garganta queimar. Teve uma surpresa agradável quando um sabor suave e uma onda de calor se seguiram. Tomou outro gole. A reação foi a mesma, mas já conseguia respirar fundo. — Estou bem melhor. Obrigada. — Vá devagar — Connor recomendou ao vê-la erguer o frasco pela terceira vez. Ele o pegou, tomou um tanto e o enfiou entre as dobras da manta xadrez. Então, estendeu-lhe a mão. Como se recusasse a ser ajudada, Sophie levantou-se sozinha. Ainda estava um pouco trêmula, apesar de o uísque ter dado uma ponta de energia. — Agora o que faremos? — indagou. — Vamos embora — ele disse pegando seu braço. Connor diminuiu o passo e virou-se para trás, pois a noiva tinha puxado a corda. No início da caminhada, rumo ao castelo Glendoon, ela o havia acompanhado bem, mas com certeza já estava exausta. Ele detestava infligir-lhe mais esse esforço, e se o fazia era porque queria levá-la depressa para a segurança. — Estou com frio, fome e morta de cansaço. Meus pés incharam, a barra do meu vestido molhou e não sei aonde o senhor está me levando. Aliás, nem sei quem realmente o senhor é! — Sophie queixou-se, irritada. — Suponho que queira descansar um pouco — Connor sugeriu. — Quero ir para minha casa. — Infelizmente, isso não é possível. — Então, me leve para a sua para que eu possa descansar. Sozinha — ela acrescentou com olhar furioso.

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— Eu não tenho uma casa — Connor contou sem saber por quê. Geralmente não falava da vida, dos negócios e dos sentimentos com ninguém. — Nenhuma?! — ela exclamou, incrédula. — Até assaltantes têm casas, mesmo que sejam palhoças. — Existe um lugar onde me abrigo. Não o considero meu e, muito menos, no sentido de lar. — Se tiver paredes, telhado e uma lareira, serve — ela disse, impaciente. — Quero um lugar onde possa dormir em segurança. Ah, sim, e uma xícara de chá. O quê? A noiva esperava que ele lhe preparasse chá, massageasse seus pés e cantasse para ela dormir? Tirou o frasco de sob a manta e declarou: — Por enquanto, temos de nos contentar com outro gole de uisge beatha. Depressa, Sophie pegou o frasco e o levou aos lábios. — Só um pouco — Connor avisou pegando-o de volta e tomando um bom trago. Pouco depois, reiniciavam a caminhada lado a lado, a corda balançando entre os dois. — Desculpe, sr. MacPherson. Eu me esforço para não dar vazão a meu mau gênio. — Ora, tenho a impressão de que se sente bem à vontade com ele. Connor surpreendeu-se ao ver o olhar de Sophie ressentido. Desviou os olhos dela depressa, pois já se sentia culpado antes daquela sua expressão. — Mesmo assim, me perdoe. O senhor demonstrou alguma bondade nesta situação, e por isso me sinto grata. Sua desculpa parecia sincera e ele, não sabendo como responder, disse apenas: — Não temos muito mais para caminhar. Menos de duas milhas. Ela suspirou e continuou em frente. Apesar do cansaço óbvio, mantinha a luminosidade que o fascinava. Os cabelos soltos emolduravam-lhe o rosto, aumentando sua beleza. — Sr. MacPherson, preciso descansar logo. Ou terei de ser arrastada por essa corda horrível, exceto se for carregada como uma saca de lã. — Se sente necessidade de parar, ali estão umas touceiras que lhe darão alguma privacidade. — Eu não quis dizer... Ah, muito bem. Mas não com o senhor segurando esta corda. Por favor, me solte. — Apenas por um momento. Se pretende fugir... — Sei o que o senhor faria. Obrigada por sua bondade. 32


— A senhorita está sempre pronta a agradecer — Connor comentou enquanto desfazia os nós da corda. — Fui ensinada a ser atenciosa, e minha educação num convento insistia que eu reconhecesse os favores. Tornou-se um hábito. — Convento? — ele indagou, curioso. — Meu pai foi exilado da Escócia anos atrás. Eu e meus parentes fomos educados na França e em Flandres. Minha irmã e eu ficamos internadas na escola de um convento. Ele sabia que Robert e Kate tinham voltado para a Escócia dois anos antes, enquanto a outra irmã continuara na escola. — Eu mesmo passei algum tempo na França. Muitos escoceses, com ligações jacobitas, foram para lá e até mesmo para a corte de James Stuart em Roma. — Foi o que aconteceu com minha família. Mas onde fica sua casa? Connor manteve-se em silêncio por uns instantes. Não queria lhe contar que fora criado na Kinnoull House e que era o herdeiro privilegiado de um visconde. E muito menos que as terras confiscadas do pai encontravam-se agora nas mãos de sir Henry Campbell, que a teria feito senhora da Kinnoull. Tudo que possuía era um título sem valor. Havia se casado com ela para manter a palavra dada, embora isso também fosse vingança contra o magistrado. Infelizmente, não tinha um lar à altura para lhe oferecer. Diante dela, sentia-se embaraçado, diminuído, o que lhe feria o orgulho. Não gostava de ouvir seus pedidos de desculpa e agradecimentos. — Perdi minha casa e minha família — ele respondeu finalmente. — Descanso a cabeça onde posso e faço o que quero. Mas vou lhe proporcionar um ninho aconchegante esta noite, numa destas colinas. Sophie lhe ofereceu uma sombra de sorriso. — Obrigada. Estou tão cansada que conseguirei dormir em qualquer canto. Aliás, vou considerar muita sorte se tiver um lugar para encostar a cabeça. — Acredito. Olhe, já soltei a corda. Tome cuidado ao ir para trás das touceiras. Elas podem ter espinhos. Sophie lhe dirigiu um olhar eloqüente e afastou-se com movimentos de rainha para sumir atrás da vegetação. — Não pense em fugir agora que está sem a corda, sra. MacPherson — Connor avisou em tom amigável. — Sr. MacPherson, esse não é meu nome. Ele não conteve o riso. Cerca de milha e meia mais adiante, o barulho de uma cachoeira foi se acentuando e Connor sentiu a umidade no ar. Segurou a mão da noiva e ajudou-a a subir outra encosta íngreme. Ao fitá-la sob o luar, ela sorriu para ele da mesma forma 33


exuberante com que tinha sorrido para Andrew por causa das flores. Connor suspeitou que a expressão feliz e o olhar brilhante não passavam de efeito do uísque. Ele tinha bebido apenas um gole para se esquentar, pois a bebida o relaxava demais, quando deveria se concentrar unicamente em levar a moça para a segurança. Ela tropeçou e gemeu. — Estou cansada demais. Seu esconderijo fica muito longe? — Não falta muito mais, dou minha palavra. — E o senhor sempre a cumpre. Se meu irmão esperava que mantivesse empenhada a ele, farei o mesmo quanto ao resto do caminho. — Confie em mim. Cuidado, Katherine — Connor recomendou ao ajudá-la a atravessar um córrego sobre umas pedras escorregadias. — Não me trate por esse nome. Ninguém me chama assim. E embora tenhamos nos casado esta noite, ainda não gozamos de intimidade suficiente para usar os nomes de batismo. — Sra. MacPherson então, ou até srta. MacCarran, segundo o costume escocês. — De fato as mulheres escocesas usam, muitas vezes, o nome de solteira. Prefiro srta. MacCarran, pois não sei por quanto tempo ficaremos casados. — Se espera enviuvar graças à gentileza de algum parente seu, desista. — Embora meus primos tenham uma queixa concreta contra o senhor, não sou tão má a ponto de desejar sua morte, apesar do que fez esta noite e do que pretende fazer mais tarde. Connor parou e lhe dirigiu um olhar curioso. — E quais, imagina, são minhas intenções? Sophie não respondeu, mas a expressão revelava o pensamento. Devagar, ele a puxou para perto. — Suponho que imagine o pior de mim. Não sou um aproveitador. — Apenas estou ciente do que deverá acontecer — ela afirmou. Ele nunca havia visto criatura tão linda e não queria assustá-la, embora fosse tarde demais para evitar isso. Sem querer, inclinou-se para mais perto e disse numa voz suave: — Se fosse um aproveitador como pensa, já teria feito isso numa cama de urzes. Sophie não se intimidou, mas o peito arfava com a respiração ofegante. Sua coragem e determinação eram firmes como aço. Ele acariciou-a no rosto e embrenhou os dedos em seus cabelos. Notou como eram macios e respirou fundo. 34


— Conte o que deverá acontecer, ou melhor, o que espera. Ela aconchegou o rosto na mão de Connor e fechou os olhos. Baixinho, respondeu: — Se me beijasse outra vez, talvez descobríssemos o que se seguiria. O desejo o dominou como uma onda avassaladora. Aninhou-a entre os braços e a beijou. O coração ameaçava saltar do peito. Uma corrente de beijos se seguiu e ele não conseguia interrompê-la. Cada um mais delicioso que o anterior. Seu sabor era de flores com um leve toque de uísque. Quando ela suspirou e aconchegou-se mais, Connor esqueceu-se de tudo e concentrouse no beijo. Não havia mais barreiras entre ambos, nem perigo, dúvidas, e não eram mais estranhos. Sophie tornou a suspirar e entreabriu os lábios, entregando-se inteiramente ao beijo. Ele sentiu o desejo crescer e, ansioso, queria satisfazê-lo. Acariciou-a nos ombros para, em seguida, escorregar as mãos para o topo macio de seus seios. Desceu-as mais a fim de tocá-la nas costas, e na cintura encontrou a abertura para soltar o espartilho. Connor não sabia o que lhe acontecia. Não podia possuí-la ali como o bruto que ela o imaginava ser. Não se renderia ao desejo que ameaçava roubar-lhe os propósitos racionais. Sôfrega e com os lábios trêmulos, Sophie exigia mais. Porém, com grande esforço, ele interrompeu o beijo. Enquanto normalizava a respiração, segurou-a pela cintura e encostou a testa na sua. Ela tocou-o no rosto numa carícia suave, comovente e ao mesmo tempo de absolvição. Connor fechou os olhos. Não merecia seu perdão nem beijá-la como tinha feito. — Eu nem o conheço, Connor MacPherson, e você não deveria me tocar de forma alguma. Mas quando toca em mim, parece que é tão certo... Mentalmente, ele concordou. Fazer amor com ela seria magnífico, deu-se conta, muito além de qualquer sonho que já tivera. Cada vez que se beijavam, sentia sua paixão igualar-se à dele. Calado, não podia pensar em como lhe responder. Não tinha antecipado tal desejo, que não se resumia a simples luxúria. Explosões temperamentais ele sabia controlar, mas não havia contado com meiguice e gratidão por parte da noiva raptada. Não estava preparado para as próprias reações fortes. Casar-se com uma jovem voluntariosa era uma coisa, e outra bem diferente era equilibrar-se em areia movediça. — Eu não estou amedrontada com o que vai acontecer — Sophie murmurou em voz trêmula. — Se meu irmão queria que nos casássemos, devia ter suas razões. Com certeza desejava que eu me livrasse do compromisso de meu pai com sir Henry Campbell de Kinnoull. 35


— Sir Henry não é de Kinnoull. Ele apenas arrenda a propriedade. E não tem direito sobre você — Connor protestou. — Não mais. Embora sir Henry seja um homem decente, calculo, eu não queria me casar com ele. Tentei tratar do assunto durante o jantar, no início da noite, mas ele esquivou-se. Aliás, quase não me deu ouvidos. — Porque ele não é um homem decente — Connor afirmou. — Todo homem tem um propósito determinado. Sir Henry demonstrou interesse e preocupação com os problemas de meu clã. Mesmo assim, eu me sinto grata por você ter me livrado de tal casamento. Incrível que ela conseguisse ver um lado positivo na situação. — Não me considere herói, pois não sou. — Confesso, MacPherson, que já estou apreciando o fato de ter sido raptada. — Apreciando?! — É um tanto excitante. Eu tinha um anseio deplorável que nunca foi satisfeito. Connor gostaria que ela não houvesse dito isso. O desejo controlado ameaçava retornar. — A aventura sempre me atraiu, mas jamais tive a oportunidade de apreciar uma até esta noite. Ora, a moça havia sido espiã jacobita por mais de um ano, segundo o irmão. Que tipo de aventura poderia desejar ainda? — Todos nós precisamos de coragem e audácia para enfrentar esta vida. E você já demonstrou as suas — ele disse. — Não creio. De qualquer forma, peço desculpa por minhas explosões de raiva. Nem sempre sei me controlar. Mesmo assim, discordo de você quanto à agitação desta noite. — Bem, vejo que temos pontos de vista diferentes. Ela vergava de acordo com a direção do vento, o que o deixava confuso e sem saber como enfrentar as mudanças. Briguenta e atenciosa, corajosa e tímida, cerimoniosa e ardente, ela era ao mesmo tempo endiabrada e angelical. Uma bruxa imprevisível, ele refletiu. Pegou sua mão e disse: — Vamos continuar em frente. — Afinal, para onde? O esconderijo de um fora-da-lei? Talvez uma caverna? Será que teremos fogo e alimento lá? — Quanto luxo! Não vai querer também um banho quente e uma criada? Ou, quem sabe, você pretenda pedir um mosquetão e um tanto de pólvora para o próprio uso? Até onde vai sua sede por aventura? — Eu não devia ter mencionado essa fantasia tola. Não tenho a coragem de uma 36


abelha. — Tem, sim, e de um enxame delas, eu diria — Connor comentou. — A única coisa que quero é uma cama, por favor. Só para mim. Isto é, se você tiver. O corpo todo dele vibrou sob uma excitação poderosa. — Um assaltante montanhês conta apenas com um ninho de urzes. — Nada de cama, de lareira, de casa? Você é, de fato, um fugitivo, um genuíno fora-da-lei. — Eu sou feroz como os lobos. Agora, fique quietinha — Connor disse, apesar de gostar do som de sua voz, ainda mais acompanhado pelo ciciar da brisa. Também apreciava, às vezes, sua prosa. Sophie não o atendeu e continuou a falar: — Não vou permanecer num abrigo sujo por muito tempo, eu aviso. Fico bem mais satisfeita numa casa onde possa me movimentar. — Desperdice tempo o quanto quiser depois. Agora, fique quieta. Ele pôs a mão sobre sua boca, mas não com a indelicadeza anterior e sim bem de leve. Um erro. Seus lábios, sob os dedos, estavam úmidos, macios e quase tão estimulantes como quando eram beijados. Rápido, afastou a mão. Não podia se apressar. Primeiro, tinha de decifrar a situação e saber que lugar ocupava nela. — Você está falando tanto quanto eu — ela o acusou. Em seguida, espirrou e tossiu. Connor pegou o frasco e passou para ela, apesar de achar isso mais um erro. Depois que a viu tomar três goles, pegou-o de volta e bebeu um tanto também. Recomeçaram a andar e, no riacho seguinte, Sophie pulou sozinha pelas pedras. Abriu os braços e riu. — Silêncio! — Connor advertiu, puxando-a para perto. — Ou você vai me amordaçar? — Exatamente. — E me amarrar também? — O uísque fez mais do que aquecê-la e lhe dar energia, penso. — Sim. Também acabou com meu medo de bandidos. — Além de outras coisas mais. Gata selvagem, ele pensou. Que diabo tinha arranjado essa noite? — Um homem sem casa não precisa de uma esposa — comentou Sophie. — O quê?! 37


— Por que você roubou uma noiva se não tem casa nem se importa com isso? Não estamos mais na Idade Média. Um homem nem sempre precisa de uma esposa a não ser... — calou-se e deu de ombros. — Para quê, então? — Amar. Uma união de corações e mentes sob as bênçãos divinas. — Ora, fique quieta ou eu, depressa, lhe mostrarei para que um homem precisa de uma esposa. — Nem sempre ele necessita de uma para isso. Em todas as cidades, existem mulheres que cuidarão de tais carências. Aliás, ouvi contar que alguns homens preferem se satisfazer sozinhos. — Por Deus, mulher! — ele exclamou, estupefato. — Você tem língua solta. Onde ouviu tamanha tolice? — Na escola do convento. Algumas das alunas são muito bem informadas a respeito dos homens. — E o que dizem. Agora, feche a boca — Connor ordenou e, apreensivo, olhou para trás tentando ver se não estavam sendo seguidos. — Desculpe por falar demais. Deve ser efeito do uísque. Não estou acostumada a beber. — Percebi — ele resmungou enquanto a forçava a seguir em frente.

Capítulo IV

Ao emergir de um bosque de pinheiros na orla de uma escarpa, Sophie ouviu o ribombar da cachoeira. Seguiu MacPherson, deliciando-se com o aroma das folhas de pinheiro esmagadas sob os passos. Olhou para a frente e, apesar das sombras, avistou o véu branco da água que despencava pelo paredão de rocha. Mais perto, viu uma abertura negra na terra onde a água caía e formava um riacho borbulhante. A firmeza da mão do montanhês na sua lhe dava a sensação de segurança enquanto olhava em volta. — Ah, é tão agreste e lindo aqui! — exclamou em voz bem alta para ser ouvida acima do barulho da água. Em silêncio, Connor a puxou pela mão e a levou em direção à cachoeira. Sophie o acompanhou sem protestar. Embora não confiasse nele sob vários aspectos, já sabia 38


que MacPherson a protegeria. Observou as costas e os ombros largos sob a manta xadrez. As pernas musculosas davam apenas um passo em lugar de dois seus. Ele exibia vigor e graça física a cada movimento. Ao pensar para onde a estava levando, foi dominada por algo excitante. Ele guardava os segredos com facilidade. Tudo que sabia a seu respeito, além do nome, era o esforço para evitar contatos com soldados e o fato, positivo ou negativo, de conhecer seu irmão. O resto tinha de ficar por conta de sua imaginação. Connor a conduziu para longe do estrondo da cachoeira. Subiram por uma trilha tortuosa enquanto o barulho ensurdecedor diminuía aos poucos. Então, seguiram pela margem do riacho. Iam tão perto da água, que logo os sapatos de Sophie e a barra do vestido estavam molhados. Através das sombras enevoadas, ela só podia enxergar a superfície rendada do riacho e a silhueta escarpada da encosta. Calculava que eles ainda se encontravam na propriedade dos MacCarran que se estendia por muitas milhas além da capela. Uma propriedade modesta segundo alguns padrões, mas vasta o suficiente. Ao pisar numa poça de água fria, Sophie gritou. Os sapatos elegantes de salto alto, sola fina e fivelas de prata eram impraticáveis para caminhadas em terreno acidentado. As pontas dos pés estavam geladas e bolhas já se formavam nos calcanhares. O calor provocado pelo uísque tinha desaparecido. Ela se sentia próxima da exaustão absoluta e grata pela assistência de MacPherson. As mãos firmes e ágeis dele estavam sempre prontas para a amparar ou carregar. No alto de uma extensa colina, o vento frio soprava com força e o riacho rumorejava em seu leito, que havia se tornado mais profundo. Sophie parou quando Connor e apontou para algo. Do outro lado do riacho e rodeado por uma campina extensa, erguia-se um castelo. O esqueleto da estrutura não passava de uma confusão de paredes rachadas e de torres recortadas, algumas só pela metade. As janelas não filtravam luz, e uma muralha, com trechos desmoronados, rodeava o pátio. Um lugar sem alma, desolado e triste. Sophie estremeceu. — É lá que você mora? — Onde me abrigo — Connor respondeu. Caminharam ao longo do riacho e chegaram mais perto do castelo. O ângulo da velha ruína mudou e Sophie, sem se conter, exclamou: — Conheço este lugar! Glendoon! O nome me parecia familiar, mas não o ouvia desde a infância. No passado, era a moradia de meu clã. Há séculos que ninguém vive lá. — Seus ancestrais o desertaram depois que uma avalanche de pedras transformou esta área numa guarida para o demônio. 39


— Dizem que é mal-assombrado. Eu costumava ouvir histórias a respeito. — Os fantasmas não vão lhe fazer mal algum. — Você já viu algum? — ela indagou entre curiosa e amedrontada. — Não. Imagino que eu seja um tanto indiferente a eles. Mas os tais fantasmas já salvaram minha vida algumas vezes. — Como foi possível? — Ninguém se aventura a subir até aqui, a menos que seja forçado. Além da escalada longa e penosa, existe o medo pelas lendas que lhe deram a fama de lugar peçonhento. Nele não existem as bênçãos e a felicidade de um lar. — Existiam muito tempo atrás — Sophie murmurou. — Talvez. Mas agora, se algum visitante se aproximar, os fantasmas o afastará com gemidos e gritos sobrenaturais. — Gritos? — Sem dúvida uma grande vantagem para os foragidos que se escondem lá. Sophie imaginou se Connor não a estava provocando. Segurou sua mão com força quando ele a puxou para a frente. — Vamos indo. Não tenha medo de nada. São fantasmas MacCarran e ficarão felizes em receber alguém do clã. Ela olhou para trás. — Eu... Por favor, você deve me deixar ir embora. — O que aconteceu com sua vontade por aventuras? — Ela não inclui fantasmas gritalhões. Tudo isto não passou de um erro terrível, MacPherson. Nós não... Eu não deveria ter concordado. Foragidos são uma coisa, mas fantasmas... Não creio que possa enfrentá-los. Na infância, havia sofrido pesadelos com eles. Mesmo depois de adulta, não gostava do escuro. Tinha ouvido contar muitas vezes que fantasmas habitavam o castelo Glendoon, embora ninguém afirmasse que já os tinha visto. Tentou soltar a mão e virar-se para trás. Desceria a colina correndo se MacPherson permitisse. Ele inclinou-se e murmurou em seu ouvido: — Para trás é uma descida traiçoeira, como você já sabe. Será que conseguiria vencê-la em segurança sozinha e na escuridão? A frente está o castelo com seus fantasmas e foragidos. Que lado você escolhe? Sophie observou a silhueta escura do castelo enquanto sentia as mãos quentes de MacPherson em seus ombros. Em seguida, virou-se e olhou para a inclinação perigosa da colina. Tornou a estremecer. 40


— Lance mão de sua coragem, menina. Você encontrará aventura em qualquer uma das direções — ele murmurou. Com o coração disparado, Sophie fechou os olhos. Tinha a sensação de que estava à beira de um penhasco, prestes a dar um passo e despencar pelo abismo. Por um momento, tocou o pingente de cristal, desejando que sua magia lendária lhe transmitisse alguma orientação. Respirou devagar e, então, simplesmente soube. Devia ir para Glendoon com ele. — Irei para onde quer que seja possível encontrar uma lareira, um travesseiro e uma xícara de chá — disse erguendo o queixo. E amor, quase acrescentou. Mas se seu cristal mágico a levasse para o amor, não haveria de ser amor ao castelo. — Muito bem. Então venha comigo — ele disse pegando seu braço. Com o coração disparado e olhando amedrontada para a silhueta do castelo, Sophie o acompanhou. Observou que o riacho servia de fosso natural para as terras de Glendoon. Mas as margens eram escarpadas demais para se descer e subir por elas. — Onde fica a ponte? — Se houvesse ponte, qualquer pessoa poderia invadir o castelo. Vamos ter de pular para o lado oposto — Connor explicou. — Pular?! — ela exclamou com os olhos arregalados. — Ou podemos voltar colina abaixo e procurar uma caverna para passar a noite. Sophie tinha certeza de que ele a desafiava outra vez. O tom de voz traía uma nota de gracejo e provocação. Apesar de se sentir exausta e desconsolada, ela lhe provaria que podia enfrentar cada novo obstáculo. Também tinha seu orgulho. Connor a soltou, deu uns passos para trás, então correu e pulou o riacho. Alcançou a outra margem com facilidade. — Não é tão difícil. Pule também — ele gritou. — De jeito nenhum! Ela pensou em aproveitar o fato de estarem separados pelo riacho para fugir. Mas desistiu ao lembrar-se da colina escura e traiçoeira. O montanhês pulou de volta. Pegou-a pelo braço antes que ela pudesse se mexer. — Não é um salto muito longo. Penso que você pode pular. — Pensa?! — Sophie exclamou. Puxou o braço e começou a andar pela margem do riacho. — Sem dúvida existe mais alguma forma para se chegar ao outro lado. Nem todas as pessoas pulam aqui, ou pulavam, quando seres humanos, e não fantasmas, habitavam em Glendoon — ela argumentou. — Na verdade, existe — Connor admitiu. 41


— Você poderia ter dito isso — ela esbravejou. — Pular é mais rápido. Pensei que você estivesse ansiosa para tomar chá e se deitar numa cama. — Homem detestável! Você só queria ver se eu teria coragem de seguir seu exemplo. Pois não tenho. Estou cansada e sem a mínima paciência. Onde fica o lugar em que se pode atravessar o riacho com facilidade? — A certa distância, colina acima. Vá subindo e o encontrará. — Pule aí se quiser. Vou pelo caminho mais seguro. Arrebanhou a saia e afastouse. Estaria ele realmente disposto a deixá-la ir? Correu o olhar em volta e imaginou se teria coragem para escapar ali de cima. —Tome cuidado com gatos selvagens — Connor a advertiu. Apesar do medo, Sophie não se virou para trás. Um pouco depois, olhou por sobre o ombro e viu que ele a seguia. Sentiu-se aliviada, mas manteve-se atenta. Seguiu ao longo da margem, e a certa altura notou que o riacho diminuía bastante. Bem mais raso, corria pelo capinzal. Um pouco mais adiante, pedras ofereciam uma travessia segura. Sophie sentou-se no capim, o vestido vermelho-dourado, com suas rendas e babadinhos, espalhado à sua volta. O vestido, feito em Paris, tinha sido presente da mãe. Ela o adorava e o usava pela primeira vez. Mas após a longa aventura que enfrentava havia horas, temia tê-lo estragado completamente. De testa franzida, descalçou os sapatos e as meias. Não levantou o olhar quando o montanhês se aproximou. Ficou em pé, ergueu mais a saia e pisou na primeira pedra. Sem querer, soltou um gritinho ao sentir a água fria. Procurando se equilibrar, passou para a outra pedra. — Ah, você descobriu meu segredo — MacPherson gritou. — Seus hóspedes devem cruzar o rio Estige antes de receberem permissão para alcançar seu portal, sir Cérbero? — ela perguntou numa analogia ao rio do Hades, o mundo dos mortos, e seu guardião, o cão de três cabeças, ambos da mitologia grega. — Mais ou menos isso — ele respondeu ao pisar na primeira pedra. Continuou de uma em uma e, ao passar por Sophie, tocou-a na cintura. Ela sentiu um leve arrepio com o contato rápido. Quando alcançou a margem oposta, Connor estendeu-lhe a mão. — Está preparada para passar ao mundo inferior, Perséfone? — ele indagou, complementando sua analogia fazendo referência à rainha do submundo, também da mitologia grega. Os dedos dele eram longos e a palma, larga. Sophie sentiu o vigor e os mistérios insondáveis daquela mão. Novo arrepio percorreu seu corpo. Esse homem exercia sobre ela um tipo de magia, refletiu. Deveria estar brava com ele, ansiosa por escapar. No 42


entanto, sentia-se cheia de expectativa como se o corpo e o espírito vibrassem de excitação. De certa forma, estava apreciando essa noite excepcional. Ou seria o efeito do uísque, da exaustão e do choque? O que pensaria no dia seguinte? Controlou-se. — Contanto que haja uma xícara de chá e um lugar para descansar, entrarei no seu mundo, MacPherson. Já na margem, largou sua mão e passou por ele. Connor riu, alcançou-a e seguiu a seu lado. Por um momento, ela pensou na irmã Kate, que tinha ido a Edimburgo lutar pelos direitos do irmão nas Sessões da Corte. Tão diferente dela, Kate era considerada a endiabrada da família, pois fazia o que desejava com audácia, coragem e simpatia. Ela havia preferido ficar na escola do convento quando Kate e Robert voltaram para a Escócia após a morte do pai e o novo casamento da mãe. Agora, compreendia um pouco a coragem e a autoconfiança da irmã, que lhe pareciam muito com liberdade. Teria conquistado a sua? Afinal, caminhava para o desconhecido ao lado do seu seqüestrador e marido recém-adquirido. Parou um instante para enfiar os pés nos sapatos. Com as meias nas mãos, seguiu pelo capinzal, em direção ao castelo. MacPherson ia na frente e Sophie admirou-lhe as pernas musculosas e longas, e como ele andava com a confiança de um rei. O castelo agigantava-se na campina como uma fera silenciosa, seus contornos misteriosos e lúgubres. Ela diminuiu o passo e, apesar da perspectiva de descanso e do chá, relutava em entrar nele. O lugar era um abrigo para ladrões e fantasmas. Sua noção de aventura e liberdade era um sonho frágil. Sem coragem, parou. Então, ouviu latidos monótonos de um cachorro grande e velho, além de latidos altos de outros cães. Hesitou. O montanhês virou-se para trás e estendeu-lhe a mão. O barulho não era fantasmagórico e sim reconfortante. Na infância, latidos animados nos portões anunciavam o retorno do amo querido. O pai sempre tinha cães leais e amigos, que ela adorava. Curiosa, Sophie olhou para o fora-da-lei que tinha insistido não ter uma casa. Não aceitou a mão dele e dirigiu-se ao portão de entrada, preso à muralha em ruína. Ele o alcançou primeiro. O portão compunha-se de duas folhas imensas de madeira, com reforços de ferro. Foi preciso empurrá-las para abrir, e as dobradiças rangeram. Os latidos pararam, mas alguns rosnados amigáveis continuaram. — Bem-vinda ao castelo Glendoon, ou ao que resta dele Connor MacPherson disse, curvando-se. Tão logo entraram, Connor trancou o portão. Em seguida, conduziu Sophie pelo pátio escuro. Os cachorros aproximaram-se correndo, dois terriers acompanhados por um spaniel. Alegres, puseram-se a pular em volta do dono. — Olá Una, Scota e Tam! — ele disse enquanto os afagava. O último a se 43


aproximar foi o da raça mestiça de cão e lobo. Paciente, aguardava ao lado para receber os agrados do dono, que Connor não recusou. — Olá, Colla, como vai? — murmurou, e então explicou a Sophie: — Apesar de muito velho e surdo, ele continua uma boa sentinela. Pode latir como um caçador dos diabos. Bem, vamos em frente — disse, pegando seu braço. Os cachorros os seguiram. Uma muralha em ruínas rodeava a área toda do castelo, o conjunto ainda uma fortaleza sólida com uma torre de quatro andares parcialmente arruinada. Enquanto andavam, Connor percebeu sua fadiga e algo mais, um tremor de medo ou de excitação. Ele próprio sentia alguma coisa parecida, pois o coração batia depressa demais. — Por aqui. Cuidado, pois a pedra dos degraus está rachada em alguns lugares — ele avisou, levando-a rumo à entrada no segundo andar da torre. Os cachorros subiram na frente e ficaram à espera na porta. Connor a abriu. Como lembrasse que essa era a noite de núpcias da moça, ergueu-a nos braços para entrar no vestíbulo escuro. Surpresa, Sophie enlaçou-o pelo pescoço. Depois de a pôr no chão, ele foi abrir a porta de carvalho e ferro, cheia de marcas, que dava para o grande salão. Abriu-a e ordenou aos cães: — Entrem todos e fiquem lá. Quando o obedeceram, ele deixou a porta entreaberta. Sabia que dariam o alarme se alguém tentasse abrir o portão. Connor pegou a mão de Sophie e a conduziu pela escada estreita, em espiral, iluminada pelo luar que entrava pelas janelas. Quando chegaram a um patamar de pedra, ele abriu uma porta. No aposento brilhava uma luz bruxuleante. Mais uma vez, carregou a noiva para passar pela soleira. Quando a pôs no chão, ela cambaleou de cansaço e foi preciso ajudá-la para que se sentasse numa poltrona ao lado da lareira. Brasas de turfa, envoltas por chamas azuis, exalavam um odor delicioso. Mary Murray, esposa de Neill, tinha estado ali mais cedo, deu-se conta. Ela havia reavivado o fogo com blocos de turfa e deixado alimentos e bebida numa das mesinhas. Ao levantar a toalha da bandeja de estanho, ele viu bolinhos de aveia, queijo e fatias frias de carneiro assado. Uma jarra de barro continha limonada feita com a reserva preciosa de açúcar e limão de Mary, ele sabia. Um presente de casamento, sem dúvida. Mary era muito meticulosa com o uso de açúcar. Ele e a noiva estavam sozinhos no castelo e ninguém apareceria até o dia seguinte de manhã. 44


Uma emoção poderosa o dominou. Com mãos trêmulas, tirou as armas e colocou numa das mesas de carvalho. Depois, foi até a janela e fechou as cortinas de veludo para que o ar frio não entrasse e a luz não saísse. Em silêncio e com os olhos fechados, a moça apoiou a cabeça no espaldar da poltrona. Connor ouviu seu suspiro e virou-se. A cama de quatro colunas ocupava um bom espaço. As cortinas verdes e bordadas estavam abertas. A colcha, também verde e com o mesmo trabalho caprichoso da avó, tinha sido dobrada para baixo e mostrava lençóis de linho branco limpos e travesseiros afofados. Mais uma vez a mão carinhosa de Mary, ele reconheceu. Ao ir até a lareira, os passos dele foram abafados por um grosso tapete flamengo. Pegou uma vareta numa caixa grande, encostou a ponta no fogo, e com a chama acendeu várias velas em castiçais de bronze, estanho e prata. O quarto criou vida. A luz realçava móveis de madeira de lei e tecidos cintilantes. Ele adorava o aposento por causa do conforto, da privacidade e das peças familiares, lembranças da casa que havia perdido. Sophie abriu os olhos e não escondeu a surpresa. — Isto aqui não é o abrigo de um fora-da-lei! — exclamou. Connor deu de ombros. — E aconchegante. — Parece uma caixa de jóias. Um aposento de tesouros. Embora concordasse, ele tornou a dar de ombros. Os móveis eram de cerejeira e carvalho encerados, a cama era imponente e os tapetes exibiam um colorido rico. A luz das velas refletia-se nos objetos de bronze, prata e até nos fios dourados dos tecidos. Um armarinho preto japonês reluzia, bem como o topo de uma pequena mesa com marchetaria em madrepérola. Em cima brilhava uma garrafa de cristal com uísque e copos. — Onde você... — Ela hesitou. — Você roubou essas coisas todas? Triste, Connor riu. — Não. Tudo pertencia à minha família. Os tesouros da mãe, o orgulho do pai, peças da Kinnoull House enchiam uns poucos aposentos de Glendoon. Dois anos antes, ele havia retirado o que fora possível da casa usurpada por Campbell. Tinha sido forçado a deixar grande parte para trás. O que havia trazido para Glendoon o lembrava de uma casa acolhedora e de uma família feliz. Os parentes mais próximos tinham se espalhado pela França ou morrido. Da linhagem antiga e orgulhosa dos MacPherson da Kinnoull House só restavam ele e Andrew, o primo, na Escócia. — Que vaso lindo — a noiva elogiou, apontando para o consolo da lareira. — É chinês? — É, sim. Minha mãe costumava enchê-lo com rosas todo verão. Por que havia contado isso? Raramente ele se referia a detalhes de sua vida para 45


outras pessoas. E conhecia essa moça havia apenas algumas horas. Por que se sentia à vontade com ela? — É um aposento encantador — Sophie afirmou. — Não passa de um depósito. Connor lutou contra a vontade de contar-lhe mais sobre essas coisas e seu passado. Com seus olhos luminosos e sua delicadeza, ela o ouviria e compreenderia. Mas ele poderia lhe revelar demais e quebrar a concha que havia formado em volta de si mesmo. Com expressão pensativa, a noiva observou a decoração linda e as paredes estragadas do aposento. Então, olhou para ele. Connor sabia o que ela via. Um selvagem no quarto de um cavalheiro. Como o castelo arruinado, ele não combinava com o ambiente requintado. A manta xadrez estava desbotada, a camisa puída, as botas gastas e as meias cerzidas. Além dos cabelos compridos e embaraçados, a barba de alguns dias sombreava-lhe o rosto. De fato, um selvagem. Connor aguardou o desapontamento nos olhos lindos de Sophie. A cor deles, podia ver agora, ficava entre o verde do mar e o azul do céu. Constrangido, mantinha-se imóvel quando devia tomar a iniciativa, agir como o salteador que havia roubado a noiva. — MacPherson, obrigada — ela agradeceu com um sorriso. — Pelo quê? — indagou, surpreso. — Por me trazer aqui. Pensei que sua toca de fora-da-lei fosse diferente, uma terrível ruína sombria. Porém, seu lar é lindo. — A maioria dos aposentos do castelo é inabitável. — Mas você vive com muito conforto. — Apenas guardo algumas coisas aqui. — Onde está sua família? — Foi-se. Quase toda exilada. — Compreendo. O mesmo aconteceu com a minha. Temos isso em comum e algo mais. Ambos somos jacobitas. Pelo menos que eu saiba. — De fato, somos — ele concordou. Sophie levantou-se e endireitou o corpo. A silhueta e os braços eram esguios, os cabelos soltos caíam pelos ombros como um manto dourado. Mesmo amarfanhada e exausta, era adorável. Seu lugar deveria ser num ambiente lindo e na companhia de um aristocrata. Ele havia sido criado como pessoa de nível, mas tornara-se rude e acabrunhado. — Estamos sozinhos? — ela perguntou.

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— Exceto pela companhia dos camundongos e dos fantasmas. Mary Murray, esposa de Neill, vem aqui com freqüência para cozinhar e lavar roupa. Os filhos ajudam em certas tarefas. Mas nenhum deles está aqui agora. — Você mora sozinho? Pensei que seu bando de foragidos também estivesse aqui, planejando roubo de gado ou de noivas. — Não tenho nenhum bando. Neill Murray, Andrew MacPherson, meu primo, e alguns outros homens são arrendatários de Glendoon. Moram nas imediações do castelo e vêm aqui quando querem. Caso contrário, fico sozinho. Até agora. — Eu esperava um grupo de foragidos violentos. — Aparecerão amanhã — Connor gracejou. — Nada disso é brincadeira, sr. MacPherson. — Sei muito bem, sra. MacPherson — ele afirmou com olhar firme. Então, ajoelhou-se e pegou o atiçador de brasas. A turfa queimava com facilidade e dispensava cuidados, mas Connor precisava de uma desculpa para virar-se de costas para a noiva linda. Agora, que ela se encontrava em seu quarto, restava a última parte da promessa para ser cumprida. Ela havia enfrentado bem o rapto, o casamento e a jornada nupcial. Admirava-a por isso, mas indagava-se se ela aceitaria o resto. Precisava possuí-la. Se a engravidasse logo, o casamento seria irrefutável. Duncrieff tinha contado com isso, Connor sabia. Não havia planejado formar uma família tão cedo. Queria primeiro readquirir os direitos à propriedade usurpada e, depois, cuidar do futuro. Só então teria algo para oferecer a uma esposa. Ao espetar um bloco de turfa, chamas azuis elevaram-se e ele sentiu o odor agradável. Tal fragrância sempre lhe dava a idéia de lar, mais do que os móveis e outras peças. Estes eram um lembrete constante de que não estava na Kinnoull House e de que a família acabara. Mas esse odor agradável da turfa despertava a sensação aconchegante de um lar, não importava onde estivesse. Com o vestido farfalhando, a noiva aproximou-se. Ele ergueu o olhar. Cabelos dourados, pele macia e olhos extraordinários. Por Deus, Connor pensou, ela era linda e uma bênção nesse lugar lúgubre. Brilhava como o fogo da lareira, e a visão das curvas de sua silhueta agitou-lhe o corpo. Espetou as brasas outra vez, ansioso por algo profundo, ausente e a que não ousava dar nome. Como MacPherson estivesse ocupado com o fogo, Sophie aproveitou para observá-lo. Parecia que o via pela primeira vez. O rosto exibia uma simetria natural de beleza, uma harmonia de formas e proporção, a linha firme do queixo, o leve arco do nariz, a curva dos lábios e o pescoço longo e vigoroso. Os olhos verdes eram emoldurados por cílios negros e as sobrancelhas escuras, quase retas. 47


Ao lidar com o fogo, as mãos mostravam-se firmes e ágeis, os músculos dos braços ondulavam sob a pele. Ombros largos mexiam-se uniformemente e as pernas longas estavam dobradas. Era um homem lindo, apesar da barba por fazer e dos cabelos compridos e emaranhados, concluiu. Deveria ter trinta anos, a idade de seu irmão, bem mais velho do que seus vinte e dois. O corpo era alto, largo, vigoroso, as roupas de montanhês desbotadas, mas bem cuidadas. Apresentava um ar de rusticidade, a energia do indomável, era um homem ciente das próprias carências, dos anseios da mente, do coração, e intransigente com a lealdade e a honra. Tinha certeza quanto a esse último ponto, embora ele fosse um forada-lei. Seriam o uísque e a fadiga, Sophie pensou, ou ela, de fato, sentia a honradez desse homem? Ele a tinha raptado e se apossado de seu futuro e esperanças. Mesmo assim, havia uma nobreza intrigante nele. Desviou o olhar ao lembrar-se dos próprios segredos. Não ignorava o que um homem e uma mulher faziam juntos, como seus corpos se uniam feito luva e mão. Então a paixão os dominava e lhes dava prazer. Havia perdido a virgindade aos quinze anos e, em troca, percebido vagamente o que o amor e a paixão poderiam ser. A iniciação tinha sido com um rapaz pouco mais velho do que ela. Ao deixar que a paixão a levasse por uma trilha alegre, cometera um erro terrível. O amor não a aguardava no fim, apenas vergonha. O destino a havia atirado nesse casamento repentino e nessa estranha noite de núpcias. Talvez fosse a única situação em que não teria de explicar por que não era mais virgem. Por roubar a noiva, um salteador não tinha o direito de reclamar da mercadoria, ela refletiu. Mais uma vantagem desse casamento. Se fosse com sir Henry, seria forçada a se explicar na manhã seguinte. Olhou para a cama de quatro colunas e imaginou o que aconteceria nela com esse homem formidável. Uma onda de excitação se fez sentir. O vibrante sangue de fada que corria em suas veias começava a se manifestar. Só então seu montanhês dirigiu-lhe o olhar. Depressa, ela desviou os olhos ao mesmo tempo que tocava o pingente de cristal. Com a gota do sangue de fada, Sophie havia herdado também uma natureza ardente, o anseio de dar e receber amor em qualquer de suas formas. Anos antes, quando sua família tinha passado o verão na corte escocesa no Palácio Muti, em Roma, ela havia se sentido tão impaciente para encontrar o amor verdadeiro que acabara enfeitiçada por um rapaz atraente. Certa de estar apaixonada, havia confiado depressa nos beijos e nas carícias estimulantes e se entregado a ele com entusiasmo e curiosidade. Havia ficado desapontada, dolorida e com um grande problema. Uma noite, a 48


mãe a apanhara escapando do quarto. Sem saber que o fato já fora consumado, seus pais a mandaram para a escola do convento em Bruges para terminar os estudos. Kate também tinha ido, pois a natureza da irmã mais nova prometia ser problemática. As duas possuíam o Dom de Fada das MacCarran de Duncrieff, as habilidades raras que acompanhavam as gerações da família. Ambas usavam o pingente de cristal em uma corrente de prata em volta do pescoço. As pedras tinham sido tiradas da Taça Encantada de Duncrieff. Esta era de ouro e cravejada de pedras preciosas. Ela e o sangue tinham sido dados por uma fada ancestral, muitos séculos antes. Seus olhos de fada, como a família os chamava, eram o indício de seu poder. Algumas nasciam com olhos muito claros, azuis, verdes ou prateados. A magia que acompanhava esse sinal era de vários dons, como o de curar, cultivar plantas, despertar sentimentos de amor. Em cada geração, surgia sob uma nova forma. O pingente concentrava o poder e sempre lembrava quem o usasse para procurar o amor verdadeiro, pelo bem dos enamorados e do próprio clã. Ele protegeria o clã MacCarran e manteria a prosperidade, como fazia havia séculos. Tal era a magia doada pela fada ancestral ao deixar a taça e os cristais com os antigos MacCarran. Mas Sophie tinha controlado sua magia cedo demais quando se assustara com os anseios impetuosos. Ela possuía o dom para cultivar plantas e o tinha usado nos jardins do convento. Contudo, para usar o dom de maneira apropriada, ela precisava procurar o amor verdadeiro. O destino e esse montanhês atraente tinham resolvido com quem ela deveria se casar. A decisão tomada por ele, bem como pelo próprio irmão, que conhecia a lenda, poderia alterar fatalmente a natureza do Dom de Fada. — Olhe para mim, Katherine Sophie. Você parece perdida com os pensamentos. Está assustada? — Connor perguntou baixinho, levantando-se. Ela balançou a cabeça. O que mais temia era o próprio coração e o poder de suas paixões profundas. As freiras a tinham ensinado que a paixão física era pecaminosa. Outras paixões, como devoção, poesia, música, podiam ser aceitas. Mas os anseios poderosos do corpo tinham de ser reprimidos. Olhou para Connor MacPherson. Sentiu seu poder incontestável, a vida que vibrava em seu corpo, presente no olhar penetrante, na voz profunda, no toque firme mas delicado das mãos. Ele possuía carisma natural, uma certa magia. Sentiu o corpo responder ao vigor que emanava dele. O coração acelerava, a alma se enternecia. Algo em seu âmago desejava muito desencadear e experimentar o que lhe era negado havia tanto tempo. De certa forma, estava assustada. Muitíssimo!

Capítulo V 49


Mary deixou alguns petiscos para nós. E também limonada. Ela economiza açúcar o máximo possível, portanto, isto é um luxo — Connor explicou, aliviado por distrair sua atenção. Serviu a limonada numa caneca de estanho e lhe entregou, sorrindo. Em seguida, ofereceu os alimentos. Ela aceitou queijo e um bolinho de aveia, mas recusou as fatias de carneiro. Connor enrolou algumas e as saboreou. A noiva comeu com delicadeza, apesar de mostrar apetite. Depois, lavou os dedos na água de rosa de uma tigelinha que Mary tinha incluído na bandeja. Enxugou-os com um guardanapo de linho e voltou a sentar-se na poltrona, mas ele continuou em pé. Também lavou os dedos e, enquanto os enxugava, contou: — Dizem que essas tigelinhas não são mais usadas nas mesas de banquetes do rei em Londres. — Não? Por quê? — Sophie perguntou. — Simples. Na hora de um brinde ao rei, aqueles que são leais à causa Stuart tomam a água e não o vinho. Ela riu, o som como o tilintar de um sininho de prata. Connor também riu, mais de prazer com seu riso do que da própria piadinha. — E você bebe à saúde do rei com água? Ele estranhou a pergunta. Sem dúvida Kate MacCarran deveria saber de que lado ele estava na política. — Sempre. Duncrieff deve ter lhe falado sobre minhas inclinações jacobitas. — Meu irmão nunca o mencionou para mim, MacPherson. — Não? Curioso. Pensei que ele lhe houvesse dito algo. — Que eu me lembre, não. Sophie levantou-se e largou a capa na poltrona. O vestido vermelho-dourado tremeluzia com seus movimentos. Connor observou seu corpo lindo. A blusa justa realçava não só os seios perfeitos como também a cintura fina. Num gesto sensual, ela alisou a saia amassada. Por Deus, a noiva era uma visão, uma jóia deslumbrante atirada na vida dele. O corpo reagiu, ansioso por possuí-la. O calor nas veias ia além da luxúria física, rumo a uma carência menos definida, como se ele estivesse faminto por algo indefinível. Sophie cruzou os braços e tremeu. — Está frio aqui. Não sente, MacPherson? Ele balançou a cabeça. Não ia mencionar o calor que o abrasava. — Raramente o frio me afeta. Como montanhês, estou acostumado a ele. A 50


manta xadrez agasalha bem quase sempre e uma dose de uísque também ajuda. Mas se você se sente desconfortável, posso aumentar o fogo ou descer à cozinha para procurar uma lata de chá. Afinal, eu lhe prometi isso. — Por favor, não me deixe sozinha. Seu tom aflito o comoveu. Numa voz suave, disse: — Os fantasmas não vão aparecer enquanto eu estiver ausente, garanto. Você está protegida aqui. — Talvez um pouquinho de uísque me esquente — Sophie sugeriu, apontando para a garrafa de cristal. Connor hesitou, pois ela já havia tomado bastante. Mesmo assim, serviu a bebida em dois copos e lhe passou um. Enquanto girava o uísque no copo ele, pensou no que ainda faltava para fazer. Os dois não se amavam e a consumação do casamento seria constrangedora. Apesar disso, teria de ocorrer. Só existia um modo para se conseguir isso. Ingeriu a bebida de uma vez só. Não procurava coragem falsa e sim a atitude certa para agir. A noiva sorveu um gole do uísque com delicadeza, mas tossiu. Tomou mais um e a tosse foi tão forte que Connor teve de dar-lhe uns tapinhas nas costas. Compreendia como a pobre se sentia. Ambos preparavam-se para o que aconteceria, refletiu. — O uísque das Terras Altas deve ser encarado com respeito — ele murmurou. — Não é muito bom no início mas depois, provoca um calor delicioso. — Este é o uísque montanhês preparado pela sra. Murray. Ela não dá conta dos pedidos da Inglaterra e da França. Os homens de sua família o contrabandeiam o mais depressa possível. — Você é contrabandista além de salteador? — Não. Os parentes de Mary cuidam desse negócio. O marido, Neill, que você conheceu esta noite, também não se envolve com o comércio de uísque. Em rebelião, sim, mas não em contrabando, ele quase disse. Sophie tomou outro gole, tornou a tossir e fez um movimento tão rápido para se sentar que Connor teve de empurrar depressa a poltrona sob ela e tirar o copo de sua mão. — Eu me sinto bem mais quente! — Só mais um gole, moça, e você tombaria como um carvalho. — Estou bem. Precisava me fortificar um pouco — ela disse meio indistintamente. Ele também precisava. O uísque tinha embaçado um tanto a lucidez, mas não o suficiente para abrandar a paixão. A agitação dentro dele clamava por liberdade. Ao ver seus seios arfarem, sentiu-se mais preparado. 51


— Já bebemos o suficiente. E você passou mal antes. Não quer repetir isso, certo? — Foi antes de tomar uísque, e por culpa do meu estômago sensível. — O melhor é não agitá-lo outra vez. Como está se sentindo? — Muito bem. Gosto do uísque de Mary Murray. — Espere até amanhã cedo — ele avisou, e Sophie desviou o olhar. — Como é que você mora, quero dizer, fica em Glendoon? — Alugo a propriedade de seu irmão. — Você é inquilino de Duncrieff? Tem arrendatários próprios aqui? — Uns poucos. Ao alugar o castelo e as terras, faço o papel de um pequeno proprietário. — Por que alugou uma ruína? Sem dúvida, ela gostava de questioná-lo. — É melhor do que a caverna úmida de um salteador, e eu posso pagar o aluguel. Aliás, seu irmão cobra pouco de mim. — Em moeda corrente? — Com certeza — ele respondeu. Enquanto falava, Connor ajoelhou-se para, sem necessidade, reavivar o fogo. Sophie aproximou-se e o vestido roçou nos ombros dele. Num tom desapontado, disse: — Meu vestido está perdido. E os sapatos, então? Se eu soubesse que ia passar horas galgando colinas, teria calçado sapatos mais resistentes. — Se soubesse, moça, você teria ficado dentro do castelo de Duncrieff e eu seria obrigado a roubá-la pela janela. — Você se atreveria a tanto?! — Sem dúvida. Mas meus camaradas a viram cavalgar com seus acompanhantes ainda à luz do dia. Se já estivesse escuro, nós a teríamos raptado antes de você se encontrar com Campbell. — Eu devia ter aceitado o convite dele para passar a noite na Kinnoull House. Estaria segura lá. — Não. Jamais ficaria em segurança com ele — Connor resmungou. — Imagino que com você eu esteja — Sophie retrucou, exasperada. — Sem dúvida alguma — ele afirmou. — Você pode emprestar algumas roupas limpas — sugeriu, mudando para um assunto neutro. — Se ficar aqui, quero usar as minhas. — Você é minha esposa e não uma prisioneira, embora eu a tenha de manter em Glendoon por algum tempo de acordo com a vontade de seu irmão. Ali naquela arca 52


estão algumas roupas de mulher. Talvez sejam um pouco grandes para você — acrescentou ao observar-lhe a silhueta esguia. — Eu me recuso a usar roupas de mulheres que você trouxe aqui. Connor lhe dirigiu um olhar severo. — Elas pertenciam à minha mãe. — Ah! Onde está ela? — Faleceu alguns anos atrás. Você pode dispor de suas roupas. Ninguém mais as usou. — Muito obrigada. Mas prefiro as minhas, pois me sentirei melhor com elas. — Está certo. Eu as trarei de Duncrieff, mas não tão cedo. A polícia das Terras Altas e seus parentes estão à sua procura. O melhor é ficar longe deles por enquanto. Porém, avisarei seus primos que você está em segurança. Allan MacCarran me conhece. — Eu mesma devo ir ver meus primos para provar que estou bem. Então, pegarei minhas coisas. — De jeito nenhum. Farei isso se você me disser do que precisa. — Não vou fazer uma lista de minhas roupas íntimas para você roubá-las da minha casa. — Não sou ladrão. E já vi um pouco de suas peças íntimas. Muito bonitas, aliás — Connor elogiou. — Se você fosse a Duncrieff, seria apanhado e levado preso. Calculo que preferiria mais ser enforcado pelo rapto de uma noiva do que pelo roubo de suas roupas de baixo. — Ora, perdido por um, perdido por dois. Trarei o que você precisa, desde que caiba tudo numa arca só. A subida até aqui é muito longa. — Como você fará isso? — Tenho meus meios. — Está bem. Ah, sim, você precisa fazer alguma coisa com meus bulbos que plantei em vasos. — Seus o quê? — Bulbos de tulipa. Foram plantados no inverno para brotar mais cedo. As folhas já apareceram e logo surgirão as flores. Eu ia transplantá-los para o jardim de Duncrieff. — Darei um jeito de pegar suas roupas, mas não vou plantar flores antes de escapar de Duncrieff. — Então, traga os vasos também. Transplantarei os bulbos para o jardim do castelo. — Aqui não existe jardim, moça. 53


— Mas eles morrerão se isso não for feito lá ou aqui. — Com toda a certeza, aqui eles morrerão. Planta alguma vinga em Glendoon. — Tolice. Sem dúvida você tem uma horta e até um jardim aqui. — Você não conhece as lendas da sua família? — Connor indagou. Sophie tocou o pingente, que piscou como uma estrela. — Lendas? — Segundo elas, o castelo Glendoon é amaldiçoado e nada sobrevive nele, nem o mato, as ervas, as flores ou habitantes — ele explicou com olhar sombrio. — Eu me lembro de alguma coisa, mas isso é absurdo. Vi capim e botão-de-ouro na campina fora do castelo. E você mora aqui. Quanto tempo faz que sobrevive em Glendoon? — Pouco mais de um ano. — Está vendo? — Mesmo assim, existe uma ponta de verdade nessa história. A terra é árida e não passa de uma camada fina sobre pedras. Nada cresce nela, exceto a urze e o tojo, mais resistentes. — Mexeu nas brasas, que soltaram fagulhas. — De qualquer forma, vou buscar suas roupas, mas não as tulipas. Até então, você pode pegar o que precisar ali na arca. Deprimida, ela assentiu com um gesto de cabeça e esticou os braços para a lareira a fim de esquentar as mãos. Sacudiu os sapatos, ergueu um pouco a bainha da saia e expôs os pés e os tornozelos ao calor do fogo. Connor a observou e foi dominado por uma excitação intensa. Se permitisse ao corpo ordenar os eventos, em questão de poucos minutos seu casamento com Kate MacCarran seria incontestável. A noiva tentou desembaraçar os cabelos com os dedos. Jogou-os por sobre os ombros numa cascata dourada. O desejo o dominou da cabeça aos pés. Queria tocar seus cabelos e a pele macia, remover cada peça de suas roupas molhadas e esquentar seu corpo de encontro ao dele. A perspectiva de se amarem fez o sangue ferver nas veias. Mas não era rude. Ao admirar seu perfil delicado, ele a viu cambalear. A moça tinha uma resistência maior para uísque do que ele havia imaginado, mas os efeitos começavam a surgir. Sem dúvida estava embriagada. Connor gostaria de também estar um pouco. — Este é o seu quarto? Você vai dormir aqui ou em outro lugar? — Sophie perguntou. Ele não respondeu. Levantou-se e puxou-a para mais perto. O olhar dela era como o de um carneiro que avaliava o lobo. Afastou uns caracóis de sua testa e a virou de costas. Então, começou a soltar os ganchinhos da blusa de seu vestido. Já era mais do que tempo, disse a si mesmo. O 54


coração trovejava. Antes havia sido mais difícil por causa da escuridão, e ele quase usara o punhal. Neste momento, ele conseguiu soltá-los depressa. Com delicadeza, afastou o vestido de seus ombros. Queria deixá-la assim por uns momentos para que ela refletisse. Calada, a noiva não protestou. Então, ele abaixou a peça por seus braços e até a cintura. Ela usava o espartilho com barbatanas sobre a camisa e anágua de tecido escuro e bordado que aparecia na fenda do vestido. Com a blusa abaixada, os ombros e parte das costas estavam expostos, a pele macia, sob a luz do fogo, lembrava creme e mel. Os cabelos, num emaranhado de ondas e caracóis, emolduravam seu rosto. O pescoço delicado exibia uma vulnerabilidade tocante. Connor inclinou-se para beijar a nuca. Sentiu o calor da pele sob os lábios e um leve tremor do corpo. Ela tornou a cambalear e apoiou-se nas mãos dele em sua cintura. De fato, a noiva estava um pouco embriagada e por culpa dele. Ele lhe dera uísque pensando em aquecê-la, animá-la no momento certo e para abrandar o choque pelo que estava para acontecer. Ser raptada, forçada a se casar e possuída, tudo na mesma noite, não era fácil para qualquer mulher. Nem para o seqüestrador e noivo, embora ele não se traísse. O efeito do uísque era bem oportuno no momento, embora ele não pensasse em forçá-la, caso ela o rejeitasse. Porém, sua atitude indicava que o deixaria fazer o que quisesse. O coração disparava. Era um grosseirão ao ir em frente, mas já agira com grosseria ao raptá-la e forçá-la a se casar contra a vontade. E ambos sabiam que o resto precisava ser feito para validar o casamento. Os dois mantinham-se calados. A noiva aguardava enquanto a cabeça dele rodopiava com a expectativa que lhe era dada por sua aquiescência. Os dedos dele tremeram um pouco ao empurrar o vestido e as anáguas para baixo. A curva sensual de seus quadris mexeu-se para que as peças caíssem ao chão. Ela ficou apenas com o espartilho e a camisa, mas continuou em silêncio. Connor já sabia que o espartilho era amarrado atrás e não na frente, como muitos. O cordão estava úmido e não soltava. Sem hesitação, ela passou as mãos para trás e desfez o laço. Ele a ajudou a tirar o espartilho e colocá-lo numa cadeira. A camisa era de linho, com renda ao redor do decote. — Venha cá — murmurou ao virá-la de frente. Com os olhos semicerrados e as mãos apoiadas nos braços dele, a noiva ergueu o rosto. Ele roçou os lábios em suas faces, no pescoço e nos ombros. Ouviu-a suspirar enquanto se encostava nele. O desejo voltou a dominá-lo e o instigou a beijá-la. Sentiu o corpo inteiro dele vibrar como as cordas de um violino. Timidamente, sua boca abrandou-se sob a dele, um novo suspiro diminuindo a tensão de ambos. Quando ela o enlaçou pelo pescoço, uma 55


chama percorreu-lhe o corpo inteiro. Por sua exclamação abafada, ela também sentira. Receptiva, abriu os lábios e aconchegou-se nos braços dele. Seus seios o prensa vam no peito, levando-o a sentir seu calor através do linho e da lã. Connor interrompeu o beijo por um instante. Quando Sophie retribuiu o olhar, a pergunta foi feita e respondida. Sim, ela permitiria. Uísque e desejo nublavam pensamento e lógica, afastavam a necessidade de questioná-la por que aceitava. Ele a desejava com todas as células do corpo e achava que o sentimento era recíproco. No momento tal razão bastava, e os ritos sagrados do matrimônio facilitavam o caminho. Para ele não havia mais explicações a dar e perguntas a fazer. Estava cumprindo a promessa solene. Ergueu-a no colo e a carregou para a cama. Sua rendição ficava clara com seu silêncio e a maneira de abraçá-lo pelos ombros e de aninhar o rosto na curva do pescoço dele. Com o coração disparado, Sophie fechou os olhos. Sentia a cabeça rodopiar e sabia que o uísque tinha dado fim à sua resistência. Adorava o contato das mãos de MacPherson, a maneira com que ele a tinha despido e carregado para a cama. Contente por se ver livre do vestido úmido e pesado, sentia-se aquecida e sensual. O corpo vibrava de excitação. Fosse isso tolice ou destino, desejava que acontecesse. Ao afundar a cabeça no travesseiro com perfume de alfazema, abriu os olhos e o observou. Seu montanhês voltava a ser um sombrio anjo guerreiro, com o rosto perfeito. Até as mãos dele eram lindas, fortes e hábeis. As suas tremeram ao tocá-lo nos braços e sentir os músculos. Suspirou e tornou a fechar os olhos. Percebeu o colchão afundar um pouco quando ele se deitou ao seu lado. Antes de encontrar seus lábios, ele a beijou no rosto, levando-a a suspirar e a entregar-se a esse momento extraordinário. Estava zonza e um pouco embriagada, sabia. — Sinto muito — murmurou, pensando na quantidade de uísque, imprópria para uma dama, que havia ingerido. — Quietinha. Não se desculpe. Estamos casados — ele sussurrou enquanto a acariciava. — Mas se você quer parar, Katherine Sophie, deve me dizer. — Quieto você. E não me chame de Katherine. Connor a beijou antes que ela dissesse preferir Sophie. Casada, ela pensou, com um homem viril e fascinante. Via-se presa a um sonho. O início tinha sido um pesadelo terrível, mas agora era arrebatador. Enquanto ele a beijava, teve a sensação de que se dissolvia e deixou-se afundar mais nessa magia. As mãos dele acariciaram seu queixo e desceram pelo pescoço até os seios. Espalmadas neles, provocavam uma sensação deliciosa. Pararam ao encontrar o pingente. Amor verdadeiro, Sophie lembrou-se. Como portadora do cristal mágico, era 56


obrigada a procurar unicamente o amor verdadeiro. Sacrifícios seriam feitos por amor, dizia a lenda. Ela havia cometido esse erro antes e sacrificado seus sonhos. Nesse momento, hesitava entre o destino e a paixão. Fosse o que fosse que lhe agitava o âmago, sangue de fada ou carência física, diluía o pensamento racional. Os beijos, as carícias de seu montanhês eram magia pura e ela, de bom grado, se deixava levar. O amor cria sua própria magia. De repente, essas palavras lhe ocorreram. O amor não podia existir ali, não tão depressa e nessas condições. Porém, ela queria assumir o risco, entregar-se a paixões intensas, reprimidas havia tanto tempo. Se isso fosse errado, que escolha lhe restava? Havia sido roubada e repetido as promessas matrimoniais quase forçada. MacPherson desceu as mãos dos seios para a cintura. O coração de Sophie quase explodiu e ela mal podia pensar. O uísque e o desejo a deixavam atordoada. Beijos subiram por seu pescoço, e ela delirou ao sentir a língua em seus lábios. Ofereceu a sua e o acariciou nas costas musculosas sob as roupas. Connor a tocou nos quadris, sua pele protegida apenas pelo linho fino do calção. Depois, voltaram aos seios, levando-a a gemer de prazer. Desejava que ele tocasse seu corpo inteiro. Os beijos tornaram-se mais impetuosos e exigentes enquanto ele a deitava de costas. Pareciam ter o propósito de realçar a determinação de tocá-la onde quisesse. Estimulada por essas carícias, Sophie aconchegou-se mais a ele e retribuiu os beijos com mais paixão. Com os lábios, Connor deslizou ao longo do pescoço até os seios. Impaciente, tirou-lhe a camisa e espalmou as mãos em sua cintura. A pele vibrava e os mamilos ergueram-se rígidos. Ele os beijou, provocando-lhe uma sensação alucinante e maravilhosa. Delicados e seguros, os dedos dele aprisionaram os seios. A boca encontrou os mamilos e os estimulou. Fascinada com a excitação, ela afundou a cabeça no travesseiro. O corpo todo pulsava. Ao sentir a corrente com o cristal repuxar em volta do pescoço, Sophie fechou os olhos. O pingente a mantinha presa à promessa. O amor verdadeiro devia ser procurado. Se fosse encontrado, chegaria o momento da escolha quando um sacrifício do coração teria de ser feito. Ela havia evitado isso durante vários anos, pois temia perder o amor se jamais o encontrasse. Nessa noite, tinha se atirado num turbilhão e não fazia idéia do resultado das escolhas feitas nas últimas horas. Com a cabeça rodopiando, ela não conseguia mais refletir. Tinha a impressão de que os beijos e as carícias a embriagavam mais do que o uísque ingerido. O corpo ansiava por continuar e, como estava difícil pensar, preferia sentir. A mão dele escorregou por sua barriga, desceu até as coxas e começou a puxar 57


seu calção. Sem perceber, ela ergueu os quadris para ajudá-lo. — Connor... — murmurou o nome de maneira tão singela e meiga que se surpreendeu com o vigor e a intimidade que ele suscitava. — Sim? Fale — ele disse com a boca rente à sua e a mão acariciando um lugar jamais tocado por alguém. Seu corpo continuava a pulsar e a cabeça, a girar. Com delicadeza e na expectativa, a mão parou onde estava. Ela quase perdeu o fôlego com as sensações incríveis que sentia. Rolou para os braços dele e aconchegou-se bem perto. Observou aquela rigidez viril sobre a qual havia aprendido com o mesmo rapaz que lhe ensinara muita coisa. Como conseqüência, havia ido para a escola no convento, e sua vida mudara muito. Mas nem de longe o quanto estava prestes a mudar. Com naturalidade e ainda abraçada a ele, entreabriu as coxas num convite. Tornou a perceber a rigidez daquela parte, como aço quente envolto por veludo. Notou que ele pulsava no mesmo ritmo que martelava o corpo. Suspirou, inclinou a cabeça para trás e foi beijada ao longo do pescoço. Não se atrevia a falar, pois não queria que a voz interrompesse a eloqüente linguagem silenciosa das carícias trocadas naquela cama imensa. Mas, embora se deliciasse com tudo aquilo, a cabeça continuava a girar como um pião, o que dava impressão de que a cama inclinava-se quando ela se mexia — Minha cabeça está girando — balbuciou finalmente. — A minha também — ele disse, alisando-lhe os cabelos, provocando uma onda de calor em seu corpo inteiro. — Tudo está se mexendo, mas você parece tão firme. — Queria apertar o abraço, ansiava tanto por senti-lo dentro do corpo que isso quase a enlouquecia. — Não me deixe ir embora — murmurou. — Não vou deixar, prometo. Ele a estreitou mais entre os braços e a beijou. — Ah, e você sempre cumpre suas promessas, não é? — Sem dúvida alguma. Agora, quietinha. Enquanto se deliciava com os afagos dele, Sophie tornou a suspirar. O atordoamento continuava. Depois de um momento, ela o tocou no queixo, ergueu a cabeça e procurou seus lábios. Ansiava por mais com tal desespero que não conseguia se conter. Connor a beijou com ternura infinita e, de alguma forma, com esse beijo e mais outro, e os afagos excitantes em seus seios, ele penetrou profundamente em seu sonho... Sophie flutuava num rio escuro com a superfície atapetada de flores. Ele estava lá também, segurando-a e acariciando. O perfume de rosa e de alfazema permeava o ar. 58


Ela murmurava o nome dele e o ouvia sussurrar o seu. Mas não era bem o seu nome que Connor dizia, porém, via-se incapaz de encontrar a voz para avisá-lo.

Capítulo VI

Ainda estava escuro quando Connor acordou. Sobressaltou-se e o coração disparou ao vê-la deitada de lado e de costas para ele. Então não tinha sido um sonho. Ela dormia tranqüilamente, os cabelos espalhados pelo travesseiro. Afagou-a do ombro ao quadril por sobre o cobertor e ela não se mexeu. Pensativo, afofou seus cabelos e os enrolou nos dedos. A noite tinha sido de paixão tão vibrante que o deixara atô nito com sua intimidade. Franziu a testa ao dar-se conta de não se lembrar do fim. Rolou para a beirada da cama e sentou-se. O uísque fizera seu trabalho bem demais. A cabeça doía e o ar fresco o ajudaria, mas não em relação ao resto. O detalhe principal da noite de núpcias nessa cama continuava tão nebuloso quanto o vale em que ele havia raptado a noiva. Teria cumprido a parte final da promessa? Lembrava-se de seu corpo deslumbrante, de tê-lo acariciado e ter-lhe dado prazer. Também tinha a impressão de que ela, de maneira audaciosa, havia explorado o dele. Mas não tinha certeza. Gemeu baixinho e fechou os olhos. Teriam eles levado a paixão ao apogeu? Provavelmente. Quando ela acordasse, descobriria sem revelar a própria incerteza. Ela saberia, pois as mulheres jamais esqueciam algo tão importante. Também os sinais de uma virgem deflorada seriam óbvios. Caso os eventos não tivessem chegado à conclusão natural, seria um prazer tocar no assunto com ela. Levantou-se e pegou as roupas largadas no chão. Pelo menos estava vestido quando a trouxera para a cama, um indício do que havia se passado depois. Vestiu-se, calçou as botas e saiu do quarto sem fazer barulho. Dirigiu-se à escada escura que levava à parte em ruínas da torre. Não só precisava de ar fresco como também ficar isolado e refletir com clareza. O ar estava frio e nublado quando ele chegou. Ali, no mais alto ponto que restava da torre central, ainda havia parte do parapeito que protegia as sentinelas. Dirigiu-se a seu lugar preferido, o canto desmoronado de uma guarita, que oferecia abrigo e uma posição conveniente de vigilância. Daquele ângulo, à luz do dia ou da Lua, a paisagem era visível por muitas milhas. Podiam-se distinguir vales, riachos, campinas, rebanhos de carneiros, trilhas para a 59


condução de gado e até o estreito lago azul na ponta mais distante da ravina. Às vezes, ele conseguia vislumbrar o castelo de Duncrieff, um bloco de pedras douradas, assentado numa colina verde. Um rio serpenteava entre colinas, a nordeste da ravina. Quando o céu estava bem claro, ele podia ver, do outro lado do rio, as terras de Kinnoull. O vale pertencia a Duncrieff. O direito de Connor à propriedade fora um presente a seus antepassados dado pelo chefe do clã MacCarran. Ela ficava do outro lado da ravina. No momento, estava tudo encoberto pela neblina. Durante o dia, quando se dissipasse, ele poderia ver a estrada. A tropa do general Wade tinha aberto uma passagem militar pelo vale Carran. Acompanhava a trilha do gado pelo matagal e ia além do castelo de Duncrieff. Durante meses, a tropa havia, aos poucos, avançado a estrada para o sul, paralela ao rio. Connor e seus companheiros montanheses esforçavam-se para impedir o avanço da construção. Enquanto ele vivesse nas Terras Altas, os ingleses encontrariam obstáculos pela frente. Mas ele não havia subido ali para refletir sobre o projeto da estrada. Queria livrar a mente da neblina provocada pelo uísque na noite anterior. Connor pegou um estojo de madeira, abriu-o e tirou o violino do invólucro de veludo azul. Afinou-o e começou a tocá-lo. Notas elevaram-se ao ar quando seus dedos e o arco tangeram as cordas e aos poucos formaram a melodia. O instrumento era uma verdadeira preciosidade, feito por um exímio e famoso violeiro de Edimburgo. Fora presente dos pais quando ele ainda era menino. Então, havia dinheiro para coisas finas e uma família disposta a encorajar seu talento. A melodia que Connor tocava parecia um lamento comovente. As notas ressoavam no violino e em sua alma. A mão esquerda dançava no braço do instrumento é a direita movia-se sem esforço, manejando o arco. Ele conhecia essa melodia tão bem que havia se tornado muito natural tocá-la. Tão logo a música encheu o ar, ele parou de pensar e deixou-a exercer sua magia purificadora nele. O sussurro melancólico de um fantasma a despertou de seus sonhos. Sophie abriu os olhos e viu-se aninhada sob as cobertas quentes da cama imensa. Ao apurar os ouvidos para o som estranho... O que mesmo tinha ouvido? Deu-se conta de que silenciara. Devia ter sido parte de um sonho. Virou-se para o outro lado e gemeu. A cabeça doía muito quando se mexia. Então, percebeu que Connor MacPherson tinha saído. Nem sabia se ele havia dormido ao seu lado. Sob os efeitos do uísque, da novidade de fazer amor e da pura exaustão, ela dormira profundamente. Deus do céu! Não sabia direito o que tinha acontecido essa noite além da lembrança nebulosa de beijos ardentes, carícias por seu corpo inteiro, o que a fazia enrubescer agora. Sem conter uma exclamação, sentou-se depressa. A cabeça latejou de dor e o 60


estômago contraiu-se. Gemendo, cobriu o rosto com as mãos, os cabelos cheios de nós caídos pelos ombros. O que eles tinham feito essa noite, ou o que ela lhe permitira fazer? Mal conseguia se lembrar. Mas, fosse lá o que fosse, ela sabia ter sido maravilhoso naquele momento. Disso tinha certeza, embora os detalhes continuassem nebulosos. Ao mexer-se um pouco, descobriu que as costas e as pernas estavam doloridas por causa das longas caminhadas e subidas da véspera. Também sentia uma certa sensibilidade nas partes íntimas. Não era virgem, mas sua primeira experiência fora tanto tempo atrás e frustrante que ela não se lembrava do que havia sentido. Ah, mas queria muito saber como tinha sido com Connor MacPherson. Como intuísse ter sido extraordinário, sentia-se roubada, uma frustração muito diferente dessa vez. Baixou a cabeça sobre os braços cruzados e tornou a gemer. A profundidade dos beijos dele, os toques suaves e excitantes, a firmeza dos braços em volta de seu corpo vinham-lhe à mente, mas o principal tinha sumido como um sonho. Porém, as sensações em seu corpo sugeriam o que tinha acontecido. E ela estava nua, verificou ao afastar as cobertas. Não havia sonhado. Sentiu uma ponta de culpa, provocada pela orientação dada pelas freiras e à qual havia resistido. Sempre havia tido uma noção inata de que não era vergonhoso o que podia acontecer entre um homem e uma mulher. Ao levantar-se, tremeu de frio. Vestiu a camisa e agasalhou-se com a capa largada na poltrona. Então, foi abrir as cortinas. Pelo céu acinzentado, percebeu que logo amanheceria. Foi quando Sophie tornou a ouvir o som suave e misterioso. Dirigiu-se à porta, que abriu para ouvir melhor, e então saiu para o corredor. A música era tênue, persistente e parecia ser de um violino. Atraída pela melodia comovente, que parecia vir de alguém no castelo, ela se dirigiu para a escada. Teve a idéia aterradora de que um dos fantasmas dali a atraía com a música. O bom senso a aconselhava a voltar para o quarto. O castelo estava em ruínas em alguns lugares, e ela não sabia se orientar no escuro. Também não tinha vontade de enfrentar um fantasma. Mas a música misteriosa era irresistível. Subiu a escada devagar, guiada pela luz fraca que passava pelas janelas, e chegou ao andar de cima. Três batentes sem as portas indicavam aposentos. A música tinha parado e Sophie, com o coração disparando, manteve-se num canto escuro. Depois, criou coragem e espiou os três cômodos. Estavam vazios e com as paredes parcialmente desmoronadas, o que provocava a correnteza do vento. Uma escada íngreme levava ao telhado. Porém, dessa vez ela não teve coragem de subir. O estado deplorável do castelo oferecia perigo e seria tolice aventurar-se até lá em cima. Voltou para o quarto. Tremendo de frio, dirigiu-se à lareira, que ainda conservava brasas sob cinzas. Colocou mais blocos de turfa e, com o atiçador, conseguiu avivar o 61


fogo. Foi então que ela ouviu a porta abrir. Virou-se a tempo de ver Connor MacPherson entrar no quarto. Seu coração disparou. — Latha math dhut fhèin — ele murmurou. — Bom-dia para você também, MacPherson — Sophie respondeu. Ele trazia uma bandeja com xícara e bule de porcelana fina. Colocou-a na mesinha de marchetaria de madrepérola e disse: — Trouxe o chá que você queria ontem à noite. Um pouco atrasado, mas achei melhor cumprir a promessa — acrescentou, sorrindo. —Obrigada. Amabilidade sua—ela agradeceu, aproximando-se da mesinha para se servir. — Será que eu a ouvi andar pelo castelo alguns minutos atrás? — Connor perguntou. — Escutei um som e, curiosa, saí para verificar o que poderia ser — ela explicou após tomar um gole de chá e deliciar-se com ele. — Cuidado ao andar por Glendoon. Parte do soalho e alguns degraus estão em péssimas condições. Mas o que você ouviu? — Música. Estranha e linda. — Talvez seja o nosso fantasma. Sophie estremeceu e perguntou: — Você também ouviu? Onde estava? — Fazendo a ronda do castelo, o que é preciso de vez em quando. Depois, fui à cozinha preparar o chá. Não vi nenhum fantasma. Meio desconfiada, Sophie o observou e, depois massageou a testa. — Dor de cabeça? — Connor indagou. — Sim, mas o chá vai ajudar e me esquentar. Está bem frio agora de manhã. — Início da primavera. O castelo está em ruínas e faltam muitas paredes. É impossível aquecê-lo. Ficar na cama até tarde é o melhor meio para não passar frio. Volte para baixo das cobertas e aprecie seu chá deitada. Não há necessidade de ficar em pé. — E você?— ela indagou, imaginando se Connor se deitaria também. Na véspera à noite era uma questão diferente, mas agora de manhã ela não sabia bem o que queria. — Não durmo muito. Questão de hábito. Além do mais, tenho algumas obrigações à minha espera. — Como assaltos e rapto de noivas? — Você foi a única, e eu jamais repetirei isso. 62


— Espero que sim — Sophie respondeu, séria. — Preciso ir, mas Mary Murray e o filho ficarão aqui com você. Lembre-se de que não pode sair dos limites do castelo. A sra. Murray cuidará de você. Se quiser alguma coisa é só lhe pedir. — Mesmo encilhar um cavalo e tirar a tranca do portão? Ele chegou bem perto, a estatura imponente, o olhar penetrante. — Mais chá ou algo para comer. Roupa limpa. Um banho — respondeu, lacônico. Ela suspirou e cedeu. — Qualquer uma dessas coisas seria excelente. Obrigada. — Não precisa me agradecer por essas ninharias. Não fiz nada para merecer sua gratidão. — Você tem sido atencioso comigo, embora seja um salteador — ela disse e tremeu, fazendo a xícara tilintar no pires. Connor pegou a bandeja e apontou para a cama. — Vou pôr isto no criado-mudo e você se deite, pois está tiritando de frio, Kate. Um arrepio estranho percorreu a espinha de Sophie. — Não sou Kate. Ele parou com a bandeja na mão. — Katherine, então. Ou Katherine Sophie se preferir — Connor disse calmamente, apesar de ter ficado inquieto com o tom de voz dela Sophie o observou com os olhos imensos da cor do mar. Apertava tanto a xícara de porcelana, que Connor temeu que ela se quebrasse. — Você pensa que sou Kate? — perguntou com voz áspera. Connor sentiu o estômago pesar como uma pedra. Largou a bandeja e virou-se para observá-la na luz pálida que já entrava entre as cortinas. Meses antes, tinha visto Kate na praça do mercado em Crieff. Seus cabelos, lembrava-se, eram de um loiro meio rosado, não dessa tonalidade dourada. Esta não era Kate MacCarran. Como um idiota e temendo a resposta, indagou: — Seus cabelos foram escurecidos? — Não — ela respondeu, impaciente. — Você pensou que eu fosse Kate MacCarran quando me raptou? — Sim, pensei — Connor respondeu, fitando-a. — E ontem à noite? — Também — nervoso, ele murmurou, mas com aparência calma. Trêmula, Sophie mal conseguia respirar. Então, num gesto brusco, atirou longe a 63


xícara, que se espatifou contra a lareira. A noiva ou esposa emitiu um soluço abafado. Seus olhos brilhavam com um misto de raiva e mágoa. Imóvel, Connor não disse nada. Ela foi catar os cacos e os colocou no pires. Seus dedos tremiam. O coração dele batia descompassado, embora ele continuasse calado e imóvel. Resistia ao impulso de ampará-la, pois queria lhe dar um momento para absorver a verdade. Ela pôs o pires na mesinha e o encarou. — Não sou Kate! — Quem é então? — Katherine Sophie, irmã de Kate. Sophie. Deus do céu. Connor sacudiu a cabeça para livrar-se do pânico. — Duncrieff escreveu esse nome na carta, mas, entendi que se referia à irmã Kate. Ele não me corrigiu. — Rob conhece a diferença. Sou Katherine Sophie e Kate é Marie Katherine. Connor praguejou baixinho. Que diabo faria agora? Procuraria o padre para exigir a anulação do casamento? Atiraria fora essa mulher a fim de procurar a noiva que desejava? — Que inferno! A troco de que as duas têm o mesmo nome? — Você não precisa praguejar. Nossas duas avós chamavam-se Katherine. Por isso cada uma de nós tem esse nome, mas usamos Kate e Sophie. Nunca houve confusão, isto é, até agora. Duncrieff o tinha confundido. Por engano ou de propósito? — Então seu plano era raptar Kate e se casar com ela? Calado, Connor fez um gesto afirmativo com a cabeça. — Deus misericordioso — Sophie balbuciou. — Seu irmão não explicou nada sobre a semelhança dos nomes. E eu não teria reconhecido nenhuma das duas. Nunca tinha visto você até ontem à noite, e Kate, só vi uma vez a distância. — Devo acreditar que tudo não passou de um simples engano? — Sem dúvida — ele respondeu, contrariado. Sophie afastou-se de costas enquanto ele tentava refletir. Tinha visto Kate no último verão quando ele, Duncrieff e Neill haviam levado umas cabeças de gado, roubadas dos pastos de Kinnoull, para vender no mercado de Crieff. Rob tinha apontado para a irmã, que estava com uns parentes, e fora cumprimentá-los enquanto Connor ficara com o gado. Como soubesse algo sobre as secretas atividades jacobitas de Kate MacCarran e 64


considerando a própria inclinação pela causa rebelde, havia achado melhor que a moça não fosse vista com ele. Esperava trabalhar com ela algum dia, mas a hora ainda não havia chegado. Lembrava-se de uma jovem bonita, de silhueta esguia. — Onde está sua irmã? Robert me contou que ela voltaria para o castelo de Duncrieff esta semana. Eu sabia que Kate tinha ido a Edimburgo, por isso pensei que você fosse ela. Como ia solucionar essa confusão?, Connor indagou-se, desanimado. — Ela estava em Edimburgo na semana passada. Foi me encontrar quando o navio em que eu viajava ancorou no porto de Leith. — Você voltou para a Escócia apenas uma semana atrás? — Parti da França com a sra. Evans, dama de companhia de minha mãe e que gritava tanto quando você atirou minha escolta no rio. — Sei. Então Kate está em Edimburgo? — Não. Foi a Londres para visitar parentes. Isso foi planejado antes de sabermos da prisão de Robert e logo após minha chegada. Kate insistiu que eu viesse para Duncrieff com a sra. Evans, para ver o que poderia ser feito por nosso irmão. Ele sabia que Kate ia me receber em Edimburgo e pretendia nos encontrar lá. Depois, ela iria a Londres — Sophie explicou, triste. Connor enfiou a mão na bolsa de couro e tirou o bilhete de Duncrieff. — Com todos os diabos, imagino com quem seu irmão queria que eu me casasse — disse, olhando para o papel. — Ele escreveu meu nome — Sophie afirmou ao pegar o bilhete. — Veja, parte do seu nome está rabiscada, parece Kinell. — Kinnoull — ele esclareceu. — Então, eu também imagino com quem meu irmão queria que eu me casasse. Com Campbell de Kinnoull? Talvez você tenha forçado mesmo Rob a escrever isto. — Que inferno! Às vezes sou chamado de Kinnoull. — Por quê? Foi arrendatário de sir Henry? — Não. Você tem certeza de que seu irmão sabe seu nome inteiro? — Claro! Não posso fazer nada se você pensou que ele se referia a Kate — Sophie esbravejou, crispando as mãos na cintura. A cintura fina que ele havia medido com as próprias mãos. Os seios lindos arfavam com a irritação. Ele os tinha acariciado e beijado. Deus do céu, o que Rob tinha querido? Devia saber que ele assumiria tratar-se de Kate. Como rebelde e simpatizante da causa jacobita, seria o marido ideal e capaz de cuidar dela. Mas não via razão alguma para se casar com a outra irmã e deixar Kate 65


desprotegida. Tudo que sabia sobre Sophie era o fato de ser uma criatura adorável, linda como uma fada. Mas também teimosa como uma mula, esperta como uma raposa e, às vezes, tão cortês que quase o enlouquecia. Também já sabia que a bebida soltava sua língua e lhe dava um coração de leoa. E mais ainda. Seu sabor era estimulante como a água límpida da montanha e seu corpo, entre os braços dele, o fazia se sentir no paraíso. Fitou-a e murmurou: — Sophie. — Ou srta. MacCarran — ela sugeriu em tom mordaz. Connor, porém, repetiu: — Sophie. Eu lhe devo um pedido de desculpa por ontem à noite. Nunca tinha achado fácil admitir qualquer tipo de erro, mas como esse fosse grave demais, ele conseguiu. — Obrigada. Mas estamos casados, e ontem à noite nós... — calou-se e desviou o olhar. Connor suspirou. Nem tinha certeza se o casamento havia sido consumado. — Meses atrás, Duncrieff mencionou as duas irmãs. Uma, ele chamava de Kate, a Endiabrada, e a outra de Santa Sophie. — Robert costumava se referir a mim por esse nome porque estudei na escola de um convento. — Convento?! Na confusão, ele tinha se esquecido de que a outra irmã talvez fosse freira. Quase gemeu alto. — Passei seis anos no Convento Inglês em Bruges. Postou-se à frente dele com os ombros erguidos. Os seios lindos subiam e desciam sob a camisa de linho fino. Connor lembrou-se da maciez deles sob suas mãos. Pensou em tocá-los e beijá-la. — Você não parece freira. — Pois não sou. — Noviça, então? — Não. Apenas fui educada lá. Ele estava furioso consigo mesmo por causa do erro colossal. — Quase uma freira. Ainda bem que já estou a meio caminho do inferno, pois serei amaldiçoado por causa de ontem à noite. — Ora, você parecia mais do que disposto a agir como o recém-casado ansioso e me livrar do casamento com sir Henry Campbell. — Ou seja, livrá-la da virgindade — Connor especificou. Teria ele...? Uma certeza 66


instintiva no corpo o fazia temer a resposta. — Lamento que você tenha me raptado em vez de raptar minha irmã mais nova. Entendo seu desapontamento — ela declarou em tom frio. De jeito algum, mas ele não ia admitir. — Raptei uma freira disfarçada de endiabrada — declarou, fitando-a com olhar penetrante. Ela não se intimidou e respondeu: — Representei a endiabrada para sobreviver. Fui raptada por um malandro e tratada com grosseria contra minha vontade. — Nem tudo foi contra sua vontade. Se bem me lembro, você gostou de certas formas com que foi tratada. — O que diz da corda? — Sophie indagou. — Peço desculpa por isso. A certa altura, ela foi necessária. Posso entender que esteja furiosa por ter sido raptada. Tem um malandro como marido, uma ruína para morar e nenhum futuro. Mas posso lhe assegurar que você nunca será maltratada por mim. — Imagino que deva lhe agradecer por isso, pelo menos. Connor não conteve um meio sorriso. Admirava sua audácia e firmeza, apreciava seus contrastes, natureza suave e espírito forte, santa e pecadora. Pensou nela em seus braços e na cama. Um desejo ardente o dominou. Kate ou Sophie, ele queria essa pequenina mulher, como nunca tinha querido outra. Ela era divinamente desejável e já havia se igualado a ele na paixão. Porém, não importava o quanto a desejava, não podia tocá-la outra vez até que entendesse a situação. Tinha se casado com a moça errada e precisava solucionar isso de alguma forma. — Sou um malandro, Sophie MacCarran, e você, freira, ou quase. Talvez devêssemos anular esse casamento tão depressa quanto o realizamos e esquecer o que aconteceu entre nós. —Esquecer como posso. Mas eu ficaria livre, e teria que me casar com sir Henry. — Diga-lhe que é freira. Isso o desencorajará. — Como aconteceu com você. — Como deveria ter acontecido. Pensei que você ficasse satisfeita. Ela o fitou com olhar furioso, mas manteve-se calada. — Tenciono descobrir o que seu irmão pretendia. — Você queria realmente Kate? Connor não respondeu logo. Sophie poderia ficar mais magoada ainda se soubesse que ele tinha aceitado, de fato, a idéia de se casar com Kate. Porém, no 67


momento, queria Sophie, o que ela não acreditaria. Aliás, nem ele mesmo entendia. — Eu sempre mantenho a palavra dada — respondeu finalmente. — E agora? Será mesmo possível anular isso? — Você não sabe? — Eu não tenho certeza. — As freiras não ensinaram nada às alunas sobre Adão e Eva? — Sei muito bem o que acontece entre um homem e uma mulher. Apenas não me lembro se nós fizemos isso — Sophie admitiu ao encará-lo de queixo erguido. — Deve ter sido uma noite memorável, sra. MacPherson — Connor ironizou, pensando se uma mulher podia mesmo se esquecer disso. — O uísque... Não me lembro bem. Por favor, me conte. Por causa do uísque de Mary, ele não tinha uma resposta. Mas já alimentava uma boa suspeita. — Já lhe disse que serei amaldiçoado por ontem à noite. Entenda isso como quiser. Saiu e bateu a porta. Uma garoa fria caía na cabeça e nos ombros de Connor enquanto ele se afastava de Glendoon, colina abaixo. Durante a caminhada, refletia sobre a revelação da mulher. Aliás, Sophie. Embora já passasse bem do amanhecer, o céu cinzento anunciava mais chuva. Mas o trabalho não pararia na estrada militar, e por isso o dele, de rebelde, precisava continuar, não importava a distração que Sophie oferecesse. Por culpa do uísque, ela também não se lembrava do que havia acontecido entre os dois. Ele tinha prometido a Duncrieff que o casamento seria irrefutável. Saber agora que ela era quase uma freira e não Kate, a Endiabrada, o encabulava. Sophie era uma criatura inocente e ele era um grosseirão. Praguejou em voz surda. Só podia concluir que Duncrieff, por motivos ignorados, o tinha induzido a cair na armadilha do casamento. E agora nada poderia ser feito, exceto anulação ou divórcio. Duncrieff tinha morrido dos ferimentos, segundo a informação dos guardas de Tolbooth, em Perth, dada na semana anterior, quando Connor havia ido visitá-lo. Fora um golpe terrível para ele. Embora fosse parente de Clunny MacPherson, chefe de seu clã, Connor era arrendatário e amigo de Duncrieff. Portanto, sua lealdade em relação ao clã era dupla, o que provocava um sentimento de culpa e obrigação para com os MacCarran. E agora, casado com a irmã do chefe falecido, tornava-se parente deles. Connor sentia uma falta imensa do amigo. Rob tinha sido um companheiro firme e inteligente, leal ao clã, aos montanheses e a James Stuart. A Kinnoull House ficava a doze milhas de distância do castelo de Duncrieff. Mas Rob e Connor não tinham se conhecido até serem colegas na escola jesuíta nos arredores de Paris, quando os pais de 68


ambos viviam exilados na França. Encontraram-se novamente durante os dois anos em que Connor estudou na Universidade de Edimburgo. A essa altura, os dois já eram amigos e simpatizantes dos rebeldes. Mais tarde, Connor e o pai foram presos sob a acusação de atividades jacobitas. Duncrieff contratou um advogado de Edimburgo para defendê-los. Connor foi solto, mas nada pôde ser feito por seu pai. Robert era um amigo verdadeiro. Impossível esquecer seu altruísmo, a simpatia e nem mesmo a atração por mulheres raivas e o gosto por uma boa pilhéria. Como Duncrieff teria rido de seu engano. Ao pensar no acordo feito por ambos, Connor sentiu um leve toque do senso de humor irônico do amigo. E também um propósito mais profundo que ele pretendia descobrir. Franziu a testa quando viu um jovem montanhês entre os pinheiros, observando o vale abaixo. Diminuiu o passo e aproximou-se. — Bom-dia, Roderick — cumprimentou-o. Já com a mão no punho da espada, o rapaz virou-se depressa. Alto, de cabelos pretos, o rosto imberbe corou depressa. — Latha math, Kinnoull. Não ouvi você chegar. — Bom-dia. Ocupado em procurar soldados vermelhos no vale, você não pensou em olhar para trás, não é? — Connor disse, sorrindo. Encabulado, Roderick riu. — Ah, lá vem seu pai colina acima. Marcamos um encontro aqui para logo depois do amanhecer. — Ele e Andrew desceram quando ainda estava escuro para observar a estrada — Roderick explicou. — Kinnoull! Trago novidades — Neill disse e acenou já de perto. — É mesmo? — Connor indagou, e ficou à espera. — A tropa do general Wade está conseguindo um progresso rápido na construção, apesar do mau tempo. A estrada vai chegar aqui mais depressa do que pensávamos. Connor não se mostrou surpreso. — O general Wade é determinado e de disciplina férrea. Espera o mesmo da tropa dele, não importam as condições. — Tivemos algum sucesso em atrasar o progresso das estradas — Roderick aparteou. — Atrasar não é sucesso de fato, embora ajude — Connor comentou. — A novidade é que os soldados estão levando a estrada de pedra pela passagem entre aqui e as terras de Kinnoull. Não sei se vão seguir em linha reta ou fazer uma curva a leste, por Perth. De qualquer jeito, estão invadindo suas terras — Neill 69


avisou. — Agora elas são de Campbell — Roderick lembrou. — Não importa quem tenha o documento, as terras pertencem a Connor. Os arrendatários são fiéis a ele e continuam lhe pagando o aluguel, embora ele não seja mais seu senhor. Vinte e oito famílias, não é, Connor? — Neill indagou. — Sim. Já lhes pedi para não fazerem isso, pois pagam também para Campbell. — Alguns deles pegam cabeças de gado do magistrado, como nós fazemos, e o pagam com o próprio dinheiro dele. Mas, se você quer mudar essa história, a melhor maneira é readquirir o direito às terras — Neill argumentou. — Se pudesse, eu bem que gostaria — Connor murmurou. — Mas vamos observar a estrada em Kinnoull. Neill olhou para o castelo na colina acima deles. — Sua esposa. Você não vai querer passar o dia longe. — Tudo bem — Connor respondeu em tom brusco. — Ela está exausta. — Exausta?! — Roderick exclamou. — Por causa da caminhada penosa — Connor resmungou. — Ela vai ficar lá com Mary e descansar. Nós voltaremos logo. — Roderick, vá assumir seu posto lá até chegarmos. Não deixe a esposa de Connor escapar. Kate MacCarran é muito esperta — Neill disse ao filho. — Ela não é Kate MacCarran, embora seja tão esperta, ou mais — Connor informou. — Não é Kate?! — Neill indagou, estupefato. — Foi o que descobri. Eu me casei com Sophie, a irmã dela. — Como assim? — Neill explodiu, e Roderick arregalou os olhos. — É a outra irmã de Duncrieff. Ela acabou de sair de um convento em Bruges. — Uma freira?! — Neill exclamou, enquanto Roderick ria e Connor lhes lançava um olhar furioso. — Não chega a ser, mas quase. Para ser justo, Sophie se parece o suficiente com a irmã para me confundir. — Bonita como Kate? — Roderick quis saber. — Mais até — Connor respondeu. — Eu não teria imaginado que a moça fosse freira, embora ela tivesse intimidado Andrew com apenas um olhar. As freiras têm um jeito próprio de se impor — Neill comentou. — Por causa de toda aquela reza e santidade — Roderick disse. 70


— Andrew se intimida com facilidade, e Sophie não é freira— Connor argumentou. Ele não havia indagado sobre sua vida no convento. Bastava saber, por enquanto, que era Sophie e não Kate. — Para seu bem, desejamos que a freira aprecie alguma coisa mais além de rezar na hora de se deitar — Neill disse, piscou e Roderick riu. — Nada disso é engraçado — Connor protestou. — Como você pôde se casar com a moça errada? — o rapaz indagou. — Fui avisado de que ela estaria em Duncrieff esta semana, e os nomes das duas são semelhantes. Ela se chama Katherine Sophie. Pensei que fosse Kate — Connor explicou, e deu de ombros. — Por que Duncrieff não esclareceu esse ponto? — Talvez ele pensasse que eu me recusaria a casar com uma freira. — Com toda a razão. E onde está Kate agora? — Neill indagou. — Em Londres. Faz poucos dias que a irmã chegou da França. — Duncrieff devia saber das viagens das duas. Apostou que você se casaria com a freira e só se daria conta disso quando fosse tarde demais — Neill sugeriu. — É o que parece — Connor concordou. — Duncrieff preparou uma armadilha para você, Kinnoull. Sua esposa sabe os motivos dele? — o rapaz perguntou. — Não. Mas talvez o irmão tenha confiado nos primos. Allan MacCarran pode saber. Vou procurá-lo. — Você não cairá nas boas graças dos MacCarran por causa da prisão de Duncrieff e o rapto da prima. Quando souberem da morte do chefe deles, esta região vai se tornar perigosa para você — Neill o advertiu. — Eu sei. Roderick, volte a Glendoon e mantenha-se atento. Não deixe a senhora sair sob qualquer pretexto. Sente-se a seu lado até eu voltar. — E tenha um pedaço de corda à mão. Poderá ser útil. Mandaremos Padraig para ajudá-lo quando o encontrarmos. Sua mãe já foi para lá — Neill avisou. — Cruzei com Mary no portão e ela o trancou depois que saí — Connor disse. — Vamos, Kinnoull. Vou lhe mostrar onde vi os soldados ingleses trabalhando na estrada hoje cedinho — Neill prometeu depois de Roderick rumar para Glendoon. Connor seguiu o companheiro na direção oposta. Mas antes olhou para o castelo na colina perigosa. A esposa linda, desejável, encontrava-se lá. Mas por enquanto seria melhor que se mantivesse afastado dela, pelo menos até saber mais sobre o arranjo do casamento.

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Neill disse algo e apontou para a frente. Connor firmou o olhar através da garoa à procura da nova parte da estrada militar.

Capítulo VII

Enquanto limpava o barro seco do vestido, Sophie notou a bainha rasgada. A mãe o tinha dado com votos de um futuro brilhante. Porém, não se casaria mais com um magistrado das Terras Altas, ela refletiu. Em vez disso, era a esposa de um salteador que, depois de tela raptado e seduzido, não a queria mais. Precisava fugir e voltar para Duncrieff a fim de ajudar o irmão, pois Kate ainda não tinha voltado. A sra. Evans, uma estranha no castelo de Duncrieff e na região, não saberia o que fazer, além de ser muito nervosa. E Sophie não sabia de razão alguma para MacPherson mantê-la ali. Afinal, não era a esposa que ele queria. Foi dominada por uma onda de desespero e solidão. Não importava o que o coração e o corpo lhe diziam, ela não podia ficar em Glendoon. Se fosse embora... Pensou em sir Henry e estremeceu. Esse casamento apressado lhe oferecia proteção contra os interesses do magistrado nela e em seu clã. Porém, teria de barganhar tal risco pelo privilégio de voltar para casa. Havia passado tantos anos fora e fazia poucos dias que chegara quando tudo aconteceu. MacPherson não conseguiria mantê-la ali com facilidade. Iria explorar o castelo agora de manhã e descobriria um jeito de escapar dele. Connor ficaria fora por um bom tempo, calculava. Como não era a noiva com quem ele tinha pretendido se casar, talvez não se esforçasse muito para prendê-la ali. Depois de pôr o espartilho e a anágua, foi a vez do vestido. Com esforço, fechouo atrás com pôde. Em seguida, trançou os cabelos. Sem perda de tempo, saiu do quarto e desceu a escada. Sentiu um cheiro delicioso vindo da cozinha. O estômago roncou. Exceto o queijo e o bolinho de aveia, sua última refeição completa fora na casa de sir Henry. Sophie entrou num corredor sombrio que foi dar no arco de entrada da cozinha. Não viu ninguém ali. Numa lareira enorme, sob um teto abobadado de pedra, crepitava um fogo acolhedor. Sobre a mesa havia pilhas de tigelas de madeira e alguns legumes. Um caldeirão tapado fervia pendurado numa corrente de ferro na lareira. Era dele que vinha o odor apetitoso. Na mesa também havia um prato repleto de bolinhos de aveia e uma cesta com maçãs ainda do outono. Sophie não resistiu à fome e pegou um bolinho. Mordeu-o e suspirou de prazer, pois além de saboroso ainda estava morno. Correu o olhar em volta e viu panelas de ferro, utensílios diversos e duas 72


prateleiras com talheres, louça e copos de cristal verde para vinho. Numa outra ficavam alimentos, como sacos de aveia e de cevada, caixas de madeira com cenoura, cebola e maçãs. Havia ainda potes de condimentos, especiarias, mel e manteiga. A provisão não era farta, mas adequada. Depois de pegar mais uns bolinhos, Sophie foi para fora e viu um caminho estreito que atravessava a horta invadida pelo mato. Ouviu o latido dos cachorros que vinham correndo do fundo de um pátio. Lá ficavam as construções externas, todas em ruínas e inclinadas sobre a muralha. Para todo lado que olhasse, via paredes desmoronadas, pilhas de pedras e um emaranhado de vegetação rasteira, como hera e urzes. Apesar das péssimas condições, o castelo Glendoon tinha sido uma famosa fortaleza medieval. A torre meio desmoronada dominava o pátio central, que por sua vez era rodeado pela muralha parcialmente intacta e firme o bastante para oferecer certa proteção. O portão da frente ficava no topo de uma colina íngreme e de um desfiladeiro perigoso. A parte de trás e os lados contavam com o contraforte de declives cobertos pela mata. Os cachorros pulavam em sua volta. Sophie os afagou e repartiu um bolinho de aveia entre eles. Então, atravessaram o pátio juntos. Quando Colla soltou um latido alto, ela virou-se depressa. Um jovem de cabelos pretos, brilhantes e compridos até os ombros largos aproximava-se com passos rápidos. — Bom-dia, senhora. Sou Roderick Murray — apresentou-se com um largo sorriso e brilho nos olhos azuis. Sophie ficou encantada e estendeu-lhe a mão. — Sr. Murray, sou Sophie MacCarran de Duncrieff. O sr. MacPherson lhe disse para me vigiar? — Sim, até ele voltar. Afaste-se do portão, senhora — ele disse com um novo sorriso, mas dessa vez, encabulado. —Eu não tinha a intenção de sair. Apenas explorava o lugar. Onde está seu senhor? — Por aí, cuidando dos negócios. — De que tipo seriam? — ela indagou. — Ele faz o que precisa — Roderick respondeu, evasivo. — O tempo não está bom para andar pelo pátio, senhora. O chão é irregular, cheio de pedras, e a chuva provocou um lamaçal. A senhora deve ficar dentro do castelo. E tomar cuidado por onde anda lá. — Eu esperava conhecer a sra. Murray. O sr. MacPherson disse que ela estaria aqui. — Minha mãe veio mais cedo. Depois foi levar o gado ao pasto, e depois foi para 73


casa para dar conta do serviço de lá. Ela deixou sopa no caldeirão e bolinhos de aveia, e me pediu para avisar a senhora. — Obrigada. O gado costuma ficar aqui ? — Sophie indagou, olhando para trás do pátio e lembrando-se de ter ouvido barulho de animais lá. Algumas galinhas ciscavam em frente do que ela concluía ser estábulo. — Sim. O chefe tem umas vacas, uma cabra e algumas galinhas. Tem também um rebanho de carneiros que fica pelas colinas quase o ano inteiro. — Ah, sei. Com certeza animais roubados, Sophie pensou. Os cães voltaram a pular em sua volta e a cheirar sua mão. — Vão embora daqui, todos. Vocês estão molhados, sujos e devem deixar a senhora em paz — Roderick disse, enxotando-os. — Vai chover a qualquer momento e é melhor entrarmos para a senhora não estragar seu vestido. — Já está estragado! — ela exclamou, sentindo gotas enormes de chuva na cabeça. Riu, arrebanhou a saia e correu para a porta da cozinha. Olhou para trás e viu que Roderick também corria, mas na direção do que ela imaginava ser o estábulo. Por uns minutos, Sophie observou a chuva torrencial. Então, decidiu ir saborear a sopa da sra. Murray. Com a fome saciada, ela gastou algum tempo para explorar o castelo. Descobriu muitos aposentos vazios, alguns com paredes desmoronadas e expostos à intempérie. Apenas quatro estavam mobiliados: a cozinha, o salão, o quarto e uma sala que aparentava ser escritório e biblioteca. O salão era imenso e com correnteza de vento. Continha apenas uma longa mesa, algumas cadeiras e uma espineta, instrumento antigo de cordas. As cortinas nas janelas não deixavam entrar muita luz. Como o quarto, o escritório também tinha móveis finos. As paredes estavam cobertas por estantes repletas de livros. No centro ficavam uma escrivaninha e uma poltrona estofada. Como gostasse muito de ler, Sophie sentiu-se feliz por encontrar os livros. Esperava poder examiná-los mais tarde. Se não pudesse ir embora, vigiada como estava sendo, e se MacPherson pretendesse mantê-la ali por tempo indeterminado, ela precisaria de alguma coisa para se ocupar. No convento, sempre tinha o que fazer, e o mesmo poderia acontecer em Glendoon. Mas esperava readquirir a liberdade. Atravessou o escritório e olhou pelo vão da cortina de veludo vermelho da janela. A distância, podia vislumbrar as encostas do vale Carran e o rio que serpenteava por ele. Embora não pudesse enxergar o castelo de Duncrieff, o imaginava. Uma saudade imensa a dominou e o olhos encheram-se de lágrimas. 74


Sentia-se perdida, solitária e ansiava voltar para casa, se ver longe desse castelo velho e misterioso e de seu senhor, que escondia os sonhos frustrados nessa ruína. Seu olhar caiu no pátio abaixo. Notou o contorno da muralha que cercava a fortaleza. Uma parte desviava-se mais para fora, protegendo um emaranhado de plantas que, ali de cima, parecia ter uma forma proposital. Sophie viu um caos botânico, uma confusão de arbustos, hera, samambaias e outras plantas irreconhecíveis, todas crescidas descontroladamente. Árvores erguiam-se como sentine-las atrás. Ela viu ainda sinais de uma grade, com um portãozinho, que cercava essa área. Um jardim, Sophie reconheceu, admirada. Devia ser o que restava de um muito antigo, plantado séculos antes, como os que tinha visto em desenhos de jardins medievais. Sua curiosidade brotou. Glendoon não era o esconderijo de um fora-da-lei que ela esperava. Percebia que o velho castelo poderia voltar a ser uma habitação linda e agradável se alguém lhe dedicasse a atenção e o amor que merecia. Duvidava que seu senhor atual admitisse isso. E ela não ficaria para ver se o lugar poderia florescer. — Estão construindo a estrada ao longo do rio e transportando mais pedras em carros de boi — Neill disse ao apontar para o norte. — Padraig e Andrew seguiram um bom trecho da trilha do gado, na direção de Perth, e relataram que estão conduzindo uns doze carros de boi com pedras. Veja, lá apareceu um com uns poucos soldados vermelhos. Connor assentiu com um gesto de cabeça enquanto observava o carro, puxado por um boi imenso, ranger pela trilha do gado. Três soldados de túnica vermelha e calça branca cavalgavam ao lado do carro. Além, Connor podia ver o trecho reto e longo da estrada militar, uma faixa de pedra assentada no matagal. Ele estava deitado de bruços ao lado de Neill, escondido pelo capim alto e touceiras de urzes, no topo de uma colina baixa. Daquele ponto vantajoso ele podia enxergar boa parte do norte do vale Carran. Do lado oposto da colina erguiam-se montanhas altas que pareciam tocar o céu cinzento. Nuvens carregadas tinham despejado chuvas intermitentes, deixando a terra molhada e lamacenta. Continuava chovendo, e eles estavam molhados. Connor puxou uma ponta da manta xadrez sobre a cabeça, como um capuz, e continuou a observar o trabalho na estrada. — Ora, estradas de pedra. Não precisamos delas nas Terras Altas — Neill resmungou. — Os ingleses precisam para o transporte de tropas, canhões e suprimentos. — Nós deveríamos explodir essa como fizemos com aquela no Great Glen quando estivemos lá no ano passado. 75


— Lembre-se de que isso não impediu Wade de construir a estrada militar — Connor comentou. — Mas o atrasou e aborreceu o governo. E Wade escolheu outra rota para a estrada, longe das áreas que queríamos proteger. Por que não fazer isso aqui também? — Não duvido que possamos desencorajá-lo outra vez. — A não ser que o Fantasma Montanhês esteja muito distraído com a esposa para fazer um trabalho adequado — Neill provocou. — Sem dúvida, está — Connor resmungou. Na verdade, até agora não havia conseguido ter um pensamento lúcido que não envolvesse uma jovem de cabelo; dourados. — As pedras naquele carro são do campo e não tiradas de uma pedreira, você notou? E polidas. Interessante — Neill comentou. — E as dos outros carros, como são? — Connor quis saber. — Padraig mencionou três carregamentos de cascalho, dois de pedras arredondadas grandes e um de pequenas. Ele disse que havia três ou quatro carros das cinzentas grandes como as daquele lá embaixo. E viriam mais, segundo Padraig. Perto de cem toneladas. — Estão querendo trazer isso para cá pela trilha do gado? — Certo, e pela passagem entre o vale e Kinnoull. Padraig e Andrew os viram andando pelas colinas e ao longo do rio hoje de manhã. Connor virou-se de costas e olhou para o céu. A cabeça ainda latejava por causa do excesso de uísque. E agora o coração também doía, mas não fisicamente, e sim pela força da apreensão. — O que mais eles viram? Ele tentava não passar pelas terras de Kinnoull a não ser à noite, quando ia até com seus homens lá para pegar um ou dois animais. — Estão usando as pedras cinzentas para construir o contraforte nas margens do rio. Não muito longe da casa e abaixo da ponte de madeira que sempre serviu a Kinnoull. — Ora, aquela ponte não agüentaria tropas e canhões. Vão ter de construir uma nova. — Foi o que deduzimos. Estão usando as pedras menores para cobrir trechos longos da estrada antes de colocarem as redondas e o cascalho. As grandes devem ser para a ponte — Neill explicou. — Quando puderem atravessar o rio perto de Kinnoull, trarão mais tropas para a região. Talvez estabeleçam uma praça-forte lá, até mesmo na casa. Maldição! — Connor praguejou. — Diabos, a Kinnoull House agora está sob o controle de Campbell. Você não há de querer soldados vermelhos em suas terras e em sua casa. Mas o que podemos fazer para impedir isso? 76


— Alguma coisa, não sei o quê. Mas, por Deus, alguma coisa — Connor esbravejou e levantou-se. Neill também se levantou, e os dois seguiram pela colina. — Poderíamos explodir a nova ponte — Neill sugeriu. Devagar, Connor murmurou: — Sim. Se tivermos a pólvora própria para isso e um bom plano. Seria preciso a pólvora usada em canhões e não a pólvora para pequenos disparos. Grânulos maiores e de grande força explosiva. — Eu não me preocuparia com isso, Kinnoull. Basta roubar a pólvora que Wade e a tropa usam para abrir caminho pelas colinas. Eles têm barris dela nos carros lá embaixo. Padraig viu muitos. — Pois então vamos verificar. Esconda essa pistola, homem — Connor disse ao ver o brilho da arma de Neill. Ele cobriu a arma depressa com a ponta da manta xadrez. — Sabe, estão procurando a moça e suspeitarão de cada montanhês que encontrarem por aqui — Neill avisou. — Então não podemos ser vistos — Connor disse. À tarde, como Connor não aparecesse para jantar, Sophie tomou mais da sopa de Mary, acompanhada por Roderick. O tempo todo imaginava como poderia ir embora do castelo. Enquanto lavava a louça, o rapaz foi cuidar dos animais no estábulo. Ao notar que o crepúsculo se aproximava, Sophie achou que tinha uma chance. Roderick estava ocupado e Connor ainda não tinha voltado. Foi até a porta da cozinha e viu o rapaz, seguido pelos cães, mexer em algumas coisas antes de entrar no estábulo. Enquanto esperava uns instantes, ouviu o mugir de uma vaca e o balir da cabra. Então seguiu pela trilha entre os canteiros da horta abandonada, rumo ao portão. Se o abrisse poderia chamar a atenção, pois lembrou-se de como tinha rangido quando Connor a trouxera. Olhou em volta e viu uma brecha na muralha, entre o portão e a primeira dependência externa que, embora pequena, escondia aquela brecha na muralha. Sophie correu para lá. Olhou para trás, mas Roderick não tinha aparecido ainda. Juntou a saia rodada do vestido, o cetim brilhando como fogo sob o sol do entardecer, e subiu pela brecha nas pedras. Tábuas enchiam o vão lá em cima. Olhou para fora e viu ser impossível pular daquela altura ou subir. Por isso alguém tinha protegido a abertura com madeira. Mas, do lado de dentro, era possível remover as tábuas. Foi o que ela fez. Quebrou duas unhas e uma farpa grande penetrou na palma de sua mão. Tirou-a, e achou estar pagando pouco pela liberdade. Dentro de alguns minutos e com esforço, conseguia descer pelo lado de fora. Limpou as mãos no vestido e encontrou um novo rasgão. Não ouviu gritos de alarme nem 77


viu sinais de ter sido seguida. Ergueu um pouco a saia e correu pela campina, em direção ao rio. Sabia onde atravessá-lo, e de lá não seria difícil encontrar o caminho para a capela de São Fulan, que ficava a poucas milhas. Tão logo encontrasse esse lugar, as lembranças da in fância lhe mostrariam o caminho para casa. Ao contrário da noite anterior, estava descansada e alerta, o que a ajudava a andar depressa. Mantinha-se perto das árvores para não ser vista. No topo de uma colina, parou. O vale lá embaixo e as colinas de ambos os lados ofereciam uma paisagem lindíssima. Era possível ver campinas cortadas por riachos e salpicadas por carneiros. Acima da linha das colinas, o céu do anoitecer era de um rosa dourado como se fosse pintado pelo pincel de um artista. A Escócia e o amado vale Carran. Como havia sentido falta desse lugar durante os anos passados fora. Mas não tinha tempo a perder. No topo de outra colina, avistou a velha capela a distância. Diminuiu o passo e pensou na última vez em que havia estado nela. E também no montanhês que a tinha trazido, desafiado, beijado e se casado com ela entre aquelas paredes em minas. Ele não era mais apenas seu seqüestrador, mas também seu marido. Isso lhe dava o direito de levá-la de volta. Porém, MacPherson, depois de descobrir sua identidade, não queria mais a noiva seqüestrada, Sophie pensou. Talvez nem se importasse com seu desaparecimento, exceto pela insistência teimosa de manter a promessa inexplicável para seu irmão. Ela olhou para o vale e reconheceu as colinas acima de Duncrieff. A distância não passava de algumas milhas colinas abaixo e pelo vale. Já sabia o caminho. Alegre, apressou o passo. Tinha escapado. Mas uma ponta de remorso, por causa de Roderick, a perturbava. Ele poderia pagar por sua fuga. Connor MacPherson ficaria frustrado e bravo. Nada mais justo. Mesmo assim, ela se deu conta de que sentiria falta dele. Mais do que admitia. A voz profunda, as mãos firmes, os brilhantes olhos verdes, os beijos ardentes seriam inesquecíveis. Ela mal o conhecia, porém suspeitava que havia perdido um pedaço do coração para ele. Mais uma razão para fugir, refletiu. Segurou o pingente que balançava enquanto caminhava. Ele lhe exigia que não se contentasse com menos de um amor verdadeiro e raro. Caso contrário, ela não desempenharia seu papel pequeno, mas essencial, na lenda de Duncrieff. Sempre que uma mulher MacCarran, com o Dom de Fada, encontrasse esse amor, o resto do clã seria beneficiado. Todas tinham um traço do sangue de fada, mas poucas possuíam o dom, aquele toque de magia que Sophie tinha evitado enfrentar. Assim como o fazia em relação a Connor MacPherson nesse momento, reconheceu. Com um soluço abafado, lutou contra a vontade repentina de virar para trás e ir procurá-lo. Sentia um desejo incontrolável de dar uma chance àquela paixão e descobrir 78


se o que queimava em seu coração seria real, o tipo de amor mágico. Mas Connor não a queria; e no passado ela havia cometido o engano de confundir atração física com amor. Preferia mais passar a vida inteira sem amor em vez de errar novamente. Sophie continuou a andar depressa e chegou a tropeçar no declive acidentado. Mal via onde pisava. As lágrimas começaram a correr enquanto o coração lhe dizia para voltar ao castelo em ruínas e ao senhor de Glendoon. Como as lágrimas a cegassem e as dúvidas lhe toldassem os pensamentos, ela não prestava mais atenção no caminho. Quase chocou-se contra uma pedra escondida por pinheiros altos. E, tarde demais, correu para o homem que surgia das sombras das árvores. O lampejo de um vestido de cetim e de cabelos dourados chamou a atenção de Connor enquanto caminhava pelas colinas. Achou ser imaginação sua, pois havia pensado em Sophie o dia inteiro. Mas, sem dúvida, tinha vislumbrado uma mulher descendo a colina. Saiu da proteção das árvores para enxergar melhor e distinguiu sua silhueta graciosa e o vestido vermelho-dourado. Connor praguejou. O coração quase saltou do peito quando a viu atravessar uma vala um pouco abaixo de onde ele estava. A passos largos, foi a seu encontro enquanto ela parava e o reconhecia. — Sophie — murmurou em voz surda. Ela hesitou antes de se aproximar em vez de fugir. Bendita fosse pela intrepidez que ela nem imaginava possuir. Sua expressão era de um desafio magnífico. Connor achou irresistível a mescla de obstinação férrea e de encanto. Para disfarçar a reação, indagou: — Onde está Roderick Murray? Colhendo flores? — Flores?! — Calculo que a única desculpa dada ao rapaz para acompanhá-la até aqui foi a de procurar flores, ou outra tolice semelhante. Você não seria tão louca a ponto de sair sozinha de Glendoon ao anoitecer — ele disse em tom severo. — Não preciso de um acompanhante ou vigia. Cansei de ficar presa e resolvi ir para casa. Ele pegou seu braço, mas Sophie o puxou. — Acredite em mim. É mais seguro para você ficar em Glendoon sob minha proteção. — Ora, você me deixou sozinha o dia inteiro. Prefiro minha liberdade. 79


Connor tornou a pegar seu braço e a forçou a andar. — Está ansiosa para ter mais aventuras? Se andar sozinha por estas colinas à noite, encontrará muito mais do que deseja. — Já tive minha quota, obrigada — Sophie ironizou. Ele largou o braço e pôs a mão em seu ombro. — Duncrieff fica daquele lado — ela disse, apontando para trás. — E Glendoon é por aqui — Connor rebateu calmamente. — Não existe mais razão para ficar lá. Você se casou com a irmã errada e não me quer como esposa. — Ainda não me decidi. Cuidado, veja onde pisa. Ela passou a prestar atenção, mas continuou a insistir. — Preciso ir para casa. Minha irmã está fora e só eu posso ajudar Robert. Impossível ficar em Glendoon, retorcendo as mãos enquanto você decide o que quer. Por favor, me deixe ir embora. — Não há nada que se possa fazer por seu irmão no momento. Deixe que eu investigue. Se houver uma possibilidade, descobrirei. Connor estava decidido a verificar se Duncrieff havia mesmo morrido ou se ainda vivia. — Não posso ficar em Glendoon. E não quero. Você não compreende? — ela esbravejou. — Ora, e você não entende que não é seguro vagar pelas colinas. Aliás, nem ficar em Duncrieff sem proteção. Seu irmão frisou que você deveria ficar comigo e eu lhe garanti isso. — Não sofro ameaças, mas se você pensa assim, então fique comigo no castelo de Duncrieff. — No momento, não posso ser visto lá — Connor resmungou. — Minha irmã é quem precisa de um guarda. — Sei disso. Mas seu irmão suspeitava da intenção de Campbell de solapar o clã MacCarran com o casamento. Isso quer dizer que Robert via a necessidade de também pôr você em segurança, e eu vou agir como achar melhor — ele afirmou impaciente. Brava, Sophie não respondeu. Apenas o fitou. — Irei buscar suas roupas em Duncrieff para você não precisar ir. — E minhas tulipas? Connor a ignorou e percorreu o olhar pelas árvores e colinas. — Além dos soldados, os salteadores também estão à sua procura. Precisamos voltar depressa para Glendoon. 80


— Você não tem o direito de me manter lá, ou em qualquer lugar. — Como não? E o casamento feito com autorização de seu irmão? Além do mais, eu não gostaria que você se encontrasse sozinha com bandidos. Vamos, apresse-se. — Ah, mas foi ótimo eu me encontrar com você ontem à noite! — Sou a exceção. E não se esqueça de que o vale está cheio de soldados à sua procura. — Que bom. Assim talvez eu consiga ser levada para Duncrieff. — Não se iluda. Não há garantia de que eles a tratem bem caso a encontrem. A maioria dos soldados tem noção de moral e respeito, mas alguns, não. — Imagino que você saiba bastante sobre soldados. — Pertenci às fileiras deles durante dois anos. — Você?! — Sophie exclamou, rindo. — Capitão MacPherson do Am Freiceadan Dubh — Connor apresentou-se, inclinando a cabeça. — Do quê? — Black Watch. Um regimento mais ou menos novo, formado por montanheses a fim de policiar as Terras Altas. O general Wade, encarregado da construção das estradas militares, formou a primeira companhia dois anos atrás. Desde então, cresceu muito. — É difícil imaginar você, um rebelde o seqüestrador de noiva, entre aquelas fileiras. — Eu sei, mas é verdade. Prometi a meu pai que me alistaria no regimento e cumpri. — Você sempre cumpre suas promessas, não é? — Sempre, não importa quantos problemas elas me causem — Connor respondeu, fitando-a com olhar significativo. — Talvez fosse melhor você não prometer mais nada. — Pode ser. Quietinha agora — ele recomendou ao puxá-la para um grupo de árvores, lugar mais seguro. — Você se alistou só para agradar ao seu pai? — Em parte, e também para ajudar meus companheiros celtas. Em minha opinião, se o governo se mostrava determinado a policiar as Terras Altas, eu poderia fazer minha parte, ajudando aqueles que mereciam escapar de punições injustas. — Um rebelde nas fileiras deles? — Algo parecido. — Pois me trate como uma daquelas pessoas. Também mereço escapar. 81


Connor riu. — Não pertenço mais ao regimento. Mas, se está determinada, vá embora. Se não cruzar com os assaltantes das Terras Altas e os soldados sem escrúpulos, talvez tenha a sorte de se encontrar com sir Henry. — Campbell?! — Sophie exclamou ao olhar em volta. —Ele também está por aí procurando-a. Eu o vi esta manhã, bem como soldados, vasculhando estas colinas. Sir Henry ficaria feliz em poder lhe prestar assistência. — Com toda a certeza — ela concordou, meio hesitante. — Ele até poderia ajudá-la a conseguir a anulação de seu casamento com um ladrão. Seria preciso apelar para Roma. Levaria algum tempo, mas você ficaria livre para se casar com sir Henry. — Você sabe que não quero isso. — Dilema seu, menina. Ele ou eu. — Se eu o procurasse, ele mandaria prendê-lo por seqüestro. — Sem dúvida e com o maior prazer — Connor concordou. Apreensivo, observou-a. Era arriscado dar a um passarinho a chance de abrir as asas. Se Sophie desejava mesmo voar, ele e Robert tinham errado ao decidir sua vida. Esperava que não. Teria de passar a noite seguindo-a, para garantir sua segurança, caso ela se fosse. Com os braços cruzados, ele esperou. Calada e com a testa franzida, ela o olhou com desconfiança. Connor afastou-se das árvores e recomeçou a andar. Um instante depois, ela o acompanhava. — Se queria escapar, Sophie, devia ter tentado durante o dia. À noite as colinas são muito perigosas para uma mulher sozinha — ele explicou com suavidade. — Eu me distraí percorrendo o castelo com meu guarda e os cães em meus calcanhares. — Fico contente por você ter encontrado alguma coisa para fazer — ele afirmou, mas franziu a testa em seguida: — Quietinha. Todos os sentidos dele enviavam sinais. Os cabelos na nuca eriçavam-se. O murmurejar de um riacho, o farfalhar das árvores sob o vento e outros sons eram normais. Mas ele tinha ouvido algo diferente. Virou a cabeça e percorreu o olhar atento pelas cercanias. Momentos depois, ouviu outra vez. Gritos abafados pela distância e pela brisa. Ouviu também mugidos de gado. Homens e animais percorriam essa mesma colina. — Por aqui. Depressa — disse, puxando Sophie pelo braço. Levando-a à força, correu para um pinheiral no lado da colina. Enfiou-se sob os galhos baixos de um pinheiro e ela caiu ao ser arrastada. 82


Ajoelhado, Connor a segurou de encontro ao peito. — O que foi? — ela perguntou. — Quieta. Alguém se aproxima do local onde estávamos — ele murmurou em seu ouvido. Sophie sentia a tensão do corpo e as batidas aceleradas do coração dele nas costas. Olhou através dos galhos que os escondiam. MacPherson mantinha-se imóvel e a impedia de se mexer. Ela ouviu vozes de homens misturadas com o mugir de gado e o ruído surdo de patas na encosta da colina. Pouco depois, quase perdeu o fôlego ao ver três montanheses e muitas vacas no mesmo lugar onde ela e Connor tinham passado. A Lua, que acabava de surgir, iluminava a cena. — Bandidos. Cearnach nós chamamos esses ladrões de gado — Connor murmurou em seu ouvido. — Aqueles são Hamish MacDonell e seus homens. Um grupo perigoso. Vamos ter de esperar aqui. A respiração dele soprava em sua face e a voz repercutia em seu corpo inteiro. Sophie aguardou em silêncio, sua respiração no mesmo ritmo que a dele. O único outro som era o farfalhar dos pinheiros sob o vento. Notou o aroma estimulante deles. Uma das mãos de Connor estava sobre seus seios. A cada inalação de ar, eles recolhiam calor e uma sensação sutil. Embora imóvel, seu olhar seguia a movimentação dos homens e dos animais. MacDonell e os companheiros riam, falavam e pareciam não ter pressa O gado mugia, resfolegava e às vezes desviava-se da trilha. Uma vaca correu para os pinheiros. Chegou bem perto, mas um homem, praguejando, perseguiu. Sophie ficou tensa. — Calma — Connor murmurou. Finalmente, a vaca mudou de direção, instigada por chicotadas. Sophie soltou a respiração presa. Pouco depois, os homens e o rebanho clandestino desapareciam pela encosta da colina. Ela sentou-se, mas Connor não a soltou. — Ainda não. Eles podem voltar. Relaxe, menina. Sob o contato das mãos firmes, ela fechou os olhos e inclinou-se para trás. Não se sentia mais presa e sim, segura. Aliás, muito bem, embora se recriminasse por isso. Ora, Connor também era ladrão de gado e conhecia aqueles homens. — Viu o perigo? — ele murmurou. Sophie virou a cabeça para cima. A respiração dele inundou-lhe o rosto e a voz profunda a fez vibrar. Suspirou, adorando o conforto e a segurança que os braços dele lhe davam, embora não quisesse gostar disso. À noitinha e apesar dos sentimentos conflitantes, havia decidido se afastar de Connor. E nesse momento desejava apenas ficar entre seus braços. — Pois é — ele murmurou como se a entendesse e roçando os lábios em sua orelha. Uma sensação excitante a inundou. Respirou fundo e arqueou a cabeça no ombro 83


dele. Connor tornou a roçar os lábios em sua orelha, a respiração morna e penetrante provocando-lhe uma reação mais aguda. Era como se um relâmpago brilhasse dentro do seu corpo. Quando ia lhe perguntar o que pretendia, ou talvez implorar pelo que desejava, ele apossou-se de seus lábios. Embora permitisse que a beijasse e sem saber se deveria, ela manteve os lábios imóveis. Mas a excitação crescia em seu âmago como uma tempestade. Sophie não estava com medo. O que pulsava em seu corpo era a paixão. Retribuiu o beijo e teve certeza do que sentia. Connor a tocou nos seios, a mão acariciando-os e provocando arrepios pelo corpo inteiro. Suspirou sob os lábios dele e sentiu a outra mão apoiar sua cabeça. Virouse de frente e o enlaçou pelo pescoço, o corpo exigindo mais. Como na véspera à noite, quando ela quisera mais. E, de manhã, ao descobrir quem ela era, Connor a tinha rejeitado. Ao lembrar-se disso, virou a cabeça e imobilizouse. — Sim, chega disto. Eles já se foram. Vamos embora — ele resmungou empurrando-a do colo, erguendo-se e levando-a para fora das árvores. Dessa vez, Sophie não protestou em acompanhá-lo, e ele a segurava com firmeza pela mão. Por se dar conta do que poderia ter acontecido caso tivesse encontrado sozinha os ladrões de gado ou os soldados, falou pouco enquanto seguiam em frente. Assim como na véspera, depois de raptá-la e se casar com ela, Connor a ajudava a cruzar riachos e a subir trechos íngremes. De vez em quando, sentia a mão dele apertar a sua por nenhum motivo aparente. Isso lhe dava uma sensação muito boa. — Fico contente por você ter aparecido esta noite quando os ladrões de gado percorriam as colinas — aventurou-se a dizer. — Uma das razões pelas quais eu queria que você ficasse em Glendoon. Neill e eu vimos MacDonell e seus homens no vale mais cedo. Imaginei o que faziam por lá. Fiquei de olho neles e nos soldados também enquanto voltava para Glendoon. — Tive a oportunidade de fugir e não pude ignorá-la — Sophie disse em defesa própria, e Connor deu de ombros. — Mas estou muito agradecida. Você pode ter salvado minha vida ao aparecer em meu caminho. Ele murmurou qualquer coisa, mas não a fitou. Parecia estar de humor sombrio, aborrecido e sem dúvida com pressa de levá-la para Glendoon. — Ainda tenho a intenção de voltar para Duncrieff. Pensei que você não se importasse com minha ausência. Afinal, não sou quem você desejava — Sophie argumentou. — Mas é com quem eu me casei — ele disse naquele tom de voz profundo e com um leve toque de afeto. — Iremos a Duncrieff tão logo seja possível. Dou-lhe minha 84


palavra. Ela sentiu-se estranhamente confiante e deu-se conta de que, se tivesse sido qualquer outro homem que a houvesse raptado, ela lutaria muito mais pela liberdade. Algo em seu íntimo queria voltar com Connor MacPherson. Enquanto continuavam a caminhar, Sophie apertou-lhe a mão num gesto de paz e gratidão. Ele o retribuiu. Pouco mais adiante, Connor apontou para a frente e disse: — Veja, sra. MacPherson, Roderick está vindo ao encontro de seu encargo extraviado. Ainda correndo ao encontro deles, o jovem montanhês acenou. Gostasse ou não, ela continuava sob a guarda do senhor de Glendoon, Sophie refletiu. Tão logo chegaram, Connor pegou o lampião da cozinha e levou Sophie para a escada. — Cuidado com os degraus. Se andar pelo castelo à noite só entre nos aposentos em uso. Um passo em falso na escuridão pode lhe roubar a vida — ele a advertiu. No patamar em que ficava a porta do quarto, Connor a abriu e deixou Sophie entrar. — Boa-noite, sra. MacPherson. — Onde você vai dormir? — ela indagou ao vê-lo do lado de fora. — Duvido que consiga pegar no sono depois dessa aventura. — Porém... — Sophie murmurou, mas calou-se. — Se está com medo dos fantasmas, garanto que eles não a perturbarão. Caso acorde com algum tilintar ou gemido, ignore e volte a dormir. — Connor... — Boa-noite — ele disse com firmeza. — Onde você vai ficar se eu precisar de alguma coisa? Seus olhos expressivos transmitiam uma mensagem diferente das palavras. Connor pensou se ela não pedia para lhe fazer companhia. Ou seria o que ele desejava? Mas não ficaria até saber o que queria em relação a Sophie. Embora estivesse decidido a se manter afastado, a tinha beijado sob os pinheiros. Sempre que a via, não conseguia resistir à sua atração. Queria descobrir tudo sobre o acordo do casamento antes de se prender mais numa possível armadilha de Duncrieff. — Vou ficar por aí — respondeu, embora quisesse muito entrar e compartilhar a cama com ela. — Se dormir em outro lugar, você vai morrer de frio. O castelo é gelado à noite e 85


de madrugada. — Você se importa tanto com meu bem-estar, Sophie? — Eu me importo com o bem-estar de qualquer pessoa. Ele a observou e sentiu uma repentina meiguice. — Santa Sophie. Vejo que você aprendeu bem os ensinamentos do convento. Dormir no chão frio não me fará mal. Ela ergueu bem o queixo. — Aprendi o comportamento adequado no seio de uma família amorosa. Espero que o mesmo privilégio lhe tenha sido concedido. — Ainda me lembro das lições de moral e de comportamento. E jamais esqueci a bondade. A vontade de lhe falar sobre a família foi muito forte, mas ele a abafou e tornou a repetir: — Boa-noite, sra. MacPherson. Estavam muito perto um do outro. Com uma das mãos, ele afastou seus cabelos da testa e, com a outra, acariciou seu rosto. Ansiava por tocá-la muito mais, porém, controlou-se. — Este quarto é seu e não meu. Se você não quer reparti-lo comigo, posso dormir em outro lugar. Existem muitos no castelo — ela argumentou. — Você poderia ter o seu particular, mas os outros não estão mobiliados e alguns ficam expostos à intempérie. Temos enxergas de palha e cobertores guardados. Seria também possível arranjar um braseiro numa lata, pois não confio nas lareiras daqueles quartos. Estão cheias de ninhos de passarinhos e de entulho. Se você não se importa com a companhia de camun-dongos e de esquilos, sinta-se à vontade para se instalar num. Sophie lhe dirigiu um olhar impertinente. — Um castelo imenso e apenas uma cama raramente usada. — Eu lhe disse que não era minha casa. — E onde fica ela, MacPherson? — Sob as estrelas de Deus. Em qualquer lugar que eu escolha e em nenhum determinado. — Você poderia se instalar aqui definitivamente. Este castelo foi um lugar aprazível, segundo contam, alegre e feliz. — Isso foi muito tempo atrás. Houve uma tragédia aqui, de acordo com a lenda. Todos os MacCarran, seus habitantes, desertaram Glendoon como ratos abandonam um navio. Tudo que deixaram para trás foi esta fortaleza em ruínas, sob os cuidados dos fantasmas. 86


— Eu me lembro de alguma coisa da história da família. E você mencionou a maldição que dizer havia neste lugar Sophie comentou. — Foi o que ouvi contar. E a tragédia de dois enamorados. Ela encontrou a morte ao tentar avisá-lo do perigo, e ele não conseguiu salvá-la. Fique aqui no quarto à noite e não se aventure pelo castelo, pois algum mal poderá lhe acontecer. Boa-noite, menina — ele terminou em voz suave. Incapaz de se conter, acariciou-a no rosto antes de se dirigir para a escada. — Nenhum mal me atingirá aqui em Glendoon — Sophie afirmou. Connor sorriu enquanto se afastava.

Capítulo VIII

— Maldição! Que o diabo os carregue, seus ladrões patifes! Sophie ia pelo corredor rumo à cozinha a fim de se alimentar, quando ouviu a mulher praguejando. Ainda não tinha visto Connor essa manhã. Já mais perto, ouviu o ruído de uma vassourada. Ao entrar na cozinha, viu a mulher à porta que dava para fora, empunhando uma vassoura de palha. — Vão embora, seus imprestáveis! — ela vociferou. — Virou-se para dentro e, correndo para Sophie, exclamou: — Senhora! Suas faces estavam coradas e fiapos de cabelos pretos es-capavam da touca. Os olhos azuis e brilhantes lembravam os de Roderick. O corpo era robusto e bem-feito. Ela usava um vestido cinza-azulado sob um avental amarrotado e um pequeno xale xadrez nos ombros. — Sra. Murray? — Sophie perguntou. — Sou... — Eu sei, senhora, a esposa de Connor. Ele a raptou na outra noite. Muito excitante! — Suponho que sim — Sophie comentou. — Muitas noivas das Terras Altas começam a vida matrimonial dessa forma. Eu, não. Conheci meu Neill na praça do mercado onde ajudava meu pai na venda de retalhos e de bugigangas. Sou Mary Murray — apresentou-se, estendendo a mão a Sophie. — Desculpe a gritaria, mas aqueles corvos me deixam furiosa. — Corvos? — Sophie perguntou. 87


— Eles estavam comendo as sementes que semeei na horta. Eram de ervilha. Também planto galhinhos de cravo-de-defunto e de alfazema, como faço lá em casa. Mas nada vinga aqui. Mary Murray era uma mulher bonita, Sophie notou. O rosto oval tinha uma beleza serena. Embora tivesse um filho crescido, as rugas ainda não marcavam seu rosto. Sophie podia ver que Roderick tinha herdado os olhos azuis e as faces coradas da mãe. — Sinto que a senhora tenha me ouvido praguejar. Minha família era nômade e minha avó, quando seu temperamento cigano explodia, praguejava como uma peixeira. Aprendi com ela, e às vezes não me controlo. Desculpe. — Eu não me importo — Sophie respondeu. Depois daqueles anos no convento, ouvir uma mulher falar com plena liberdade era estimulante. — Roderick contou que a senhora andou explorando o castelo. É um lugar feio, mas já foi muito bonito. Bem, a senhora sabe, pois Glendoon pertence à sua família. — Mary foi pegar legumes, que trouxe para a mesa. — Tenho de preparar a comida. Mas já fiz um mingau de aveia que está naquele caldeirão pequeno na lareira. Se estiver com fome, sirva-se à vontade. Sophie agradeceu e saboreou o mingau. Estava muito gostoso e quente. Quando terminou, dispôs-se a ajudar Mary a descascar e picar os legumes. — Meu filho Roderick me contou que a senhora morou na França por uns anos. Eu me lembro quando o chefe MacCarran foi exilado. Um homem tão bom, leal aos jacobitas. Como seu irmão. Que Deus o proteja. — Obrigada, sra. Murray. — Ora, me trate por Mary. A senhora gostou da França? — Gostei, sim. Moramos lá por uns tempos, e depois em Roma. Então, passei seis anos numa escola de um convento inglês, em Bruges. — Onde fica isso? — Flandres, nos Países Baixos. — Ah, onde fazem rendas e de onde vêm os bulbos das flores lindas, não é? — É, sim. Bruges é um lugar bonito, uma pequena cidade medieval com canais e cisnes. E muito tranqüila. As mulheres sentam-se à porta das casas para fazer renda. Na primavera pode-se ver o campo coberto por tulipas e narcisos. Lindíssimo. No convento, também cultivávamos essas flores. O colorido e o perfume eram maravilhosos. — Imagino. Eu também gosto de trabalhar no meu jardim, mas cuido mais da horta. Minha casa fica a umas duas léguas daqui. Na verdade, misturo narcisos e cravode-defunto com as hortaliças como proteção. Os veados e os coelhos não chegam perto deles. No jardim, tenho até roseiras. Um dia, gostaria de comprar bulbos holandeses, que 88


são vendidos nos mercados de Crieff e de Perth, mas são muito caros. — Eu trouxe alguns de Bruges e eles já começaram a brotar. Gostaria de lhe dar uns. — Muito obrigada — Mary agradeceu, sorrindo. — Mas tudo que é meu está em Duncrieff. Vim para cá sem nada. — Raptada, eu sei. Mas não havia escolha, segundo ouvi contar. — Não concordo. — Ah, com o tempo, a senhora vai entender. Só lamento os problemas que o chefe lhe causou. Ele também lamenta. — De jeito nenhum — Sophie afirmou. — Lamenta, sim, embora não admita — Mary insistiu e a fitou. — Diga-lhe que quer suas coisas aqui e logo. — Ele prometeu ir buscá-las. — Roderick me contou que a senhora tentou voltar para casa ontem à noite. Seu espírito é forte, mas as colinas estão cheias de salteadores. — Foi o que descobri. Espero que Roderick não tenha enfrentado problemas com o senhor do castelo. — Na verdade, não. — Mary riu. — Não deixe Connor MacPherson assustá-la com seus modos ríspidos. É um homem bom, mas não gosta que ninguém perceba isso. — O que você quer dizer? — Ele tem bom coração e cuida dos arrendatários. Estes, por sua vez, são muito leais a ele. — Rouba gado para eles, não é? — Só quando é preciso. MacPherson não deixa que passem necessidade. Ele parece um salteador porque pega umas cabeças de gado, mas a salvou e a seu clã ao se casar com a senhora. Foi o que Neill e Roderick me explicaram. Seu próprio chefe, que Deus o abençoe, pensou em seu bem-estar ao mandar MacPherson em seu encalço. Penso que a senhora deve ficar contente por ter esse homem como marido. Calada, Sophie continuou a descascar cenouras. Atarantada com o seqüestro e o casamento, não havia refletido sobre o que sir Henry ambicionava conseguir ao casar-se com ela. Deus do céu, Mary poderia estar certa. Sem dúvida o clã MacCarran ficava mais seguro sem a presença de sir Henry no círculo íntimo dos parentes do chefe. Talvez Connor MacPherson a tivesse salvado de várias ameaças e não apenas de uma. Mais tarde ele voltaria de qualquer atividade do momento. Lembrou-se da 89


meiguice demonstrada na véspera à noite e na anterior. Uma onda de prazer espalhou-se por seu corpo. Ele voltaria para reassumir aquilo ou se esquivaria outra vez? O que aconteceria ao casamento impulsivo se ele mudasse de idéia? Sem dúvida estava contente por não existir mais a ameaça do domínio de sir Henry sobre ela e seu clã. Porém, não sabia em que pé estava com Connor MacPherson e o que desejava desse casamento para si mesma. Ele parecia ter esfriado enquanto sua paixão esquentava. As carícias dele tinham feito seu sangue de fada dar sinal de vida e, com certeza, seu coração despertar. — Não foi muito difícil derrubar esta ponte, mas é um trabalho dos diabos consertá-la — Neill comentou com Connor ao lado. Deitado na margem, martelava pregos na prancha de madeira. — Estou vendo, mas vale a pena. Assim, os boiadeiros e o gado poderão passar de novo pelas pontes. Mas acho bom você parar agora. Vi soldados vermelhos quando vinha para cá. — Eu também vi. Eles vasculhavam todos os cantos e paravam em cada casa. É bem capaz de subirem até Glendoon. — Não até lá. Morrem de medo dos fantasmas que assombram o castelo. Também, no momento, estão mais interessados nos MacCarran do que nos MacPherson. Não quero que culpem os rapazes pelo rapto da noiva. Tenho a intenção de falar com eles e, se precisar, com Campbell também — Connor admitiu. — Será muito arriscado. Você não quer levantar as suspeitas dele, não é? — Neill disse, levantando-se e guardar as ferramentas numa sacola de couro. — Se for meu dever, farei isso. Mas vamos embora. Passamos o dia inteiro e o início da noite fora. Não vou dormir ao relento se posso fazê-lo numa cama — Connor declarou. — Você não vê a hora de voltar para o lado da esposa, não é? — Quero ter a chance de lhe falar sobre isto aqui. — Ah, sei — Neill disse, rindo. — Também quero cuidar um pouco de meus animais. Fiona ainda não está prenhe. Talvez nunca fique outra vez. — Pode ser enquanto pastar em Glendoon, lugar árido. — É o que parece, mas não tenho escolha a não ser ficar lá. — As mulheres são muito meticulosas em relação às casas onde moram, e sua Sophie pode não querer criar os filhos num lugar mal-assombrado. — Filhos?! Ela é capaz de preferir a anulação do casamento. — Ora essa, depois de todo aquele trabalho para raptá-la? Bem, vamos terminar 90


de consertar as pontes em poucos dias. Hamish MacDonell diz que vai levar os animais dele pela trilha ao mercado de Crieff na semana que vem. Embora eu não deseje mal ao rebanho, não me importo se ele tomar um banho no rio — Neill acrescentou com um sorriso malicioso. Connor também sorriu, consciente da antiga rivalidade entre Neill e Hamish, que era um grande malandro. — Vacas de quem ele vai vender desta vez? — Connor indagou ao mesmo tempo que procurava sinais de soldados vermelhos pelo caminho ou de qualquer tipo de perigo. — Aposto como nenhuma é dele. Hamish e seus rapazes pegaram três pretas de Allan MacCarran ontem à noite e duas malhadas de Campbell na semana passada — Neill respondeu. — Vi Hamish com as pretas. — E eu lhe disse que se pegar vacas de sir Henry estará roubando de você. Ele respondeu que você não tem mais direitos legais aos rebanhos de Kinnoull. E, se as vacas vagueiam por pastos abertos, ele pode pegá-las. — Hamish age como nós ao pegar os animais na escuridão da noite — Connor argumentou, correndo para o abrigo de colinas mais baixas. Apesar de bem mais velho, Neill o acompanhou com facilidade. — Eu fiz Hamish ver que você tem direito legal aos animais de Kinnoull — Neill acrescentou. — O destino de meu pai mudou isso. Minha segunda petição pela reintegração de posse da propriedade está perdida nos tribunais de Londres. Quando estive em Edimburgo no mês passado, meu advogado não tinha resposta alguma. — Na verdade, um advogado escocês tem pouca influência nos tribunais de Londres. Passe fogo em Campbell e pegue Kinnoull de volta — Neill sugeriu. — Não estamos mais na Idade Média. Instaurar processos e aguardar soluções é o que me resta fazer. — Se o rei inglês ainda pode enforcar e esquartejar rebeldes escoceses, seus súditos das Terras Altas também podem recuperar, à bala, suas casas e seus direitos. — Por enquanto, temos de nos contentar em roubar e importunar — Connor disse em tom seco. — Campbell não tem o direito de morar em Kinnoull —Neill esbravejou. — Ele tem os documentos. — Mesmo assim. Você voltará a possuir Kinnoull como seus parentes no passado. Connor sentiu um aperto no coração. Quando tinha sido preso com o pai, este lhe havia garantido que a propriedade seria sempre sua, não importava o que viesse a acontecer. Estava enganado. O filho tinha o título de visconde e alguns móveis, nada 91


mais. A família havia possuído a propriedade por dois séculos, mas Connor perdera a esperança de reavê-la. Era o último de sua linhagem, filho único do pai desapossado. A mãe havia falecido dois anos antes e ele não sentia mais afinidade pelos parentes. Clunny MacPherson, chefe do clã, não tinha se prestado a oferecer ajuda quando ele e o pai estavam na prisão ou nos dias após a execução do pai. Fora Robert MacCarran quem conseguira sua soltura. Connor sentia que devia a Duncrieff mais do que jamais poderia pagar. Não tinha certeza se ele estava morto nem se estava vivo. O legado dos MacPherson de Kinnoull morreria com ele. Seus descendentes, se viesse a tê-los, seriam apenas senhores de Glendoon, embora fossem herdeiros sangüíneos do título de visconde, porém, não mais ligado à terra. Connor suspirou. Estava cansado e ainda tinha de solucionar o problema premente da esposa. Ela era o elemento mais perturbador de sua vida no momento, pois havia conseguido deixar sua cabeça, o corpo e o coração imersos na maior agitação. Quando ele e Neill alcançaram o topo de uma encosta, pararam para observar tudo ao redor. Avistaram túnicas vermelhas e lampejos de armas dos homens a cavalo. Vinham do norte. Quando já seguiam a curva da colina, Connor notou que três homens cavalgavam com eles, mas não eram soldados. Um usava jaqueta marrom e os outros dois, roupas de montanheses. Com a mão no cabo da adaga, escondida sob a manta xadrez, e numa atitude casual, Connor aguardou. Logo atrás, Neill protegia suas costas. Com cuidado, Connor observou cada detalhe possível, como rostos, roupas, cavalos e armas. Sempre que tinha ocasião de falar com soldados, esforçava-se para decorar nomes e regimentos. Queria saber quem eram seus inimigos. — Sir Henry vem à frente. Reconheci a montaria mais depressa do que o homem — Neill avisou. Connor estudou o belo cavalo baio e o civil que o conduzia. — Sim, é Campbell. Quando o magistrado chegou mais perto, Connor observou-o bem. Sir Henry tinha um rosto difícil de ser lembrado, pois as feições eram meio indefinidas. Apesar de magro, a cintura já tinha engrossado um tanto. Ele usava sempre roupa marrom e peruca cinza, o que o tornava mais apagado ainda. Só não era possível esquecer a ganância com que o magistrado tinha se apossado de Kinnoull, Connor refletiu. — Ei, montanheses, parem! — Campbell gritou ao vê-los. Como estivesse parado havia vários minutos, Connor poderia rir, mas apenas o encarou e ficou à espera. — MacPherson, o que você e seu homem estão fazendo aqui? — Neill Murray é meu amigo e não um criado — Connor o corrigiu. — Boa-noite, 92


sir Henry. Que negócio o traz por estas bandas? —Você estaria nele conosco se tivesse ficado no regimento, MacPherson — Campbell respondeu. — Estou satisfeito em ser fazendeiro agora — Connor rebateu. — Não era de plantações que você cuidava havia pouco. O que os dois faziam na ponte? — Nós a consertávamos — Neill respondeu. — Com ordem de quem? Duncrieff é proprietário destas terras, e ele se encontra incapaz de ordenar reparos nelas nomomento. — Ouvi dizer — Connor rosnou. — Como os boiadeiros têm de conduzir o gado pelas pontes, decidimos consertá-las. — Muito louvável — sir Henry disse em tom de desdém. Pelo olhar, Connor revelou o desprezo pelo homem. Ao pensar em Sophie, imaginou se ela havia apreciado a companhia do sujeito na Kinnoull House. Teria agradecido pela hospita lidade e sorrido? Ele havia beijado sua mão e a tocara de al guma forma? Uma raiva surda o dominou e o fez cerrar os punhos. — Como as pontes ruíram? — Campbell indagou. — Por causa da chuva, penso — Neill respondeu. — Estrago da enchente? Duvido. As pontes caíram quando estes dois soldados escoltavam a srta. MacCarran de Duncrieff e sua criada pelo caminho à noite. Dois montanheses estavam com ela. Foi desastroso quando as pontes desmoronaram. De propósito, acredito. — Impossível! Quem faria uma coisa dessa?! — Neill exclamou. — É o que vou descobrir. Trabalho de bandidos montanheses. Uma das damas desapareceu — Campbell disse. — Não diga! — Neill tornou a exclamar, enquanto Connor se mantinha calado e com olhar inexpressivo. — A srta. Sophie MacCarran está desaparecida. Foi raptada por algum malandro das Terras Altas. O que sabem sobre o Fantasma Montanhês que atormenta as tropas a trabalho do general Wade? Neill deu de ombros. — Já ouvimos falar dele e de seus feitos. Desde que ele deixe meu gado em paz, não o importunarei. — E quanto a você, MacPherson? — Ele também não mexe com meu gado. E só o que me importa. — O sujeito está mais interessado em destruir as estradas em construção do que em roubar gado ou noivas. Para ser franco, acho que a moça foi raptada pelos MacCarran 93


que a acompanhavam. — Seus próprios parentes? Estavam a seu lado para protegê-la, tenho certeza — Neill disse. — Absurdo, sir Henry. O senhor não tem prova disso. Allan e Donald MacCarran são homens bons, fazendeiros e criadores de gado — Connor afirmou. — Rebeldes, isso sim, como seu chefe. Este foi obrigado a pagar pelas ofensas feitas à Coroa. — O que o senhor sabe dele? — Connor indagou. — Não muito. MacCarran foi levado preso para Perth. Ouvi contar que não passou bem por causa dos ferimentos. — E como está agora? — Connor insistiu. — Não sei, mas tenciono enviar um mensageiro em busca de notícias. Prometi à srta. MacCarran mandar um recado dela ao irmão. Vamos rezar para que a resposta não seja trágica. Porém, primeiro temos de encontrar a moça. — Se houve confusão, seu cavalo deve ter fugido com ela — Neill sugeriu. — O animal voltou sem ela. Nós a temos procurado sem parar. Creio que foi raptada e não que esteja perdida. Poderíamos usar seu conhecimento da área hoje, MacPherson. — Tenho certeza de que os soldados vermelhos já a conhecem bem. — Pode ser. Diga-me, você viu alguma coisa errada? Comportamento estranho? Brigas de montanheses? —Não testemunhei nada disso — Connor respondeu, calmo. — Vou levar isso em consideração. Qualquer um com sua história poderia ser considerado suspeito. Como sua família foi justamente punida pelo governo, aposto como você não se atre verá a correr este risco. — De fato — Connor resmungou. — Você tem se mantido de maneira admirável ao lado da lei. Satisfeito em ser o humilde senhor de uma propriedade em ruínas, não é? Ouvi dizer que também negocia com gado. — Umas poucas cabeças — Connor explicou. — Um homem inteligente toma cuidado por onde caminha e evita problemas. Como ex-oficial do regimento, não se esqueça de sua lealdade e obrigações. — Tenho boa noção delas — Connor afirmou. — Connor MacPherson foi um soldado tão dedicado que o próprio general o convidou para voltar às fileiras — Neill contou. — Estou informado de seu desempenho excelente no Black Watch e também da 94


história de sua família. Você tem sorte por contar com a boa opinião do general Wade. Pode vir a precisar dela algum dia — Campbell disse. — Talvez — Connor concordou, indiferente. Campbell juntou as rédeas. — Se eu não encontrar logo a moça, tenciono interrogar os MacCarran que a acompanhavam. A mim parece claro que eles tiveram algo a ver com o caso. — Por que fariam isso? — Neill indagou. — É possível que eles não aprovem meu casamento com a srta. MacCarran — Campbell respondeu, aprumando-se bem na sela. Connor o observou. Impressionou-se com a expressão fria do olhar do homem. Lembrava o de uma serpente capaz de se esconder na vegetação e desferir picadas venenosas. — O que espera ao interrogar os MacCarran, sir Henry? — Se eu os achar culpados, eles irão fazer companhia a seu chefe na prisão. Então, vasculharei cada casa neste vale e as queimarei se for preciso para descobrir onde a moça está escondida. Connor não permitiria que outras pessoas pagassem pelo que ele tinha feito. —Os MacCarran não são responsáveis pelo desaparecimento da prima. Eu a peguei naquela noite. — Você?! — Campbell urrou, estupefato. — Eu lhe garanto que ela está bem em minha companhia. Embora o coração disparasse, Connor manteve-se calmo. Pelo canto dos olhos, viu Neill vir para seu lado. Tornou a pôr a mão no cabo da adaga. Então, repetiu: — Ela está comigo. Nós nos casamos — acrescentou. — Raptá-la pode levá-lo à forca — Campbell rugiu. —Eles tinham um acordo prévio para fugir e casar. Queriam fazer isso assim que ela voltasse para a Escócia — Neill esclareceu. — Casados! Não acredito! — Campbell exclamou com olhar furioso. — Foi feito de acordo com a vontade do irmão dela e por um padre — Connor informou. — Seu maldito! Ela jantou comigo naquela noite e não disse nada. Você a raptou, MacPherson, e vai pagar por isso! — Pelo que ela me contou, nunca foi sua intenção casar-se com o senhor. — Além de raptá-la você é um idiota ao confessar isso — Campbell gritou, e fez um gesto para os soldados se aproximarem. 95


Estes hesitaram e trocaram olhares. — O senhor encontrou o culpado, embora levá-la não tenha sido crime, pois ela estava prometida para mim — Connor declarou. — Não, para mim! Que prova tem de que era para você? — Campbell perguntou. — Tenho a permissão de Duncrieff, por escrito, para me casar com ela — Connor respondeu e tirou da bolsa de couro a nota dobrada. — Ele é o chefe do clã agora, portanto isto anula qualquer acordo anterior seu, feito com o pai dela. — Eu lhe garanto que é ilegal uma mulher ser prometida duas vezes por escrito — sir Henry argumentou. — Não mais se ela já se encontra casada. A verdade, sir Henry, é que ela se tornou minha esposa. — Deixe ver esse papel. Só pode ser falso. Connor passou o papel para Neill, que se aproximou da montaria de Campbell. Embora o desdobrasse, não permitiu que ele o pegasse. — Vamos, me entregue isso — o magistrado ordenou, tentando agarrar o papel, mas Neill puxou a mão depressa. Voltou para perto de Connor e o entregou. — Pergunte a Duncrieff sobre isto, caso o veja — Connor sugeriu. — É o que farei — Campbell gritou. A resposta rápida deu esperanças a Connor de que Robert estivesse vivo, afinal. — Onde está a moça? — sir Henry quis saber. — Em segurança. Acomodada como a esposa de um visconde — Connor respondeu, imaginando se Sophie estaria de fato assim. — Quero falar com ela e julgar o caso por mim mesmo. Leve-a à Kinnoull House. — O senhor poderá conversar com ela em minha presença, no castelo de Duncrieff. Ela é minha esposa agora. — Por que o chefe de um clã daria a mão da irmã a um fazendeiro insignificante de uma família desonrada? Você está mentindo! — Certamente, não — Connor respondeu. — Eles fugiram e se casaram por vontade própria — Neill aparteou. — Não há nada que se possa fazer agora. O amor é uma coisa louca que não pode ser domado. — A noiva estava tão ansiosa para fugir? Ou era o noivo? — Campbell indagou com sarcasmo. — Imagino que o padre possa apresentar os registros. — O padre Henderson, do Small Glen — Connor informou. 96


—Acho bom que os detalhes estejam corretos, MacPherson, ou você irá encarar o laço da forca. — Não será a primeira vez. Mas, como o senhor disse, sou um homem inteligente e não me exponho mais a riscos. — Se tudo for verdade, MacPherson, fui enganado e o desafiarei para um duelo — Campbell disse numa voz aguda e ansiosa. — Os montanheses não têm permissão para andar armados, mas aceitarei seu desafio. Espadas, pistolas ou punhos cerrados — Connor respondeu. Num movimento brusco, Campbell virou a montaria e gritou uma ordem para os soldados o seguirem. Partiu a galope, levantando uma nuvem de poeira e sem se despedir. — Ora, onde estão as boas maneiras do homem? Ele nem o felicitou, Kinnoull — Neill comentou. Connor lhe dirigiu um olhar mal-humorado e os dois seguiram colina acima. O céu estava forrado de estrelas quando Connor, mais tarde, entrou pela porta da cozinha do castelo. Roderick dormia numa enxerga perto da lareira. Mexeu-se e abriu os olhos. — Kinnoull? Deve ser muito tarde. Tudo está bem aqui. E com você? — Também — Connor respondeu, e dirigiu-se à escada. Nada estava bem, refletiu ao subir no escuro. Imaginava por quanto tempo poderia manter Sophie ali antes de Campbell mandar homens virem buscá-los. Depois de confrontá-lo e ciente do perigo que ele representava, Connor tinha voltado a Glendoon, ansioso para ver Sophie e confirmar que ela estava em segurança. Queria muito mais. Porém, havia jurado manter distância dela até saber o que Duncrieff desejava com esse casamento. Havia algo escondido, ele pressentia, e que Sophie também ignorava, tinha certeza. No terceiro andar, parou à porta do quarto, com a mão na maçaneta, desesperado para abri-la. Contudo, hesitava. De repente, descobriu o motivo. Semanas antes, havia concordado em atender ao pedido aflito do amigo. Mas nunca tinha planejado permitir que esse casamento o afetasse, ou seja, se apaixonar. Mas a cada hora que passava ele sentia esse perigo crescer. Já sabia que o coração fora preso, embora ignorasse em que extensão. Ignorava também se poderia soltá-lo, evitando um envolvimento emocional para o qual ainda não estava preparado. Não até que voltasse a ser, merecidamente, Kinnoull. Refletiu sobre tudo isso e, então, munindo-se de uma reserva de proteção, abriu a porta. Sophie entreabriu as cortinas e olhou para fora, mas só viu a escuridão e a 97


neblina. Bocejou e achou melhor voltar para a cama. Estava dormindo quando alguma coisa a tinha acordado. Não era música fantasmagórica dessa vez, e sim uma sensação inquietante. Pensou se teria acontecido alguma coisa a Connor, pois ele ainda não voltara. Assustou-se ao ouvir a porta abrir e virou-se depressa. Mal acreditou vê-lo no momento em que pensava nele. Tolice. Connor não saía de sua mente. — Boa-noite, sr. MacPherson — cumprimentou, disfarçando o alívio. Tremendo de frio, cruzou os braços. Estava só com a camisa, um xale nos ombros e descalça. — Feche a cortina, menina. Você pode ser vista. O quarto está gelado e você, tremendo. Volte para a cama. Tocou-a no ombro. Estava bem perto, exalava um odor delicioso de pinho e de vento que lembrava vigor e liberdade. — Eu não esperava vê-lo esta noite. — Mas eu queria vê-la. Precisava — Connor murmurou apertando seu ombro e curvando-se para ela. — Por quê? — Sophie indagou com o coração disparado. — Eu... — ele murmurou enquanto a acariciava no rosto. No instante seguinte, a beijava com tal ímpeto que a surpreendeu. Ela aconchegou-se bem e o abraçou. O beijo se renovou, seguido por muitos outros. Sophie incendiava-se. De repente, Connor afastou a boca, baixou a mão de seu ombro para as costas, onde seus quadris tocavam os dele. Com apenas a camisa, Sophie pôde perceber o quanto ele a desejava. Mas Connor a soltou e deu um passo para trás. — Volte para a cama, menina. Atônita, ela piscou. Sentia-se como se emergisse da neblina, tal o poder do beijo de Connor. Porém, ao dar-se conta do que ele dissera com voz fria, recuperou-se. — Não vou permitir que você tire vantagem de mim só porque... Ofegante e com olhar furioso, calou-se. — O quê? — Só porque não consigo resistir quando você me toca. Mas isso não quer dizer que possa tirar... — Ora, você deve estar cansada. Já é tarde, e eu lhe disse para se deitar porque está tremendo de frio. Mortificada pelas palavras impulsivas, ela não respondeu. — E eu também estou cansado. Faz tempo que não tenho uma boa noite de sono 98


— Connor continuou. — Mas até que você tire seus pés daí, não tenho onde me deitar. Surpresa, Sophie sentou-se na cama e puxou os pés para cima. — Onde você vai dormir? — Aqui no chão. — Não comigo? Porque não sou Kate? — ela balbuciou. — Essa não é a razão. Depois de se despir, deitou-se e se cobriu com a manta xadrez. Sophie também se acomodou e o ouviu mexer-se e se ajeitar no chão frio e duro de pedra. — Você disse que queria anular o casamento. Respeitarei sua decisão — Connor declarou. Ela sentiu um desapontamento agudo. Qual dos dois havia decidido isso? Cobriuse bem e ficou olhando para o dossel bordado. — Boa-noite, sr. MacPherson — aventurou-se a dizer. — Boa-noite — ele respondeu com voz abafada. — Eu estava errada, desculpe. — Muito bem, mas durma, menina. Nesse momento, Sophie sentiu-se diferente como se o coração houvesse aberto no peito. Uma onda de simpatia a inundou e também algo inexplicável. Importava-se realmente com Connor, admitiu. Apesar de mal o conhecer, tinha a impressão de compreendê-lo intimamente como ninguém mais. Contudo, só sabia que ele era um malandro ladrão de gado e se escondia num castelo em ruínas. Porém, vislumbrava o lado interior do homem, e ele a fascinava. Connor valorizava tanto seu lar e a família, ambos perdidos, que conservava pertences deles. No entanto, recusava-se a considerar a ruína como lar. Os amigos o respeitavam e amavam, e quando ele empenhava a palavra a cumpria, não importava o que isso exigisse dele. Era inteligente, cortês, confiante e culto. Embora preferisse parecer rude e insensível, não era. Quando poderia ter agido de outra maneira, ele não a tinha humilhado. Havia mostrado bondade, paciência e a tomara entre os braços, deixando-a experimentar a verdadeira paixão. Não muito tempo antes, ela havia temido que isso jamais lhe acontecesse. Sophie afofou os travesseiros, e depois atirou um para fora da cama. Ouviu Connor exclamar, surpreso: — Sempre atenciosa, sra. MacPherson — ele elogiou. Sorrindo, Sophie fechou os olhos. Sentia-se segura com Connor ali perto. Porém não conseguia dormir, pois ele não parava de se mexer. Finalmente, chamou-o:

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— Connor MacPherson? — Sim? — Venha para a cama. — Isso não é uma boa idéia, se você quer anular o casamento. — Por acaso eu disse que era para você me tocar? Nós dois estamos cansados. Venha para a cama e dormiremos em paz. Silêncio. Apesar das sombras, ela o viu pôr o braço sobre os olhos. Então, argumentou: — Além do mais, ouvi a música fantasmagórica pouco tempo atrás. Ela me assustou. Não era verdade, mas deixaria que ele acreditasse se isso o tirasse do chão frio de pedra. Um momento depois, Connor levantou-se. Ela sentiu o peso dele na cama e afastou-se para lhe ceder lugar. Com cuidado, ele deitou-se de costas e cruzou os braços e pés. Virada de lado, Sophie o observou. — Você não parece estar muito confortável. — Muito melhor do que no chão. Ela aproximou-se um pouco, atraída como ferro por um ímã. Foi dominada pela excitação. — Você não está com frio? — indagou, oferecendo-lhe o cobertor. — Tenho minha manta. — O quarto está gelado — ela afirmou, aproximando-se mais dele. Sem responder, Connor abriu os longos braços num convite, e Sophie se aconchegou a ele. Com a cabeça apoiada no seu ombro, ela suspirou. Era tão bom sentir aqueles braços fortes em volta do corpo. Voltou a fechar os olhos, mas não conseguiu dormir por causa das batidas rápidas do coração. Tocou-o no peito e sentiu o dele bater tão depressa quanto o seu. — Connor. — Não fale — ele disse erguendo seu queixo e começando a beijá-la com suavidade. Mesmo meiga, a carícia a atingiu com a força de um raio. Sem interrompê-la, ele virou-se para seu lado. Massageou-lhe o ombro, o calor dos dedos penetrando pelo linho fino da camisa. Sophie adorava a sensação do contato das duas mãos. A do braço que passava sob seu corpo acariciava as costas, e a outra subiu do ombro para o rosto e embrenhou os dedos em seus cabelos. Com os lábios nos seus, ele continuava a beijá-la sem parar, fazendo-a sentir-se querida, desejada.

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Sophie passou a retribuir os beijos com mais fervor e audácia. Nessa noite não era o uísque que lhe dava coragem, pois, além de querer, havia instigado isso. Ao se aninhar entre os braços dele na outra noite, a cabeça rodopiando sob o efeito da bebida e ainda atordoada com o seqüestro e o casamento, ela mal tinha percebido o que acontecia. Apenas se lembrava de ter querido tudo ardentemente, numa ânsia profunda. Como sua lembrança fosse parcial, sentia-se roubada no corpo e no coração, pois havia perdido um momento que almejava viver e conservar na memória. Atônita, percebeu que queria isso caso ficasse ou não com Connor. Desesperada, desejava saber mais sobre ele, sobre a paixão e o que fazer amor poderia ser. Sua vontade para viver aventuras esmaecia em comparação com o que desejava nesse momento. Ao sentir-lhe a ponta da língua tocar seus lábios, ela os entreabriu. Foi uma dança louca das de ambos. Estimulada, prensou o corpo contra o dele sob as cobertas. Notou a firmeza dele sobre seu quadril. — Sophie — Connor balbuciou. — Não fale — ela pediu, e o silenciou com beijos. Mexeu-se contra ele e o ouviu gemer de prazer. Sorriu para si mesma, ciente de um poder que jamais imaginara possuir. Quando as mãos dele desceram por seus quadris e alcançaram as coxas, sua respiração acelerou. Quentes e firmes, retrocederam, passando pelo ninho sensível entre as pernas, e continuaram subindo pelo corpo. Sophie mal podia respirar na expectativa de onde ele a tocaria ainda. Um fogo esplêndido e abrangente a consumia. Os dedos dele rodearam um seio, a palma da mão excitando o mamilo com suavidade. Ela gemeu, e numa linguagem corporal o incitou a continuar. Connor a beijou com paixão. Impaciente, afastou a camisa decotada e passou os lábios ao longo do seu pescoço. Ela, então, deitou-se de costas e, sem se importar, ofereceu-se audaciosamente. A sensação de ser beijada no seio era maravilhosa, e o desejo que a consumia era poderoso demais. — Connor — balbuciou ao tocá-lo nos cabelos. Ele subiu a cabeça para beijá-la na boca, mas afastou-a. — Não era isto que eu pretendia. Não até... — Por favor, não pare — Sophie pediu, puxando suas mãos para os seios. — Eu preciso saber... — O quê? — Na primeira noite eu tinha bebido muito uísque e mal me lembro do que fizemos. No dia seguinte, me senti roubada de certa forma. Eu realmente queria saber como é isso, mas não me recordo. — Riu um pouco. — Lamento muito. Connor afastou seus cabelos da testa e sorriu. — Não precisa se desculpar. 10


— Se eu quiser isto e o convidar para fazê-lo, um não estará forçando o outro e você não será um canalha. Um malandro e seqüestrador de noiva, sim — ela acrescentou com tanta ênfase que o fez rir. — Mas não um canalha. Você sabe o que estou dizendo? — Sei — ele murmurou, e a beijou novamente. Voltou a acariciar-lhe os seios, a roçar os mamilos até que ela suspirasse e arqueasse o corpo. Então, beijou-os, provocando-lhe arrepios e novos suspiros. O prazer imenso, que Sophie colhia até da mínima carícia, deu-lhe a vontade imperiosa de retribuir. Afastou a manta xadrez de Connor e deslizou a mão pela coxa nua dele. Subiu-a pela curva da nádega, passou pelo quadril e desceu para a parte baixa da barriga, onde encontrou pêlos macios. Connor mexeu-se contra sua mão ao mesmo tempo que, com os dedos, encontrava sua fenda, cujos lábios abriu com delicadeza. Sophie não conteve uma exclamação e ele inclinou a cabeça para beijá-la na boca. Enquanto a explorava com a língua, penetrou o dedo bem devagar em seu corpo. Uma onda de calor a invadiu, as pernas se abriram por vontade própria e os quadris se ergueram. Por Deus, ela queria compartilhar essas sensações. Procurou-o e, afoita, envolveu-o com a mão. Veludo macio sobre aço. Explorou o comprimento, e Connor gemeu em seu ouvido. O som baixo, acompanhado pela respiração morna, foi como uma chama de fogo que percorreu seu corpo inteiro. — Sophie, me largue — ele murmurou, escapando de sua mão. — Deixe que eu a toque. Só você. Eu lhe devo isso. E se continuar a me tocar assim, não vou conseguir me controlar. Quietinha — acrescentou quando ela tentou falar. Delicadamente, ele penetrou em seu corpo, que incendiou-se, levando-a a mexerse no ritmo que pulsava em seu âmago. Connor continuava a beijá-la e murmurou algo que ela não conseguiu entender. Queria muito, mas então sentiu-se pairar nas alturas e gritou sob o poder do que ele lhe fazia, daquele contato íntimo e maravilhoso. Afrouxou o corpo entre os braços dele, porém as brasas lançaram novas chamas, tornando a elevá-la às alturas. Ao senti-lo estremecer, Sophie soube o quanto confiava em Connor. Só podia fazê-lo se o deixasse possuí-la. E saber que ele fazia amor dessa forma altruísta, instigando seu prazer, lhe provocou uma emoção mais profunda ainda. A generosidade de Connor era meiga e profunda. Teve certeza de que podia confiar a esse homem os segredos do corpo e até a vida. E, quem sabe, o coração e a própria alma. Ao aconchegar-se outra vez entre os braços dele, suspirou, feliz. Connor a beijou de leve e, num murmúrio, recomendou que dormisse. O pendente de cristal pareceu brilhar. Sophie lembrou-se de que a pequena pedra traria amor para quem a usasse. Mas essa pessoa, dizia a lenda, precisava ter coragem para enfrentar sacrifícios que surgiriam. O amor cria sua própria magia. As palavras vieram-lhe à mente outra vez. Sophie imaginou se a pedra já havia começado a tecer essa força inexorável em sua vida, ela 10


querendo ou não. Connor olhou para o teto abobadado e refletiu sobre o castelo. E também sobre gado, carneiros, música e qualquer coisa que pudesse desviar sua atenção da moça ao lado. Sua esposa. Ela agora estava perigosamente próxima dessa condição. Tinha tentado se controlar, mas o desejo ardente que ela havia provocado nele fora irresistível. E ele esquecera a resolução e o dilema. O sentimento insistente em seu âmago tinha se tornado poderoso demais. Dizia a si mesmo que ainda não estava pronto para isso. Deitado ao seu lado, com a pele ainda úmida pela transpiração provocada pelo prazer que ela lhe proporcionara inesperadamente, Connor suspirou. Não podia pensar nisso nem permitir uma repetição. Já havia mergulhado fundo demais. Fez um esforço para pensar sobre o que queria da vida, além dos anseios imediatos. Um bom rebanho para levar ao mercado, carneiros engordando nas colinas, uma lareira acesa num lar aconchegante, tudo isso era importante para ele. Queria ain da ser um bom senhor para os arrendatários e mantê-los em segurança. Mas, acima de tudo, ansiava por alguém a quem amar e que lhe retribuísse o amor, alguém para abraçar nas noites frias, admirar as estrelas ao seu lado, ouvir sua música, rir com ele. Nesses últimos anos, tinha se tornado muito solitário ao se desligar de todos, exceto de uns poucos amigos. Havia desiludido várias moças que se imaginavam apaixonadas pelo jovem herdeiro de Kinnoull. Ele mesmo tinha pensado amar umas duas quando sua vida era tranqüila e o futuro, seguro. Estava cansado de viver escondido numa ruína e de não ter um lar. E também de se sentir sozinho mesmo quando estava entre amigos. Nunca tivera a intenção de se tornar o herói de uma rebelião, contudo isso acontecera. Queria ser um fazendeiro educado, distinto, o visconde e cavalheiro para que fora criado. Tudo isso lhe tinha sido roubado. Mas nesse momento desejava, quase mais do que essas coisas, a moça deitada ao seu lado. Porém, não se permitiria pensar nisso até que perguntas fossem respondidas e o futuro clareasse. Levantou-se e, depois de se vestir, olhou para Sophie, que dormia tranqüilamente. Curvou-se e a beijou na testa e nas faces. Beijos roubados. Ela suspirou, mas não acordou. Connor decidiu ir embora depressa, antes de agir contra a própria consciência. Umas duas horas de leitura o acalmariam. Saiu do quarto sem fazer barulho e desceu a escada rumo à pequena biblioteca. Lá, ele guardava seus papéis, bem como os do pai, e era lá que ele tecia todos os sonhos. Isto é, os sonhos que acalentava antes de ter raptado Sophie MacCarran.

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Capítulo IX

Com os saltos dos sapatos enterrando-se na lama, Sophie virou-se no pátio do castelo. A chuva da manhã tinha passado e o sol da tarde espiava por entre as nuvens, o que fazia as pedras claras e molhadas da velha fortaleza brilharem como madrepérola. No passado distante, Glendoon tinha sido um castelo facilmente defensível. Poucos dos inimigos mais ferrenhos ousavam subir pelas encostas traiçoeiras naqueles tempos. E também nestes, Sophie pensou. E, na época atual, havia também as histórias sobre os fantasmas que o habitavam. Ela mesma tinha ouvido a música estranha, mas sentira-se mais curiosa do que amedrontada com ela. Como a chuva houvesse passado, ela podia ficar ao ar livre, sob o calor do sol, o que a deixava contente. Tinha passado uma hora arrancando mato da horta, mas quase não se notava a diferença na confusão dos canteiros. Sabia que seria preciso um grande esforço e trabalho para deixá-los em ordem. Não seria impossível recuperar a vida da horta se ela ficasse ali tempo suficiente. Olhou em volta. O bom senso lhe dizia para aproveitar qualquer chance de fuga. Seu lugar era em Duncrieff. Mesmo assim, uma parte sua desejava muitíssimo ficar com Connor MacPherson, pelo menos por um pouco. Queria viver mais noites como a última. Sorriu e sentiu o rubor nas faces. O montanhês a atraía como um ímã. Incapaz de resistir às carícias dele, não queria mais fugir e sim continuar ao seu lado. Sophie sabia que isso não fazia sentido, mas o coração rejeitava a lógica. Ela não era tola o bastante para pensar que Connor tivesse sucumbido ao seu encanto. À noite, na cama, ele parecia achá-la atraente. Nada mais natural, pois ela era uma jovem saudável e acessível, além de ser sua esposa legítima. Mas não podia se iludir, ele queria Kate e não Santa Sophie. Tão logo a irmã voltasse, Connor se apressaria em anular o casamento. Enquanto caminhava pelo pátio enlameado, Sophie suspirou e olhou para a torre do castelo. Seus ancestrais MacCarran tinham desertado Glendoon séculos antes. O castelo tinha sido o cenário de uma tragédia, uma contenda com outro clã que havia terminado com a morte do chefe dos MacCarran e de sua esposa amada. Seus fantasmas e outros, diziam, habitavam as ruínas do castelo, bem como as da velha capela. Mais tarde, os MacCarran abandonaram Glendoon e construíram o castelo de Duncrieff bem mais adiante, no vale. Ao olhar por cima da muralha, Sophie podia ver as colinas e as montanhas do outro lado do vale, onde ficava o castelo de Duncrieff. Uma saudade forte a dominou e a deixou atordoada. 10


Virou-se e procurou Roderick com o olhar. Um pouco antes o tinha visto trabalhando na parte de trás da muralha, mas não quisera perturbá-lo. Só os cães a vigiavam agora, seguindo cada passo seu pelo pátio. Eram guardas mais atentos do que o jovem Roderick. O portão desprotegido a atraía, apesar do que tinha acontecido na outra noite ao fugir. Dirigiu-se a ele, seguida pelos cachorros e enquanto ouvia marteladas dadas por Roderick. Embora a tranca fosse pesada, não foi difícil tirá-la e pôr de lado. Em seguida, soltou o trinco de ferro e estremeceu com o barulho que ele fez. Então, abriu o portãozinho encaixado no grande e olhou para fora. Não, disse a si mesma. Não. Se fugisse outra vez, só causaria problemas para Connor. Sir Henry o perseguiria se descobrisse que ela ficara escondida em Glendoon. Como Connor havia explicado, sua permanência ali oferecia mais segurança. Por enquanto. Mas, ao olhar para fora e ainda ansiosa por liberdade, Sophie descobriu flores entremeadas ao capinzal. Havia botões-de-ouro, campainhas azuis e as brancas e escuras de açafrão perto das rochas. Sem dúvida, ela podia ir pegar umas mudas de flores. Olhou por sobre o ombro e pôs um pé para fora. No instante seguinte, os cachorros espremiam-se entre suas pernas e escapavam para a campina. — Não! Voltem aqui! — Sophie gritou, aflita. Sem esperar que Roderick, que devia ter ouvido seu grito, aparecesse para ajudá-la, ela foi atrás dos cães, que corriam pelo campo, rumo à colina. Mas parou tão de repente que os saltos escorregaram no capim molhado. Um homem se aproximava do castelo, um montanhês com o saiote xadrez dos escoceses. Ele já havia subido a colina. O sol da tarde dava reflexos dourados aos cabelos castanhos dele e avivava as cores da manta xadrez. Connor MacPherson. Sophie ficou paralisada enquanto os cachorros, latindo, corriam ao encontro dele. Naturalmente ele a viu logo e onde não deveria estar, ou seja, fora do portão de Glendoon. Veio em sua direção e, como não houvesse nada a fazer, ela tentou manter uma certa dignidade. — Está nos deixando outra vez, sra. MacPherson? — Connor indagou já bem de perto. — Os cachorros fugiram pelo portão — ela explicou e, no mesmo instante, percebeu a tolice que dissera. 10


— Eles tiraram a tranca e soltaram o trinco, não foi? Tam, seu maroto — Connor acrescentou, coçando a cabeça do cão. — Eu abri o portão — Sophie admitiu depressa: — Ah, sei — ele ironizou com olhar sombrio. — Eu queria colher umas flores. É verdade. — Não diga! Onde está Roderick? — Ocupado com alguma coisa na muralha. Os cães estavam comigo. Connor arqueou as sobrancelhas. — Este bando vigiando alguém? — Quando abri o portão, eles saíram correndo. Pensando que iam fugir, fui atrás. — Eles voltariam quando quisessem. Devem ter sentido que eu me aproximava e foram me encontrar. Você nunca teve cachorros? — Quando eu era pequena, tínhamos vários em Duncrieff, mas não na França e no Palácio Muti, em Roma. No convento, a prioresa tinha um cãozinho de estimação. Uma pestinha de tão mimado. Olhou para baixo ao sentir a cabeça do velho caçador sob a mão, e a acariciou. — Vejo que o feroz Colla gosta de você — comentou Connor. — Ele não é feroz. Aliás, todos são muito amistosos. — Nesse caso, agora que sabem abrir o portão, tenho medo que eles deixem os soldados vermelhos entrar em Glendoon— ele brincou. Ao ver que o brilho tinha voltado aos olhos dele, Sophie riu. Admirou os seus cabelos castanhos, com reflexos dourados do sol da tarde. Sentiu vontade de embrenhar os dedos neles, como fizera na noite anterior. — Já que cheguei, sra. MacPherson, acho melhor mudar seus planos e voltar para o castelo comigo — Connor sugeriu. Pegou seu braço e os dois seguiram em direção à entrada de Glendoon, acompanhados pelos cães. — Como você tem esse bando de cachorros aqui? Não imaginava que um forada-lei pudesse se interessar por eles —Sophie comentou. — Eu os trouxe com os móveis e o que mais foi possível. — Então já eram seus? — Claro. Onde estão os dois rapazes? — Connor indagou. "Ele se referia a Neill e Roderick?", Sophie se perguntou. — Só vi Roderick hoje. — O irmão dele também deveria estar aqui. Talvez você ainda não o tenha conhecido. 10


A firmeza da mão e o passo rápido dele não lhe davam escolha a não ser acompanhá-lo. Em vez de se ressentir, via-se dominada pela mesma excitação provocada pelo contato. Porém, puxou o braço e passou a andar na frente. Connor e os cachorros a seguiram. Quando já entravam, Roderick veio ao encontro deles. — Você deveria vigiar o portão — Connor o repreendeu. — Desculpe, Kinnoull. Passei a manhã toda fazendo isso. À tarde, dona Sophie estava lidando na horta e achei que ela iria continuar. — Na horta?! — Connor indagou, espantado. — Pensei em tirar o mato e replantá-la — ela explicou. — Uma perda de tempo, pois nada vai crescer lá. E você, Roderick, devia estar vigiando o portão — ele repetiu, impaciente. — Eu estava, mas Fiona escapou pela muralha de trás onde as tábuas caíram. Padraig e eu fomos atrás e a trouxemos de volta. Depois, começamos a preencher a brecha na muralha com mais tábuas e cascalho. Lembrando-se de que também tinha fugido por aquela passagem, Sophie corou. — Menina esperta, conseguiu escapar outra vez — Connor comentou. — Quem é Fiona? Você tem outra prisioneira no castelo? — ela indagou. — Fiona é uma vaca. Como a minha esposa, foge sempre que pode. — Eu não a culpo por isso, mas não sabia que vacas podiam subir por lugares assim — Sophie disse ao olhar para trás dele e ver um rapaz se aproximar, puxando por uma corda uma vaca avermelhada e de pêlo desgrenhado. — Não podem mesmo. Mas, de vez em quando, elas conseguem passar por lugares estranhos — Roderick comentou. — Fiona é uma criatura esperta e com alma de aventureira. Como você — Connor murmurou. Ao ver o brilho nos olhos dele, Sophie riu, embora enrubescesse. — Ela aprendeu a subir em partes da muralha lá atrás, onde as pedras sempre desmoronam. Nós já consertamos várias vezes, até usamos pedras maiores e argamassa, mas a cabra derruba tudo. — Você poderia ter poupado o trabalho de abrir o portão e ter saído com Fiona pela muralha lá atrás — Connor disse, sorrindo e acompanhado por uma gargalhada de Roderick. Sophie dirigiu-lhes um olhar fulminante. — Roderick, onde está sua mãe? — Connor indagou. — Cuidando de umas coisas lá em casa. Logo virá para cá. O outro rapaz chegou 10


mais perto, e a vaca enfiou a cabeça por entre as pessoas para focinhar o braço de Connor. Surpresa e incapaz de ver o irmão de Roderick atrás do corpo enorme da vaca, Sophie recuou uns passos. — Ei, mocinha, calma — Connor disse, passando a mão na cabeça de Fiona, que, em retribuição, lambeu-lhe o braço. Sophie não conteve uma exclamação de espanto. — A moça ama seu senhor e está com ciúme porque ele se casou — Roderick disse, rindo. Connor passou a mão pelas ancas do animal. — Ela ainda está magra por causa do inverno. Espero que engorde mais este ano. Fiona, esta é a sra. MacPherson. Da próxima vez que você fugir, acho que ela irá junto. — Pode tocá-la. Ela adora agrados — Roderick afirmou. Timidamente, Sophie estendeu a mão e enfiou os dedos en tre os pêlos emaranhados perto das orelhas de Fiona. Ao mesmo tempo e meio encabulada, murmurou umas palavras agradáveis. O irmão de Roderick, que ainda segurava a corda da vaca, riu. — Está vendo, não é tão ruim. Sophie o observou por cima do animal e arregalou os olhos. Padraig tinha cabelos pretos, faces coradas, olhos azuis e um sorriso encantador. — Você é gêmeo de Roderick! — exclamou. — Não, ele é meu gêmeo. Nasci primeiro. Padraig Murray, senhora. — Sou Sophie MacCarran — ela disse, e olhou de esguelha para Connor. Enquanto ele conversava com os rapazes sobre os reparos na muralha, ela prestava atenção. Parecia fazer parte da camaradagem deles e, quando lhe contaram a história da primeira fuga de Fiona, ela riu. Nesse momento, foi dominada pela sen sação de ser realmente a esposa do senhor do castelo e não a noiva roubada. Ao ouvir Connor rir com facilidade, teve unia visão do homem verdadeiro e não de um fora-da-lei. Curioso se sentir mais atraída por ele nesse papel de simples fazendeiro e amigo. — Fiona é uma vaca peluda das Terras Altas. Robusta e firme, raça reproduzida na Escócia durante séculos — Padraig contou. — Meu pai tinha vacas como esta. Aliás, o rebanho dele era bem grande, eu me lembro — Sophie comentou. Depois de lhe dirigirem sorrisos idênticos, os gêmeos Murray foram para o outro lado do pátio. — O gado de Duncrieff é muito bom, de ótima raça. Em certa época, seu pai tinha 10


um touro malhado excelente, eu me lembro. Fiona é neta dele — Connor contou. — Você conhecia o rebanho de meu pai? — Claro. Eu o admirei muitas vezes. — Eu costumava sentar numa colina ao lado de Duncrieff para ver o gado pastar pelas encostas e vales. Nos dias quentes, ele até entrava em nosso lago. Havia animais de várias cores. Vermelhos como Fiona, dourados, pretos, malhados de marrom e cinzentos. Eu nunca chegava perto deles. Meu pai não achava apropriado. Queria que as filhas fossem damas educadas e não ordenhadoras de vacas. Ele queria que nós fizéssemos bons casamentos. Tarde demais, Sophie deu-se conta da impropriedade dessas palavras. Temia imaginar o que Connor pensava. — E você, o que sonhava ser? Ordenhadora, dama educada ou freira? — ele perguntou com naturalidade e sem parecer ofendido. — Na verdade, eu queria ser jardineira. Minha mãe contratou um da França para fazer o nosso jardim quando eu era menina. Ele criou maravilhas. Eu adorava ver o trabalho de seus ajudantes e ganhei um canto para fazer o meu. Ficou tão bonito que o jardineiro pôs uma fonte no centro dele. Mas meu pai não gostava de me ver mexendo na terra. Cuidar de rosas era próprio de uma dama, mas o resto foi proibido. — Parece que você gosta dessa atividade. Eu admiro sua intenção de lidar na horta, mas considero que aqui é um trabalho inútil, menina. Ela deu de ombros e tocou o pingente de cristal. — Gosto de mexer na terra e tenho mesmo um certo dom para cultivar plantas. Quando meu pai estava no exílio, mandou os filhos para escolas no continente. Como você sabe, fui estudar em um convento. Depois que ele morreu, minha mãe tornou a se casar, Robert e Kate voltaram para morar com parentes em Duncrieff. Eu continuei na escola do convento para terminar minha educação. — Você é dada à leitura e aos estudos? Gosta de latim, grego, poesia e problemas matemáticos? História e filosofia? Sophie riu. — Nem um pouco, embora aprecie poesia e romances. Eu trabalhava nos jardins da escola ao lado de uma freira idosa que passou a vida cultivando flores. Apesar de que meu pai não queria, acabei onde desejava, num paraíso florido. Connor inclinou a cabeça. — Ah, você mencionou ter trazido uns bulbos de tulipa. — Fez uma pausa. — Eu soube que seu pai faleceu no exílio, na França. Lamentei muito. — Ele foi forçado a sair da Escócia por ser simpatizante da rebelião, e morreu antes de poder voltar. Ele se recusou a se desarmar e a recolher as armas dos arrendatários. 10


— Eu sei — Connor murmurou. Surpresa, ela o fitou. — Você o conhecia? — Não pessoalmente, mas meu pai, sim. Como o seu, ele também se negou a se desarmar. E foi além disso. Escondeu as armas dos rebeldes. — Seu pai também foi para o exílio? — Não. Foi executado três anos atrás. Por traição. Embora de costas para ela, Connor sentia seu olhar como um toque de mão. Sua meiguice também estava ali, envolvendo-o. Quando ouviu seus passos, não se virou. — Connor MacPherson, sinto muitíssimo. Ele apenas assentiu com um gesto de cabeça. — Vá lá para dentro. Vai chover logo. Está vendo aquelas nuvens? — perguntou, apontando para o céu. A luz do sol dourava as colinas, e nuvens derramavam um véu de chuva nas montanhas distantes. — Aquele aguaceiro parece bem longe — Sophie comentou. Connor parou, virouse e Fiona chocou-se contra ele. A vaca esticou a língua para fora e lambeu a mão de Sophie. Ela deu um pulinho, mas agradou o animal enquanto, com ar pensativo, estudava Connor. O pequeno pingente, pendurado pela corrente de prata em volta de seu pescoço, brilhava como uma estrela. Magia de fada, Connor pensou. Desejava que fosse real e restaurasse o que todos tinham perdido com a maldita rebelião. Mas essas coisas não existiam. — Kinnoull. Roderick o chamou de Kinnoull — Sophie disse de repente. — Meu irmão também escreveu esse nome na autorização e, depois, rabiscou. Você disse que às vezes o chamam assim, e seus amigos o tratam por esse nome. Por quê? Sua família era... Oh! Os MacPherson de Kinnoull! Connor a fitou. Mais cedo ou mais tarde, Sophie ficaria sabendo. — Meu pai era lorde Kinnoull e dono da propriedade do outro lado do vale Carran. Tudo foi confiscado pela Coroa após a condenação dele por traição. — Lamento muito. Eu não sabia. Ele deu de ombros. — Não há necessidade. — Lamento suas perdas. Então você cresceu perto deste vale? Quando eu era menina, conheci lorde e lady Kinnoull, um casal bonito e bondoso com uma menina tímida. Mas não me lembro de você. E não o teria esquecido. — Nós nunca nos encontramos. Eu também não teria me esquecido de você — ele disse com ternura, admirando-a. 11


No sol da tarde, ela brilhava com a suavidade da luz de uma vela. — Agora, depois de pensar um pouco, me lembrei muito bem de seus pais. Ele era alto, com uma voz profunda, forte e bondoso. Uma vez ele foi visitar meu pai, e tirou o gatinho de minha irmã que tinha subido numa árvore do jardim. — Meu pai teria feito algo assim. Estava sempre disposto a ajudar alguém — Connor disse com um leve sorriso. — Você se parece com sua mãe. Tem os mesmos cabelos escuros e os olhos verdes dela. Posso vê-la neles e em sua boca também. Comovido com sua maneira delicada de mencionar seus pais, ele desviou o olhar. Não lhe restava mais quase nenhum parente depois das devastações de uma rebelião após outra nas Terras Altas. Nos dois últimos anos ele se sentia muito solitá rio. Agora, na companhia de Sophie, tinha a impressão de que as nuvens começavam a se afastar. Ainda com a mesma ternura, disse: — Minha mãe teria gostado de você. Ela faleceu de tristeza quando meu pai foi executado. Sua constituição já não era forte e ela decaiu rapidamente. Morreu um mês depois dele. — Connor — ela murmurou. Um dar de ombros foi a maneira de ele mostrar que, embora apreciasse sua simpatia, tinha se recuperado o quanto fora possível. . _ Eu era herdeiro de meu pai, mas perdi meus direitos quando a propriedade foi confiscada. Sophie franziu a testa. — Sir Henry Campbell não é o dono da Kinnoull House agora? — Não, ele a aluga. A propriedade pertence à Coroa. Mas ele não perdeu tempo em se apossar de tudo. _ Então os móveis, a espineta, os livros... — ela começou. _ Os tapetes, as louças, os utensílios da cozinha, os cachorros - ele continuou - vieram da Kinnoull House. Eu trouxe de lá o que foi possível antes de sir Henry se apossar da casa quase dois anos atrás. Glendoon não tinha espaço adequado para mais nada e também o transporte de peças pesadas pelas escarpas íngremes seria impossível. Mas o que está aqui é meu. — Fiona também, calculo. _ Moça inteligente ao deduzir isso — Connor elogiou com um olhar de admiração para Sophie. - Fiona era o orgulho de meu pai, uma novilha de um ano, vermelha, das Terras Altas, de uma linha impecável de reprodução e do rebanho de seu pai. O meu esperava que ela desse origem a novas gerações do melhor gado de Perthshire. - Sorriu com amargura. - Eu a roubei sob o nariz de Campbell enquanto ele se sentava em minha 11


casa e bebia o vinho da minha adega. Ao levar Fiona para o estábulo nos fundos do pátio, Connor ficou contente por Sophie o acompanhar, apesar das poças de água e do barro em seus sapatos e vestido já em péssimo estado. Ela parecia não se importar. Aliás, tolerava situações desconfortáveis e notícias chocantes sem reclamar. — Sir Henry tomou Kinnoull de seu pai? — ela perguntou. — Apenas como magistrado local, obedecendo às ordens da Coroa. Eu não me surpreenderia se ele tivesse exercido influência no caso. A desapropriação foi um ato da Coroa. — Seu pai também perdeu o título de lorde Kinnoull? — Não. Ele é hereditário e está em nossa família há duzentos anos. Meu pai era visconde e eu continuo sendo, bem como lorde Kinnoull, não importam minhas posses. E isso a faz, minha menina, lady Kinnoull — ele acrescentou com uma curvatura. Sophie balançou a cabeça e murmurou: — Lorde Kinnoull. Ela possuía a postura de uma rainha, Connor pensou, e a dignidade de um anjo. Podia estar na lama ao lado dele e de uma vaca sem que isso a afetasse. — Eu e você somos lorde e lady de muito pouca coisa. — Ainda existe algo, Kinnoull. O castelo Glendoon tem uma história digna de orgulho. Pedras desmoronadas aqui e ali podem ser recolocadas, o pátio e as construções externas podem ser reformados, os jardins, tratados e replantados. Alguns aposentos do castelo estão cheios de preciosidades queridas. Você tem arrendatários leais, gado saudável e um belo título. E também uma esposa. — Tenho? — ele murmurou. — Mas é preciso esperar que você decida qual das duas vai querer. Connor lhe dirigiu um olhar firme. Sabia qual seria a escolhida. O coração disparou ao reconhecer a verdade. — Apesar de tudo, Kinnoull, você tem um lar aqui — ela insistiu. — Você possui muito jeito para fazer questões sombrias brilharem. — Cuidado para não apagar a verdade. — Qual é a verdade? — Não tenho um lar. Você não precisa citar as possibilidades que este lugar oferece apenas para me animar. Ao vê-lo se afastar, ela apressou-se em acompanhá-lo. — Desculpe. Apenas tentei apresentar um lado positivo por causa de seu 11


passado sombrio. Se ladrões montanheses não tivessem me raptado, eu estaria com uma disposição ainda melhor. Glendoon, de fato, é um lugar maravilhoso. Gosto de ruínas. São pitorescas e cheias de histórias. E de fantasmas —acrescentou depressa. Connor teve uma vontade súbita de rir, mas reprimiu. Raramente se via tentado a inclinar a cabeça para trás e soltar um riso bem-humorado. Olhou para o céu e viu uma mistura de sol e garoa. — Sol e chuva, lady Kinnoull. Uma reviravolta do tempo. Vá lá para dentro, pois vai cair um aguaceiro e estragará seu vestido. — Já está mais do que estragado. E a chuva talvez escureça o tecido. Esta tonalidade de vermelho é muita clara para mim. Ela me deixa da mesma cor da sua vaca. Dessa vez, Connor riu. E queria beijá-la. A vontade era tão forte que ele quase empurrou Fiona para longe. Desejava estreitar Sophie entre os braços, com suas maneiras excêntricas e impulsivas. Queria ficar com ela ali na lama, sob o sol e a chuva, para cobri-la de beijos. Imaginou afastar o vestido de seus ombros e fazer com ela tudo que desejava. Mas apenas sorriu e disse: — Essa cor lhe cai muito bem, assim como em Fiona. As duas só têm em comum essa cobertura flamejante e a determinação de ganhar a liberdade. — Eu não estava tentando fugir pelo portão, embora devesse. Talvez ainda faça isso — ela avisou. Connor tornou a sorrir. — Reflexos de sol no cetim delicado. E agora você é viscondessa. Seu pai apreciaria isso. — Também caso se tratasse de Kate. — Bem, existe isso. Connor viu a expressão de seus olhos tornar-se tempestuosa, como se uma nuvem os mudasse de azul para cinzento. — Vou entrar, Kinnoull. Está começando a chover forte. Sophie ergueu um pouco a saia e correu para a porta da cozinha. Quando desapareceu nas sombras, Connor teve a impressão de que a luz de um lampião se apagava. Um pouco mais tarde, Connor deixou Glendoon sem mal lhe dirigir a palavra. Sophie jantou com Mary, Roderick e Padraig. Embora indagasse sobre Connor e seu passado recente, eles não pareciam dispostos a mencionar detalhes sobre a mudança dele para Glendoon. Porém, não se cansaram de elogiá-lo.. — Ele é um bom senhor, preocupado com seus arrendatários — Mary afirmou. — Só restamos nós nas terras de Glendoon. Mas os da propriedade de Kinnoull ainda o consideram seu senhor e lhe pagam o aluguel todos os anos. — E não para sir Henry? — Sophie perguntou. — Também. Desembolsam dois aluguéis, o que contraria muito Kinnoull, que 11


sabe quanto isso lhes custa. Mas eles o reverenciam. — Kinnoull é homem de princípios rígidos — Roderick aparteou. — Mesmo nestes tempos de tanta injustiça, ele defende a liberdade e, para garanti-la, apóia a rebelião. Não receia agir de acordo com sua maneira de pensar. E honra a palavra empenhada. — Eu sei. O que meu irmão o fez prometer foi algo complicado e trabalhoso, mas ele não se esquivou — Sophie afirmou. — E sem reclamar. Kinnoull é reservado e não fala sobre o que pensa. Também jamais faz o que não acha certo — Padraig disse, olhando para Sophie. Os MacPherson, ela descobriu a seguir, vinham de uma linhagem mista de nobres e malandros. Suspeitava de quem Connor descendia. Segundo os Murray, ele não hesitava em roubar algumas cabeças de gado, se houvesse necessidade, e em proteger rebanhos em outros pastos contra bandidos. Como bom montanhês, dedicava uma devoção ferrenha à causa Stuart e arriscava-se em sua defesa. A exemplo de muitos escoceses, tinha a convicção de que James Stuart era o único a ter direito ao trono da Escócia, e o filho Charles, depois dele. Se um gorducho príncipe alemão ocupava o trono inglês nessa época, Mary e Roderick explicaram, isso não deveria afetar a Escócia e seu povo. Contudo, o fazia de maneira profunda e irrevogável. Connor MacPherson era um daqueles que tiveram coragem de protestar. E a família, que compartilhava sua lealdade, fora penalizada. Sophie não conseguiu descobrir o quanto o próprio Connor havia suportado. — Ele guarda a maioria das experiências amargas em segredo. Não gosta de falar sobre elas e talvez nunca fale pelo resto da vida. E nós respeitamos isso — Mary contou. Depois do jantar, Padraig acompanhou a mãe até sua casa e Roderick prometeu vigiar o gado durante a noite. Cansada, Sophie retirou-se para o quarto. Depois de dormir um pouco, acordou e viu que continuava sozinha. Connor ainda não tinha voltado. Deitada no escuro, cochilava, acordava, imaginava se ele estaria em segurança ou ferido. Teria ele caído nas mãos dos homens que a procuravam? Encolhida sob os cobertores, deu-se conta de que se sentia solitária sem Connor ali. Achava falta do vigor, da perspicácia, da bondade e até da rispidez dele. Surpresa, admitiu que espe rava ansiosamente o seu retorno. Ridículo, disse a si mesma. Tolice e fantasia, pois estaria bem melhor sem ele. Algum tempo depois, percebeu que não tinha ouvido a música estranha e linda. Quase sentiu falta dela também. Quase, pois não gostava de estar sozinha no castelo antigo com um fantasma que tocava melodias pungentes que a comoviam.

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Capítulo X

Curvada, Sophie arrancou uma touceira de mato. O caminho que ia para a porta da cozinha estava ladeado por ramagens velhas e ervas daninhas. Afastou ramos de hera e encontrou ainda restos de alecrim, tomilho e hortelã. Connor tinha dito que nada vingaria em Glendoon, porém, para onde quer que olhasse, ela via plantas. Até no pátio. Não eram viçosas por falta de cuidado. Sophie refletiu por um momento e tomou uma decisão. Tirou a corrente de prata com o pingente do pescoço. Segurando-a com a mão direita, de jeito que o cristal ficasse bem equilibrado, balançou-a sobre as mudas de cravo-de-defunto e de alfazema plantadas por Mary e que já estavam murchas. O pingente balançou de um lado para o outro e, depois, em círculo. Com os olhos fechados, Sophie estendeu a mão esquerda acima de plantas raquíticas e de pontos sem vegetação em que a terra era mais árida. Sem abrir os olhos, concentrou-se. O uso desse dom para revitalizar plantas ela conhecia bem. Às vezes sentia um poder que não conseguiria explicar. Durante os anos em que havia trabalhado com plantas, aprendera a apelar para essa força quando queria. Enquanto crescia, achava que o pingente era apenas o símbolo da fada ancestral de quem a família se orgulhava tanto. Por esse motivo, gostava de usá-lo. Mas, com o passar do tempo, começou a notar que o cristal, às vezes, brilhava de maneira nem um pouco normal e, também, esquentava ou esfriava como se tivesse uma força em seu interior. Um dia, Sophie descobriu que, ao balançá-lo sobre um canteiro de tulipas, o pingente aumentava seu dom para cuidar de plantas. No convento, ela fazia isso às escondidas e com sentimento de culpa, certa de que as freiras não entenderiam. Porém, um dia, enquanto balançava o pingente sobre as plantas, levantou o olhar e deparou-se com a idosa irmã Berthe observando-a. — Muito bem! — a freira exclamou. — Você está rezando sobre as plantas. Eu também faço isso, pois as ajuda a crescer como num passe de mágica. Afinal, é apenas amor, o sentimento de que todos os seres vivos precisam — acrescentou, piscando. Sophie soltou a respiração ao terminar seu ritual e pôs a corrente com o cristal de volta ao pescoço. Talvez um pouco de amor e magia ajudassem os canteiros tão abandonados de Glendoon. Ergueu-se e limpou as mãos. Mas tudo no castelo estava em condições tristes de negligência, refletiu. Como Connor insistia, não era um lar e sim abrigo para ladrões, embora alguns aposentos estivessem cheios de heranças da família dele. Sophie ouviu um grito distante e olhou para as colinas. Avistou Connor e outro montanhês, Neill ou Andrew, vindo para Glendoon. Os cães corriam na frente, 11


perseguindo um rebanho de carneiros. Ela não tinha visto Connor de manhã e sentiu um arrepio de excitação ao vê-lo se aproximar no meio do dia. Ele não a tinha procurado na véspera à noite, o que a fizera acordar ansiosa por encontrá-lo. Lembrava-se de como ele havia explorado seu corpo e despertado a paixão na outra noite. Tornou a olhar para as colinas e viu que Connor e o companheiro já haviam alcançado o topo. Ela o reconheceria em qualquer lugar, deu-se conta, mesmo a distância. A postura altiva, o andar cadenciado, a manta xadrez sobre os ombros. Já distinguia a maneira de ele virar a cabeça, o movimento dos cabelos castanhos com reflexos dourados do sol da tarde e o hábito de ele pôr o punho cerrado no quadril. Connor parou, observou a área e, então, olhou para Glendoon. Mesmo de onde estava, Sophie sentiu seu olhar como se ele a enxergasse. Um arrepio de antecipação, prazer e lembrança de êxtase percorreu-lhe a espinha. Ela tocou a aba do chapéu de palha que usava, encontrado na arca da mãe de Connor. Nessa manhã, havia cedido e tomado emprestado, além do chapéu, um vestido simples de algodão azul, com flores estampadas. Era um pouco largo e parecia mais um casaco, pois abotoava apenas na cintura. A blusa e a saia abertas deixavam à vista a camisa e a anágua. Também tinha achado roupas de baixo, um par de sapatos confortáveis, um pouco grandes para ela, e um par de meias de lã branca. Usar peças limpas era um alívio depois de tantos dias com o vestido de cetim sujo e rasgado. Na arca, havia encontrado ainda luvas de couro e uma caixa de costura. Embora hesitasse usar essas coisas, sabia que Connor não se importaria. Ao pegar os pertences da mãe dele sentira paz e tranqüilidade como se o espírito da dona pairasse neles. — Senhora! Sophie virou-se depressa. — Roderick, eu pensei que você tivesse acompanhado seu senhor. — De jeito nenhum! Não conduzo animais — ele declarou em tom de desdém. — Estou aqui para vigiá-la — disse com um largo sorriso que ela retribuiu. — Ótimo. Tenho um trabalho para você hoje. — Trabalho?! — o rapaz indagou, espantado. — Isso mesmo. Você pode arranjar uma pá e um machado? — Para quê? — ele perguntou, desconfiado. — Para jardinagem. Precisamos também de um ancinho. Já tirei um pouco de mato, mas é preciso um trabalho mais pesado. — Senhora, cuidar da horta é serviço de mulher. — Engano seu. Preciso de braços e costas fortes para arrancar o mato e podar as plantas que merecem cuidados. Penso que podemos estimular um crescimento saudável das hortaliças durante o verão. Você prefere ter de me afastar do portão o tempo todo ou 11


me ver ocupada? — Muito ocupada, pois a senhora já tentou fugir duas vezes — ele respondeu de má vontade. — Está bem. — Sophie sorriu e, já seguindo para o outro lado do pátio, informou: — Também quero examinar o jardim grande que vi da janela da biblioteca. — O velho?! Não me peça para cavoucá-lo, por favor. Eu levaria uma eternidade. A senhora vai precisar de vários homens para executar esse serviço. — Não é no jardim antigo que quero trabalhar hoje, só na horta. Eu o ajudarei se você tiver um ancinho extra para mim. — Não vou recusar sua oferta. O que quer que eu faça lá, senhora? — O mato rasteiro precisa ser arrancado e a vegetação mais alta, podada, especialmente as ramas de morango, que se enrolam em tudo. 0 caminho para a cozinha tem de ser alargado. — Acho que posso fazer isso em dois dias. Vou pedir a Padraig para me ajudar quando voltar com o gado. Meu irmão gosta desse tipo de serviço. Quando já haviam atravessado boa parte do pátio, cruzaram com uma fila de galinhas. Colla latiu e correu para elas, deixando-as em pânico. Enérgico, Roderick o chamou de volta. — Os cachorros não gostam quando essas bobas saem do galinheiro e andam por aí. Vou buscar a pá, o machado e os ancinhos — ele disse, indo a uma das construções em ruínas. Sophie continuou rumo ao jardim antigo. Pouco depois, passava pelo portãozinho caído e observou o lugar. O que devia ter sido um jardim lindo havia se tornado agreste. Plantas de variedades diferentes se entrelaçavam. Pedras e madeira misturavam-se com trepadeiras. Capim e hera espalhavam-se por toda parte. Bem atrás, ela reconheceu macieiras, cerejeiras, pereiras e umas poucas árvores ornamentais. Este seria o lugar certo para experimentar seu toque de fada, Sophie pensou, tocando o pingente de cristal. E, sem dúvida, para desafiar sua habilidade nata para lidar com plantas. Pela curva ensolarada da muralha, espalhava-se a rosa trepadeira, desfolhada, mas cheia de espinhos. — As rosas aqui deviam ter sido lindas um dia. Sophie virou-se depressa. Connor estava ali, as botas pesadas sobre a hera e uma touceirinha de flores roxas. — Você está pisando nas violetas — ela protestou. — Oh! — Sorrindo, ele afastou os pés. — Esse é um chapéu bonito, lady Kinnoull. Sophie enrubesceu e tocou a aba do chapéu. — Espero que você não se importe. Peguei emprestado, entre outras coisas, da arca de sua mãe. Ela era a verdadeira lady Kinnoull. — Combina com você — ele disse, ainda sorrindo. Ela também sorriu enquanto uma sensação, como uma chama tênue, surgia em 11


seu coração. — Vi Roderick trabalhando na horta como se os cães do inferno o vigiassem. Ele disse que precisava arrancar a hera velha e podar as ramas do morango. Pelo que vejo, você assumiu o comando em lugar de seu guarda. Sophie riu. — A horta vai dar muito trabalho, e eu fico contente por ter um vigia tão disposto a ajudar. Connor correu o olhar em volta. — Sei que deve entristecê-la ver como este jardim ficou abandonado durante anos, na verdade, séculos. Mas não se pode fazer muito para mudar as coisas aqui. Plantas não florescem em Glendoon como em outros lugares. A terra é fraca. — Discordo. As plantas podem crescer em qualquer lugar se forem cuidadas. Aliás, há muitas aqui e umas sufocam as outras. Sei que a terra é fraca, mas pode ser fertilizada. Mary disse que semeou ervilha na horta. Pensei que, se eu limpar uma área lá, também posso fazer isso. — Os passarinhos comeram quase todas as sementes de Mary e o resto não brotou. — Ela me ofereceu sementes e mudinhas. Eu gostaria de plantar também alfazema e umas flores. Mary faria isso se tivesse tempo de cuidar de mais uma horta além da sua. Isso sem falar na família. Mas eu tenho tempo. Por enquanto. — E o conhecimento também. É uma distração bem melhor do que descobrir o caminho para fora daqui. Faça o que quiser na horta e no jardim. Afinal, o castelo Glendoon pertence aos MacCarran. — Com algum esforço, ele poderia ser um lugar lindo. Sophie começou a andar pela confusão de plantas e Connor, segurando seu cotovelo, a acompanhou. — A transformação seria um milagre — ele comentou. — Nem tanto. Plantas precisam de certas coisas, claro, mas vicejam melhor com um pouco de amor e estímulo. — Faça o que desejar. Porém, não se desaponte depois. Ela quase riu. — Você poderá se surpreender, Kinnoull. Eu me sinto insegura em muitas coisas, mas nunca em relação à jardinagem. — Insegura?! Sua firmeza prova o contrário. E você sabe usá-la muito bem — ele murmurou. — Bem, sou um tanto firme, imagino, quando preciso. Seu coração pulou no peito, pois Connor inclinava-se para mais perto como se fosse beijá-la. Mas endireitou o corpo e continuou a andar a seu lado. Seu desejo ardente prolongou-se enquanto seguia em frente. Disse a si mesma que Connor não passava de um salteador. Contudo, já 11


conhecia a verdade e quanto mais descobria sobre ele, mais ansiava saber. — Bem, se você conseguir convencer este jardim a florescer, eu mesmo plantarei suas tulipas — Connor prometeu. — Isso eu gostaria de ver — ela disse, rindo. — Talvez veja. Depende de você. — Muito tempo atrás, este jardim foi bem planejado e cuidado com dedicação. Existe um paraíso sob este caos para ser resgatado. Para isso, basta um pouco de atenção. Com o braço em seus ombros, Connor a virou para ele. —Sophie, isso não é uma distração passageira, nem trabalho de uns poucos dias. Levaria a dedicação de uma vida inteira para transformar o jardim como você o visualiza. Uma vida inteira, ela refletiu. Gostaria disso. — Eu sempre quis meu próprio jardim para trabalhar nele. Ele olhou para o céu, e nuvens encobriam o sol. Manteve o braço em seus ombros, um gesto carinhoso e excitante. — Se você começar a trabalhar já no jardim, daqui a instantes estará molhada e coberta de lama, pois não demora a chover. — Será bom para as plantas — ela afirmou, olhando para o céu. O movimento de sua cabeça a trouxe para perto dele. Connor afastou-lhe os cabelos da testa e acariciou seu rosto. — Você se preocupa mais com os outros, até com as plantas, do que com seu bem-estar. Admirável! — Não é muito prejudicial ser educada por freiras. — Estou aprendendo a gostar delas — Connor murmurou. Curvou a cabeça, tocou-lhe a boca com os lábios e embrenhou os dedos em seus cabelos. Sua reação foi de entrega total. O coração alçou-se num vôo tão louco que as pernas fraquejaram, forçando-a a amparar-se nos braços dele para não cair. Tudo desapareceu, exceto a pressão ardente da boca dele na sua, a firmeza do corpo viril de encontro ao seu e o poder do beijo delicioso. Desejo e uma grande ternura a dominaram. Quando Connor ergueu a cabeça, seu coração batia como louco e a respiração estava ofegante. Cambaleou um pouco e ergueu o olhar. — Obrigado — ele murmurou. — Pelo quê? "Por apaixonar-se por um malandro montanhês que a roubara de tudo que lhe era 11


familiar?", ela se perguntou, fitando-o. — Por encontrar algo valioso nesta ruína. — Existe alguma coisa para ser resgatada aqui. Quero fazer isso. Por favor, me dê permissão — ela pediu, ainda meio sem fôlego. Connor recomeçou a andar, levando-a pela mão, enquanto contava: — Há uma antiga maldição sobre este lugar. Segundo ela, nada florescerá aqui até que a magia retorne. — Magia?! — Penso que foi a maneira de seus ancestrais dizerem que Glendoon não valia nada por causa das pedras, dos fantasmas e do caminho íngreme para se chegar até aqui. Sophie olhou para a confusão de plantas e, depois, para o velho castelo arruinado. — Glendoon precisa de amor e de muito trabalho para ser restaurado, mas é imprescindível que volte a ser um lar. Então a magia retornará. — Essa perspectiva é muito remota. — Qualquer lugar pode ser um lar. Os corações dentro dele é que lhe dão essa condição, e não o estado das paredes, as colinas íngremes ou a terra pouco fértil — ela afirmou. Connor a observou com expressão pensativa. — Sophie, você é surpreendente. Agora, é melhor ir cuidar da horta. Seu fiel vassalo é bem dedicado — ele acrescentou, apontando para onde Roderick trabalhava ao lado de um monte de mato arrancado e de podas de plantas. Sophie passou a andar depressa e à frente de Connor para atravessar o pátio. Quando chegou perto da horta, Roderick endireitou o corpo curvado. Tinha o rosto banhado de suor. — Pronto, senhora. Já arrumei os lados da passagem entre os canteiros e arranquei toda a hera. — Toda? E os pés de morango? — ela indagou, percebendo que ele não tinha entendido bem em suas instruções. — Eles também. Vou terminar tudo hoje ou amanhã cedo. Assim, a senhora já poderá semear o que quiser. — Muito obrigada, Roderick. Também quero que você abra um buraco no fim da horta e encha com esterco. De cavalo é melhor, mas de vaca e de carneiro também servem. — O quê?! Esterco, senhora? Sou seu guarda e não... — Obedeça, rapaz. Faz parte de suas obrigações aqui. Lady Kinnoull sabe o que 12


quer e do que precisa — Connor disse ao parar atrás de Sophie. — Sei, sim, acho — ela murmurou, fitando-o. — Logo teremos canteiros de tulipas no velho jardim se ela fizer o que deseja.— Connor sorriu para ela antes de se dirigir ao rapaz: — Ah, Roderick, as colinas estão cheias de esterco de carneiro, caso você vá procurar. Piscou para Sophie e afastou-se. Roderick resmungou qualquer coisa enquanto Sophie disfarçava um sorriso e pegava um ancinho para trabalhar também. — Nunca mais haverá paz no vale Carran— Connor comentou. Estava deitado numa colina, coberta por urzes, observando a campina por onde o rio serpenteava. — Um dia, o retorno de lorde Kinnoull para a posição que lhe pertence por direito trará felicidade de volta para cá— Neill afirmou. — Melhor trazer de volta o chefe dos MacCarran para o castelo de Duncrieff e seu povo do que se preocupar com um senhor sem importância. Porém, tarde demais para isso. Neill e Andrew também estavam deitados por perto, os corpos encobertos por urzes amarronzadas pelo inverno. Mas brotos verdes já apareciam, as esperanças renasciam. Observou a campina onde um grupo de soldados trabalhava. Alguns estavam bem no sopé da colina na qual os três se escondiam. Colocavam cascalho numa parte quase terminada da estrada. Meia milha adiante, outros usavam pás e picaretas para abrir um novo trecho. O barulho ecoava pelas colinas. — Estou achando que essas estradas podem ser uma boa coisa — Andrews disse. — Por quê? — Connor indagou. — São largas, com muitos trechos retos e bem planas. Vamos poder conduzir boiadas e rebanhos de carneiros maiores por elas. — Os cascos deles sofreriam com o cascalho, o que não acontece nas trilhas de terra — Neill argumentou. — Mas gastaríamos menos tempo para levá-los ao mercado. E eles não perderiam peso com a caminhada de milhas extras. Você poderia vendê-los por um preço mais alto, Connor. E teria dinheiro para comprar um cabriolé — Andrew sugeriu. — Um cabriolé? — Connor repetiu. — Para lady Kinnoull. Assim, você poderia levá-la para passear pelo vale ou a Crieff e Perth. Nesses lugares, ela gastaria com os mercadores seu dinheiro ganho com a venda do gado, como só uma esposa sabe fazer — Andrew explicou e riu. — Devo comprar também um guarda-sol para ela passear pelo campo, exibindo12


se como a noiva raptada e a nova senhora de Glendoon? — Connor indagou numa voz arrastada. — De Glendoon, não — Neill protestou. — Lady Kinnoull é viscondessa e vai precisar de um cabriolé à sua altura, puxado por um pônei maneiroso. Ah, e também de um cocheiro — explicou, entrando no espírito da brincadeira. Connor revirou os olhos. — Eu serei o cocheiro, mas exijo usar libré — Andrew acrescentou. — Parem com essas tolices, os dois — Connor sibilou. Após alguns momentos, Neill queixou-se: — Sabem, rapazes, estou cansado do frio e ansioso pela primavera. Não agüento mais ver marrom por todos os lados. As urzes floridas são mais macias para observar soldados vermelhos. __As urzes não florescem antes de julho. Mais cedo, só o tojo. Mas você não gostaria de se deitar nele — acrescentou Connor. — A pele de Neill agüentaria os espinhos — Andrew disse. — Estou ficando velho — Neill continuou: — Quero sentir calor e ver as colinas cobertas de verde e floridas. E é bom esperar que nossas plantações rendam mais este ano. Se for igual ao ano passado, faltará alimento em nossas despensas e feno nos estábulos. Nosso gado passará fome no próximo inverno. Se não fosse a generosidade de Duncrieff, não sei como estaríamos agora. — Uma perda triste essa — Andrew murmurou. — A morte dele não foi confirmada. Não a lamentarei até ter certeza de que ele morreu — declarou Connor. — Se ele não morreu, é melhor você encontrá-lo — Neill sugeriu. Connor apenas assentiu com um gesto de cabeça. — Você tem tido azar desde que alugou a velha ruína de Duncrieff. A maldição sobre aquelas paredes está atingindo todos nós — Andrew comentou. — Não acredito muito em maldições, fantasmas e fadas. Creio no destino e também que fazemos da vida o que está ao nosso alcance — Connor disse. — Talvez sua esposa lhe traga sorte. Comentam que as MacCarran têm sangue de fada, e ela parece ser uma — Neill aparteou. Connor franziu as sobrancelhas. — Ouvi falar das lendas de fada das MacCarran, mas sei Pouco sobre elas. Duncrieff nunca mencionou esse assunto. Acho tolice. — Minha avó diz que as irmãs de Duncrieff têm o sangue de fada e seu dom — Andrew contou. — As duas? — Connor indagou, surpreso. — E o que minha avó afirma. Se sua esposa puder transformar pedras em ouro 12


ou conseguir de volta suas terras, será bem útil. — Acorde, rapaz! Meu rebanho de carneiros diminuiu e nenhuma de minhas vacas ficou prenhe nos dois últimos anos. Os campos de Glendoon não produzem quase nada e o castelo alugado está caindo aos pedaços. Uma gota de sangue de fada não adiantaria nada. — Se for um dom de fada verdadeiro...—Andrew começou. — Ei, olhem lá! Aqueles são os MacCarran — Neill o interrompeu. — São mesmo — Connor concordou ao olhar para os dois homens que subiam a colina. — Pedi a Padraig para dizer-lhes que você estaria aqui até a noitinha e gostaria de falar com eles. Quando os dois montanheses já estavam mais perto, Connor levantou-se e acenou. — Também queremos falar com você, Kinnoull — Allan MacCarran gritou ao mesmo tempo que punha a mão no cabo da adaga escondida na cintura. — Onde está nossa prima? — Donald MacCarran indagou, bravo. — Em segurança e comigo. Vocês devem saber que me casei com ela — Connor respondeu em tom brusco. Donald, o mais baixo dos dois e de cabelos escuros, tocou o cabo da adaga. — Você nos jogou no rio para poder raptá-la! Para surpresa de Connor, Allan pôs a mão no ombro de Donald e disse: — Pare. O próprio Duncrieff nos disse que isso poderia acontecer. Mas não esperávamos que fosse dessa forma. — Então ele lhes contou? — Connor murmurou. — Não muito tempo atrás, ele disse preferir que Sophie se casasse com você e não com Campbell — Allan explicou. — Ele se referiu a Sophie e não à irmã Kate? — Sim, claro. Ele não queria que Sophie se casasse com Campbell, embora nosso velho chefe tivesse combinado isso vários anos antes — Donald confirmou. — Porém, agora, MacPherson, não concordamos com a escolha de MacCarran. Ele o considerava seu amigo, mas você mostrou ser um péssimo companheiro. — Como assim? — Connor indagou. — Conte a verdade, MacPherson — Allan aparteou. — Na noite do ataque, semanas atrás, quando Duncrieff foi ferido e preso, Donald e eu estávamos lá, bem como esses seus dois homens. Como ele afirmasse que o ferimento não era sério, nós o deixamos com você. Lembra-se? — Duncrieff enganou a todos nós. Tinha um ferimento leve no braço, mas havia recebido um tiro de pistola nas costas que ele escondeu até quase desfalecer. 12


— Você o largou para morrer? — Donald perguntou. — Larguei, sim — Connor afirmou, odiando-se por admitir que o deixara. — Por quê? — Allan indagou com a mão no cabo da adaga. — Disseram que ele foi traído por um amigo naquela noite Donald aparteou. — Os soldados vermelhos contaram que o pegaram porque alguém gritou, informando onde ele estava Sabíamos que era você. — Se vocês me achavam culpado disso, por que não foram me procurar antes? — Nós não queríamos acreditar. Mesmo assim, fomos a Glendoon, e a sra. Murray nos disse que você tinha ido a Perth — Donald contou. — Fui mesmo e para ver Duncrieff. Os guardas me informaram que ele estava muito mal e não podia receber visitas. Voltei outras vezes, mas nunca pude vê-lo. — Nós também fomos, porém eles não admitiram que o víssemos, seus próprios parentes. E não tivemos notícia se ele está vivo ou morto — Allan se queixou. Na última vez que Connor tinha ido a Perth, os guardas lhe haviam dito que Duncrieff fora transferido e morrera no caminho. Mas ele não contaria isso até saber se era verdade. — Confesse por que o deixou, rapaz — Donald esbravejou. — Ferido como ele estava, eu não poderia salvá-lo. Tinha de arriscar que o governo respeitasse o chefe de um clã, mesmo sendo um rebelde jacobita. O general Wade tem uma certa decência. Duncrieff teria morrido naquela noite se ficasse comigo. Eu os segui para ver se os soldados vermelhos o levariam a um médico, e realmente levaram. Allan e Donald o observaram com desconfiança e, ainda com as mãos nas armas, cochicharam. Tenso e com olhar inexpressivo, Connor esperou, ciente de que eles tinham motivo para desprezá-lo. Não lhes contaria como tinha tentado estancar o sangramento enquanto Rob insistia para que ele fugisse. Nem como haviam discutido. — Fuja e me deixe aqui, mas me faça uma promessa. Quero que você se case com minha irmã. Ela vai voltar para Duncrieff na semana que vem. Preciso ter sua promessa antes de morrer. — Você não vai morrer. De jeito nenhum — Connor havia insistido. — Connor, faça isso por mim, case-se com ela. Seu nome está neste papel e meu sinete também. Você pode salvá-la e o clã Carran de uma grande ameaça se eu não estiver mais aqui para protegê-los. Vendo como o amigo estava cada vez mais pálido e fraco, depressa Connor tinha empenhado a palavra, pensando apenas em Duncrieff, a quem devia tanto, e não no casamento. —Confio apenas em você para fazer isso — Rob havia dito. 12


— Mas você precisa ir. — Confie em mim para ficar com um camarada ferido — Connor tinha resmungado. Naquele instante, Duncrieff havia gritado, chamando os soldados vermelhos. Connor se recusara a fugir e Rob, com o resto das forças, o tinha empurrado para uns arbustos, segundos antes da chegada dos soldados. Havia sacrificado a própria liberdade para salvar a do amigo. Connor os tinha seguido e, só depois de ter certeza de que Rob era deixado sob os cuidados do médico militar, havia ido embora. —Eu o deixei lá, sim. Era a única maneira de poder ajudá-lo. Também lhe dei minha palavra e a mantive. — Duncrieff me afirmou que confiava em você, o único homem à altura de se casar com nossa prima Sophie. Para tanto, ele tomaria as providências — Allan contou. Connor sentiu um nó na garganta e a presença de Neill e Andrew às costas dele. Dois amigos firmes em quem confiava. Tirou a autorização de Duncrieff da bolsa de couro e a entregou a Allan que a leu e passou a Donald. — Vejo que você não tinha mesmo escolha — admitiu Allan. — Eu lhes peço desculpa por terem tomado um banho no rio quando derrubamos as pontes. Era a maneira mais rápida para agir antes de Campbell poder interferir. — Se nosso chefe desejava isso, nós aceitamos — Allan declarou, devolvendolhe o papel. — Mas acho bom tratá-la bem, Kinnoull — acrescentou, ainda com a mão no cabo da adaga. — Eu jamais faria mal a ela — Connor garantiu, bravo. — Sophie é um tesouro. Ela tem o dom — Donald contou. — Dom? — Connor indagou, franzindo a testa. Allan assentiu com um gesto de cabeça. — O Dom de Fada das MacCarran. E mais do que isso, ela é o tesouro mais precioso do nosso clã. Desconfiado, Connor olhou de um para o outro. — Por que Duncrieff insistiu para me casar com Sophie? — Sem dúvida você sabe — Allan respondeu. — Não houve tempo para explicar detalhes. "Nem mesmo para deixar claro com qual das duas irmãs", ele pensou. — Ela é a herdeira de Duncrieff. A Donzela de Duncrieff, nós chamamos a herdeira antes de ela se casar — Donald explicou. — Herdeira? — Connor indagou. — Duncrieff não tem filho, pois ainda não se casou. Como irmã mais velha das 12


duas, Sophie é a herdeira se algo acontecer a ele. __Sei, herda os bens. —Também, mas isso ela terá de dividir com a irmã. Sophie será o cabeça do clã Carran caso o irmão morra sem deixar o próprio herdeiro, ou seja, um filho — Allan explicou. Chefe. As colinas e o céu pareceram se afastar de seus eixos. Connor tentou recuperar o uso das faculdades mentais. — Sophie herdará a chefia do clã? Por que não um parente, talvez um de vocês dois? — Alguns clãs nomeiam um primo ou parente quando não existe um herdeiro direto. Mas a tradição dos MacCarran determina que o herdeiro deve ser o parente mais próximo do chefe, não importa o sexo. Porém, isso é secundário. Duncrieff está apenas preso e nós vamos enviar uma petição às autoridades para sua soltura. Tudo ficará bem — Donald garantiu. — Por que ele me escolheu para casar com Sophie? — indagou Connor, ainda perplexo. A esposa poderia ser a chefe de um clã montanhês, e nem sabia. — Duncrieff confia irrestritamente em você. E seu título de lorde Kinnoull ajudaria nosso clã. Nosso chefe não tem um título. É senhor de terras, mas não um nobre. Nestes tempos, em que a Inglaterra governa a Escócia, precisamos das vantagens daqueles que nasceram e foram criados para ter poder e posição — Allan respondeu. — Meu título não tem mais serventia para ninguém. — Seu prestígio será restaurado um dia. Duncrieff estava certo disso e eu também estou. E você ajudará a proteger nosso clã contra Campbell, que ambiciona controlá-lo. Por ser membro do partido Whig, ele falaria mais alto no governo se tivesse influência em um clã montanhês — Allan acrescentou. — Pelo menos, ele imagina — Connor resmungou. — Exatamente. Suspeitamos que esse foi o motivo para ele querer se casar com Sophie. — Então Campbell conhece a situação legal de Sophie? — Claro. Ele é o magistrado desta região. — Ela própria sabe disso? — Connor indagou baixinho. — Sophie jamais quis ser a herdeira e sugeriu a irmã em seu lugar. Mas Kate está envolvida com a rebelião, o que poderia prejudicar o clã caso ela se tornasse chefe. Duncrieff pretendia conversar com Sophie sobre isso quando ela voltasse para a Escócia, mas não teve chance. Ele já havia decidido lhe pedir para se casar com ela, mas não tão cedo. Para Connor, muita coisa fazia sentido agora, mas surgiam novos desafios. 12


— Acho melhor contar tudo isso a ela. — Conte ou não, como quiser. Duncrieff será solto e tudo ficará bem para nosso clã — Donald repetiu. — Kinnoull, você precisa manter Sophie em segurança — Allan insistiu. — Dou-lhes minha palavra quanto a isso — Connor disse, apertando a mão de Allan primeiro e, depois, a de Donald. — É melhor irmos andando — Allan sugeriu. — Sempre que os militares vêem montanheses conversando, ficam desconfiados. — Tenha um bom dia, primo — Donald despediu-se, rindo. Com expressão severa, Connor acenou com a cabeça. — Ah, mais uma coisa. Você sabe do dom de Sophie? —Donald perguntou. — A lenda do Dom de Fada? Já ouvi falar sobre isso — Connor respondeu, surpreso. — Mas sei muito pouco sobre ahistória do clã. — Pergunte a Sophie. — Ela nasceu com o sangue e o dom de fada. Aliás, Kate também. Sorriu, e os dois foram embora. Com semblante sombrio e confuso, Connor virou-se para Neill e Andrew, que tinham se mantido em silêncio durante o encontro. — Não é de se estranhar que Duncrieff não tenha lhe falado sobre isso — Neill comentou. — É verdade — Connor murmurou começando a andar. Casar-se com a chefe de um clã era pedir muito mais do que para casar com uma endiabrada problemática, ele refletiu. Teria hesitado se Duncrieff houvesse feito o pedido em circunstâncias normais. Depois de adulto, havia desejado uma vida simples e tranqüila. Agora, gostaria apenas de reivindicar sua casa e continuar a sonhar com um estilo de vida simples. Mas o casamento fora realizado e ele aceitaria seu papel nele. Se pudesse ajudar Sophie e seu clã, ajudaria. Tinha empenhado a palavra a Duncrieff. E também suspeitava que já havia dado o coração à irmã do amigo. Mais tarde, ao voltar para o castelo Glendoon, imerso no mais profundo silêncio, Connor passou sem fazer barulho pela porta do quarto onde a esposa dormia. Não estava preparado para lhe revelar o que já sabia. Se o fizesse, teria de contai também o boato sobre seu irmão. Já era muito tarde, e a necessidade de ficar sozinho o dominava. Subiu mais uns lances de escada, rumo ao canto da torre que lhe garantia o sossego da solidão. Sob o céu estrelado, abriu a caixa do violino e o tirou. Encostou-o sob o queixo e, empunhando arco, fechou os olhos à espera de que a melodia viesse ao seu encontro. Um baixar vagaroso do arco seguido de uma subida rápida criaram o som sem esforço de sua parte. Prensou a ponta dos dedos nas cordas, correu-os para cima e para baixo enquanto o arco ia produzindo melodia. 12


Por uns momentos, apenas a música absorvia o seu pensamento. Ela fluía tão naturalmente quanto a respiração, e o fazia relaxar. No início, tocou notas repetitivas, com mais ênfase no ritmo do que na melodia. Quando já estava mais calmo, uma nova composição começou a se formar, suave e alegre. Ele nunca a tocara antes, ela simplesmente surgia. A música possuía encanto, pensou, como Sophie, e também um alento vibrante. A cadência o lembrava de seu andar gracioso, de sua voz maviosa. Repetiu-a para gravar na memória e depois marcar as notas em papel. Talvez a intitulasse Sra. MacPherson, ou Lady Kinnoull, dependendo de seu título de mulher casada. Pensando bem, deveria ser A Formosa Chefe dos MacCarran. Connor tocou outra música e, quando terminou, olhou para a encosta da colina. A espuma branca da cachoeira era visível na escuridão da noite, e o barulho lembrava um trovão distante. Ele sempre vigiava a região dali. E quando tudo estava em paz, ouvia música na água, no vento e no próprio coração. De alguma forma, Sophie tinha penetrado em sua música, incentivaldo-o a expressar os sentimentos com o violino. Tornou a encostar o instrumento no ombro e tocou a nova e linda melodia só para ela. Através das brechas nas paredes, a música ecoava pelos corredores frios. Em pé à porta do quarto, Sophie a ouvia. Como antes, a melodia era comovente, mas, dessa vez, possuía uma beleza delicada. Não a assustava e a fazia querer ouvi-la mais. A música era tênue e vinha de algum lugar das ruínas. Linda e pura, expressava emoções. Sophie sentiu as lágrimas inundarem os olhos. Então, a música parou tão bruscamente como havia começado. Depois de um momento, ela voltou para a cama. Quando já começava a adormecer, ouviu outra vez a melodia. A suavidade das notas era como se o amor houvesse se transformado em som, ela imaginou.

Capítulo XI

— Mary Murray faz um ensopado delicioso — Andrew elogiou, esvaziando o prato de estanho. Connor concordou com um murmúrio enquanto pegava mais um bolinho de aveia. Cortou-o ao meio e ofereceu um pedaço a Sophie, que se sentava ao lado dele e em frente a Andrew. Como metades idênticas de uma fruta, Roderick e Padraig sentavam-se 12


um diante do outro. A mesa longa e encerada do salão brilhava sob a luz das velas. Connor olhou em volta para a esposa e os amigos. Apesar das paredes rachadas, o aposento guardava traços da grandiosidade antiga, o que ele nunca havia notado. Talvez fosse por causa do ambiente amigo e da luz das velas. Naquele momento ele quase se sentiu contente e em casa. Essas pessoas eram queridas como parentes chegados, e ele se sentia à vontade na companhia delas. Sophie aceitou o pedaço do bolinho de aveia e o comeu com uma fatia de queijo. Enquanto passava manteiga na parte dele, Connor a observou e comentou: — Você mal jantou, e nem quis provar o ótimo ensopado da Mary. — Estou satisfeita. Vocês trabalham muito e precisavam se alimentar bem. Connor estranhou. Ele e os outros tinham esvaziado o caldeirão de ensopado, enquanto Sophie só havia comido mingau de aveia com creme e queijo. Passou o prato ainda meio cheio para ela e disse: — Olhe, já matei minha fome. Você quer terminar por mim? Ela arregalou os olhos de espanto e não de fome. — Não, obrigada, estou satisfeita. Connor inclinou-se para ela e perguntou baixinho: — Nossa comida simples não lhe apetece? Você não tem comido bem desde que chegou aqui. Ou o cativeiro tirou seu apetite? — Tolice. Mary prepara sopas deliciosas de legumes e cevada. E hoje não estou com muita fome. Mas obrigada por sua atenção — Sophie acrescentou, sorrindo. Connor sentiu o coração vibrar. Encantava-se com sua facilidade de ser cortês e também com sua influência no ambiente de Glendoon. Seus amigos já se comportavam com boas maneiras em sua presença, apesar de meio constrangidos. — Talvez a senhora prefira comida francesa em vez da escocesa — Roderick aparteou. — Pois me lembro com saudade dos pratos escoceses que saboreava na infância — Sophie afirmou. — O que a senhora comia em Bruges? As freiras passavam a pão e água? — Andrew perguntou. — Comíamos muito bem lá. Tínhamos uma cozinha enorme e também uma padaria. Sempre havia pão fresco e pudins. Queijos, sopas, ovos e legumes sempre faziam parte do cardápio. Também serviam peixe e frango com freqüência, e às ve zes bacon ou presunto, mas estes eu não apreciava. — Ora, já estou ficando com fome outra vez — Andrew queixou-se. — Aqui nas Terras Altas temos carne de vaca excelente. A senhora devia sentir 12


falta dela lá em Bruges. Também coelho e carne de veado, claro. Às vezes comemos peixe, mas não gostamos muito — Roderick contou. — É de nossa carne de vaca que a senhora precisa para se fortalecer, pois está um pouco magra — Andrew afirmou. — E de carneiro, naturalmente. Vamos pedir à nossa mãe para assar um e faremos uma festa — Padraig sugeriu. Sophie empalideceu, Connor notou. — Estou muito contente de poder comer outra vez a ótima aveia escocesa — ela garantiu depressa. — Sim, vamos assar um carneiro ou dois para comemorar nosso casamento. Teremos também carne de vaca mal-passada e suculenta — Connor declarou. Como ele temia, Sophie ficou lívida. — Obrigada, mas isso não é preciso — ela balbuciou. — Penso que você não come carne de espécie alguma — Connor disse. Ela deu de ombros e respondeu: — Não como nada animal, exceto ovos e peixe. — Carne de espécie alguma? Fez um voto no convento? —-Andrew indagou, perplexo. — Parei de comer carne porque quis e não por um sacrifício religioso. Não foi difícil. Penso que fiquei doente por causa disso na noite em que nos casamos. Seria indelicado não aceitar os pratos elaborados de carne do jantar de sir Henry. — Rara avis — Connor murmurou, pensativo. — O quê? — Andrew perguntou. — Pássaro raro — Sophie traduziu, e olhou para Connor. — Então o fora-da-lei sabe latim? — Bem como a esposa — ele afirmou. —O fora-da-lei sabe, além de latim, francês, italiano e grego — Roderick aparteou. — Tem uma sala cheia de livros e já leu todos. Quando toca... — Chega — Connor o interrompeu. Sophie dirigiu um olhar sério para ele. — Não entendo como você cuida tão bem dos carneiros e depois os mata para comer. Também não sei como pode tratar Fiona com tanto carinho e então comê-la. — Não vou comer Fiona. Ela é vaca leiteira. Criamos gado para o mercado e carneiros por causa da lã, a fim de ganharmos algum dinheiro. Durante o ano, matamos alguns animais para comer, mas não tantos quanto você imagina — Connor justificou-se. 13


— Criamos galinhas também e pescamos nos lagos e nos rios. E ainda caçamos veados e outros animais — Roderick acrescentou. — Sinto pena dos animais e não suporto a idéia de comê-los— Sophie admitiu. —Como voltou para a Escócia, a senhora pode comer aveia, queijo, couve e ovos, alimentação comum nas Terras Altas — Padraig disse. — Eu sei. Mas vocês não precisam se preocupar comigo. Talvez eu não fique aqui por muito tempo. Se depender da vontade de seu senhor, ele me mandará de volta logo. Ele quer outra, uma que não seja tão afetada e que possa se adaptar melhor a um malandro — Sophie disse sem desviar o olhar de Connor. — Ah, não depois do que aconteceu ontem — Andrew afirmou, mas Connor lhe fez um sinal com o olhar. — Ontem? — Sophie indagou, olhando de Andrew para Connor. — Vi seus primos Allan e Donald. — Oh! Como vão eles? O que disseram quando você lhes contou do casamento? — Conversamos sobre isso, e eu lhes garanti que você está bem. Vi sir Henry também — ele acrescentou com outro sinal para Andrew. — O que ele disse? — Sophie quis saber. — Contarei mais tarde. Agora, Padraig e eu temos de ir ao estábulo para a ordenha da noite. Se é que vamos conseguir algum leite — Connor disse enquanto se levantava. — Roderick, faça companhia para a senhora. Neill e Andrew, acho que os dois têm uma incumbência agora à noite. — Temos, sim, Kinnoull. — Pois então, vão. Eu tiro a mesa e arrumo a cozinha — Sophie ofereceu-se. — Nós nos encontraremos mais tarde, Kinnoull? O nome dele tinha uma cadência agradável em sua boca, mas, nesse momento, havia uma ponta de tensão nele, Connor sentiu. Sophie estava ansiosa em relação ao que ele ia lhe contar. Inclinou-se para ela quando os outros já saíam do salão. — Vá me encontrar mais tarde no escritório, logo ali do outro lado do corredor. Ele preferia um lugar sossegado para a conversa que teriam. Não no quarto, onde a cama o distrairia com as possibilidades oferecidas. — Sei onde é. Já conheço bem o castelo. Não existe muita coisa para fazer em Glendoon a não ser vagar por todos os lados, enquanto espero para saber por quanto tempo serei prisioneira aqui. — A vigilância é para seu próprio bem, menina, embora você não acredite — ele disse, dirigindo-se para a porta. — O portão continua lá para ser explorado — Sophie o provocou. — Peça a Fiona para lhe mostrar a saída pela muralha lá atrás — ele sugeriu, e 13


fechou a porta. "Não devia ter sido irônico", Connor se censurou. Às vezes, Sophie o irritava, e a conversa que teriam mais tarde o deixava tenso. Quando saiu da cozinha, notou como a horta estava mais em ordem e com uma fileira de folhas verdes, além de umas plantas com botõezinhos prestes a abrir. "Curioso", Connor pensou. Talvez o esforço de Sophie para tirar o mato tivesse permitido que outras plantas criassem vida. Milton não estava muito em voga nesses dias, Sophie pensou, folheando um livro de autoria dele, tirado da estante. Porém,. ela adorava suas poesias e pelo jeito, Connor também as apreciava. As páginas estavam marcadas pelo manuseio constante. Depois, percorreu o dedo pelas lombadas de couro enquanto lia os títulos. Ficou admirada. Connor MacPherson era um homem culto, com interesses diversos, e bem mais do que um fora-da-lei ou um fazendeiro refinado. Mas não muito ordeiro, ela reconheceu, sorrindo. Livros e papéis empilhavam-se nas estantes, na escrivaninha e até no chão. Ao passar por uma pilha, a barra de seu vestido roçou na ponta e a espalhou pelo chão. Ao juntar os papéis, Sophie viu tratar-se de mapas desenhados com indicações de limites, cercas, construções, poços e cursos de água. Os livros na escrivaninha eram sobre agricultura e controle de sua economia. O maior deles, Sistema Agrícola, tinha a capa gasta e páginas marcadas. A data da edição era 1669, e a tinta estava escrito: Duncan MacPherson, lorde Kinnoull, 1702. Um outro ao lado era em francês, La Théorie et Ia Pratique du Jardinage, de D'Argenville. Dias antes, ela jamais imaginaria que Connor tivesse tais interesses. Mas o tinha visto com seus carneiros, a vaca predileta e os cães que o adoravam. Ele dava a impressão de aceitar esse papel. Ao explorar seu o escritório, dava-se conta de que ele era muito mais um fazendeiro do que um fora-da-lei. Pegou outro livro, abriu e leu em voz alta: O Jardineiro Holandês, ou o Florista Completo, de Van Ooesten. — Traduzido recentemente — Connor disse às suas costas. Sophie virou-se depressa. Com os braços cruzados, ele encostava-se no batente da porta. — Eu estava vendo seus livros. Espero que não se importe. — Nem um pouco — ele disse, entrando e pegar um deles da escrivaninha. — Um Novo Sistema de Agricultura, de John Laurence. Eu o comprei na livraria de Allan Ramsay, em Edimburgo. Você já esteve lá? Ela fez um gesto negativo com a cabeça. — Remediaremos isso qualquer hora. É uma boa livraria numa boa cidade para se visitar. — Largou o livro e olhou em volta. — Este é meu aposento favorito em Glendoon. Quase me sinto em casa aqui. — Ele deve lembrá-lo da biblioteca da Kinnoull House. 13


— De certa forma, embora a de lá fosse imensa. As prateleiras acomodavam cinco mil volumes. Consegui tirar umas poucas centenas junto com os móveis. Esta era a poltrona de meu pai. Este lugar me provoca saudade — Connor disse e deu de ombros. — E os outros? O salão, o quarto? — Os móveis do quarto eram de um dos quartos de hóspedes da Kinnoull House, e mais fáceis de tirar e carregar à noite. A cama é boa — acrescentou, olhando para ela. Sophie enrubesceu. — Você ainda tem coisas lá? — Tenho. Imagino que sir Henry durma na minha cama. — Estive na Kinnoull House na noite em que você me raptou. Connor a fitou com olhar penetrante. — Eu sei. Que impressão teve da casa? — É espaçosa, linda e bem decorada. E os jardins devem ficar belíssimos no fim da primavera e no verão. — Minha mãe era muito caprichosa com as flores. Você e ela teriam muito para conversar. — Connor fez uma pausa e então disse: — Se você tivesse se casado com sir Henry, teria jardins para cuidar até se cansar. Talvez sir Henry não aprovasse essa atividade da esposa. Pois eu não me importaria — Connor afirmou. — Se eu tivesse me casado com ele não seria lady Kinnoull, — Isso importa para você? — Antes, dependeria de quem fosse lorde Kinnoull — respondeu Sophie enquanto sentia o coração disparar. Ele a fitou por um momento e depois virou-se para repor os livros na estante. — Esses sobre jardinagem eram de sua mãe?—ela indagou. — Não, são meus. Sempre tive a idéia meio vaga de ser fazendeiro e queria muito ampliar os jardins da Kinnoull. Enquanto estava na universidade em Edimburgo estudei botânica, agricultura e sua economia. Mas não completei o curso por causa da situação de meu pai. Tudo que eu queria era cuidar de minha propriedade e de meus arrendatários. Em vez disso... — deu de ombros. — Você é soldado irregular da Escócia? — Sophie indagou. — Além de boiadeiro e pastor de ovelhas. — Bem como um malandro — ela disse, ajudando-o a guardar os livros na estante. — Você não esperava que um fora-da-lei tivesse uma biblioteca, calculo — ele disse, rindo. 13


— É claro que você é um homem inteligente e culto. 0 que mais me surpreende é o planejamento cuidadoso de seus ataques. — Meus o quê? — Os assaltos para roubar gado. São planejados com mapas e desenhos da área, com pastagens, cercas e muitos outros detalhes. Eu os vi sem querer — ela explicou, apontando para os papéis. Connor voltou a rir e balançou a cabeça. —Não estou planejando roubos de gado, menina. Pus nesses papéis umas idéias que eu tinha para as terras de Glendoon, plantações, pastagens, um bom jardim. Mas nada disso estava destinado a se realizar. — Sinto muito. Eu não imaginava que você sonhasse com o futuro. — Todas as pessoas sonham — ele murmurou. — É verdade — Sophie reconheceu. — Bem, você não conseguirá grande coisa com sua jardinagem na terra árida de Glendoon. Só a urze resistente e o tojo espinhoso vicejam nela. — Poderei cultivar algumas plantas aqui se tiver tempo suficiente para tentar — ela afirmou. — Disponha do tempo que precisar — Connor disse. Seu coração exultou com as palavras proferidas por aquela voz profunda. — Connor, o que você queria me contar sobre o encontro com meus primos? Ele respirou fundo e foi até a janela, debruçando-se no parapeito. Sophie juntouse a ele. — Você faz idéia do motivo pelo qual Duncrieff queria que nos casássemos? — ele perguntou. — Apenas o de lhe ter escrito dizendo que eu não podia me casar com sir Henry. Ele tinha agido de maneira fria e insensível ao não prestar ajuda financeira e legal, pedida por meu pai. Isso apesar de meu pai ter lhe prometido minha mão. Talvez Robert pensasse que nosso casamento fosse a solução. Pode ser. Mas existe outra razão. Você é herdeira de Duncrieff. Sophie virou-se para ele. — Sou... o quê? — Segundo seus primos, como irmã mais velha, você é her deira de Duncrieff, quer dizer, do título de chefe do clã. — Impossível! Pedi a Robert para dar esse privilégio a Kate, — Ele nunca fez isso. Sophie baixou o olhar e tentou refletir. Durante meses, tinha insistido com o irmão, por correspondência, que a livrasse dessa herança quando 13


ele se tornasse chefe. Atônita, balbuciou: — Eu... Foi por isso que ele o escolheu para ser meu marido? — Ele contou a Allan o que pretendia. Afirmou que eu era o amigo em quem mais confiava. Parte de seu plano era impedir que sir Henry se casasse com você. O próprio Duncrieff me contou isso. E a outra parte era evitar a influência de Campbell no clã, por seu intermédio, caso algo ocorresse a Rob e você se tornasse chefe. Campbell jamais desejaria o bem de seu clã. Veja o que ele forjou para se apossar da Kinnoull House, instigado pela ambição. Fez isso tão logo a propriedade foi confiscada, enquanto meu pai e eu ainda estávamos na prisão. — Você?! — Sophie exclamou. — Passei sete meses nos calabouços de Edimburgo, esperando para ser enforcado. Seu irmão conseguiu minha soltura. Com a aprovação de seu pai, ele foi aos Tribunais suplicar por mim e meu pai, além de pagar com o dinheiro de que dispunha. Só eu fui solto. Meus crimes eram por associação, Rob garantiu, e o governo acreditou. — Sir Henry se casaria comigo apenas para... — Claro que sim — Connor a interrompeu. Ela começou a andar de um lado para o outro. — Suponho que meu irmão acreditasse que seu título, de lorde Kinnoull, poderia ajudar o clã caso nos deparássemos com alguma dificuldade. E espero que Rob o considerasse, entre todos os homens de seu conhecimento, o mais capaz e disposto para me proteger, se eu viesse a ser chefe do clã. — Sem dúvida disposto. Devo muito a Duncrieff. — Então, foi essa a origem do nosso casamento? — Sophie murmurou. — Parece que sim. Você e seu irmão têm maneiras semelhantes de pensar. Ele não me surpreende por querer seu senso prático e equilibrado na chefia do clã. Sua irmã, pelo que ouvi contar, é meio esquentada. — Ela seria uma ótima chefe, mais corajosa e de idéias mais firmes do que eu. — Você não se conhece muito bem. Quanto a mim, mesmo como lorde Kinnoull, não vou ser útil a seu clã. Meu título pode parecer importante em documentos, mas é completamente vazio. Nem mais possuo minhas terras. — Isso não será problema, pois eu não me tornarei chefe do clã. Robert será solto logo, tenho certeza. Aliás, Connor, você e seus amigos não poderiam me ajudar a soltá-lo, ou quem sabe, a fugir? Ele franziu a testa e desviou o olhar. — Sophie, existe algo mais nessa questão. Tenho notícias recentes de seu irmão. Ela notou o travo na voz de Connor. Por favor, não me conte — pediu. Ele a pegou pelo braço e a forçou a fitá-lo. — Sophie, me ouça. É apenas um boato, mas a última vezem que fui a Perth me contaram que Robert tinha sido removido da Tolbooth e 13


morrido dos ferimentos no caminho. — Não! Isso não é verdade! A família teria sido avisada! — Talvez o governo quisesse manter a morte de um chefe um herói jovem e importante da rebelião, em segredo pelo tempo que pudesse. Um guarda, a quem subornei com uísque de Mary, insinuou isso. Ninguém, fora da prisão, sabe ainda. — Não pode ser! Deus é bondoso, eu teria sentido. Nós éramos tão chegados. — Abafou um soluço. — Há quanto tempo você sabe? — Um ou dois dias antes de nos encontrarmos. — De nos encontrarmos? — Ela se ouviu gritar num misto de raiva e de angústia. — Você me raptou! E sabia que meu irmão se fora. Devia estar pensando que poderia assumir o controle do clã dessa forma! — ela o acusou, investindo a tristeza na fúria. — Pensei apenas em minha promessa a Duncrieff. Eu ainda não queria uma esposa. — Muito menos, esta, a freira. Você preferia a endiabrada! Os olhos dele cravaram-se nela. — No início. Mas isso não é mais a questão, Sophie. Sem lhe dar ouvidos, ela continuou: — Com certeza você sabia. Pelo menos esperava que, ao se casar com a herdeira de Duncrieff, melhoraria sua situação! — Chega! Dei minha palavra e a mantive. Isso é tudo. — Por que, então, você não me contou sobre meu irmão? Connor a segurou pelos ombros. — Como eu poderia? Como lhe contar se acabava de me casar com você e de levá-la para a cama? Não sou tão cruel assim, embora você ache. Eu não sabia, e ainda não sei, se é verdade ou apenas boato. Mas pretendo comprovar, uma coisa ou outra. Ofegante e com os olhos nublados pelas lágrimas, ela o encarou. __Pois prove que é boato! Pelo que ouvi, você pôs meu irmão naquela prisão. Prove também que isso não é verdade, Connor MacPherson, e leve meu irmão para casa! Sophie soltou-se das mãos dele e correu para a porta e, logo, pelo corredor. Não sabia aonde ir. Glendoon não era sua casa, com lugares familiares em que pudesse encontrar paz. Conseguiu sair pela porta da cozinha e correu para o antigo jardim, em busca de consolo. Apesar das sombras da noite, Connor viu o brilho de seus cabelos enquanto ela caminhava pelo velho jardim. Saltou sobre as pedras do muro desmoronado e seguiu em sua direção por aléias já limpas. Teve a impressão de ver brotos surgindo nos canteiros. Sophie virou-se e ele viu sinais de lágrimas em seu rosto. Parou a um passo de 13


distância. Queria muito estreitá-la entre os braços e a consolar. Porém, o bom senso o aconselhava a manter certa distância e lhe dar tempo para refletir. Sophie era forte o bastante para suportar o golpe, mas precisava dar-se conta disso. — Eu não quis lhe falar logo sobre Duncrieff, embora reconhecesse seu direito de saber — Connor disse. Ela assentiu com um gesto de cabeça e virou-se de costas. Ele não se foi. — É o que também espero. Porém, temos de estar preparados para a outra eventualidade. Sei o que é perder alguém tão próximo, Sophie. Você já passou por isso antes e sabe o quanto dói. E por muito tempo. Então, um dia, damos conta de que o fardo está menos pesado. Aos poucos, ele vai desaparecendo, apesar de ainda o carregarmos, mas a dor é menos aguda. Ela virou-se de frente e murmurou: — Eu sei, mas não quero esse fardo. — Nós dois o lamentamos, Sophie. Você não está sozinha com ele. Rob era quase um irmão para mim, e isso me atinge como uma punhalada. Connor segurou seu braço com delicadeza. Ela não o puxou e pediu baixinho: — Por favor, me conte tudo. — Na noite em que Rob foi preso, estávamos espionando a estrada militar que o general Wade construía no vale. Ele queria saber quais eram os planos do general. Eu e alguns de nós o acompanhávamos. Mas tudo deu errado. Luar demais, falta de sorte, sei lá. Fomos descobertos e perseguidos pelos soldados. Com simplicidade, Connor contou-lhe o resto. Como Robert tinha sido baleado, escondido a extensão do ferimento e mandado os outros embora. Também havia entregado o papel a ele e suplicado a promessa de se casar com Katherine Sophie. Mas não contou que o próprio Duncrieff havia chamado os soldados. Não queria se eximir da responsabilidade pela prisão do amigo. — Portanto, eu tinha de manter minha palavra — concluiu. — Nunca sabemos o que nos pedirão para suportar. — Porém, não nos esquivaremos — ele murmurou. — Não tenho certeza do fato. Espere que eu descubra a verdade. Ele pode estar vivo. — Sinto que está. Não posso acreditar que se tenha ido. Acho que, de alguma forma, eu saberia. —Tenho a mesma sensação. Ou talvez eu não queira aceitar o fato. Sinto muitíssimo, Sophie — ele sussurrou, tocando-a nos cabelos. — Eu queria tanto saber ao certo. — Quem sabe seu Dom de Fada pode lhe dizer — Connor sugeriu, tocando o pingente de cristal. 13


Surpresa, Sophie olhou para ele. — Você sabe disso? — Muito pouco. Na verdade, não acredito em fadas, maldições, fantasmas e coisas parecidas. — Aqui existe um fantasma. Eu já o ouvi gemer à noite. É um som sobrenatural, mas muito bonito. Parece de violino —ela contou. Connor a observou por um instante e, então, pediu: — Fale sobre a fada de Duncrieff. — Tudo aconteceu muito tempo atrás, na estação das neblinas densas. Um chefe Carran salvou uma fada que se afogava. Eles se apaixonaram e se casaram. Diziam que ela era de grande beleza e da raça mais antiga de sua classe, cuja estatura regulava com a dos humanos. — Interessante. E o que aconteceu ao casal feliz? — Eles tiveram três filhas, e cada uma herdou um pouco do poder da mãe: o dom de obter o que se deseja, o de profecia e o de curar. Ela as ensinou como usar seus talentos. Então, um dia, ela teve de voltar para seu povo. Mas deixou uma taça forjada em ouro pelas fadas e com pequenas pedras de cristal. Sempre que uma menina MacCarran herda o Dom de Fada, ela ganha uma das pedras para usar. Connor tocou o pingente. — Que dom você herdou? — Imagino que seja uma versão daquele para se obter algo. Posso fazer crescer plantas, como flores, legumes, hortaliças e outras. Esse dom é um tanto estranho e não tão excepcional. A maioria das plantas cresce por conta própria, porém, elas florescem e produzem mais depressa sob meus cuidados. — Dom importante para uma dama que adora jardins, além de estar casada com um fazendeiro. — Obrigada — Sophie murmurou. Mais uma vez, Connor ficou perplexo com sua inesperada gratidão. Mas já a entendia melhor. Esse era outro aspecto maravilhoso da moça de quem começava a gostar profundamente. — Pelo quê? — Por encontrar um pouco de sentido em meu sangue de fada. Nunca achei que fosse muito útil, exceto para cultivar flores. Em minha família contam-se histórias admiráveis do Dom de Fada. O meu parece muito insignificante, como se o sangue de fada não tivesse vingado em mim. — Sophie, às vezes penso que existe magia a todo nosso redor. Apenas ignorava que houvesse uma explicação para isso. — Sorriu um pouco. — E como pode ser insignificante? As plantas florescem, as árvores frutíferas... — Você devia ver o vigor do mato — Sophie respondeu, aborrecida. 13


Connor riu baixinho e, com o braço em sua cintura, a puxou para mais perto. — Penso que podemos arrancá-lo. Ela aconchegou-se àquele corpo forte e respirou fundo. Com os braços em seus ombros, ele a beijou com suavidade, uma carícia tão prazerosa, naquele momento, quanto as apaixonadas que já haviam trocado. Puxou-a para mais perto e apoiou a cabeça na sua por um instante, recebendo o consolo que tentava lhe proporcionar pelo golpe duro da notícia sobre o irmão. — Quando você descobriu que tinha esse dom? — Meus pais sabiam por meus olhos. Os das MacCarran que o possuem são azuis, ou verdes ou cinza, mas sempre muito claros, grandes e um pouco fora do comum. Com os dedos sob seu queixo, Connor ergueu-lhe o rosto para admirar seus olhos lindos, ora verdes como o mar, ora azuis como o céu. Então, exclamou: — Extraordinários! Não apenas fora do comum. Eu os notei logo e me encantei. — Os de minha irmã são semelhantes. Por isso você cometeu o engano de me pegar. —Não foi engano realmente. E quanto ao pingente de cristal que você sempre usa? Ele lhe concede o talento mágico para cultivar plantas? Sophie o tocou. — Não exatamente. Mas, de acordo com a lenda, quem tem o dom deve usar um dos cristais da Taça Encantada de Duncrieff. Se o usarmos, seremos capazes de exercer nossos talentos. Às vezes, ele poderá nos conceder mais uma dádiva, um milagre. Connor franziu as sobrancelhas. — Milagre?! Isso já ocorreu em sua vida? — Tenho esperado, mas não. Talvez nunca ocorra. Existem uma condição e um preço. — Continue — ele pediu. — O milagre, se acontecer, será apenas uma vez e em prol do amor verdadeiro. — Sei. O tipo de amor a que se é destinado. — É o que a lenda diz. — Você não poderia ajudar sua família com essa magia? Você a ama e seu irmão seria beneficiado. Acredito que ainda esteja vivo, Sophie — acrescentou, fitando-a. — O dom não age a favor da própria família, por mais que eu a ame. Também depende do tipo de cristal que se recebe para usar quando ele é tirado da taça. O meu é do tipo que atrai amor verdadeiro — ela disse, tocando-o. — Sempre achei que este cristal era um desperdício em mim. Kate emprega muito melhor o poder do dela. — Ora, você usa o seu muito bem. E nunca sabemos o que a vida nos reserva. 13


Um sentimento delicado brotou no coração dele enquanto palavras lindas se formavam na mente, porém, Connor não as pronunciou. De repente, sentiu-se covarde, cético. Afastou-se um pouco e cruzou os braços. — Então, como você usa esse cristal? Pode balançá-lo e trazer James Stuart de volta ao trono da Escócia? Ou restaurar este castelo em ruínas num piscar de olhos? — Isso seria feitiçaria e não magia de fada. Nosso dom age de maneira mais natural, como o poder de curar, o de prever o futuro. Pode ainda inspirar músicas lindas, poesias, pinturas de uma forma que parece normal, mas é, na verdade, extraor dinária. Um toque de fada, caso você possa entender isso. — Posso, sim — ele respondeu, reconhecendo a verdade. — Continue. — Se o amor verdadeiro é procurado e encontrado, então a magia pode criar um milagre, segundo a lenda. Ao admirá-la, Connor podia acreditar facilmente em magia de fada. Mais uma vez, quis muito expressar o sentimento do coração, mas ao mesmo tempo lutou para sufocálo. — Seu toque de fada poderia criar um verdadeiro milagre nos jardins de Glendoon — disse, tentando afastar os pensamentos perigosos sobre amor verdadeiro. "Depressa demais", disse a si mesmo. Não tinha planejado isso, pois ainda não estava preparado. — Estou fazendo o máximo possível. Eu gostaria de poder usar esse dom para ajudar meu irmão e meu clã. Então, ele seria realmente útil. Também desejaria poder, com um simples acenar de mão, dar a Kinnoull House de volta a você — acrescentou com suavidade. Comovido, Connor a observou e a viu tocar o pingente outra vez. — Mas o poder de nosso dom nem sempre afeta a história. Grande parte do tempo limita-se ao amor. Simplesmente encontrá-lo e honrar as paixões do coração. — Isso não é suficiente? — ele murmurou, mas interrompeu, evitando divagar mais sobre o assunto. Amor. Quando ele havia pensado tanto nesse sentimento? — Acho que sim — Sophie respondeu, observando-o. Então é por isso que você pode fazer plantas crescerem, pois tem paixão por seu trabalho, ama jardinagem. Para você, isso é o toque de fada. Seus olhos brilharam e ela sorriu. — Talvez seja. Esse sorriso lindo só para ele. O coração vibrou. — Ah, mas o amor verdadeiro é muito raro — murmurou, encantado por estar com ela no jardim, sob o céu estrelado. 14


Queria beijá-la, dizer-lhe o que vinha do coração, mas mordeu as palavras. — Pode ser raro, mas existe — Sophie afirmou. Cético como era, fadas, magia, concessão de milagres por amor não passavam de fantasias para Connor. Porém, algo em sua voz, em seus olhos luminosos e em sua sinceridade o desorientava. Amor. Ele não tinha nada para oferecer à esposa, e não devia ter se apaixonado. Sabia que o amor o tinha encontrado sem se importar se a época era certa. — Eu faria qualquer coisa para salvar meu amor verdadeiro, Connor MacPherson — ela murmurou. — E não precisaria da ajuda de meu dom de fada. Boa-noite. — Passou por ele e, depois, virou-se. — Dormirei sozinha esta noite. Tenho muito em que pensar. Em silêncio, ele a viu sair do jardim e atravessar o pátio. A Lua, que acabava de surgir, envolveu-a com sua luz pálida. Pétalas de flores, que não estavam ali na véspera, roçaram na bainha de seu vestido. Seguindo-a com o olhar, Connor sentiu o coração bater mais forte e, de alguma forma, se transformar. — Sophie! No instante em que ia entrar na cozinha, ela virou-se e viu Connor no pátio. — Pois não? — respondeu. — Vá pegar sua capa para sair comigo. — Ir aonde? — Sophie indagou, desconfiada. Connor assobiou baixinho e os cães, que estavam perto da lareira, rosnaram um pouco e foram para perto dele. — Venha conosco. Esperamos você ir pegar sua capa. O que MacPherson queria?, Sophie conjeturou e saiu para o pátio. — Não está muito frio. Vou ficar bem. — Como quiser — Connor disse, pegou sua mão, e levou-a até o portão. Sem explicar nada, ele o abriu. Em seguida, deu um passo para trás e apontou para a saída. Sophie quase riu. — Você quer que eu vá embora? — Não. Quero que me acompanhe numa aventura — ele respondeu, os olhos brilhando. Tornou a assobiar e os cachorros saíram correndo, rumo à campina. Então, Connor fez Sophie passar pelo portão. Do lado de fora, ela parou e, teimosa, disse: — Eu não vou. Ele lhe dirigiu um olhar zombeteiro. 14


—Já vivi aventuras por um bom tempo. Se você vai espionar soldados vermelhos, terá de ir sem mim. Não quero percorrer milhas, subindo e descendo colinas, à noite. — Desta vez não é tão longe. Só até lá em cima — ele disse, apontando para os picos das colinas atrás do castelo. — O que existe lá? — Estrelas acima, ar das montanhas, brisas suaves. Você precisa sair um pouco do castelo, Sophie. Eu a tenho mantido confinada por tempo demais. É lindo lá e você vai gostar. — Bem... — ela disse. — Bem... — repetiu e deu uns passos. — Mas você tem de prometer ficar comigo — ele exigiu. Sophie já desconfiava que iria com ele a qualquer lugar. — Qual é o propósito dessa excursão? — ela quis saber quando começaram a caminhar lado a lado e os cães correndo na frente. — Preciso levar os cachorros às colinas esta noite e vou ficar por lá durante algum tempo. Pensei que você apreciaria o passeio. Gosta de carneiros, não gosta? — Não para comer — ela disse e Connor riu. — Estou levando os cachorros para procurarem tocas de raposas. E época de as ovelhas darem cria, e nós soltamos os cães, que afugentam as raposas para longe dos carneirinhos e do rebanho. Roderick e Padraig se incumbem disso, mas de vez em quando eu faço. — Caçam raposas? Ah, não! Não quero ver isso — Sophie protestou, diminuindo o passo e olhando para ele. — Você não trouxe sua pistola. Connor pôs a mão no cinto. — Minha adaga está escondida aqui e não há necessidade da pistola esta noite. Só há cabras e carneiros montanheses nas colinas. E raposas, claro. E nós não vamos caçá-las. Os cães têm uma tarefa a cumprir. — Matá-las? Não! — Você é muito sensível, Santa Sophie. Não se preocupe. Os cães só vão proteger o rebanho com latidos tão ferozes que raposa alguma se atreverá a chegar perto. — As raposas também dão cria nesta época — Sophie salientou. — É verdade e, por isso, querem alimentar os filhotes. E eu quero proteger meus carneirinhos. Por serem tão pequenos quando nascem, são uma refeição tentadora para as raposas. Trazemos os cães regularmente aqui nesta época do ano. Elas são espertas e logo aprendem a ficar longe. Caso contrário, o trabalho é dos cachorros. — Terrível — ela murmurou. — Apenas a natureza seguindo seu curso, menina. 14


— Eu sei — Sophie disse, e respirou fundo. Ao erguer o olhar, ela viu a silhueta de três veados no topo de uma colina distante. Virou-se e olhou para o vale abaixo, onde um lago refletia o céu e a Lua. E, atrás das colinas, a última réstia púrpura do anoitecer esmaecia. — Este passeio não se parece nem um pouco com a última vez que percorremos colinas juntos—ela comentou e suspirou, contente. Connor riu baixinho e pôs a mão em sua cintura enquanto galgavam a encosta. Os cães farejaram uma trilha e correram, latindo. Após um instante, ele a largou para segui-los à sua frente. Sophie o acompanhou com o olhar. Viu os cabelos esvoaçando ao vento e a manta xadrez ondulando-se com os passos longos e ágeis dele. Admirou-o e sorriu para si mesma. Os carneiros estavam espalhados nessa colina, manchas brancas nas sombras da noite, os adultos mais escuros do que os filhotes. Connor tinha alcançado o topo da colina e observava os cães, que haviam sumido do outro lado. Ele estava certo, Sophie pensou. Fazia-lhe muito bem estar ali nessa noite linda e admirar o vale abaixo, onde a água do lago brilhava em contraste com as colinas escuras e majestosas. Virou-se e viu que Connor havia desaparecido de vista. 0 latido dos cães estava bem distante. Ele tinha lhe dado a oportunidade perfeita para fugir. Dali, poderia seguir em qualquer direção, que talvez ele jamais a achasse. Porém, deu-se conta de que, desde o momento em que Connor sumira do outro lado da colina, sentia falta dele. Estranha sua inquietação por não tê-lo a seu lado. Sentada numa pedra na encosta da colina, ela continuou a admirar o rebanho. Foi tomada por uma sensação de liberdade jamais experimentada antes, pois, nesse momento, fazia uma escolha para si mesma, talvez a primeira em muitos anos.

Capítulo XII

Ao retornar ao topo da colina, Connor sentiu um grande alívio quando verificou que Sophie continuava no mesmo lugar. De certa forma, receava que ela fugisse. A brisa soprava em seus cabelos, espalhando caracóis dourados em volta do rosto. Agitado, o coração bateu mais depressa enquanto ele descia a pequena distância que os separava. 14


Em algum lugar do outro lado da colina os cães latiam, ocupados com sua tarefa. Três carneiros, lá no topo, observavam a cena como uma guarda de honra. O resto do rebanho pastava pelo aclive. Pacientes, algumas ovelhas amamentavam os recém-nascidos. Connor sentiu-se dominado pela emoção e, apaixonado, aproximou-se de Sophie. Pegou-a pela mão e a fez levantar-se. A noite era de uma beleza tranqüila, mas não silenciosa. A brisa ciciava e o riacho rumorejava. De longe vinha o trinar suave da batuíra e, de mais perto, o balir dos carneiros. Ele, porém, manteve-se calado enquanto a estreitava entre os braços. Curvou a cabeça e a beijou. Cedia ao anseio que havia se tornado forte demais. Com a mesma vontade de respirar o ar das montanhas e admirar as estrelas nessa noite, queria sentir seu corpo responder ao dele. Ali, longe do castelo em ruínas, da vida que levava e da que perdera, ele era apenas um pastor de ovelhas e não um salteador ou membro da rebelião com um propósito e algo para provar. Ali, era simplesmente ele mesmo. E quando estava com Sophie, sentia-se mais completo. Beijou-a e aconchegou seu rosto entre as mãos. Ela retribuiu o beijo de maneira ardente, levando-o a passar o braço por sua cintura e puxá-la para mais perto. Sophie o enlaçou pelo pescoço enquanto colava o corpo ao dele. Num esforço instintivo para mostrar a carência violenta que o dominava, ele a beijou com mais impetuosidade. Buscava o prazer e empenhava-se em proporcioná-lo. Ela entreabriu os lábios, permitindo que o beijo se aprofundasse, encostou-se mais nele e sentiu seu corpo pulsar. Com uma das mãos em sua cintura, Connor deslizou a outra do ombro até o alto dos seios, deixando-a saber sua intenção. Ao mover as pontas dos dedos, sentia cada fibra do corpo reagir ao contato. Ela inclinou a cabeça para trás, aceitando melhor o beijo, a massagem vagarosa dos lábios, a dança louca de línguas, os corpos muito juntos, mas não ainda o suficiente. Ele não a sentiu hesitar e sim o calor de sua paixão igualar-se à dele. Não trocavam palavras e nenhuma era necessária. Ela posicionou o corpo para receber melhor as carícias e passou a retribuí-las. Ao tocá-la nos seios, Connor sentiu os mamilos enrijecerem, mesmo sob as roupas. Estremeceu sob uma onda de intenso calor. Tinha de possuir muito mais, se ela permitisse. Ajoelhou-se com ela entre os braços, e depois abaixou-se mais para que se deitassem no capim macio. O vento ciciava ao passar, a distância os carneiros baliam e os cães ladravam, porém ele não ouvia nada. Um raio percorreu-lhe o corpo quando a trouxe contra ele. Com as mãos sob a manta xadrez, Sophie o acariciava, delicada mas audaciosa. Connor respirou fundo e esquivou-se um pouco. Ainda não. A vontade alucinante de senti-la, de penetrar em seu corpo e dar vazão à paixão 14


de ambos o excitava. O desejo era como uma brasa chamejante dentro dele, obrigando-o a se queimar. Os lábios colado aos dele estavam carentes, insistiam e ofertavam. O vestido de algodão que Sophie usava fechava-se na frente, o que o ajudou a desabotoá-lo com facilidade. Quase ao mesmo tempo, ela desamarrava os cordões do espartilho, da camisa e do calção, que foram removidos. Mais depressa do que Connor esperava, seu corpo surgiu macio e alvo sob o luar. Em questão de segundos, ele tirou a manta xadrez, com a qual se cobririam, e despiu-se. Deitado a seu lado, aconchegou-a entre os braços, o toque de pele na pele, cálido e milagroso. Ele fechou os olhos, grato por Sophie estar ali e não no castelo onde a tinha mantido confinada, nem na cama que pertencera à família. Ali nas colinas, estavam a sós e eram realmente eles mesmos. Escolhas poderiam ser feitas e paixões desencadeadas que talvez nunca fossem reveladas no castelo em ruínas com seus sonhos perdidos e esperanças acorrentadas. A necessidade de possuí-la, de torná-la sua, era irresistível, Pois Sophie não protestava. Com seus beijos e carícias, ela mostrava que queria tanto quanto ele. O coração exultava e o instigava a retribuir o que ela lhe proporcionava, a meiguice o deleite inesperado e algo mais que ele não saberia definir. E queria lhe confessar o quanto lamentava por haver, talvez, provocado a perda do seu irmão. E ainda por ter lhe causado tristeza, medo e sofrimento quando desejava apenas protegê-la, cuidar da sua segurança e cumprir a promessa feita. Tocou seus lábios com a ponta da língua e ela os entreabriu, aumentando-lhe o desejo. Percorreu as mãos por seu corpo nu, encantando-se com a pele macia, as curvas bem-feitas e a perfeição dos seios. Sentiu-a tão ansiosa quanto ele. A respiração de ambos estava entrecortada. Connor afastou-se um pouco, apoiou a testa na sua e forçou-se a falar, ciente de que algo precisava ser esclarecido: — Se vamos resguardar a santidade deste casamento, garantir a sua herança e a prosperidade do seu clã... — Então, devemos seguir em frente — Sophie o interrompeu para ele. — Se você quiser — ele murmurou, mal podendo pensar, pois o corpo pulsava e o coração trovejava. — Sim, Connor — ela sussurrou a aprovação que era necessária, Acariciou-a nos seios e ela vergou a cabeça para trás como se implorasse ser beijada ao longo do pescoço. Connor percebeu que Sophie confiava nele inteiramente, pelo menos nessa união. Baixou a cabeça e satisfez-lhe a vontade com beijos úmidos pelo pescoço até encontrar os seios. Com a língua, excitou os mamilos, fazendo-a arfar e arquear o corpo. De leve, ele desceu as mãos pelo seu corpo. Sophie era tão delicada e macia, mas tesa e firme na barriga, sob a cintura delgada. Ela o acariciou nas costas. Desceu uma das mãos até a nádega, deslizou-a 14


sobre a coxa e, ao encontrá-lo, envolveu-o firmemente. Connor prendeu a respiração por um momento, sentindo o membro pulsar, insistente. Beijou-a nos seios, enquanto ela, com a mão livre, embrenhava os dedos nos seus cabelos, provocando-lhe arrepios pelo corpo inteiro. Com um dos joelhos ela lhe prensou a virilha, recuou e repetiu os movimentos numa súplica ritmada. Ao mesmo tempo, a mão repetia os movimentos no membro. Connor incendiava-se e não podia mais pensar. Baixou a mão e encontrou sua entrada úmida e pronta para recebê-lo. Trêmula, Sophie gemeu e arqueou o corpo, oferecendo-se. Sem resistir, ele iniciou a penetração bem devagar. Porém, queria muito que Sophie alcançasse o êxtase. Com as mãos firmadas na terra dessas colinas, das quais tantas vezes tirava energia, ergueu o corpo e a admirou. Sophie era lindíssima, a criatura mais adorável que ele jamais teria imaginado e, com sua paixão, inflamava-a. Nesse momento, a carência de ambos era idêntica. Ao acariciar-lhe o membro, ela fizera a escolha por si mesma. E agora o envolvia como uma luva com seu corpo quente. O poder do desejo magnífico o dominou. Abraçou-a de encontro ao corpo e sentiu-a mexer-se no mesmo ritmo dos impulsos dele. Beijou-a com paixão desenfreada. Seus gemidos bafados misturando-se aos dele. Então a força abateu, e a paz tomou seu lugar como o ar Purificado após a chuva. Saciada, abraçando-o pela cintura e a cabeça apoiada no ombro dele, Sophie o beijava de leve no lábios. Ele retribuía a carícia com um resquício da ânsia sentida. Descobriu que não era luxúria, mas algo diferente, duradouro e acalentador. Virou-se de lado com ela entre os braços, sob a manta xadrez. Ela o abraçava com carinho. Ele nunca se sentira tão bem, completo, sem desejar nada, envolto pelo amor. Sophie pertencia aos braços dele. Fazia-o sentir-se no lar sonhado. Connor fechou os olhos, aconchegou-a contra ele, e viveu aquele momento de silêncio e paz. Então, adormeceu. Tremendo de frio, Connor acordou com o balir de um carneiro e o prensar insistente de um focinho no pé. Ergueu a cabeça e percebeu que muitas horas tinham se passado, pois a luz pálida do alvorecer já tingia o céu atrás das colinas. Levantou mais a cabeça, tomando cuidado para não acordar Sophie, que dormia sobre o braço estendido dele. Uma ovelha empurrava seu pé para comer o capim sob ele. Dois carneirinhos estavam ao seu lado. Connor dobrou o joelho para que a ovelha alcançasse o alimento. Os cachorros dormiam, aconchegados uns aos outros. Por Deus, fazia muito frio, ele reconheceu, tremendo. Sophie dormia ao lado, mas ele deu-se conta de que, durante o sono, ela se virara, puxando quase toda a manta xadrez sobre o corpo. Nu, com as costas e ombros 14


descobertos e sob o vento frio do amanhecer, Connor sentia-se enregelado. Ajeitou a manta sobre os dois, Sophie continuava dormindo. Ele sorriu e virou-se de lado para encostar a frente do corpo nas costas de Sophie. Enquanto se aquecia e os cachorros, mesmo dormindo, vigiavam os carneiros, ele ouviu o piar distante e repetitivo de um cuco. Fechou os olhos para dormir apenas mais um pouquinho. Afinal, esta era a ocasião de maior contentamento que ele já havia experimentado. — Mais de uma dúzia de ovos hoje cedo quando verifiquei os ninhos! — Mary contou a Sophie na manhã seguinte. — A senhora pode achar estranho, mas as galinhas, todas juntas, não punham mais do que uns dois ovos, dia sim, dia não. Eu até já estava pensando em fazer canja com elas. Sophie espiou a cesta e exclamou: — Que maravilha! O que você vai fazer com tantos ovos? — Tenho uma boa receita para usá-los. Kinnoull adora, mas nunca temos ovos suficientes. É um pudim de farinha de aveia. Leva creme de leite, uma pitada de sal, açúcar, canela em pó e muitos ovos. Fica bem firme e pode ser cortado como bolo. Ele vai ficar contente quando vir o pudim na mesa. Sophie sorriu. Ainda sentia os efeitos de sua aventura com Connor na noite anterior. Os músculos estavam meio doloridos por causa do amor vivido como também do frio, mas não se arrependia. Depois do que Connor tinha lhe contado sobre o irmão, preferira ficar sozinha. Mas ele estava certo ao levá-la as colinas, onde a sensação de liberdade e a entrega ao amor tinham sido muito mais reconfortantes do que a noite a sós com os pensamentos, a tristeza e as preocupações. Necessitara dos braços dele. Precisava dele nesse momento, refletiu, melancólica. O pudim parece delicioso. Mas, e quanto ao creme? Connor disse que as vacas não estão dando muito leite — comentou com Mary. — Temos creme também! Fiona foi muito generosa esta manhã. Parece que está acontecendo um milagre em Glendoon! E a senhora viu como a horta está viçosa? Verdadeiro mistério! — Mary comentou enquanto pegava os ingredientes para o pudim. — Ouvi contar que a senhora ficou conhecendo Fiona, — Fiquei, sim. Kinnoull parece que gosta muito dela. — É verdade, e por isso a protege bem. — Connor tem medo de que levem Fiona em retaliação aos roubos de gado que ele pratica? — Ninguém se atreveria a pegar um animal de Glendoon. Ele a trata bem porque Fiona é mais um bicho de estimação do que uma vaca leiteira. Kinnoull já tentou cruzá-la algumas vezes com touros da região, mas quase nunca deu certo. Eu já disse que a pobre devia ser deixada em paz e ele concorda. Porém, Fiona costuma escapar pelo buraco na muralha lá atrás para ir ao encontro de um touro em outra pastagem. 14


— Isso não é bom? Vocês preferem mais vacas ou touros? — Não importa. Todo fazendeiro quer mais e é melhor reproduzi-los do que os roubar. Mas Fiona perde os bezerrinhos. É muito triste o tempo que ela sofre para parir e por nada, embora Kinnoull se esforce, cada vez, para salvar o pobrezinho. Ele fica muito deprimido com isso. Sophie a ouvia com ar pensativo. — Connor cria o gado com cuidado — murmurou. — Claro. E não gosta de roubá-lo. Aliás, ele só pega cabeças de Kinnoull, que lhe pertencem por direito. Meus bolinhos de aveia vão queimar! — Mary exclamou, correndo para tirá-los do forno. — Imagino que a senhora esteja acostumada a comer não branco, mas a farinha de trigo é rara aqui, ao passo que a aveia é farta. Quando outros alimentos escasseiam, é ela que nos sustenta. — Gosto muito de bolinhos de aveia, especialmente dos seus — Sophie afirmou. — Sabe, acho que já ouvi o fantasma do castelo. Era uma música triste e linda. Era tarde da noite ou de madrugada — acrescentou, e relanceou o olhar por Mary. — Ah, esse fantasma. A senhora deve perguntar sobre ele a Kinnoull. — Connor já viu esse fantasma? Ele nunca contou. — É o que mantém os soldados longe daqui. Eles não subirão a colina enquanto o fantasma tocar sua música no castelo — Mary afirmou com olhar matreiro e, quando riu, Sophie reconheceu o sorriso dos gêmeos nela. — Então, este castelo é mesmo mal-assombrado? — Caso seja, o pudim de farinha de aveia vai alegrar um pouco o senhor daqui. Por favor, quebre os ovos naquela tigela, querida. — Eu gostaria muito que o pudim também resolvesse os problemas dele — Sophie murmurou ao iniciar a tarefa. — Ah, eu também. Ele não goza uma vida agradável nesta ruína como na Kinnoull House. Apesar de ter trazido muitas coisas de lá, ele continua ansioso para ter um lar verdadeiro outra vez. — Ele não considera Glendoon como um lar. — É verdade, eu sei — Mary disse, e suspirou. No início da tarde, Sophie viu Roderick, que continuava a vigiá-la. Não sairia de seu lado mesmo se ela o mandasse embora. — Vamos comigo. Temos trabalho para fazer e precisamos de pá e ancinho — ela avisou. — Outra vez? Pensei que já tínhamos terminado a horta. — Sim, por enquanto. Agora, precisamos limpar o jardim e eu conto com sua ajuda — ela afirmou, e sorriu. 14


— Mas o lugar é um emaranhado horroroso. Só a hera levará um ano para ser podada e arrancada em grande parte. — Faremos mais depressa, porém teremos de pedir desculpa antes. — Pedir desculpa?! — Claro. Ela crescerá como queremos se a tratarmos com respeito. — Senhora, penso que já ficou tempo demais neste lugar — Roderick disse, e Sophie riu. — Traga uma foice também, por favor. — Foice? Não vou cortar grama. Padraig não se importa de fazer esse serviço, mas eu não gosto. — Nesse caso, peça a ele para vir também. — Padraig está nas pastagens com o gado. — Então, quando voltar — ela disse, levando-o ao jardim. Perto da parede desmoronada, levantou um pouco a saia para poder pular e Roderick estendeu a mão a fim de ajudá-la. — Ah, podemos usar também um machado e uma faca afiada de cozinha. Estou vendo galhos e trepadeiras que precisam ser podados. — Senhora, esse trabalho é impossível. — Você me ajudou a recuperar a horta, que aliás vai muito bem. E tem mais jeito para jardinagem do que imagina -— Sophie elogiou com um largo sorriso. Carrancudo, Roderick sacudiu a cabeça e foi buscar as ferramentas. Ela seguiu pelo jardim abandonado, passando por canteiros cobertos de hera. Ao se dirigir às macieiras no fundo, empurrava arbustos que prendiam suas roupas. Ficou encantada ao encontrar, perto delas, moitas de amora-preta e de framboesa. precisavam ser desbastadas e podadas com urgência, mas, mesmo assim, tinham umas frutinhas. Caso recebessem os cuidados necessários, no verão estariam produzindo bastante. Sophie conjeturou se ainda estaria em Glendoon para ver isso. Ao seguir para outra parte do velho jardim, descobriu touceiras de lilás com algumas flores perfumadas, embora pequenas. Um pouco mais adiante, viu o que devia ter sido um roseiral. Havia roseiras de trepadeira e de arbusto. Ainda tinham poucas folhas, e as hastes, cheias de espinhos, eram longas e curvas. Sinal de que as flores seriam poucas ou nenhuma. Mas com uma poda cuidadosa e adubo, Sophie achava que poderia recuperará-las. Estaria ali para vê-las florescer? Quando chegou ao ponto de onde havia iniciado a caminhada, Roderick já estava aguardando, com pá, ancinho e picareta. Embora reclamasse um pouco, ele pôs-se a trabalhar ao seu lado. Juntos, começaram a arrancar hera e mato bem como a desbastar e podar plantas que mereciam cuidados. Com isso formaram pilhas de lixo que Roderick transportaria em várias viagens de um velho carrinho de mão. 14


Muito mais tarde, Sophie endireitou o corpo e massageou as costas da cintura para baixo. Eles tinham domado a hera, arrancado mato, desimpedido parte das aléias e exposto alguns bancos. O jardim começava a ter outro aspecto, e seu desenho original já podia ser visto. Embora ainda houvesse muito para ser feito, o início era promissor. "Recompensa pelas longas horas de trabalho", ela pensou. Aguardava ansiosamente a hora em que pudesse preparar a terra dos canteiros e semear novas plantas. Sophie olhou para o céu e viu que o sol já se punha. Ao passar a mão pelo rosto deu-se conta, consternada, de que as unhas estavam imundas. E os cabelos tinham se soltado da trança e ficado tão emaranhados quanto as trepadeiras do jardim. Na verdade, ela estava suja, dolorida, exausta e feliz. Absolutamente feliz, pois as pressões a tinham deixado e dores musculares haviam substituído as esquivas do coração. O trabalho no jardim a tinha ajudado a pôr em ordem os pensamentos, deixando-os mais claros. Correu o olhar em volta e imaginou como o jardim poderia ser um dia, cheio de flores perfumadas e coloridas, com uma fonte rumorejando e passarinhos gorjeando nos galhos das árvores frutíferas. Fechou os olhos e quase pôde ver isso. Então teve certeza, sem sombra de dúvida, de que, quando o jardim florescesse e as frutas amadurecessem, queria estar ali com Connor para que admirassem tudo juntos.

Capítulo XIII

— Saighdearean ruadh — soldados vermelhos, Connor O avisou os companheiros. — Abaixem-se. Ele, Neill, Andrew e o irmão mais novo, Thomas, estavam no topo de uma colina, a cem pés acima do vale, escondidos pela escarpa acidentada. Numa reação rápida, os quatro deitaram-se de bruços sobre touceiras de urzes. Ao olhar pelas ramagens delas, Connor praguejou. — Está na hora de fazermos alguma coisa com essa estrada deles — disse enquanto observava, através da luz do anoitecer, os últimos esforços do general Wade. A estrada em si não era uma grande ameaça, refletiu, mas a ponte, sendo construída rapidamente a menos de meia milha do trecho de onde trabalhavam, era o maior perigo. — Se existe um modo de impedirmos isso, então vamos agir — Andrew declarou. Ele havia se encontrado com Connor e Neill enquanto atravessava o Glen Carran com o irmão Thomas. Este era um rapaz desengonçado, com uma barba rala, dado a 15


períodos de silêncio mal-humorado e capaz de acertar o alvo com qualquer arma disponível. Aborrecido, Connor notou que ele carregava uma pistola muito mal escondida. Com o queixo apoiado nas mãos dobradas, Connor observou mais a estrada. Reta, ela avançava até as terras de Kinnoull onde os quatro se escondiam, e atravessava o urzal para seguir o rio rumo à Kinnoull House, a distância. Acompanhava o rio em partes, mas não nas curvas. Mais de cem homens, na maioria soldados, mas também montanheses que precisavam de trabalho remunerado, dividiam-se em várias equipes. Em trechos diferentes, eles usavam pás e picaretas para remover pedras e terra, que transportavam em carrinhos de mão. Outros cavavam a base da estrada e colocavam camadas sucessivas de pedra, embaixo as maiores, depois as menores e a final de cascalho. — O general é um engenheiro e tanto — Connor comentou. — O método dele baseia-se em organização minuciosa. Mas ele não é arquiteto em relação ao desenho. Tem facilidade para matemática e a usa para construir estradas. Vê o mundo em termos de geometria, linhas e interseções, ângulos e curvas perfeitas. As Terras Altas não são geométricas. Estas montanhas e vales são tremendamente orgânicos no desenho, e cada curso d'água e ondulação da terra deveria ser respeitado até por engenheiros. Neill e Thomas o olharam como se ele fosse louco. — De fato a estrada é reta — Neill admitiu. — Wade não tem amor pela terra, por suas curvas e vales — Andrew comentou, surpreendendo Connor. — A terra é como o corpo de uma mulher. Se a tratarmos com respeito, seremos recompensados com prazer e paz. Mas, se a atacarmos sem consideração, ela transformará nossa vida num inferno. Neill concordou, resmungando, e Thomas soltou uma exclamação. __Sem dúvida — Connor disse. — Mesmo assim, o general Wade está construindo as estradas. Se uma linha reta leva as tropas dele mais depressa do Forte William ao Forte George, ou do Great Glen a Perthshire, ele não fará curvas de acordo com as da terra. __ Seja lá o que estiver em seu caminho, rocha, o lado de uma colina, mata, ele explode. Vejam aquele carro de boi lá embaixo. Está cheio de barriletes de pólvora — Neill disse. — De pólvora ou de uísque — Thomas aparteou. — Um tanto da bebida lhes faria bem. Se ficassem embriagados, poderíamos nos esgueirar até lá embaixo, pegar a pólvora e mandar estrada e ponte para o inferno com uma grande explosão — Andrew murmurou como se falasse consigo mesmo. Olhou para Connor. — Já fizemos isso antes, embora fosse de noite e não pudéssemos ser vistos, além de as árvores no Great Glen nos esconderem. E não havia soldados por perto. — Vão levar os barriletes para o depósito no acampamento de Wade, ao norte daqui. Por isso já atrelaram o boi ao carro. Está na hora de nos decidirmos — Neill opinou. 15


— Está bem. Acho que deveríamos explodir a ponte e não a estrada — Connor sugeriu. — A ponte? Agora entendo por que você me trouxe para cá quando o encontrei com Neill — Andrew disse. — Eu poderia pegar a pólvora para vocês depois de acabar com aqueles soldados — Thomas garantiu, sacando a pistola. Connor segurou-lhe o pulso antes que ele levantasse a arma. — Thomas MacPherson, sei que sua mãe não criou idiotas. — Exatamente — Andrew concordou, tirando a pistola do irmão. — Eu poderia pegar a pólvora para vocês — Thomas insistiu. — Deixem que eu desça lá e faça isso. Vocês poderão explodir a ponte à noite quando os soldados vermelhos tiverem ido embora. Connor trocou um olhar com Neill e murmurou: — Poderíamos. — Mas o rapaz não vai pegar a pólvora sozinho — Neill declarou. — Não devemos esperar muito para ir — Thomas disse. — Esperaremos o tempo que for necessário e desceremos a colina de maneira segura e não à vista deles — Connor asseverou. — Se destruirmos as fundações, eles terão de reconstruir a ponte, acho — Neill conjeturou. Do ponto vantajoso no alto da colina, Connor podia ver bem a estrutura da ponte, mas ainda faltava um tanto para ser terminada. A pavimentação não havia sido feita, e apenas tábuas permitiam que os homens trabalhassem em cima. O rio era mais estreito naquele trecho. Uma ponte simples de pedra seria suficiente e mais útil em tempo de paz, ele refletiu. Aliás, umas duas tinham sido erguidas naquele mesmo lugar, mas as enchentes as haviam levado. Com certeza, o general Wade ignorava esse fato. Essa ficaria pronta depressa demais, porém, antes que fosse derrubada pelas águas, muitas tropas passariam por ela, aumentando a invasão das Terras Altas. — É verdade — Connor concordou. — Destruir a ponte quase pronta os levaria a procurar outro lugar para recomeçar o trabalho. — E não tão perto de Kinnoull — Neill acrescentou, sorrindo. — Essa é a minha esperança. Vamos aguardar para explodi-la na hora mais proveitosa. — Pelo jeito, não vai demorar muito. Mas como agiremos? —Andrew indagou. — Tarde da noite, às escondidas. Eu me incumbirei disso — Thomas respondeu. — De jeito nenhum — Andrew afirmou. — Teremos de colocar a pólvora nas 15


fendas das pedras. Mas como? Abrir os morteiros e enfiá-los lá? — Não ficariam. Entendo de pólvora. Será preciso colocá-la em alguma coisa que a comprima ou não explodirá — Thomas explicou. — Ele está certo. Alguma coisa para a conter e concentrar. Papel pergaminho e couro não servem. Canecas, talvez—disse Connor. — E aqueles canecões de estanho e com tampas que você tem em Glendoon? — Neill sugeriu. — Daquele jogo alemão de minha mãe? E bem capaz que sirvam — Connor respondeu. — Enfiaremos os morteiros entre as pedras. Vamos precisar de formões. Thomas, você nos ajudará se puder manter a cabeça fria, rapaz — Neill esclareceu. — Poderei, sim. — Estopins — Connor acrescentou. — Barbante bem resistente, um rolo grande. Será necessário encerar bem, para que não fique úmido perto do rio. Nós todos teremos de ficar muito longe da ponte quando ela explodir. — Vou pedir para Mary nos ajudar com a cera — Neill prometeu. — O que é aquilo? Um canhão pequeno? — Thomas murmurou. — Não, é o aparelho que usam para comparar o terreno com a geometria deles — Neill explicou. — Então, para que querem a pólvora? A terra lá é plana — o rapaz quis saber. — Olhe adiante do local onde estão construindo a ponte — Connor apontou. — Está vendo a colina perto do lugar em que o rio faz uma curva fechada? Eles vão explodila. — Soldados! — Andrew rosnou raivoso, apontando para a esquerda, onde outro grupo deles galgava a colina ao lado. Estavam armados com mosquetes e baionetas. Um deles parou e reuniu os outros. Conferenciaram por um instante e, então, o primeiro apontou. Com os mosquetes assestados, viraram-se. Connor sentiu um calafrio. — Fomos descobertos. Vamos descer pelo outro lado e fugir. Depressa! Empurrou Thomas pelo declive, Andrew saltou atrás dele, seguido por Neill. Só então Connor, abaixado, escorregou pela descida e, assim que pôde, ficou em pé para correr. De propósito, bem atrás dos companheiros, segura o terreno acidentado da colina. Só quando teve certeza de que estavam em segurança, voltou e se escondeu na garganta escura entre as encostas das duas colinas. Grudado ao paredão rochoso, inclinou-se para observar a estrada. Dois soldados carregavam o carro de boi, em que estava a pólvora, com as 15


ferramentas e suprimentos. Não deixariam nada ali durante a noite e trabalhavam depressa, pois já escurecia. Como quisesse saber que direção seguiriam, Connor continuou a observá-los. Ao ouvir um ruído, virou-se e viu Thomas vir correndo em sua direção. Mas o rapaz não parou e continuou descendo rumo à estrada. Logo atrás, vinha Andrew, que Connor conseguiu agarrar. — Cuidarei disto — sibilou, e começou a deslizar colina abaixo. Quando já se aproximava de Thomas, o rapaz olhou em volta e pôs-se a correr mais depressa. Connor praguejou e também olhou em volta à procura dos soldados vermelhos. Mas eles continuavam do outro lado da colina onde tinham visto os quatro. Nenhum dos trabalhadores e dos oficiais olhava para cima para descobrir montanheses. Ainda não, Connor refletiu. — Thomas! — sibilou, mas o rapaz o ignorou. Concentrado na missão absurda, Thomas continuou correndo colina abaixo. Desesperado, Connor queria ter uma corda para laçá-lo e o colocar em segurança. Em poucos momentos, Thomas alcançava o nível da estrada. As sombras da noite avançavam rapidamente e os soldados continuavam ocupados em recolher o equipamento. — Thomas, volte! — Connor ordenou de uma saliência acima dele. Olhou por sobre o ombro e viu Andrew também descendo a colina. Fez gestos para voltar. Ao mesmo tempo, sacou a Pistola, a bala única pronta para ser atirada. Praguejou outra vez, mas preparado para apertar o gatilho e defender o rapaz. Rápida e furtivamente, Thomas foi até o carro de boi e subiu no eixo traseiro. Pegou um barrilete de pólvora, pulou para o chão e correu rumo à colina como se fosse perseguido pelo demônio. Logo estava. Os soldados o viram e gritaram. Uns poucos começaram a correr, mas nenhum conseguiu alcançar o rapaz, que galgava a colina abraçado ao barrilete de madeira. Um dos soldados assestou o mosquete. Connor sabia que se o tiro não atingisse o rapaz e sim o barrilete, seu primo jovem e tolo voaria em pedaços pelo ar. Ergueu-se bem ereto e apontou a pistola. Um tiro ecoou no ar, mas não de sua arma, e o soldado tombou. Connor virou-se para trás e viu Andrew com a pistola fumegando. Thomas, ainda correndo colina acima, chegava à parte mais alta do aclive. Com o coração saindo pela boca, Connor o seguiu. A certa altura olhou para trás, a pistola pronta para atirar. Mais soldados os perseguiam, gritando. Um assestou o mosquete. Já perto de Thomas, Connor posicionou o corpo de forma a proteger-lhe as costas. 15


Um tiro de mosquete sibilou no ar e Connor sentiu sua picada aguda no lado do corpo. O impacto o fez dobrar um dos joelhos, mas conseguiu endireitar a perna e correr em direção da garganta estreita entre as duas colinas, onde os primos haviam desaparecido. Neill estava lá e, com mão firme, o puxou para as sombras. — Eu a corrompi! A senhora está completamente estragada e Connor vai cortar meu pescoço — Roderick choramingou. Sophie riu e baixou suas últimas cartas. — Acredito que eu esteja mesmo. — A senhora tem um dom inato para ganhar — Roderick disse, balançando a cabeça. — Conseguiu me bater em três partidas seguidas de Ombre e, antes disso, em duas de Primero. — Em três também de Primero — ela o corrigiu. — Por que Connor se aborreceria com você? — Ensinei a esposa linda dele a jogar baralho. — Duvido que se importe. Aliás, ele nem chegou ainda. — Kinnoull se importaria, sim. Castigo merecido por não aparecer outra vez para jantar — o rapaz garantiu. Rindo, Sophie olhou para a porta do salão, onde jogavam baralho à luz de vela, na esperança de ver Connor entrar. Já tinha feito isso várias vezes. Uma inquietação estranha a perturbava. Não conseguia se livrar da impressão de que ele corria perigo ou talvez houvesse sofrido algum mal. — A estas horas ele já deveria ter voltado. Você acha que aconteceu alguma coisa com ele? Será que foi se encontrar com Neill ou Andrew? — ela perguntou. — Kinnoull está bem, aliás, como sempre. Chegará quando puder — Roderick respondeu, evasivo. — Terá ido tomar parte num ataque ou, quem sabe, caçar? — Sophie insistiu, mas o rapaz apenas deu de ombros. Talvez sua inquietação não tivesse fundamento, ela refletiu. Connor apenas não queria voltar para a esposa. Enquanto embaralhava as cartas, Roderick indagou: — A senhora, de fato, nunca havia jogado antes? No convento não tínhamos permissão, e meus pais, em-"Ora apreciassem jogar baralho, não achavam certo ensinar os filhos antes de se tornarem adultos. Mas estou gostando muito Obrigada por me ensinar. — O que mais eu poderia fazer? Tenho ordens para vigiá-la e é um horror ficar em pé no pátio, faça sol ou chova, para impedir que a senhora se aproxime do portão. Sophie sorriu e puxou uma pilha de pedrinhas para seu lado. 15


— Já tenho uma fortuna. Ainda não sei o que fazer com ela. — Use as pedrinhas para tampar uma das brechas nas paredes do castelo e impedir a passagem do vento — Roderick sugeriu. Os dois riram e Sophie disse: — Vou guardá-las para nossa próxima aula de corrupção social. — Ora, Kinnoull poderá ensiná-la muito melhor do que eu — o rapaz disse com olhar malicioso. — Mas terei muito prazer em jogar baralho a qualquer hora. Se eu tivesse dinheiro, a senhora teria esvaziado meus bolsos. Vou jogar com mais atenção na próxima vez. Como a senhora conseguiu ganhar tanto? — Sangue de fada — Sophie respondeu sem pensar. Sério, Roderick a fitou. — Dizem que as MacCarran têm esse sangue. Sua sorte no jogo é graças a ele? É fácil acreditar que exista uma certa magia na senhora. Sua aparência é de uma fada rainha, linda e delicada. — Obrigada. Existe um traço de sangue de fada em minha família. Pelo menos, dizem. —A senhora herdou a magia das MacCarran? Ouvi histórias sobre isso, mas não sei muito a esse respeito. — Talvez eu tenha um pouco — ela respondeu. — Dizem também que cada MacCarran que a herda tem uma certa habilidade mágica. Qual é a sua? Baralho, aposto, ou outro tipo de jogo. Eu a levarei a Londres para fazer minha fortuna. — Nada grandioso. Às vezes posso fazer coisas crescerem. — Mesmo? Então que tal me deixar mais alto? Ou melhor, mais atraente para as mocinhas? — ele indagou com um sorriso matreiro. — Pare! — ela exclamou, tentando não rir. Roderick a fazia lembrar-se do irmão, percebeu com uma ponta de tristeza. — Não, eu me refiro a flores, hortaliças, plantas em geral. Contudo, a natureza as faz crescer de qualquer forma, sendo assim, não se trata de habilidade muito mágica. Tentei explicar isso a Kinnoull e ele se esforçou para entender. — Ele não acredita muito em fadas, fantasmas e coisas assim. — Connor viu o fantasma daqui. — Não diga! — Roderick exclamou, perplexo.— Ah, sim, aquele — disse, rindo. — Mas explique uma coisa. É por causa da sua habilidade que a senhora gosta de mexer na terra? Já lhe dissemos que pouca coisa cresce em Glendoon. — Será? Por quê? — Existe uma maldição neste lugar. Muito tempo atrás, quando um dos primeiros senhores de Glendoon e sua esposa amada morreram, alguém rogou uma praga terrível no castelo. Nada vingará aqui, dizem, até que a magia retorne. Mas nin guém sabe o que 15


isso significa — Roderick contou, e deu de ombros. — Connor afirma que é tolice. Segundo ele, nada viceja aqui porque o castelo está sobre uma rocha sólida. Portanto, não devemos esperar nada de nossos esforços a não ser mato hera e plantas raquíticas, ele recomenda. Sophie ouviu a porta do salão abrir e levantou o olhar depressa na esperança de ver Connor. Mas era Mary quem entrava, sorrindo. — Enchi a tina para a senhora — ela avisou. — Achei que gostaria de tomar um banho depois de passar o dia trabalhando no jardim. Trouxe um pedaço do meu sabão, que faço com alfazema e pétalas de rosas — acrescentou, com orgulho. — Obrigada, Mary — Sophie agradeceu. Ela havia lavado as mãos na cozinha, mas estava com a sensação de que a sujeira do jardim grudara no corpo inteiro. — Como a senhora foi criada nas Terras Altas, imaginei que tem nosso hábito de se manter limpa, ao contrário dos franceses. — Obrigada — Sophie repetiu, tentando não rir. — A senhora pode ir pegar toalhas limpas no armário lá do quarto e o que mais precisar. A tina está na cozinha, que é mais quente. Ficaremos aqui enquanto a senhora toma banho. — Já vou subir e descer logo. Roderick, obrigada pela aula de jogos — disse da porta. Ele sorriu e acenou. Sophie subiu ao quarto para pegar toalhas e roupas limpas. De fato tinha o hábito montanhês de limpeza, como Mary o chamava. As costas e os ombros estavam doloridos por causa do trabalho no jardim, e a perspectiva de um banho quente e perfumado era muito tentadora. Connor quase teve de brigar com Neill, que insistia em passar pelo portão a fim de ajudá-lo. __Diabos, Neill, me deixe em paz — resmungou. Finalmente conseguiu convencê-lo de que podia entrar sozinho. — Não foi nada — insistiu, embora mantivesse a mão no pano sobre o ferimento. — Idiota desgraçado! Eu vi bastante sangue — argumentou Neill. Mary e Roderick chegaram apressados ao portão, bem como os cães. Enquanto Connor passava a mão na cabeça de Colla e os outros pulavam em volta dele, Neill contou à mulher e ao filho o que tinha acontecido. Mary ofereceu-se para cuidar do ferimento, mas Connor não aceitou. — Estou bem. Vão para casa, pois já é tarde. Um bom sono vai cicatrizar isto mais depressa do que ataduras, poções e as boas intenções dos Murray. — Deixe sua esposa cuidar de você. Ela o está esperando. Ataduras e ungüento 15


ficam na prateleira da cozinha. Uísque também — Mary explicou. — Muito bem — Connor retrucou. Não planejava revelar o ocorrido a Sophie, pois não queria alarmá-la. Dispensava ser o alvo de nervosismo feminino. Se ela desejasse lhe proporcionar algo... Bem, encontraria energia para aquilo. Talvez na manhã seguinte, retificou. Fechou o quando com os Murray saíram, embora eles ainda falassem, e o trancou. Sentia-se aliviado por se ver só, porém, mal suportava a dor. Desde criança, detestava ser tratado com cuidados exagerados e, depois de adulto, esforçava-se para não admitir que precisasse de ajuda ou que estivesse fraco e, muito menos, que uma maldita bala inglesa o tivesse atingido. Com a mão apertada sobre o ferimento, atravessou o pátio na escuridão. Só Deus sabia como havia subido a última colina. mas já estava bem perto da cama. Talvez dormisse no chão quente da cozinha. Quando chegou ao pátio de trás, dirigiu-se ao retângulo de luz formado pela porta da cozinha. Cambaleou um pouco ao entrar. Chamas baixas crepitavam na lareira e, na frente dela, estava a tina de madeira já cheia de água fumegante. Um perfume de flores o envolveu. Normalmente, Connor tomava um banho rápido na água fria de um lago ou de um rio. Como todo montanhês, ele preferia a limpeza e não a considerava prejudicial à saúde. A tina era trazida para a cozinha nas noites frias de inverno. Mary devia ter preparado esse banho para Sophie, e só ia jogar fora a água na manhã seguinte. Pois ele ia aproveitá-la. Precisava mesmo livrar-se da sujeira, do sangue e da exaustão. Antes, foi até a prateleira pegar as ataduras e o ungüento. Também colocou uísque numa caneca de estanho e tomou um bom gole. Então, levou tudo para perto da tina. Ao experimentar a água, verificou que não estava tão quente quanto gostava. Mas Mary tinha deixado um balde cheio no chão da lareira. Quando o ergueu para acrescentar a água quente ao banho, fez uma careta de dor. Continuou a fazer muitas enquanto, curvado, descalçava botas e meias. Depois, para se despir. Nu e diante da luz do fogo, tirou o pano do ferimento e o examinou bem. A bala tinha cortado a pele e a carne, mas saíra um pouco adiante. Entrou na água, sentouse e gemeu. A tina não era muito grande. Encolheu os joelhos e a água lhe cobriu o peito. O ferimento ardeu muito no início, mas felizmente melhorou aos poucos. Connor suspirou e fechou os olhos. Ao dar por falta da corrente com o pingente de cristal, Sophie lembrou-se de tê-la posto no chão, ao lado da tina, antes de entrar na água. Precisava ir buscá-la, decidiu. Pegou a lanterna e saiu para o corredor, cujas pedras do chão lhe provocaram um calafrio, pois estava descalça. Usava uma camisola volumosa de seda adamascada rosa e mangas compridas sobre a roupa de baixo. Havia tomado as peças emprestadas da 15


arca da mãe de Connor, pois não teria nada limpo para vestir até que ele fosse buscar seus pertences em Duncrieff. Ou ela fosse embora do castelo Glendoon. Isso, sabia, poderia muito bem acontecer. Quando entrou na cozinha imersa na luz bruxuleante, Sophie foi logo para perto da tina. Tinha o olhar no chão à procura da corrente com o pingente de cristal. Ao ouvir barulho de água, ergueu depressa o olhar. Viu a cabeça escura, os ombros largos e a expressão perscrutadora de Connor. — Oh! — exclamou e o observou por um instante, o tempo suficiente para ver que ele estava nu e para admirar-lhe o corpo magnífico. — Ah, sra. MacPherson. Desceu para se juntar a mim? — Já tomei banho — Sophie respondeu em voz fria. Queria fugir dali depressa, mas forçou-se a ficar e encarar o olhar atrevido dele. — Seus cabelos estão molhados. Parecem ouro escuro. O elogio e a atenção inesperados a enterneceram. A voz Profunda e suave repercutiu em seu corpo inteiro. Calada, ela tocou os cabelos. O coração disparava enquanto o fitava. Connor era uma visão esplêndida de pujança pura, de beleza vigorosa. De repente, deu-se conta da intensidade com que o admirava e desviou o olhar depressa. — Deixei minha corrente aqui e vim procurá-la — disse enquanto se ajoelhava e começava a passar a mão no chão. — Mas não a estou encontrando. Connor esticou o braço para fora da tina, ajudando-a a procurar. A mão dele roçou a barra da camisola e seu pé descalço. Embora leve e acidental, o contato lhe pareceu de fogo. Então, ele pousou a mão em suas costas por um segundo, quase como uma carícia. Ela sentiu o calor através da seda. — Onde estão Mary e Roderick? — Sophie perguntou. — Eu os mandei para casa. — Ah — ela murmurou, as batidas do coração redobrando. Estavam sozinhos e Connor nu, bem perto. Ela se via incapaz de afastar o olhar. Sob a luz dourada do fogo, ele era todo músculos, vigor, com pêlos escuros no peito e a barba por fazer sombreando-lhe o queixo. O rosto possuía uma beleza viril, olhos brilhantes e lábios de curvas suaves. Lembrando-se da meiguice e do poder dos beijos dele, Sophie prendeu a respiração. Connor a olhava em silêncio. Os olhos estavam muito verdes sob a luz do fogo. Ela imaginou que pensamentos os deixavam tão ardentes. — Você ficou fora muito tempo. Eu me preocupei. Por alguma razão, tinha a sensação de que algum mal havia lhe acontecido. Mas você está bem — Sophie concluiu em tom de alívio. — Continuo inteiro.

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Afundou mais na água, encostou a cabeça na borda da tina fechou os olhos enquanto suspirava. Ela o ouviu ranger os dentes também. __Alguma coisa errada? — indagou. __Cansaço — Connor respondeu sem abrir os olhos. Sophie voltou a olhar para o chão à procura do cristal. Viu um brilho leve e o encontrou. Ajoelhada, tentou fechar a corrente em volta do pescoço, mas o gancho era muito pequeno. Impaciente, reclamou: — Não consigo. Curioso, Connor abriu os olhos e disse: — Chegue mais perto e vire-se de costas que eu a ajudo. Ela obedeceu e sentiu seus dedos no pescoço. Tão logo prendeu a corrente, ele massageou sua nuca. A carícia simples era divina. Sophie deixou que ele continuasse, pois aliviava sua tensão. Os dedos quentes e úmidos, além de exalar um odor delicioso, provocavam-lhe arrepios de prazer. Ele massageou as últimas vértebras da coluna e, depois, as outras ao longo das costas, amainando a rigidez que ela nem imaginava ter. — Hum! — murmurou. — Gostoso? — Nem diga! — ela respondeu, sabendo como isso poderia terminar. "Será que se entregaria outra vez voluntariamente?", indagou-se. Sem sombra de dúvida, embora sentisse medo. Sua vontade de viver aventuras tinha acabado. Em lugar dela, existia o anseio de sentir as carícias de Connor em seu corpo inteiro e de recebê-lo dentro dele. Também queria descobrir o espírito meigo e nobre que esse homem escondia. — Sophie... — ele murmurou ao pegar seu braço. Acariciada pela voz aveludada que pronunciava seu nome de maneira tão íntima, ela sentiu-se quase amada. — Sophie... — Connor repetiu e a fitou. — Preciso de você. — Mesmo? — ela balbuciou com o coração disparado. Ele soltou seu braço e sentou-se mais para a frente na tina. Foi então que Sophie viu a mancha de sangue na água e o corte no lado do corpo dele, um pouco abaixo das costelas. — Connor! — Não é nada, só que dói muito. Eu mesmo ia fazer o curativo, mas já que você está aqui poderá me ajudar. As ataduras e o ungüento estão ali no banco. Sophie levantou o braço dele para ver melhor. O ferimento não era profundo, apesar de feio a ponto de fazê-la estremecer. E mais ainda em comparação com o torso 16


magro e musculo-so. Porém, quanto mais o examinava, menos assustada ficava. Tocou-o de leve, molhando a manga da camisola. Não se importou. — Como isso aconteceu? — Um tiro de pistola — Connor respondeu. Mil perguntas, comentários e reprimendas lhe ocorreram, mas o bom senso a impediu de falar. Apenas o fitou. — Moça esplêndida! — ele murmurou. — Deixe olhar melhor — Sophie pediu. Ele pôs o braço sobre a borda da tina, dando-lhe a chance de examinar o ferimento mais de perto. — O corte precisa levar uns pontos. Não sei se serei capaz de fazer isso — ela disse depois de uns instantes. — Você sabe bordar? Caso não saiba, prefiro que não aprenda em mim — Connor disse numa voz arrastada. — É um corte pequeno. A bala passou em vez de penetrar no fundo. __Uma grande sorte. Deus e os anjos o salvaram para alguma coisa. "Para mim", ela pensou, mas não disse. — Pelo menos não fui castigado por fazer amor com uma freira. Veja bem, menina, as beiradas do corte quase se juntam. Se as ataduras ficarem apertadas e eu me comportar bem por uns dois dias, o corte fechará. Os olhos de Sophie brilharam. — E você será capaz de se comportar bem, Connor MacPherson?

Capítulo XIV

Não sentado aqui desse jeito com você — Connor murmurou. Estendeu a mão e afastou seus cabelos úmidos da testa. Sophie fechou os olhos e suspirou. Ao senti-lo aconchegar seu rosto entre as mãos, abriu os olhos. — Não! Não devemos. Você precisa de cuidados. Está sangrando. Deixe-me pegar as ataduras. — Quietinha e venha aqui — ele disse, puxando-a para mais perto e, ao mesmo tempo, escorregando em sua direção. 16


Uma vontade irresistível o dominava, embora pudesse ser tolice. Ele a queria entre os braços, tocá-la. Ela inclinou a cabeça, roçou o nariz com o dele e ergueu-lhe o queixo para que os lábios se encontrassem. O beijo começou suave, bocas acariciando-se, e tornou-se numa sucessão deles, cada um mais ardente do que o outro. Os lábios dele mexiam-se sob os seus enquanto os dedos embrenhavam-se em seus cabelos ainda úmidos. Ele massageou-lhe a cabeça e sentiu arrepios pelo corpo inteiro. Sophie gemeu, inclinou-se sobre ele e quase caiu na água. Com as mãos sob seus braços, Connor a puxou para dentro da tina e a sentou no colo. O ferimento protestou, mas a água quente logo aliviou a dor. Aconchegou-a entre os braços, suas nádegas aninhadas entre as pernas abertas dele. Sophie abraçou-o pelo pescoço, aumentando-lhe o desejo. Sua boca se abriu, le as línguas se uniram. Connor nunca havia sentido uma carência tão insistente e forte, que afastava a racionalidade para dar lugar à paixão. Ele queria isso ali e já, embora não fizesse sentido. Achava que Sophie também queria, e isso fazia menos sentido ainda. As mãos dele enfiaram-se sob a camisola molhada para tocar sua pele e a incrível maciez de seus seios. Ela gemeu outra vez quando os dedos excitaram os mamilos. Sentia-se bela, molhada, delicada, louca. Os beijos continuavam ardentes. A água os envolvia e a camisola já estava encharcada, porém, ela não se importava. Para Connor, entretanto, a peça se interpunha entre eles. Puxou-a e, com algum esforço, conseguiu removê-la. Restava o calção, que também foi tirado e jogado ao chão junto com a camisola. A sensação do contato de seus seios nus, dos mamilos delicados, contra o peito quase o fez perder o fôlego. Acariciou-os e sentiu a excitação crescer. Sophie arqueou o corpo contra ele e gemeu numa demonstração de desejo. Ao mesmo tempo, ela retribuía as carícias. Depois de tocá-lo nos ombros, deslizou a mão pelo lado bom dele até o quadril. Ele sentiu-se latejar e quase pulou quando seus dedos o encontraram. Enquanto o beijava na boca, Sophie mexeu-se no colo dele. Connor não conteve um gemido rouco e profundo. Um balde de água fria não a teria parado mais depressa. Endireitou o corpo e soltou-se. — Deus misericordioso, sinto muitíssimo! — ela exclamou, e saiu da tina. Pegou a camisola molhada, cobriu-se e ajoelhou-se perto dele. — Por favor, me perdoe. — Pelo quê? — ele indagou com o braço sobre o ferimento para aplacar a dor. Infelizmente, não podia fazer nada com o desconforto latejante que a esposa afoita tinha provocado. Estava completamente excitado e acima da superfície da água. Com uma exclamação abafada, Sophie atirou a camisola sobre ele. Connor riu e 16


disse: — Chega, eu sei. — Acariciou-a no rosto e no alto dos seios. — Meu Deus, você é uma delícia para mim, menina, como uísque, creme e mel juntos. Não posso resistir nem ter o bastante. Sou eu quem deveria pedir desculpa. Sentou-se e pegou sua mão, que beijou na palma. Sophie estremeceu e ele sentiu-se mais excitado ainda. — Não posso ter o bastante — repetiu ao levantar-se e, ao mesmo tempo, puxála pela mão para que se erguesse também. Admirou-a. Sua silhueta era magnífica com curvas e elevações perfeitas, esguia e exuberante ao mesmo tempo. Saiu da tina e a abraçou de encontro ao corpo. Enfiou a coxa entre as suas e roçou aquele ninho feminino tão macio. Sentiu-se incendiar. — Seu ferimento... vai piorar — ela balbuciou. Empurrou-o um pouco, afastou-se e atirou a camisola, molhada e fria, onde, ela supôs, precisava de uma coberta... e de algum alívio. Então, Sophie o faria esperar. Bem, um dos dois tinha um pouco de bom senso, ele refletiu. Olhou para o ferimento e viu que o sangue escorria. Com a palma da mão, tapou-o. Não era profundo e sério, mas muito dolorido e incômodo. Ainda mais nesse momento. — Pegue as ataduras e vamos cuidar disto — ele disse. Porém, abraçou-a outra vez, pois o corpo dele tinha sido feito para servir ao seu como a nenhum outro que já houvesse conhecido. Suas proporções ajustavam-se perfeitamente a ele. Curvou a cabeça e abriu a boca com a pressão de um único beijo. Ele não sabia quanto mais suportaria. —Isto é loucura. O que você está fazendo? — ela balbuciou. — Se você não sabe... — Só sei que você precisa de um curativo já. — Preciso mais do que um curativo, mulher. Já. Sophie soltou-se e recuou um passo. Connor adorava sua nudez e ela parecia não se importar em ser observada. O reflexo do fogo fazia sua pele brilhar. O olhar dele percorreua da cabeça aos pés com a mesma avidez que a boca e o corpo ansiavam fazer. Ela era graciosa e linda. O poder e o fascínio do momento o assombravam. Mas Sophie pegou uma toalha e a enrolou no corpo. Em seguida, pegou as ataduras, o pote de ungüento e a caneca de estanho com uísque. Ainda desejando-a, Connor ficou à espera. — Levante os braços e não se mexa — ela ordenou, e foi obedecida. Rasgou um pedaço de atadura e limpou o ferimento. Ele fez uma careta de dor e, como recompensa, recebeu a caneca para tomar um gole de uísque. Ela pegou a caneca e também tomou um gole. Então embebeu outro pedaço de atadura no uísque. 16


— Ei! — Connor protestou, porém, mais do que depressa Sophie apertou o pano com a bebida no ferimento. Arquejante, ele respirou ruidosamente, virou a cabeça e lutou para suportar o ardência louca. Depois de passar o ungüento, que recendia a óleo de amêndoa, manjericão e alfazema, ela o enfaixou em volta da cintura, até obter uma proteção resistente. Então, amarrou as duas pontas. — Pronto. Agora, você só precisa se comportar — disse. — Mais tarde — Connor resmungou, segurando seus ombros de tal forma que a forçou a inclinar a cabeça para trás. Beijou-a ao longo do pescoço e mais abaixo. Tirou a toalha que a enrolava, largando-a no chão. Enquanto beijava seus mamilos, sentiu-a ceder, o que o incendiou. Com uma leve pressão, ela o empurrou para o banco para que descansasse. Mas, seria a última coisa que ele faria. Sentou-se, encostado na parede de pedra aquecida pelo calor do fogo. Puxou Sophie para o colo, ajeitando suas pernas uma de cada lado do corpo. Espalmou as mãos em sua cintura, deslizou-as pelos quadris e para as costas, deliciando-se com sua maciez. Embora sentada, sua altura era suficiente para ele beijar-lhe os seios e excitá-los. Ela arqueou o corpo e prensou-o contra o dele. Por Deus, ela era tão sedutora e estava úmida, quente e com perfume de flores. Connor sentiu-se latejar contra ela e o desejo crescer, impedindo-o de pensar. Escorregou os dedos para baixo e a encontrou pronta para recebê-lo. Mas como quisesse prolongar um pouco mais esse momento, acariciou-a ali. Ouviu-a gritar, sentiu-a comprimir-se contra ele e agarrá-lo pelos ombros, levando-o quase à loucura. Quando Sophie tornou a arquear o corpo, ele beijou um mamilo. Ela estremeceu e abriu as pernas num convite, numa súplica silenciosa. Connor a segurou pelos quadris, ajeitou-se melhor entre suas pernas e deslizou para cima. Ela aconchegou-se mais, envolvendo-o e levando-o a perder-se nela. Connor sentiu a paixão queimá-lo como fogo desgovernado. Como se atingido pelo impacto de um raio, balançou-se com ela. Trêmulo e ardente, aprofundou mais em seu corpo, recuou e penetrou mais fundo ainda. Sophie arquejou baixinho. Abraçada a ele, os braços em volta do pescoço e as pernas na cintura, acompanhou o ritmo dos impulsos. A respiração acelerou até seu espírito alçar vôo. Ao mesmo tempo, instigada pela carência esmagadora, a paixão de Connor explodiu, levando-lhe a alma até o mais íntimo de seu ser, num ritmo magnífico e tão antigo quanto o tempo. Atordoado com o êxtase vivido, ele poderia ficar com Sophie, seu amor, para sempre. 16


De repente, viu-se de volta onde tinha começado, no banco, com os ombros encostados na parede de pedra. A esposa lindíssima no colo ainda o envolvia como uma luva cálida e aconchegante. Ele nunca mais seria o mesmo. Com a testa encostada na sua, exausto e em silêncio, continuou sentado com ela. Sabia que jamais poderia voltar a ser como era até pouco tempo antes. Nem desejava retornar à existência amarga e solitária. Ele havia mudado, a mágoa estava amenizada. Sophie era a força suave e estimulante que, com amor, o tinha arrancado das sombras. O trinado do arco sobre as cordas o libertava. Sentia a música fluir nele. Enquanto tocava mesclava-se com ela mais do que a estudava, compunha mais do que a executava. Quando a melodia o dominava dessa maneira era como se a música possuísse sua alma. Sentia-se puro, perdoado. O passado esmaecia, o presente fulgurava e o futuro tornava-se possível. Com os olhos fechados, viu Sophie, seu sorriso, suas lágrimas. A percepção, que muitas vezes ocorria quando ele tocava, lhe revelou que amava e era amado. A música ressoava nele, nas mãos, no peito enquanto tocava sem pensar nas notas, a mente livre. A beleza penetrante da melodia era o som do vento, as elevações e as depressões das montanhas e dos vales. Ele tocava, a beleza das notas ecoando no coração. Pensou em Sophie, nas curvas lindas do seu corpo, nas coxas perfeitas, na cintura delgada, nos seios macios, tudo tão harmonioso como as notas da melodia. O arco do violino deslizava nas cordas com a mesma meiguice que as mãos dele tocariam o corpo de Sophie. O fascínio da música intensificou-se e ele, feliz, perdeu-se nela. Quando a última nota esmoreceu, Connor pôs o violino e o arco na borda do parapeito e virou-se. Sophie estava no patamar da escada, com os olhos muito abertos. — Então é você o fantasma de Glendoon — murmurou. Connor assentiu com um gesto de cabeça e esperou, imóvel, que ela se aproximasse. — Foi lindo! Você toca com tanta emoção! Ele deu de ombros. — Subo até aqui de vez em quando para manter os intrusos sempre longe. — Mary contou que o fantasma de Glendoon impede os soldados de subir até aqui. Mas sua música é linda e atrairia pessoas que desejassem ouvi-la mais. — Segundo Neill e Andrew, ela soa como uivos horripilantes nas colinas. O barulho das cachoeiras interfere e a deixa com um som sobrenatural. __De fato ela tem, mas não me manteria longe. Ouvida dentro do castelo, não é assustadora, é linda. Todas as vezes que a ouvi, tive vontade de subir até aqui, mas não me atrevia. Era o medo de encontrar um fantasma, e não medo da música sobrenatural, que me fazia voltar depressa para a cama. Connor sorriu. 16


—Então finalmente você arranjou coragem? Ora, você sempre tem — Afirmou e a acariciou no rosto. Começou a guardar o violino, mas Sophie pediu: — Por favor, ainda não. Quero ouvir mais. Você toca também música para dançar, como jiga? — Já toquei muito, mas faz tempo. Para mim, tocar violino é algo solitário, que ajuda a introspecção. Porém, pôs o instrumento sob o queixo, ergueu o arco e esperou um momento para que a música lhe ocorresse. Escolheu uma jiga para ela, com um ritmo alegre e simples. Sophie pôs-se a bater palmas e a dançar, apesar das pedras quebradas. Quando a música terminou, Connor baixou o violino e a observou. — Onde você aprendeu a tocar? Na França quando estudava lá, ou tinha um professor particular na Kinnoull House? — ela perguntou. — Aprendi quase tudo de ouvido e um pouco com um primo idoso, que por sua vez aprendeu com o pai, o famoso James MacPherson, meu tio-avô. Era um violinista com sangue cigano e também famoso pelos erros cometidos como ladrão e malandro. Você nunca ouviu o Lamento de MacPherson? Connor tocou um trecho da melodia triste que sempre o comovia. — James MacPherson foi preso e sentenciado à forca por causa de seus erros. Antes da execução, ele compôs esta música e a tocou para a multidão que tinha ido vê-lo morrer. Provocou lágrimas em todos. Então, propôs dar o violino a quem tivesse coragem de ir pegá-lo. Como ninguém ousasse, ele o quebrou ao meio momentos antes de ser enforcado. A ironia disso foi o fato de o perdão estar a caminho. Mas a principal autoridade policial, seu inimigo, ao ver o mensageiro se aproximar pela estrada, adiantou o relógio da cidade em uns minutos. MacPherson foi executado antes da chegada do perdão. Sophie não conteve uma exclamação. — Vejo que você vem de uma longa linha de malandros. — De um dos lados da família. O outro era um tanto sem graça. — Piscou para ela, fazendo-a rir. — Meu pai tinha um pouco dessa audácia, embora possuísse um título de nobreza. Suponho que eu também a tenha herdado. — Concordo plenamente — ela disse. Connor recomeçou a tocar e, dessa vez, a música que havia feito para ela. Sorriu ao vê-la dançar suavemente e com os olhos fechados. A música vinda do coração o fazia se sentir pleno de amor e feliz. Antes, quando tocava, era uma atividade solitária, mas agora Sophie estava ali para também ouvir e sentir a música. Ela havia iluminado a sua vida com sorrisos, temperamento, pendor pela honestidade e dom para cultivar plantas. A ruína alugada já começava a parecer um lar, como se Sophie houvesse aberto para ele as janelas da 16


alma. Ela era um bálsamo na solidão, proporcionando conforto e paixão em sua cama, além de haver se apossado de seu coração. Isso não estava em seus planos, mas acontecera, e não havia como resistir. Tudo que ele podia fazer era mantê-la sua. Com os olhos fechados Connor tocava, a música mesclando-se com seus sentimentos. Quando parou e abaixou o violino, sentiu o vento frio do amanhecer. — Veja! Você acordou o sol! — Sophie exclamou, apontando para as montanhas onde a luz dourava o céu. — O jantar está pronto — Mary avisou Sophie ao chegar ao velho jardim. — Kinnoull e Neill já estão chegando e, com certeza, com fome. Se a senhora não precisar de mim, vou para casa com Neill. Sabe, não consigo achar os canecões de estanho. E também não podemos usar os copos de vinho lindos de cristal que eram da mãe de Connor. Estou vendo que a senhora os enfiou na terra — Mary disse com o olhar espantado para a fileira de copos emborcados na terra. — Eu os estou usando como campânulas para proteger as sementes plantadas até o tempo esquentar. Espero que você não se importe — Sophie explicou. —Eu não! O que existe no castelo agora pertence à senhora. Só não sei que fim levaram os canecões de estanho. Talvez Kinnoull e os outros tomaram cerveja neles e os largaram por aí. Bem, já que a senhora não precisa de mim, vou indo. — Vá mesmo, Mary, e obrigada. Cuidarei de tudo aqui — Sophie disse enquanto a acompanhava. — Obrigada, senhora. Voltarei daqui a uns dois dias. Tenho muito para fazer em casa. — Não se preocupe. Volte quando puder, Mary. — A senhora está transformando este lugar no lar com que Kinnoull sonha. Ele precisa da senhora aqui. Ao ouvi-la, Sophie sentiu uma onda de felicidade. — Obrigada — murmurou. Poucos dias antes, não agradeceria a quem lhe dissesse que aquele malandro precisava dela. Agora, dava-se conta de que também precisava dele. — Neill precisa de mim mais do que admite. Quase não temos ficado juntos ultimamente. Sophie viu o rosto bonito de Mary enrubescer e o brilho nos olhos. Depois de muitos anos de casamento, ela ainda sentia um amor tão forte e verdadeiro que o simples retorno do marido ao lar a excitava. Não importava se a separação fosse curta ou longa, nem por quanto tempo estavam casados, o amor mútuo dos Murray ainda brilhava com chamas intensas. Sophie desejava viver essa experiência. Sabia que o amor já florescia em seu 16


coração, mas ignorava se o casamento apressado e as confusões iniciais poderiam proporcionar anos de felicidade e de contentamento. Tocou o pingente de cristal enquanto seguia para a porta da cozinha e Mary para o portão. Então, parou e virou-se. Passou pela horta cheia de brotos e rodeou o canto da torre. Connor e Neill chegavam, e Mary foi embora com o marido. Connor levantou o olhar e observou Sophie como se estivesse tão inseguro quanto ela. Com dedos trêmulos, Sophie prendeu os cabelos soltos atrás das orelhas, alisou a saia e correu para ele. — Kinnoull, o que você acha da ótima novidade?__Padraig gritou enquanto atravessava o pátio, puxando Fiona por uma corda. — Novidade? — Connor indagou da porta da cozinha. Depois do jantar tinha saído ali para esperar Neill e Andrew, que haviam ido espionar os soldados vermelhos e já deveriam estar de volta para lhe dar um relatório. Desde o roubo do barrilete de pólvora ele sabia que precisavam redobrar os cuidados. — As galinhas estão botando outra vez — Padraig contou ao chegar mais perto. — Todos os dias, minha mãe recolhe não sei quantos. — Mary mencionou isso e eu achei estranho. Não sei como as galinhas voltaram a botar — Connor comentou. — E a horta está cheia de brotos onde dona Sophie semeou. Você viu? — Apenas capim. Estamos em abril — Connor disse. — Não, feijão e ervilha. E crescendo depressa. Na frente, narcisos e botões-deouro estão cheios de flores como nunca vi antes. Você não notou? — Notei, sim. Talvez seja resultado das chuvas freqüentes. E, afinal, é primavera — Connor argumentou e olhou para a horta, onde tinha visto Sophie um pouco antes. — Quem sabe a velha maldição sobre Glendoon foi desfeita — Padraig sugeriu, sorrindo. — Esta velha ruína tem sido um lugar árido durante anos, muito antes de eu vir para cá. Minhas pequenas plantações de aveia e cevada não produzem quase nada. O último verão foi uma estação sombria. Por mais que eu quisesse acreditar que a maldição se foi, não me apressaria em afirmar isso só porque temos umas poucas flores e mais ovos do que de costume. Leve Fiona para a baia, por favor. Você a convenceu a dar um pouco de leite? — Essa é outra coisa estranha. Hoje ela encheu o balde grande, minha mãe contou. — Não diga! — Connor exclamou, surpreso. — Ela mal dá meio balde pequeno desde que o bezerrinho morreu. Menina bonita — ele disse, dando um tapa na anca de Fiona enquanto Padraig a levava embora. 16


Nisso, ele viu Andrew e o irmão Thomas rodearem a torre correndo e sendo ultrapassados por Roderick, que acenava furiosamente para ele. Ao notar que os dois primos estavam sem fôlego, Connor correu ao encontro deles. — O que aconteceu? — indagou. — Campbell! — Andrew respondeu, ofegante. — Na ponte! Soldados vermelhos apareceram quando estávamos colocando a pólvora e... — Íamos esperar até tarde da noite — Connor o interrompeu. — A culpa foi minha, Kinnoull — Thomas respondeu. — Decidi fazer tudo logo e Andrew e Neill foram atrás de mim. — Ele já colocou as cargas nas pedras — Andrew informou. — Acabou tudo? — Connor quis saber. — Sim, falta a explosão. O rapaz fez um ótimo serviço e nós o ajudamos. Vínhamos buscá-lo para o resto ser feito à noite — Andrew afirmou e, antes de continuar, respirou fundo. — Quando já vínhamos embora, Campbell apareceu com três soldados e um prisioneiro entre eles. Iam atravessar a ponte, que apesar de não estar pronta não oferece perigo. Os soldados pegaram Neill e Thomas e os jogaram no chão. — Pegaram Thomas? — Connor perguntou, olhando para o rapaz. Thomas virou o rosto para mostrar a contusão arroxeada. — Campbell me deixou voltar com a condição de lhe trazer uma mensagem — ele contou sem disfarçar a humilhação que havia sentido. Connor sentiu a fúria surgir. — Que mensagem? — rosnou. — Você deve ir encontrá-lo já na ponte se quiser que Neill viva. E deve levar sua esposa — Thomas relatou. — Ele disse o que quer? — Campbell quer dona Sophie — Andrew respondeu pelo irmão. — Ele está falando sério, Connor. Nunca vi o homem com tanta raiva. Se eu fosse você, obedeceria. Connor semicerrou os olhos. — E se eu não quiser? — Ele matará Neill e o outro prisioneiro. — Quem é esse outro? Um dos MacCarran? — O próprio Duncrieff. Estupefato, Connor indagou: — Tem certeza? Você o viu? — Nós dois o vimos — Thomas afirmou. — Campbell tem Neill e Duncrieff nas mãos. Quer sua esposa em troca de Neill, não pelo irmão dela. 16


— Vou com você — Roderick disse. — E nós também — Andrew acrescentou. — Connor, Campbell diz que tem uma ordem de prisão contra você por ter raptado a jovem MacCarran. E também pretende prender os primos dela, sob a acusação de terem ajudado você a pegá-la. Ele garante ter direito à mão da moça, prometida pelo pai dela anos atrás. — Como noivo, Campbell foi traído e eu lamento, mas isso não está no cerne da questão. Ele tem algo mais em mente. — Além de Duncrieff, Campbell quer você também e a moça. Qual dos três ele poderá controlar melhor e quais servem aos propósitos dele? — Andrew conjeturou. — Ele quer Sophie. Se der fim em nós e se casar com ela, controlará um clã das Terras Altas — Connor respondeu. — E a magia de Duncrieff — Sophie acrescentou. Connor virou-se depressa. Ela estava logo atrás e devia ter se aproximado enquanto falavam. Por um momento e ao ver sua palidez, ele esqueceu tudo o mais. — Vou com vocês — ela disse. — De forma alguma — Connor afirmou. —Meu irmão está vivo. Tenho de ir vê-lo — Sophie insistiu, retorcendo as mãos. — Eu o trarei para você — Connor garantiu. — Quero vê-lo já e com você — ela teimou. — Quero também saber onde Rob ficou esse tempo todo. — Suponho que teremos de perguntar isso a sir Henry. — Desde o início, ele queria alguma coisa dos MacCarran. A união comigo foi sugestão de sir Henry anos atrás. Meu pai cedeu em troca da ajuda dele, mas nunca a recebeu. Se ele chegar a extremos agora para conseguir o controle do clã, deve ambicionar a Taça Encantada. — Absurdo! Ele quer mais do que desejos e fantasias. Campbell ambiciona o domínio político de Perthshire e o conseguirá casando-se com você e seu irmão e agora o seu marido o forem eliminados primeiro — Connor esclareceu. — E talvez pense que, se puder utilizar a magia de fada, terá muito mais poder. Ele me fez várias perguntas sobre nossas lendas na noite do jantar. Estava muito curioso sobre assunto e não parava de examinar meu pingente de cristal. — Quem sabe ele queria apenas ficar perto de você — Connor disse. — Vamos, rapazes, temos de descer até lá. — Vou com vocês — Sophie tornou a insistir. — Não! — ele disse em tom autoritário, pegando seu braço para levá-la até a cozinha. Andava tão depressa que a fazia tropeçar. Lembrou-se da noite em que a tinha 17


arrastado pelas colinas e a forçara a encontrar coragem. Agora, teria de exigir muito mais, caso ele caísse prisioneiro e tudo terminasse mal para todos. — Isto, em parte, é por minha causa — Sophie argumentou. — E também pelo que fiz. Por isso, resolverei a questão. Quanto a você, ficará aqui — ele ordenou. — Não enquanto sir Henry mata você e meu irmão! — Meu amor, ele não terá chance. Nós o impediremos. — Como? Os montanheses não têm licença para andar armados! — Nunca obedecemos isso antes. E você, quando se tornou uma freira militante? Por favor, entre. — Seu ferimento ainda está cicatrizando. Deixe eu ir com você. Argumentarei com sir Henry. — E o que lhe dirá? — Que eu nunca tive a intenção de me casar com ele e pedi a você para me raptar — Sophie respondeu. — É mesmo? Infelizmente você não terá a oportunidade de lhe dizer isso. Fique aqui dentro e esconda-se. — Campbell me quer lá, ou fará mal a todos vocês — ela insistiu, fitando-o com olhar sombrio. — Ficarei bem. E você esperará por mim aqui. — Você ainda pretende me manter presa, embora não exista mais razão para isso? Connor sentiu a raiva crescer. — Se você prefere ficar com sir Henry, eu a levarei até ele, mas não agora — disse numa voz fria. — Já que você esperava se casar com minha irmã e não comigo, por que se importar com o que faço? O coração dele bateu de maneira estranha. Sophie era tudo que desejava, mas ainda não lhe tinha dito isso. Amava-a e o sentimento o queimava. — Irei e você ficará, ponto final. — Não arrisque sua vida por mim. Tenho de ajudar meu irmão e meu clã. Por favor, entenda, Connor — acrescentou num murmúrio. Ele pegou suas mãos. Por Deus, era tão bom e reconfortante tocá-la. Embora não houvesse tempo nem para pensar nisso, desejava-a. Ela agarrou-se às mãos dele. — Quero que você fique aqui — ele disse com firmeza. — Eu e os rapazes temos muito para fazer. 17


— Eu ouvi. Que ponte? — ela persistiu. — A de meu coração. Acho que foi atacada. — Connor, preciso ir com você — Sophie sussurrou. — Não, amor — ele declarou, e curvou a cabeça para beijá-la. Temeu ser rejeitado, mas a receptividade o surpreendeu. Ao sentir seus lábios macios, esqueceu todo o resto, a pressa, a pressão da pistola no lado do corpo, os rapazes esperando-o lá fora. O coração rugia no peito, e algo bem em seu âmago e que ele julgava estar fechado para sempre, abriu-se. — Padraig lhe fará companhia. Fique dentro do castelo. Não saia por nenhuma razão, ouviu bem? — Não posso prometer nada. — Você não aprendeu obediência no convento? — Não preciso obedecê-lo nesta questão ou em qualquer outra que não ache certa. — Nunca esperei obediência, apenas bom senso. Seu irmão quer que você fique sob minha proteção e todos nós queremos sua segurança. Tudo acabará bem, prometo. Ela o fitou com aqueles olhos límpidos e lindos. — E você sempre cumpre o que promete, não é, Kinnoull? — Por Deus, sempre — ele murmurou. Virou-se e foi se juntar aos outros, que o esperavam perto da horta com seus brotos verdes e botões de flores surgidos não se sabia de onde. Habituados a percorrer grandes distâncias nas Terras Altas, Connor e os companheiros corriam. Embora cicatrizasse, o ferimento ainda doía um pouco, mas a atadura facilitava os movimentos. Enquanto se afastavam de Glendoon, Connor mantinha o olhar atento pelas colinas. A cor do céu anunciava o anoitecer, e ele não via sinal de soldados vermelhos. Andrew, Thomas e Roderick o seguiam de perto. Ele indicou uma trilha alta de condução de gado, raramente usada, que não descia ao vale para acompanhar o rio. Por ela, a distância era menor e não haveria o risco de cruzarem com cavaleiros ou carroças. Porém, apenas pernas e corações fortes poderiam percorrê-la. A distância, Connor avistou soldados vermelhos, visíveis por causa da cor do uniforme. Eles movimentavam-se pelo vale em alguma missão. Connor sabia aonde ia e não parou, bem como os outros três. Logo chegavam à garganta entre as duas colinas e correram pelo topo da que ficava ao lado do rio, até chegarem às terras de Kinnoull. Por causa das chuvas e da neve derretida nas montanhas, o rio estava cheio e a correnteza, forte. 17


Apesar das sombras do anoitecer, Connor já podia enxergar a ponte. Ninguém estava perto dela, mas havia homens na encosta da margem, entre a ponte e a casa. A Kinnoull House, de arenito rosa, assentava-se entre gramados verdes e jardins exuberantes como uma jóia. Mas ele não tinha tempo para admirá-la nem para desejar o que havia perdido. Neill estava sentado no sopé da colina com as mãos amarradas às costas. Três soldados, com mosquetes, mantinham-se perto. Connor também viu Campbell, que, vestido de cinzento, parecia de pedra. Aos pés dele sentava-se outro prisioneiro amarrado. Magro, porte altivo e cabelos loiros. Duncrieff. Connor correu em frente e fez um gesto para os outros o seguirem. Nessa noite, Sophie perdia uma partida atrás da outra, para desapontamento de Padraig. O irmão gêmeo tinha lhe contado histórias de sua magia com as cartas. Queixando-se de dor de cabeça, ela rumou para a escada a fim de ir se deitar. Cada fibra de seu corpo mantinha-se alerta a algum perigo que não poderia identificar. No meio da escada, parou. O irmão estava vivo, graças a Deus, e ela precisava vê-lo logo. Não agüentaria esperar. Também deu-se conta de que precisava estar junto com Connor, o irmão e os outros companheiros nessa questão. Perigoso ou não, se ele vivesse ou morresse, se ela ficasse ali ou fosse embora de vez, jamais seria a mesma. Connor era o homem mais excitante, perigoso e lindo que ela já havia conhecido ou imaginado que existisse. Não conseguiria se livrar facilmente do fascínio com que ele a prendia. Também não poderia ficar ali enquanto homens corriam perigo por sua causa e Connor se arriscava e aos amigos por ela e seus parentes. Tocou o pingente de cristal e sentiu seu poder. A magia da pedra e o sangue de fada em suas veias pareciam instigá-la de uma forma nunca manifestada antes. Ao segurá-la entre os dedos e a palma da mão, foi dominada pelo anseio de amar e de estar com Connor, pois sem ele sentia-se incompleta. Nesse momento, Sophie tomou uma decisão. Connor tinha lhe dado uma ordem, porém ela não lhe prometera nada. Se alguma coisa desse errado essa noite, só ela poderia evitar as conseqüências, convencendo sir Henry de que seria inútil cobiçá-la e a seu clã. Talvez fosse impossível, mas precisava tentar. Depressa, acabou de subir a escada e, no quarto, correu para a arca de madeira. Abriu-a e pôs a lanterna no chão. Com cuidado, mexeu nas roupas, uma variedade enorme de peças dobradas, mas não havia tempo para examiná-las. Já havia tomado emprestados alguns vestidos, inclusive o que estava usando. Eles lhe serviam, embora um pouco largos na cintura e um tanto compridos. Sapatos 17


firmes também já tinha pegado antes para substituir os seus de salto alto. Preci sava agora de um xale. Procurou e encontrou um de lã xadrez e não muito pesado. Quando o puxou, percebeu que estava enrolado numa caixa pequena de madeira com fecho de bronze. Sem querer, derrubou-a no chão. Ela abriu, espalhando papéis e jóias no tapete. Agachou-se e começou a juntar tudo. Alguma coisa escrita num papel prendeu seu olhar. Connor MacPherson, lorde Kinnoull, ela leu. Com certeza a caixa era de Connor e não da mãe, pensou enquanto, depressa, guardava papéis e jóias. Fechou a caixa e a largou na mesinha ao lado. Então, pôs o xale sobre a cabeça e os ombros e dirigiu-se à porta. Pé ante pé, Sophie desceu a escada, passou pela porta do salão de onde vinha a voz de Padraig falando com os cães. Estes, já acostumados com sua presença, não latiram. Devagar, ela foi até a cozinha, de onde saiu para a escuridão. Enquanto atravessava o pátio, lembrou-se de que o portão faria barulho ao ser aberto. Virou-se e correu para a muralha de trás, procurando a brecha por onde Fiona escapava. Quando passou pelo estábulo, ouviu vacas mugirem e as galinhas cacarejarem assustadas. Ao chegar à muralha, viu tábuas fechando a brecha nas pedras. Teria de subir por elas e saltar para fora. Sophie já estava no topo, pronta para passar as pernas para outro lado, quando ouviu o latido dos cães. Virou a cabeça e viu que vinham correndo em sua direção. — Quietos — sibilou, e deitou-se de braços na borda da muralha. — Vão embora. Mas os cachorros continuaram a latir e, já bem perto, pulavam na tentativa de puxá-la pela barra do vestido. — Vão embora — ela repetiu. — Aí está a senhora! Fui avisado de que poderia tentar fugir— Padraig disse ao se aproximar. — Por favor, Padraig, você precisa me deixar ir. — Kinnoull cortaria meu pescoço. — Ele não se importa com o que faço. —É claro que sim. Ele me fez prometer vigiá-la e eu preciso manter minha palavra. — Padraig, quero ter certeza de que meu irmão está em segurança. — A senhora não confia em Kinnoull para fazer isso? — É em sir Henry que não confio. — A bem da verdade, eu também não. E não queria ficar aqui enquanto os outros se foram. Pois irei com a senhora — ele disse, começando a escalar a muralha. — Que Deus o abençoe, Padraig Murray — ela disse, e sorriu quando ele a 17


alcançou. Em seguida, o rapaz pulou para o chão do outro lado e ergueu os braços para ajudá-la a descer. — Senhora, prometa que não se meterá em nenhuma confusão. — Tentarei, e também procurarei não lhe causar problemas — ela respondeu ao passar pela borda da muralha. Padraig conseguiu segurá-la pela cintura e colocá-la em pé no chão. — Sei por onde os rapazes seguiram. Vamos depressa, senhora. — Por favor, me chame Sophie — ela pediu, acompanhando-o.

Capítulo XV

— Não podemos descer lá e dizer-lhes que nos entreguem os rapazes — Andrew comentou. Deitado de braços no topo da colina, como os outros, Connor observou a cena. Campbell, de cinzento, e os soldados vermelhos andavam de um lado para o outro no sopé da colina. — Estão esperando por mim e por Sophie. Vamos deixá-los esperar mais um pouco. — Virou-se para Thomas. — Onde a pólvora foi colocada na ponte? — Socada em canecões de estanho que enterramos junto às pedras da fundação, lá nas margens, duas no lado perto dos soldados e uma do outro — Thomas explicou. — Você colocou bem o estopim em cada uma? O rapaz respondeu com um gesto afirmativo de cabeça. — O que você está planejando, Kinnoull? — Andrew indagou. — Não podemos explodir a ponte com os homens tão perto dela. É um risco muito grande para Duncrieff e Neill. — Para ir pegá-los, temos de distrair a atenção deles primeiro, pois não tenho a intenção de cruzar com Campbell — Connor disse. — Ah, tão logo estejamos prontos para pegar os dois, acenderemos os estopins — Roderick comentou. — Exatamente. Agora, prestem atenção. Nós iremos adiante da ponte, junto à margem do rio onde não seremos vistos. Roderick e Andrew, vocês podem correr em direção à casa?— Connor indagou.

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— Sim. Isso levará os guardas para longe dos prisioneiros— Andrew disse. — E quanto a mim? — Thomas quis saber. — Você ficará comigo embaixo da ponte. Trouxe a pistola? Vai ter de provar sua boa pontaria. — Claro. Também sei onde estão os estopins — o rapaz acrescentou. — Isso mesmo — Connor concordou, e levantou-se de joelhos. Observou o céu. Já havia escurecido o bastante para não serem vistos facilmente. Respirou fundo. Sabia que estava expondo os amigos leais ao perigo, mas sabia também que eles não aceitariam ser excluídos. Felizmente Sophie tinha ficado em Glendoon, sob a vigilância de Padraig. A hora havia chegado e eles tinham de agir. — Rapazes — murmurou. Um a um, levantaram-se e seguiram como fantasmas rumo à margem do rio, de onde pularam depressa para baixo. —Esconda-se!—Padraig ordenou enquanto puxava Sophie para trás de umas pedras grandes. Ela tropeçou e quase caiu. Inclinou-se para o lado das pedra se viu a casa, o rio e a ponte de pedra. Um grupo de homens postava-se no lado da colina e dois estavam sentados no capim. Então viu Connor e os outros correndo abaixados. Rezou para que os soldados não os tivessem visto. — Campbell não pode fazer isso, pois enfrentará mais problemas do que imagina. Terá de provar que Connor cometeu algum crime. Além de ser lorde Kinnoull, ele é conhecido dos militares. — Eu sei, Connor me contou — Sophie respondeu. — Como ex-capitão do regimento Black Watch, eles o tratarão com respeito. Campbell não poderá eliminá-lo facilmente. Nem a Duncrieff. Indo um pouco para a esquerda, Sophie viu sir Henry e um dos soldados subindo a colina e, depois, desaparecendo de vista, deixando os dois homens sentados ainda sob vigilância. Quando mudaram um pouco de posição, ela viu Robert. Reconheceu a postura dos ombros e os cabelos loiros dele. Seus olhos encheram-se de lágrimas. O irmão estava vivo e forte o bastante para manter o corpo ereto, apesar das mãos presas. Ela o observou em silêncio por alguns minutos, mas inclinou-se tanto que Padraig teve de puxá-la outra vez. — Eu não devia tê-la deixado vir até aqui. — Ora, você não conseguiria me impedir naquela hora nem agora. 17


— Então talvez eu possa — uma voz disse às suas costas. Sophie virou-se depressa. Padraig pulou para seu lado, mas foi derrubado no chão com a pancada do cano de uma pistola. —É um prazer vê-la outra vez, srta. MacCarran — sir Henry disse, rodeando o rapaz caído. — Oh! — ela gritou, caindo de joelhos. A uma ordem ríspida de Campbell, o soldado a agarrou pelos braços e a forçou a ficar em pé, embora ela se debatesse. — Srta. MacCarran, finalmente a encontramos. É muito bom saber que, afinal, está em segurança. — Estou?! — ela indagou em voz fria e desviando-se da mão estendida dele. Sir Henry aproximou-se mais e segurou seu queixo. Virou-lhe o rosto de um lado para o outro enquanto o soldado corpulento a segurava. — Tão linda. Sem dúvida existe sangue de fada em suas veias. Feições delicadas, cabelos dourados e olhos de uma cor excepcional — sir Henry murmurou. Sophie os fechou bem para que ele não os observasse. Os dele estavam com expressão cruel. Antes de conhecê-lo, Sophie já sentia repulsa por causa da maneira com que ele havia manipulado seu pai na época difícil do exílio, quando era forçado a pedir favores aos amigos. Então, ao conhecê-lo durante o jantar na Kinnoull House, sir Henry dera a impressão de ser agradável, apesar de se mostrar ansioso para tocá-la e reivindicar o direito sobre sua pessoa. Sophie abriu os olhos. Ele sorria, mostrando os dentes tortos e amarelos. Desesperada, olhou para Padraig, que continuava caído e com sangue escorrendo do ferimento na testa. — O que o senhor quer de mim? Deixe que nós todos vamos embora, pois não tem motivo para nos rnanter sob suas ordens. — Quero o cumprimento da promessa. Nós íamos nos casar. — Eu jamais pretendi me casar com o senhor. E essa é a minha decisão sobre tal assunto. Pronto, acabou-se. O senhor não precisa mais fazer qualquer coisa para meus parentes, amigos e meu... — Marido? É o que MacPherson alega ser. Vamos embora — ele ordenou, e fez um gesto para o soldado forçá-la a andar. Sophie olhou para trás e viu Padraig ainda atordoado. Mas os homens a estavam levando pelo outro lado da colina para impedi-la de ajudar o rapaz. E também sabia que, se Connor olhasse nessa direção, não a veria ao lado de Campbell. — Connor MacPherson é meu marido. Essa também foi escolha minha. Ninguém me forçou a fazer as promessas. Bem, isso não era totalmente verdade. 17


— Ele a roubou como ladrão que é. — Estou feliz por ser esposa dele. Eu o amo — ela afirmou, sentiu-se bem ao dizer, e repetiu: — Eu o amo. Isso não é crime. Portanto, sir Henry, nos deixe em paz. A única atitude errada é a do senhor. — Tenho meus direitos — ele replicou. Pegou seu braço, puxou-a contra ele e pôs a boca na sua. Sophie retorceu-se, virou a cabeça e tentou gritar, mas ele tapou-lhe a boca com a mão, que cheirava a tabaco e a sujeira. Não era um homem alto, mas forte, e ela não conseguia se soltar. — Quero meus direitos e os terei — ele declarou. Sophie arquejava. Tirando a mão de sua boca, Campbell a forçou a olhar para ele. — Você vai satisfazer minha vontade ou verá seu irmão morrer ainda hoje e seu marido ser enforcado pelos crimes que cometeu. Ela o empurrou e pisoteou seus pés com força. Ele cambaleou, mas não a soltou. Sophie virou a cabeça para trás e viu que o soldado era bem jovem. — Vai ficar aí olhando sem fazer nada, sabendo que isto está errado? — indagou. O soldado a fitou por um momento e, depois, dirigiu um olhar interrogativo para Campbell. — Vá embora. Seu dever é vigiar os prisioneiros. Eu cuidarei da minha noiva. Ela fugiu de mim com medo do casamento, mas eu a tratarei com bondade. O jovem soldado hesitou e olhou para Sophie, então, correu e desapareceu na encosta da colina. Campbell a virou entre os braços, segurou seu queixo com força e a beijou. Sophie tornou a empurrá-lo, mas foi puxada de volta. Mordeu-lhe os lábios para impedir novo beijo e ele, praguejando, soltou seu corpo, segurando-a apenas pelo braço. — Eu só queria agradá-la. Você não tinha motivo para fugir de mim. Pretendo ajudar seu clã. Seus primos e seu irmão estão arriscando tudo ao simpatizarem com o movimento jacobita. Eu posso restaurar a reputação do clã Carran em troca... — Do quê? — ela indagou ofegante. — O senhor pensa em matar meu irmão e se casar comigo para ser o marido da chefe do clã? Imagina que vou satisfazer sua vontade porque fui educada num convento? — Tenho certeza de que você sabe obedecer — ele disse, torcendo seu braço para as costas e forçando-a a andar. — Também não duvido de que vamos nos reconciliar. Seu irmão e seu marido terão de pagar por seus crimes, mas o resto de seu clã não será cobrado por ter tomado parte na rebelião. — O resto... — ela parou e o encarou por sobre o ombro. — Poderei arruinar todos eles, a menos que você consinta em ser minha. Todos eles, Sophie, pois não passam dos piores rebeldes que já pisaram nas Terras Altas. Mandarei prender seus parentes e queimar suas casas. Conseguirei que o castelo de 17


Duncrieff seja confiscado e passado em meu nome. E não deixarei que sua irmã escape de ser presa. Você faz idéia pelo que as mulheres passam na prisão? Imagino que possa calcular agora que já se deitou na cama de MacPherson. — Minha irmã... Deus do céu, não apenas Robert e Connor, mas todos eles. Kate, os primos e o clã Carran inteiro sofreriam se ela não atendesse às exigências desse homem. — Por que o senhor quer isso? — Sophie indagou enquanto ele a forçava a seguir em frente. — Não existe outro clã nas Terras Altas que se compare ao MacCarran. Existe poder em seu sangue, e dizem que há uma taça de ouro mágica no castelo. Riquezas incalculáveis. — Isso não passa de lenda. Existe, sim, uma taça de ouro. Apenas uma. O senhor provocará tal devastação só por causa de uma velha taça de ouro? — Se ela contiver a chave para a riqueza de um reino antigo, provocarei, sim — ele respondeu. — O senhor está louco. Arriscará sua alma eterna em troca do poder de um pequeno clã? — Talvez, se ele me levar ao paraíso na terra. Campbell continuou a forçá-la a andar. Passaram pelo topo da colina, e Sophie avistou a Kinnoull House, imponente contra os pinheiros escuros no fundo e o rio fluindo aos pés da colina, atravessado pela ponte quase terminada. Connor e os outros tinham desaparecido de vista. Aflita, Sophie correu o olhar em volta na esperança de vê-los. Então, avistou o irmão e gritou. Curvados, Connor e Thomas seguiram pela margem do rio. Roderick e Andrew os seguiam. O caminho estava úmido e escuro, porém as sombras os escondiam. Tudo parecia estar a favor deles, e Connor rezou com fervor, não por si mesmo, e sim pelos outros envolvidos na ação. Quando chegaram sob a ponte, ele pediu para Thomas lhe mostrar os canecões com a pólvora, enfiados em fendas nas pedras. Também viu a ponta dos estopins pendurada na beira irregular das rochas para que eles não ficassem balançando. Eram compridos e levariam tempo para queimar até chegar aos morteiros e explodir a ponte para Kinnoull. Quando Connor acendesse os estopins, haveria apenas tempo suficiente para fazer o que era preciso. Connor havia se arriscado antes, enfrentando perigos muitas vezes. Também já usara explosivos para destruir partes das estradas, irritando os ingleses e dificultando o trabalho. Mas nunca havia assumido um risco de tal magnitude. Desta vez, valia o preço da própria vida, caso fosse cobrado. Então, deu-se conta da ironia enquanto aguardava nas sombras da ponte. Ele havia, finalmente, aberto o coração e encontrado o amor, e agora estava disposto a dar a 17


própria vida para proteger esse amor. Inclinou um pouco a cabeça para ver Neill e Duncrieff na encosta da colina, vigiados por dois soldados vermelhos. Robert dava a impressão de ter se recuperado dos ferimentos, mas estava mais magro e com os cabelos compridos. Connor imaginou onde ele teria sido mantido todo esse tempo. Campbell devia ter a resposta. Neill parecia não estar ferido e tinha as mãos amarradas às costas. Se ele houvesse tido a chance de escapar, teria corrido mais depressa do que todos eles, Connor sabia. Mas o filho de Neill era capaz da mesma proeza. Connor virou-se e apontou para Roderick e Andrew. — Vão. Corram rumo à Kinnoull House, passem por ela e sigam até as árvores na colina. Lá, vocês encontrarão esconderijo. Os guardas verão os dois e os perseguirão. Essa é a idéia, meus amigos. Corram junto à margem até ficaram a distância suficiente para os tiros deles não os atingirem. Tenho a pedra-de-fogo aqui e acenderei os estopins tão logo vocês estejam a uma distância segura. Tudo certo? — Tudo — os dois responderam juntos. — Vão com Deus — Connor murmurou, e Thomas repetiu a despedida enquanto sacava a pistola a fim de protegê-los em caso de perigo. Ambos observaram Andrew e Roderick afastarem-se ao longo da linha da margem e então começaram a correr. Após alguns momentos, subiram de joelhos até o nível do capinzal e continuaram a correr. Um dos guardas notou e deu o alarme. Campbell, que Connor não podia ver de seu ponto de observação, gritou uma ordem. Dois soldados vermelhos saíram em perseguição, gritando para que parassem. Duncrieff e Neill, enquanto seus guardas afastavam-se, ergueram-se e trocaram olhares. Um tiro ecoou no ar e Connor respirou aliviado ao ver os dois corredores seguindo em frente a toda velocidade. Então, pegou a pedra-de-fogo na bolsa de couro. Depois de algumas tentativas, conseguiu uma faísca e acendeu a ponta do estopim mais comprido, que se juntaria aos outros. Fez um sinal para Thomas acompanhá-lo ao longo da margem. Esperou até que Roderick e Andrew desaparecessem de vista e para ter certeza de que o estopim continuava a queimar. Então, preparou-se para correr ao encontro dos dois prisioneiros. Virou-se e viu Sophie com Campbell na encosta da colina. Eles iam em direção a Duncrieff. — Robert, correu a notícia de que você tinha morrido — Sophie soluçou, abraçada ao irmão, mas Campbell a puxou para trás. — Que diabo... — Rob começou a gritar, porém, Sophie balançou a cabeça para desencorajá-lo a falar e expor-se a mais perigos. 18


— Neill, você está machucado? — ela indagou, fitando-o. O velho montanhês fez um gesto negativo com a cabeça. — E você, menina, está em apuros? — ele perguntou, dirigindo um olhar feroz a Campbell. — Estou bem — Sophie respondeu. Virou-se para Robert e contou: — Kinnoull e eu nos casamos. Os olhos azuis dele brilharam. — Não diga! Fico contente ao ouvir isso. — O olhar dele endureceu ao dirigir-se ao magistrado: — Campbell, solte-a! — Isso não me convém — o outro esbravejou. — O senhor não tem o direito de prender meu irmão e ameaçar meu marido! — Sophie protestou. Campbell sacou a pistola da cintura, largou o braço de Sophie, agarrou o de Robert e prensou o cano da arma no peito dele. Em seguida, rosnou uma ordem para o guarda, que apontou o mosquete para Neill. — Fique aqui com ele. — Então, dirigiu-se a Sophie:__ Você irá conosco. Se resistir, seu irmão não verá o fim deste dia, embora eu o tenha mantido vivo durante as últimas três semanas. — Como assim? — ela indagou, perplexa. — Ele me trouxe da prisão para a Kinnoull House — Robert explicou. — No início, eu estava muito mal e não reconhecia o lugar. Ele permitiu que eu me recuperasse, pelo que lhe sou grato, mas essa é toda a gratidão que ele merece. — Não importa — Campbell resmungou, e começou a andar. — Vocês dois, por aqui. Uma pequena caminhada enquanto discutimos esta questão. Sophie apressou-se em acompanhar os dois, enquanto Campbell arrastava Robert, sob a ameaça da pistola, e em direção da ponte. Ela viu que ainda não estava terminada, o que não impedia que fosse cruzada a pé. Ao lado dos dois homens, ela subiu na ponte e foi até o meio. Do parapeito, olhou para a água. Connor estava lá, como ela esperava, pois o tinha visto antes com os companheiros. Mantinha-se abaixado na margem, fora da vista dos outros na ponte. Então, levantou a cabeça, e seus olhares se encontraram. Logo, a expressão dele foi de choque e, depois, de raiva, enquanto gesticulava para que Sophie saísse da ponte. Ela fez um gesto negativo com a cabeça e afastou-se uns passos. Campbell aproximou-se do parapeito e ela ficou à sua frente para impedi-lo de olhar para baixo. — O que você quer, Campbell? Deixe minha irmã em paz. Sua questão não é com ela — Robert gritou. 18


— Eu deveria deixá-la ir, não é? Porém, ela é minha noiva, como você, Duncrieff, deve se lembrar. Sofremos um percalço que logo será remediado — sir Henry afirmou, mantendo a pistola apontada para Robert. — Você tem a Kinnoull House, tomada dos MacPherson. Pretende se apossar também do castelo de Duncrieff? — Tive a rara oportunidade antes de ser o cabeça do clã, e seu pai concordou. Mas ele morreu e você ocupou o lugar. Infelizmente, provou ser um rebelde pior do que ele. Muitos montanheses apóiam a causa Stuart, e os MacCarran estão entre eles. Quero orientá-los para uma posição política mais sensata. — Isso é loucura! Você nunca poderá influenciar ou dirigir meu clã — Robert afirmou, furioso, mas Campbell prosseguiu: — Quando Sophie for a chefe, tomarei as decisões no lugar de minha esposa. Poderei impedir que esse clã continue a apoiar a pretensão idiota de Stuart de recuperar o trono. — Você fez tudo isso para ajudar a política dos Whigs e do gorducho rei George? Você é escocês. De que lado está sua lealdade? — Robert indagou. — Onde você jamais entenderia. Semanas atrás, parecia necessário afastá-lo depressa, talvez matá-lo de uma vez. A sorte me ajudou quando você foi preso. — Virouse para Sophie: — Seu irmão estava na Kinnoull House quando você jantou lá, minha cara. — É verdade, Rob? Deus do céu! Sir Henry tem a idéia louca de se apossar do ouro de Duncrieff. Já lhe expliquei que não existe nada além de uma antiga taça de ouro. — Uma taça e muitas lendas que, nem de longe, valem essa loucura, Campbell — Robert afirmou. — Julgarei isso por mim mesmo tão logo me aposse do castelo. Sofri um golpe de azar quando MacPherson raptou Sophie e se casou com ela. Já faz algum tempo que vigio esse homem. Ele não é inocente. Suspeito que seja o responsável pela destruição de trechos das estradas militares. Campbell debruçou-se no parapeito e gritou: — MacPherson, apareça! Sei que está escondido aí. Se quer que sua esposa viva, suba até a ponte. Connor praguejou. Tinha ouvido parte da conversa na ponte, observava o estopim cada vez mais curto. Não conseguiria mais alcançá-lo para impedir que o fogo chegasse aos morteiros. A ponte explodiria, e Sophie estava nela com Duncrieff. Com a leve esperança de que ela o atendesse, tinha pedido para que ficasse em Glendoon. Se alguém podia dissuadir Campbell de executar o plano louco era Sophie, mas não em cima da maldita ponte. Olhou para Thomas, que tinha aos poucos deslizado pela margem barrenta do rio. Esperava que o rapaz tivesse o bom senso de ficar escondido até que sua ótima pontaria 18


fosse necessária. Depois de mais um olhar preocupado para o estopim, Connor subiu, pela margem e virou-se. Com os braços abertos, para mostrar que não oferecia perigo, entrou na ponte. — Eu desconfiava que sua diferença era comigo, sir Henry. Deixe que eles partam e nós dois acertaremos a questão. — Sem dúvida você tem queixas contra mim — Campbell disse num tom presunçoso, encostando a pistola no pescoço de Duncrieff. Pálida e alarmada, Sophie olhou para Connor. Ele, porém, não a fitou. Se o fizesse, poderia falhar. Ela era sua força e sua fraqueza. — É verdade. Os bens de meu pai foram expropriados por causa de suas atividades políticas, e o senhor se aproveitou disso. — De fato — Campbell concordou. — Qualquer homem teria agarrado a chance de obter uma propriedade excelente. Aliás, duas e a perspectiva da chefia de um clã, se você não tivesse interferido em meu noivado com a srta. MacCarran. —Deixe que eles vão. Sua briga é comigo — Connor repetiu, pensando no estopim e contando mentalmente os minutos. Campbell recuou uns passos, arrastando Rob com ele. Aflita, Sophie tentou ficar entre os dois. Connor calculou a distância que o separava deles. Tornou a olhar para Thomas, que tinha a pistola apontada para as costas de Campbell. Pelos gestos do rapaz, sabia que restava pouco tempo. Recentemente, ele havia tido a chance de ser feliz. Mas a felicidade estava na ponte, fitando-o com os olhos mais lindos que já tinha visto. Não permitiria que mal algum acontecesse a Sophie. Ao ver o cristal brilhar na corrente em volta de seu pescoço, deu-se conta de que a amava da maneira que ela desejava, com amor verdadeiro. Faria qualquer coisa por ela. Mesmo se isso exigisse a sua vida, ele a tiraria dessa ponte com o irmão. — Sophie — murmurou ao se aproximar. — Você sabe que eu te amo? Ela olhou para ele, fez um gesto afirmativo e tocou o cristal — É tarde demais para um milagre que você possa carregar em sua pedra mágica. Mas quero que saiba que este amor é verdadeiro. Os olhos dela encheram-se de lágrimas. — Você sabe nadar? — ele indagou. Confusa, Sophie fez novo gesto afirmativo. Connor chegou mais perto de Campbell, e em voz bem alta repetiu: — Deixe que eles vão, pois não lhe fizeram mal algum. Eu, sim, raptei sua noiva e estraguei suas chances de obter o que mais desejava. Deixe-os ir e me enfrente. — Talvez, se for para você morrer — Campbell respondeu, afastando a pistola de 18


Robert e apontando-a para Connor. Mas nesse momento Connor já agia. Agarrou Sophie e a jogou no rio, onde ela teria a chance de escapar da explosão. Virou-se, gritando, e com uma cotovelada arrancou a pistola da mão de Campbell. Em seguida, correu para Duncrieff, soltou suas mãos e também o atirou no rio. Tudo isso ocorreu em questão de segundos, e no momento seguinte a ponte explodia. A água abriu-se, toneladas de pedras desmoronaram e Connor se viu impulsionado para fora como se tivesse sido atirado pelo cano de uma arma. Enquanto o rio e a terra pareciam rugir e fender-se ao meio, a água jorrava para cima e a ponte desmoronava como se fosse de papel. Sophie gritou e boiou nas ondas, mas Rob a segurou na água perto da margem. Logo depois, Thomas se juntava a eles. Ao mesmo tempo, Padraig descia a colina e soltava Neill. Pai e filho correram encosta acima. Na margem, Sophie continuava a ouvir a explosão e a sentir o impacto daquele momento em que vira Connor ser atirado ao ar como uma boneca de pano. Ele afundou e não emergiu. A água ondulava-se e ela contava os segundos, mas ele não surgia na superfície. — Deus meu — gemeu e tentou entrar no rio, mas o irmão a impediu. — Connor! — gritou. Então, lembrou-se do que ele havia dito: Tarde demais para o milagre que você possa carregar em sua pedra mágica... Este amor é verdadeiro. Não era tarde demais. Impossível. Não importava o sacrifício que lhe fosse imposto, ela o faria mil vezes se Connor pudesse sobreviver. Tocou o cristal, formulou um desejo ardente e aguardou. Observava a superfície do rio coalhada de detritos. Enxergou o casaco cinzento de Campbell, mas não queria ver o que estava sob ele. O magistrado, sem dúvida, tinha morrido durante a explosão. Mal podendo respirar, Sophie olhava e esperava. Apertou o cristal e rezou com mais sinceridade e fervor do que nunca fora capaz. A água começava a se acalmar apesar dos destroços na superfície, insignificantes em comparação com os de sua vida. Abraçada ao irmão, soluçou: — Deus meu, Connor se foi. — Ele ficará bem — Rob garantiu. — Connor está sempre bem. Estranho, uma vez Roderick tinha dito algo parecido. Como o irmão podia afirmar isso com tanta naturalidade? — Connor está sempre bem — ele repetiu, e acrescentou: — Veja. Sophie virou-se depressa. A alguma distância rio abaixo Connor arrastava-se para subir na margem. Estava coberto de lama, mas mexia-se. Ela correu ao seu encontro. Afoita, caía na água, levantava-se e seguia em frente. 18


Connor estava lá à sua espera. Ele passou a mão pelo rosto e então sorriu, os dentes alvos contra a sujeira e os olhos verdes com um brilho esplendoroso. Quando chegou mais perto, ele estendeu os braços e a puxou de encontro ao peito. Rindo e chorando, Sophie o abraçou. Connor baixou a cabeça e encostou a face na sua, água e barro mesclando-se. — Sra. MacPherson, eu te amo — ele murmurou, sorrindo e acariciando-a nos cabelos molhados. — Eu sei, Connor MacPherson — ela sussurrou, intercalando beijos às palavras. — E como este é amor verdadeiro, exige um sacrifício, agora que o cristal o trouxe de volta para mim. — E qual será ele? Ela puxou a manta xadrez encharcada. — Quando chegarmos em casa, penso que deveremos sacrificar nossas roupas. Os dois. — Você não acredita nessa tolice de magia, não é? — Talvez. Espere até ver o jardim quando chegarmos em casa. — Em casa... sim — ele murmurou, e a beijou com paixão, apesar da sujeira. Sophie sabia que o fato de Connor sobreviver tinha sido um milagre. Mas o sacrifício tinha sido dele e não seu ao se mostrar disposto a dar a vida por ela. O Dom de Fada havia se ajeitado à situação, como muitas vezes acontecia. Sophie tornou a beijá-lo e, rindo, deu-se conta de algo. — O amor cria sua própria magia, Connor. — Sim, minha menina, cria mesmo — ele concordou, abraçando-a. — Venha comigo — Sophie convidou, pegando Connor pela mão e fazendo-o atravessar o longo aposento. Seus passos, no soalho de madeira encerada, eram abafados pelos tapetes turcos em tons de azul, vermelho e dourado. — Eu o trouxe aqui para ver isto. — Ah, não foi para jantar com seu irmão, chefe do clã, seus parentes e nossos amigos? Nem mesmo para conhecer a sra. Evans, que alega quase haver tido um ataque de apoplexia na noite em que eu raptei você? — Puxou-a para mais perto. — Ou para conhecer o lar em que você foi criada e os jardins em que trabalhava quando era criança? Só para ver isso? — ele indagou, rindo. — Exatamente — Sophie concordou, olhando para uma cúpula de vidro reluzente, assentada, sobre um pedestal de madeira envolto em veludo vermelho, sobre um consolo de mogno encerado. Sob a proteção do vidro estava uma taça. Na verdade, algo simples, o bojo e o pé 18


de ouro trabalhado a mão, a base, também de ouro, com arabescos iguais aos que rodeavam a borda. Bem de perto era possível ver pequenos cristais que brilhavam sob a luz vinda das janelas da sala de estar, no segundo andar do castelo de Duncrieff. — E isso é... — Connor começou, decidido a provocá-la um pouco. — A Taça Encantada de Duncrieff, nosso tesouro mais precioso — Sophie o interrompeu. — Eu poderia levantar dúvidas — Connor disse, passando o braço por sua cintura e puxando-a para mais perto. — Então, é ela. Parece um tanto velha e bem usada. — É muito antiga. Dizem que foi feita de ouro encantado e pelas próprias fadas. Os cristais foram minerados nas profundezas das montanhas das Terras Altas e também pelas fadas, segundo a lenda. — E esse tesouro foi dado a um dos senhores de Duncrieff?0 mesmo que desertou Glendoon? — Não, a outro muito anterior a ele, que aliás não desertou. Tenho certeza de que a história consta dos anais de nosso clã, que contêm todas as narrativas sobre os MacCarran de Duncrieff. Muitas delas foram escritas pelas mãos dos que viveram essas aventuras. — Prefiro compor música a escrever as nossas histórias, meu amor. Melhor você fazer isso por nós. — Farei com prazer. O primeiro chefe do clã chamava-se Malcolm MacCarran. A fada, sua esposa, deu-lhe a taça muito tempo atrás. — Você está determinada a me contar todos os detalhes da história na taça, mas seus parentes e nossos amigos estão nos esperando. — Eu disse a Robert que iríamos ter com eles depois que eu lhe mostrasse a Taça Encantada. — Passou o braço pela cintura dele e prosseguiu: — Bem, na época das neblinas densas, diz a lenda, esse primeiro MacCarran salvou uma fada cujo cavalo a tinha atirado no rio durante uma tempestade. — Eu quase fiz isso — Connor disse. — Ah, mas você tomou cuidado para que sua fada não se molhasse — Sophie gracejou. — Bem, ele a levou para seu castelo, não muito grande e numa região distante. Compartilharam o calor da lareira, uma bebida, algum alimento e muito mais, de acordo com a história. — Ah, isso parece familiar. Ele estava interessado e curioso, mas gostava de provocá-la. — Os dois se apaixonaram e se casaram. Eu sei, nós fizemos esta parte primeiro — Sophie acrescentou ao ouvi-lo rir. — Ora, continue. — Bem, MacCarran descobriu que sua amada era uma princesa de um reino 18


muito antigo de fadas e possuía poderes mágicos. Felizes, eles tiveram três filhas, aliás como já lhe contei, e cada uma herdou um dom: o de obter o que se deseja, o de profecia e o de curar. Quando as filhas já haviam crescido, a fada deixou a família, embora com grande tristeza, e voltou para seu povo. Havia concordado em fazer isso em troca dos anos de felicidade. Fascinado, Connor passara a ouvi-la com a máxima atenção. — Ela deixou para trás o legado de seu sangue de fada, que de vez em quando transmite um dos dons das três filhas. Isso vem ocorrendo através das gerações dos MacCarran de Duncrieff. Deixou ainda a taça de ouro, forjada pelas fadas de seu reino. — Extraordinário — Connor murmurou, olhando para a taça. — Junto à borda, havia uma fileira de nove cristais. — Dois estão faltando. Não, quatro — ele comentou — Kate e eu temos um cada. De acordo com a tradição da família, quando uma filha nasce com o Dom de Fada, um cristal é tirado da taça e engastado em uma corrente de prata para que ela a use a vida inteira. Após seu falecimento, o cristal é de volvido à taça e a história dessa pessoa é transcrita no livro de registros de Duncrieff. Este fica num armário fechado a chave, aqui no castelo. — E o cristal pode criar um milagre para quem o usa, se as condições forem aceitas — Connor acrescentou. — Nossa tradição diz que o Dom de Fada traz com ele uma condição única. O milagre se realizará apenas em proveito do amor verdadeiro. Se o privilégio for mal usado ou invocado onde o amor verdadeiro não existe, a Taça Encantada perderá sua magia e nunca mais uma MacCarran herdará seu dom. — Meu Deus, eu ignorava esse risco. E os dois cristais que estão faltando, amor? — ele indagou. — Um deles, dizem, nunca foi devolvido. Existe uma história misteriosa a esse respeito, mas eu a desconheço em grande parte. Afirmam que seu poder persiste, pois o amor continua vivo. A lenda diz que o cristal perdido está com o fantasma do castelo, A Donzela da Torre, que ainda não pediu seu milagre. — Do castelo de Duncrieff? Você já viu o fantasma da jovem? — Connor perguntou. — Não, mas minha avó viu. Você não acredita em fantasmas, fadas, magia e em coisas assim, lembra-se? — Estou aprendendo. O que aconteceu ao outro cristal? — Não sabemos. Segundo uma lenda, ele contínua sob a proteção da fada que doou a taça à sua família amada. — E quanto ao ouro que dizem estar escondido aqui? — Ninguém jamais o encontrou. Sempre ouvi dizer que não passa de um mito. 18


Ótimo se fosse verdade, mas... — Sophie calou-se e deu de ombros. — Fale sobre o livro que você mencionou. — Um antigo manuscrito que guardamos aqui. Em cada geração, histórias são acrescentadas. A primeira parte está tão velha que não ousamos abri-la com medo de a esfarelar. Para ser sincera, não sabemos se tais histórias são verdadeiras ou apenas lendas. Mas são maravilhosas. Minha avó costumava me contar algumas quando eu era criança. — E nossa história? — Connor perguntou, e a beijou na testa. — Eu a escreverei quando tiver tempo. Vou estar muito ocupada por um longo período. — Imagino, com seus planos para os jardins de Glendoon e os de Duncrieff. — Além dos da Kinnoull House — Sophie acrescentou. — Ah, eu gostaria muito de dizer que isso seria possível. Mesmo com a morte de Campbell, não receberei a Kinnoull House de volta. Nem sei se conseguirei isso algum dia. Sophie tirou uns papéis do bolso, amarrados com uma fita. — Connor, encontrei isto, mas não percebi logo do que se tratava. Ontem, quando estávamos em Glendoon, eu os examinei e percebi que você também precisava vê-los. Fitando-a com olhar curioso, ele pegou o maço e o abriu. — Uma carta... Não, é... Por Deus, é a escritura de Kinnoull. Onde você achou isto? — ele perguntou, afastando-se um pouco para examinar melhor o documento, escrito numa caligrafia nítida e com o selo real no fim da página. — Eu o achei numa caixa, na arca de sua mãe__Sophie respondeu. — Esta é a escritura que meu pai possuía. Tem a assinatura dele. — Há uma carta também. Seu pai a escreveu. Connor correu o olhar pela caligrafia conhecida e que não via fazia tantos anos. O coração acelerou e os olhos encheram-se de lágrimas. Em voz alta, leu: — Renuncio a meu título de lorde Kinnoull e a meu direito à propriedade de Kinnoull a favor de meu filho Connor David MacPherson... Deus meu, Sophie, meu pai escreveu isto antes de ser preso. Deu tudo para mim. Ela sorriu e afirmou: — A Kinnoull House é sua. — É mais do que isso. Ao passar tudo para meu nome antes de ser preso ou acusado, quer dizer que as terras não podiam ter sido confiscadas. Foi ilegal. A propriedade já era minha. Eu não sabia, pois ele nunca teve a oportunidade de me contar. Mas meu pai salvou Kinnoull. 18


— Então, ela nunca pertenceu a Campbell durante esse tempo todo. Connor sentia-se completamente atordoado. Com mãos trêmulas, dobrou os papéis e os guardou entre as dobras da manta xadrez. Em seguida, estreitou Sophie contra o peito e ficou em silêncio por um momento. Depois, murmurou emocionado: — Obrigado. Mil vezes obrigado. Ela sorriu através das lágrimas e beijou, aqueles lábios quentes e deliciosos. — Sophie, meu amor, eu jamais teria sabido disto sem sua ajuda, e nunca poderei lhe agradecer o suficiente. Estreitou-a entre os braços e a beijou com ternura. — Você não tem de me agradecer por nada, Connor MacPherson. Suas boas maneiras estão meio exageradas para um salteador famoso. Ele riu e disse: — Agora tenho alguma coisa para oferecer à minha esposa. — Sempre teve, só que não sabia. Eu teria me apaixonado por você mesmo que fosse só para ouvir melodias ao violino, lá no topo do castelo Glendoon. — Assim com essa facilidade? E eu me esforçando tanto sem ser preciso. — Riu, mas ficou sério logo. — Sophie, eu não disse o bastante. Eu te amo. — Eu sei, mas gosto de ouvir isso com freqüência. — Eu te amo de verdade — ele repetiu encostando a face em sua cabeça. — Gostei que você tivesse me mostrado a Taça Encantada mas agora, vamos. Estou com pressa de chegar em casa. — Em casa? Onde, Connor? Nós temos três casas agora, Glendoon, Duncrieff e Kinnoull. — Glendoon é apenas minha propriedade alugada e estou pensando em desistir dela. É um horror subir aquelas colinas. — Não, de jeito nenhum — ela protestou, levando-o através do aposento imenso. — Meu irmão pretende nos dar o castelo como presente de casamento. Assim, poderei terminar os jardins, e um dia reformaremos o castelo. — Roderick ficará contente ao ouvir isso — Connor respondeu, rindo. — Para um homem que não tinha um lar, você tem mais do que o suficiente agora. Ele parou e pôs as mãos em seus ombros. — Você traz milagres em seu rastro. Não apenas um, mas muitos. — Uma vida inteira cheia deles — Sophie murmurou, pondo as mãos na barriga. — Haverá um outro dentro de alguns meses. Connor olhou para ela com as sobrancelhas arqueadas e exclamou: 18


— É mesmo?! — Penso que sim. Vamos esperar para ver—ela respondeu, corando. Ele a aninhou entre os braços e fechou os olhos, grato e em silêncio. Não sabia o que dizer e sentia um nó na garganta. Desceram pela escadaria do velho castelo, reformado anos antes. Pelas janelas amplas, Connor viu o terraço e as pessoas que os esperavam, amigos dele e a família de Sophie. Mais adiante viu também uma fileira de vasos, todos com tulipas lindas e coloridas. — Espere — pediu, e a puxou para seus braços. Beijou-a até que ela sentisse as pernas fraquejarem e ele e visse devorado pela paixão. Afastou-se e respirou fundo. Admirou seus olhos lindos e suas faces coradas, cheios de mor e vida. Um lar. Connor se sentia verdadeiramente em um lar, onde quer que Sophie estivesse com ele.

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