O Boletim da Juventude
Pedro Franรงa Lucas Cureau Uma conversa, um jogo, uma farsa
entre
Daniel Jablonski Ismar Tirelli Neto Delia Rogobete
Aos nossos pais
Rua General Severiano // 12 O mundo está cheio de objetos // 18 Vemos um filme deitados em espreguiçadeiras // 47 O importante então é este mecanismo de relógio // 50 O norte-americano Neil Armstrong pisa na lua // 75 Eu já disse o que tinha a dizer // 78 A cidade está no homem // 101 Políticas do despreendimento // 104
Rua General Severiano, 180 / 507. I. “Pequenos jogos”, escreve Louis Aragon em 1924, podem servir de válvula de escape para “ondas de sinceridade heroicas.” Embora frequentemente tachados de frívolos, quando jogados a sério, têm o poder de devolver a certas palavras e gestos desgastados pelo uso corrente uma eficácia adormecida. Nesses casos, parece operarse, ainda que por apenas alguns instantes, um retorno coletivo a “este estado de ofensividade primeira, no qual as rupturas, os ciúmes, as suspeitas, as ruínas do amor e da amizade encontram sua origem.” Com então vinte e seis anos de idade, o escritor aludia a uma série de jogos, populares entre os jovens de sua época, que observavam estritamente uma única regra: realizar o que se pede ou sofrer as consequências — seja ao responder a uma pergunta indiscreta, revelar um segredo ou executar alguma ação
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improvável. Ao contrário de jogos mais sofisticados, como o xadrez, esses pequenos exercícios de intimidade sustentam-se apenas sobre um imponderável senso de cumplicidade entre os participantes. Dispensando peões, dados e tabuleiros, é o que se chama de amizade que lhes confere, ainda hoje, seu significado profundo.
O Boletim da Juventude é resultado de um jogo análogo e traz a transcrição, com algumas poucas modificações, de uma conversa que atravessou a madrugada do dia 29 de dezembro de 2009, em um minúsculo ateliê no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. É quase como se pudéssemos ouvi-los. Reunidos num desses “lugares de convergências” de que fizeram o elogio os surrealistas, Daniel, Delia, Lucas, Ismar e Pedro levantam ideias para um futuro livro, ainda sem título. Eles estão aí a convite de Daniel, e supõem que este volume deva versar sobre suas perspectivas e preocupações atuais, ao fim do projeto que envolvera a todos, de maneiras diversas, ao longo daquele ano: o blog L’insouciance – políticas do desprendimento. A conversa acontece no mesmo cômodo exíguo que, no dia anterior, serviu de cenário para uma primeira sessão fotográfica, destinada a ilustrar aquele livro. Suas palavras, ora confiantes, ora hesitantes, dão voltas no ar e são recuperadas pelo gravador. 13
Está tudo registrado. II. A categoria sob a qual caberia classificar este material seria, certamente, a de colaboração, se o fantasma da farsa não se fizesse tão presente: isto é, se essas duas reuniões não pudessem ser lidas como mero pretexto para a reaproximação de alguns amigos, os quais vinham mantendo um silêncio obtuso desde uma ruidosa ruptura, sentimental e geográfica, no ano anterior. Como se, justamente, todo o trabalho de L’insouciance, até ali, não pudesse ser resumido a uma longa e minuciosa preparação desse reencontro. Não é de se espantar, portanto, que as dificuldades daquele primeiro projeto, no qual todos figuravam como protagonistas de um drama real, fossem também as desses dias quentes de dezembro: a necessidade de insistir na comunicação a qualquer preço, a impossibilidade de encontrar uma só língua para fazê-lo, orientados pela busca de uma forma de sinceridade inaudita. Mas era preciso ir além do trauma, e essa era também a proposta do autor do blog: inverter as regras do jogo, oferecendo-se agora como um significante aberto, pronto para ser escrito por outras mãos. Um nome próprio à espera de um sentido; à espera, portanto, que outros assumissem os fios da nova narrativa.
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III. Mas este livro não seria ainda O Boletim da Juventude, pois a verdade é que, apesar dos melhores esforços, o novo projeto jamais foi adiante, e boa parte daquelas pessoas jamais tornou a se ver. Seria, pois, preciso aguardar ainda alguns anos para que o sentido do fracasso desse jogo da verdade, que era também uma farsa, pudesse aparecer com clareza. Isto é, para que se pudesse compreender que o significado positivo da juventude, sempre coletiva, reside precisamente no descompasso entre as promessas e as realizações. Que há, em suma, uma virtude própria na leviandade dos planos que nunca se cumprem e, por que não?, até mesmo uma beleza inesperada em toda essa ingenuidade travestida de arrogância. É o que revelam com nitidez as fotos tiradas por Pedro, especialmente quando justapostas às fotos de bastidores, feitas no primeiro encontro por Eduardo Berliner. As primeiras, em preto e branco, têm um ar solene, quase memorial; as segundas, têm cores vivas e, ao lado das imagens de arquivo que as acompanham, dão a dimensão do caráter de improviso de todo aquele trabalho de montagem. Elas estão aí, junto do diálogo, inconclusivo, ilustrando a juventude como ela era; ou melhor, como ela continua a ser enquanto continua a ser lembrada.
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The world is full of objects, more or less interesting; I do not wish to add any more. Douglas Huebler, 1969.
O mundo estĂĄ cheio de objetos mais ou menos interessantes; eu nĂŁo desejo acrescentar mais nada.
Ismar:
new.
A collaboration is nothing
Delia: This
is not a collaboration, au sens où... Pedro: It’s
situation.
not a Deleuze-Guattari
Delia: Yes,
é nada de novo.
Delia: Isto não é uma colaboração, no sentido em que… Pedro: Não é uma situação
Deleuze – Guattari.
Delia: Isso, exatamente.
exactly.
Pedro: We’re
not writing a book. We’re sculpting it.
We’re cheating on the book. We’re cheating on the concept of the book. Delia:
We’re building a book, not a text that goes in a book. In a collaboration, usually there’s someone who writes a text that goes in a book. This is a totally different thing. But we’re not making an artist’s book either, we’re not taking the book for an art-object. It’s a little bit different, I guess.
Pedro:
Ismar: We’re not building an artobject – we are building an object. Pedro: But
Ismar: Uma colaboração não
do you understand that a book is not only an object? It’s an object plus its inscription plus its circulation. An artist’s
Pedro: Nós não estamos escrevendo um livro. Nós o estamos esculpindo. Delia: Estamos trapaceando
com o livro. Estamos trapaceando com o conceito de livro.
Pedro: Estamos construindo
um livro, não um texto que vai em um livro. Em uma colaboração, geralmente, tem alguém que escreve um texto que vai em um livro. Isto é uma coisa totalmente diferente. Tampouco estamos fazendo um livro de artista, ou encarando o livro como um objeto de arte. É um pouco diferente, acho.
Ismar: Não
estamos construindo um objeto de arte — estamos construindo um objeto.
Pedro: Mas você entende que
um livro não é apenas um objeto? É um objeto mais sua inscrição mais sua circulação. Um livro de artista seria
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como um livro feito à mão ou algo assim. Não acho que isto seja um livro de artista, nem uma colaboração. Eu gostaria que fosse um livro que legitimasse outra coisa além de si próprio.
Daniel:
Ismar: Sua experiência, você
quer dizer?
Daniel: Não apenas isto, mas
a futura existência de algo tão inexistente hoje como a minha “carreira” de artista plástico; e a possibilidade de fazer outras coisas em seguida, como tal.
Pedro: Você vai pelos limites,
sabe? Começando por fora. Você está tirando fotografias como o ponto de partida para uma entrevista; você está começando uma carreira a partir de um livro.
Daniel: Como alguém se
torna um artista? Essa é uma pergunta que andei me fazendo bastante ultimamente. Como você começa uma prática artística se não é um artista? Como você se torna um artista se ainda não tem nada para mostrar? Acho que a primeira vez que tive toda essa ideia de livro foi quando percebi que a estrutura de uma entrevista...
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book would be like a handmade book or something. I don’t think this is an artist’s book, nor is it a collaboration. Daniel: I’d like it to be a book that validated something other than itself. Ismar: You
mean your experience?
Daniel: Not only that, but the future existence of something as inexistent today as my “career” as a visual artist; and the possibility that I do other things afterwards, as such.
You go through the boundaries, you know? Starting from the outside. You’re taking photographs as a starting point for an interview; you’re beginning a career from a book.
Pedro:
Daniel: How does one become an artist? This is a question that I have been asking myself a lot lately. How do you start an art practice if you are not an artist? How do you become an artist if you haven’t got anything to show yet? I think I first came up with this whole book idea when I realized that the structure of an interview…
Pedro: implies...
Pedro: implica...
... implies interest. We’re all used to seeing interviews with people who are interesting in some way, because they have done this or that or because they have accomplished something or another. Sure, but the interview itself seems to imply that a particular interviewee is interesting regardless of what’s really going on. To the point where, the sheer fact that an interview with this person exists means that he or she must be somehow interesting. The very structure of the thing dictates it.
Daniel:
Delia: And you thought that, if you had an interview conducted with you, then maybe…
Delia: E você pensou que se tivesse uma entrevista conduzida com você, então talvez...
Daniel:
Ismar:
You’d become interesting.
Interesting in that sense, yes, but it all depends on how we are going to do it. That’s why we are here tonight. Daniel:
Pedro: And it has to be an interview with someone who is trying his very best to become less interesting.
... implica interesse. Estamos todos acostumados a ver entrevistas com pessoas que são interessantes de alguma forma, porque elas fizeram isso ou aquilo ou porque realizaram isso ou aquilo outro. Claro, mas a própria entrevista parece implicar que determinado entrevistado é interessante independentemente do que está de fato acontecendo. Ao ponto em que o simples fato de uma entrevista com tal pessoa existir significa que ele ou ela devem ser interessantes de alguma forma. A própria estrutura da coisa dita isso.
Ismar: Você se tornaria
interessante.
Daniel: Interessante
nesse sentido, sim, mas tudo depende de como vamos fazê-lo. É por isso que estamos reunidos aqui esta noite. Pedro: E tem de ser uma
entrevista com alguém que está fazendo seu melhor para se tornar menos interessante.
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Ismar: Tornar-se comum. Pedro: Tornar-se
comum, tornar-se menos interessante. É como se a pessoa estivesse dizendo: “Não sou tão interessante assim, eu nem sei por que você está falando comigo. Eu apenas estava lá, e tal, e tal coisa meio que aconteceu.”
Ismar: O Lucas queria falar
da questão da autoria.
Ismar:
To become ordinary.
To become ordinary, to become less interesting. It’s as if he were saying: “I’m not that interesting, I don’t even know why you’re talking to me. I was just there and such, and this sort of happened.” Pedro:
Ismar: Lucas wanted to talk about the question of authorship. Lucas: É, mas era mais por… em inglês não vai dar. Em português, Delia? Pode ser? Ok, em português então, devagar. A minha preocupação com o livro era mais com o problema do objeto. Acho importante não se tratar de um texto que está perfeito no livro; concentrar-se mais na fabricação, no circuito, no espaço que o livro ocupa... Pedro:
Em um sistema.
Lucas: Isso. Aí entra a questão da circulação: as pessoas que podem se interessar, o fato de o interesse já ser limitado e imposto. O que eu quero discutir ao tratar da questão
“Percebi que a estrutura de uma entrevista implica interesse”
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Daniel: O
livro belo — seja o livro de artista ou o livro de autor — parece legitimarse a si próprio. Parece se bastar, a despeito de outros livros que o autor possa ter escrito, a despeito dos críticos e do público. Ele pretende ser algo...
Ismar: Ele
pretende na realidade ser algo diferente de si próprio... Ele pretende — desculpa — ganhar um estatuto maior — uma posição que é na realidade mais nobre do que o mero livro.
Pedro: É como uma
abordagem poética do objeto.
do autor é a existência ou não dessa palavra perfeita, polida, dentro do livro, sabe? É uma reação a essa coisa do livro-objeto da qual nós estávamos falando antes. Daniel: O livro-objeto legitima-se a si próprio, ele se basta. Lucas: E a intenção dele é principalmente esta. Daniel: The beautiful book – be it the artist’s book or the author’s book – seems to legitimate itself. It stands by itself, regardless of other books the author may have written, regardless of the critics and the public. It intends to be something… Ismar: It actually intends to be something other than itself… it intends to – sorry – ganhar um estatuto maior – a position that is actually nobler than the mere book.
It’s like a poetic approach to the object.
Pedro:
Lucas: Isso. Pedro: Isso, como uma
pintura.
Delia: O Lucas falou
sobre um circuito e eu
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O livro está lá – perfeito, Mallarmé, diagramado – há mais de um século.
Pedro:
Yes, like a painting.
Delia: Lucas
talked about a
circuit and I think that there is indeed a circuit – this book cannot be understood outside its context. It is connected to Daniel’s blog, L’insouciance. So, there is a connection between this kind of questioning the self and questioning the contemporary… je veux dire… contemporary art, the contemporary… what’shappening… Daniel: “The contemporary what’shappening?” Delia: And there’s the other side, of course, which is the blog; something really personal, problematic on a personal level; and how it transforms one’s private story into a sort of chronological history. Ismar: I believe what Daniel was saying before we started this recording is that the blog is a space that contains the personal, and with the book we’re being impersonal. We’re questioning his decisions regarding the making of the book, not necessarily its content – we’re discussing the option for a blog, the option pro-digital.
acho que há de fato um circuito — este livro não pode ser compreendido fora de seu contexto. Ele está conectado ao blog do Daniel, L’insouciance. Então, há uma conexão entre essa forma de questionamento do eu e o questionamento do contemporâneo... quero dizer... da arte contemporânea, do contemporâneo... o que há... Do “contemporâneoo-que-há?”
Daniel:
Delia: E há o outro lado, é claro, que é o blog; algo realmente pessoal, problemático em um nível pessoal; e como ele transforma a história de cada um em uma espécie de história cronológica.
Eu acredito que o que o Daniel estava dizendo antes de começarmos esta gravação é que o blog é um espaço que contém o pessoal e, com o livro, nós estamos sendo impessoais. Nós estamos questionando sua decisão em relação à feitura do livro, não necessariamente seu conteúdo — nós estamos discutindo a opção por um blog, a opção pró-digital.
Ismar:
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Delia: E especialmente essa noção de pessoal. Como o pessoal se torna impessoal.
Eu pensei nesse livro como uma espécie de ferramenta referencial — uma via de fuga e, ao mesmo tempo, um apontar para o blog. Um livro cuja função seria apontar para algo que não está no livro.
Daniel:
Delia: And especially this notion of personal. How the personal becomes impersonal. Daniel: I thought of the book as a reference tool – an escape route and, at the same time, a pointing out to the blog. A book whose function would be to point out something that’s not in the book.
Pedro: Mas todo livro de arte faz isso.
Pedro:
Faz? Bom, deixa eu contar uma história então. Em algum momento este ano, tive uma experiência inquietante de olhar para a biblioteca em nosso apartamento lá em Paris e pensar comigo mesmo: “Isto é muito bonito.” Vocês sabem, Lucas e eu temos uma biblioteca muito bonita, e está toda organizada por cores e temas: literatura, poesia, cinema, politica, filosofia etc. Pois eu me lembro de pensar comigo mesmo um dia: isto é realmente muito bonito, mas eu não acho que vá acrescentar qualquer coisa a ela. Não haverá um livro com meu nome escrito em cima que se pudesse acrescentar a essa biblioteca em particular. Pensando bem, foi a primeira vez que percebi não ter qualquer desejo de
Daniel: Do they? Well, let me tell you a story then. At some point this year, I had this disturbing experience of looking at the library in our apartment back in Paris and thinking to myself: “this is very beautiful.” You know, Lucas and I have a very beautiful library, and I have it all organized by colours and themes: literature, poetry, cinema, politics, philosophy, etc. So, I remember thinking to myself one day: this is truly beautiful, but I don’t think I will add anything to it. There won’t be a book with my name written on it that one could add to this particular library. Thinking back, that’s when I first realized I had no wish to become a professor, even though I have spent the latest years of my life as a full-
Daniel:
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But every art-book does that.
time Philosophy student. Pedro: There’s
this photo of Jacques Derrida’s library, pretty much like yours in Paris, with these… como se diz?
Ismar:
Shelves?
… shelves, but containing only books written by him or books he participated in… It’s like twice the size of my own library. A very beautiful photo, very French-like, the shelves are white… I think I have it here, somewhere. It’s as though the photo said: “listen, this is my work, my oeuvre, this is what I have made.”
Pedro:
Daniel: I’m somehow glad I don’t have Derrida’s library. Ismar: There’s this other preoccupation I had when Daniel first talked about the project, while we were walking around Lapa the other day – that we can’t be personal at all, because that would be sort of a violation of what has been said on the blog, which is Daniel’s space and absolutely private…
me tornar professor, apesar de ter passado os últimos anos como estudante de filosofia em tempo integral. Pedro: Tem essa foto da biblioteca do Jacques Derrida, quase como a sua em Paris, com essas... como se diz? Ismar:
Prateleiras?
Pedro: … prateleiras, mas contendo apenas livros escritos por ele ou dos quais ele participou... É tipo o dobro do tamanho da minha própria biblioteca. Uma foto muito bonita, bem francesa, as prateleiras são brancas... Acho que tenho ela aqui em algum lugar. É como se a foto dissesse: “Olha, essa é a minha obra, minhas obras completas, isto é o que eu fiz.”
Estou, de certa forma, feliz de não ter a biblioteca do Derrida.
Daniel:
Tem esta outra preocupação que me ocorreu quando o Daniel me falou pela primeira vez sobre este projeto, enquanto andávamos pela Lapa no outro dia — a de que não podemos ser, de forma alguma, pessoais, porque isso seria uma espécie de violação do que foi dito no blog, que é o espaço do Daniel e é absolutamente privado...
Ismar:
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Lucas: Privado? Ismar: Bom, não absolutamente privado, pois, afinal, estava na internet. Mas era emocionalmente problemático de alguma forma.
Ismar: Well, not absolutely private, after all, it was on the internet. But it was emotionally problematic in some regard. Lucas: Você não acha que o fato de tanta gente estar participando ativamente ali dentro contradiz essa ideia? Ismar: Você se refere à questão dos comentários? Lucas: Isso. São declarações, muitas vezes, ainda mais emotivas e pessoais do que os textos do Daniel. Ismar: Entendo, mas estou tentando pensar mais no formato da entrevista. Algo aí me parece realmente uma violação desse espaço e desses subespaços que são absolutamente emocionais e afetivos. Lucas: Mas o que te parece uma violação, exatamente? Ismar:
Não sei precisar. Acho que
“Tenho uma biblioteca muito bonita, e está toda organizada por cores e temas”
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Daniel: Pensei nessa
contextualização precisamente como não vindo do meu ponto de vista subjetivo. Sempre me lembro da teoria dos Surrealistas do Homem na Cidade — aquela com Lugares Mágicos, sabe? Quando se está andando pela cidade... como nós estávamos andando agora mesmo, Ismar, pegando cervejas na loja de conveniência. Tomamos um caminho errado em algum ponto e de repente nós estávamos a alguns passos do lugar onde nossa banda ensaiou pela última vez, há não tanto tempo atrás. Eu gostaria de pensar nisso — de alguma maneira — como uma experiência objetiva. Os lugares existem. Assim como a banda, antes da ruptura desagradável. A relação entre certas pessoas deve sempre acontecer dentro de um dado espaço.
Ismar: Eu sempre acho que,
enquanto o espaço pode bem ser objetivo, ele é sempre
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a gente devia tentar, em vez de tratar da questão pessoal (que já está sendo discutida no blog, de uma forma ou de outra), tratar de um meio. Ou seja, primeiro contextualizar de alguma forma, pensar quem é todo mundo, que novíssima mitologia é essa sugerida pelo Daniel... Daniel: I thought of this contextualization precisely as not coming from my subjective pointof-view. I always think of the surrealists’ theory of the Man in Town – that with Magical Places, see? When you are walking about town… like we were walking just now, Ismar, getting beers at the convenience store. We took a wrong turn somewhere and suddenly we were just a few feet away from the place where our band rehearsed for the last time, not so long ago. I’d like to think of this – somehow – as an objective experience. The places exist. So did the band, before the bad breakup. The relationship between certain people must always happen inside a given space. Ismar: I always think that, while space may well be objective, it is
always preceded by someone’s subjectivity.
precedido pela subjetividade de alguém.
Yes, but this was precisely the surrealists’ point – that a mix of objectivity and subjectivity occurs in the city, in the urban space, in the… rencontre… encounter between a person who is walking and all the things that he is thinking about and everything he sees and doesn’t choose to see.
precisamente o ponto dos Surrealistas — a de que uma mistura de objetividade e subjetividade ocorre na cidade, no espaço urbano... no encontro... encontro entre uma pessoa que está caminhando e todas as coisas que ela está pensando e tudo que ela vê e não escolhe ver.
Daniel:
Yes, the fact that we were so near the place where we had our last rehearsal could have gone unnoticed.
Ismar:
I remember Allan Poe’s The Man of the Crowd. How the guy is convalescing from a fever and mixed up between reality and unreality. Pedro:
Ismar: Yes, the man existed, but he would never have interested the narrator if he hadn’t been convalescing.
Daniel, from an objective point of view, what is the connection between your blog and your personal life?
Pedro:
Daniel: Sim, mas este era
Ismar: Isso, o fato de
estarmos tão perto do lugar onde tivemos nosso último ensaio poderia ter passado despercebido.
Pedro: Lembro do Homem
na Multidão do Allan Poe. De como o cara está convalescendo de uma febre e confuso entre a realidade e não realidade. Ismar: Sim, o homem
existiu, mas ele nunca teria interessado ao narrador se não estivesse convalescendo.
Pedro: Daniel, de um ponto
de vista objetivo, qual é a conexão entre seu blog e sua vida pessoal?
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Daniel: Em termos não
emocionais, é algo que ocupou meus pensamentos e minha vida durante um ano. E a duração foi estabelecida desde o início.
Daniel: In unemotional terms, it’s something that has occupied my thoughts and my life for one year. And the duration was established from the start. Lucas: E
o que você acha que existe de pessoal no blog? Depende do que você entende por “pessoal”.
Daniel: Pedro: Por exemplo, como
isto é diferente do que acontece, vamos dizer, em uma pintura do Malevich?
Daniel: Não sei. Eu,
obviamente, vejo as pinturas do Malevich considerando o fato de que li alguns de seus escritos. Conheço seu estilo e sei que as duas coisas estão relacionadas. Nesses escritos, ele fala de sua vida — de quanto ele deve àquele colecionador em específico que comprou os Matisses etc. Ele está sempre falando da sua vida, mesmo que esteja propondo, em última instância, uma teoria cosmológica da natureza ou coisa parecida. E esse era o ponto da nossa tentativa louca de “recriar” o ateliê do Malevich para uma sessão de fotos no ano passado.
For instance, how is it any different from what happens, say, in a Malevich painting?
Pedro:
Daniel: I don’t know. I obviously see Malevich’s paintings considering the fact that I have read some of his writings. And I know his style and I know that the things are related. In those writings, he talks about his life – how much he owes to that one collector who bought the Matisses, etc. He is always talking about his life, even if he is ultimately attempting some cosmological theory of nature or whatever… And this was the point of our crazy attempt “to recreate” Malevich’s studio for a photoshoot last year.
“Tomamos um caminho errado em algum ponto”
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Sugerir que o Suprematismo poderia ser o resultado de um simples incidente doméstico, envolvendo seus móveis, algum material de arte e uma lâmpada. Mas, de qualquer forma, era claramente uma piada de artista e, quanto a mim, não gostaria de ter a minha vida pessoal confundida com o blog.
To suggest that Suprematism could be the result of a simple domestic incident, involving his furniture, some art material and a light bulb. But anyway, it was clearly an artists’ joke, and as for myself, I wouldn’t like to have my personal life confused with the blog.
Pedro: “Não é um blog!”
Daniel: No,
Daniel: Não, não é um blog. Pedro: Isso foi algo que a
Sophie Calle disse quando fez sua palestra no Parque Lage: “Não é um blog.”
Daniel: “Não é um diário”,
ela disse.
Daniel: Trata-se muito
mais de uma mitologia do que de uma confissão. Basicamente, porque estou me definindo em relação a uma narrativa, que inclui outros personagens e tempos. E a razão pela qual eu não posso dizer o quão pessoal é o blog é mesma pela qual decidi várias vezes mudar a trama dessa ou daquela
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Pedro:
“It’s not a blog!” it’s not a blog.
That was something Sophie Calle said when she lectured at Parque Lage: “it’s not a blog.”
Pedro:
“It’s not a journal”, she said. Daniel:
Lucas: Voltando
à pergunta: que pessoalidade, digamos assim, você construiu com o blog?
Daniel: It’s much more of a mythology than a confession. Basically because I’m defining myself in relation to a narrative, that includes other characters and times. And the reason why I cannot tell you how personal the blog is is the selfsame reason why I have decided several times to twist the plot this way or that
way, by making references and taking on roles that are very often contradictory. For instance, the “futurist artist” and the “surrealistic writer”; or assuming André Breton’s identity telle quelle, which does not make any sense — that goes without saying.
forma, fazendo referências e assumindo papéis que eram com muita frequência contraditórios. Por exemplo, o “artista futurista” e o “escritor surrealista”; ou assumindo a identidade do André Breton tal qual, o que não faz nenhum sentido — isso é uma coisa óbvia.
Lucas: Mas fazia parte da sua narração, de certa maneira? Daniel: Fazia. I mean, I have changed my alias several times, I have changed my occupation several times… I usually called myself, or what I did, the relation between what I am to what I was doing – first, well, I don’t remember what I wrote, I’ll have to look it up… but later on I changed it to “anarquista prático” in reference to John Cage… and then to “fenomenólogo alienado”, “índio de fraque”, “cogito do medo”, “filhinho da mamãe”, and finally, if I’m not mistaken, to “mitógrafo da novíssima cena carioca”. At some point, I realized that I wasn’t talking about that guy with relationship issues anymore. Lucas:
Daniel: Fazia. Quero dizer,
mudei meu apelido várias vezes, mudei minha profissão várias vezes... Eu geralmente me chamava, ou o que eu fazia, a relação entre o que eu sou e o que estava fazendo — bom, primeiro não lembro, vou ter de olhar lá... mas mais tarde mudei para “anarquista prático” em referência ao John Cage... e depois para “fenomenólogo alienado”, “índio de fraque”, “cogito do medo”, “filhinho da mamãe” e, finalmente, se não me engano, para “mitógrafo da novíssima cena carioca”. Em algum momento, eu percebi que não estava mais falando daquele cara com problemas de relacionamento.
E por que não?
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Daniel: Porque eu realmente
Daniel: Because I really think that this narrative voice depends on the structure that Ismar first called “Todo mundo” in his first shortstories book, Juvenília. Did you have the chance to read it?
Pedro: Não é uma relação sujeito / objeto. Por exemplo, você tem, em um autorretrato, uma instância na qual o objeto é o artista... mas você ainda tem um sujeito e um objeto. Mesmo que o artista ocupe as duas posições, há ainda duas camadas para a operação. Eu não acho que esse seja o caso aqui.
Pedro:
acho que essa voz narrativa depende da estrutura que o Ismar chamou antes de “Todo mundo” no seu primeiro livro de contos, Juvenília. Vocês tiveram a oportunidade de lê-lo?
Daniel: Com esta entrevista,
eu acredito que estamos alcançando uma das últimas possibilidades evidentes de falar de algo... como se nós estivéssemos apontando em sua direção de um... muito distante, muito exterior...
Ismar: Ponto de vista. Daniel: Vejam
bem, não sou eu quem está tirando estas fotografias. Eu tentei escrever em forma de manifesto, de uma
It’s not a subject / object relation. For instance, you have, in a self-portrait, an instance where the object is the artist… but you still have a subject and an object. Even if the artist addresses both positions, there are still two layers to the operation. I don’t think this is the case here.
Daniel: With this interview, I believe we are reaching one of the last evident possibilities of talking about something… as if we were pointing towards it from a very removed, very exterior… Ismar:
Point of view.
You see, I’m not the one taking these photographs. I have tried to write in a manifestolike way, I have tried to write in a futuristic, a surrealistic, a
Daniel:
“Um simples incidente doméstico”
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forma futurista, surrealista, jornalística, matemática e mesmo demasiado emocional — uma tentativa que todos tomaram por meus sentimentos reais em relação à minha mãe, o que foi meio chocante para mim. Quero dizer, por que este em vez dos outros? Eu tentei todos os estilos que podia como um escritor amador. Tentei também enxertar os textos de outras pessoas nos meus — cartas, SMS e imagens também — a escrever não sobre, mas... a partir, a partir do que vocês me escreviam, a partir do que vocês estavam me dizendo, a partir de todos vocês... De alguma forma, acho que esta entrevista é o entorno de que o blog carecia. Mas sempre fez parte do blog — como seu exterior. Pedro: Por
isso é tão importante gravar esta conversa e pedir ao Eduardo [Berliner] para tirar as fotos. É sempre necessário um outro ponto de vista, e outro e outro.
Daniel: Tem
sido muito bom para mim discutir tudo isto, porque eu estava lendo coisas diferentes e tentando aplicá-las de forma que pudessem funcionar juntas...
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journalistic, a mathematical, and even in an overly emotional way – an attempt everyone mistook for my actual feelings regarding my mother, which was kind of shocking to me. I mean, why this one instead of the others? I have tried all styles I could as an amateur writer. I have also tried to graft other people’s texts onto mine — letters, SMS, and pictures too — and to write not about but… a partir, after what you wrote, after what you were telling me, after all of you… Somehow, I think this interview is the surroundings that the blog lacked. But it’s always been part of the blog — as its own outside. That’s why it is so important to record this conversation, and ask Eduardo [Berliner] to take the photos. It always takes another point of view, and another one, and another.
Pedro:
Daniel: It’s been really good for me to discuss all this, because I was reading different things and trying to apply them in a way that they would work together… and what I noticed several times was that I
kept happening upon things that had already been discovered several times before – which I also found quite shocking. I was talking about mythology way before coming across Breton’s book on modern mythology. I didn’t know he had written about this subject, what, 80 years ago? But it never prevented me from doing anything; to me, the proof that these things really exist is that I was able to make sense of them beforehand. I was taken to the same places by myself. Ismar: I had a professor who introduced this awesome expression to me: “arrombar porta aberta”, to bust open an open door. Delia: What are you actually planning to talk about in this interview?
I would like this to be a context-generating work, because the blog was originally intended for those directly involved in the story, and it gets hard to follow if you don’t know it from the start. I really think this is important, especially for new readers, so that the blog doesn’t rely on a flat Daniel:
e o que notei várias vezes é que não parava de esbarrar em coisas que já haviam sido descobertas várias vezes antes — o que também achei bem chocante. Eu estava falando de mitologia muito antes de cruzar com o livro de Breton sobre mitologia moderna. Eu não sabia que ele tinha escrito sobre o assunto há o quê, 80 anos atrás? Mas isso nunca me impediu de fazer o que quer que fosse; para mim, a prova de que essas coisas realmente existem é que eu fui capaz de fazer sentido delas de antemão. Eu fui levado aos mesmos lugares por mim mesmo. Ismar: Eu tive um professor
que me apresentou esta incrível expressão: “arrombar porta aberta.”
Delia: Do que você está
realmente planejando falar nesta entrevista?
Daniel: Eu gostaria que este
fosse um trabalho gerador de contexto, porque o blog foi originalmente pensado para aqueles diretamente envolvidos na história, e fica difícil de acompanhar se você não a conhece desde o início. Eu realmente acho que seja importante, especialmente para novos leitores, para que
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o blog não fique dependente de uma interpretação estética rasa. Afinal, é um projeto fortemente narrativo. Não foi apenas pensado para ser lido ou visto, mas para funcionar de certa forma para certas pessoas: para fazê-las responderem. Pedro: Seria como uma
transcrição desta conversa?
Ismar: Na verdade, não,
porque não estamos dando nomes aqui, nem nada parecido. Estamos sendo bastante teóricos a respeito disso nesta discussão. Quando nós de fato começarmos a escrever a respeito, não poderemos nos permitir ser nem teóricos nem demasiado emocionais. Temos que encontrar um espaço intermediário e lidar com como você escolhe encarar sua experiência.
Daniel: E tem de ter um estilo
de conversa.
Pedro: Sugiro que façamos
uma transcrição desta conversa e a tomemos como ponto de partida.
Eu gostaria muito de publicá-la em português pois o blog é para pessoas que entendem português. Eu sei que há leitores franceses,
Daniel:
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aesthetic interpretation. After all, it’s a highly narrative project. It wasn’t only meant to be read or to be seen, but to work in a certain way for certain people: to make them respond. Would it be like a transcript of this conversation?
Pedro:
Ismar: Not really, because we’re not naming names or anything. We’re being really theoretical about it in this discussion. When we actually start writing about it, we can’t afford to be either theoretical or overly emotional about it. We have to find an intermediary space and deal with how you chose to face your experience. Daniel: And it has to be conversational in style. Pedro: I
suggest we make a transcript of this conversation and take it as a starting point.
Daniel: I’d very much like to publish it in Portuguese because the blog is for people who understand Portuguese. I know there are French readers, Romanian readers, etc., but the truth is… it reads in Portuguese
even when it’s written in English, Italian or French. Ismar: That’s the feeling I got all the time. You were forcefully distancing yourself with whatever it was you employed – a foreign language, or a language you knew was not really accessible to your entire readership. Daniel: I was planning to create gaps of meaning for certain people who were not familiar with some aspects of the story. I really meant to create gaps, both linguistic and informational. Ismar: I, for one, was so distraught and annoyed when you wrote in French that I would spend weeks without reading the blog.
I didn’t know certain characters and facts, so some references were kind of mysterious to me.
Pedro:
I know that it isn’t 100 % clear to anyone. I know it because I did that on purpose. Daniel:
Ismar:
Were you irritated, Pedro?
Sometimes I tried to read the previous posts, and the comments,
Pedro:
leitores romenos etc., mas a verdade é que se lê em português mesmo quando está escrito em inglês, italiano ou francês. Ismar: Foi a sensação que tive
o tempo todo. Você estava se distanciando à força, com o que quer que fosse empregado — uma língua estrangeira ou uma língua que você sabia que não era realmente acessível a todos os seus leitores.
Daniel: Eu estava planejando
criar lacunas de sentido para certas pessoas que não conheciam certos aspectos da história. Eu realmente quis criar lacunas, linguísticas e informacionais.
Ismar: Quanto a mim, ficava
tão chateado e irritado quando você escrevia em francês que passava semanas sem ler o blog.
Pedro: Eu não conhecia alguns
personagens e fatos, então algumas referências eram meio misteriosas para mim.
Daniel: Eu
sei que não está 100 % claro para ninguém. Eu sei porque fiz de propósito.
Ismar: Você ficava irritado,
Pedro?
Pedro: Às
vezes eu tentava ler
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as postagens anteriores, e os comentários, com todas aquelas pessoas levantando as mãos e dizendo tipo: “Então, este sou eu, seu filho da puta.” Ismar: “Este sou eu e estou indo quitanda!” Pedro: Pois, às vezes, os
with all those people raising their hands and going like: “So, hey, this is me, seu filho da puta.” Ismar: “This is me and I’m going quitanda!”
So, at times the commentaries would explain what was going on, but quite often they didn’t.
Pedro:
comentários explicavam o que estava acontecendo, mas bem frequentemente não.
Lucas:
Daniel: Não, não tem, porque estou vivendo na França.
Daniel: No, it hasn’t, because I’m living in France.
Acho que o Francês do blog não tem o mesmo peso que outras línguas, como o Inglês, por exemplo.
Ismar: Acho que é uma língua que ocorre muito mais naturalmente a vocês. Mas Daniel sabe que eu leio o blog e só entendo inglês – tenho certeza de que isso passou pela cabeça dele.
Oh. People in the comments, they signed with nicknames. Sometimes.
Pedro: Ah.
Pessoas nos comentários, às vezes assinavam com apelidos. Às vezes.
Pedro:
Delia: Há também os
Delia: There are also anonymous. Anonymous that are self-evident.
anônimos. Anônimos que são autoevidentes.
“Vejam bem, não sou eu quem está tirando estas fotografias”
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Mas isso exige uma certa continuidade da parte do leitor. Há pessoas lendo o blog que estão interessadas no que acontece, mas não conseguem entender tudo, ou porque não conhecem todo o contexto, ou porque a língua não lhes é inteiramente acessível. E estas são algumas das lacunas que o Daniel mencionou antes e que parecem justificar a necessidade desta entrevista.
But it demands certain continuity on the part of the reader. There are people reading the blog who are interested in what is going on but cannot get everything, either because they don’t know the whole context, or because the language is not entirely accessible to them. And those are, maybe, some of the gaps Daniel mentioned before, that seem to justify the need for this interview. Lucas: Voltando à questão da língua; você comentou a respeito do blog com seus conhecidos franceses... você não acha que isso muda um pouco a coisa? Em alguns momentos, a preocupação de escrever em francês...
Acho que o blog ficou um pouco mais afrancesado em algum momento.
Pedro:
Daniel: Eu sabia que tinha
leitores franceses. Em algum momento, eu sabia que estava escrevendo para franceses, porque eles estavam deixando comentários e falando comigo. Mas não sei, eu nunca senti que...
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Daniel: I knew I had French readers. At some point, I knew I was writing to French people, because they were leaving comments and talking to me. But, I don’t know, I never felt that... Lucas: Eu não tinha a impressão de que você estava escrevendo em
português: às vezes soava como “francês em francês.” Daniel: Well, this has quite a simple explanation: grande parte dos textos eu peguei da internet. Inclusive, Ismar, achei lá boa parte da pesquisa que você usou para o Juvenília – toda aquela parte sobre o Olivier Messiaen no campo de detenção Stalag VIII, sabe? The same goes, Lucas, for most of the English text, obviously, because my English is not literary. I’ve just finished editing an entry on the death of Nicolae Ceausescu and the fall of communism two or three days ago… I didn’t add any information to it, I just lifted some paragraphs and tried to reorganize them… and I did the same several times in French. I really have to thank Wikipedia’s founder Jimmy Wales for that. The blog wouldn’t exist without him.
Well, sometimes you could tell, sometimes you couldn’t.
Pedro:
Lucas: Aquele vídeo seu lendo um manifesto no meio da manifestação; o texto era em francês, não era?
Daniel: Bom,
isso tem uma explicação bem simples: grande parte dos textos eu peguei da internet. Inclusive, Ismar, achei lá boa parte da pesquisa que você usou para o Juvenília – toda aquela parte sobre o Olivier Messiaen no campo de detenção Stalag VIII, sabe? O mesmo vale, Lucas, para a maior parte dos textos em inglês, obviamente, porque meu inglês não é literário. Acabo de editar uma entrada sobre a morte de Nicolae Ceausescu e a queda do comunismo há dois ou três dias... Não acrescentei qualquer informação aí, apenas peguei alguns parágrafos e tentei reorganizá-los... e fiz a mesma coisa várias vezes em francês. Eu realmente tenho de agradecer ao Jimmy Wales, o fundador da Wikipedia, por isso. O blog não existiria sem ele.
Pedro: Então, às vezes você podia sentir isso, às vezes não.
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Daniel:
Não, em português.
Lucas: Mas na época você estava escrevendo bastante em francês. Daniel: Daniel: Não sei. Eu acho
que tentei o melhor que pude explorar todas as possibilidades que tinha fazendo vídeos com meu telefone celular que duravam dez segundos sobre pássaros, mas também um filme supercomplexo editado pelo Pedro com referências a Oswald de Andrade e à antropofagia. E, nesse caso que você mencionou, eu estava lendo um manifesto durante uma manifestação que não tinha qualquer ligação com ele e ninguém à minha volta podia entender uma só palavra. Porque estava lendo um manifesto em português no meio de uma praça em Paris durante uma manifestação pela cultura.
Estava.
Lucas: Você não acha que o jogo com a transmissão da informação é diferente nesse caso? Daniel: I don’t know. I think that
I’ve tried my best to explore all the possibilities I had, by making videos that lasted ten seconds about birds with my cellphone, but also a super complex film edited by Pedro with references to Oswald de Andrade and anthropophagy. And in this case you mentioned I was reading a manifesto during a manifestation for something that had no connection with it and no one around me could understand a word. Because I was reading a manifesto in Portuguese in the middle of a square in Paris during a manifestation for culture.
Lucas: Não foi uma manifestação gigantesca pró-universidade? Daniel: Não, foi uma
periférica, um tipo de flash mob. Todos deviam seu livro favorito ler em voz alta.
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Daniel: No, it was a peripheral one, a kind of flash mob. Everyone was supposed to read aloud from their favorite book.
L’important alors est donc cette cet horlogisme, cet instantané, comme un discours prononcé à l’occasion de n’importe quoi mais à telle heure. C’est une sorte de rendez-vous. Marcel Duchamp, 1934.
O importante então é esta este mecanismo de relógio, este instantâneo, como um discurso dito por ocasião de qualquer coisa mas a tal hora. É uma espécie de encontro marcado.
Ismar: You’re actually proposing a difficult collaboration, involving people who do not wish to collaborate. You’re forcing them to collaborate.
Ismar:
Yes, I think this is especially true when it comes to my parents. Even more than to those directly involved in my little adolescent drama: Lucía [Santalices], Luiza [Novaes], the band, etc. My father, for instance, told me he wouldn’t write on the blog. But he reads it; he told me so.
Daniel:
Daniel:
But what happened there is that he replied to you in private. He refused to play the game.
Delia:
Você está, na realidade, propondo uma colaboração difícil, envolvendo pessoas que não desejam colaborar. Você as está forçando a participar. Sim, penso que seja especialmente verdade no que diz respeito aos meus pais. Talvez até mais que para aqueles diretamente envolvidos no meu pequeno drama adolescente: Lucía [Santalices], Luiza {Novaes], a banda etc. Meu pai, por exemplo, me disse que não escreveria no blog. Mas ele lê; ele me disse que lê.
Delia: Mas o que aconteceu aí é que ele te respondeu em privado. Ele se recusou a jogar o jogo.
Bem, parcialmente. O que eu disse a ele é que eu não conhecia a história da minha família. Eu tenho uma história familiar bastante dura, para dizer o mínimo: meus parentes foram forçados a participar da história do século XX.
Well, partially. What I told him was that I did not know my family story. I have a really harsh family story, to say the least: my relatives were forced to participate in the history of the 20th century.
Daniel:
You’re replicating the same tyrannical forces.
Ismar:
Daniel:
Ismar:
Delia:
He’s a tyrant.
Daniel:
Thank you for pointing
Você está replicando as mesmas forças tirânicas.
Delia:
Ele é um tirano.
Daniel: Obrigado
por apontar isto. Mas, sério, o que eu estava dizendo a meu
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pai era que não conhecia a história da nossa família. Nós não temos álbum de família. Eu acho que só me dei conta disso no verão passado, passeando por Cracóvia com ele e a sua mulher. Uma viagem de férias incomum, diga-se de passagem: nós fomos juntos à Polônia, com o dinheiro do fundo alemão de reparação da segunda guerra mundial, procurar pelas origens dos meus avós. É claro que não “encontramos” nada, pois não tínhamos nem sequer uma pista do que estávamos procurando... Então eu disse a ele que deveríamos tentar acrescentar uma nova camada a essa viagem, falando da vida dele. Desde então, ele tem me enviado — da forma menos emotiva possível, pois é assim que ele é — capítulos de sua vida por e-mail, o que é ridículo, é claro. Mas é também enorme para nós, visto que ele parece saber tão pouco sobre seus pais, que foram sobreviventes de campos de concentração. Ou, como minha mãe me disse uma vez, ele apenas tende a esquecer as coisas de modo terrivelmente fácil — o que também é absurdo.
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that out. But seriously, what I was telling my father was that I did not know our family story. We have no photo album. And I think I only realized that last summer, strolling around Krakow with him and his wife. Unusual vacation trip, by the way: we flew together to Poland, with money from the German WW2 reparation fund, to look for my grandparents’ origins. Of course we didn’t “find” anything, because we didn’t have a clue as to what we were looking for… So, I told him that we should try to add another layer to this trip, by talking about his own life. Since then he’s been sending me – in the most unemotional way possible, because that’s the way he is – chapters of his life via e-mail, which is ridiculous, of course. But it’s also huge for us, since he seems to know so very little about his parents, who were Holocaust survivors. Or, as my mother once said, he just tends to forget things so awfully easy — which is also absurd.
He must feel encouraged by your interest.
Ismar:
I think I’ve helped him realize this somehow. Just four days ago he sent me an e-mail telling me in great detail what the experience of going to jail and being tortured was like. It was something really, really personal. But you know what’s the strangest thing about it…I feel he knows I’m going to publish it. And that by sending the material, it’s almost as if… he wanted me to.
Ele deve se sentir encorajado pelo seu interesse.
Ismar:
Daniel:
Daniel:
Delia:
Wait, but he’s not the one who’s going to publish it.
Delia: Espera, mas não é ele quem vai publicá-lo.
He can’t do that, he couldn’t do that. So he’s giving me the material.
Daniel:
Daniel:
Pedro: He’s giving you the opportunity.
Because I asked him, he sent me a photograph – by e-mail – of my grandfather at Mauthausen, a concentration camp in Austria. He managed to track it down in Hong Kong,
Daniel:
Acho que o ajudei de alguma forma a perceber isso. Há apenas quatro dias ele me enviou um e-mail contando em grande detalhe como foi a experiência de ir para a cadeia e ser torturado. Foi algo muito, muito pessoal. Mas sabem o que é o mais estranho a respeito? Eu sinto que ele sabe que vou publicá-lo. E que me mandando o material é quase como se... ele quisesse que eu o fizesse.
Ele não pode fazer isso, ele não poderia. Então está me dando o material.
Pedro: Ele está te dando a oportunidade de fazê-lo.
Porque eu pedi, ele me mandou — por e-mail — uma fotografia de meu avô em Mauthausen, um campo de concentração na Áustria. Ele conseguiu rastreá-la em Hong Kong, onde meu tio está vivendo atualmente. Ele fez a pesquisa dele.
Daniel:
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where my uncle is presently living. He did his research alright.
Ismar:
Sério, não.
Essas pessoas são a sua família e elas tiveram, em grande parte, uma experiência traumática. Delia:
Daniel:
Não é só isso.
Delia: Deixa eu acabar. Você está forçando essas pessoas a se expor. Quando alguém te responde fora do blog, está, na realidade, indo por fora da coisa. Não é que ele claramente se recuse a jogar o jogo, porque você ainda pode publicar o que a pessoa te escreve em privado, mas ela está, de alguma forma, tentando evitá-lo. O que acontece, Daniel, é que as pessoas deveriam ter a escolha de não jogar o seu jogo! Mas você sabe que elas não tem; uma vez que você nomeia alguém no seu blog, este já está...
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Ismar: Eu não sei o que seu pai acha, mas é muito possível que isso tenha sido um movimento exclusivamente de pai para filho. Você tem acesso a essa foto, mas sabe que não deve publicar, tanto que não publicou. Daniel: Ismar:
Ainda.
Really, don’t.
Delia: These people are your family and they have largely had a traumatic experience. Daniel:
It’s not just that.
Delia: Let me finish. You’re forcing these people to expose themselves. When someone answers you outside the blog, he’s actually getting around the thing. It’s not that he clearly refuses to play the game, because you might still publish what he writes to you in private, but he is avoiding it somehow. The thing is, Daniel, people should have the choice to not play your game! But you know they don’t; once you name someone on your blog, he is already…
Pedro:
I don’t think it’s that different. I think it goes around the blog somehow, but it’s a spiraling motion.
Pedro: Eu não acho que seja tão diferente. Acho que dá a volta no blog de alguma forma, mas em um movimento em espiral.
My father knows I’m going to put it up in the blog.
Daniel:
Daniel:
But you will not put the whole thing up in the blog. Delia:
I will put something. And it’s very important to do so. That’s the only reason why he’s sending me all that.
Daniel:
He’s giving you the opportunity to publish everything.
Pedro:
Delia: But don’t you see? He won’t put everything. He’s the one who will choose what to put on and what to leave out. Lucas: Plus ou moins, Delia. Ce n’est pas Daniel qui va choisir ce qu’il va publier, notamment dans ce cas-là, tu vois? Il ne va pas publier tout ce qu’il veut sur sa famille, car justement, il n’en sait rien.
Oui, mais il publie tout ce qu’il veut de ce mail écrit par son père. C’est-à-dire, il va choisir quelque chose, il ne va pas tout mettre... Ce n’est pas son père qui Delia:
Meu pai sabe que vou colocar aquilo no blog.
Delia: Mas você não vai colocar a coisa toda no blog.
Eu vou botar alguma coisa. E é muito importante que o faça. Essa é a única razão pela qual ele está me mandando tudo aquilo.
Daniel:
Pedro: Ele está te dando a oportunidade de publicar tudo. Delia: Mas vocês não veem? Ele não vai pôr tudo. É ele quem decide o que colocar e o que deixar de fora. Lucas: Mais ou menos, Delia. Não é o Daniel que vai escolher o que vai publicar, sobretudo nesse caso, sabe? Ele não vai publicar tudo que quiser sobre sua família, porque justamente, ele não sabe nada a respeito. Delia: Sim, mas ele vai publicar tudo o que quiser desse e-mail do pai dele. Quero dizer, ele vai escolher alguma coisa, não vai colocar tudo... Não é o pai
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dele que escreve alguma coisa para o blog – ele escreve para o Daniel.
écrit quelque chose pour le blog – il écrit à Daniel. Se o desejo não foi explicitado em nenhum momento, então você está pensando de maneira psicologizante, acreditando que ele tem uma vontade subconsciente de ser exposto por você.
Ismar:
Não, não. É só que avisei aos meus leitores que qualquer coisa que possa obter deles pode aparecer no blog. E estou convencido de que as pessoas evitam me enviar coisas por esta razão.
Daniel:
Não, não. It’s just that I have warned my readers that whatever I am able to get from them can turn up in the blog. And I’m convinced people avoid sending me things because of that.
Daniel:
Não sei se o problema do blog é esse. Não sei se o trabalho do blog é esse. Não sei se é isso o que Daniel se propõe a fazer. O lugar de uma intimidade entre pai e filho não é o blog, então, há todo um questionamento de ordem ética que não faz sentido.
Lucas:
Não faz sentido porque quem manda é o blog. Em última instância, a questão da
Pedro:
“Era algo muito, muito pessoal”
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exposição não é tão importante quanto a maneira como se é exposto. Acho que o trabalho do Daniel aí é dizer o que você faz quando é exposto; o que você diz quando é exposto. Porque participa da experiência dele... E como participa da experiência dele, algum direito ele tem.
Ismar:
Óbvio. Ele também tem direito sobre a experiência porque é dele.
Lucas:
Eu posso estar preso demais a contratos muito sentimentais.
Ismar:
Mas eu nunca te perguntei, Ismar, se podia publicar trechos de um livro que você mesmo nunca publicou. Eu deveria ter escrito um prefácio para ele na época, lembra? Eu ainda tinha a coisa toda na cabeça e não consegui superar.
Daniel:
Você se apropriou do texto de uma maneira que senti validada. Além do que, é ficção — não exatamente ficção —, é literário, não é uma verdadeira confissão, não é algo dolorido. Sério, Daniel, não são os meus
Ismar:
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But I never asked you, Ismar, if I could publish excerpts from a book you yourself never published. I was supposed to write a foreword for it, back then, remember? I still had the whole thing on my mind and couldn’t get over it.
Daniel:
You appropriated the text in a way that I felt validated. Plus, it’s fiction – not really fiction, but – it’s literary, it’s not an actual confession, it’s not something that is sore.
Ismar:
Really, Daniel, it’s not my grandparents being confined to a concentration camp – it’s just a very small fragment of something we experienced together and experience can be rated in terms of cruelty, in my opinion.
avós sendo confinados em um campo de concentração — é apenas um pequenino fragmento de algo que vivenciamos juntos e a experiência pode ser avaliada em termos de crueldade, na minha opinião.
Pedro: Você quer dizer, então, que pode haver um limite. Ismar: Sim. Mas não estou pleiteando esse limite. Estou dizendo que ele existe e que precisamos nos inteirar.
Uma coisa é o limite (tradicional, acredito). Outra coisa é o trabalho. O que eu tentei explicar para todo mundo é que não estou escrevendo qualquer coisa. Eu não preciso expor essas pessoas da maneira cuidadosa como estou fazendo – eu poderia expô-las de um jeito ridículo. O que estou fazendo é, sim, um trabalho de exposição. Não é qualquer coisa; pelo contrário, é bastante complicado. Bom, como qualquer coisa pode ser. Mas, enfim, o que quero dizer é que a montagem não é mentira, ela é essencial. Mais importante que
Daniel:
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qualquer coisa é quando. Eu não estava falando das coisas que estou falando agora há um ano. Sem os textos que escrevi ao longo deste ano, eu não teria chegado aqui. O Pedro disse agora, o que importa é como a exposição é feita. Sim, mas ainda mais importante que qualquer coisa é quando. Daí a importância de ter tudo que se escreve datado. Essa é, talvez, a questão do blog, assim como o Duchamp dizia ser a do readymade : “Qualquer coisa na hora certa.” Tanto que os posts sobre o pai são os mais recentes.
Ismar:
São os últimos – os da minha mãe estão no início. O pai é a parte mais complicada porque envolve muita dor, o que faz dela uma coisa muito difícil de falar. Mas eu não gostaria que a história de nossa família fosse aquela da anistia — do apagamento, do esquecimento. Pois isso é exatamente o que aconteceu com o meu avô e é exatamente o que aconteceu com meu pai — além do quê, sei que tenho, eu próprio, uma inclinação
Daniel:
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São os últimos – os da minha mãe estão no início. The father is the most complicated section because it involves a lot of pain, which makes it a very hard thing to talk about. But I wouldn’t like the story of our family to be the history of amnesty – of erasure, of forgetfulness, of oblivion. Because that’s exactly what happened to my grandfather, and that’s exactly what happened to my father – besides, I know
Daniel:
I have a natural penchant towards silence myself… My father was in jail twice during the dictatorship in Brazil and in the 80s he was given amnesty – which means we all forgot what happened. The story of the family was erased because we all wished to forget the history of this century. Funny that the word amnesty should be so associated with freedom nowadays.
Ismar:
He, my father, told me he didn’t get a paper saying “congratulations, you have been amnestied” or anything like it. It’s just something you get in a public notary which reads “nada consta”. The files have been erased – that’s it. Both his files and the files on the guys who tortured him. Of course it’s a very difficult thing to write about, especially for him. That’s why I think the most important thing about the blog is actually its timing. Once people began to understand what the whole thing was about, they were surprised I started writing about things that Daniel:
natural ao silêncio... Meu pai esteve na cadeia duas vezes durante a ditadura no Brasil e, nos anos 1980, foi anistiado — o que significa que todos nós esquecemos o que aconteceu. A história da minha família foi apagada porque todos nós desejamos esquecer a história desse século. Curioso que a palavra anistia seja tão associada à liberdade hoje em dia.
Ismar:
Ele, meu pai, me disse não ter recebido um papel dizendo “parabéns, você foi anistiado” ou coisa assim. É apenas algo que você pega em um cartório, em que se lê “nada consta”. Os arquivos foram todos apagados — pronto. Os arquivos dele e o dos caras que o torturaram. É claro que é uma coisa muito difícil de se escrever sobre, especialmente para ele. É por isso que acho que a coisa mais importante sobre o blog seja na realidade o timing. Uma vez que as pessoas começaram a entender sobre o que toda essa coisa era, elas ficaram surpresas que eu tivesse começado a escrever sobre Daniel:
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coisas que aconteceram um ano atrás. Elas geralmente diziam: “Que merda você está fazendo, Daniel? Segue com a sua vida”. Bom, sinto muito, mas estou seguindo com a minha vida. Mas eu também estou tentando pensar um pouco sobre aquele ano de merda e, desde a primeira coisa que escrevi, já era sobre isso — mas eu não poderia escrever então da forma como estou escrevendo agora. Isso seria impossível. Ismar: Acho
que esta é outra coisa que deveríamos considerar durante a entrevista — a progressão de “mãe” para “pai”. É obvio que estou satirizando o discurso psicanalítico.
Daniel:
Não tão óbvio. Às vezes você se parodia em verdade. Ismar:
É a verdade, mas é também uma questão de forma... Estou escrevendo “mãe” com um “M” maiúsculo.
Daniel:
E ela está respondendo, o que é tão freudiano. Ismar:
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took place one year ago. They usually went like: “What the fuck are you doing, Daniel? Just get on with your life.” Well, I’m sorry, but I am getting on with my life. But I am also trying to give some thoughts on that one fucked up year, and since the first piece I wrote, it was already about that – but I couldn’t write then the way I am writing now. That would be impossible. Ismar: I think that’s another thing we should discuss during the interview – the progression from “mother” to “father”.
It’s obvious that I’m satirizing the psychoanalytical discourse.
Daniel:
Not that obvious. Sometimes you parody yourself into truth.
Ismar:
It is the truth, but it’s also a matter of form… I’m writing “mom” with a capital “M”.
Daniel:
And she is responding, which is so very Freudian.
Ismar:
With my father, I don’t do that because it’s a different relationship. And – as you pointed out just now – she’s responding. But the thing is, everyone involved is responding in some way.
Daniel:
Mas você acha que seu pai está respondendo mais do que a sua mãe?
Lucas:
I don’t know. But it’s an enormous thing, what we’ve done, considering where we started.
Daniel:
This is just morbid curiosity – but did he ever react to your exposing him? Were there other emails?
Ismar:
Daniel:
He’s very shy and reserved.
But he – being a reader of your blog –, never mentioned it, never talked about it?
Ismar:
I’ve already asked him, and he said he doesn’t… Well, one time I asked him: “what would you think if you saw someone you knew in a nude photograph?” And at first he said: “I think that would be terrible.” But five minutes later he was like: “Well, if it were a
Daniel:
Com meu pai, eu não faço isso porque é uma relação diferente. E — como você apontou agora há pouco — ela está respondendo. Mas acontece que todos os envolvidos estão respondendo de alguma maneira.
Daniel:
Eu não sei. Mas é uma coisa enorme o que fizemos, considerando onde começamos.
Daniel:
Isto é apenas curiosidade mórbida — mas ele alguma vez reagiu a essa sua exposição dele? Houve outros e-mails?
Ismar:
Ele é muito tímido e reservado.
Daniel:
Mas ele — sendo um leitor do seu blog — nunca mencionou nada, nunca falou a respeito?
Ismar:
Eu já perguntei a ele, e ele diz que não... Bom, uma vez eu perguntei: “O que você acharia se visse alguém que conhece nu em uma fotografia?” E a princípio ele disse: “Eu acho que seria terrível.” Mas cinco minutos depois disse algo como: “Bem, se fosse
Daniel:
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uma boa foto, é melhor do que ter fotos íntimas suas na internet.” Esse é o meu pai. A princípio ele fica chocado como um dama vitoriana e, cinco minutos mais tarde, ele...
good shot, it’s better than having intimate shots of you on the Internet.” That’s my father. At first he gets shocked like some Victorian lady, and five minutes later, he’s…
Isto é algo interessante que você acaba de dizer: “Se fosse uma boa foto...”
Ismar:
Ismar:
Mas, vejam, o que estou tentando fazer... não é qualquer coisa. É muito preciso. O que não significa que eu sempre tenha sucesso.
Daniel:
Delia:
É claro que não.
Acho muito curioso como você está fazendo a curadoria de tudo. No blog você está curando as experiências das pessoas. E no livro você está curando nossos pontos de vista sobre a sua escrita.
Ismar:
Não apenas isso. O objetivo do livro — a entrevista deve ir na segunda parte... mas para a primeira estou pensando em expandir esse aparato. Qual é a estratégia do blog?
Daniel:
That’s something interesting you just said. “If it’s a good shot…”
But, you see, what I’m trying to do… não é qualquer coisa. It’s very precise. Which does not mean I always succeed…
Daniel:
Delia: Of
course not.
I think it’s very curious how you’re curating everything. In the blog you’re curating people’s experiences. And in the book you’re curating our views on your writing.
Ismar:
Not only that. The point of the book – the interview is meant to come in the second part… but for the first one I’m thinking about expanding this apparatus. What’s the blog’s
Daniel:
a princípio disse: Eu acho queseria ‘E “E a princípio eleele disse: “acho que isso seria terrível” terrível”
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65
Evitar deixar as coisas passarem, como eu normalmente faria, tornando tudo público. E obrigar as pessoas a me responder ao me dirigir a elas não em uma esfera privada, mas, de novo, de forma pública... É um dispositivo estrutural. Elas têm de responder. Todo mundo está lendo. Então, o que exatamente me impede de tentar essa mesma tática em uma escala maior? Eu tentei com todos que conheço — então por que não tentar com pessoas que não conheço? Todos que provoquei responderam de alguma maneira. Mas essas eram pessoas que você conhecia anteriormente.
Ismar:
Mas eu não sabia que elas responderiam. Eu poderia estar fazendo uma coisa solipsista.
Daniel:
Pedro: No começo, parecia que poderia se tornar algo solipsista. Eu me lembro de você dizendo: “Ninguém vai ler isso, parece o Cézanne escrevendo...”
Uma das últimas postagens que quero fazer é uma declaração de que isto é, de fato, uma obra de arte.
Daniel:
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strategy? To avoid letting things escape, as I would normally do, by making everything public. And to constrain people to answer me by addressing them not in a private sphere but, again, publicly… It’s a structural gadget. They have to answer. Everyone is reading it. So, what exactly prevents me from trying this same tactic on a larger scale? I have tried it with everyone I know – so why not try it with people I don’t know? Everyone I provoked did respond in a certain way. Ismar: But those were people you knew previously.
But I didn’t know they would respond. I could be doing a solipsistic thing.
Daniel:
In the beginning, it seemed like it could become a solipsistic thing. I remember you saying: “No one’s going to read this, it feels like Cézanne writing…”
Pedro:
Daniel: One of the last posts I want to do is a kind of declaration that this is, in fact, an art piece. Presenting it as
such: not as a confession, or not exclusively as a confession. Anyway, it’s not a journal. It worked in real life. And if so, why not expand the apparatus? I mean, I thought I could show my blog to other artists – if I want it to be read as art, why not show it as such, then, why not share it with other artists? Afterwards I thought: no. Because it’s in Portuguese, and the Art World doesn’t speak Portuguese. You’re laughing, but it’s true. Pedro and I thought about sending invitations to Brazilian artists, curators, and critics, but I thought it didn’t have the… “rigueur” it needed. Em suma, que faltava rigor à ideia. So I thought about sending it to people I really don’t know. And if it works with you guys, maybe it could work with anybody. Who knows? Could you just talk a little bit about the first part of the book? I understand there is a list put out by a German magazine…
Ismar:
Apresentando-o como tal: não como uma confissão, ou não exclusivamente como uma confissão. De qualquer forma, não é um diário. Ele funcionou na vida real. E, se é assim, por que não expandir o aparato? Quero dizer, pensei que poderia mostrar meu blog para outros artistas — se eu quero que seja lido como arte, então, por que não o mostrar como tal para outros artistas? Mais tarde, pensei: não. Porque está em português, e o Mundo da Arte não fala português. Vocês estão rindo, mas é verdade. Pedro e eu pensamos em enviar convites para artistas brasileiros, curadores e críticos, mas eu julguei que isto não tinha ainda o... rigor que necessitava. Em suma, que faltava rigor à ideia. Então, pensei em mandá-los para pessoas que eu realmente não conheço. E, se funcionou com vocês, pessoal, talvez funcione com qualquer um. Quem sabe? Você poderia falar um pouco mais sobre esta primeira parte do livro? Eu sei que há uma lista feita por uma revista alemã...
Ismar:
67
Sim, uma lista chamada KunstKompass, que é uma espécie de “copa do mundo da arte” que acontece todo ano. A lista apresenta os “100 maiores artistas vivos” — o que acho bacana, visto que me isenta de decidir eu mesmo quem poderiam ser esses artistas. Então a ideia é fazer aos 10 artistas de maior destaque nessa revista uma pergunta colocada pelo blog e por este ano de trabalho: “Quais são as novíssimas mitologias?” Eu gostaria de enviar a eles uma carta, em sua língua materna. Daniel:
Pedro: Eu estava pensando
a respeito dessa carta... Se você não for explicar nada, ou se estiver planejando dar apenas meias explicações, com certeza, não vai funcionar, pois as pessoas se sentirão usadas. Elas vão pensar: “Não importa o que eu responder, esse cara já tem uma agenda... ele está fazendo uma pergunta aos grandes artistas, mas já sabe o que fazer com as respostas, então, não vou responder nada.” Você deve ser bem sincero sobre o que está fazendo. Você deve descrevêlo de forma precisa — para que serve, o que você está
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Yes, a list called KunstKompass, which is a kind of “art world cup” that takes place every year. The list presents the “100 greatest living artists” – which I think is neat, since it exempts me from deciding myself who these artists might be. So the idea is to ask the top 10 artists featured in this magazine a question put by the blog and by this year’s work: “quais são as novíssimas mitologias?” I’d like to send them a letter, in their native language. Daniel:
I was thinking about the letter… If you’re not going to explain anything, or if you’re planning on giving halfexplanations, it surely won’t work, because people will feel used. They’ll think: “It doesn’t matter what I answer, this guy already has an agenda… he’s asking the biggest artists a question, but he already knows what he’s going to do with the answers, so I won’t answer anything.” You should be really sincere about what you’re doing. You should describe it precisely – what it is for, what
Pedro:
you are addressing with the blog, everything. You should really explain it carefully so people won’t feel they’re being used in some artist’s joke. For instance, I remember Rauschenberg talking about the Erased de Kooning drawing. He said he went to de Kooning’s house, rang the bell, and told him: “I want a drawing from you because I want to erase it.” He didn’t just ask for a drawing. If he had asked for a drawing, de Kooning would never have given it to him. But then again, when Daniel first told me about the project, he said it allowed for people not to answer.
Ismar:
Yes, but it must be a possibility, not a fact.
Daniel:
The thing is that we have to create conditions that will entice people to participate, so people can feel comfortable to take part. Sending out blank postcards with the question “what are the brand new mythologies?” seems too “artistic” an approach. They must get hundreds of smart-ass
Pedro:
abordando com o blog, tudo. Você deve realmente explicálo de forma cuidadosa, para que as pessoas não sintam que estão sendo usadas em uma piada de artista. Por exemplo, me lembro do Rauschenberg falando do desenho de Kooning apagado. Ele disse que foi até a casa do de Kooning, tocou a campainha e lhe disse: “Eu quero um desenho seu, porque quero apagálo.” Ele não apenas pediu um desenho. Se ele tivesse apenas pedido um desenho, o de Kooning nunca teria lhe dado. Ismar: Mas, de novo, quando
o Daniel me falou pela primeira vez desse projeto, ele disse que permitia que as pessoas não respondessem.
Daniel: Sim, mas isso tem
que ser uma possibilidade, não um fato.
Pedro: Acontece que nós
temos que criar condições que convidarão as pessoas a participar, de forma que as pessoas possam se sentir confortáveis em participar. Mandar cartões postais vazios com a questão “quais são as novíssimas mitologias?” parece artístico demais como abordagem.
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Elas devem receber centenas de coisas espertinhas como esta. Delia: Elas podem pensar:
“Ok, eu tenho uma ideia do que esse cara quer fazer.” É como receber uma carta de alguém que você não conhece te fazendo uma pergunta — de que serve isto?
Pedro: Acho que temos que
entrar em grande detalhe.
Pedro: A carta deve ser
muito detalhada, muito informacional e muito honesta.
Delia: Você tem que dizer
tudo e ser muito preciso. Explicar brevemente o contexto, o que você espera delas e o que vai fazer com a carta delas.
Daniel: A questão não é
tanto dizer tudo ou não, mas dizer quem. Acho que uma das coisas mais importantes no meu trabalho é falar de vocês, pessoal. Não “vocês” em um sentido
things like that. They can think: “Ok, I have an idea about what this guy wants to do.” It’s like getting a letter from someone you don’t know asking you a question – what is it good for?
Delia:
I think we have to go into great detail.
Pedro:
Apesar do pouco tempo e do pouco espaço.
Lucas:
The letter must be very detailed, very informational, and very honest.
Pedro:
You have to say everything and also be very precise. Briefly explain the context, what you are expecting from them and what you are going to do with their letter.
Delia:
A questão não é tanto dizer tudo ou não, mas dizer quem. I think that one of the most important things in my work is to talk about you, guys. Not “you” in a formalist, empty
Daniel:
“Se estiver planejando dar apenas meias explicações”
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formalista, vazio, porque... bem, deixem-me reformular: para mim, a grande questão surgiu do texto do Ismar, “Todo Mundo”, que é saber quem exatamente é todo mundo ou, melhor ainda, o que é essa rede que chamamos de “todo mundo”. Porque o que eu fiz o tempo todo foi me dirigir a todo mundo para que indivíduos pudessem responder. E eles responderam, pois se sentiram compelidos a fazêlo — porque, de novo, todos os outros estavam cientes. Ismar: Eles se sentiram
expostos e precisaram se defender.
Daniel: Certo. E a dimensão
mitológica da história parece residir nestas únicas palavras: “Todo mundo”. Não é uma coincidência que, a fim de falar de mim, eu tenha começado por falar de vocês — é que vocês são meus amigos íntimos e estão envolvidos em práticas que sinto serem muito interessantes de alguma forma. Mesmo que essas práticas ainda não existam como tais neste momento — vocês estão entendendo? Isso tem a ver
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sense, because… well, let me rephrase that: to me, the biggest question rose from Ismar’s piece “Todo Mundo”, which is to know who exactly is everybody, or better still, what is it this network we call “everybody”. Because what I did all the time was to address everybody so that individuals could respond. And individuals did respond because they felt compelled to – because, again, everyone else was aware. They felt exposed and needed to defend themselves.
Ismar:
Right. And the mythological dimension of the story seems to lie in this single word: “Everybody”. It’s not a coincidence that, in order to talk about myself, I’ve started by talking about you – it’s because you are my close friends and you are all involved in practices that I feel are very interesting somehow. Even if these practices don’t quite exist as such at this point – are you getting this? It has also to do with the dynamics of interest we mentioned about interviews: the
Daniel:
more interested you are about something, the more interesting that particular thing becomes; and so on. But one has to start from somewhere. And my being interested in you ultimately means that I am betting on you doing things you don’t know you are capable of. If not today, well, then maybe tomorrow. It’s a bet, of course; and I think interest is always a bet on something. You let it work when you bet on it, when you bet it can work. And in your case, it seems like an easy one. I’ve never seen you so godlike. It suits you.
Ismar:
Delia:
He’s the God of his story.
God-like? But I don’t have to do anything. It’s all about you accomplishing things here! I don’t mean to compare, or to set scales, or anything – I just feel that you’re going to do, in five or ten years or in a lifetime, things that will be interesting in some way – and I’m willing to bet on it. It’s a Vasari kind of feeling, I guess. And you know what?
Daniel:
também com a dinâmica do interesse que mencionamos sobre entrevistas: quanto mais interessado por alguma coisa você estiver, mais interessante essa coisa em particular se torna; e assim por diante. Mas é preciso começar por algum lugar. E eu estar interessado por vocês significa em última instância que estou apostando em vocês fazendo coisas das quais vocês mesmos não sabem ser capazes. Se não hoje, bem, então talvez amanhã. É uma aposta, é claro; e acho que o interesse é sempre uma aposta em alguma coisa. Você a deixa funcionar quando aposta nela, quando aposta que ela pode funcionar. E, no caso de vocês, parece uma aposta fácil. Ismar: Eu nunca te vi com
tanto ar de Deus. Te cai bem.
Delia: Ele é o Deus de sua
história.
Daniel: Ar de Deus? Mas eu
não tenho que fazer nada. Trata-se de vocês fazendo coisas aqui! Eu não pretendo comparar ou estabelecer medidas nem nada assim — eu apenas sinto que vocês vão fazer, em cinco ou dez anos ou ainda no tempo de uma vida, coisas que serão
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interessantes de alguma forma — e estou disposto a apostar nisso. É um tipo de sentimento Vasari, eu acho. E sabem do que mais? Eu gostaria muito de ser uma espécie de Giorgio Vasari para esta geração: meio artista, meio historiador. Isso sim me cai bem... Ele era um artista, mas não tão talentoso quanto os grandes mestres ou ainda alguns de seus contemporâneos. E ele sabia disso, mas ele sabia também escrever. Então escreveu, sobre eles e sobre si próprio. Pedro: Quando Vasari
escreve sobre Da Vinci, ele diz algo com o efeito de “meu livro será muito importante porque esse cara sobre o qual estou escrevendo vai ser muito importante — então minha História dos Pintores se tornará cada vez mais importante ao longo do tempo porque o pintor que mencionei vai ser muito importante; e não pelo que eu estou fazendo.” É também meio cínico, eu sei.
Daniel:
Não, é meio fofinho, na verdade.
Ismar:
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I would very much like to be a kind of Giorgio Vasari to this generation: half artist, half historian. That suits me... He was also an artist, but not as talented as the great masters or even some of his contemporaries. And he knew it, but he also could write. So he wrote, about them and about himself. When Vasari writes about Da Vinci, he says something to the effect of “my book will be really important because this guy I’m writing about is going to be really important – so my History of the Painters will become increasingly important with time because this painter I’ve mentioned is going to be very important; not because of what I’m doing.” Pedro:
It’s also kind of cynical, I know.
Daniel:
Ismar:
cute.
No, it’s actually sort of
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I have made my point, I make it again It Now you get the point.
Vito Acconci, c. 1969.
Eu jĂĄ disse o que tinha a dizer. Eu o digo de novo O que Agora vocĂŞ entende o que quis dizer.
Ok, guys, I feel we have enough material to start this interview. I just wanted to ask you a few more questions before you leave, concerning one or two things I don’t know how to manage — at all, I mean. Firstly: the rights pertaining to the texts and images used on L’insouciance. Daniel:
Daniel: Ok, pessoal, sinto
You don’t have it. The blog will remain a blog.
Pedro: Você não os tem.
Pedro:
What about this recording, then? I mean, I don’t have your authorizations.
Daniel:
What are the rights, the legislation?
Delia:
I have no idea. And I know it must sound like a step back, but I can’t help asking myself about the rights. Because we’re talking about people who aren’t just imaginary characters, see? Real people who did not authorize me to discuss their affairs publicly.
Daniel:
No one’s going to sue you, Daniel. People are going to be pissed off at you – for life. But they’re not going to sue you.
Ismar:
que já temos material suficiente para começar esta entrevista. Eu só queria fazer algumas perguntas antes de vocês irem embora, a respeito de uma ou duas coisas com as quais não sei lidar — não mesmo, quero dizer. Primeiro: os direitos pertencentes aos textos e imagens usados em L’insouciance. O blog continuará a ser um blog.
Daniel: E esta gravação,
então? Quero dizer, eu não tenho suas autorizações.
Delia: Quais são os direitos,
a legislação?
Daniel: Não tenho ideia.
E eu sei que isto deve soar como um passo para trás, mas não posso evitar me perguntar sobre os direitos. Porque estamos falando sobre pessoas que não são apenas personagens imaginários, sabem? Pessoas reais que não me autorizaram discutir seus assuntos de forma pública.
Ismar: Ninguém vai te
processar, Daniel. As pessoas vão ficar putas com você — para o resto da vida. Mas
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elas não vão te processar. A Lucía, talvez, quem sabe?
Lucía, maybe, who knows?
Daniel: Eu liguei para ela
Daniel:
Pedro: Ela te disse isso?
Pedro:
Daniel: Disse. Mas ela não
Daniel:
Ismar: Eu diria que é
Ismar:
Pedro: É. Não podemos discutir isto. É impossível discutir isto. Eu não acho que devemos nos preocupar com isto. Agora, para o segundo ponto.
Pedro:
Daniel: Bom, eu li
Well, I’ve recently read about a website which has been erased in its entirety – Paralelos, a website that had been, for over six years, one of the most reliable aggregators of Brazilian literary manifestations, featuring poems, short stories, chronicles, criticism, etc. Six years’ worth of writing –
alguns dias atrás, assim que cheguei na cidade. E ela não me respondeu. Mas ontem ela finalmente entrou em contato comigo e nós batemos um papo. Ela disse que, um mês atrás, ela havia realmente pensado: “Se esse cara escrever mais uma palavra sobre mim, vou processá-lo.”
vai mais fazer isso. Um mês atrás, no entanto, ela pensou a respeito. impossível.
recentemente sobre um site na internet que foi inteiramente apagado — Paralelos, um site que vinha sendo, por mais de seis anos, o mais confiável agregador de manifestações literárias brasileiras, destacando poemas, contos, crônicas, crítica etc. Seis anos de trabalho de escrita —
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I called her a few days ago, as soon as I got into town. She didn’t answer me then. But yesterday she finally got in touch and we had a little chat. She said that, a month ago, she actually did think: “If this guy writes one more word about me, I’ll sue him.” She told you that?
Yes. But she won’t do that anymore. A month ago, though, she thought about it. I’d say it’s impossible.
Right. We can’t discuss this. It’s impossible to discuss this. I don’t think we should worry about this. Now, onto the second point.
Daniel:
gone. Erased by a hacker. All the content has been erased.
perdidos. Apagados por um hacker. Todo o conteúdo foi apagado.
So you don’t know how to keep the contents of your blog? Antes é preciso pensar por quê isso é importante, e de que formas é possível atualizar o projeto.
Pedro: Então você não sabe
Daniel:
That’s the whole point, I don’t even know if I want to keep it. The only thing I know for sure is that I need to have this book out before the blog is erased for some reason. Because what I need is a reference to it, a document, not the blog replicated in a book.
Daniel: Essa é toda a
What happens to a blog if you don’t write in it for a long time?
Delia: O que acontece a um
Pedro:
Delia:
Pedro:
Nothing.
That’s a real question, because it’s still a new media. It already has a history but, like Benjamin wrote on photography in the 30s, I feel we don’t understand it properly yet.
Daniel:
Maybe the archives will be inaccessible, but the front page usually remains intact.
Ismar:
como manter o conteúdo do seu blog? Antes, é preciso pensar por que isso é importante e de que formas é possível atualizar o projeto. questão, eu nem mesmo sei se quero mantê-lo. A única coisa que sei, com certeza, é que preciso lançar este livro antes que o blog seja apagado por alguma razão. Porque o que eu preciso é uma referência a ele, um documento, e não o blog replicado em um livro.
blog quando não se escreve nele por muito tempo?
Pedro: Nada. Daniel: Essa
é uma questão real, pois é uma mídia ainda nova. Ela já tem uma história, mas, assim como o Benjamin escreveu para a fotografia nos anos 1930, eu sinto que nós não a entendemos completamente ainda.
Ismar: Talvez os arquivos se
tornarão inacessíveis, mas a primeira página geralmente permanece intacta.
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Para dizer a verdade, eu realmente não sei como funciona isso de arte na internet. Lembro de ter visto numa revista francesa a expressão “blog en tant qu’art”... e me soou bastante estúpido.
Daniel:
Compra-se um domínio. Geralmente não se faz a coisa pelo Blogspot. Mas mesmo que não seja possível salvaguardar a estrutura da coisa, pode-se fazer um copiar / colar de todos os textos com “direções de palco”.
Ismar:
Uns cinco printscreens por mês, talvez.
Pedro:
Isso. Depois do livro, você faz um filme sobre o blog.
Delia:
Lucas:
Ou tirar fotos.
Pedro:
Não, filmar!
That’s it. After the book, you make a film about the blog.
Delia:
A gente devia filmar o blog. Sério. Como? O blog como roteiro? Como imagem, tela, em movimento? Blog reenactement, entrevista reenactment? Talvez isso dê conta de uma qualidade performativa, violenta, histérica etc., que está nesses blocos de textoimagem...
Pedro:
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Cinema é um negócio com o qual eu realmente não gostaria de me envolver. Eu gosto, mas há dois grandes impeditivos para mim: depende de muito dinheiro e, principalmente, de muita gente. E isso é o pior... Agora, aproveitando a deixa, tem outra coisa da qual sinto que deveria estar me aproximando, e essa coisa é a poesia. Tem uma quantidade espantosa de “jovens poetas” no mercado brasileiro, dois aqui neste ateliê, e eu nunca me senti tão distante disso. So, poets, here’s one last question for you: poetry, what about it, today?
Daniel:
Ismar:
I’m for it.
Poetry: is she still alive? Is she miserable? Delia:
Does she need anything? Is she okay?
Ismar:
Pedro:
Cinema é um negócio com o qual eu realmente não gostaria de me envolver. Eu gosto, mas há dois grandes impeditivos para mim: depende de muito dinheiro e, principalmente, de muita gente. E isso é o pior... Agora, aproveitando a deixa, tem outra coisa da qual sinto que deveria estar me aproximando, e essa coisa é a poesia. Tem uma quantidade espantosa de “jovens poetas” no mercado brasileiro, dois aqui nesse ateliê, e eu nunca me senti tão distante disso. Então, poetas, aqui está uma última pergunta para vocês: qual é a da poesia, hoje?
Daniel:
Could she use a beer?
Ismar:
Eu sou a favor.
Poesia: ela está viva ainda? Ela está se sentindo mal?
Delia:
Será que ela precisa de alguma coisa? Ela está bem?
Ismar:
Ela gostaria de uma cerveja?
Pedro:
Does she need a hug? Well, I’m pro-poetry… I’m proetry.
Ismar:
Lucas, we have discussed it a lot lately, and if I’m not mistaken, you don’t seem to
Daniel:
Ismar:
Daniel:
Ela precisa de um abraço? Bom, eu so própoesia... Eu sou proesia.
Lucas, nós discutimos bastante a respeito ultimamente e,
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se não me engano, você não parece concordar com isto. Como você pode não ser pró-poesia sendo você mesmo um poeta? Sinto que, se quisermos realmente falar de “todo mundo”, então “e a poesia hoje?” é, de fato, uma grande questão, geracional mesmo, se quiserem...
Daniel:
Eu acho que faz perfeito sentido que a poesia tenha acabado, mas acho que esse tipo de raciocínio se aplica a todas as formas de arte. Eu não estou realmente interessado nas implicações sociais mais gerais da coisa... Ainda acho que a poesia é um espaço de liberdade. E acho que essa liberdade se tornou uma espécie de alienação, pois, quanto menos leitores nós temos, mais livres somos para fazer o que quisermos, já que ninguém está lendo mesmo além dos outros poetas.
Ismar:
Delia:
Ou os críticos.
Não há críticos, há apenas poetas. É bem terrível, na verdade.
Ismar:
agree with this. How can you not be pro-poetry being a poet yourself? Lucas:
Eu não sei...
I feel that if we really want to talk about “everybody”, then “what about poetry today?” is indeed a major question, generational, if you will…
Daniel:
I think it makes perfect theoretical sense that poetry has ended, but I think that kind of reasoning applies to all art-forms. I’m not really concerned with the overall social implications of it… I still think that poetry is a space of freedom. And I think that this freedom has somehow turned into a sort of alienation, because the fewer readers we have, the freer we are to do whatever we want, since no one’s reading anyway apart from other poets.
Ismar:
Delia:
Or critics.
There are no critics, there are only poets. It’s quite ghastly, really.
Ismar:
“Ou tirar fotos”
84
85
Mas você não acha que, nesse espaço de liberdade, perdeu-se muito a liberdade formal? A liberdade, agora, é muito mais da expressão.
Lucas:
Há liberdade formal e liberdade expressiva. A questão é que não há parâmetros para nenhuma das duas.
Ismar:
Lucas: Nem para a poesia formal? Há sim.
Não existe nada contra qual se possa ir. Tanto em termos de forma quanto em termos de conteúdo. É um espaço de total permissividade no qual não se combate nada.
Ismar:
Mas eu acho que, no que diz respeito à pesquisa formal, ainda há muito por combater.
Lucas:
Tudo bem. Em termos de pesquisa conteudística, as coisas também continuam tão rigorosas quanto sempre foram.
Ismar:
Lucas:
Aí eu já não sei.
A questão é que – para mim – tudo se equivale. A poesia “machuda”, Sub-Bukowski,
Ismar:
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poesia-verdade, equivale, de alguma forma, à obsessão formal de um pós-neo-concretismoe-tal-e-coisa, que também equivale à loucura da etnopoesia rothembergiana... tudo é extremo, tudo é loucura, sabe? Não existe mais para onde ir. Lucas:
onde.
Tem que encontrar um para
Ismar: Não. Acho que esse é o momento em que, ou bem formamos um cânone (que é furada), ou bem continuamos produzindo nossas coisas. Mas você está realmente preocupado com isso? Porque eu nunca estive tão pouco preocupado com isso. Eu estou muito preocupado comigo, com o que eu estou fazendo.
A própria ideia de pesquisa formal em poesia é complicada.
Lucas:
Um amigo pintor mandou um quadro para uma mulher e ela falou que o quadro estava muito certinho. E ele disse: “Eu não faço a mais vaga ideia do que ela quer dizer com ‘o quadro está certinho.” Porque a pincelada
Pedro:
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desordenada já não representa uma pintura livre de cânones... isso não faz mais nenhum sentido. Tanto faz. Quer dizer, “tanto faz” não. A questão é que o problema não é mais histórico, e sim da ordem do projeto pessoal. Uma prova do projeto da poesia estar mal resolvido.
Lucas:
O projeto está com o “Ismar”.
Pedro:
Ismar:
Isso me ofende.
Não, é que o projeto está com a pessoa.
Pedro:
Ao mesmo tempo, não é caso de cifrar a coisa na leviandade. Eu realmente acho que este é um grande momento histórico para o indivíduo que está tentando fazer alguma coisa no sentido da poesia, para mal e para bem.
Ismar:
Lucas:
Mas por quê?
Ismar: Porque ninguém está prestando atenção. Basicamente. Lucas: Um grande momento para o indivíduo. Eu não sei...
88
Como diria outro conhecido: “É no momento de sua obsolescência que o meio revela sua dimensão utópica.”
Pedro:
E daqui a vinte anos vai surgir uma recuperação teórica; vão enquadrar todo mundo em alguma categoria e pronto.
Ismar:
E aí vão ter que lidar com o Ismar.
Daniel:
Ismar:
E com o Lucas.
Lucas: Não sei se eu sou o bastante para justificar o projeto. Um “projeto eu”.
Mas não é isso o que ele está dizendo. O projeto é o que ele está fazendo, e não ele.
Daniel:
O que você tem que resolver não é mais o problema da história da poesia. O problema é a poesia aqui, o que nós estamos fazendo.
Pedro:
Não é mais um problema histórico, não é mais um problema político. É um problema do sujeito.
Ismar:
O problema do sujeito continua sendo histórico e
Pedro:
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político, ele só é outro tipo de histórico e outro tipo de político. Estávamos falando, há pouco, do Vito Acconci. O caso dele me parece muito individual, a perseguição de um projeto próprio, e não um movimento. Parece escapar um pouco ao espírito do tempo – naquela época, você tinha os Language Poets e...
Ismar:
O “espirito do tempo” é para poucos!
Pedro:
Qual era a outra frase boa que a Delia tinha dito? O contemporâneoo-que-há? O que-estáacontecendo? Alguém anotou isso antes? Mas agora, falando sério, eu ainda tenho esta questão com a poesia e sinto muito por insistir, mas é especialmente intrigante para mim, já que tenho pouca experiência com ela: o que é ela, para vocês, então?
Daniel:
Para mim, é mais fácil que prosa.
Ismar:
Ismar: Mais uma grande frase. Acho que todas as fotos do livro deveriam ter isto como legenda: “O espírito do tempo é para poucos.”
Qual era a outra frase boa que a Delia tinha dito? The contemporary what’s going on? What’s happening? Alguém anotou isso antes? But, seriously now, I still have this poetry issue, and I am sorry to insist, but it’s especially intriguing for me, since I have very little experience with it: what is it to you, then?
Daniel:
Ismar:
prose.
90
To me? It’s easier than
Delia:
It’s easier to write poetry?
Ismar: It is troublesome to write, but, yes, I personally find it somewhat less demanding than prose.
For me it isn’t easier to write poetry than prose. I have tried to write one or two poems, and I can tell you: I was embarrassed.
Daniel:
Daniel, I’ve never admitted this to you, but I’ve always thought of you as a poet.
Ismar:
Delia: Lucas:
Oh my God! Gol!
You’re condemned to death now. Don’t you see? He cannot understand that he’s doing poetry in his blog.
Delia:
Daniel:
I don’t even read poetry!
This has nothing to do with it…
Pedro:
Daniel, have you accepted me as a reader?
Ismar:
Daniel:
Yes.
Then I read you as poetry. You have to accept that.
Ismar:
Delia: É mais fácil escrever poesia?
É trabalhoso escrever, sim, mas pessoalmente acho, de alguma maneira, menos demandante do que prosa.
Ismar:
Para mim não é mais fácil do que prosa. Eu tentei escrever um ou dois poemas e posso dizer a vocês: fiquei envergonhado.
Daniel:
Daniel, eu nunca admiti isto para você, mas eu sempre pensei em você como um poeta.
Ismar:
Delia:
Oh, meu Deus!
Lucas:
Gol!
Você está condenado à morte agora. Não percebe? Ele não consegue compreender que está fazendo poesia em seu blog. Delia:
Mas eu nem sequer leio poesia!
Daniel: Pedro:
a ver...
Isso não tem nada
Ismar: Daniel, você me aceitou como leitor? Daniel:
Sim.
Então eu leio você como poesia. Você tem que aceitar isso.
Ismar:
91
Pedro:
Você tem que aceitar isso.
Pedro:
Às vezes eu não entendo uma só palavra do que você está dizendo, eu leio só pelo ritmo.
Ismar:
Ismar:
E ao dizer isso, você está dizendo algo também sobre poesia, não sobre este projeto em particular.
Pedro:
Acho que estamos confundindo duas coisas diferentes aqui. Uma coisa é a interpretação. Ela é subjetiva, é sua, e isto é algo que não pode ser controlado. Todos aprendemos isso na escola, certo? Mas outra coisa, acredito, é a apresentação da obra dentro dos limites de um contexto específico: isto é coletivo e determinado pelo autor. Não acho que seja uma questão de encontrar os limites da interpretação, senão de entender o que você está interpretando. Quero dizer, enquanto você vir uma cadeira da maneira que ela é apresentada — como uma cadeira e não uma mesa —, você é livre para interpretá-la da forma que quiser.
Daniel:
You must accept that.
Sometimes I don’t understand a word of what you’re saying, I just read it for the rhythm. And by stating that, you’re stating something about poetry, not about this particular project.
Pedro:
I think we’re maybe mixing up two different things here. One thing is the interpretation, it’s subjective, it’s yours, and that’s something that can’t be controlled. We all learned that in school, right? But another thing, I guess, is the work’s presentation within the boundaries of a specific context; that’s objective, and determined by the author. I don’t think it’s a matter of finding the limits for interpretation, as much as understanding what you are interpreting. I mean, as long as you see a chair the way it is presented — as a chair and not as a table — you’re free to interpret it the way you want.
Daniel:
“Porque ninguém está prestando atenção. Basicamente”
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Eu acho que só senti a necessidade de apresentar este blog desta forma bem recentemente. Sentado no meu quarto logo em frente ao do Lucas, em Paris, me senti impelido a dizer a ele: “Cara, eu estou falando de mitologia — e você está me falando de poesia. De que diabos você está falando?”
I guess I only felt the need to present the blog this way, quite recently. Seated in my room just across Lucas’ room in Paris, I felt the urge to tell him: “Man, I’m talking about mythology – and you’re talking to me about poetry. What the hell are you talking about?” Lucas:
Daniel: Poesia
Será que são dissociáveis?
Poetry is neat, Lucas; but what I’m trying to do here is something else. In this precise case... I was thinking about how people use their blogs as a kind of platform for publishing previously written poems. I remember the title of Alice [Sant’Anna’s] blog… “pra não ficar na gaveta”.
é bacana, Lucas, mas o que eu estou tentando fazer aqui é outra coisa. Neste caso preciso... eu estava pensando em como as pessoas usam seus blogs como um tipo de plataforma para a publicação de poemas já escritos. Eu lembro do título do blog da Alice [Sant’Anna]... “pra não ficar na gaveta”.
Daniel:
É um título muito inteligente, no sentido em que descreve adequadamente sobre o que é o blog. Mas qual é essa outra função do blog, com pessoas de verdade interagindo umas com as outras; isso ainda estou tentando descobrir.
Daniel:
Daniel:
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Ismar:
Eu que sugeri, inclusive.
It’s a very bright title, in the sense it accurately describes what the blog is about. But what exactly is this other function of the blog, with real people interacting with one another; that I am still trying to figure out. The same goes for the difference between mythologies
and fiction — be it prose or poetry. What do you think about it? They’re both ways of writing, surely, but what kind of writing? Eu acho que você tem que escrever um livro teórico.
Pedro:
And what about my library epiphany I told you before? What should I do with it, ignore it? What do you think about it, Delia?
Daniel:
A mesma coisa vale para a diferença entre mitologias e ficção — seja prosa ou poesia. O que vocês acham disso? São ambas formas de escrever, é certo, mas que tipo de escrita? E a minha epifania da biblioteca que contei a vocês antes? O que eu devo fazer com ela, ignorar? O que você acha, Delia?
Daniel:
Que tudo pode ser mitologizado.
Delia:
That everything can be mythologized.
Daniel:
But I don’t think it works like the old origin myths.
Delia:
Delia:
Daniel:
The surrealistic idea of urban myth, for instance, is not really internal; they are very passing characters. This fleeting, transient quality became part of the modern myth. Because we don’t need gods anymore.
Delia:
God is something I don’t think about. Especially because I’m talking about history here, and history being made. And history, as I see it, is mythology.
Daniel:
Mas eu não acho que funcione como os antigos mitos de origem. A ideia surrealista de mito urbano, por exemplo, não é algo realmente interno; eles são personagens muito transitórios. Essa qualidade momentânea, fugaz, tornou-se parte do mito moderno. Porque não precisamos mais de deuses.
Deus é uma coisa sobre a qual eu não penso. Especialmente porque, aqui, estou falando de história, e de história sendo feita. E a história, como eu a vejo, é mitologia.
Daniel:
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As coisas que estamos produzindo, elas são documentos. Ismar, agora há pouco você estava falando de como você lê tudo como poesia — eu, por outro lado, leio tudo como documentos. Absolutamente tudo. Não penso em um texto em termos de qualidade. Para mim realmente não importa se uma obra é boa ou não... Na verdade eu tendo a preferir a escrita que seja menos boa, ou pelo menos mais objetiva, impessoal. Eu tendo a preferir isso, apesar de ter crescido lendo ficção. O critério da qualidade “literária” me interessa cada vez menos. Eu iria ainda mais longe e diria que o fato de estarmos aqui é mais importante que o que foi dito ou o que nós vamos... não sei... realizar nós mesmos. O que eu tentei fazer, com a ajuda de vocês, foi mostrar como o conflito entre pessoas que dividem uma área comum, ou espaço, é também parte desta geração. Não tem
The things that we are turning out, they are documents. Ismar, just now you were talking about how you read everything as poetry – I, on the other hand, read everything as documents. Absolutely everything. I don’t think of a text in terms of quality. For me it really doesn’t matter if a piece of writing is any good… I actually tend to prefer writing that is lesser, or at least more objective, impersonal. I tend to prefer that, although I grew up reading fiction. The “literary” quality criterion interests me less and less. I would go as far as saying that the fact that we are here is more important than what has been said or what we are going to… I don’t know… get done by ourselves. What I have tried to do, with your help, is to show how conflict between people who share a common ground, or space, is also part of this generation. It has
“Poesia é bacana, Lucas”
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nada a ver com entender completamente um ao outro ou ser melhores amigos. Significa que estamos trabalhando...
nothing to do with completely understanding one another or being best friends. It means we’re working…
Acho que nós todos temos noções muito diferentes no que diz respeito ao conceito de mitologia. Eu, quanto a mim, estou sempre inclinado a pensar na necessidade de seres elevados, de modelos. Acho que tais seres são impossíveis, mas a necessidade humana deles é absolutamente interessante e merecedora de análise. Nós estávamos falando sobre o Edgar Morin um tempo atrás, antes de começarmos a gravação, um livro dele chamado Les Stars, no qual ele diz que as estrelas de cinema operam como substitutos para deuses e deusas. É uma espécie de beco sem saída, na verdade. Há uma necessidade humana básica que tentamos compensar, seja intelectualmente ou emocionalmente. Mas isto é um julgamento pessoal. Essa é a única coisa que me vem à mente quando
I think we all have very different notions regarding the concept of mythology. I, for one, am always inclined to think of the need for higher beings, for models. I think such beings are impossible, but the human need for them is absolutely interesting and worthy of analysis. We were talking about Edgar Morin a while ago, before we started recording, this book of his called Les Stars, in which he states that movie stars operate as substitutes for gods and goddesses. It’s something of a dead end, really. There’s this basic human need that we try to compensate, either intellectually or emotionally. But that’s a very personal assessment. That’s the one thing that pops into my mind when we talk about mythologies. That and the need to construct a new mythology in
Ismar:
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Ismar:
which we are constantly placing ourselves as minor gods and goddesses. To me, it makes all the sense in the world. It’s a bet. I think it’s a bet. If you lose it, see…? Let me tell one last story before we say goodbye. One year ago, sometime after I moved to France, I decided to act just like I were a “genius”. And people who know me also know what feelings I have towards this word. Anyway, I have that written on a notebook somewhere. I let go of my thinking and tried not to limit myself to my own comprehension, to what I could or could not do. I thought: “I’m going to pretend to be a genius just to see what happens.” And I think this has something to do with this discussion. But taking ourselves as gods or goddesses?
Daniel:
Ismar: As models, maybe. Not as models, but as points of convergence for all…
falamos sobre mitologias. Isso e a necessidade de construir uma nova mitologia na qual estamos constantemente nos colocando nós mesmos como deuses e deusas menores. Para mim, faz todo o sentido do mundo. Daniel: Acho
que é uma aposta. Se você perder, sabe...? Deixem-me contar uma última história antes de nos despedirmos. Há um ano, algum tempo depois de ter me mudado para a França, eu decidi agir como se eu fosse um “gênio”. E quem me conhece também sabe quais são os sentimentos que tenho em relação a essa palavra. De qualquer forma, eu tenho isso escrito em um caderno em algum lugar. Eu me livrei do meu pensamento e tentei não me limitar à minha própria compreensão, ao que eu poderia ou não poderia fazer. Eu pensei: “Eu vou fingir ser um gênio só para ver o que acontece.” E acho que isso tem algo a ver com esta discussão. Mas tomarmos a nós mesmo como deuses e deusas? Como modelos, talvez. Não como modelos, mas como pontos de convergência de toda...
Ismar:
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... experiência social contemporânea à nossa volta, se me permitem.
... surrounding contemporary social experience, if I may.
Como narradores. É isso, como narradores. É nesta versão que estou apostando.
Daniel:
Daniel:
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As narrators. That’s it, as narrators. That’s the version I’m betting on.
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L’insouciance foi criado logo após a chegada de Daniel Jablonski a Paris, no fim de 2008. Mais do que um mero diário, o blog deveria não apenas dar conta de sua experiência como estrangeiro, mas, sobretudo, retraçar os acontecimentos do ano conturbado que o precedeu, marcado por sucessivas rupturas, afetivas e profissionais. Tratava-se, à época, de tomar um ano para reescrever um ano, para dizer tudo aquilo que não fora dito antes da partida. Falando para todos a fim de comunicarse com alguns, o blog buscou um modelo ligeiramente diferente de comunicação na internet, substituindo o anonimato que lhe é característico pelo nome próprio, e as omissões do dia a dia, pela clareza que só um espaço radicalmente público pode oferecer. Por meio da divulgação de trechos de cartas, textos, imagens e vídeos de pessoas reais, o blog estabeleceu-se como um espaço ativo de troca de ideias, nem sempre pacíficas, entre pessoas igualmente reais. E, assim, por consequência, também como o retrato vivo de uma geração ainda sem nome.
L’insouciance foi a tentativa de servir-se da internet a favor do real, e de um blog como tal, isto é, como uma máquina de comunicação a distância. Uma máquina de falar, uma máquina de mostrar, uma máquina de assumir. Um nome próprio, uma posição histórica, uma postura corporal. Pois não é outra coisa, um blog, por este ângulo, senão uma forma de se poder dizer as coisas para todo mundo. Algumas regras simples, uma duração definida, uma plataforma limitada, um ano, um problema de comunicação, e um epílogo. As imagens das páginas 47, 75 & 101 são postagens extraídas do blog. Disponível em: www.linsouciance.blogspot.com Pedro França
nasceu em 1984 no Rio de Janeiro e mora em São Paulo desde 2010. É artista, professor de história da arte e membro da Cia. Teatral Ueinzz. Seus trabalhos incluem desenhos, filmes e instalações. Lucas Cureau
nasceu em 1985. É tradutor, fotógrafo amador, escritor fantasma e poeta bissexto. Vem delongando, há algum tempo, a conclusão de seu primeiro recueil (Quatro), cujos textos tencionam extirpar o verso da poesia.
Daniel Jablonski
nasceu em 1985 no Rio de Janeiro. É artista plástico e pesquisador independente. Sua produção apoia-se em uma pesquisa em andamento acerca da emergência do discurso mitológico na primeira metade do século XX (literatura, antropologia, psicanálise) e sua ligação com o advento e a popularização do aparelho fotográfico no século XIX.
Ismar Tirelli Neto
nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. É poeta, ficcionista, tradutor e roteirista. Lançou, pela editora 7Letras, os livros de poemas synchronoscopio e Ramerrão. No momento, trabalha em seu terceiro livro, Os Ilhados. Delia Rogobete
nasceu em 1985 em Craiova, Romênia. Doutoranda em Literatura na Universidade Johns Hopkins, aparentemente adora ensinar francês. Seu trabalho abrange as interseções entre literatura e arte conceitual, escritas de si nos séculos XIX e XX (diários e autobiografias) e fotografia. Publicou recentemente artigos sobre Roland Barthes, Claude Cahun e Agota Kristof.
Agradecimentos efusivos a todos aqueles sem os quais não haveria juventude, ontem ou hoje: Agnaldo Farias, Alessandra Orofino, Alice Sant’Anna, Amilcar Packer, Ana Ferreira Adão, Anaïs Straumann-Levy, André Stolarski, Antonio Sobral, Bruno Haas, Bruno Nadkarni, Carla Machado, Charles Watson, Daniel Beerstecher, Dario Rudy, Dumitru Ungureanu, Elena Vogman, Esteban Restrepo, Fabio Carneiro Leão, Fabio Zuker, Facinet Cisse, Félix Barrès, Fernando Cocchiarale, Giovanna Salerno, Helmut Batista, Hugo Sassaki, Iracilda Damasceno, Isabella Rjeille, Jeane Baltar, João Carlos Goldberg, Júlia Demeter, Juliana de La Hunty, Julien Bensussan, Kaira Cabañas, Lucía Santalices, Luiza Novaes, M. V., Manuela Moscoso, Marcelo Rocha, Mariana Albuquerque, Marianna Poyares, Marlon Miguel, Monica Stefanescu, Patrícia Mourão, Paulo Miyada, Pedro Campanhã, Pedro Chueke, Reynaldo Roels, Rodrigo Brum, Ruli Moretti, Sherwood Chen, Sol Prieto Bayona e, é claro, nossos pais. Um agradecimento especial a Tuty de Sá pela revisão do inglês de uma versão ainda embrionária do texto, a Eduardo Berliner pelas fotografias de bastidores, e a Jan Felipe Beer pelas infindas horas passadas diante de uma tela. E, ainda, aos novos amigos Felipe Kaiser e Alan Segal pela existência concreta deste volume.
The Youth Bulletin // O Boletim da Juventude 2014 Conceito:
Daniel Jablonski Projeto gráfico:
Jan Felipe Beer & Daniel Jablonski Transcrição:
Ismar Tirelli Neto Tradução para o português:
Daniel Jablonski
Revisão do inglês:
Juliana de la Hunty
Revisão do português:
Ana Ferreira Adão & Mariana Moura Revisão do francês:
Lucas Cureau
Tradução da citação de Vito Aconcci:
Ismar Tirelli Neto
Tradução das citações de douglas huebler e de Marcel Duchamp:
Daniel Jablonski
Créditos fotográficos:
Pedro França, p. 16-17 // 23 // 48-49 // 7677 // 102-103 & capa Eduardo Berliner, p. 43 // 93 Lucas Cureau, p. 29 // 65 // 85 Daniel Jablonski, p. 57 // 71 Beto Pêgo, p. 22 // 33 // 97 Lista de obras:
P. 33. Os Subterrâneos, 2006, Alice Sant’Anna, Daniel Jablonski, Daniel Macacchero, Daniel Veiga, Fabio Carneiro Leão, Ismar Tirelli Neto, Mariana Albuquerque. Foto de capa do disco: Daniel Jablonski. P. 37. Um objeto da natureza, 2008-9, Daniel Jablonski & Pedro França Impressão em jato de tinta sobre papel de algodão (96,5 x 120 cm). Reprodução. P. 97 A novíssima ceia, em Ramerrão, de Ismar Tirelli Neto, 7Letras, 2011.
Uma publicação:
www.vousvoici.com
Esse volume terminou de ser impresso em setembro de 2014 nas gráficas Akian, em Buenos Aires, Argentina. // 500