SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL - JUNHO / JULHO 2015 - DINOSSAUROS

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EDIÇÃO ESPECIAL DINOSSAUROS 2

www.sciam.com.br

DINO SSAUROS BEM PRESERVADOS

Assassino misterioso produziu cova coletiva, há 70 milhões de anos

EM ROCHAS DO NORTE E NORDESTE DO BRASIL

Armadilha em deserto da China preserva o estilo de seus antigos ocupantes Paradoxos questionam o que veio primeiro — os pássaros ou suas penas? Sangue emerge de rocha e questiona teoria sobre a fossilização orgânica

Formação do Atlântico abriu espaço para os titãs

ISSN 1679522-9

Nº 65 R$ 13,90 € 4,50



Um relato surpreendente

A

NTES QUE OS HUMANOS HERDASSEM A TERRA E CONTEMPLASSEM SEU MUNDO DE PLATAFORMAS ESPACIAIS, NA POSIÇÃO DE

espécie eleita, os dinossauros foram os senhores absolutos. E, por 140 milhões de anos, dominaram os ambientes mais diversos. Num tempo em que a deriva de placas tectônicas deslocou continentes inteiros para compor a aparência atual da Terra, o oceano Atlântico tomava forma. Esses processos ocorreram como parte de uma modelagem mais ampla e complexa, definida desde o coração da Terra sob a ação da energia liberada por decaimento radioativo e a remanescente de uma época em que mesmo a Terra foi uma rubra esfera incandescente. Olhos humanos nunca observaram cenas como essas. As formas humanas estavam confinadas às dobras do tempo e só se revelariam quando muitas estrelas esgotassem seus combustíveis nucleares e se apagassem como uma vela na noite. Daí o fato de relatos como estes sugerirem quase um conto de fadas, não um conjunto de fatos, sobre como tudo ocorreu e continuará ocorrendo. Até o dia em que o Sol também se apague, depois de abarcar a Terra, como Saturno devorando a um hijo, no impressionante mural de Goya. Humanos não testemunharam o nascimento do Cosmos, mas – investigando as estrelas, como escavam fósseis de dinossauros incrustados em terrenos antigos de muitas partes do mundo – são capazes de interpretar as pistas mais fracas para compor um relato inteligível e fascinante sobre o Universo e a existência humana. Essa é a profunda e fascinante magia da ciência. Neste segundo volume da edição especial sobre a saga dos dinossauros, um conjunto de artigos, sobre pesquisas no Brasil e no exterior, relata descobertas, interpretações e considerações que, em boa parte dos casos, sugerem abordagens mais apropriadas à ficção que à realidade. Considere o leitor o enigma de um conjunto de fósseis, posteriormente identificados como corpos de dinossauros adolescentes, confinados a uma área restrita do imenso deserto de Gobi, o quarto maior do planeta: um vazio coberto de areia que se estende por 1, 3 milhão de km², entre o norte da China e o sul da Mongólia, apertado como uma enorme berinjela, em direção à Manchúria. Como explicar esse conjunto de restos, com os corpos voltados para uma mesma direção? E por que parte desses corpos se mostra mutilada? Mais que isso: o que uma cena como essa sugere quanto a um comportamento, sem dúvida imaturo, de jovens dinossauros? Ou, o que reformula de forma significativa não só a interpretação da natureza dos fósseis, mas também a possibilidade de resgate de restos que se acreditava perdidos para sempre. Neste caso, pelo processo de mineralização de ossos que, no passado remoto, sustentaram músculos poderosos que equipavam os grandes lagartos, enquanto perambulavam pela Terra. Essa foi a experiência vivida por uma professora de ensino básico que descobriu e se apaixonou pela paleontologia. A americana Mary H. Schweitzer foi quem identificou células sanguíneas de gigantes do passado em meio à rigidez de ossos, transformados pelo tempo em estruturas mineralizadas. A ciência é mais que uma lógica fria, proposta por certa ortodoxia: é como uma canção composta para traduzir o que parece ser uma história pessoal, de cada um de nós, daí a beleza e a emoção que é capaz de evocar num relato como o de Mary Schweitzer. Para os céticos e insensíveis à beleza da ciência é mais apropriado um outro relato, ao longo de dez páginas, a partir da 48, feito pelo ornitólogo Richard Prum e o fisiólogo e neurobiólogo Allan H. Brush, ambos americanos, sobre o que veio primeiro: penas ou pássaros. Uma visão convencional colocaria essas criações da Natureza numa ordem utilitária, mas a ciência está longe de ser uma experiência de bom senso. Ao contrário, ela é quase sempre contraintuitiva, permeada pelo estranhamento, demandando o trabalho intelectual em lugar do puro e simples testemunho dos sentidos. Os que apreciam a adrenalina típica da aventura, ainda que isso possa ocorrer na esfera intelectual, certamente serão transportados para os “penhascos flamejantes”, os “flaming Cliffs”, recuando para o ano de 1922, como membros da histórica expedição do paleontólogo americano Roy Chapman Andrews. Em cinco incursões pelo deserto de Gobi, ele alterou os rumos da paleontologia de sua época. A rigor, na saga de Andrews, em meio à inospitalidade dura da Natureza, foi o fotógrafo da equipe, J. B. Shackleford, quem, caminhando à beira de um descampado, deparou-se com os penhascos flamejantes e seu precioso tesouro fóssil. A participação brasileira na saga dos dinossauros está representada por dois artigos: o de Antonio Álamo Feitosa Saraiva, Renan Bantim e Flaviana Lima, da Universidade Federal de Pernambuco, quanto às potencialidades da bacia do Araripe em termos de reservas fósseis. Os paleontólogos Ismar de Souza Carvalho e Manoel Alfredo Medeiros, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, apresentam aos leitores os dinossauros que ocuparam o que hoje é a região equatorial brasileira. Como já ocorreu com a edição mensal, com esta edição especial me despeço dos leitores de Scientific American Brasil após mais de uma década de gratificante convivência.

Ulisses Capozzoli – editor

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EDIÇÃO ESPECIAL

Dinossauros 2

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AMBIENTE

6 Dinossauros da Região Equatorial Brasileira Mudanças produzidas pelo nascimento do oceano Atlântico alteraram as condições climáticas da região e podem ter sido fundamentais para preservação de fósseis de dinossauros. Por Manuel Alfredo Medeiros e Ismar de Souza Carvalho

Brasil www.sciam.com.br

PRESIDENTE: Edimilson Cardial DIRETORIA: Carolina Martinez, Marcio Cardial, Miriam Cordeiro, Rita Martinez e Rubem Barros

PATRIMÔNIO N AT UR AL

12 Dinossauros da Bacia do Araripe Tráfico de fósseis compromete patrimônio natural, que também se ressente de recursos para estimular pesquisas de campo consistentes com o rico potencial da região. Por Álamo Saraiva, Renan Bantim e Flaviana Lima

Edição 65 – Especial Dinossauros 2 – Junho/Julho de 2015 ISSN 1676979-1 www.sciam.com.br http://twitter.com/sciambrasil DIRETOR EDITORIAL: Rubem Barros EDITOR: Ulisses Capozzoli EDITORA ASSISTENTE: Carmen Weingrill EDITORA DE ARTE: Débora de Bem COLABORADORES: Luiz Roberto Malta e Maria Stella Valli (revisão); Aracy Mendes da Costa, Suzana Schindler (tradução) PROCESSAMENTO DE IMAGEM: Paulo Cesar Salgado PRODUÇÃO GRÁFICA: Sidney Luiz dos Santos PCP: Isabela Elias redacaosciam@editorasegmento.com.br

ADAPTAÇÃO 1

18 Dinossauros da Austrália Polar Aparente sangue quente e excelente visão noturna levantam uma questão: animais poderiam ter sobrevivido às gélidas condições no final do período Cretáceo? Por Patricia Vickers-Rich e Thomas Hewitt Rich

PUBLICIDADE GERENTE: Almir Lopes almir@editorasegmento.com.br

ADAPTAÇÃO 2

26 Dinossauros do Alasca Ártico Há cerca de 70 milhões de anos um grupo de dinossauros resistentes prosperou no clima rigoroso do que hoje é o Alasca. Por Anthony R. Fiorillo

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CAPA: Durante a fase inicial de abertura do Oceano Atlântico, há aproximadamente 125 milhões de anos, o clima até então quente e seco passou por uma mudança radical permitindo o ¸ßxä_ ­x³î¸ lx ø­C Cø³C l þxßä _ClC lx þxßîxTßCl¸ä x ³þxßîxTßCl¸äi x­ áreas como o interior do Maranhão. Ilustração por Rodolfo Nogueira

TAFONOMIA

P I STA S P RO M I SSO R A S

34 Mistério de um Assassinato de 70 Milhões de Anos

66 Armadilha Mortal de Dinossauros Em uma viagem ao deserto de Gobi uma equipe de caçadores de fósseis escava uma cena de morte que fornece novos indícios sobre como dinossauros viviam. Por Paul C. Sereno

O caso estava frio, mas pistas importantes apontavam para a identidade de um assassino na antiga ilha de Madagascar. Por Raymond R. Rogers e David W. Krause ORIG ENS

R EV I S Ã O T E Ó R I C A

42 Vitória Alada

72 Sangue de Pedra

Aves modernas, que se acreditava terem surgido só depois da extinção dos dinossauros, na verdade conviveram com eles. Por Gareth Dyke

Evidências crescentes de ossos de dinossauros mostram que, ao contrário do que se acredita, materiais orgânicos às vezes podem sobreviver em fósseis por milhões de anos. Por Mary H. Schweitzer D

EVOLUÇÃ O

48 O que Veio Primeiro, a Pena ou a Ave?

CI Ê N CI A B R A S I L E I R A

I

80 Chamado à Aventura

Uma opinião há muito respeitada sobre como e por que penas evoluíram acaba de ser derrubada. Por Richard O. Prum e Alan H. Brush

N

Implantação e desenvolvimento da paleontologia no Brasil exigiu sacrifícios que estão longe de superados. Por Ulisses Capozzoli

TESOURO FÓSS I L

O S S

58 Fósseis dos Penhascos Flamejantes

A

O deserto de Gobi, na Mongólia, contém um dos conjuntos mais ricos de vestígios de dinossauros já encontrados. Paleontólogos estão revelando grande parte da história da região. Por Michael J. Novacek, Mark Norell, Malcolm C. McKenna e James Clark

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AMBIENTE

DINOSSAUROS DA REGIÃO EQUATORIAL BRASILEIRA Mudanças produzidas pelo nascimento do oceano Atlântico alteraram as condições climáticas da região e podem ter sido fundamentais para preservação de fósseis de dinossauros Por Manuel Alfredo Medeiros e Ismar de Souza Carvalho

D I N O S S A U R

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M MEADOS DO PERÍODO CRETÁCEO, HÁ CERCA DE 100 MILHÕES DE ANOS, A TERRA encontrava-se numa fase crítica da sua longa história. A colossal área de terras emersas que dominavam o hemisfério sul do planeta experimentava um franco processo de fragmentação. O supercontinente chamado Gondwana se rompia em partes menores que dariam origem ao que chamamos hoje de América do Sul, África, Austrália, Antártida, Índia e Madagascar. Entretanto, a proximidade entre essas imensas massas de terra produzia um cenário ainda predominantemente árido pela falta de grandes corpos d água capazes de suprir o interior com umidade. Em algumas áreas privilegiadas, onde corriam ou desaguavam importantes canais de água doce, a disponibilidade de umidade favorecia a proliferação de farta vegetação e sustentava uma fauna de animais imensos. O mundo era dominado por grandes répteis, na terra e no mar, e particularmente neste intervalo de tempo eles alcançavam dimensões inacreditáveis, desafiando os limites da engenharia evolutiva. EM SÍNTESE Na fase inicial de abertura do oceano Atlântico na região equatorial da atual costa brasileira, entre 125 e 112 milhões de anos, o clima dominantemente quente e seco sofreria uma profunda transformação. Talvez essa alteração explique o fato de o sítio fossilífero da ilha do Cajual ser a mais rica associação de fósseis de vertebrados do Brasil,

Ilustração por Rodolfo Nogueira

Cretáceo. Grandes crocodilos espreitavam próximo aos bancos de areia desse antigo ambiente estuarino, atentos a pequenos dinossauros incautos que se aproximassem. Os dentes e escamas desses animais mostram que as formas que viveram no Cretáceo do Nordeste brasileiro eram comparáveis, em tamanho, ao crocodilo do Nilo. No depósito

com o maior número de ossos por metro quadrado. O registro da ilha do Cajual revela uma parelha respeitável de predadores que coexistiram por um longo tempo geológico, tanto na África quanto na América do Sul. Dados geológicos mostram que a região de Alcântara, incluindo a ilha do Cajual, era um grande estuário em meados do

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fossilífero da ilha do Cajual foi descoberta a maior quantidade de dentes de pterossauros do território brasileiro. Mais de 1.300 já foram coletados em uma área de pouco mais de 4 ha. Eles pertenceram a duas formas de grandes répteis voadores do grupo do ornitoqueiroides, que devem ter atingido mais de 3 m de envergadura de asa.

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O que se sabe, das formas de vida daquela época distante, vem dos fósseis preservados nas rochas e um dos desafios da ciência é localizar, resgatar e compreender esses vestígios para reconstituir os cenários que dominavam a paisagem e as criaturas que por ela vagavam. No norte da América do Sul há poucas áreas onde fósseis de vertebrados podem ser encontrados em quantidade suficiente para permitir essas reconstituições. Uma dessas regiões é o centro-norte do estado do Maranhão, onde são encontrados sítios fossilíferos localizados ao longo das margens de rios e falésias próximas ao mar. Nesses locais, milhares de fósseis já foram resgatados e pôde-se, com base neles, vislumbrar o fantástico mundo do Cretáceo e seus protagonistas assombrosos. De todos os animais estranhos que perambulavam pelo Nordeste brasileiro naqueles tempos, os dinossauros eram os que mais chamariam a atenção de um hipotético observador. Embora alguns registros ainda sejam confusos, por estarem incompletos, em alguns casos já foi possível recuperar um conjunto de informações suficiente para atestar a presença de alguns representantes desse surpreendente grupo de animais. Durante a fase inicial de abertura do oceano Atlântico na região equatorial da atual costa brasileira, entre 125 e 112 milhões de anos, o clima até então dominantemente quente e seco sofreria uma profunda transformação. As influências resultantes da modificação das correntes oceânicas possibilitaram um aumento da pluviosidade e, consequentemente, maior teor de umidade no continente. Assim, no interior do Maranhão, amplas planícies alagadas, formadas pelo transbordamento de canais fluviais perenes, possibilitavam o florescimento de uma fauna diversificada de vertebrados e invertebrados, com fósseis que, até o momento, só foram encontrados nessa região, como pequenos crocodilos terrestres Candidodon itapecuruense e o dinossauro Amazonsaurus maranhensis, herbívoro que atingia um comprimento em torno de 10 m. Trata-se de uma espécie da superfamília Diplodocoidea, que, na América do Norte, reúne alguns dos maiores dinossauros que já perambularam pela Terra. Com o Amazonsaurus foram encontrados dentes fósseis de grandes dinossauros carnívoros, caso dos espinossaurídeos. Esse grupo exibia longos prolongamentos nas vértebras dorsais, possivelmente recobertas por pele e que funcionavam como um leme. Essa estrutura permitia que eles ocupassem regiões alagadas, ou próximas ao mar. Uma espécie descrita para o Maranhão é Oxalaia quilombensis, um dos maiores terópodes já encontrados no Brasil e que pode ter atingido até 12 m de comprimento. As rochas em que ele foi encontrado têm em torno de 98 milhões de anos e localizam-se no extremo norte do Maranhão, na ilha do Cajual, próxima à cidade de São Luís. Nessa época, o progressivo alargamento do oceano Atlântico Equatorial aumentava a disponibilidade de umidade na faixa litorânea do Nordeste brasileiro, possibilitando condições mais amenas, favorecidas pela brisa úmida que soprava do jovem oceano. Isso conduziu a um aumento na disponibilidade de água, com o estabelecimento de um amplo domínio estuarino, como um santuário onde cresciam grandes árvores coníferas, dividindo espaço com bosques de samambaias gigantes e outras plantas exóticas. Os amplos canais de água doce eram margeados pelo verde vivo das equissetáceas, estranhas plantas sem folhas e de caule ulceroso, e o conjunto formava uma visão certamente única, contrastando com a desolação da paisagem árida ao redor. Talvez esta situação ambiental tão favorável à vida explique o fato de o sítio fossilífero da ilha do Cajual ser a mais rica associação de fósseis de vertebrados do Brasil, com o maior número de ossos por metro quadrado. A ação erosiva do mar provocou a exposição de rochas cretáceas, revelando um conjunto de vértebras, dentes, pequenos ossos, espinhos, escamas e outros elementos, concentrados em uma área de cerca de 4 ha em uma praia desabitada. Apesar do estado fragmentário dos fósseis, houve

DISPONIBILIDADE de água doce possibilitava tanto a existência de uma flora exuberante de samambaias gigantes, quanto de uma grande diversidade de animais

a identificação de alguns dinossauros, entre eles dois grupos de grandes herbívoros, os rebaquissaurídeos, longos e esguios comedores de folhas, e os titanossauros, de dimensões corporais comparáveis aos primeiros, mas de compleição mais robusta, com cauda e pescoço relativamente mais curtos. Os maiores representantes desses dinossauros podiam atingir mais de 20 m de comprimento e eram as formas dominantes entre os grandes herbívoros no território brasileiro, na Argentina e África. O registro da ilha do Cajual revelaria ainda uma parelha respeitável de predadores que coexistiram por um longo tempo geológico, tanto na África quanto na América do Sul. Carcharodontosaurus, um gigante e robusto predador de mais de 12 m de comprimento, exibia dentes formidáveis, serrilhados, o que servia para melhorar a eficiência das bordas cortantes, e adaptados para abater qualquer tipo de presa, inclusive os grandes herbívoros. O outro dinossauro carnívoro era uma forma de espinossaurídeo de grande porte (Oxalaia quilombensis), com dentes longos e pontiagudos, mais apropriados à captura de peixes. Seu hábito, principalmente piscívoro, é confirmado pela mandíbula longa e estreita, à semelhança de um crocodilo. Estimativas feitas a partir de elementos cranianos coletados na África permitiram estimar as dimensões dos maiores espinossaurídeos como em aproximadamente 17 m, o que os coloca destacadamente entre os maiores predadores que já caminharam em terra firme,

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mais terrestres ainda não haviam se isolado o suficiente para se diferenciar morfologicamente. Essa informação é indispensável para a compreensão da dinâmica de distribuição geográfica desses grupos de organismos ao longo do tempo, antes de se extinguirem. Os fósseis da ilha do Cajual são um privilegiado testemunho de que a deriva dos continentes realmente provocou a separação de grandes massas de terra reunidas no hemisfério sul do planeta no final da era Mesozoica. Há também o curioso registro de um pequeno dinossauro carnívoro aparentado da espécie Masiakasaurus knopfleri, que só havia sido registrada em Madagascar, no litoral oriental da África. Os dentes da forma maranhense são idênticos, mas bem maiores e cerca de 30 milhões de anos mais antigos que os da ilha do oceano Índico. Esse fato não é só um aspecto corroborativo do processo de deriva continental, mas também destaca o desafio que é a reconstituição da distribuição dos vários grupos de organismos em um cenário complexo e dinâmico criado pela fragmentação do supercontinente Gondwana. A presença de fósseis relacionados a essa espécie na ilha do Cajual mostra que populações dessa linhagem evolutiva estavam na América do Sul bem antes de serem registradas no território de Madagascar. Em princípio, isso pode indicar que as populações sul-americanas são mais primitivas e ancestrais que as de Madagascar. Mas essa conclusão seria prematura, devido ao registro muito fragmentário e esparso de dinossauros compartilhados pelos dois territórios. Pode-se argumentar também que as populações ancestrais estiveram distribuídas em grande parte do Gondwana desde meados do Cretáceo e que a limitação do seu registro é apenas um efeito da sua não preservação em muitas das áreas onde existiu, considerando que os fósseis só se formam sob condições particulares e raras. As reconstruções paleogeográficas são frequentemente permeadas por especulações que tentam compensar as deficiências inerentes ao registro dos fósseis. Entretanto, uma coisa é clara quando se comparam os registros temporalmente relacionados do Cretáceo na África e América do Sul: a comunidade biológica do nordeste do continente sulamericano era muito semelhante à do norte africano e mais diferenciada daquela da região austral da América do Sul. Essa informação é importante porque consolida algumas interpretações que se tinha sobre a cronologia da separação continental e também porque serve de base para nortear interpretações de achados fossilíferos que ainda estão por vir. O conjunto florístico e faunístico registrado pelos fósseis coletados na ilha do Cajual também permitiu a reconstituição de muitos dos aspectos climáticos da região nordeste da América do Sul há quase 100 milhões de anos. A análise das camadas geológicas e de sua geoquímica, além de estudos com polens fósseis encontrados na baía de São Marcos, onde ficam a cidade de São Luís e a ilha do Cajual, indicavam que inicialmente ali dominava um clima seco, podendo variar de semiárido a árido. A ocorrência de cinco espécies de peixes dipnoicos [adaptados à respiração aérea] reforça essa interpretação, porque esses peixes estavam adaptados a um regime climático extremo, com alternância de disponibilidade de água e secas severas. Mas, a ocorrência de Mawsonia gigas, um celacanto de água doce que podia atingir mais de 4 m de comprimento, juntamente com Lepidotes, um peixe holósteo de mais 1,5 m de comprimento, e tubarões hybodontídeos de tamanho similar, indicam que o ambiente tinha disponibilidade de muita água, o que pode estar relacionado às mudanças climáticas que se sucederiam à abertura do oceano Atlântico Equatorial. Isso também é corroborado pelo registro de grandes árvores coníferas e samambaias arborescentes, além das impressionantes dimensões dos dinossauros que frequentavam a área, tanto os herbívoros quanto os predadores. Dados geológicos mostram que a região de Alcântara, incluindo a ilha do Cajual, era um grande estuário em meados do Cretáceo.

em toda a história da Terra. Outras formas de dinossauros são registradas no conjunto fossílífero da ilha, mas o material recolhido não foi suficiente para uma identificação segura.

ILUSTRAÇÃO POR DEVERSON PEPI

TERRA, ÁGUA E AR: O DOMÍNIO DOS RÉPTEIS

TAMBÉM FORAM IDENTIFICADAS várias formas de peixes, como grandes celacantos e tubarões de água doce, além de cinco espécies de peixes pulmonados e duas grandes raias espadartes. Todo esse conjunto de vertebrados está associado a lenhos de gigantescas árvores coníferas, principalmente araucariáceas, troncos de samambaias arborescentes e ramos de uma planta típica de mata ciliar do grupo das equisetáceas. Além da identificação das espécies representadas na comunidade biológica extinta, a associação desses fósseis inclui outras informações valiosas. Quando comparadas a assembleias fósseis da mesma época, comuns no norte africano e na Patagônia argentina, a informação biológica ganha consistência à luz da teoria que explica a lenta e progressiva separação continental. O variado conjunto de fósseis do norte maranhense é mais parecido às comunidades que habitaram a região que se estende do Marrocos ao Egito. No intervalo de tempo entre 99 e 95 milhões de anos, aquela região era muito mais próxima do nordeste da América do Sul e separada dela apenas por um estreito e relativamente raso oceano Atlântico Equatorial. Assim, as populações de dinossauros e outros ani-

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Próximo ao mar, amplas florestas de coníferas araucariáceas distribuíam-se nas regiões mais elevadas. Ao longo das margens de canais fluviais do ambiente estuarino, samambaias gigantes do gênero Paradoxopteris eram adaptadas a substratos instáveis, como bancos de areia, e costumavam tolerar variação de salinidade, indicando um ambiente com influência marinha. Há também algumas ocorrências de peixes de água salgada, consolidando essa interpretação. Grandes crocodilos espreitavam próximo aos bancos de areia desse antigo ambiente estuarino, atentos a pequenos dinossauros incautos que se aproximassem. Os dentes e escamas desses animais mostram que as formas que viveram no Cretáceo do Nordeste brasileiro eram comparáveis em tamanho a Crocodylus niloticus, o crocodilo do Nilo. Essas criaturas furtivas viviam naquela época da mesma forma que hoje, como mestres em emboscadas, aterrorizando as margens dos rios. O depósito fossilífero da ilha do Cajual é também onde se descobriu a maior quantidade de dentes de pterossauros do território brasileiro. Mais de 1.300 já foram coletados em uma área de pouco mais de 4 ha. Pertenceram a duas formas de grandes répteis voadores do grupo do ornitoqueiroides, que alcançavam mais de 3 m de envergadura de asa, a julgar pelo tamanho dos dentes encontrados. Eles certamente formavam bandos em áreas de alimentação ou de nidificação, disputando espaço à base de ruidosas escaramuças e dolorosas bicadas. Devia ser um espetáculo fascinante observar esses magníficos senhores dos céus do Cretáceo nas suas revoadas de final de tarde, dourados pelos raios do sol no ocaso. PRAIAS DO CRETÁCEO: NA ROTA DOS DINOSSAUROS

NÃO APENAS O MOMENTO da morte dos grandes répteis está registrado em nossa margem equatorial. Ao longo das exposições rochosas situadas ao nível do mar ocorre uma ampla variedade de pegadas fósseis, que revelam o comportamento em vida de dinossauros herbívoros e carnívoros. As pegadas mais frequentes, de grandes dinossauros carnívoros – os terópodes – mostram um comportamento social, o do deslocamento em grupo. Pistas de terópodes, dispostas de forma paralela e em uma mesma direção, indicam a possibilidade de que esses animais pudessem realizar caça de forma coordenada. Outros restos encontrados na ilha do Cajual sugerem uma fauna de dinossauros ainda mais variada que se conhece, mas o estado muito deteriorado das peças não permite uma análise conclusiva. Há a suspeita da ocorrência de uma terceira espécie de saurópode, grandes herbívoros pescoçudos, que teria vagado pelo território maranhense, mas o material coletado é incompleto para dar certeza disso. Sabe-se também que existia pelo menos uma espécie de dinossauro de porte pequeno a médio, do tamanho dos avestruzes, predadores, que faziam parte da comunidade ecológica registrada na ilha do Cajual e na Praia da Baronesa, em Alcântara. Existe ainda a suspeita de que eles seriam aparentados aos dinossauros raptores que existiam no hemisfério norte. Os raptores eram animais que mediam até uns 3 m de comprimento, muito ágeis e com garras poderosas e dentes afiadíssimos, caçavam em bandos, como em uma matilha de cães selvagens ou lobos atuais. Ainda não se tem certeza se os restos encontrados no norte maranhense são mesmo dos raptores já conhecidos. Mas, de qualquer modo, deviam ter uma aparência e comportamento parecidos. A dinâmica e plasticidade do processo evolutivo às vezes pregam peças nos paleontólogos, criando partes de esqueletos e dentes que se parecem, mas pertencem a grupos muito diferentes. É sempre prudente não assumir a ocorrência de alguma espécie de animal em um sítio fossilífero antes que se tenha material suficiente para isso. Portanto, para aumentar o conhecimento sobre a fauna dinossauriana e de outros tipos de animais do Cretáceo do Maranhão são necessários estudos mais apro-

fundados e, principalmente, novos achados em melhor estado de conservação, o que demanda tempo, sorte e recursos. Por enquanto é prudente fazer afirmações apenas com base no material melhor representado em número e qualidade de preservação e torcer para que novos achados esclareçam mais sobre aquela época espetacular da pré-história do norte-nordeste brasileiro. O achado dos depósitos fossilíferos da ilha do Cajual, em 1994, foi o equivalente a abrir uma cortina e revelar uma janela no tempo oferecendo um vislumbre claro e fascinante dos acontecimentos que se desenrolaram no nordeste do Brasil em uma época remota. Aquele território já pertenceu a outras criaturas que, se pudessem ser ressuscitadas, nos deixariam boquiabertos com um simples olhar. Ou encantar e nos deixar contemplativos por sua beleza selvagem. Mas, quer a Natureza que os mundos se transmutem e que gerações de criaturas, as mais diversas, surjam, dominem, declinem e desapareçam, em um cenário que também se transforma lentamente e em uma eternidade sem pressa. IMPACTO OU TRANSFORMAÇÕES ECOLÓGICAS?

OS DINOSSAUROS AINDA DOMINARIAM a Terra por 30 milhões de anos, depois do período que ficou registrado nas rochas do norte do Maranhão. Mas, infelizmente, não houve condições favoráveis para a formação de fósseis durante esse intervalo posterior, o que privou aquela região de qualquer registro das espécies que presenciaram o final de sua era. No Brasil, há registros próximos dessa época em São Paulo e em Minas Gerais, e o trabalho de várias instituições de pesquisa vem somando, a cada ano, informações na tentativa de aumentar o conhecimento sobre os ambientes antigos daquelas regiões e descobrir mais sobre seus habitantes extintos. Em muitos outros locais do planeta, o final do reinado dos dinossauros é bem documentado. Particularmente na América do Norte, as informações levantadas já permitiram uma reconstituição pormenorizada da paisagem e dos habitantes que vivenciaram as grandes transformações

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de irídio” – uma fina camada, da ordem de poucos centímetros, desse mineral raro na superfície da Terra e mais frequente em meteoritos, que já foi detectada em muitas partes do globo e que data de 66 milhões de anos, época que coincide com os últimos registros de dinossauros. Essa camada teria sido formada pela poeira do impacto ao se assentar na superfície, embora outros pesquisadores acreditem que essa anomalia em irídio seria resultante de uma intensa atividade vulcânica, que teria ocorrido nesse mesmo tempo. Mas nem todos os dinossauros desapareceram sem deixar descendência. Bem antes de sua extinção, ainda no período Jurássico, que precedeu o Cretáceo, um grupo de pequenos dinossauros predadores desenvolveu penas. Inicialmente para conservar o calor do corpo e, provavelmente também para exibições para o sexo oposto durante o ritual de acasalamento. Esses dinossauros acabaram aprendendo a utilizar essas penas primitivas para voar e ganharam os ares, modificando radicalmente sua forma para ajustar-se a esse novo desafio. As aves são, portanto, seus descendentes e, se não mais exibem um porte majestoso, nem por isso perderam a majestade. Hoje, elas aventuram-se em grandes alturas, contemplando a superfície de um planeta que lhe foi legado por seus antepassados. Por que alguns grupos mais primitivos não desapareceram com os dinossauros, caso, por exemplo, das tartarugas e crocodilos que seguiram normalmente sua evolução até hoje? Um dia, talvez, tenhamos uma resposta satisfatória para isso. A extinção é fundamental para que surja o novo. Foi justamente o desaparecimento dos dinossauros que fez com que os mamíferos herdassem a Terra e pudessem desenvolver as mais variadas formas adaptativas, o que culminaria, há alguns milhões de anos no aparecimento da linhagem humana, que rapidamente se apropriou de todo o planeta. Torçamos para que nossa confusa “administração” do planeta não produza outro cataclismo irremediável. Hoje, as ondas do mar no litoral maranhense continuam sua incansável sinfonia, marcada pelo ruído calmante da arrebentação das ondas e tendo como harmonia de fundo o piar das aves costeiras, que, vez por outra, se concentram em bancos arenosos, sentindo o frescor das marolas a apagar suas pegadas. Essa tranquilidade bucólica é apenas uma das facetas da história natural daquela região. As mesmas ondas que apagam pegadas, escavam as rochas antigas e revelam os vestígios de um mundo mais selvagem e impiedoso que ali existiu por um longo tempo, perdido, em definitivo, nas brumas do tempo.

FOTOGRAFIA IGHOR DIENES MENDES

COLETA DE FÓSSEIS vegetais na ilha do Cajual, situada no município de Alcântara, Maranhão

ambientais que levaram ao desaparecimento desses animais. Mas alguns especialistas acreditam que o que levou à extinção da maioria dos animais terrestres (e muitos grupos marinhos) do Cretáceo tenha sido o impacto de um bólido celeste, asteroide ou cometa. Uma calamidade dessa grandeza poderia colocar fim a uma existência tão bem-sucedida que durou mais de 150 milhões de anos. A explicação oferecida pelos especialistas que creem na teoria do impacto é, resumidamente, a seguinte: ;c Wb]kc Z_W \Wj Z_Ye" ^| ,, c_b^ [i Z[ Wdei" kc [dehc[ Yehfe rochoso entra na atmosfera terrestre a uma velocidade de milhares de quilômetros por hora e impacta, possivelmente onde hoje é o litoral oriental do México. E _cfWYje j e l_eb[dje gk[ Yh_W kcW edZW Z[ Y^egk[ gk[ f[hYeh# re toda a superfície da Terra em horas, criando ondas gigantescas nos mares e oceanos e devastadores abalos sísmicos. O resultado é algo parecido com a explosão simultânea de milhares de bombas atômicas na superfície do planeta. Mas, esse incidente por si só, não seria suficiente para dizimar toda uma fauna de grandes animais. Se os resultados fossem apenas esses, o planeta retornaria à normalidade depois de alguns anos e seguiria não muito diferente do que era. 7 Yedi[gk dY_W cW_i Yh j_YW Z[ii[ YWjWYb_ice \e_ W [dehc[ dkl[c de poeira que se elevou na atmosfera, resultante da decomposição do bólido e do choque com a crosta terrestre. Essa densa nuvem cobriu toda a superfície do planeta por meses, envenenando-a e, pior, privando a biosfera da preciosa radiação solar. Isso sim foi desastroso. Em consequência disso, houve um terrível inverno que matou a maioria das formas animais de terra firme, uma vez que, sem luz solar, os vegetais não podiam produzir alimento para sustentar uma fauna de animais imensos. Pior ainda, os ovos que garantiriam as gerações futuras degeneraram-se rapidamente. Esse conjunto de fatores dizimou, em poucos dias, uma fauna que dominou o planeta por milhões de anos. Uma das evidências em favor dessa teoria é a chamada “anomalia

Manuel Alfredo Medeiros, graduado pela Universidade Federal do Maranhão, é mestre pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e Doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Associado do Departamento de Biologia da UFMA, desenvolve pesquisas sobre a fauna de vertebrados do Cretáceo do Maranhão, com apoio §D§Zr Í« fD Dµr¡D» Ismar de Souza Carvalho, graduado em geologia pela Universidade de Coimbra, é mestre e doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é professor titular da UFRJ. Suas atividades de pesquisa em r«Z ù§Z DÒ Üù¡ ù§{DÒr §D µD r«§Ü« « D rÒÜÍDÜ Íñ ZDd DÜæD§f« µÍ §Z µD ¡r§Ür §D geologia e paleontologia das bacias sedimentares brasileiras. Bolsista 1 A do CNPq e participante do Programa Cientistas do Nosso Estado – Faperj.

PA R A C O N H E C E R M A I S

Terra de gigantes (2ª ed). Medeiros, M.A. 2012. Secretaria de Cultura do Maranhão. 74 p. Paleontologia. 3ª ed. Carvalho, I.S. (ed.) 2011. Editora Interciência, 3 volumes. O guia completo dos dinossauros do Brasil. Anelli, L.E. 2010. Editora Peirópolis. 222 p. Dinosaurs. Holtz Jr., T. 2007. Random House. 427 p. Weishampel. D.B.; Dodson, P. & Osmólska, H. 2004. Dinosauria. 2ª edição. University of California Press. 861 p. O Cretáceo na bacia de São Luís – Grajaú. Rossetti, D.F., Góes, A.M. & Truckenbrodt, W. (eds.). 2001. Museu Emílio Goeldi. 264 p.

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PAT R I M O N I O N AT U R A L

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DINOSSAUROS DA BACIA DO ARARIPE Tráfico de fósseis compromete patrimônio natural, que também se ressente de recursos para estimular pesquisas de campo consistentes com o rico potencial da região

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Por Álamo Saraiva, Renan Bantim e Flaviana Lima

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EM TERMOS GEOLÓGICOS, A BACIA DO ARARIPE ESTÁ INSERIDA NA REGIÃO DO CARIRI, SITUADA ao sul do Ceará, noroeste de Pernambuco e leste do Piauí. Com cerca de 12.000 km², é considerada a maior bacia sedimentar do interior do Nordeste brasileiro. Essa região é de grande interesse para a pesquisa paleontológica mundial, tendo a Chapada do Araripe como principal feição geomorfológica. A Bacia do Araripe é composta de duas sub-bacias: Cariri e Feira Nova, que se estendem a leste além dos limites atuais da Chapada, ocupando a depressão do Vale do Cariri, onde afloram unidades das sequências paleozoica, pré-rifte e rifte. No topo dessa bacia está a Chapada do Araripe e, abaixo dela, estão depositadas rochas com mais de 100 milhões de anos. Essas rochas de idade cretácea foram formadas ao longo de quase 50 milhões de anos, incluindo calcários laminados, bancos de gipsita, folhelhos e arenitos finos, rochas sedimentares comuns na região. As camadas de rochas que contêm os principais fósseis na região do Cariri foram agrupadas em uma unidade geológica denominada Grupo Santana, formada pelas camadas mais fossilíferas da região: as formações Crato, Ipubi e Romualdo. Elas devem a origem do nome a uma descrição inicial feita pelo geólogo americano Horace L. Small em 1913, que as denominou “calcário de Sant’Ana”, referente às camadas laminadas da Formação Crato. Vários ambientes moldaram o que podemos observar hoje nas rochas. De antigos rios caudalosos que deixaram registro nessa bacia durante o

Jurássico, formando o registro de uma fase deltaica (Formação Rio da Batateira), uma fase de grandes lagos de água doce (Formação Crato), uma fase de déficit hídrico, com exposições subaéreas e primeiras ingressões marinhas (Formação Ipubi) e a fase lagunar, onde o sertão atual era um mar (Formação Romualdo). Por fim, sobre as quatro formações geológicas do Grupo Santana encontra-se a Formação Exu, uma sequência de arenitos formados pela atividade de rios e dunas, encerrando o processo deposicional da Bacia do Araripe. 12


EXEMPLO de concreção calcária (ictiólito) encontrada na Formação Romualdo.

Imagens: cortesia do autor

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As principais formações geológicas fossilíferas da Bacia do Araripe são as formações Crato e Romualdo. Elas são reconhecidas pelo termo fossillagerstätte, devido ao excelente estado de preservação, quantidade e diversidade de fósseis. A Formação Crato, de idade Aptiana (aproximadamente 120 milhões de anos), é composta por rochas de arenito fino, folhelhos, margas e, em destaque, níveis de calcário laminado que chegam a 30 m de espessura. Entre as lâminas desse calcário são facilmente encontrados fósseis de plantas, moluscos, insetos e artrópodes em geral, peixes, anfíbios, lagartos, crocodilos, tartarugas e penas. Esses fósseis são geralmente comprimidos (achatados) e ocasionalmente contêm tecidos moles fossilizados, fato pouco frequente em termos paleontológicos. A ocorrência de três espécies de anuros e os vários estágios de larvas de odonatas (grupo das libélulas e donzelinhas) e efemerópteras (grupo das atuais traças) apontam para um ambiente de águas calmas e límpidas, ou seja, a Formação Crato um dia foi formada por um ou mais lagos de água doce. QUALIDADE SOFISTICADA DE PRESERVAÇÃO

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OS FÓSSEIS DA BACIA DO ARARIPE apresentam uma gama de tipos de fossilização. A Formação Ipubi, além de possuir os importantes depósitos de gipsita, a matéria-prima do gesso no Brasil, também apresenta fósseis preservados em suas finas camadas de folhelhos de cor escura como: peixes, microcrustáceos, plantas, tartarugas e até dinossauros, em suas rochas de coloração escura. Além disso, representa a fácies (designação genérica que significa a existência de variações entre diferentes conjuntos de rochas) evaporíticas do sistema lacustre Aptiano-Albiano da bacia. Essa coloração escura está associada à presença de material combustível, o que permitiu, no passado, o uso dessas rochas como fonte de energia para os engenhos de cana-de-açúcar. A Formação Romualdo (idade Aptiana-Albiana) é um dos Fossillagerstätten mais conhecidos do mundo, apresentando uma extensa história de descobertas. Essa formação é composta por camadas sobrepostas de folhelhos, margas e calcários. Localmente, essas camadas recebem nomes populares, pelo fato de a populacão ser responsável pela maioria dos achados paleontológicos durante a lavra da terra. Os depósitos da Formação Romualdo apresentam evidências de um processo de transgressão marinha (momento em que o mar invadiu o continente) ocorrido entre o Aptiano e o Albiano, há aproximadamente 110 milhões de anos. A sequência de rochas da Formação Romualdo varia de 40 m a 100 m de espessura, aflorando no entorno da Chapada do Araripe a uma cota de 600 m a 700 m de altitude. Na base dessa formação é possível encontrar folhelhos pirobetuminosos e arenitos finos. A alternância dessas faixas de rocha aumenta de espessura em direção ao topo, onde pode ser encontrada a assembleia

fossilífera da Formação Romualdo e, aí, as conhecidas “pedras de peixe de Santana” nominadas pelo paleontólogo italiano Geremia D’Erasmo, em 1938, como ictiólitos e, no meio acadêmico, chamadas de concreções calcárias. No interior dessas concreções são facilmente encontrados restos de peixes, além de plantas, moluscos, crustáceos, conchas de ouriços, tartarugas, crocodilos, pterossauros e dinossauros. Ao contrário do que ocorre nas formações Crato e Ipubi, os fósseis da Formação Romualdo são normalmente tridimensionais com tecidos moles preservados. Essas características foram referidas como um “efeito medusa”, por analogia com a figura mítica grega, Medusa, que petrificava quem a observasse diretamente nos olhos. A Bacia do Araripe exibe importantes registros fósseis de dinossauros do Cretáceo Inferior, encontrados nas formações Crato, Ipubi e Romualdo. As penas fósseis estão restritas à Formação Crato onde se mostram isoladas, sendo classificadas principalmente como de contorno, que servem para regulação térmica recobrindo o corpo dos animais. Também foram encontradas algumas dezenas de penas, semiplumas, plumas e plúmulas, uma pena de voo, e ainda, um fóssil contendo restos esqueléticos do que possivelmente seria uma ave. Esse exemplar seria, talvez, o primeiro registro de ave e, consequentemente, de dinossauro na Formação Crato, mas está inacessível para estudo, pelo fato de o fóssil integrar uma coleção particular no Japão. A questão fundamental em relação às penas fósseis é associá-las a algum grupo de animais, problema não resolvido desde a primeira descoberta há 25 anos; mesmo assim, trabalhos recentes apontam que estas penas sejam de aves terrestres, muito próximas a emas ou avestruzes. A

EM SÍNTESE Em termos geológicos, a Bacia do Araripe está inserida na região do Cariri, ao sul do Ceará, noroeste de Pernambuco e leste do Piauí, com aproximadamente 12.000 km². Essa região é importante para a pesquisa paleontológica, com a Chapada do Araripe considerada a principal feição geomorfológica. As principais formações geológicas fossilíferas da Bacia do Araripe são as formações Crato e Romualdo. Elas são reconheci-

plúmulas, uma pena de voo, e ainda, um fóssil do que possivelmente seria uma ave: provavelmente, o primeiro registro de ave, está inacessível para estudo, pelo fato de integrar uma coleção particular no Japão. Apesar de algumas dezenas de fósseis de dinossauros terem sido descobertas nas rochas da Bacia do Araripe, apenas quatro delas foram descritas. A mais recente descoberta de um dinossauro na Bacia do Araripe é de

das pelo excelente estado de preservação, quantidade e diversidade de fósseis. A Bacia do Araripe exibe importantes registros fósseis de dinossauros do Cretáceo Inferior, encontrados nas formações Crato, Ipubi e Romualdo. As penas fósseis encontradas estão restritas à Formação Crato onde se mostram isoladas. Nessa camada fossilífera também foram encontradas dezenas de penas, semiplumas, plumas e

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2004, a espécie Mirischia asymmetrica. Alguns fósseis de dinossauros da Bacia do Araripe cruzaram o Atlântico e se encontram em museus da Alemanha. No Staatliches Museum fur Naturkunde Stuttgart, por exemplo, está depositado o único exemplar de Irritator challengeri. Os fósseis associados a Mirischia asymmetrica integram a coleção do Staatliches Museum fur Naturkunde em Karlsruhe.


VISTA DE UMA ÁREA de encosta da Chapada do Araripe, em Santana do Cariri - Ceará.

ra. Segundo os responsáveis pela descrição, o Irritator challengeri, com base na estrutura de seus dentes, se assemelha à espécie de dinossauro Spinosaurus aegyptiacus encontrado no Egito. Os únicos fósseis encontrados de Irritator challengeri foram a parte anterior de um crânio e mandíbula, preservadas em uma concreção calcária, sem identificação precisa do local de coleta. Inicialmente, os autores propuseram que essa espécie era representante de um clado Maniraptora, mas essa hipótese foi refutada por trabalhos posteriores, que consideraram o Irritator como um dinossauro do clado (grupo de organismos originados de um ancestral único) Spinosauridae. Os Spinosauridae são dinossauros que viveram no Cretáceo (entre 144 e 65 milhões de anos) no Brasil e na África. São dinossauros terópodes que foram bastante diversificados durante o Cretáceo, inclusive na Bacia do Araripe, com a presença de duas espécies distintas. Esse grupo é muito comum nos continentes africano (Egito e Marrocos) e sul-americano (Nordeste do Brasil), reforçando a hipótese de que, durante o Cretáceo, esses continentes estavam conectados formando o Gondwana, onde provavelmente ocorria intercâmbio faunístico. As principais características que definem esse grupo de dinossauros são a presença de algumas modificações específicas na pélvis e nos pés, dentes não serrilhados e um focinho alongado, tendo uma aparência similar à de crocodilos. Pela quantidade e formato dos dentes, além da similaridade do crânio dos Spinosauridae com os crocodilos, acredita-se que esses animais eram piscívoros, mas também poderiam se alimentar de carcaças, como aponta um importante achado: uma vértebra fossilizada de pterossauro com um dente de Spinosauridae encravado no seu interior.

ocorrência de um dinossauro terópode na Formação Ipubi foi recentemente mencionada, com o material em processo de descrição. Na Formação Romualdo os organismos são mais abundantes e diversificados, com a presença de quatro espécies de dinossauros e alguns ossos associados a essas espécies. Os registros de dinossauros da Bacia do Araripe são exclusivamente de terópodes, um grande grupo de dinossauros bípedes, incluindo as aves, que exibem características morfológicas específicas. Os dinossauros terópodes, embora raros, apresentam uma expressiva diversidade. Na maioria das vezes, durante escavações controladas e coletas intensivas, cerca de 20% dos fósseis coletados em sítios fossilíferos são de dinossauros e os terópodes representam mais de 40% de cerca dos 300 gêneros conhecidos e 50% de todas as famílias de dinossauros descritas. Apesar de algumas dezenas de fósseis de dinossauros terem sido descobertas nas rochas da Bacia do Araripe, apenas quatro delas foram descritas. Essa fauna é representada por duas espécies do grupo dos Spinosauridae, uma espécie do grupo dos Tyranoraptora e uma espécie representante de Compsognathidae. Todos esses fósseis foram coletados nas rochas da Formação Romualdo. A primeira espécie de dinossauro descrita na região do Araripe foi apresentada por uma equipe de paleontólogos, os britânicos David Martill (Universidade de Portsmouth) e Arthur Cruikshank (Leicester Museum), e o alemão Eberhard Frey (Staatlichen Museum für Naturkunde Karlsruhe), no ano de 1996 recebendo o nome de Irritator challengeri. HOMENAGEM A CONAN DOYLE

O PRIMEIRO NOME, Irritator, veio do sentimento de irritação que os autores tiveram ao descobrir que a parte anterior do crânio (focinho) estava adulterada, e não representava uma parte óssea, fato comum em relação a fósseis que eram traficados para o exterior; o segundo nome, challengeri, foi dado em homenagem ao personagem fictício Professor Chalenger, do livro The Lost World (O mundo perdido), do escritor inglês Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes. O holótipo, ou espécime-tipo, de Irritator challengeri representa o crânio mais completo de um Spinosauridae já conhecido. A descoberta trouxe novas informações sobre a estrutura craniana desses enigmáticos dinossauros predadores. O crânio é notavelmente estreito, especialmente na região do focinho, que é alongada. Ele dispunha de um conjunto de dentes retos a ligeiramente curvados, formando ganchos, perfeitos para agarrar peixes. Esse dinossauro chegava a medir 8 m de comprimento e 3 m de altu-

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PIONEIRO NA AMÉRICA DO SUL

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COINCIDENTEMENTE, no mesmo ano da descrição de Irritator, os paleontólogos Alexander Kellner (Museu Nacional/UFRJ) e Diógenes de Almeida Campos (Departamento Nacional de Produção Mineral), no ano de 1996, descreveram o Spinosauridae Angaturama limai, com base em um fóssil da parte anterior do crânio (focinho), que representava 10% do esqueleto e foi apresentado como o primeiro Spinosauridae da América do Sul. O nome Angaturama é derivado da língua tupi-guarani que significa nobre, e o nome limai foi escolhido em homenagem ao falecido pesquisador Murilo Rodolfo de Lima, importante paleontólogo brasileiro (Instituto de Geociências da USP) falecido em 1990, que repassou o fóssil para estudo ao professor Kellner. As principais características que levaram os autores a descreverem essa nova espécie foram a presença de uma crista bem desenvolvida no focinho, parte anterior do crânio achatada e dentes não serrilhados. Nos anos seguintes à publicação de Angaturama, novos fósseis foram coletados e associados a essa espécie, como uma pélvis, vertebras e dígitos da mão, compondo assim 60% do esqueleto do animal. Os parentes mais próximos de Angaturama limai são encontrados no Maranhão e na África e isso demonstra mais um aspecto interessante: há milhões de anos existia uma fauna comum entre o nordeste do Brasil e o norte da África. Após a divulgação dessas novas espécies pelo meio científico surgiram diversas hipóteses afirmando que os fósseis de Irritator challengeri e Angaturama limai pertenciam a um mesmo indivíduo, por representar partes distintas do crânio que possivelmente se “encaixavam” e por representarem o mesmo grupo de dinossauros. Mas estudos anatômicos posteriores apontaram que realmente se tratava de dois indivíduos e de duas espécies diferentes. O esqueleto de Angaturama limai representou o primeiro terópode brasileiro de grande porte a ser montado no país, além de proporcionar um grande avanço nos estudos dos espinossaurídeos, por ser um dos mais completos no mundo, no grupo dos dinossauros.

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Um parente próximo e mais antigo que o famoso Tyranosaurus rex é a espécie Santanaraptor placidus. Esses terópodes são representantes do clado Tyrannoraptora. Esse dinossauro foi descrito por Alexander Kellner em 1999, que o chamou de Santanaraptor para homenagear o Grupo Santana, camada estratigráfica e localidade homônima onde o fóssil foi encontrado, no Ceará, e raptor, o grupo de carnívoros em que se inclui. O segundo nome, placidus, foi dado em homenagem ao professor Plácido Cidade Nuvens, um dos principais defensores dos fósseis da região e criador do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, em Santana do Cariri (CE), subordinado à Universidade Regional do Cariri. Restos fossilizados como a pélvis, pés, vertebras da cauda e alguns ossos não identificados são os fósseis encontrados dessa espécie de dinossauro. As pequenas garras e os fortes membros anteriores, demonstravam adaptação para captura de presas. Pela primeira vez, em função da excelente e peculiar preservação, foi evidenciada a presença de tecidos moles preservados em partes do fóssil de Santanaraptor, como vasos sanguíneos e fibras musculares. É raro esse tipo de fossilização, frequente na Bacia do Araripe, onde, durante a fossilização dos organismos, os tecidos que possivelmente iriam se decompor começam a ser substituídos por fosfatos que preservam a forma original de cada estrutura orgânica. Santanaraptor placidus era um dinossauro carnívoro de pequeno porte (com 1,68 m de altura, mas poderia atingir 2,5 m) que, possivelmente, se alimentava de insetos, ovos e de outros pequenos vertebrados. DESCOBERTA MAIS RECENTE

A MAIS RECENTE DESCOBERTA de um dinossauro na Bacia do Araripe é de 2004, a espécie Mirischia asymmetrica, descrita pelos paleontólogos britânicos Darren Naish e David Martill, ambos da Universidade de Portsmouth e Eberhard Frey do Museu Naturkunde Karlsruche. Esse fóssil foi encontrado em um afloramento da Formação Romualdo, no município de Araripina, em Pernambuco, representado por parte da coluna vertebral, pélvis, fêmur, tíbia e fíbula. O nome Mirischia é uma composição de mir, em latim, maravilhoso, e ischia do grego, alusivo à preservação perfeita do ísquio. A palavra latina asymmetrica foi dada devido à assimetria da pélvis. Mirischia asymmetrica é um dinossauro Compsoginathidae, grupo com membros anteriores mais curtos e posteriores mais longos, além de cauda também longa. Esses dinossauros, de pequeno porte, eram rápidos e simpáticos. Provavelmente formavam bandos e se alimentavam de insetos e pequenos vertebrados. Mirischia asymmetrica é considerado um dinossauro terópode carnívoro que atingia 2 m de comprimento. Esse espécime foi incorporado a estudos filogenéticos que demonstraram que Mirischia asymmetrica está intimamente relacionado aos Compsognathus do Jurássico Superior da Europa e o Aristosuchus, do Cretáceo Inferior da Inglaterra, embora também pudesse ser um Tirannossauroide basal. Esta proposta findou de algumas análises morfológicas e filogenéticas, que procuraram identificar a origem e as relações evolutivas desta espécie de dinossauro. Como justificar a ausência de outros grupos de dinossauros na Bacia do Araripe? Há registros de pegadas de dinossauros saurópodes e terópodes na Bacia do Rio do Peixe (Souza – Paraíba), a cerca de 240 km de distância da Bacia do Araripe, com praticamente a mesma idade geológica. A justificativa pode estar nas condições em que os restos foram fossilizados. Na Bacia do Rio do Peixe são encontradas apenas pegadas de dinossauros que formam trilhas, inclusive de saurópodes gigantescos. As condições ambientais onde as trilhas foram encontradas e os restos descobertos na Bacia do Araripe são bem distintos. Certamente esse grupo esteve presente na Bacia do Araripe, ainda que pudessem ser habitantes de áreas no entorno dos corpos dágua, onde se iniciou o processo de fossilização

que aflora no entorno da bacia atualmente. Ao contrário dos terópodes, com porte menor, partes de seus corpos posteriormente eram levadas até as áreas de borda do corpo d’água e, de alguma forma, chegavam às áreas mais centrais do lago ou laguna, dando início ao processo de fossilização. A energia presente nos corpos dágua que originaram as formações Crato e Romualdo era consideravelmente baixa, e isso dificultou o transporte de ossos pesados de dinossauros de grande porte para áreas mais profundas. Atualmente, fósseis encontrados no entorno da Bacia do Araripe raramente fazem parte do que foi fossilizado no entorno do paleolago. Essa é a razão pela qual os seres que habitavam os corpos dágua, como peixes, crustáceos, pequenos ramos de plantas, madeira seca flutuante e criaturas aladas, como insetos e pterossauros, são mais frequentemente localizados nesse ambiente. COMPLEXIDADE AMBIENTAL

A DIVERSIDADE DE PLANTAS e as mais de 200 espécies de insetos mostram que o entorno desses corpos d’água era um ambiente complexo em vida à época da origem das Formações Crato e Romualdo. Esse ambiente era rico em peixes, mas essa era uma fauna pouco diversificada, cujos indivíduos não chegavam a atingir 30 cm. Incluía, ainda, crocodilos anões, tornando o ambiente um todo desfavorável à alimentação de dinossauros carnívoros de grande porte. A presença de duas espécies de Spinosauridae, nesse meio, pode ser justificada por se tratar de animais semiaquáticos e piscívoros que, às vezes, se alimentavam de carcaças na borda da antiga laguna. Assim, esse grupo tinha maiores chances de se preservar nas rochas da Formação Romualdo, pois passavam grande parte de sua vida próximo ou dentro da laguna. Essa formação é caracterizada pela presença de muitos fósseis de peixes com mais de dois metros, o que aponta condições favoráveis à alimentação de terópodes semiaquáticos de grande porte. Outro evento que torna difícil a identificação de novas espécies é o tráfico de fósseis, um problema antigo no Brasil. No final do século 19 e

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COLETAS NA MINA DE CALCÁRIO laminado da Formação Crato (Bacia do Araripe).

em museus e universidades do exterior, valorizando seus acervos com dividendos para essas instituições, em prejuízo de museus e centros de pesquisas nacionais. SAQUE AMBIENTAL

OUTRO PROBLEMA, também grave, é a atividade de escavadores ilegais com pouca informação relativa à procedência dos fósseis. Isso limita o conhecimento sobre esse material, impossibilitando, por exemplo, estudos relativos ao processo de fossilização, essencial para reconstruções dos ecossistemas. Além disso, a maioria dos estudos realizados até agora concentrase na identificação dos táxons, unidade associada a um sistema de classificação científica, com poucos trabalhos que procuram entender questões relativas ao paleoambiente, sobretudo em nível detalhado. Fósseis da Bacia do Araripe são encontrados nas principais coleções da Europa, América do Norte e Ásia. Desde o início do século 19, quantidades imensas de fósseis saíram ilegalmente da região do Cariri. Ao final da última década do século passado foi iniciado um trabalho para eliminar as quadrilhas de traficantes de fósseis, realizado pelos órgãos estaduais e federais de proteção ao patrimônio fossilífero da região. A criação do Museu de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri, em Santana do Cariri, em 1985, e do Geopark Araripe, em 2006, despertaram na população local um desejo de proteção desse patrimônio natural. Campanhas educativas, realizadas por diversos órgãos ligados ao patrimônio natural, têm trazido dividendos para a região, baseados no turismo científico, ecológico e de aventura. Para preencher o espaço deixado pelos antigos coletores e escavadores ilegais são desenvolvidos projetos de coleta sistemática nas minas de exploração de calcário laminado da Formação Crato, usado na confecção de piso no Nordeste. Pesquisadores locais e de instituições nacionais, financiados por órgãos de estímulo à pesquisa, mantêm escavações controladas na Formação Romualdo. Esses trabalhos têm produzido resultados satisfatórios, já que nos últimos três anos foram descritas quatro novas espécies, além da produção de dezenas de trabalhos relacionados à paleontologia da Bacia do Araripe. Apesar do expressivo aumento nas pesquisas sobre dinossauros realizadas nos últimos anos, pode ser constatado que as descobertas da Bacia do Araripe ainda não são condizentes com o seu potencial. Para mudar essa situação são necessários maiores investimentos nas atividades de campo em trabalhos de exploração e localização de novos espécimes fósseis, além da formação de novos pesquisadores.

início do seguinte era muito comum a retirada desse patrimônio científico-cultural para que fossem levados para coleções de museus ou coleções particulares no exterior. A partir de 1942, no entanto, uma lei (Decreto-lei 4.146) proíbe a venda ou retirada ilegal de fósseis brasileiros. Assim, os fósseis passaram a ser entendidos como bem da União. Mas isso não bastou para evitar que muitos fossem enviados ilegalmente para o exterior, enriquecendo coleções no mundo inteiro. Felizmente, os fósseis associados aos dinossauros da Bacia do Araripe, Angaturama limai e Santanaraptor placidus, estão depositados na coleção do setor de paleovertebrados do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e estudados por brasileiros dedicados a combater o tráfico de fósseis. Alguns fósseis de dinossauros da Bacia do Araripe cruzaram o Atlântico e se encontram em museus da Alemanha. No Staatliches Museum fur Naturkunde em Stuttgart, por exemplo, está depositado o único exemplar de Irritator challengeri. Os fósseis associados a Mirischia asymmetrica integram a coleção do Staatliches Museum fur Naturkunde em Karlsruhe, ambos os museus localizados na Alemanha. Entre os aspectos que dificultam o estudo de fósseis da região está o fato de que diversos vertebrados fósseis exibem a preservação de tecido mole. Associadas a essa condição, a quantidade e a excepcional preservação dos fósseis da Bacia do Araripe acabaram por despertar interesse comercial por esse material. Os calcários laminados da Formação Crato, cuja exploração para fins de adorno e revestimento na construção civil aumenta a cada ano, ampliam essas dificuldades. Essa situação aumenta o risco de coleta e comércio ilegal de fósseis por parte da população do entorno das áreas de exploração. O mesmo ocorre com as concreções calcárias da Formação Romualdo, onde os fósseis são coletados pelos “peixeiros” com objetivo de comercialização. Assim, boa parte desse patrimônio científico nacional acaba em mãos de particulares, especialmente no exterior, inacessíveis ao meio científico. Em outros casos, esse material, retirado ilegalmente do país, acaba depositado

Antônio Álamo Feitosa Saraiva, O þ « « r f«æÜ«Í r¡ «ZrD§« ÍD D DO þÜ ZD µr D Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é professor adjunto da Universidade Regional do Cariri (Urca) e coordenador dos trabalhos de escavações paleontológicas nos níveis com registros de ingressões marinhas na Bacia do Araripe. Renan Alfredo Machado Bantim, biólogo, é mestre e doutorando em geociências pela UFPE. É paleo-herpetólogo e realiza trabalhos com pterossauros do Brasil e da China. Flaviana Jorge de Lima, bióloga, é mestre e doutoranda em geociências também pela UFPE. É paleobotânica e professora do curso de biologia da Urca, além de coordenar coletas paleontológicas na Bacia do Araripe. PA R A C O N H E C E R M A I S

Geopark Araripe: Histórias da Terra e do meio ambiente e da cultura. Governo do Estado do Ceará. Secretaria das Cidades. 2014. 168 págs. Guia para trabalhos de campo na Bacia do Araripe. Saraiva, Antônio Álamo Feitosa; Barros, Olga Alcântara; Bantim, Renan Alfredo Machado; Lima, Flaviana Jorge. āÈàyååT¹ àE `D m ï¹àDÎ ÷ĈÀñÎ ÀĈé ÈE åÎ O guia completo dos dinossauros do Brasil. Anelli, Luiz E. Editora Peiropolis. 2010. 224 págs.

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CLIMA

DINOSSAUROS DA AUSTRÁLIA POLAR Excelente visão noturna e aparente sangue quente levantam uma questão: eles poderiam ter sobrevivido às condições gélidas no final do período Cretáceo? Por Patricia Vickers-Rich e Thomas Hewitt Rich

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DINOSSAUROS prosperaram no sudeste do estado de Vitória durante o Cretáceo Inferior, quando a região se localizava no interior do Círculo Polar Antártico. Mural retrata seis espécies que deixaram fósseis ali, e uma sétima, o grande iguanodontídeo Muttaburrassauro, encontrado apenas em Queensland, muito mais ao norte. A escassez de grandes dinossauros polares pode refletir uma ausência real ou meramente a preservação seletiva de ossos pequenos. Peter Trusler pintou o mural das criaturas especialmente para a emissão de uma série filatélica do Correio da Austrália intitulada “Era de Dinossauros da Austrália”. 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.

LEAELLYNASSAURO AUSTRALOVENATOR MUTTABURRASSAURO PTEROSSAURO (VOANDO) ANQUILOSSAURO ATLASCOPCOSSAURO ORNITOMIMOSSAURO

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Ilustrações por Peter Trusler

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N

O CRETÁCEO INFERIOR, HÁ POUCO MAIS DE 100 MILHÕES DE ANOS, A AUSTRÁLIA SE localizava ao lado da Antártida, que se estendia sobre o polo sul como faz hoje. O canto sudeste da Austrália, onde fica o atual estado de Vitória, estava bem dentro do Círculo Polar Antártico. Àquela época, a região abrigava uma diversidade de animais e plantas que viviam em condições climáticas sem nenhum análogo moderno. A temperatura média parece ter variado de frígida a temperada baixa. Durante o longo inverno, o sol não brilhava durante semanas, ou meses.

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Muitas linhagens de dinossauros sobreviveram nesse ambiente estranho depois de desaparecerem em outros lugares. Pelo menos um membro do grupo desenvolveu uma adaptação ao frio e à escuridão que não é interessante por si só, mas também por aquilo que revela sobre o transcorrer de uma época biológica. Se o arrefecimento global de fato matou os dinossauros, como muitos paleontólogos têm sugerido, então as espécies da Austrália foram as mais prováveis de terem sobrevivido por mais tempo. É possível que suas adaptações a um clima já marginal tenham ajudado a resistir a uma tendência acentuada de resfriamento, que pegou espécies que viviam em outros continentes despreparadas? Embora plantas fossilizadas do Cretáceo do sudeste da Austrália tenham sido estudadas por mais de um século, a maioria dos animais permaneceu oculta até recentemente. Em 1903, o geólogo William Hamilton Ferguson encontrou dois ossos que tiveram influência em trabalhos paleontológicos posteriores — o dente de um peixe dipnoico (apelidados “peixes pulmonados”) e a garra de um dinossauro carnívoro, atribuído ao gênero terópode Megalossauro. Durante os 75 anos seguintes, como não houve acréscimo de novos achados, esses ossos ficaram esquecidos em um armário no Museu Victoria. Então, em 1978, dois estudantes de graduação da Monash University, com sede em Melbourne, na Austrália, Tim F. Flannery e John A. Long, descobriram perto do sítio original de Ferguson os primeiros espécimes de uma valiosa coleção de ossos de dinossauros incrustados em sedimentos do Cretáceo Inferior. Essas descobertas, a apenas uma hora e meia de carro a sudeste de Melbourne, encorajaram paleontólogos a prospectar outros sítios costeiros. Em 1980, atingimos um rico filão na cordilheira Otway, que o governo de Vitória rebatizou desde então, por nossa sugestão, Dinosaur Cove, ou Abrigo dos Dinossauros. Durante uma década passamos três meses por ano ali cinzelando, martelando, e ocasionalmente detonando túneis nos estratos fossilíferos, com auxílio do instituto Earthwatch e outros voluntários, da National Geographic Society, do Conselho de Pesquisa Australiano e da Atlas Copco, uma produtora de equipamentos de

mineração. Em 1994 os trabalhos em Dinosaur Cove foram concluídos e, desde então, o esforço tem se concentrado em um sítio a cerca de 200 km mais a leste, chamado Flat Rocks. As rochas locais são cerca de 10 milhões de anos mais antigas que as do Abrigo dos Dinossauros. Os sedimentos em Flat Rocks, em Cove e em outros sítios idênticos foram formados quando violentos rios sazonais inundavam amplas planícies aluviais, arrastando ossos e vida vegetal depositados no fundo de canais fluviais rasos. Esses depósitos aparecem ao longo do litoral sul do estado de Vitória porque apenas ali a força erosiva do marulhar das ondas poderia expor os sedimentos depositados no vale de rift (fratura geológica) que se formou quando a Austrália e a Antártida seguiram por caminhos separados, como aconteceu com os outros fragmentos de Gondwana, o antigo supercontinente austral [ver quadro na pág. ao lado]. Apenas três sítios fósseis do mesmo período foram encontrados no interior, um deles em sedimentos depositados em condições muito mais tranquilas no fundo de um antigo lago. Consequentemente, esse sítio interiorano produziu alguns espécimes extraordinariamente bem preservados. É preciso dizer que os dinossauros do sudeste da Austrália são conhecidos por meio de uns 8 mil ossos individuais e quatro esqueletos parciais. E não mais que algumas centenas dos ossos podem ser atribuídas a uma dada espécie ou gênero. Mas o que falta em números é compensado por interesse científico. Todos os esforços de interpretação giram em torno de estimativas de temperatura ambiente, para as quais foram aplicados tentativamente três métodos distintos. Robert T. Gregor, da Southern Methodist University, em Dallas, no Texas, e seus associados inferem paleoclima australiano da proporção entre oxigênio 18 e oxigênio 16 presos em concreções em rochas antigas. De acordo com eles, as temperaturas médias anuais provavelmente giravam em torno de 0oC, mas podem ter chegado a 8oC. Valores como esses são registrados atualmente na Baía de Hudson, em Saskatchewan (0oC), e em Minneapolis e Toronto (8oC). Os trabalhos de Andrew Constantine, da Origin Energy, principal

EM SÍNTESE Há mais de 100 milhões de anos, o canto sudeste da Austrália, no atual estado de Vitória, localizava-se no interior do Círculo Polar Antártico. À época, a Austrália polar mergulhava em escuridão total durante pelo menos seis semanas seguidas durante o inverno e a temperatura média anual era

apenas moderadamente temperada, ou gélida. A região polar de Vitória foi lar de pelo menos nove espécies de dinossauros terópodes carnívoros durante o Cretáceo, assim como de dinossauros com chifres que podem ter surgido no continente austral. Os dinossauros da Austrália polar parecem

ter sido, em sua maioria, relativamente pequenos, talvez porque estivesåy® `¹´ ´Dm¹å D ù®D Èy´ ´åù¨D mD massa terrestre, sem poder migrar facilmente. Dinossauros “hipsilofodontídeos”, cuja forma corporal e papel ecológico se assemelham aos de um pequeno marsupial chamado wallaby,

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são proeminentes no registro fóssil de Vitória. Seus olhos grandes provavelmente facilitavam a alimentação durante as longas noites invernais. Adaptações como essa podem ter permitido que os dinossauros vitorianos sobrevivessem por mais tempo que seus congêneres em outras partes do mundo.


D E S C O B E R TA S

Os Fósseis do Abrigo dos Dinossauros Equador

Austrália atual

Círc ulo

Há 108 milhões de anos

r t ic o Antá lar o P

Abrigo dos Dinossauros

JOHNNY JOHNSON (acima, à esquerda); PETER MENZEL; CORTESIA DE NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY (acima, à direita); PETER TRUSLER (abaixo, ilustração inserida); STEVE MORTON MONASH UNIVERSITY (abaixo, fotografia)

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O supercontinente austral conhecido como Gondwana começou a se dividir há mais de 100 milhões de anos, quando um vale de rift, uma fratura geológica, se formou entre o que futuramente seriam a Austrália e a Antártida (à esquerdaÊÍ D³D ä øþ D ä ³¸ä þD§xä acumularam ossos trazidos pelas águas de inundações que varriam essas amplas planícies periodicamente. Esses ossos, juntamente com argila e sedimentos, produziram as formações fossilíferas do Abrigo dos Dinossauros (à direita).

I N O S S A

Uma aguçada visão noturna é sugerida pela estrutura cerebral e pelos olhos grandes de Leaellynasaura amicagraphica. Um enorme lobo óptico pode ser visto na parte posterior desse molde natural do cérebro (à direita, ampliado). Olhos grandes eram comuns a todos os hipsilofodontídeos, inclusive o Qantassaurus intrepidus (inserção), um parente próximo de L. amicagraphica, e podem ter ajudado o grupo a dominar um ambiente marcado por escuridão sazonal.

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Órbita ocular

R O S

Hemisfério cerebral

Olho pineal

Lobo óptico

tura média anual ligeiramente mais elevada, de 10oC. Sua pesquisa com colegas já demonstrou que a Austrália polar sustentava coníferas, ginkgos, samambaias, cicadófitas, briófitas e cavalinhas (da família das equisetáceas), mas apenas poucas angiospermas, ou plantas florescentes, identificáveis por vestígios de pólen. À época, as angiospermas estavam apenas começando a se alastrar para novos nichos. Talvez elas tenham estreado ao explorarem sistemas ecológicos cheios de ervas daninhas nos vales de rift que se formaram quando o supercontinente se dividiu. Spicer e Parrish observaram que sempre-vivas, que proporcionavam forragem em todas as estações, tinham cutículas grossas e outras características estruturais que indicam adaptação ao frio ou a condições de seca (talvez resultante do congelamento invernal). Plantas decíduas, ou caducifólias, que perdem suas folhas no outono/inverno, oferecem outra

companhia de energia integrada da Austrália, em estruturas preservadas nas rochas perto de onde os ossos de dinossauros estão enterrados, fornecem evidências da existência anterior de permafrost e formação de cunhas de gelo, além de terreno modelado e estratificação ondulada truncante do solo (hummocky¸ no jargão geológico). Atualmente, esses aspectos se formam em regiões com temperaturas médias anuais entre -3oC e 3oC. Essas estruturas só se tornam mais óbvias estratigraficamente a três metros abaixo da localização de Flat Rocks, onde foram encontrados dinossauros e mamíferos. Evidências da ocorrência de permafrost nunca haviam sido relatadas em associação com dinossauros. Robert A. Spicer, da Open University, no Reino Unido, e Judith Totman Parrish, da University of Idaho, por outro lado, deduzem temperatura a partir da estrutura de plantas antigas, chegando a uma tempera-

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ROCHAS DURAS implicaram trabalho árduo para esses paleontólogos voluntários no Abrigo dos Dinossauros. Técnicas completas de mineração em larga escala (acima) e serras para corte de rochas (página ao lado) são utilizadas para extrair placas fossilíferas, que tendem a se fraturar ao longo dos planos que contêm os maiores tesouros.

As escavações também mostraram que havia pelo menos sete terópodes de corpos menores no atual estado de Vitória. A mais bem representada no registro fóssil, por numerosos ossos e dentes isolados, é outra espécie de alossaurídeo. Em um contraste acentuado, cada uma das outras seis espécies de corpos menores é representada por apenas um ou alguns poucos ossos isolados. Essa escassez de evidências para a antiga presença de tantos táxons sugere que, com a continuação dos trabalhos em Vitória, serão encontrados mais exemplares desses terópodes de corpos menores. Entre esses animais menores estava a espécie Timimus hermani, conhecida por apenas dois ossos. Tratava-se de um tiranossaurídeo distantemente aparentado com o Tiranossauro rex, com fêmures extraordinariamente longos e delgados, sugerindo que pode ter sido particularmente veloz. Além desses poucos vestígios, esse tiranossaurídeo e dois outros terópodes menores, o ornitomimossauro, parecido com uma avestruz, e um possível oviraptorossauro, apelidado “o ladrão de ovos”, não são conhecidos por terem vivido em Gondwana, mas são encontrados nos continentes setentrionais. Enquanto os tiranossaurídeos no hemisfério norte são significativamente anteriores aos seus congêneres australianos, o ornitomimossauro e oviraptorossauro, se estiverem corretamente identificados, estrearam durante o mesmo período geológico nos dois hemisférios. Fósseis dos outros três terópodes menores de Vitória, um alossaurídeo, um dromaeossaurídeo com garras em forma de foice, e um ceratossauro com chifres, foram encontrados em outras partes de Gondwana e do hemisfério boreal. Além dos terópodes, outro grupo identificado de dinossauros integra os neoceratopsianos, ou dinossauros com chifres. A identificação é precária, porque está baseada em apenas dois ossos cúbitos, antes chamados ulnas (osso da parte inferior do braço), mas a similaridade de um deles com o leptocerátops, um herbívoro do porte de uma ovelha, é incomum. Anteriormente, todos os registros de neoceratopsianos datavam do final do Cretáceo Superior e, com exceção de alguns ossos da Argentina, vinham do hemisfério norte. Há relatos que indicam a existência de

ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA

COMO ELES SOBREVIVERAM? Suspeitamos que o clima frio tenha preservado os animais da competição com crocodilos, que provavelmente eram mal adaptados às condições prevalecentes no sudeste da Austrália até o início do aquecimento climático, durante os últimos cinco milhões de anos do Cretáceo Inferior. A hipótese se fundamenta no fato de que crocodilianos contemporâneos não vivem em águas com temperaturas inferiores a 10oC, enquanto alguns anuros e salamandras modernos se mostram ativos em águas de degelo da neve. Pelo menos nove espécies diferentes de dinossauros terópodes carnívoros viveram nas terras que hoje ocupam o estado de Vitória. O Australovenator é conhecido por causa de um esqueleto parcial, de aproximadamente 5,5 m de comprimento, encontrado no nordeste da Austrália, a uns 2 mil km ao norte de Vitória. Trata-se de um alossaurídeo e, portanto, de um parente do conhecido alossauro da América do Norte e da África. Um osso do tornozelo encontrado em Vitória parece pertencer a esse mesmo gênero ou outro estreitamente aparentado a ele. Um espinossauro, tipo de dinossauro terópode com espinhas altas que se projetavam acima de suas costas, pode ter sido maior ainda. Um fragmento isolado de uma vértebra é a única evidência de que esse animal, primariamente consumidor de peixes, existiu alguma vez na Austrália.

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pista climática: elas parecem ter perdido todas as suas folhas de uma só vez. Essas quedas em massa podem ter sido provocadas por escuridão ou frio. Secas, no entanto, provavelmente não serviam como sinalizador constante: o registro sedimentar e a abundância de samambaias e briófitas argumentam a favor de condições úmidas em todas as estações, exceto, talvez, no inverno. Se a estimativa de uma temperatura média mais elevada estiver correta, a Austrália tinha tanto um clima temperado como estava sujeita a um período de escuridão contínua todos os anos, combinação sem qualquer equivalência moderna. A noite invernal durava de seis semanas a quatro meses e meio, dependendo da verdadeira paleolatitude. Como, nesse caso, o extremo inferior da temperatura teria caído bem abaixo da média, a maioria dos vertebrados preservados como fósseis deve ter vivido muito próxima de seus limites térmicos. Alguns, como os “peixes pulmonados”, hoje não conseguem procriar em águas mais frias que 10oC. Se, por outro lado, a estimativa mais baixa estiver certa, então compreender como essa paleocomunidade conseguiu funcionar torna-se mais que um típico desafio científico. Antes de estudarem esse problema seriamente, cientistas terão de demonstrar primeiro que ele de fato existiu. Para refinar a avaliação de temperatura, uma equipe multidisciplinar está comparando dados florais, geoquímicos e outras formas de evidências. Nada, na fauna australiana, é tão peculiar à região como o atual coala, pois embora as espécies e gêneros fossem locais, eles pertenciam a famílias cosmopolitas. Mas suas adaptações são tão impressionantes quanto o fato de que algumas espécies sobreviveram muito além da época do desaparecimento de suas famílias em outros lugares. Entre anacronismos ou relictos desse tipo estão os anfíbios temnospôndilos, possivelmente ancestrais de anfíbios modernos. A maioria dos paleontólogos julgava que esse grupo havia sido extinto há uns 160 milhões de anos, no período Jurássico. Mas, nas últimas décadas, Michael Cleeland e Lesley Kool, da Monash University, encontraram três mandíbulas dessas criaturas em sedimentos vitorianos que datam do Cretáceo Inferior. Duas delas eram inconfundíveis, porque o esmalte de seus dentes tinha a dobradura labiríntica interna que dá a esse grupo seu nome comum: labirintodontes. Pelo menos uma grande espécie de temnospôndilos viveu na Austrália polar há cerca de 120 milhões de anos; vários milhões de anos depois de o grupo ter sido extinto em outros lugares.


rinco. Uma segunda espécie é, de longe, o menor monotremado, pesando apenas 1% do peso de qualquer outro membro vivo ou fóssil do grupo. O Cretáceo Inferior australiano também remodelou formas [corporais] que continuaram a prosperar em outras regiões. De longe, o mais bem-sucedido desses grupos foi o dos dinossauros “hipsilofodontídeos”, uma subdivisão informal dos Ornitópodes basais. Esses animais, a maioria pouco maiores que uma galinha, eram bípedes, anatomicamente construídos para serem velozes, com grandes patas traseiras, mãos pequenas, mas bem desenvolvidas, caudas substanciais e majoritariamente com hábitos herbívoros. Por essa razão, eles se assemelhavam a wallabies tanto em forma como função ecológica. A família dos hipsilofodontídeos era comum em todo o mundo do Jurássico Médio ao Cretáceo Superior, mas sua proeminência atinge um pico absoluto e relativo nos sedimentos vitorianos. Essas criaturas não só constituem a maior parte dos resquícios de dinossauros, como são representadas por quatro ou cinco gêneros, dependendo dos critérios taxonômicos que se utilizam, e por cinco ou seis espécies. Outras áreas, algumas muito mais ricas em espécies de dinossauros, nunca abrigaram mais que três espécies de hipsilofodontídeos simultaneamente. Alguma coisa claramente favoreceu a diversificação desse grupo na Austrália polar.

PETER MENZEL; CORTESIA DE NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY

OLHOS GRANDES

UMA ADAPTAÇÃO PARTICULARMENTE intrigante de pelo menos uma espécie de hipsilofodontídeo polar é sugerida pelo molde cerebral magnificamente bem preservado de Leaellynasaura amicagraphica (batizado em homenagem a nossa filha, junto com amigos do Museu Vitória e da National Geographic Society). O cérebro, incomumente grande para um dinossauro desse tamanho, exibe as marcas de lobos ópticos, cujo tamanho relativo é facilmente o maior já documentado em um exemplar dessa espécie. Como devemos interpretar esses lobos aumentados? Teorizamos que eles aprimoravam a capacidade visual noturna dos animais, permitindo que se alimentassem com eficiência durante os longos meses de inverno. Naqueles períodos não teria havido escassez de alimentos para os capazes de enxergá-los: os herbívoros poderiam ter vivido de semprevivas e “tapetes” de folhas decíduas, e os carnívoros poderiam ter caçado os herbívoros. Essa hipótese também explica por que esse grupo chegou a dominar o ambiente polar, em primeiro lugar. Hipsilofodontídeos em todas as partes do mundo tinham olhos grandes e, presumivelmente, uma visão aguçada. Essa característica poderia ter sido sua grande vantagem na Austrália polar. Uma vez estabelecidos nesse ambiente “protegido”, os hipsilofodontídeos poderiam ter competido entre si para produzir a observada diversidade de gêneros e espécies; e talvez todos tenham compartilhado lobos ópticos hipertrofiados.

neoceratopsianos do Cretáceo Inferior em Utah, nos Estados Unidos, e na China. Mas essa família de dinossauros também pode ter surgido no supercontinente austral. Além de dinossauros, a região fornece evidências de mamíferos que parecem estar entre os mais primitivos membros de seus grupos. Os minúsculos Bishops, um gênero extinto de Australosphenida, lembra o moderno ouriço-sem-espinhos Neotetracus. Esse animal talvez tenha sido um placentário. Nesse caso, ele é tão antigo quanto os placentários mais antigos de que se tem conhecimento do hemisfério norte e duas vezes mais antigo que o mais primitivo marsupial já encontrado na Austrália. Essa idade é surpreendente porque o atual domínio marsupial da Austrália em geral é explicado como resultante da chegada de placentários terrestres ao continente muito tempo depois dos marsupiais. Outro grupo de mamíferos cuja presença não é surpresa inclui os monotremados. Um osso isolado da perna de um deles tem uma estrutura sugestiva de postura mais ereta que a de um equidna ou de um ornitor-

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ÚLTIMO DE SUA ESPÉCIE: Koolasuchus cleelandi, o último anfíbio sobrevivente da ordem dos temnospôndilos, flutua em um ambiente outonal há cerca de 120 milhões de anos no sudeste da Austrália.

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Se os animais se alimentavam à noite, devem ter sido ativos em temperaturas glaciais ou subglaciais. Essa façanha vai muito além da tolerância ao frio de qualquer réptil moderno, até mesmo da tuatara neozelandesa Sphenodon punctatus, capaz de permanecer ativa a 5oC, desde que possa tomar banho de sol. Os Leaellynassauros poderiam ter sobrevivido ao simplesmente manterem uma temperatura corporal constante e se alimentar com frequência, como os pássaros fazem no inverno. Pterossauros, os répteis voadores, e anquilossauros, fortemente blindados, também aparecem no registro fóssil vitoriano, mas seus vestígios estão tão fragmentados que nos informam pouco sobre a vida dos animais. Mas muita coisa pode ser deduzida de alguns dentes de plesiossauros. Esses répteis, que não são propriamente dinossauros, em geral deslocavam-se pelos mares; mas aqui duas espécies bastante distintas entre si habitavam corpos de água doce no antigo vale entre a Austrália e a Antártida. Eles lembram muito o golfinho-do-ganges (Platanista gangetica), um dos poucos cetáceos que vivem em água doce. Uma das duas espécies pode ter sido um pliossauro, um tipo de plesiossauro com pescoço curto e crânio alongado, cujo corpo media 4 m ou mais de comprimento. A outra era um típico plesiossauro de pescoço comprido e crânio pequeno. Essa diferença óbvia em estrutura corporal pode explicar como as duas espécies de plesiossauros conseguiram coexistir no mesmo ambiente, adaptadas para se alimentar de presas bastante diferentes. Os saurópodes são um dos poucos grandes grupos de dinossauros ausentes. Esses gigantes, conhecidos graças ao familiar apatossauro,

viviam àquela época nas latitudes mais baixas da Austrália. Mas nenhum foi encontrado mais ao sul. A aparente restrição espacial desses grandes dinossauros a latitudes mais baixas no Cretáceo australiano pode ser real ou meramente resultado de amostragem insuficiente. Essas questões nos preocupam porque as águas de inundações que irromperam de rios aumentados por chuvas teriam arrastado ossos de pequeno e médio porte, deixando os grandes intocados. O corpo de um saurópode teria ficado no lugar em vez de flutuar para outro onde muitos espécimes se concentravam nos pequenos canais de inundação, com não mais que 5 a 10 m de largura e algo entre 20 e 30 cm de profundidade. Esse fator pode explicar a ausência dos grandes ossos de saurópodes, mas não de seus dentes minúsculos. Portanto, eles não parecem ter chegado à Austrália polar, embora suas vértebras sejam conhecidas da Nova Zelândia polar e da Península Antártica. Suspeitamos que houvesse uma tendência subjacente para tamanhos corporais reduzidos nesses ambientes polares. É preciso lembrar que nenhum dos hipsilofodontídeos era mais alto que um humano; a maioria mal chegava à altura de seus joelhos. O ornitomimossauro também não impressionava, e o protoceratopsídeo e o anquilossauro não eram maiores que uma ovelha. Um fragmento de uma garra é nosso único registro de um dinossauro de grande porte, um carnívoro aparentemente similar ao Baryonyx da Inglaterra, que pode ter medido até 8 m de comprimento. A rara evidência para a presença do maior dinossauro na região polar de Vitória se fundamenta na menor parte identificá-

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ficado para que as espécies sobrevivam em uma área restrita. Esse efeito também foi observado em penínsulas, e o antigo sudeste da Austrália era uma península da massa terrestre de Gondwana. Os dinossauros ali ficaram praticamente presos “no fim do mundo”. Seu caminho direto rumo ao norte foi bloqueado por um vasto mar interior, que eles só poderiam ter transposto ao caminharem centenas de quilômetros para o oeste antes de virarem em direção norte. Ao final de jornadas árduas desse tipo eles [os animais] teriam sido capazes de conseguir pegar, no máximo, uma hora de sol por dia no inverno. Qualquer migração teria pouco sentido para animais tão pequenos. Barreiras menos desafiadoras parecem ter encurralado os dinossauros do único outro sítio polar que produziu grandes quantidades de fósseis: a Encosta Norte (North Slope) do Alasca. Ali os dinossauros tinham um evidente corredor norte-sul pelo qual poderiam migrar facilmente. É significativo que aqueles dinossauros fossem grandes; pelo menos iguais, em tamanho, a alces, gnus e outros animais modernos migrantes. REFÚGIO SEGURO EM GONDWANA

É PRECISO QUESTIONAR se animais tão extraordinariamente adaptados ao frio e à escuridão poderiam ter sido levados à extinção por um inverno artificial, como o que supostamente se seguiu a um evento cataclísmico no limite entre os períodos Cretáceo e Paleogênico. A ciência propõe que essa convulsão de proporções catastróficas, talvez uma combinação de uma colisão com um cometa ou asteroide e uma série de erupções vulcânicas, impregnou a atmosfera com uma camada tão densa de poeira que bloqueou a luz solar, congelando ou matando de fome a maioria dos animais. Suspeitamos, porém, que um inverno artificial como esse não poderia ter matado os dinossauros, a menos que durasse muito tempo, certamente mais que alguns meses. Caso contrário, pelo menos alguns dos exemplares polares teriam sobrevivido ao cataclismo. Evidentemente, é possível que um fenômeno ou desenvolvimento diferente já tivesse posto fim ao reinado dos dinossauros da Austrália austral no fim do Cretáceo. O escritor inglês Arthur Conan Doyle certa vez sonhou com um planalto esquecido pelo tempo na América do Sul, onde dinossauros continuavam dominando a Terra. Relatos do início da década de 90, de que mamutes anões haviam sobrevivido a períodos históricos primitivos em ilhas ao largo da costa da Sibéria, reforçam esse tipo de especulação. Se dinossauros encontraram refúgio similar, em que sobreviveram aos congêneres de suas espécies, então acreditamos que Gondwana polar, inclusive o sudeste da Austrália, seja um lugar provável para procurar por eles.

STEVE MORTON (fotografia)

QUANDO VIVOS, durante o Cretáceo, Bishops, gênero extinto de Australosphenida do sudeste da Austrália, podem ter se assemelhado a modernos ouriços-sem-espinhos Neotetracus (acima) da China e do Sudeste Asiático. A mandíbula mostra o que se sabe sobre o fóssil (abaixo).

vel de seu esqueleto. Portanto, não podemos descartar a possibilidade de que uma tendência sistemática contra a preservação de fósseis maiores é a razão por que grandes dinossauros raramente são encontrados ali. Mas, embora haja evidência de pelo menos um grande dinossauro em Vitória polar, o conjunto de dinossauros parece ter reunido principalmente indivíduos menores. Esse padrão contradiz a clássica Lei das Proporções, ou Lei de Allen, formulada por Carl Bergmann e Joel Allen no século 19. De acordo com ela, animais de uma determinada linhagem tendem a ficar maiores e mais compactos à medida que a temperatura média de seu ambiente cai. Essa propensão é exemplificada pela comparação de cugares (Puma concolor) no Canadá com pumas da América Central, e de populações humanas nas zonas subártica e tropical. Há outros fatores determinantes de dimensões corporais, especialmente o tamanho do território em que vive uma dada população. Exemplares encontrados em ilhas muitas vezes são menores que seus congêneres continentais. Nas antigas ilhas do Mediterrâneo, por exemplo, havia elefantes anões, e mamutes pigmeus foram encontrados em sedimentos de 4 mil anos em ilhas ao largo da costa norte da Sibéria. Nanismo pode ser uma resposta à pressão seletiva para aumentar o número de indivíduos a fim de garantir um pool gênico suficientemente diversi-

Patricia Vickers-Rich e Thomas Hewitt Rich colaboram no estudo de fósseis. Patricia Vickers-Rich é professora de paleontologia na Monash University em Melbourne, Austrália. Ela se interessa pela reconstrução de ambientes antigos, especialmente aqueles sem análogos modernos, e pela análise de rápidas mudanças bióticas. Thomas H. Rich é curador de paleontologia vertebrada no Museu Vitória, em Melbourne. Ele pesquisa padrões evolutivos de vertebrados do período Mesozoico e é especialista em mamíferos primitivos e dinossauros ornitísquios. Os dois se formaram em paleontologia pela 7§ èrÍÒ Üë «{ D {«Í§ Dd rÍ r rëd r îrÍD¡ f«æÜ«ÍDf«Ò r¡ r« « D µr D « æ¡O D 7§ èrÍÒ Üëd r¡ %«èD ?«Í » rÒ è èr¡ µrÍÜ« fr $r O«æͧr r Üù¡ f« Ò «Ò» PA R A C O N H E C E R M A I S

The artist and the scientists: Bringing prehistory to life. Peter Trusler, Patricia Vickers-Rich e Thomas H. Rich. Cambridge University Press, 2010. A century of Australian dinosaurs. Thomas H. Rich e Patricia Vickers-Rich. Queen Victoria Museum and Art Gallery and the Monash Science Center, 2003. Dinosaurs of darkness. Thomas H. Rich e Patricia Vickers-Rich. Indiana University Press, 2000.

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D I N O S S A U R O S 2


O PREDADOR DOMINANTE no Alasca do Cretáceo Superior foi o Troodon. Esse dinossauro, de dois a três metros de comprimento, via o mundo com olhos incomumente grandes, característica que pode ter contribuído para suas bemsucedidas caçadas durante os longos meses de semiescuridão sobre o Círculo Ártico.


SOBREVIVÊNCIA

DINOSSAUROS DO ALASCA ÁRTICO Há cerca de 70 milhões de anos um grupo de répteis resistentes prosperou no rigoroso clima do que agora é o Alasca Anthony R. Fiorillo


A

LGUMAS PINCELADAS MAIS E O OSSO AOS MEUS JOELHOS DE REPENTE surgiu claramente. Eu olhava para o focinho de um paquirrinossauro, um dinossauro particularmente estranho, com chifres; um parente raro do tricerátopo. Não era o primeiro e nem mesmo o segundo fóssil dessa criatura encontrado no Alasca, mas nesse crânio eu conseguia ver nitidamente partes que não estavam preservadas em outros espécimes. Contínuas escavações no sítio, com pequenas picaretas e pás suplementando nossos pincéis, liberaram os ossos e dentes de pelo menos três outras espécies de dinossauros. Seria preciso mais uma viagem para que eu percebesse que estávamos engatinhando sobre mais 10 crânios de paquirrinossauros. A maioria dos espécimes era mais ou menos da mesma idade e os animais provavelmente haviam morrido juntos em uma inundação ou outra catástrofe. Esse grupo foi a primeira evidência de que dinossauros com chifres ao norte do Círculo Polar Ártico tinham comportamento gregário.

I N O S S A U R O S 2

plantas duras e fibrosas de que se alimentavam. Esses animais podiam se erguer sobre suas patas traseiras para alcançar folhagens mais altas, embora se locomovessem de quatro, possivelmente em uma andadura bamboleante, porque as patas traseiras eram mais longas que as dianteiras. O edmontossauro (Edmontosaurus) ganha o prêmio de hadrossauro mais bem conhecido por seus ossos e, portanto, é também o mais bem caracterizado. Pesando entre 1.400 kg e 1.800 kg, esses colossos estão entre os maiores hadrossauros encontrados na América do Norte. Hadrossauros reúnem cerca de 80% dos dinossauros herbívoros encontrados no Alasca. Como outros de sua espécie, edmontossauros eram animais sociais, que se reuniram em “manadas”, como mostraram seus ossos, encontrados amontoados em diversos pontos no norte do Alasca, como se grupos inteiros deles tivessem morrido em uma inundação súbita. Desde 2002 o Alasca provou ser uma “loja de doces paleontológica”; parece que há descobertas inéditas em lugares novos todos os anos. Graças ao contínuo apoio do Serviço de Parques Nacionais agora temos um sólido registro de dinossauros de diversos parques do Alasca, inclusive do Aniakchak National Monument, Wrangell-St. Elias National Park, Yukon-Charley Rivers National Preserve e, mais notavelmente, do Denali National Park, onde o registro fóssil inclui uma apreciável diversidade de aves. Juntos, os achados nessas regiões fornecem dados sobre a biodiversidade e adaptação biológica em um ecossistema terrestre antigo de elevada latitude. O Alasca não foi o único hábitat surpreendente de dinossauros. Outros pesquisadores, como Patrícia Vickers-Rich, da Monash University, e Thomas Hewitt Rich, do Museum Victoria, descobriram resquí-cios fragmentários de dinossauros que viveram perto do polo sul durante um período muito mais antigo (ver “Dinossauros da Austrália Polar”, pág. 18). Como dinossauros foram parar no extremo norte do planeta? É mais que provável que tenham vindo da Ásia, porque formas ancestrais de quase todas as famílias de dinossauros do Cretáceo encontradas na América do Norte existiram também na Ásia. A maioria dos paleontólogos

O ELENCO DE PERSONAGENS

ALGUMAS ESPÉCIES DESSES ANIMAIS ERAM HERBÍVORAS, enquanto outras, chamadas terópodes, se alimentavam das primeiras e de outras criaturas. Os dinossauros mais abundantes no Alasca eram, de longe, os chamados “bicos-de-pato”, conhecidos tanto por meio de ossos como de pegadas fossilizadas. Hadrossauros, criaturas grandes e herbívoras, também são chamados “bicos-de-pato” devido às suas bocas largas e achatadas; mas, ao contrário de patos, eles tinham centenas de dentes capazes de triturar as

EM SÍNTESE Nos últimos 30 anos, paleontólogos descobriram que o Alasca foi lar de grandes populações de vários dinossauros (inclusive

uma diversidade de aves). Dinossauros bico-de-pato e outros munidos de chifres estão entre as espécies que viveram na

região há entre 70 milhões e 69 milhões de anos. Essas criaturas devem ter tido adaptações que lhes permitiram sobrevi-

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ver aos prolongados meses de frio e escuridão; pistas sobre essas características especiais estão começando a aparecer.

PÁGINAS ANTERIORES: LARRY FELDER

D

Eu havia ido àquele lugar remoto, em uma ribanceira com vista para o rio Colville, no verão boreal de 2006 com colegas do Perot Museum of Nature and Science, da Southern Methodist University, para escavar o crânio de um paquirrinossauro que encontrara em 2002. Empreendemos uma massiva escavação de 2005 a 2007. O nome do gênero Pachyrhinosaurus significa “lagarto de nariz grosso”. Após anos de cuidadoso trabalho laboratorial e estudo dos novos espécimes reunidos durante nossas escavações descobrimos que o espécime com chifres era uma nova espécie do gênero. Batizamos o dinossauro ártico com chifres Pachyrhinosaurus perotorum em homenagem aos principais benfeitores de nosso museu, a família Ross e Margot Perot. Ninguém ainda escavou um esqueleto completo de dinossauro nesse sítio ou em qualquer outro lugar no Alasca. Com base em esqueletos parciais, ossos isolados, dentes e pegadas fossilizadas identificamos vários tipos de dinossauros (inclusive aves) e outros vertebrados fósseis que foram contemporâneos no extremo norte [ver ilustração nas págs. 30 e 31]. Todos esses animais são do período Cretáceo, que se estendeu de 145 milhões a 65 milhões de anos, mas nossos fósseis datam de apenas 70 milhões a 69 milhões de anos, uns três ou quatro milhões de anos antes da famosa extinção em massa dos dinossauros. Nosso trabalho prossegue, mas começamos a preencher algumas lacunas com detalhes sobre que espécies de dinossauros viviam no topo do mundo há milhões de anos e como sobreviveram ali.


D E S C O B E R TA S

Dinossauros no Topo do Mundo Durante o período Cretáceo, há cerca de 70 milhões de anos, massas terrestres continentais (regiões em laranja na inserção abaixo, à esquerda) ocasionalmente incluíam uma ponte terrestre, ou istmo, através do que atualmente é o estreito de Bering. Dinossauros provavelmente caminhaßD­ Ç¸ß xääx îßx` ¸ lx îxßßD ß­x lD ä D ÇDßD D ­yß `D l¸ %¸ßîxÍ Alguns se estabeleceram no extremo norte; outros prosseguiram rumo ao sul. O autor e outros paleontólogos procuram vestígios fósseis no atual Alasca em sítios como a Pedreira de Kikak-Tegoseak (acima, à direita), onde encontraram crânios de paquirrinossauros (Pachyrhinosaurus) com chifres.

Um dos sítios mais ricos em ossos é Liscomb Bone Bed, onde os achados incluem um grupo de dinossauros bicos-de-pato juvenis, ou hadrossauros (ossos abaixo, à direita), que provavelmente morreram juntos, talvez em uma inundação súbita. Pegadas de um pequeno dinossauro predador (à direita ao meio) de um sítio próximo às margens do rio Kaolak parecem brancas devido a um composto de silicone usado para fazer moldes de impressões antigas. Outra pegada (abaixo, centro), colhida no Aniakchak %Dî ¸³D§ $¸³ø­x³îj ³¸ äø§ l¸ §Dä`Dj ¸ ÇßxäxßþDlD x­ Çxß § lx xää¸ ÇDßD Çxß­ î ß Ôøx ` x³î äîDä D lx³î `Dääx­ x xäîølDääx­Í

EDWARD BELL E TOMMY MOORMAN (mapas); FONTE: C. R. SCOTESE, COPYRIGHT © 2003 PROJETO PALEOMAPA (dados de massa terrestre); ANTHONY R. FIORILLO (fotografias)

Polo Norte

Círculo Polar Ártico D

YukonCharley Reserva Nacional dos Rios

OCEANO ÁRTICO Liscomb Bone Bed Rio Colville

Pedreira de Kikak-Tegoseak

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CANADÁ

Pedreira de Kikak-Tegoseak

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ALASCA

Parque Nacional Denali

Rio Yukon

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Parque Nacional e Reserva WrangellSt. Elias

Monumento Nacional Aniakchak

OCEANO PACÍFICO

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Pegadas de dinossauro junto ao rio Kaolak

Massas terrestres há 70 milhões de anos

Pegada de hadrossauro do Aniakchak National $¹´ù®y´ï y® Èyà ¨ de gesso

Ossos da parte inferior da perna de hadrossauros juvenis de Liscomb Bone Bed


acredita que alguns desses animais migraram por uma ponte terrestre exposta por uma acentuada queda no nível do mar, onde hoje se localiza o estreito de Bering [ver quadro na página anterior]. A configuração de placas continentais durante o Cretáceo sugere que as mais antigas delas estiveram em posição para servir como uma ponte terrestre há aproximadamente 120 milhões de anos. É provável que alguns imigrantes simplesmente acabassem ficando no extremo norte porque o ambiente local supria suas necessidades; outros rumaram para o sul. Uma espécie, porém, parece ter seguido um caminho diferente: o alamossauro (Alamosaurus), um herbívoro de mais ou menos 20 m de comprimento, aparentemente chegou por uma rota migratória mais meridional — vestígios de seus ancestrais são encontrados na América do Sul e África.

O Alasca é formado por imensos blocos geológicos e alguns deles se originaram muito longe de sua localização atual. Mas durante o Cretáceo, muitas dessas grandes placas terrestres ficavam perto de sua moderna posição latitudinal ou mais acima. Portanto, os fósseis de dinossauros encontrados ali não foram postumamente “sequestrados” de climas distantes e levados para lá em placas em movimento: os animais viveram nas altas latitudes durante o Cretáceo. Mas, teriam permanecido ali o ano todo? E, nesse caso, como puderam fazer isso? A resposta a essa pergunta exige conhecimento das condições climáticas no Alasca há cerca de 70 milhões de anos. De fato, o mundo era mais quente então, mas, ainda assim, o clima nas terras de altas latitudes era um desafio, com invernos muito frios e bastante neve e vários meses de escuridão. Dados climatológicos derivados de polens, folhas

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Edmontossauro Nanuqssauro

Paquicefalossauro Troodonte

Dromeossauro

KAREN CARR

Paquirrinossauro

Parksossauro

Ave

Saurornitolestes

ALASCA há cerca de 70 milhões de anos. Quatro espécies herbívoras (identificações em negrito acima) e quatro predadoras (identificações em vermelho) pastavam e caçaram na antiga paisagem pontilhada de ciprestes e árvores do tipo metassequoia (conífera). As montanhas que se erguem ao fundo representam a primitiva Cordilheira Brooks. No canto inferior direito um pássaro semelhante a um pato, baseado em rastros encontrados no Denali National Park, foge do Saurornitolestes predador.

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TRABALHO DE CAMP O

Boa Sorte Armazenada seguinte em um deslizamento de rochas, e suas descobertas permaneceram armazenadas. Em meados da década de 80, Henry Roehler e Gary Stricker do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS, na sigla em inglês) reportaram a descoberta de vários resquícios fragmentários de dinossauros, como impressões de pele fossilizadas, no noroeste da Alasca. Logo depois disso, o USGS teve a posse da coleção original de Liscomb. O paleontólogo Charles A. Repenning reconheceu devidamente que se tratava de dinossauros, e equipes de campo do USGS localizaram a área onde Liscomb havia feito seu trabalho inicial. %¸ ³D§ lD ly`DlD lx }ć ¸ $øäxø­ ¸ Paleontology, da University of California, e o 7³ þxßä îā ¸ §Dä¦D $øäxø­ lxßD­ `¸³î ³ø dade ao trabalho de campo nessa área remota, descobrindo vestígios que sugeriam abundantes restos de dinossauros e outros animais. Graças ao meu interesse por ecossistemas dinossáuricos em alta latitude norte, fui convidado a participar do projeto em 1998 e, desde então, continuei fazendo viagens de pesquisa ao Alas`D î¸l¸ä ¸ä D³¸äÍ $D ä ßx`x³îx­x³îxj xĀÇD³l a busca a vários parques nacionais do estado. —A.R.F.

Em 1961, o falecido Robert L. Liscomb, geólogo que trabalhava para a Shell Oil Company, encontrou alguns ossos de um Edmontossauro, dinossauro-bico-de-pato. Essas peças estão extraordinariamente bem preservadas, mas como Liscomb e seus colegas não eram pale¸³î¹§¸ ¸ä lx þxßîxUßDl¸äj x§xä ¸ä lx³î `DßD­ `¸­¸ ¸ää¸ä ¸ää § zados muito mais recentes de mamíferos. Liscomb morreu no ano

COM ROLOS DE JUTA nas mãos, o autor faz “jaquetas paleontológicas” [o conjunto de gesso e outros materiais utilizados para envolver exemplares] para ossos na Pedreira de Kikak-Tegoseak. D I N O S S A U R

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e madeira fossilizados indicam que as florestas cretáceas do Alasca boreal consistiam em dosséis mistos, que incluíam coníferas decíduas, e um sub-bosque com plantas florescentes, samambaias e cavalinhas. Atualmente, florestas mistas de coníferas ocupam uma ampla, mas bemdefinida faixa de climas com temperaturas médias anuais de 3oC a 13oC, sugerindo que as condições climáticas médias anuais no norte do Alasca durante o Cretáceo eram similares. Um dos aspectos do Ártico moderno que chamam a atenção é o ângulo de incidência de luz solar e a duração do dia, comumente descritos, equivocadamente, como sendo seis meses de luz e seis meses de noite escura. Na realidade, ao norte do Círculo Polar Ártico, a escuridão se estende por uma parte cada vez mais longa dos dias até o solstício de inverno no final de dezembro, quando o sol não desponta. Durante o Cretáceo, a região boreal do Alasca ficava ainda mais ao norte que hoje, e os dinossauros que viviam ali teriam necessitado de mecanismos para lidar tanto com o frio como com a escuridão. Não sabemos explicar inteiramente como eles sobreviveram. Parece improvável que um hadrossauro de 10 m de comprimento cavasse um buraco no chão e fosse hibernar. Mas durante períodos de estresse ambiental alguns animais são capazes de baixar suas taxas metabólicas o suficiente para reduzir suas necessidades alimentares; talvez os dinossauros árticos fizessem algo similar sem atingir um estado de verdadeira hibernação. Ao tentar explicar como hadrossauros sobreviviam aos rigores climáticos, Nicholas Hotton III do Smithsonian Institution sugeriu que, no inverno, eles migravam milhares de quilômetros para encontrar ali-

mentos, temperaturas mais agradáveis e melhores condições de luz. Posteriormente, outros pesquisadores usaram renas como exemplo de animais que migram por longas distâncias para reforçar essas teorias sobre a migração de dinossauros árticos. Para averiguar a probabilidade de que hadrossauros também se deslocassem, Roland Gangloff, atualmente professor emérito na University of Alaska, e eu decidimos estabelecer o quanto renas funcionam como analogia. Primeiro comparamos o tamanho corporal de animais adultos e juvenis em três manadas árticas. Descobrimos que as renas jovens atingem de 80% a 85% do comprimento das adultas e de 53% a 74% da massa corporal adulta até o início da migração. Em seguida, analisamos os fósseis de hadrossauros. A estrutura celular dos ossos mostra claramente que os animais pequenos eram jovens de pelo menos um ano de idade e não alguma forma de população anã de alta latitude. O comprimento dos ossos desses animais indica que eles tinham atingido de 27% a 37% do tamanho adulto e estimados 11% da massa corporal adulta. Então, os hadrossauros juvenis eram relativamente muito menores, com um ano, que renas juvenis, à época de sua migração sazonal. Portanto, por razões simplesmente biomecânicas, parece improvável que hadrossauros árticos migrassem por grandes distâncias. No entanto, não descobrimos ninhos ou ovos, que obviamente confirmariam a teoria de que os animais permaneciam o ano inteiro nessas altas latitudes. Mas se permaneciam lá o ano todo, de que se alimentavam durante os gélidos meses de inverno? Presumimos que os predadores continuassem a consumir carne porque os padrões de desgaste em seus

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CHRISTOPHER STRGANAC

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ANTHONY R. FIORILLO

na faixa de tamanho dos encontrados em ladentes não sugerem uma mudança de dieta titudes mais baixas. Pode ser que os olhos grandurante o ano. des do troodonte lhes tenham dado uma vanNão sabemos exatamente de que os dinostagem competitiva, acabando por permitir sauros herbívoros se alimentavam. Mas os que ele se tornasse o principal predador da reedmontossauros oferecem uma oportunidade gião e aumentasse de tamanho. Observadores de especulação porque habitavam uma vasta relataram um fenômeno similar em ecossistefaixa territorial, do norte do Alasca ao atual mas modernos: nos lugares onde lobos foram oeste do Texas. Hoje, outro vertebrado herremovidos, coiotes ocasionalmente desenvolvebívoro, o carneiro montês da América do ram físicos maiores. Norte, se estende por uma área comparável. As dietas de carneiros das latitudes meSOBREVIVENTES SOLITÁRIOS? ridionais são mais restritas que as de seus EVIDENTEMENTE, MUITAS QUESTÕES sobre essas congêneres do norte, provavelmente porcriaturas extraordinárias ainda têm de ser resque eles têm mais recursos à disposição e pondidas. Uma das mais fascinantes é se elas podem se dar ao luxo de serem mais seletivos. podem ter sobrevivido à catástrofe que aniquiDa mesma forma, exemplares boreais de edlou os dinossauros em outras partes do mundo montossauros podem muito bem ter tido uma durante o período Cretáceo. dieta mais variada que a de seus companheiA maioria dos paleontólogos acredita que ros austrais. o impacto de um grande asteroide com a TerSe os dinossauros não migravam, então ra levou os dinossauros à extinção. O local presumivelmente exibiriam adaptações que mais provável desse impacto é a cratera de lhes teriam permitido viver o ano todo nas Chicxulub, no México. Para estudar os efeitos altas latitudes. No momento, o troodonte HELICÓPTERO CHINOOK do de longo alcance de um choque dessa magni(Troodon) fornece o exemplo mais claro. Esse exército americano iça uma jaqueta de tude seria ideal investigar um lugar muito dispequeno dinossauro carnívoro, conhecido gesso contendo partes de três crânios de tante do sítio original; uma região como o Alasprincipalmente por causa de seus dentes, é Paquirrinossauros da Pedreira de Kikakca. Infelizmente, não encontramos nenhum raro em lugares mais ao sul, como Alberta, Tegoseak. Voando em uma missão de fóssil de dinossauro no Alasca que datasse do Montana e Texas. Comparativamente, dentes treinamento a tripulação do helicóptero período certo e fosse relevante para responder isolados desses animais são muito comuns veio em auxílio dos cientistas para à pergunta se eles foram extintos de forma no Alasca, o que sugere que sua população remover a pesada carga de fósseis. abrupta ou se morreram gradualmente. No era grande e bastante dispersa. O que difeentanto, dados de polens fossilizados ofererencia o troodonte, em qualquer latitude, cem evidências tentadoras de que algumas de outros dinossauros predadores são seus olhos excepcionalmente grandes. Entre animais modernos, olhos pro- seções de rochas na Encosta Norte e em outros lugares do Alasca têm porcionalmente grandes tendem a ser uma adaptação à vida em a idade certa para testemunharem a questão da extinção, se provaambientes com pouca luz. Troodontes talvez tenham sido pré-adapta- rem conter fósseis de fauna além de polens. Essa possibilidade acresce dos às restrições físicas das condições ambientais em altas latitudes, o ainda mais ímpeto à nossa busca por ossos antigos. Até agora, apenas que lhes deu uma vantagem competitiva e os colocou no caminho para arranhamos a superfície. se tornarem os predadores mais abundantes do ecossistema boreal. Se o troodonte estava bem adaptado à iluminação mínima dos in- Anthony R. Fiorillo, até onde consegue se lembrar, sempre só quis fazer uma de duas coivernos árticos poderíamos nos perguntar como ele podia “funcionar” ÒDÒ µÍ« ÒÒ «§D ¡r§Ürc ÒrÍ « Df«Í fr Zr§ÜÍ« fr ZD¡µ« §«Ò %ré ?«Í ?D§ rrÒ «æ rÒÜæfDÍ durante os longos períodos de luz diurna nos meses mais quentes. As dinossauros. Muito em detrimento dos planos de aposentadoria de seus pais, ele estuda dinossauros. Fiorillo completou seu Ph.D. em paleontologia de vertebrados na University of florestas poderiam ter sido um refúgio. Qualquer pessoa que já tenha Pennsylvania em 1989. Em 1995, após breves passagens pelo Carnegie Museum of Natural caminhado por uma floresta moderadamente densa sabe o quanto o ní- History e Museum of Paleontology, da University of California, em Berkeley, ele foi para vel de luminosidade na mata é menor que em um campo aberto. Em um Dallas, no Texas, onde é curador de Ciências da Terra no Museum of Natural History e proambiente desses os grandes olhos do troodonte teriam continuado a fa- fessor associado adjunto na Southern Methodist University. zer dele um predador temível. Não podemos confirmar o tamanho dos olhos dos outros dinossauPA R A C O N H E C E R M A I S ros que viviam no Alasca porque essas partes dos crânios são apenas fragmentárias ou os ossos ainda estão sendo preparados para estudo. A new Maastrichtian species of the centrosaurine ceratopsid Pachyrhinosaurus from the North Slope of Alaska. Anthony R. Fiorillo e Ronald S. Tykoski em Acta Embora os dinossauros da Austrália austral descritos por Thomas e PaPalaeontologica Polonica, vol. 57, nº 3, págs.561–573; 2012. tricia Rich sejam muito mais antigos e diferentes, os pesquisadores noBird tracks from the upper cretaceous Cantwell formation of Denali National taram um padrão de diâmetros orbitais maiores para alguns Park, Alaska, USA: A new perspective on ancient northern polar vertebrate dinossauros. biodiversity. Anthony R. Fiorillo, Stephen T. Hasiotis, Yoshitsugu Kobayashi,Brent H. Breithaupte Paul J. McCarthy em Journal of Systematic Palaeontology, vol. 9, nº 1, Curiosamente os troodontes do Ártico eram quase duas vezes págs.33–49; 2011. maiores que seus congêneres encontrados em localidades mais meriDinosaurs: The science behind the stories. J. G. Scotchmoor, D. A. Springer,B. dionais. Essa diferença contrasta acentuadamente com o padrão obH. Breithaupte A. R. Fiorillo. Instituto Geológico dos Estados Unidos, 2002 servado através da medição dos ossos de dinossauros herbívoros da Encosta Norte (North Slope) do Alasca, que se encaixam perfeitamente

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D I N O S S A U R O S 2


5 ' % ' $

D I N O

UM MISTERIOSO ASSASSINO DE 70 MILHÕES DE ANOS O caso era frio, mas pistas críticas apontavam para a identidade de um matador na antiga Madagascar

S S A U R

Por Raymond R. Rogers e David W. Krause

O S 2

U

M CORPO REPOUSA SOBRE SEU LADO ESQUERDO, A CABEÇA E O PESCOÇO puxados para trás em direção à pelve, posição clássica de morte. Os braços e as pernas ainda se encontram em suas posições anatomicamente corretas, mas um exame mais minucioso revela que os ossos das mãos e dos pés estão deslocados, embora a maioria das partes esteja presente e tenha sido confirmada. O crânio está ligeiramente fragmentado, mas aqui também as partes componentes jazem umas perto das outras. Curiosamente, a ponta da cauda está completamente ausente. Nas proximidades estão outros corpos em estados marcadamente diferentes de desordem e preservação. Alguns em grande parte intactos, outros representados apenas por um crânio, uma omoplata ou um único osso das pernas ou dos braços. Essas criaturas morreram ali mesmo ou foram reunidas após a morte? Todas teriam morrido no mesmo instante ou suas mortes teriam ocorrido ao longo do tempo? E o que as matou? EM SÍNTESE Uma “vala comum” no noroeste de Madagascar contém os restos de dinossauros que morreram há cerca de 70 milhões de anos, durante o Cretáceo Superior.

Pesquisadores estudaram os ossos em busca de pistas sobre o que havia matado tantos dinossauros de diferentes tamanhos, idades e espécies. As evidências

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sugerem que os animais pereceram ao longo de um período prolongado, provavelmente quando se reuniam às margens de leitos de rios secos.


D I N O S S A U R O S

RAYMOND R. ROGERS

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O GRANDE DINOSSAURO CARNÍVORO majungassauro (Majungasaurus crenatissimus) (acima) sofreu uma morte prematura há cerca de 70 milhões de anos, perto do fim do período Cretáceo, no que atualmente é o noroeste de Madagascar.

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E X P L O R AÇ Õ E S

Coleta de Evidências Membros da equipe dos autores escavaram cuidadosamente os restos de dinossauros de várias espécies de um sítio de savanas äx­ Eß lDä Çxßî¸ l¸ þ §Dßx¥¸ lx xß þ¸îßDj ³¸ DîøD§ ³¸ß¸xäîx lx $DlD Dä`Dß É1). Embalados em gesso (2), os ossos foram transportados para os Estados Unidos onde os pesquisadores estudaram os fósseis em detalhe em busca de pistas sobre como esses animais viveram e morreram. Os achados incluíram a mandíbula de um M. crenatissimus, que usava seus dentes serrilhados para dilacerar carne (3).

1

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3

Nossa equipe de paleontólogos e geólogos malgaxes e americanos começou a fazer essas perguntas assim que descobrimos essa “vala comum”, um túmulo coletivo, no verão de 2005 nos antigos sedimentos do noroeste de Madagascar, uma ilha cujas terras de vermelho-veneziano inspiraram seu apelido, a Grande Ilha Vermelha. Conseguimos algumas informações intrigantes à medida que procurávamos pelas respostas, mas como procedemos em nosso trabalho talvez seja tão interessante quanto o que descobrimos. Antes de qualquer outra coisa, batizamos o sítio com o nome MAD05-42 para indicar o ano em que ele foi encontrado e sua sequência na descoberta de sítios fósseis nessa área. A segunda tarefa foi identificar os mortos e, com base em nossas descobertas em outros lugares da região, reconhecemos rapidamente que a maioria dos restos mortais era de dinossauros de várias espécies. Esse tipo de “cemitério coletivo” não é único, nem incomum para o noroeste de Madagascar. Ele é compatível com um padrão que observamos reiteradamente ao longo de uma década de pesquisas geológicas nas savanas semiáridas perto do remoto vilarejo de Berivotra. Ali descobrimos camadas e mais camadas de mortes em massa, com os despojos de animais grandes e pequenos, jovens e velhos, sepultados juntos

em espetaculares “leitos ósseos” (estratos ou depósitos geológicos que contêm ossos). E assim, enquanto trabalhávamos para descobrir o que havia matado os animais em MAD05-42, também não pudemos deixar de nos perguntar por que encontramos tantos desses depósitos ósseos ali e por que eles estão tão magnificamente preservados. REABERTURA DE UM CASO MUITO FRIO

ESTÁVAMOS MILHÕES DE ANOS atrasados demais para usar a maioria das ferramentas de legistas modernos. Para extrair pistas ocultas nos ossos e nas rochas tivemos de recorrer a técnicas de datação geológica e ao campo da indagação, ou investigação, conhecido como tafonomia, que estuda a decomposição ou fossilização de vestígios orgânicos à medida que passam do mundo dos vivos para o dos mortos. Depois de batizarmos o sítio, extraímos os ossos das rochas em que estavam incrustados. Começamos com pás e picaretas para retirar os sedimentos superficiais, e então passamos para curetas odontológicas e pincéis finos para expor os ossos em si. Tomamos o máximo cuidado para não danificar as frágeis superfícies ósseas. Uma vez que expusemos completamente os restos, mapeamos e fotografamos exatamente onde os encontramos para registrar quaisquer relações espaciais significativas. Em seguida,

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RAYMOND R. ROGERS

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D E S C O B E R TA S

Mais Morte em Massa 7­ l¸ä ÇĂ&#x;ž­xžĂ&#x;¸ä äÂ&#x;Ξ¸ä lxä`¸UxĂ&#x;θäj $ ´ðÂ?Âż}j Ă&#x;xĂžx§D ­øÂžθ ­Džä lĂ&#x;D­DΞ`D­x³Îx D ÂłDÎøĂ&#x;xÄ…D Ă&#x;x`¸Ă&#x;Ă&#x;x³Îx lx ­¸Ă&#x;ĂŽD§ÂžlDlx x­ ­DääD ÂłD D³ÎžÂ?D $DlDÂ?Dä`DĂ&#x; Ă”øx Ă”øD§Ă”øxĂ&#x; ¸øÎĂ&#x;¸ äÂ&#x;Ξ¸ lx xä`DĂžDcT¸Ă? $ ´ðÂ?Âż} ĂŽx­ ĂŽĂ&#x;zä lžä`Ă&#x;xθä §xžθä šääx¸äj ¸ø §xžθä lx ­¸Ă&#x;ĂŽxj x­Ă‡Âž§ÂšDl¸ä um sobre o outro. Escavaçþes no local descobriram os restos de esqueletos de muitos animais inĂŠditos para a ciĂŞncia, inclusive uma ave primitiva, Rahonavis ostromi (1), que tinha ossos pequenos e frĂĄgeis. O sĂ­tio tambĂŠm produziu esqueletos quase completos do grande saurĂłpode rapetossauro (Rapetosaurus) (2 e 3).

1

D I N O S S A U R O S

CATHERINE FORSTER Stony Brook University (1); RAYMOND R. ROGERS (2); DESIRE RANDRIANARISTA CENTRO VALBIO (Centro Internacional de Treinamento para o Estudo de Biodiversidade) (3)

2

3

embebemos os delicados ossos em colas consolidantes (de secagem rĂĄpida) e cuidadosamente os envolvemos em “jaquetasâ€? protetoras de aniagem (ou juta) e gesso. Depois que o gesso secou, catalogamos os ossos e os encaixotamos para a longa jornada atĂŠ nossos laboratĂłrios nos Estados Unidos, onde, mais tarde, removemos minuciosamente qualquer sedimento restante e estudamos os ossos em detalhes, procurando por quaisquer marcas nas superfĂ­cies que talvez pudessem revelar a identidade do assassino. No sĂ­tio paleontolĂłgico determinamos que os mortos haviam sido preservados em um corpo distinto de rochas sedimentares, conhecido como Formação Maevarano, localizado a poucas dezenas de metros abaixo de rochas depositadas no limite entre o perĂ­odo CretĂĄceo e o Paleogeno, aquela ĂŠpoca hĂĄ 66 milhĂľes de anos quando todos os dinossauros (exceto aves) e muitas outras criaturas sofreram uma extinção em escala global. O “leito de morteâ€? estava localizado a 44,5 m abaixo da linha de tempo da extinção em massa e a 14,5 m abaixo da superfĂ­cie local da Formação Maevarano. A medição do decaimento radioativo de minerais de rochas vulcânicas nas camadas abaixo da formação produziu idades de aproximadamente 88 milhĂľes de anos. Sedimentos marinhos acima e intercalados na formação, depositados pelo movimento das marĂŠs que banhavam as praias ocidentais da ilha, continham conchas e diminutos esqueletos de

microrganismos unicelulares datados, de outros sĂ­tios, como de uma ĂŠpoca perto do ďŹ m, mas nĂŁo do ďŹ nal preciso do perĂ­odo CretĂĄceo. Portanto, todas as evidĂŞncias temporais indicam que as mortes ocorreram hĂĄ aproximadamente 70 milhĂľes de anos. O que quer que tenha matado os dinossauros no sĂ­tio de escavação MAD05-42 nĂŁo esteve relacionado Ă grande extinção global, que ocorreu alguns milhĂľes de anos depois. A tafonomia tambĂŠm ajudou nossas investigaçþes a progredir. Estudos tafonĂ´micos examinam modiďŹ caçþes Ăłsseas (por exemplo, se estavam queimados, quebrados ou se tinham marcas de dentes), perturbação de carcaças (desmembramento e remoção seletiva de partes do corpo por animais carniceiros ou predadores) e o histĂłrico do “sepultamentoâ€? (como os corpos foram enterrados e o que aconteceu com eles depois disso). O estudo de processos de fossilização, essencialmente o que transforma ossos em pedras, tambĂŠm estĂĄ no domĂ­nio dessa ciĂŞncia. Quando consideramos os mortos no sĂ­tio MAD05-42 da perspectiva tafonĂ´mica, fomos capazes de determinar que os animais tinham morrido ao longo de um perĂ­odo prolongado, talvez semanas ou meses, porque seus corpos revelavam histĂłrias pĂłs-morte variĂĄveis. Algumas carcaças, por exemplo, mostravam-se em grande parte intactas, enquanto outras estavam desmembradas e espalhadas por uma grande ĂĄrea,

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2


SINAIS

Alimentando-se dos Mortos

D I N

A morte em larga escala x­ $DlD Dä`Dß løßD³îx ¸ ßxîE`x¸ 3øÇxß ¸ß ¸ xßx`xø ø­ UD³Ôøxîx þDß Dl¸ ÇDßD ¸ä Ôøx äx D§ ­x³îDþD­ l¸ä ­¸ßî¸äÍ ³x`߸ D Dj ¸ Dî¸ lx `¸³äø­ ß `DlEþxßxä ¸ø `Dß³ cDj y ø­ ³ ` ¸ Ôøx îx­ lx äxß Çßxx³` l¸ äx D ßx` `§D x­ U ¸§¹ `D î þxß lx ¸`¸ßßxß `¸­ x ` z³` Dj x äxøä ÇßDî `D³îxä ­¸lxß³¸ä þT¸ lx UD`îyß Dä D þxßîxUßDl¸ä lx ßD³lx ǸßîxÍ ø³î¸ `¸­ ³¸ää¸ `¸§x D ß ` $Í 2¸Uxßîäj Ôøx ³¸ä D`¸­ÇD³ ¸ø D $D dagascar há mais de uma década como estudante de graduação (e que agora é professor sênior na James Cook University, na Austrália), encontra­¸ä þxäî ¸ä lx Dî þ lDlx lx ³äxî¸ä ³x`ß¹ D ¸ä ³¸ä ¸ää¸ä lx l ³¸ääDø߸ä lx $DlD Dä`Dßi UøßD`¸ä ¸þD§Dl¸äj lx ø­ `x³î ­xî߸ lx `¸­Çß ­x³î¸j normalmente no que havia sido tecido esponjoso dentro dos ossos. Essas cavidades são sinais de que besouros adultos infestavam os cadáveres, se alimentavam de carniça e em seguida depositavam seus ovos ali perto. Depois de eclodirem, as larvas também se alimentavam e usavam suas fortes mandíbulas para escavar os buracos, que serviam como pupários [câmaras para o desenvolvimento de pupas]. ³äxî¸ä ³T¸ xßD­ Dä ù³ `Dä `ß DîøßDä Ôøx äx D§ ­x³îDþD­ l¸ä ­¸ßî¸äÍ ³E§ äxä lx ­Dß`Dä lx ­¸ßl lDä Ç߸løą ßD­ xþ lz³` Dä ßßx øîEþx ä lx Ôøx l ³¸ääDø߸ä îD­Uy­ äx UD³ÔøxîxDþD­ D§ Í 5ßDUD§ D³l¸ x­ `¸§DU¸ßDcT¸ `¸­ !ß äî ³D Í øßßā 2¸ xßäj lD $D`D§xäîxß ¸§§x xj x­ $ ³³xä¸îDj l¸`ø mentamos marcas de dentes do terópode majungassauro (Majungasaurus), de 7 m de comprimento, em uma seleção de ossos de pelo menos três leitos ósseos distintos. Ao compararmos a forma e o tamanho das marcas dentárias com as mandíbulas e os dentes de vários carnívoros, ¸­¸ä `DÇDąxä lx lxä`DßîDß î¸l¸ä ¸ä ¸øî߸ä äøäÇx î¸ä `¸­ lx³îxä D Dl¸äÍ Alguns dos ossos com marcas de mordidas de nossa amostragem pertencem a rapetossauros, um saurópode de pescoço longo, anteriormente lxä`¸³ x` l¸j Ôøx øßßā 2¸ xßä lxä`ßxþxø `¸­¸ ÇDßîx lx äxø îßDUD§ ¸ lx l ääxßîDcT¸ ³D 3ā ߸¸¦ 7³ þxßä îāÍ $Dä D þDäîD ­D ¸ß D lx ¸ää¸ä `¸­ marcas de dentes, principalmente costelas e vértebras, pertence ao próprio majungassauro. Canibalismo como estratégia ecológica não é, de modo D§ ø­j D§ ¸ ³`¸­ø­ x³îßx D³ ­D ä DîøD§­x³îx þ þ¸äj x `xßîD­x³îx ³T¸ äxß D lx äx xäÇxßDß Ôøx ¸ääx ßD߸ x³îßx l ³¸ääDø߸äÍ $Dä lxäx³îxßßDß D xþ lz³` D ÇDßD Ç߸þDß ää¸j îx­ ä l¸ ø­D `¸ äD Ux­ l xßx³îxj x ³¸ä §x î¸ä ¹ääx¸ä lx $DlD Dä`Dß l¸`ø­x³îD­¸ä ¸ ù³ `¸ `Dä¸ Ux­ ø³lD­x³îDl¸ lx `D³ UD§ ä­¸ x³îßx l ³¸ääDø߸äÍ ³ x§ ą­x³îxj D xþ lz³` D lD ­Dß`D lx ­¸ßl lD ³T¸ ßxþx§Dj lx ¸ß­D `¸³`§øä þDj äx ¸ ­D¥ø³ DääDø߸ lx Dî¸ ­Dî¸ø os exemplares de que se alimentou e, portanto, praticou predação em sua própria espécie, ou se ele simplesmente era oportunista e se aproveitou, como carniceiro, de seus restos. —R.R.R. and D.W.K.

O S S A U R O S 2

o que não teria ocorrido instantaneamente. Além disso, alguns ossos mostravam condições primorosas, enquanto outros apresentavam avançados sinais de desgaste pelo tempo e degradação superficial. Quando os animais em um antigo leito ósseo morreram em momentos diferentes, descrevemos o sítio como “time-averaged”, em que existe uma mistura ou média temporal, e empregamos pistas tafonômicas para avaliar a extensão média de tempo transcorrida entre a primeira e a última morte. Embora não possamos determinar com exatidão quanto tempo transcorreu na formação desse leito de morte em particular, sabemos que os animais enterrados ali não morreram no mesmo instante. A história geológica da massa terrestre de Madagascar também forneceu pistas importantes sobre o que matou esses dinossauros. No início da era Mesozoica (há 252 milhões de anos), Madagascar se localizava no coração de Gondwana (a metade austral do super-

continente Pangea), espremida entre a África e a Índia, com a Antártida perto de sua extremidade sul. A atividade tectônica logo reorganizou as placas litosféricas em uma escala massiva e, no Jurássico Tardio, (há 160 milhões de anos) Madagascar tinha se separado da África e se movia rumo ao sul com a Índia a reboque. Há 88 milhões de anos, durante o Cretáceo tardio, Madagascar havia se colado novamente à placa africana, embora a cerca de 400 km de distância do continente, e o subcontinente indiano e a Antártida se separado e derivado, deixando a quarta maior ilha do mundo isolada no oceano Índico. Após se reunificar com a placa Africana, Madagascar se deslocou para o norte, rumo à sua atual localização nos trópicos do hemisfério sul. Mas quando as mortes agora investigadas ocorreram, há uns 70 milhões de anos, o norte de Madagascar estava situado próximo a 30o de latitude sul, ainda longe do Trópico de Capricórnio (que agora passa pelo sul de Mada-

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RAYMOND R. ROGERS (à esquerda); RAÚL MARTIN (à direita)

CAVIDADES OVAIS nos ossos de dinossauros (fotografia) são sinais de que besouros necrófagos coleópteros infestavam os cadáveres, se alimentavam de sua carne e, em seguida, depositavam seus ovos (ilustração à direita).


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1

SOLOS E ROCHAS antigos apresentam evidências convincentes de um clima semiárido durante o Cretáceo Superior. Moldes de raízes orientadas verticalmente (3) indicam que plantas tinham se adaptado a condições áridas (secas), ao procurarem fontes profundas de umidade. Muitas das raízes antigas também revelam torrões de carbonato de cálcio, que tendem a se formar em regiões áridas. Outros sedimentos, depositados em rios arenosos (1 e 2), indicam que o fluxo de água variava drasticamente. Quando fluíam, correntezas empurravam dunas rio abaixo, resultando em conjuntos sedimentares empilhados em camadas inclinadas (2). Dinossauros e muitos outros animais visitavam os rios rasos em busca de alimentos; de fato, os ossos da escavação MAD05-42 estão depositados em um desses canais antigos.

D I N O S S

3

A U R

RAYMOND R. ROGERS

O

gascar) e, discutivelmente, bem dentro da área de influência de padrões climáticos subtropicais [ver quadro à pág. 41]. Atualmente existem grandes desertos e semidesertos em faixas situadas entre 15o e 35o a norte e sul do Equador. Esses cinturões áridos refletem padrões de circulação atmosférica de larga escala (Célula de Hadley), que empurram massas de ar quente e seco para baixo, rumo à superfície, depois de terem perdido umidade perto da linha do Equador. As zonas de alta pressão resultantes das células de ar descendentes tendem a bloquear qualquer precipitação durante a maior parte do tempo; mas quando as chuvas chegam, podem ser intensas. Rochas da Formação Maevarano apresentam evidências convincentes de um clima semiárido e sazonal no Cretáceo Superior. Os sinais mais eloquentes são os paleossolos (solos antigos) oxidados vermelhos que contêm conjuntos de raízes orientados verticalmente e magnificamente bem preservados. Atualmente, raízes verticais são comuns onde plantas se adaptaram a condições secas (ou áridas), ao migrarem cada vez mais fundo em busca de fontes de umidade e de nutrientes. Além disso, muitas das raízes relictuais da Formação Maevarano estão incrustadas de carbonato de cálcio ou intercaladas com torrões irregulares desse mineral, chamados nódulos de carbonato. No mundo moderno, solos oxidados enriquecidos com carbonato de cálcio tendem a ocorrer em regiões que variam de semiáridas a áridas, onde a evaporação e transpiração limitam os efeitos da precipitação pluviométrica. Outros sedimentos desse terreno antigo foram depositados em rios rasos e arenosos. Eles também fornecem evidências reveladoras de uma história subtropical, com claras indicações de que o fluxo de água oscilou de forma drástica e possivelmente sazonal. Quando os rios fluíam, correntezas pro-

duziam ondulações e dunas rio abaixo, resultando em conjuntos empilhados de camadas inclinadas que geólogos chamam estratificação cruzada. Dinossauros e muitos outros animais sem dúvida frequentavam esses rios em busca de água, nutrientes ou refúgio. De fato, os ossos na escavação MAD05-42 estão espalhados por um desses antigos canais fluviais. Durante parte do tempo os rios secavam, mas em outras épocas corriam enfurecidos como uma borbulhante massa semifluida de lama e areia. Retomaremos o tema dessas águas lamacentas, pois elas desempenham um papel importante em nossa história. IDENTIFICAÇÃO DE UM ASSASSINO

UM ANIMAL SOLITÁRIO pode encontrar seu fim de muitas maneiras, se o desafio for identificar um assassino no registro fóssil. Mas as opções diminuem significativamente em casos de mortes em massa, como as da Formação Maevarano. Para reduzir as possibilidades a apenas uma possibilidade, recorremos novamente à tafonomia. Os leitos ósseos de Madagascar em geral preservam resquícios de mais de um tipo de animal, tanto múltiplas espécies de dinossauros, como em MAD05-42, ou uma amostragem mais diversificada, caso do sítio MAD93-18 [ver quadro à pág. 37], que produziu vestígios de peixes, tartarugas, cobras, crocodilos, três tipos diferentes de dinossauros não avianos, pássaros e mamíferos. O matador em questão era indiscriminado e não levava em consideração tamanho, idade, taxonomia ou hábitat de suas vítimas; um fato que tende a excluir um predador como um dinossauro carnívoro ou um crocodilo, porque predadores modernos em geral demonstram algum grau de seleção de presas.

39

S 2


Também não há nada que sustente um cenário baseado em doença (mas é difícil testar ossos fossilizados para isso). Como as criaturas morreram em momentos, ou épocas diferentes, não suspeitamos de eventos dramáticos, instantâneos, como terremotos, inundações ou incêndios. O que quer que tenha matado os animais agiu ao longo do tempo e atingiu as vítimas individualmente depois que elas haviam chegado ao rio por vontade própria. Também temos evidências irrefutáveis de que o assassino atacou repetidamente em lugares diferentes, mas com o mesmo modus operandi básico. Esses animais não foram abatidos subitamente durante um dia azarado no Cretáceo Superior; houve muitos dias ruins e azarados. Considerando todas as evidências, podemos identificar um assassino sem hesitar: a seca. Essa possibilidade certamente existiu; esse era um ecossistema subtropical com claras indicações de aridez e sazonalidade. Além disso, podemos ver que animais se congregavam em leitos ressecados de rios, provavelmente em torno de algumas poças remanescentes de água, onde morriam com frequência à medida que a água pura para beber e os alimentos desapareciam. Atualmente, secas letais, especialmente em partes da África e no interior da Austrália, levam animais a se reunir em torno dos recursos remanescentes. Durante uma prolongada seca, milhares de animais podem sucumbir exatamente no local de sua última esperança de saciar sua sede, e seus corpos podem se

acumular em “zonas mortas” localizadas ao longo de vários anos. Estudos de mortalidade associada a secas modernas indicam que, em última análise, os desafortunados animais preservados nos leitos ósseos de Maevarano podem ter morrido de diversas causas: desidratação, insolação, desnutrição, e talvez até de envenenamento à medida que seus minguantes estoques de água foram se deteriorando e se tornando tóxicos. De fato, temos evidências tentadoras de que ocorreram florações algáceas nas poças de águas estagnadas que atraíam os animais em grupos. Michael Zavada, especialista em polens do Cretáceo da East Tennessee State University, isolou diminutos esporos de algas nas rochas associadas aos ossos; mas se eles de fato são pistas reveladoras de florações álgicas tóxicas é algo que ainda precisa ser confirmado. Mas como os corpos dos animais foram preservados, muitos deles primorosamente? Vestígios biológicos tendem a se decompor na superfície do solo, onde dominam animais carniceiros e o sol descolore e branqueia lenta, mas inexoravelmente, os maiores ossos, até que se fragmentem e acabem se transformando em pó. Quando a preservação de longo prazo no registro fóssil está em jogo, o enterro deveria ocorrer o quanto antes após a morte. De fato, pode-se argumentar que, da perspectiva de um fóssil, o rápido “sepultamento” é o único e mais crítico segredo para a imortalidade.

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RAÚL MARTIN

SECA foi o assassino. Animais se congregavam nos ressequidos leitos de rios, onde pereceram à medida que alimentos e água desapareceram. O grande majungassauro (Majungasaurus) se alimentava de rapetossauros (primeiro plano), além de exemplares de sua própria espécie (ao fundo, à esquerda). Aves (Rahonavis) também se alimentavam dos restos. A causa imediata de morte pode ter sido desidratação, estresse por calor (insolação), desnutrição, e até envenenamento à medida que a água estagnada se tornava tóxica. Outros animais carnívoros e insetos se banqueteavam nas carcaças até que eles, também, sucumbiam quando chuvas torrenciais desencadeavam fluxos ou deslizamentos de lama que cobriam e encerravam os mortos e moribundos, preservando seus restos mortais por 70 milhões de anos.


M A PA

Evidência Geológica A história da massa terrestre lx $DlD Dä`Dß ¸ß³x`x Ç äîDä ä¸Ußx ¸ Ôøx ­Dî¸ø îD³î¸ä D³ ­D ä ³D § D E èć ­ § Æxä lx D³¸äÍ %¸ `¸­xc¸ lD xßD $x丹¸ `D É E ö ö ­ § Æxä lx D³¸äÊj $DlD Dä`Dß xäîDþD §¸`D§ ąDlD ³¸ `¸ßDcT¸ lx ¸³lÿD³DÍ î þ lDlx îx` `D ßxDßßD³¥¸ø Dä ǧD`Dä § î¸ä yß `Dä lD 5xßßD xj E ¿ðć ­ § Æxä lx D³¸äj ³ ` ¸ l¸ ßxîE`x¸ ³ xß ¸ßj $DlD Dä`Dß xäîDþD Ǹä ` ¸³DlD D `xß`D lx ćć ¦­ lx distância da África continental; em seguida, a ilha uniu-se novamente à placa Africana e começou a se mover para o norte. Quando as mortes que estão sendo investigadas ocorreram (mapa abaixoÊj ¸ ³¸ßîx lx $DlD Dä`Dß `DþD Çxßî¸ lx ðćo de latitude sul, onde as condições EQUADOR climáticas se alternavam entre prolongadas secas e períodos intensamente chuvosos.

14

Europa

Norte de Madagascar

Oceano Atlântico Norte

Trópico de Câncer

Ásia

D I

Oceano FWY ÒYe

N

EQUADOR

O

Trópico de Capricórnio 30°S

América do Sul

África Índia

Oceano Índico

S S A U

Há 66 Milhões de Anos

Norte de Madagascar

Austrália

Antártida

R O S

LUCY READING-IKKANDA

2

Felizmente, para aqueles de nós que estudam esses fósseis, um agente funerário muito eficiente estava operando em colaboração com o clima assassino. As condições de prolongada estiagem que periodicamente resultavam em tragédias nos ressecados leitos de rios deveriam chegar a um fim em algum momento, e quando as chuvas voltaram, como vieram cheias de vingança, desencadearam caudalosas torrentes de detritos. Uma viscosa massa fluida de lama verde e areia mobilizada por erosão induzida pelas chuvas fluiu por cima dos ossos e os sepultou hermeticamente. As características sedimentares dos leitos ósseos refletem uma categoria especial de fluxo fluido, em que a turbulência é suprimida, e tanto água como sedimentos se movem “em massa” de um modo essencialmente plástico. Atualmente, esse tipo de escoamento viscoso, frequentemente chamado fluxo, deslizamento ou rios de lama, não é incomum. Os letais deslizamentos de lama na Guatemala, em 2005, desencadeados pelas chuvas torrenciais do furacão Stan, são um exemplo moderno disso. Em um ciclo que se repetiu muitas vezes, depois que as secas fatais haviam feito suas vítimas, espessas camadas de lama e areia fluíram por cima dos corpos e ossos espalhados, independentemente de pertencerem a animais que haviam morrido minutos ou meses antes, e efetivamente os embalaram juntos em uma tumba sedimentar protetora e permanente. Levaria outros 70 milhões de anos até que os túmulos fossem aber-

tos [à força] e as fantásticas histórias em seus interiores reveladas. Raymond R. Rogers e David W. Krause escavam e investigam os espetaculares leitos ósseos de Madagascar desde 1996. Rogers é professor de geologia na Macalester College e pesquisador associado do Museu Field de História Natural, em Chicago. Ele obteve seu Ph.D. em geologia pela University of Chicago, em 1995. Krause é professor Distinguished Service, no departamento de ciências anatômicas na Stony Brook University e pesquisador associado do Museu Field. Recebeu um doutorado em geologia pela University of Michigan em Ann Arbor em 1982. O trabalho de Krause em Madagascar, um dos países mais pobres do mundo, o levou D ZÍ DÍ « æ§f« § îë fr $DfD DÒZDÍ ·ééé»D§ îë»«Í ¸d «Í D§ îD]õ« Òr¡ §Ò æZÍDÜ è«Ò Âær constrói escolas e oferece clínicas temporárias para crianças em áreas remotas da ilha.

PA R A C O N H E C E R M A I S

´y àD ´ym myUà å ¹Āå D´m yāïàD¹àm ´DàĂ ÿyàïyUàDïy Uùà D¨å ´ ï y ¨Dïy Cretaceous of Madagascar. Raymond R. Rogers em Geology, vol. 33, nº 4, págs. 297–300; abril de 2005. Cannibalism in the madagascan dinosaur Majungatholus atopus. Raymond R. Rogers, David W. Krause e Kristina Curry Rogers em Nature, vol. 422, págs. 515–518; 3 de abril de 2003. Monsters of Madagascar. John Flynn e David Krause em National Geographic, vol. 198, nº 2, págs. 44–57; agosto de 2000.

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ORIGENS

VITÓRIA ALADA

Aves modernas, que se acreditava terem surgido depois que os dinossauros foram extintos, na realidade conviveram com eles Por Gareth Dyke

D

EZEMBRO EM MOSCOU. A TEMPERATURA DESPENCA para -15oC. Os aquecedores no bar param de funcionar e por isso estou sentado com um casaco pesado e luvas, bebendo vodca enquanto penso sobre as aves fossilizadas. O ano é 2001 e o agora já falecido Evgeny N. Kurochkin, da Academia de Ciências da Rússia, e eu acabamos de passar horas no museu de paleontologia como parte de nosso esforço para um levantamento de todos os fósseis aviários já coletados na Mongólia, por expedições soviético-mongóis. Entre os fragmentos há uma asa recuperada no deserto de Gobi em 1987. Em comparação com os esqueletos de dinossauros muito bem preservados nas coleções do museu, essa diminuta asa, com seus delicados ossos todos misturados e esmagados, é decididamente vulgar, nada glamorosa. Mas ela fornece um claro indício de que uma noção amplamente sustentada sobre a evolução de aves está errada.

LADO A LADO: Com base em evidências fósseis da Antártida, essa concepção artística mostra Vegavis, uma primitiva ave moderna, alimentando-se ao lado de dinossauros bico-de-pato em um estuário marinho há cerca de 67 milhões de anos.

Ilustração por Kazuhiko Sano

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D I N O S S A U R O S 2


I N O S S A U R O S 2

EM SÍNTESE A descendência de aves a partir de pequenos dinossauros carnívoros já foi estabelecida. Mas menos clara é a origem de pássaros anatomicamente modernos. O raciocínio

convencional baseado em fósseis é que aves modernas só apareceram depois do impacto do asteroide que aniquilou os dinossauros há 66 milhões de anos. Estudos

moleculares e um pequeno número de achados fósseis sugeriram que pássaros modernos podem ter origens mais antigas. Fósseis de primitivas aves modernas anali-

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åDm¹å ày`y´ïy®y´ïy `¹´ à®DàD® yååD ¹à gem mais antiga, levantando a pergunta de como essas criaturas, mas não as aves arcaicas, sobreviveram à extinção em massa.

PATRICIA J. WYNNE

D

Atualmente, existem mais de 10 mil espécies de aves na Terra. Algumas dinossauros de porte pequeno, como o velociráptor, o deinonico, o Anestão adaptadas para viver longe de terra firme, em mar aberto; outras con- chiornis e o troodonte, que com aves modernas. Assim como esses dinosseguem sobreviver em desertos áridos, enquanto outras sauros, aves primitivas, como o arqueoptérix, o Jehoainda vivem em montanhas cobertas de neve. De fato, lornis, descoberto mais recentemente na China, e o de todas as classes de vertebrados terrestres, a que reúne Rahonavis de Madagascar exibiam longas caudas É ENGRAÇADO as aves é, de longe, a mais diversificada. Durante muito ósseas, e algumas exibiam dentes afiados, entre outras PENSAR EM UM tempo biólogos evolutivos presumiram que os ancescaracterísticas primitivas. Neornites, em comparação, TORDOtrais das aves modernas deviam seu sucesso ao impacnão mostram essas características, mas apresentam AMERICANO to do asteroide que aniquilou os dinossauros e muitos um conjunto de outras particularidades avançadas. outros vertebrados terrestres há cerca de 66 milhões de EMPOLEIRADO NO Elas incluem ossos dos dedos dos pés completamenanos. O raciocínio deles era simples: embora aves tiveste fundidos; asas sem dedos, que reduzem o peso do DORSO DE UM sem evoluído antes desse cataclismo, variedades anaesqueleto e permitem voos mais eficientes; exibem, VELOCIRÁPTOR tomicamente modernas só apareceram no registro fóssil ainda, “pulsos” e asas altamenOU UM PATO depois da catástrofe. O aparecimento de patos, cucos, te flexíveis que melhobeija-flores e outras espécies recentes, que juntas ram a capacidade de NADANDO AO compõem a linhagem das neornites (“aves novas”), paremanobras no ar. Mas, LADO DE UM cia um caso clássico de radiação evolutiva em resposta devido a uma falta de fósESPINOSSAURO. ao esvaziamento de nichos ecológicos resultado de um seis para documentar a evento de extinção. Nesse caso, os espaços abertos eram, transição, até agora havia antes, ocupados por dinossauros, pelos répteis voadores conhecidos como sido impossível determinar como e quando as pterossauros, e por aves arcaicas. neornites adquiriram essas características. Mas, durante os últimos tempos, evidências crescentes do registro Isso não significa que o registro fóssil não infóssil, inclusive aquela asa esmagada, e análises do DNA de aves vivas re- cluísse resquícios aviários de idade intermediária, velaram que as neornites provavelmente se diversificaram há mais de 66 entre as primeiras aves e as neornites pós-extinção. milhões de anos. As novas descobertas subverteram drasticamente a Claramente, há mais de 100 milhões de anos, no Cretánoção tradicional que se tinha da evolução de aves e levaram a impor- ceo Inferior, aves que apresentavam uma variada gama tantes questionamentos inéditos sobre como essas criaturas chegaram de adaptações de voo e especializações ecológicas já ao seu ápice evolutivo. haviam evoluído. Algumas voavam com asas amplas e largas; outras tinham asas longas e finas. Algumas viviam em florestas, AVES PRIMITIVAS alimentando-se de insetos e frutas; outras se estabeleceram às marAVES SÃO APENAS um de três grupos de vertebrados que chegaram a desen- gens de lagos ou na água e subsistiam à base de peixes. Essa incrível volver a capacidade de voar ativamente, batendo continuamente suas diversidade persistiu até os estágios finais do Cretáceo, há 66 milhões asas. Os outros dois são os malfadados pterossauros e os morcegos, que de anos. De fato, junto com meus colegas holandeses do Museu de Hisdespontaram muito mais tarde e, ainda hoje, compartilham o céu com tória Natural de Maastricht, descrevi fósseis de aves com dentes enconaves. Durante anos, paleontólogos debateram a origem das aves mais pri- trados logo abaixo do horizonte geológico, a linha que registra e marca o mitivas. Um grupo argumentava que elas evoluíram de pequenos dinos- evento de extinção no final do Cretáceo. Mas todas as aves desse períosauros carnívoros, chamados terópodes; outro sustentava que elas do, suficientemente completas para serem classificadas, pertenciam a haviam se desenvolvido a partir de répteis mais primitivos ainda. Mas linhagens mais antigas que as neornites e elas não sobreviveram descobertas de dinossauros parecidos com aves, que ocorreram nas últi- à catástrofe. Por essa razão, até recentemente, as mas décadas, muitos com um manto de penugem, convenceram a maio- evidências disponíveis implicavam ria dos cientistas de que aves evoluíram de dinossauros terópodes. Cauda longa Mas ligar os pontos entre aves ancestrais e modernas provou ser bem mais complexo. Considere o arqueoptérix (Archaeopteryx), a criatura de 145 milhões de anos da Alemanha, a ave mais antiga conhecida. Ela preserva a evidência definitiva mais antiga de asas com penas assimétricas, capazes de gerar a sustentação necessária para o voo, Púbis em ângulo com o resto da pelve uma característica definidora desse grupo. Mas o arqueoptérix se parece mais com


que a explicação mais simples para a ascensão de aves modernas era que elas se originaram e radiaram após o evento de extinção. Na década de 90, enquanto paleontólogos ainda procuravam em vão neornites ancestrais no Cretáceo, outro método para reconstruir a história evolutiva de organismos — que não envolvia o registro fóssil — foi ganhando força. Biólogos moleculares estavam sequenciando o DNA de organismos vivos, comparando essas sequências para estimar quando dois grupos se separaram entre si. Eles conseguem fazer essas estimativas porque certas partes do genoma passam por mutações a uma taxa mais ou menos constante, o que constitui o “tique-taque” do chamado relógio molecular.

Biólogos moleculares haviam questionado há muito tempo a noção clássica da evolução de aves modernas baseada em fósseis. Por essa razão, abordaram o problema com a técnica do relógio para calcular aproximadamente as datas de divergência, ou separação das grandes linhagens de aves modernas. Entre as ramificações mais significativas está a que ocorreu entre os grandes paleognatas (avestruzes, emas e seus parentes), que praticamente não voavam, e o clado Galloanserae, ou Galloansera (que inclui galinhas e outros membros da ordem dos Galiformes, assim como patos e outros integrantes do grupo dos Anseriformes). Os estudos de DNA concluíram que essas duas linhagens, as mais primitivas das neornites vivas, haviam

AVES EVOLUÍRAM de pequenos dinossauros carnívoros. Por essa razão, alguns dos fósseis mais antigos de pássaros que se conhece, como o Arqueoptérix, de 145 milhões de anos, retêm algumas características primitivas, como dentes e caudas longas, que os vinculam ao chamado grupo dos terópodes. Aves modernas se desvencilharam dessas características e desenvolveram asas sem dedos e “pulsos” altamente flexíveis, entre outras características que aprimoraram sua capacidade de voo.

Dedos livres

Dedos fundidos

Dentes

Sem dentes

Cauda curta

Púbis paralelo ao resto da pelve

Arqueoptérix

Pato moderno

45


N O VA S D E S C O B E R TA S

Origem Mais Antiga A noção tradicional da evolução das aves sustenta que enquanto grupos aviários arcaicos surgiram muito antes da extinção em massa que aniquilou os dinossauros e outras Extinção no Final do Cretáceo T (Há 66 milhões de anos) criaturas, há 66 milhões de anos, pássaros anatomicamente modernos se originaram após esse evento cataclísmico, ¸`øÇD³l¸ ³ ` ¸ä x`¸§¹ `¸ä ßx`y­ l äǸ³ þx äÍ $Dä recentes descobertas de fósseis de aves modernas, anteriores à enorme extinção em massa, mais exatamente o Vegavis, de 67 milhões de anos, e o Teviornis, de 70 milhões de anos, mostram que esse grupo surgiu mais cedo que se acreditava e, ao contrário de seus congêneres arcaicos, de alguma forma escapou à eliminação.

Neornites (aves modernas)

Paleognatas

Neoaves Enantiornites

D

Origem das aves

Noção Tradicional Origem de neornites

T

T

I

Orniturinos

N

Passeriformes S

Novo Entendimento

O

Origem de neornites

S S

Linhagens primitivas de orniturinos

A

Galloanserae

U R O

se separado durante o Cretáceo já bem avançado. Pesquisadores também obtiveram datas de divergência igualmente antigas para outras linhagens. Os resultados implicaram que, ao contrário do conhecimento paleontológico convencional, neornites conviveram com dinossauros. É engraçado pensar em um tordo-americano empoleirado no dorso de um velociráptor, ou em um pato nadando ao lado de um espinossauro (Spinosaurus). Mas a evidência molecular para a contemporaneidade de aves modernas e dinossauros era tão convincente que até os paleontólogos, que em geral viam com ceticismo as conclusões baseadas em DNA que divergiam do registro fóssil, começaram a aceitá-la. Ainda assim, aqueles de nós que estudam esqueletos antigos queriam urgentemente uma confirmação fóssil dessa nova visão da evolução de aves. PATOS EM FILA

POR QUE AVES MODERNAS FORAM CAPAZES DE SOBREVIVER AO IMPACTO DE ASTEROIDE E AOS SEUS EFEITOS, QUANDO SEUS PRIMOS AVIÁRIOS MAIS PRIMITIVOS E SEUS COMPANHEIROS ALADOS, OS PTEROSSAUROS, NÃO CONSEGUIRAM?

com patos, aparentado com patos e gansos modernos. Mas com 70 milhões de anos, aquela era uma ave do Cretáceo, e todos sabiam, ou acreditavam saber, que não havia evidências definitivas para presbiornitidos no Cretáceo. No entanto, nossas comparações no museu, naquele gélido inverno de 2001, demonstraram conclusivamente que a asa, com seu carpo-metacarpo reto (o osso formado pela fusão dos ossos da mão) e detalhes de canais, sulcos e cicatrizes musculares, de fato pertencia a um presbiornitido, que também era o mais antigo representante inequívoco de qualquer grupo de neornites. Nossa conclusão se encaixava perfeitamente nas previsões dos biólogos moleculares. Em um artigo de 2002, que descreveu o animal formalmente, demos a ele o nome Teviornis. Não demorou e Teviornis ganhou a companhia de uma segunda neornites primitiva confirmada, Vegavis, da ilha Vega, na Antártida. O fóssil de Vegavis havia sido encontrado na década de 90 só para mofar durante anos em relativo anonimato antes que seu verdadeiro significado viesse à tona. Em 2005, Julia A. Clarke, atualmente na University of Texas, em Austin, e seus colegas publicaram um artigo mostrando que o Vegavis era outra ave do Cretáceo que exibia várias características encontradas em patos modernos, particularmente sua larga cintura escapular, pelve, ossos das asas e

POR FIM, após o novo milênio, a sorte de paleontólogos mudou para melhor, começando com a minúscula asa mongol que Evgeny e eu analisamos detalhadamente em Moscou. Quando Evgeny observou o fóssil pela primeira vez, em 1987, ele comentou comigo que o considerava parecido a um membro dos presbiornitidos (Presbyornithidae), grupo agora extinto de aves parecidas

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SHAWN GOULD (aves fósseis e pardal); JEN CHRISTIANSEN (avestruz, beija-flor e pato)

S 2


pernas mais curtas. Com algo entre 68 e 66 milhĂľes de anos, Vegavis ĂŠ um pouco mais jovem que Teviornis, mas ainda assim claramente anterior ao evento de extinção em massa. AlĂŠm disso, ele ĂŠ um fĂłssil muito mais completo, que preservou a maior parte do esqueleto. Para a maioria dos paleontĂłlogos, Vegavis concluiu de modo decisivo o debate sobre neornites do CretĂĄceo. Finalmente esclarecidos, pesquisadores começaram a reexaminar coleçþes de fĂłsseis desse perĂ­odo de tempo geolĂłgico, procurando mais exemplos de aves modernas primitivas. A pesquisadora Sylvia Hope, da California Academy of Sciences, em SĂŁo Francisco, vinha argumentando havia anos que espĂŠcies de aves que ela identiďŹ cara, com base em fĂłsseis encontrados em Nova Jersey e Wyoming, datados de uma ĂŠpoca entre 100 milhĂľes e 80 milhĂľes de anos, eram modernas. Mas outros cientistas julgaram que os achados, na maioria ossos isolados, eram “pobresâ€? (desconexos) demais para serem identiďŹ cados conclusivamente. As revelaçþes sobre Vegavis e Teviornis sugerem que ela estava certa o tempo todo. Comparaçþes entre os ossos analisados por Hope e fĂłsseis mais completos deverĂŁo ser mais esclarecedoras quanto a isso.

DE “DEFINITIVE FOSSIL EVIDENCE FOR THE EXTANT AVIAN RADIATION IN THE CRETACEOUS�, POR JULIA A. CLARKE ET AL., EM NATURE, VOL. 433; 20 DE JANEIRO DE 2005

HORA DE ALÇAR VOO

FIXAR A ORIGEM DE aves modernas no CretĂĄceo alinhou o registro fĂłssil perfeitamente com as datas de divergĂŞncia, ou separação, baseadas no DNA. Mas essa determinação tambĂŠm originou uma nova questĂŁo perturbadora: Por que aves modernas foram capazes de sobreviver ao impacto do asteroide e Ă s mudanças ecolĂłgicas quando seus primos aviĂĄrios mais primitivos e seus companheiros alados, os pterossauros, nĂŁo conseguiram? Em minha opiniĂŁo, isso ĂŠ o Ăşnico grande mistĂŠrio que permanece sobre a evolução das aves. A resposta ainda estĂĄ aberta a sugestĂľes e, no momento, estou dedicando grande parte de minha pesquisa Ă tentativa de chegar a ela. Com apenas dois neornites do CretĂĄceo conďŹ rmados no registro, nĂŁo hĂĄ muito em termos de pistas fĂłsseis em que se basear. Mas novos dados tĂŞm vindo de estudos de aves vivas. Utilizando um enorme conjunto de dados de mediçþes de aves atuais, meus colegas no Reino Unido e eu mostramos, por exemplo, que as proporçþes entre asas e ossos de espĂŠcimes primitivos modernos, inclusive Teviornis e Vegavis, nĂŁo sĂŁo diferentes das que integram extintos enantiornites. A comparação dessas proporçþes em fĂłsseis com as de aves modernas permite inferir alguns aspectos do formato da asa e assim obter informaçþes sobre as capacidades aerodinâmicas de aves fĂłsseis. Mas, atĂŠ agora, tudo indica que as formas das asas dos dois grupos de pĂĄssaros fĂłsseis nĂŁo diferem; em outras palavras, nĂŁo acreditamos que as primitivas neornites fossem voadoras mais hĂĄbeis que os enantiornites, embora esses dois grupos provavelmente voassem melhor que aves semelhantes a terĂłpodes, como o arqueoptĂŠrix. Se a habilidade de voo nĂŁo deu Ă s neornites uma vantagem sobre seus congĂŞneres do CretĂĄceo, o que deu? Diversos paleontĂłlogos, inclusive eu, propuseram que diferenças em hĂĄbitos de alimentação podem ter dado essa “superioridadeâ€? competitiva. Para apoiar essa teoria mostrei em uma sĂŠrie de artigos publicados ao longo dos Ăşltimos anos que aves modernas, preservadas imediatamente apĂłs o cataclĂ­smico evento de extinção em massa, em rochas de 60 milhĂľes de anos e mais jovens, provavelmente viviam principalmente em ambientes Ăşmidos: linhas costeiras, lagos, Ă s margens de rios e no oceano, por exemplo. Muitas aves que habitam esses ambientes hoje, inclusive patos, em geral sĂŁo generalistas, capazes de subsistir Ă base de uma dieta variada. E, atualmente, aves parecidas com patos sĂŁo uma linhagem conďŹ rmada de pĂĄssaros modernos que encontramos no CretĂĄceo. Comparativamente, os grupos de aves do CretĂĄceo que nĂŁo sobreviveram ao desastre foram coletados em rochas formadas em muitos tipos diferentes de ambientes, inclusive litorais, ĂĄreas terrestres do interior, desertos e orestas. Essa diversidade ecolĂłgica pode

D I

PROVA CONCRETA: Esqueleto parcial de Vegavis da ilha Vega da AntĂĄrtida revela uma ave de 67 milhĂľes de anos, com caracterĂ­sticas distintamente modernas, inclusive uma larga cintura escapular e ossos das asas fundidos.

N O S S A

indicar que as aves arcaicas tinham desenvolvido especializaçþes para se alimentar em cada um desses nichos. Talvez, entĂŁo, o segredo do sucesso de aves modernas primitivas tenha sido simplesmente o fato de que elas eram menos especializadas que os outros grupos. Essa exibilidade possivelmente permitiu que as neornites se adaptassem mais facilmente Ă s condiçþes mutantes que se seguiram ao impacto do asteroide. Essa ĂŠ uma ideia atraente, mas ainda ĂŠ cedo para uma conclusĂŁo. Apenas com a descoberta de mais fĂłsseis, no solo ou em gavetas de museus, seremos capazes de determinar como aves modernas escaparam da extinção e levantaram voo. Gareth Dyke ĂŠ paleontĂłlogo da University of Southampton, na Inglaterra, onde estuda a histĂłria evolutiva de dinossauros e aves. Ele estĂĄ escrevendo um romance inspirado na vida do BarĂŁo Franz Nopcsa, que descobriu e descreveu alguns dos primeiros dinossauros da Europa central.

PA R A C O N H E C E R M A I S

Living dinosaurs: The evolutionary history of modern birds. Editado por Gareth Dyke e Gary Kaiser. John Wiley & Sons, 2011. The beginnings of birds: Recent discoveries, ongoing arguments and new directions. Luis M. Chiappe e Gareth J. Dyke em Major Transitions in Vertebrate Evolution. Editado por J. S. Anderson e H.-D. Sues. Indiana University Press, 2007. The inner bird: Anatomy and evolution. Gary W. Kaiser. University of British Columbia Press, 2007. yŠ ´Â&#x;ĂŻÂ&#x;Ăży †šüüÂ&#x;¨ yĂżÂ&#x;my´`y †šà ï›y yÄ ĂŻD´ï DĂżÂ&#x;D´ Ă DmÂ&#x;DĂŻÂ&#x;š´ Â&#x;´ ï›y Ă yĂŻD`yšÚüĂŽ Julia A. Clarke et al. em Nature, vol. 433, pĂĄgs. 305–308; 20 de janeiro de 2005. A new presbyornithid bird (Aves, Anseriformes) from the Late Cretaceous of southern Mongolia. E. N. Kurochkin, G. J. Dyke e A. A. Karhu em American Museum Novitates, nÂş 3866, pĂĄgs. 1–12; 27 de dezembro de 2002.

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U R O S 2


A N ATO M I A

QUEM NASCEU PRIMEIRO A PENA OU A AVE? A tão aguardada visão de como e por que as penas evoluíram recentemente sofreu uma reviravolta Por Richard O. Prum e Alan H. Brush

Ilustração por Kazuhiko Sano


PENAS EVOLUÍRAM em dinossauros carnívoros bípedes antes do surgimento das aves. Os animais descritos aqui são reconstruções de fósseis encontrados no norte da China que mostram claros caracteres de penas. O dinossauro maior, comendo um lagarto, é um Sinornithossauro. À sua direita está o Sinosauropterix. E o menor dinossauro no galho da árvore é um Microraptor.


D I N O S S A U R O S 2

C

AB EL O S, PEL O S, E SCAMAS, PE NAS. DE T ODOS OS RE VE ST IME NTO S DO corpo a Natureza definiu que penas são as mais variadas e as mais misteriosas. Como evoluíram esses apêndices incrivelmente fortes, espetacularmente leves, curiosamente complexos? De onde vieram? Somente nas duas últimas décadas começamos a responder essas questões. Várias linhas de pesquisa convergiram para uma conclusão notável: as penas evoluíram nos dinossauros antes do surgimento das aves.

A origem das penas é um caso específico de uma questão muito mais ampla sobre a origem das inovações evolutivas — estruturas sem antecedentes claros em animais ancestrais e sem estruturas claramente relacionadas (homólogos) em parentes contemporâneos. Embora a teoria evolutiva forneça uma explicação satisfatória para o aparecimento de pequenas variações no tamanho e forma dos animais e de partes que os compõem, ela ainda não mostra uma linha nítida para explicar o surgimento de estruturas completamente novas como dedos, membros, olhos e penas. Progressos na solução da origem particularmente intrigante das penas também foram limitados pelo que atualmente parecem ser pistas falsas, como a suposição de que as penas primitivas evoluíram por alongamento e divisão de escamas reptilianas, e especulações de que as penas evoluíram para uma função específica, o voo. A falta de penas em fósseis primitivos também impediu os avanços. Durante muitos anos, a mais antiga ave fóssil foi o Archaeopteryx lithographica, que viveu no período Jurássico superior (há cerca de 148 milhões de anos). Mas o arqueópterix não oferece insights sobre a evolução de penas, porque suas penas são praticamente indistinguíveis das penas de aves atuais. Contribuições de vários campos silenciaram esses problemas tradicionais. Primeiro, biólogos começaram a encontrar novas evidências da hipótese de que processos desenvolvimentistas — mecanismos complexos que promovem o crescimento de um organismo individual até sua forma e tamanho completos — fornecem uma janela para a evolução da anatomia das espécies. Essa ideia renasceu como um campo da biologia evolutiva desenvolvimentista, ou informalmente, “evo-devo”. A hipótese se tornou uma ferramenta poderosa para provar a origem das penas. Segundo, paleontólogos desenterraram uma coleção de dinossauros em-

plumados na China. Esses animais apresentam uma diversidade de penas primitivas não tão evoluídas como as das aves atuais ou até do arqueópterix. Essas são pistas decisivas para explicar a estrutura, função e evolução dos apêndices complexos de aves modernas. Juntos, esses avanços produziram um quadro evolutivo extremamente detalhado: penas originaram-se e diversificaram em dinossauros carnívoros, terópodes bípedes antes da origem das aves ou da origem do voo. PENA COMPLETAMENTE TUBULAR

ESSE QUADRO SURPREENDENTE foi montado graças, em grande parte, a uma nova avaliação sobre o que é exatamente uma pena e como ela se desenvolveu nas aves modernas. Como cabelo, unhas e escamas, penas são apêndices integumentares — órgãos da pele que se formam pela proliferação controlada de células epidérmicas, ou camada externa da pele, que produz a proteína queratina. Uma pena típica apresenta um eixo principal, chamada raque (ver quadro na pág. seguinte). Uma série de ramificações, ou barbas, se funde na raque. Como uma estrutura fractal de raque e barbas ramificadas, as próprias barbas também se ramificam: uma série de filamentos paralelos, chamados bárbulas que se prendem ao eixo principal da barba, o ramo. Na base da pena, a raque se expande para formar o cálamo, eixo central tubular oco, ou a pena, que se insere num folículo da pele. As penas das aves são substituídas periodicamente durante toda a vida por meio de muda — crescimento de penas novas a partir dos mesmos folículos. Variações na forma e estruturas microscópicas das barbas, bárbulas e raques criam uma variedade impressionante de penas. Mas apesar dessa diversidade, a maioria das penas se insere em duas classes estru-

EM SÍNTESE Fósseis de dinossauros encontrados na China têm penas que são mais primitivas que as de aves modernas ou até da mais antiga ave fóssil conhecida.

Os fósseis chineses fornecem evidências de que penas se originaram e m ÿyàå `DàD® y® m ´¹ååDùà¹å `Dà´ ÿ¹ ros bípedes antes do surgimento das

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aves e do voo. Variações na forma e na estrutura microscópica determinam as funções de diferentes tipos de penas, como voo e isolação térmica. Penas

provavelmente evoluíram em estágios, começando com uma pena simples tubular e cada estágio evoluindo num grupo particular de dinossauros.


VA R I A Ç Õ E S

Natureza das Penas A diversidade das penas é impressionante. Elas se prestam a uma enorme variedade de funções, de rituais lx D`DäD§D­x³î¸j D `D­ø D x­ x þ¸¸Í <Dß DcÆxä ³Dä ¸ß­Dä lx `¸­Ç¸³x³îxä lDä Çx³Dä UDßUDäj bárbulas e raques — criam sua diversidade. No entanto, a maioria das penas se insere em dois tipos UEä `¸äÍ ä Çx³E`xDäj Ôøx äT¸ Çx³Dä `º³ `Dä `¸­¸ D Çx³D ÇDßD xä`ßxþxß D³î D ¸ø D lD DäD lx ø­D DþxÍ E as penas plumuláceas ou felpudas, que contêm plumas macias emaranhadas, são leves e fornecem isolação térmica.

Parte penácea aberta Lâmina penácea aberta Pequenos ganchos Sulco

Lâmina Parte penácea fechada

D

Bárbula Eixo principal da bárbula (ramo)

I N O

Parte plumulácea

Barba Raque

S

Lâmina penácea fechada

S A U R

Cálamo

O

Pena penácea

2

S

TIM LEE QUINN (micrografias de penas); TINA WEST (fotografias de penas); ZSSD CORBIS (filhotes de tucano).

Barbas paralelas fundem-se na raque central, criam a lâmina que my ´y ù®D Èy´D Èy´E`yDÎ %D ȹàcT¹ Èy´E`yD y` DmD mD ¨F® ´Dj D´` ¹å ® ´úå`ù¨¹å my ù®D UEàUù¨D åy y´ïày¨DcD® `¹® ¹å åù¨`¹å de bárbulas próximas (Z[jWb^[ dW c_Yhe]hWÒ W Y[djhWb) para formar ù®D åùÈyà ` y `¹®ÈD`ïD `¹yày´ïyÎ %D ȹàcT¹ Èy´E`yD DUyàïDj Då UEàUù¨Då ´T¹ åy y´ D´` D®Î 0y´Då Èy´E`yDå y` DmDå åT¹ fundamentais para o voo de aves.

Penas plumuláceas (felpuda)

Èy´D Ȩù®ù¨E`yD ´T¹ ïy® ¨F® ´DÎ Caracteriza-se por uma raque rudimentar e um emaranhado de tufos de barbas com bárbulas alongadas.

Pena felpuda

Contorno da pena

Pena de voo

Penas recém-nascidas

Estrutura fofa ¹à´y`y 幨DcT¹ térmica.

Lâmina planar ajuda a delinear a forma do corpo da pena.

Lâmina assimétrica `à D ¹àcDå aerodinâmicas.

Penas recém-surgidas, não completamente desenvolvidas, são ÿ å ÿy å ´yååyå ¨ ¹ïyå my ïù`D´¹åÎ

Ilustrações por Patricia J. Wynne

51

Pena plumulácea (felpuda)


E S TÁ G I O S

Como as Penas Crescem Como no caso de cabelos, unhas e escamas, as penas crescem devido à proliferação e diferenciação de queratinócitos. Essas células da epiderme, ou camada externa da pele, produtoras de queratina cumprem sua meta de vida quando, ao morrer, deixam ÇDßD îßEä ø­ ßD³lx lxǹä î¸ lx ÔøxßDî ³DÍ 1øxßDî ³Dä äT¸ §D­x³î¸ä lx Ç߸îx ³Dä que se polimerizam para formar estruturas sólidas. Penas são constituídas de betaqueratina, exclusivas de répteis e aves. O revestimento externo da pena em crescimento, chamado bainha, é formado de alfaqueratina, mais macia, encontrada em todos os vertebrados e na Germe da pena nossa própria pele e cabelo.

¹´my´åDcT¹ de células

È๨ yàDcT¹ my `z¨ù¨Då ´ù® D´y¨ y® ï¹à´¹ m¹ yà®y mD Èy´D cria o folículo (detalhe abaixoËj ¹ ºà T¹ Õùy yàD D Èy´DÎ %D UDåy m¹ ¹¨ `ù¨¹j ´¹ `¹¨Dà ´ ¹ m¹ ¹¨ `ù¨¹j D Èà¹mùcT¹ `¹´ï ´ùD my ÕùyàDï ´º` ï¹å ¹àcD `z¨ù¨Då ®D å ÿy¨ Då ÈDàD ` ®D y ÈDàD fora, acabando por formar a pena tubular completa.

Papila

A papila forma-se a partir de um único tubo alongado, o germe da pena.

Derme

Epiderme

Derme do folículo

Folículo

Polpa dérmica

Epiderme do folículo

' `àyå` ®y´ï¹ mD Èy´D `¹®ycD `¹® D ÈDÈ ¨Dj um espessamento da epiderme sobre uma `¹´my´åDcT¹ my `z¨ù¨Då mD myà®yÎ

Cavidade do folículo Colarinho do folículo

turais. Uma pena penácea típica tem raque e barbas proeminentes que criam uma lâmina planar. As barbas são presas na lâmina por pares de bárbulas especializadas. As bárbulas que se estendem na direção da ponta da pena são guarnecidas por uma série de minúsculos ganchos que se entrelaçam com os sulcos de bárbulas adjacentes. Penas penáceas cobrem o corpo de aves, e suas lâminas extremamente próximas criam a superfície aerodinâmica de asas e cauda. Completamente diferentes das penas penáceas, as plumuláceas ou felpudas são penas que apresentam apenas uma raque rudimentar e um tufo entrelaçado de barbas com longas bárbulas. As longas e emaranhadas bárbulas atribuem a essas penas suas propriedades fantásticas de isolação térmica, leveza e ventilação. As penas podem ter uma lâmina penácea e uma base plumulácea. Em resumo, todas as penas são variações de um tubo produzido por proliferação da epiderme com a polpa dérmica nutritiva no centro. E mesmo quando a pena é ramificada como uma árvore, ela cresce desde a base como um fio de cabelo. Como as penas fazem isso? O crescimento da pena começa com um espessamento da epiderme chamado papila dérmica que se alonga num tubo — o germe da pena (ver quadro acima). A proliferação de células num anel em torno do germe da pena cria na sua base uma depressão cilíndrica, o folículo. O crescimento de células de queratina, ou queratinócitos, na epiderme do folículo — o “colarinho” folicular — força as células velhas para cima e para fora, finalmente gerando a pena inteira numa elaborada coreografia que é uma das maravilhas da Natureza.

Como parte dessa coreografia, o colarinho folicular divide-se numa série de saliências longitudinais — saliências da barba — que formam cada barba. Numa pena penácea, as barbas crescem helicoidalmente em torno do germe tubular da pena e se fundem de um lado para formar a raque. Simultaneamente, a novas cadeias de barbas se formam do outro lado do tubo. Numa pena plumulácea, as saliências das barbas crescem retas, sem qualquer movimento helicoidal. Nos dois tipos de pena, as bárbulas que se estendem do ramo da barba crescem a partir de uma única camada de células, chamada placa da bárbula, na periferia das saliências da barba. EVO-DEVO CHEGA ÀS PENAS

JUNTAMENTE COM VÁRIOS COLEGAS, acreditamos que o processo de desenvolvimento de penas pode ser explorado para revelar a provável natureza de estruturas primitivas que foram os precursores evolutivos das penas. Nossa teoria de desenvolvimento propõe que as penas evoluíram por meio de uma série de estágios transicionais, cada um marcado por uma inovação evolutiva desenvolvimentista, um novo mecanismo de crescimento. Avanços em um estágio forneceram a base para a inovação seguinte (ver quadro nas págs. 54 e 55). Em 1999 propusemos o seguinte esquema evolutivo. Estágio 1 correspondia ao alongamento tubular da papila a partir do germe e folículo da pena. Isso produzia a primeira pena — um cilindro oco sem ramificações. Depois, no estágio 2, formava-se o colarinho do folículo, um anel de tecido epidérmico, diferenciado (especializado): a camada inter-

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A camada mais externa da epiderme transforma-se na bainha da pena, uma estrutura temporária que protege a pena em crescimento. Enquanto isso, a camada interna da epiderme divide-se numa série de compartimentos, chamados saliências da barba, que posteriormente crescem para formar as barbas da pena.

Bainha Saliência da raque Saliência da barba

Barba Raque Cálamo

Crescimento helicoidal

Saliência da raque Saliência da barba recém-formada

Colarinho do folículo Artéria

À medida que o crescimento prossegue, a Èy´D y®yà y my åùD UD ´ D åùÈyà ` D¨Î Èy´D y´ïT¹ åy myåy´à¹¨D ÈDàD Dï ´ à åùD forma laminar. Quando a pena atinge seu ïD®D´ ¹ ´D¨j ¹ ¹¨ `ù¨¹ m¹ `¹¨Dà ´ ¹ ¹à®D ¹ cálamo — um tubo simples na base da pena.

Numa pena penácea, as saliências da barba crescem helicoidalmente em torno do colarinho até se fundirem para formar a saliência da raque. Saliências subsequentes das barbas fundem-se com a saliência da raque. Numa pena plumulácea (não mostrada), saliências da UDàUD ´T¹ `àyå`y® y¨ `¹ mD¨®y´ïyj y ù®D raque simples se forma na base da pena.

D I N O S S A U R O S 2

na tornava-se as saliências da barba longitudinal e a camada externa tornava-se a bainha protetora. Esse estágio produzia um tufo de barbas fundidas ao cilindro oco, ou cálamo. O modelo propunha duas alternativas para o estágio seguinte — ou a origem de crescimento helicoidal de saliências da barba e formação da raque (estágio 3a) ou a origem das bárbulas (3b). A ambiguidade é uma consequência da indefinição de quem surgiu primeiro, porque o desenvolvimento das penas não fornece pistas claras sobre que evento ocorreu primeiro. Um folículo do estágio 3a produzia uma pena com raque e uma série de barbas simples. Um folículo do estágio 3b gerava um tufo de barbas com bárbulas ramificadas. Independentemente do estágio precedente, a evolução dessas duas características, o estágio 3a+b, produzia as primeiras penas com dupla ramificação, exibindo raque, barbas e bárbulas. Como as bárbulas ainda não eram diferenciadas nesse estágio, a pena era penácea aberta — isto é, sua lâmina não formava uma superfície compacta coerente na qual se prendem as bárbulas. No estágio 4 se desenvolveu a capacidade de produzir bárbulas diferenciadas. Esse avanço permitiu que um folículo do estágio 4 produzisse ganchos minúsculos nas extremidades das bárbulas para que pudessem se prender aos sulcos das bárbulas de barbas adjacentes, e criar uma pena penácea com lâmina fechada. Somente depois do estágio 4, novas variações de penas puderam evoluir, incluindo as várias especializações observadas no estágio 5, como a lâmina assimétrica de uma pena de voo.

A inspiração para a teoria surgiu da natureza hierárquica do próprio desenvolvimento das penas. O modelo propõe, por exemplo, que uma pena tubular simples precedeu a evolução das barbas, porque barbas são criadas pela diferenciação do tubo, dentro das saliências da barba. Da mesma forma, um tufo plumuláceo de barbas evoluiu antes da pena penácea com raque, porque a raque é formada pela fusão de saliências de barbas. Uma lógica similar forma a base de cada um dos estágios do modelo desenvolvimentista. A diversidade de penas encontrada em aves modernas, que exibem penas representando todos os estágios do modelo, suporta, em parte, a teoria. Obviamente, essas penas são recentes, que evolutivamente originaram simplificações que simplesmente reverteram novamente aos estágios que surgiram durante a evolução, porque a complexa diversidade de penas (estágio 5) deve ter evoluído antes do arqueopterix. Essas penas modernas demonstram que todos os estágios pressupostos estão dentro da capacidade desenvolvimentista dos folículos das penas. Por isso a teoria desenvolvimentista da evolução das penas não requer estruturas puramente teóricas para explicar a origem de toda a diversidade de penas. Descobertas moleculares animadoras que confirmaram os primeiros três estágios do evo-devo também serviram para apoiar o modelo. Avanços tecnológicos nos permitem examinar dentro das células e identificar se genes específicos estão expressos (ativados para que possam dar origem aos produtos que codificam). Vários laboratórios combina-

53


ram esses mĂŠtodos com tĂŠcnicas experimentais que investigam as funçþes de proteĂ­nas formadas quando seus genes sĂŁo expressos, durante o desenvolvimento das penas. Matthew Harris, atualmente na Harvard Medical School, John F. Fallon da University of Wisconsin, em Madison, e um de nĂłs (Prum) estudaram dois padrĂľes importantes de formação de genes — sonic hedgehog (Shh) e bone morphogenetic protein 2 (Bmp2). Esses genes desempenham papel decisivo no crescimento de membros, dedos e apĂŞndices integumentares de vertebrados, como cabelo, dentes e unhas. Descobrimos que as proteĂ­nas Shh e Bmp2 funcionam como

um par modular de molÊculas sinalizadoras que, como um componente eletrônico de uso genÊrico, Ê reutilizado repetidamente durante todo o desenvolvimento da pena. A proteína Shh induz a proliferação de cÊlulas e a proteína Bmp2 regula a extensão da proliferação e promove a diferenciação de cÊlulas. A expressão de Shh e Bmp2 começa na papila da pena onde o par de proteínas Ê produzido num padrão polarizado anteroposterior. A seguir, Shh e Bmp2 são expressos na ponta do germe tubular da pena durante seu alongamento inicial e posteriormente, no epitÊlio que separa as sa-

D E S C O B E R TA S

Evo-devo e a Pena A teoria dos autores sobre a origem da pena surgiu quando perceberam que os mecanismos de desenvolvimento podiam ajudar a explicar a evolução de novos aspectos — um campo chamado evodevo. O modelo propĂľe que caracterĂ­sticas exclusivas de penas evoluĂ­ram por meio de uma sĂŠrie de inovaçþes evolutivas em seu crescimento, e cada uma foi fundamental para o aparecimento do estĂĄgio seguinte. Dessa forma, a teoria baseia suas propostas no conhecimento dos passos do desenvolvimento atual de penas, e nĂŁo em hipĂłteses sobre para que serviriam as penas ou sobre grupos de animais nos quais elas podem ter evoluĂ­do. As descobertas fĂłsseis

em Liaoning, China, fornecem os primeiros insights sobre em qual dinossauro terópode evoluíram as penas de cada estågio proposto. Com base nas semelhanças entre previsþes de penas primitivas do modelo e nas formas dos apêndices da pele de fósseis, os autores sugerem que cada estågio evoluiu num grupo particular de dinossauros.

EstĂĄgio 3 3a

SaliĂŞncia da raque

Pena planar com barbas sem Ă DÂŽÂ&#x;Š `DcÇyĂĽ fundidas na raque central

EstĂĄgio 2 Tufos de barbas sem Ă DÂŽÂ&#x;Š `DcTš ĂˆĂ yĂĽDĂĽ Dš `E¨DŽš

EstĂĄgio 1

Crescimento helicoidal original e †šà ŽDcTš mD Ă DĂ•Ăšy

A primeira pena, um cilindro oco

OU

INOVAĂ‡ĂƒO EVOLUTIVA ĂŠ5šmDĂĽ DĂĽ ĂĽy`cÇyĂĽ ĂŻĂ D´üÿyĂ ĂĽDÂ&#x;ĂĽ ĂĽTš do colarinho do folĂ­culo) Origem do colarinho do folĂ­culo

Ceratossauro

Allosauridae

Compsognato

SaliĂŞncias da barba Â&#x;†yĂ y´`Â&#x;DcTš mš `š¨DĂ Â&#x;´Â›š mš †š¨ `Ú¨š

Sinossauropterix

ESTĂ GIO 1

Alvarezsauridae

ESTĂ GIO 2

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3b Pena com barbas e bĂĄrbulas presas Ă base do cĂĄlamo

Shuvuuia

Ornithomimidae

Origem das placas de bĂĄrbulas

Beipiaossauro

Therizinosauridae

ESTĂ GIO 3?


liĂŞncias da barba em formação, estabelecendo um padrĂŁo para o crescimento das saliĂŞncias. Posteriormente, em penas penĂĄceas, a sinalização Shh e Bmp2 deďŹ ne um padrĂŁo de crescimento helicoidal de saliĂŞncias da barba e a formação da raque. No caso de penas plumulĂĄceas os sinais de Shh e Bmp2 criam um padrĂŁo mais simples de crescimento da barba. Cada estĂĄgio do desenvolvimento de penas se caracteriza por um padrĂŁo diferente de sinalização Shh e Bmp2. Sucessivamente as duas proteĂ­nas desempenham tarefas crĂ­ticas, Ă medida que a pena se desenrola atĂŠ sua forma ďŹ nal.

Esses dados moleculares conďŹ rmam que as penas se desenvolvem por meio de uma sĂŠrie de estĂĄgios hierĂĄrquicos nos quais eventos subsequentes sĂŁo mecanicamente dependentes de estĂĄgios anteriores. A evolução de faixas longitudinais na expressĂŁo do Shh-Bmp2, por exemplo, pode ocorrer no desenvolvimento anterior do germe de uma pena tubular alongada. Da mesma forma, as variaçþes na padronização de Shh-Bmp2 durante o crescimento da pena penĂĄcea estĂŁo subordinadas ao estabelecimento prĂŠvio de faixas longitudinais. Por isso, os dados moleculares se ajustam perfeitamente ao cenĂĄrio de que penas evoluĂ­ram de

Estågio 5 Lâmina assimÊtrica fechada (se assemelha às penas modernas de voo)

EstĂĄgio 4 Lâmina penĂĄcea fechada (pequenos ganchos na bĂĄrbula prendem-se aos sulcos de bĂĄrbulas de barbas adjacentes) 3a+b Pena planar com barbas Ă DÂŽÂ&#x;Š `DmDĂĽ y ¨FÂŽÂ&#x;´D DUyĂ ĂŻD

´`¨ÚüTš my ÂŽDÂ&#x;ĂĽ saliĂŞncias de barba de um lado

Â&#x;†yĂ y´`Â&#x;DcTš my placas das bĂĄrbulas

Tiranossauridae

Sinornithossauro

Oviraptorssauros

Caudipterix

Troodontidae

Microraptor

Taxonomia inominada

ArqueĂłpterix

Dromeossauro

ESTĂ GIO 5

ESTĂ GIO 4

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Enantiornithines

Confuciusornis

Euornithes


D

Espécime de Microraptor gui (acima) mostra penas assimétricas, dificultando a distinção entre aves e dinossauros. Fósseis encontrados em escavações na província de Liaoning, China, como esse membro dianteiro de Caudipteryx (esquerda), revelam apêndices emplumados. As penas penáceas da cauda e dos membros dianteiros desse dinossauro, do tamanho aproximado de um peru, foram perfeitamente preservadas.

I N O S S A

R O S 2

um tubo oco alongado (estágio 1) seguindo para um tufo felpudo de barbas (estágio 2) e depois para uma estrutura penácea (estágio 3a). Teorias conceituais aguçaram nossa mente, e técnicas de laboratório de última geração nos permitiram perscrutar a célula viva enquanto ela dá vida e forma à pena. Mas o trabalho comum de detetive à moda antiga em escavações ricas em fósseis no norte da China revelou evidências espetaculares da teoria desenvolvimentista. Paleontólogos chineses, americanos e canadenses desenterraram um conjunto surpreendente de fósseis do Cretáceo inferior (128 milhões a 124 milhões de anos), na formação Yixian, na província de Liaoning. Excelentes condições da formação preservaram um conjunto de organismos primitivos, incluindo a mais antiga placenta de mamífero, a primeira planta com flores, uma infinidade de aves antigas e uma diversidade de fósseis de dinossauros terópodes com engenhosos detalhes integumentares. Vários fósseis de dinossauros mostram claramente penas completamente modernas e uma diversidade de estruturas de penas primitivas. As conclusões são inevitáveis: penas originaram-se e evoluíram sua estrutura basicamente moderna numa linhagem de dinossauros carnívoros bípedes terrestres antes do aparecimento das aves e do voo. O primeiro dinossauro emplumado encontrado em 1997 foi um celurossauro do tamanho de uma galinha (Sinosauropteryx), com pequenas estruturas tubulares e talvez ramificadas que saíam da pele. Depois os paleontólogos descobriram um dinossauro oviraptor (Caudipteryx) do tamanho de um peru, com penas penáceas de aparência moderna perfeitamente preservadas na ponta da cauda e nos membros dianteiros. Alguns céticos argumentaram que o Caudipteryx era simplesmente uma ave primitiva, sem capacidade de voo,

mas várias análises filogenéticas o colocam entre dinossauros terópodes oviraptores. Descobertas subsequentes em Liaoning revelaram penas penáceas em espécimes de dromeossauros — terópodes que se supõe serem os mais intimamente relacionados com aves, mas que claramente não são aves. No total, os investigadores encontraram penas fósseis de mais de uma dezena de dinossauros terópodes não aves, entre eles o therizinossauro Beipiaosaurus do tamanho de um avestruz, e uma variedade de dromeossauros, incluindo o Microraptor e o Sinornithosaurus. A heterogeneidade de penas encontrada nesses dinossauros é surpreendente e apoia fortemente a teoria desenvolvimentista. As penas mais primitivas conhecidas — do Sinosauropteryx — contêm estrutura tubular muito simples e são extraordinariamente idênticas às previstas no estágio 1 do modelo desenvolvimentista. Sinosauropteryx, Sinornithosaurus e alguns outros espécimes terópodes não aves mostram estruturas em tufos abertos, sem raque e são incrivelmente congruentes com o estágio 2 do modelo. Há também penas penáceas que obviamente contêm bárbulas diferenciadas e lâminas planares coerentes, como no estágio 4 do modelo. Esses fósseis abrem um novo capítulo na história da pele de vertebrados. Já sabemos que penas apareceram pela primeira vez num grupo de dinossauros terópodes e se diversificaram numa grande variedade de estruturas essencialmente modernas dentro de outras linhagens de terópodes antes do surgimento das aves. Entre os numerosos dinossauros emplumados, as aves representam um grupo particular que desenvolveu sua capacidade de voar usando penas especializadas de seus membros dianteiros e cauda. Caudipteryx, Protopteryx e dromeossauros exibem um proeminente “leque” de penas na ponta da cauda, indi-

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MICK ELLISON American Museum of Natural History (esquerda); XING XU (direita).

U


cando que até alguns aspectos da plumagem de aves modernas evoluíram nos terópodes. Como consequência dessas surpreendentes descobertas fósseis houve uma redefinição do que é uma ave e, ao mesmo tempo, uma revisão da biologia e da história da vida dos dinossauros terópodes. Aves — as modernas e o grupo que inclui todas as espécies descendentes do ancestral comum mais recente do Archaeopteryx — costumavam ser reconhecidas como vertebrados emplumados voadores. Atualmente precisamos reconhecer que aves são um grupo de dinossauros terópodes emplumados que desenvolveu a capacidade de voar. Novas descobertas fósseis continuam a preencher a lacuna entre aves e dinossauros e acabam tornando até mais difícil definir as aves. Por outro lado, os dinossauros mais carismáticos e culturalmente mais icônicos, como o tiranossauro e o velociraptor, muito provavelmente tiveram pele emplumada, mas não eram aves.

volvem a partir da parte superior e inferior da protuberância epidérmica inicial que forma a escama. Evidências recentes também descartam a teoria popular e que prevaleceu por muito tempo de que as penas evoluíram basicamente ou originalmente para o voo. Somente formas altamente evoluídas de penas — a pena assimétrica com lâmina fechada, que não ocorreria até o estágio 5 — poderiam ter sido usadas para voar. Propor atualmente que penas evoluíram para o voo seria praticamente o mesmo que supor que os dedos evoluíram para tocar piano. Mas em vez disso, as penas sofreram “exaptação” para atender à sua função aerodinâmica, somente depois da evolução da complexidade estrutural e desenvolvimentista significativa. Elas evoluíram para alguma outra finalidade, e depois foram aproveitadas para um uso diferente. Várias outras funções de penas propostas anteriormente continuam plausíveis, incluindo isolação térmica, repulsão à água, rituais de acasalamento, camuflagem e defesa. Mesmo com a riqueza de novos dados paleontológicos, no entanto, parece improvável chegarmos a obter insight suficiente sobre a biologia e história natural da linhagem específica na qual as penas evoluíram, para distinguir entre essas hipóteses. Em vez disso, nossa teoria destaca que penas evoluíram por uma série de inovações desenvolvimentistas, sendo que cada uma delas pode ter evoluído para uma diferente função original. Sabemos, entretanto, que as penas surgem somente depois que o germe e o folículo da pena tubular se formam na pele de algumas espécies. Portanto, a primeira pena se desenvolveu porque o primeiro apêndice tubular que brotou da pele forneceu algum tipo de vantagem para a sobrevivência. Criacionistas e outros céticos evolucionistas há muito tempo vêm apontando as penas como o exemplo favorito da insuficiência da teoria evolutiva. Segundo eles, não houve formas transicionais entre escamas e penas. Além disso, eles perguntam, por que a seleção natural para o voo primeiro dividiria uma escama alongada e depois desenvolveria um novo mecanismo elaborado para combiná-las novamente. Atualmente, numa reviravolta irônica, as penas oferecem um exemplo surpreendente de como podemos estudar melhor a origem da inovação evolutiva: concentrar-nos na compreensão dessas características que são realmente novas e examinar como elas se transformaram, ao longo do desenvolvimento, em organismos modernos. Esse novo paradigma da biologia evolutiva certamente esclarecerá muitos outros mistérios. É só dar asas à imaginação.

DINOSSAURO OU AVE? A LACUNA DIMINUI

A CADA NOVA DESCOBERTA, a distinção entre aves e dinossauros se torna ainda menor. Em 2003, Xing Xu e Zhonghe Zhou, do Instituto de Paleontologia e Paleoantropologia de Vertebrados da Academia de Ciências da China, descreveram alguns espécimes novos de Microraptor gui — um dromeossauro do grupo de terópodes, os mais intimamente relacionados com as aves. Os animais apresentam penas assimétricas nos membros superiores e inferiores. Em aves vivas, penas com lâminas assimétricas funcionam no voo. O Microraptor tinha quatro asas — duas nos braços e duas nas pernas — que aparentemente tinham função aerodinâmica. Xu e seus colegas propuseram que o Microraptor foi um planador avançado. E como o Microraptor está no grupo mais relacionado com aves, eles propuseram então que o voo proporcionado por duas asas evoluiu de um ancestral planador com quatro asas. A discussão sobre a origem do voo das aves se concentrou em duas hipóteses concorrentes: o voo evoluiu a partir das árvores por meio de um estágio planador, ou o voo evoluiu a partir do solo por meio de um estágio de corrida para ganhar propulsão. A teoria que propõe o voo alçado de árvores é apoiada, em parte, pela descoberta de um planador funcional em dinossauros terópodes mais intimamente relacionados às aves. Obviamente, muitas questões ainda permanecem, por exemplo, como o Microraptor realmente usava suas quatro asas. Durante milhares de anos, humanos acreditaram que penas e voo acionado por penas eram exclusivos de aves. Mas descobrimos que as penas evoluíram e se diversificaram em dinossauros terópodes antes do surgimento das aves,e que até alguns aspectos do voo podem não ser exclusivos das aves. Os dois argumentos históricos para o status das aves como uma classe especial de vertebrados — penas e voo — desapareceram. Embora essa percepção possa desapontar algumas pessoas, o desaparecimento de grandes lacunas em nosso conhecimento sobre a genealogia da vida representa um grande sucesso para a biologia evolutiva.

Richard O. Prum e Alan H. Brush compartilham a paixão por biologia de penas. Prum, que começou a observar pássaros aos 10 anos, é atualmente professor de ornitologia no departamento de ecologia e biologia evolutiva da Yale University. Ele também é curador de ornitologia e curador chefe de zoologia de vertebrados do Peabody Museum of Natural History da mesma æ§ èrÍÒ fDfr» 3æDÒ µrÒÂæ ÒDÒ Òr Z«§Zr§ÜÍD¡ r¡ « r§ D Dè ñÍ Dd Í ÜæD Ò fr DZDÒD D¡r§Ü« r sistemas de procriação de aves, física de cores estruturais e evolução de penas. Ele liderou pesquisas de campo nas Américas Central e do Sul, Madagascar e Nova Guiné. Brush é professor r¡÷Í Ü« fr Ò « « D r §ræÍ«O « « D fD 7§ èrÍÒ Üë «{ «§§rZÜ ZæÜ» 5ÍDOD «æ r¡ µ ¡r§ÜD]õ« de penas e bioquímica de queratina e em inovações da evolução de penas. Foi editor de The Auk.

UM OLHAR ATUAL PA R A C O N H E C E R M A I S

GRAÇAS AOS DIVIDENDOS FORNECIDOS por descobertas relativamente recentes, pesquisadores podem reavaliar várias hipóteses anteriores sobre a origem das penas. As novas evidências da biologia desenvolvimentista são particularmente contrárias à teoria clássica de que penas evoluíram de escamas alongadas. De acordo com esse cenário, escamas evoluíram em penas, primeiramente alongando-se e depois desenvolvendo bordas franjadas, e finalmente produzindo bárbulas com ganchos e sulcos. No entanto, como vimos, penas são tubos. Os dois lados planares da lâmina — anterior e posterior — são criados pela parte interna e externa do tubo somente depois de a pena se desenrolar a partir de sua bainha cilíndrica. Em contrapartida, os dois lados planares de uma escama se desen-

5 y yÿ¹¨ùï ¹´DàĂ ¹à ´ D´m m ÿyàå `Dï ¹´ ¹ yDï yàåÎ Richard O. Prum e Alan H. Brush em Quarterly Review of Biology, vol. 77, nº 3, págs. 261–295; setembro de 2002. 3 ®È÷ å ´D¨ ´ ®¹mù¨y D´m ï y yÿ¹¨ùï ¹´DàĂ ¹à ´ D´m m ÿyàå `Dï ¹´ ¹ feathers. Matthew P. Harris, John F. Fallon e Richard O. Prum em Journal of Experimental Zoology, vol. 294, nº 2, págs. 160–176; 15 de agosto de 2002. Evolving a protofeather and feather diversity. Alan H. Brush em American Zoologist, vol. 40, nº 4, págs. 631–639; 2000. Development and evolutionary origin of feathers. Richard O. Prum em Journal of Experimental Zoology (Molecular and Developmental Evolution), vol. 285, nº 4, págs. 291–306; 15 de dezembro de 1999.

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D I N O S S A U R O S 2


ESCARPAS DE ARENITO no sul da Mongólia produziram manchetes nos jornais no início da década de 20, quando paleontólogos encontraram ovos de dinossauro ali. No século 21, os Penhascos Flamejantes continuam produzindo um rico filão de fósseis bem preservados..


TESOURO FÓSSIL

FÓSSEIS DOS PENHASCOS FLAMEJANTES O deserto de Gobi, na Mongólia, contém um dos conjuntos mais ricos de vestígios de dinossauros já encontrados. Paleontólogos estão desvendando grande parte da história da região Por Michael J. Novacek, Mark Norell,

O

Malcolm C. McKenna e James Clark

DESERTO DE GOBI DA ÁSIA CENTRAL É UM dos lugares mais desolados da Terra. Seus 1,3 milhão de km² de dunas de areia, relevos rochosos, montanhas de picos serrilhados são alternadamente torrados pelo sol de verão de alta latitude e congelados pelos cortantes ventos siberianos de inverno. Não é um lugar para se explorar sem preparo: atravessar vastas áreas desabitadas entre um e outro oásis disperso exige planejamento tão cuidadoso quanto as estratégicas táticas para escalar um pico no Himalaia ou cruzar o continente antártico. Existem poucos mapas e a navegação por satélite é de ajuda limitada para um viajante que tenta escolher entre estradas (ou trilhas) esburacadas que se entrecruzam desordenadamente e se estendem de forma tão imprevisível quanto os assentamentos

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ROY CHAPMAN ANDREWS (abaixo, com seus ovos de dinossauros) comandou a primeira expedição de caça a fósseis ao deserto de Gobi, em 1922. Seu grupo que incluiu camelos, e carros primitivos, ficou perdido várias vezes; um desses episódios resultou na descoberta dos Penhascos Flamejantes. Atualmente, as expedições se baseiam em auxílios de navegação por satélite, mas elas não enfrentam condições menos árduas. Embora paleontólogos tenham mapeado muitos achados fósseis, grande parte do Gobi permanece inexplorada.

RÚSSIA

MONGÓLIA

Ulan Bator

Arbay Heere

Erlian Khermeen Tsav Penhascos Flamejantes Tugrugeen Shireh

ROTAS EXPEDICIONÁRIAS Mongol-Americana Roy Chapman Andrews Mongol-Polonesa

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CHINA

D I N

S S A U R O S 2

nômades que conectam. Mesmo uma expedição moderna corre o risco de sofrer escassez de água, combustível e alimentos. Ficar perdido não é apenas frustrante, mas uma questão de sério perigo. O Gobi, no entanto, é um paraíso para paleontólogos. A erosão de seu terreno expõe esqueletos quase completos de criaturas até agora conhecidas apenas pelas meticulosas reconstruções de alguns ossos espalhados. Nossas expedições, patrocinadas em conjunto pela Academia de Ciências da Mongólia e pelo Museu Americano de História Natural, escavaram dinossauros, lagartos e pequenos mamíferos em um estado inédito de preservação. Esqueletos recém-expostos às vezes se parecem mais com os restos de uma carcaça nova que com um fóssil de 80 milhões de anos. Os esqueletos e crânios que encontramos frequentemente estão completos ou quase completos, em um contraste intenso com os fragmentos normalmente recuperados em outros lugares. Ninguém sabe por que fósseis no Gobi são tão bem preservados. Em outras áreas ricas em espécimes, como a que deu origem às Montanhas Rochosas, córregos ou rios arrastavam ossadas ou restos de animais para sítios de fósseis, desmembrando e misturando-os ao longo do caminho. Mas o ambiente no Cretáceo Superior no Gobi pode ter sido muito similar ao que é hoje: largos vales abertos de dunas e falésias, irrigados escassamente por pequenos lagos ou riachos sazonais. De fato, indicações de antigas dunas de areia podem ser observadas em seções de rochas ali. Também é bem visível que os animais foram enterrados logo após sua morte, antes que criaturas carniceiras ou o clima tivessem muito tempo para perturbá-los ou danificá-los. Camadas de arenito mal delimitadas

nas formações rochosas do Cretáceo sugerem depósitos do tipo produzido por violentas tempestades de areia. No início da década de 90, Tomasz Jerzykiewicz, à época no Serviço Geológico do Canadá, em Calgary, e seus colegas estudaram leitos fósseis na Mongólia Interior chinesa e constataram que fósseis de vertebrados muitas vezes estão incrustados nessas camadas sedimentares. Essas tempestades podem não ter apenas enterrado carcaças, mas também matado animais. Sepultados em questão de minutos ou horas, seus restos mortais emergem cerca de 80 milhões de anos depois, quase imperturbados. DESCOBERTA CASUAL DE PROTOCERÁTOPS

A MONGÓLIA NEM SEMPRE foi reconhecida por sua riqueza de material pré-histórico. No final do século 19 e início do 20, a região das Montanhas Rochosas, no oeste da América do Norte, era o paraíso para paleontólogos de vertebrados. Então, em 1922, Roy Chapman Andrews, do American Museum of Natural History, comandou uma expedição ao coração do deserto de Gobi e mudou a geografia do mundo fóssil. Andrews relatou suas cinco expedições em uma notável narrativa intitulada The New Conquest of Central Asia [A nova conquista da Ásia central, em tradução literal, não disponível em português]. O romantismo e a emoção do empreendimento pressagiaram as façanhas do personagem principal do filme Indiana Jones. No caminho, os exploradores foram desafiados por vastos campos de dunas sem trilhas, furiosas tempestades de areia e bandidos saqueadores. A caravana de camelos e veículos Dodge com rodas raiadas de Andrews foi um pesadelo logístico na travessia da paisagem lunar do Gobi.

EM SÍNTESE Começando com uma expedição de 1922, que pressagiou as aventuras de “Indiana Jones”, o deserto de Gobi, na Ásia Central, tem sido um paraíso para paleontólogos. Um sítio no sul da Mongólia, com falésias e pináculos de arenito vermelho, apelidado Penhascos

¨D®y¦D´ïyå Ê ¨D® ´ ¨ åËj Èà¹mùĆ ù ù®D “arca do tesouro” cheia de dinossauros, inclusive o primeiro conjunto conhecido de ovos desses animais. Caçadores de fósseis no Gobi também encontraram ricos agrupamentos de lagartos, crocodilianos, mamíferos

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e outros vertebrados que estão ajudando cientistas a entender as vidas cotidianas desses animais, reconstruir o antigo ambiente do Gobi e traçar linhas evolutivas. Espécimes encontrados e recuperados no Gobi incluem esqueletos de dinossauros oviráptores sobre

seus ninhos, os primeiros dinossauros não avianos a exibir um comportamento de cuidar da ninhada. Alguns ninhos foram encontrados em agrupamentos, o que sugere que esses animais podem ter se reunido em colônias como aves marinhas da atualidade.

PÁGINAS ANTERIORES: THINKSTOCK; ESTA PÁGINA: JOHNNY JOHNSON (mapa); BETTMANN/CORBIS (Andrews)

O


MARK NORELL (ESPÉCIMES PREPARADOS POR AMY DAVIDSON) (acima e abaixo); MARK NORELL (ESPÉCIME PREPARADO POR WILLIAM AMAREL) (centro)

Uma das descobertas mais importantes na história da exploração científica ocorreu em meio a essas dificuldades. No final da primeira temporada de campo, em 1922, a expedição se perdeu. O fotógrafo da equipe, J. B. Shackleford, caminhou na direção de uma margem rochosa à beira de um vasto descampado. Ali ficou surpreso ao se deparar com uma paisagem fantástica de falésias (penhascos) e pináculos vermelhos — e fósseis. Em apenas dez minutos, ele havia descoberto o primeiro crânio conhecido de protocerátopo, ou protocerátops, um dinossauro com bico de papagaio e a cabeça protegida por um escudo em forma de leque que, desde então, tornou-se um fóssil de referência do Cretáceo Superior da Ásia Central. A equipe recuperou mais ossos e até um pequeno ovo, que confundiram com o de um pássaro. Os cientistas retornaram ao local no verão seguinte para encontrar uma abundância surpreendente de dinossauros, mamíferos antigos e outros vertebrados; além do primeiro conjunto conhecido de ovos de dinossauros. Essas descobertas, particularmente os ovos, foram notícias de primeira página dos jornais. Andrews chamou o lugar Penhascos Flamejantes [Flaming Cliffs], inspirado por seu magnífico brilho vermelho-alaranjado ao sol do entardecer.

gloriosos dias de caça a dinossauros no oeste americano, prospectores encontraram vales e cânions onde esqueletos eram expostos como cadáveres em um campo de batalha deserto, mas agora muitas excelentes áreas de busca parecem quase esgotadas. Comparativamente, as atividades cumulativas na Mongólia ao longo dos últimos 80 anos nem chegam perto das que ocorreram nas Américas. A erosão ainda está expondo uma infinidade de fósseis, mesmo em sítios bem prospectados por Andrews e outros. Além disso, é justamente a natureza hostil e inexplorada do Gobi que aumenta a chance de paleontólogos ainda se depararem com bolsões de terras ermas e rochosas completamente intocadas. No início da temporada de 1993, em companhia de nosso colega mongol, o agora falecido Demberelyin Dashzeveg, da Academia de Ciências em Ulan Bator, nossa equipe de campo partiu rumo a um indistinto conjunto de arenitos vermelho-amarronzados no lado norte do vale Nemegt, junto à base de uma cadeia de montanhas pontiagudas chamada Gilbent Uul. De acordo com Dashzeveg, expedições anteriores haviam ignorado essa região em sua pressa de chegar logo às terras ermas e rochosas do vale Nemegt ocidental. Chegamos OVO DE OVIRÁPTOR (acima) conà área, nos debatemos por alguns quilômetros tém um embrião quase perfeitamente ao longo de uma região erodida, presumivelpreservado. O crânio de um jovem trooINACESSIBILIDADE mente por água, e armamos um acampamendontídeo (família de predadores que NO INÍCIO DA DÉCADA DE 30, frustrado por um ceto onde o nosso pesado caminhão-tanque de inclui o troodonte) foi desenterrado do nário político volátil na Mongólia, Andrews degasolina e trailer afundaram na areia. mesmo ninho; não está claro como o sistiu da exploração. O Gobi tornou-se inacessíNa manhã seguinte, começamos a prospecintruso chegou lá. Um crânio de ovirápvel a interesses ocidentais durante mais de 60 tor adulto (centro) foi encontrado em tar as colinas e ravinas mais próximas do acamUkhaa Tolgod, no Gobi ocidental. Essa anos, permitindo que cientistas do bloco soviépamento. Em poucas horas ficou claro que tífamília de dinossauros, parecidos com tico prosseguissem o trabalho iniciado por Annhamos nos deparado com uma das concenaves, se assemelhava a avestruzes moderdrews. Entre 1946 e 1949, expedições conjuntas trações mais ricas de fósseis já recuperados da nas. Alguns oviráptores (talvez apenas russo-mongólicas penetraram na bacia Nemegt, era dos dinossauros. Em uma bacia de menos um dos gêneros) desenvolvia uma granonde descobriram vastas terras ermas e erodide 2 km de diâmetro, encontramos dezenas de de crista óssea depois de amadurecer. das ricas em fósseis do Cretáceo e Cenozoico. esqueletos e ninhos de ovos expostos ao proUm espécime do oviráptor Citipati (abaiZofia Kielan-Jaworowska, especialista em cesso de intemperismo em encostas suaves. xo) está sentado sobre um ninho de ovos. fósseis de mamíferos de prestígio mundial, do Misturados aos fósseis de dinossauros havia Instituto de Paleontologia em Varsóvia, na Pouma abundância de vertebrados menores, lalônia, chefiou uma equipe polonesa-mongólica gartos e mamíferos, que também haviam sido altamente qualificada e animada à Formação Nemegt e a outras áreas habitantes fundamentais do antigo ecossistema cretáceo. entre 1963 e 1971. Ela e seus colegas produziram uma série de monograO nome local para o sítio dessa bonança é Ukhaa Tolgod (“Colinas fias clássicas e uma magnífica exibição de fósseis de dinossauros e outros Marrons”). Seu “anfiteatro” natural continha cerca de 100 esqueletos de vertebrados no Museu de História Natural de Ulan Bator, capital da Mon- dinossauros facilmente visíveis, muitos deles em estado quase original. gólia. Desde a década de 60, paleontólogos mongóis têm realizado ex- Durante as temporadas de campo posteriores selecionamos os espécitensivo trabalho de campo, tanto de forma independente como em co- mes mais desejáveis. Entre eles estão 25 esqueletos de dinossauros terólaboração com cientistas soviéticos, agora russos. podes. Esse variado grupo de carnívoros ágeis inclui desde os enormes Ocidentais só retornaram à região após o desenvolvimento da de- tiranossauros e alossauros, os velozes dromaeossauros como o velocimocracia mongol, em 1990. No verão local daquele ano, nossos colegas ráptor (o terrível predador de Parque Jurássico, um título equivocado na Academia de Ciências da Mongólia nos convidaram para uma “visita em cerca de 60 milhões anos) até criaturas menores, semelhantes a aves, de reconhecimento”, que pavimentou o caminho para expedições mais como os oviráptores. Também coletamos um conjunto ineditamente ambiciosas em anos seguintes. rico de pequenos vertebrados: mais de 200 crânios de mamíferos, muitos Desde a época de Andrews, o contraste entre o Gobi e outras áreas, deles ainda com seus respectivos esqueletos, e um número maior ainda mais acessíveis de fósseis, no mínimo se acentuou. Há um século, nos de crânios e esqueletos de lagartos.

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OVIRÁPTOR, um grande dinossauro predador, está em pé junto a seu ninho e dos corpos de dois jovens troodontes (outro predador ágil e veloz). No sítio de Ukhaa Tolgod, no deserto de Gobi, os autores encontraram um ninho de oviráptor que continha dois crânios de dinossauros bebês da mesma família do troodonte; os intrusos poderiam estar saqueando o ninho, ter sido trazidos por um dos pais oviráptores para alimentar seus filhotes, ou até ter sido botados oportunisticamente no ninho (como o cuco faz atualmente) e incubados ali.

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Como a variedade de nossos espécimes deixa claro, a riqueza e diversidade de vida terrestre durante o Cretáceo da Ásia Central não estava limitada a dinossauros. O Gobi de 80 milhões de anos atrás sustentou uma ampla gama de lagartos, crocodilianos e mamíferos. Encontramos espécimes que representam mais de 30 espécies de lagartos; alguns tão bem preservados que ainda exibem características anatômicas que oferecem pistas sobre as relações entre grandes famílias de lagartos. Provavelmente, o mais espetacular deles é o Estesia. Certa manhã, durante uma excursão de reconhecimento, deparamos com um primoroso crânio de 20 cm de comprimento, com dentes afiados como navalhas, semi-incrustado como um baixo relevo em uma placa vertical de arenito. À época pensamos que ele pertencia a um pequeno dinossauro carnívoro, mas um exame posterior determinou que o crânio era de uma espécie totalmente nova de um grande lagarto predador, muito parecido com o atual dragão-de-komodo. Batizamos a espécie em homenagem a Richard Estes, da San Diego State University, a maior autoridade mundial em lagartos fósseis antes de sua morte em 1990. O Estesia é um animal muito primitivo e, então, importante para compreender a árvore genealógica dos lagartos varanídeos (o grupo que inclui o Komodo). O crânio tem uma série incomum de canais na base dos dentes, o que sugere que o Estesia injetava veneno por suas presas. Essa arma letal não é comum em varanídeos vivos, mas é encontrada no monstro-de-gila do sudoeste dos Estados Unidos e norte do México.

tivos vem de fósseis norte-americanos, que em sua maioria são fragmentos de mandíbulas e dentes. De fato, praticamente não existem crânios completos dessas criaturas do Cretáceo da América do Norte. Consequentemente, o conjunto de fósseis do Gobi, inclusive nossos achados e os de expedições anteriores, certamente representam a coleção referencial do mundo para mamíferos do Cretáceo Superior. Um pequeno bloco de pedra recuperado de Ukhaa Tolgod revelou seis mamíferos placentários parecidos com musaranhos, cada um medindo apenas alguns centímetros de comprimento. Surpreendentemente, os fósseis consistem em crânios completos ligados a esqueletos; ossos tão minúsculos em geral são encontrados separados ou quebrados. Essas pequenas criaturas provavelmente foram enterradas rapidamente, depois de morrerem. Encontramos dois grupos básicos de mamíferos. O primeiro é o de multituberculados, ou “multis”, como os paleontólogos os chamam. Eles formam um conjunto curioso de animais com longos incisivos frontais e molares com um complexo de saliências (tubérculos) nas coroas dentárias. Os multis do Cretáceo mongol oferecem, de longe, o melhor acúmulo de material esquelético para examinar as árvores genealógicas dessas criaturas. Multis podem ser considerados os roedores de sua época, embora de fato só sejam parentes distantes dos grupos de mamíferos modernos. Suas adaptações, similares a roedores, são um sinal de evolução convergente com os familiares ratos, camundongos e esquilos atuais. Multis prosperaram durante os primeiros milhões de anos do período Paleogeno, após a extinção dos dinossauros. Depois disso, seus números diminuíram e eles acabaram desaparecendo, substituídos por grupos mais recentes, de hábitos similares. O segundo grupo é o dos terianos (Theria), ancestrais tanto de marsupiais como de mamíferos placentários modernos (categoria que se estende de baleias a morcegos, orictéropos, ou porcos-da-terra, e humanos). Esses terianos primitivos consistem em meia dúzia de formas parecidas com musaranhos, cujas características oferecem pistas sobre as origens dos membros posteriores dessa comunidade. Mamíferos, lagartos e outros vertebrados são fundamentais para a reconstrução do antigo ambiente do Gobi e para traçar as principais linhas evolutivas. Ainda assim, dinossauros continuam dominando o centro do palco aos olhos do público. O Gobi do Cretáceo é inquestionavelmente uma das grandes reservas de caça de dinossauros do mundo. Os fósseis vão de esqueletos completos de tarbossauros (Tarbosaurus), um feroz carnívoro estreitamente aparentado com o tiranossauro norte-

DIETA VARIADA

DESDE ENTÃO, DESENTERRAMOS fragmentos de Estesia em outros sítios onde lagartos menores, diminutos mamíferos e cascas de ovos de dinossauros são comuns. Varanídeos modernos são notórios por seus apetites vorazes e diversificados. É provável que os Estesia se alimentassem de vertebrados menores, pequenos dinossauros e possivelmente também de ovos de dinossauros. Embora grande parte do Gobi do Cretáceo fosse seco, água deve ter sido abundante em pelo menos alguns pontos e períodos. Encontramos fósseis ocasionais de tartarugas, normalmente associadas a hábitats aquáticos. Alguns dos maiores tesouros do Gobi do Cretáceo passam facilmente despercebidos quando se examinam suas encostas e barrancos: os diminutos crânios e esqueletos de mamíferos. Esses fósseis representam importantes precursores da grande radiação mamífera que se seguiu à extinção dos dinossauros no final do período Mesozoico. A maior parte da informação científica sobre esses mamíferos primi-

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Ilustração por Alfred T. Kamajian


americano, a saurópodes gigantes, dinossauros bico-de-pato, anquilossauros blindados, dinossauros ceratopsianos com seus frisos cranianos, como protocerátopos, ou protocerátops (Protoceratops) e um magnífico conjunto de carnívoros menores. Oviráptores parecidos com aves e dromaeossauros como o velociráptor estão mais bem representados nas rochas estratificadas do Gobi que em qualquer outro lugar do mundo. Esses fósseis geraram controvérsias, mas também permitiram algumas conclusões definitivas. Artistas muitas vezes retratam velocirraptores caçando em bandos, como mabecos, ou cães-selvagens-africanos, por exemplo, mas não há qualquer prova definitiva de que eles tenham sido capazes de um comportamento cooperativo desse tipo. Mas o gosto desses predadores por protocerátopos é mais que uma questão de especulação. No final da década de 60, um grupo de cientistas poloneses e mongóis em Tugrugeen Shireh, uma escarpa de arenito branco a cerca de 80 km a oeste dos Penhascos Flamejantes, escavou um dos mais notáveis pares de espécimes na história da paleontologia. Dois esqueletos quase intactos, um de protocerátopo e outro de velociráptor, preservados, atracados em combate mortal. O velociráptor agarra a cabeça abaixada do protocerátops com seus membros dianteiros, enquanto desfecha um arqueado golpe fatal com os “ganchos” assassinos de suas garras traseiras contra os flancos de sua presa. Os “dinossauros combatentes”, que podem ter encontrado seu fim em uma das tempestades de areia do Gobi, são uma das grandes atrações do Museu de História Natural, em Ulan Bator.

do Jurássico que sepultou o Arqueoptérix deixou delicadas impressões de penas minúsculas. Como a maioria dos fósseis, Mononykus não estão preservados em rochas tão incomuns. Tanto ovos de dinossauros como de aves, encontrados em várias partes do Gobi, acrescentam outra dimensão ao registro fóssil. Alguns deles contêm diminutos esqueletos embrionários da ave Gobipteryx; outros preservam resquícios estruturais de um pequeno dinossauro embrionário. Em alguns lugares, vários ninhos podem estar agrupados em uma encosta, e inferimos que eles marcam o local de uma congregação de dinossauros, muito parecido com uma atual colônia de aves marinhas. No sítio de Tugrugeen, encontramos 12 esqueletos misturados de protocerátopos em uma área plana não muito maior que um putting green, um campo de prática para tacadas curtas de golfe. Uma equipe sino-canadense relatou os mesmos acúmulos de protocerátops em rochas do Cretáceo do norte da China. A amostra de protocerátops inclui várias fases de crescimento, oferecendo um vislumbre desse aspecto em grande parte desconhecido da biologia de dinossauros. Adultos normalmente medem dois metros de comprimento, mas, em 1994, nossa equipe recuperou alguns exemplares com menos de nove centímetros. Evidentemente, esses esqueletos são de animais muito jovens, possivelmente recém-nascidos. No entanto, à medida que fazemos descobertas desse tipo, o retrato que emerge da vida de dinossauros fica mais complexo. Como fósseis de protocerátops são os mais comuns na região, paleontólogos presumiram durante muito tempo que os muitos aglomerados de cascas e ovos encontrados nos Penhascos Flamejantes e em outros lugares pertenciam a eles. Mas as evidências para essa suposição têm sido insatisfatórias. Nenhum, das centenas de ovos de dinossauros coletados, contém embriões claramente identificáveis de protocerátops. Mesmo os pequenos crânios dessa espécie que descobrimos não podem ser positivamente associados a um determinado tipo de ovo em particular.

PISTAS EVOLUTIVAS

ESQUELETOS DE VELOCIRRAPTORES não são fascinantes apenas pela imagem que transmitem de monstros terrivelmente inteligentes, rápidos e letais. Eles oferecem pistas para a conexão evolutiva entre aves e dinossauros. Velocirraptores e seus parentes têm muitas características que lembram aves, inclusive a construção de sua caixa óssea craniana e a forma de seus membros e dedos alongados. Um esqueleto de velociráptor praticamente perfeito, escavado em Tugrugeen em 1991, tem uma caixa craniana quase intacta; em seus detalhes sua arquitetura é surpreendentemente semelhante à de aves modernas. Uma descoberta inesperada no sítio de Tugrugeen ampliou ainda mais o proposto vínculo entre dinossauros e aves. Encontramos um delicado esqueleto idêntico, exceto por seu tamanho menor, a outro localizado alguns anos antes por cientistas mongóis. O animal, do porte aproximado de um peru, tem uma estrutura graciosa com pernas longas. Além disso, a quilha, ou carena, do osso esterno é extremamente bem desenvolvida. Em aves modernas, os fortes músculos peitorais que acionam o movimento descendente do bater de asas ligam-se a essa quilha. Mas, em vez de asas com ossos longos, essa criatura tem membros dianteiros massivos e atarracados (como se fossem atrofiados), lembrando um pouco as patas dianteiras de uma toupeira. A extremidade do braço e da mão está equipada com uma única e enorme garra; o que explica o nome científico dado ao animal: Mononykus, que significa literalmente “uma garra”. O Mononykus é uma criatura bizarra. Embora não tenha asas, exibe características que sugerem um parentesco mais estreito com aves modernas que o famoso pássaro primitivo Arqueoptérix (Archaeopteryx). Uma análise detalhada de Mononykus favorece a opinião de que essa criatura era um parente de aves modernas que não voava. Esse argumento tem produzido críticas. Alguns especialistas alegam que o Mononykus nada mais é que um pequeno dinossauro, cujas características similares às de aves são produto de uma evolução convergente. Mas o peso das evidências não favorece convergência. A história das aves é marcada por espécies (como avestruzes) que perderam sua capacidade de voar. Nossos fósseis de Mononykus não mostram evidências de plumas; e é só por algum milagre de preservação que o fino calcário

OVOS CONTRAVERTIDOS

UM ACHADO DE UKHAA TOLGOd sugere que toda essa suposição pode ter sido equivocada. O exame de um conjunto de ovos contendo embriões de dinossauros encontrados em nosso primeiro dia ali revelou que um ovo oblongo, um tanto enrugado, geralmente atribuído a protocerátops, continha um esqueleto quase perfeito de oviráptor. Parece provável que muitos ovos encontrados em Ukhaa Tolgod (e possivelmente em outros lugares) pertençam a esses pequenos carnívoros, e não aos herbívoros protocerátops com seus bicos de papagaio. O “ninho” de Ukhaa Tolgod também continha dois diminutos crânios de troodontídeos (possivelmente byronossauros); fragmentos de casca de ovo de oviráptor foram associados aos seus ossos. Essa curiosa coincidência de ovos, um embrião oviráptor, e dois troodontídeos muito jovens ou recém-nascidos, tem várias explicações plausíveis. Talvez os troodontídeos estivessem aprimorando suas habilidades de saque em tenra idade ao atacarem ninhos de outros dinossauros. Alternativamente, o pai ou a mãe oviráptor poderia estar alimentando sua prole com os troodontídeos, ou eles poderiam ter sido intrusos; seus ovos colocados no ninho oviráptor, assim como o moderno cuco bota os seus em ninhos de outras espécies de aves. Essa descoberta implica uma irônica distorção da história nomenclatural. As expedições de Andrews deram o nome oviráptor a um esqueleto nos Penhascos Flamejantes porque ele foi encontrado sobre um conjunto de ovos. Os cientistas presumiram que os ovos pertencessem a protocerátopos comuns e que o oviráptor (literalmente, “caçador de ovos”) estava saqueando um ninho. Nossa descoberta demonstra que o oviráptor poderia não estar devorando ovos, mas incubando-os.

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MICHAEL J. NOVACEK (ESPÉCIMES PREPARADOS POR WILLIAM AMAREL) (fotografias); MICK ELLISON American Museum of Natural History (inserção à esquerda); ED HECK Museu Americano de História Natural (inserção à direita)

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Sítios de nidificação e esqueletos de geólogos não podem determinar a idade dinossauros, aves, mamíferos e outros verdesses estratos ao analisarem suas proportebrados compõem um retrato bastante detações de isótopos radioativos. Estimativas de FÓSSEIS DE DINOSSAUlhado da vida no Gobi durante o Cretáceo Superior. As idade de várias formações têm de se basear na simievidências fornecidas pelas expedições da Academia ROS E MAMÍFEROS do Gobi laridade dos vertebrados com os de faunas referende Ciências mongol e do Museu Americano foram co- são notavelmente bem preservaciais em outros continentes e em correlações com fósletadas e registradas ao longo de milhares de quilôme- dos. O troodonte (fotografia em seis de invertebrados de rochas marinhas do Cretátros de uma vasta faixa do deserto de Gobi, em vez de tamanho real do crânio e desenho, ceo na Ásia central e oriental. se concentrarem por um período prolongado em um à esquerda) era um pequeno carEm mais uma reviravolta, as rochas do Gobi pareúnico local ou em alguns poucos sítios. Esse método nívoro estreitamente aparentado cem não ter precisamente os estratos que atualmennão só aumenta a chance de encontrar novos sítios de a aves. O esqueleto de um multite atraem o maior interesse público: nenhuma seção fósseis, mas transmite uma noção mais robusta da se- tuberculado (à direita) está quaencontrada até agora inclui rochas do limite Cretáceoquência de rochas por meio da comparação de estra- se completamente intacto, embo- Paleogeno, quando os dinossauros foram extintos. tos que contêm fósseis em uma extensa área. Desse ra alguns de seus ossos mal Embora o Gobi seja ricamente dotado de faunas mamodo, podemos tentar determinar se conjuntos de ani- cheguem a meio milímetro de míferas primitivas do Paleogeno, parece existir um mais e sedimentos que representam um ambiente e in- espessura; o crânio mede aproxihiato de no mínimo vários milhões de anos entre essas tervalo de tempo em particular são amplamente difun- madamente 2,5 cm de comprie as faunas de dinossauros do Cretáceo Superior. Qualdidos ou confinados a afloramentos isolados. mento. Multituberculados, recoquer que tenha sido o cataclismo que aniquilou os diPaleontólogos em geral têm acreditado, por exem- nhecíveis pelas muitas nossauros, suas marcas na Ásia Central aparentemenplo, que a comunidade de fósseis na Formação Dja- “protuberâncias” (tubérculos, te foram apagadas. Se uma sequência sedimentar condokhta (um leito, ou estrato de brilhantes arenitos ver- ou cúspides) sobre suas coroas tínua pudesse ser localizada em algum lugar na vasmelhos na região central do Gobi batizado em home- dentárias, eram pequenos mamí- tidão do deserto, seria uma contribuição formidável nagem aos Penhascos Flamejantes) é ligeiramente mais feros cujos hábitos pressagiaram para o conhecimento sobre a extinção dos dinosantiga que a da Formação Barun Goyot (que recebeu os de roedores como esquilos e sauros e o posterior aparecimento de mamíferos. seu nome de um antigo assentamento no vale Nemegt), camundongos. A noção de encontrar sinais da extinção em massa no Nemegt ocidental. Mas nossos achados, tanto em no Gobi não é apenas doce ilusão. A navegação por saUkhaa Tolgod como em nossa ampla pesquisa, sugerem que as duas for- télite já fez uma enorme diferença na eficácia de nosso trabalho. Podemos mações preservam uma fauna contemporânea praticamente idêntica. En- plotar a localização precisa de sítios fósseis e as rotas que levam a eles. contramos uma extensão dessa comunidade nos magníficos leitos escar- Também temos usado imagens de satélites como ferramenta de prospeclates de Khermeen Tsav, um conjunto isolado de terras ermas no árido de- ção. Depois de retornarmos de Ukhaa Tolgod, em 1993, Evan Smith, então serto a oeste da região de Nemegt, que se assemelha acentuadamente às no Centro para Observação da Terra da Yale University, ampliou, ou desterras dos cânions do sul de Utah, nos Estados Unidos. tacou, bandas espectrais vermelhas e marrons em imagens computadoTambém encontramos fósseis da comunidade de Djadokhta, inclusi- rizadas de satélites ao comparar a equivalência de cores com base em fove os familiares dinossauros protocerátops, em uma área chamada Khu- tografias das rochas do local. O resultado é um mapa que mostra com pregene Tsavkhlant, perto da linha ferroviária oriental. Essas descobertas cisão a extensão e os contornos dos estratos que contêm fósseis. são particularmente importantes porque os arenitos ali não parecem reDurante a temporada de 1994, usamos essas imagens como um “guia sultar de ações de córregos ou rios, situação mais típica de sítios norte- de campo” e simplesmente nos dirigimos para a latitude e longitude de -americanos que do Gobi. Aos poucos, está ficando claro que a comuni- um sugestivo agrupamento de pixels vermelhos e alguns desses pontos dade animal, antes considerada limitada aos Penhascos Flamejantes, se revelaram produtivos. Agora temos um valioso atlas paleontológico pode ter ocupado diversos hábitats. em uma região onde detalhados mapas topográficos ou geológicos são A grande distância geográfica entre muitos sítios, no entanto, impede praticamente inexistentes. Também temos algo que Andrews não tinha comparações. Além disso, sequências rochosas do Gobi são inteiramen- para suas descobertas mais afortunadas: um mapa rodoviário bastante te sedimentares, sem nenhum vestígio de rochas vulcânicas. Portanto, eficiente do Gobi.


grupos de anquilossauros blindados imaturos, que podem muito bem ter sido gregĂĄrios, porque vĂĄrios esqueletos foram encontrados juntos. Alguns dos espĂŠcimes mais fantĂĄsticos sĂŁo de ovirraptores Citipati, que foram escavados (recuperados) sentados sobre seus ninhos. Batizadas em homenagem Ă divindade himalaia conhecida como “senhor da pira funerĂĄriaâ€?, ou “protetor dos cemitĂŠriosâ€?, essas criaturas sĂŁo os primeiros dinossauros nĂŁo avianos conhecidos por exibirem um comportamento aviano de chocar ovos. Exemplares adicionais do bizarro dinossauro Shuvuuia (antes chamado Mononykus) indicam que esse animal nĂŁo ĂŠ um parente prĂłximo de aves primitivas, mas ĂŠ ainda mais primitivo. Surpreendentemente, porĂŠm, com um espĂŠcime de Shuvuuia encontramos evidĂŞncias estruturais e bioquĂ­micas de penas. Mais de 600 crânios de mamĂ­feros, muitos ainda com seus esqueletos, foram recuperados. Essa rica coleção ĂŠ essencial para entender as origens de grupos de mamĂ­feros modernos. Digna de nota ĂŠ uma criatura que batizamos Ukhaatherium, que se parece com as espĂŠcies semelhantes a musaranhos de mamĂ­feros placentĂĄrios modernos, mas que tambĂŠm retĂŠm caracterĂ­sticas primitivas, como os ossos epipĂşbicos, parecidos com “talasâ€?, que se estendem da pelve. O sĂ­tio tambĂŠm produziu alguns dos melhores esqueletos de deltaterĂ­deos (Deltatheridium), um parente primitivo dos marsupiais, grupo que inclui gambĂĄs e cangurus. Formas como as dos deltaterĂ­deos e espĂŠcies ainda mais primitivas do CretĂĄceo Inferior do norte da China sugerem que importantes eventos de ramiďŹ cação, que conduziram Ă linhagem marsupial, ocorreram no Mesozoico da Ă sia Central. Entre 2002 e 2009 concentramos nossos esforços no Gobi oriental, perto de nossas operaçþes em campo de 1991. Estudos adicionais em Khugene Tsavkhlant, onde havĂ­amos relatado anteriormente os ubĂ­quos protocerĂĄtops, indicaram que essa forma ĂŠ um parente muito mais primitivo. TambĂŠm encontramos resquĂ­cios interessantes de mamĂ­feros braquidontes, com dentes molares com pequeno desenvolvimento da coroa. No momento, acreditamos que esse grupo seja uma linhagem distinta que se ramiďŹ cou pouco antes da radiação dos modernos mamĂ­feros placentĂĄrios. Em anos mais recentes, nos aventuramos, inclusive, atĂŠ as ĂĄreas do extremo oeste da MongĂłlia, perto da fronteira com a China, para explorar leitos Ăłsseos jurĂĄssicos muito mais antigos. O progresso das pesquisas tem sido auxiliado pelos equipamentos tecnolĂłgicos da exploração de campo do sĂŠculo 21. Unidades de Sistemas de Posicionamento Global (GPS), telefones e imageamento por satĂŠlites, computadores portĂĄteis e câmeras digitais agora sĂŁo equipamentos padrĂŁo. Temos atĂŠ um refrigerador solar para tornar a vida no acampamento um pouco mais fĂĄcil. Sem dĂşvida, o deserto de Gobi continuarĂĄ produzindo achados espetaculares.

Apesar de nossas novas tecnologias e dÊcadas de experiência com a evolução de vertebrados, a exploração do Gobi ainda Ê praticamente tão difícil quanto à Êpoca de Andrews, hå quase um sÊculo. Os Penhascos Flamejantes que encontramos naquele alegre primeiro dia em 1990 eram exatamente como Andrews os tinha descrito: imponentes, de um vermelho brilhante, e repletos de fósseis. As tempestades de areia que castigaram as expediçþes na dÊcada de 20 retornaram para devastar nossos frågeis acampamentos. Quando essas tempestades se acalmam Ê possível observar, do topo dos penhascos, as sulcadas montanhas cor de malva de Gurvan Saichan. AlÊm delas, repousam centenas de quilômetros quadrados de terras ermas e pedregosas, ricas em fósseis, cuja existência Andrews só poderia ter imaginado. EP�LOGO

Por Mark Norell e Michael J. Novacek MUITAS DESCOBERTAS foram feitas desde que escrevemos nosso artigo de 1994 sobre a caça aos fĂłsseis no Gobi. Nossa expedição, no verĂŁo boreal de 2013, marcou o 24Âş ano consecutivo de viagens conjuntas pela Academia de CiĂŞncias da MongĂłlia e o American Museum of Natural History. Durante as Ăşltimas duas dĂŠcadas, a importante ĂĄrea de Ukhaa continuou produzindo muitos fĂłsseis novos e empolgantes, inclusive os descobertos em rochas mais antigas, em leitos Ăłsseos do CretĂĄceo Inferior, na regiĂŁo centro-norte do Gobi e, entre 2002 e 2009, em sequĂŞncias sedimentares do CretĂĄceo nas ĂĄreas longĂ­nquas, pouco exploradas, do Gobi oriental, perto da Ferrovia Transiberiana. Esse esforço cumulativo revelou uma imagem mais abrangente e grĂĄďŹ ca da vida e morte na Ă sia Central hĂĄ entre 100 milhĂľes e 75 milhĂľes de anos. Talvez, Ukhaa Tolgod continue a descoberta mais signiďŹ cativa. Trata-se de uma pequena e rasa ĂĄrea de drenagem, de cerca de 4 km², delimitada por uma linha serpenteante de ribanceiras baixas e ĂĄreas adjacentes planas, de onde despontam as rochas vermelhas da Formação Djadokhta. Trabalhos geolĂłgicos levaram Ă reinterpretação da antiga noção amplamente aceita de que animais nessa regiĂŁo foram sepultados por enormes tempestades de areia. Com base em estudos detalhados de sedimentos nossos geĂłlogos, David Loope e Lowell Dingus, observaram que a maioria dos fĂłsseis em Ukhaa Tolgod estĂĄ limitada a leitos Ăłsseos sem estrutura, o que sugere que as dunas eram estacionĂĄrias e possivelmente coroadas com plantas cujas raĂ­zes perturbaram as camadas de areia abaixo da superfĂ­cie. Esse processo de bioturbação [a reestruturação de solos e sedimentos pela ação de plantas ou animais] foi auxiliado pelas escavaçþes de pequenos invertebrados subterrâneos, como vermes e insetos, assim como por mamĂ­feros e lagartos escavadores maiores. Loope e Dingus tambĂŠm observaram que leitos fĂłsseis de Ukhaa contĂŞm ďŹ letes de seixos grandes demais para terem sido levados pelo vento. AlĂŠm disso, a areia tem um alto teor de argila, e as dunas mesozoicas estĂŁo intercaladas com camadas de caliche, uma rocha sedimentar resistente Ă ĂĄgua. Por essa razĂŁo, as dunas nĂŁo drenavam durante fortes tempestades de chuva; em vez disso, elas agiam como gigantescas esponjas de areia. Em algum momento elas ďŹ caram supersaturadas e desmoronaram em grandes uxos de detritos que soterraram (cobriram) animais sedentĂĄrios, como dinossauros nidiďŹ cantes, junto com animais mais ativos, respondendo por essa preservação fenomenal de fĂłsseis. Muitos dinossauros, lagartos e mamĂ­feros foram encontrados em Ukhaa Tolgod. A maioria ĂŠ pequena, mas hĂĄ indĂ­cios (como dentes descartados e pegadas) de que dinossauros muito grandes pelo menos passaram por ali. Algumas dessas criaturas mais comuns em Ukhaa, como anquilossauros, tinham 4,5 m de comprimento, e ovirĂĄptores adultos atingiam respeitĂĄveis trĂŞs metros. Os dinossauros notĂĄveis tambĂŠm incluem

Michael J. Novacek, Mark Norell, Malcolm C. McKenna e James Clark exploraram juntos sĂ­tios de fĂłsseis no deserto de Gobi sob auspĂ­cios do American Museum of Natural History e da Academia de CiĂŞncias da MongĂłlia. Novacek ĂŠ o vice-presidente sĂŞnior para ciĂŞncia do museu, Norell ĂŠ chefe da divisĂŁo de paleontologia, e McKenna, que foi curador emĂŠrito de paleontologia de vertebrados ali e curador adjunto do Museu da University of Colorado, faleceu em 2008. Clark, que trabalhou durante trĂŞs anos no American Museum of Natural History, atualmente ĂŠ professor Ronald Weintraub de biologia na George Washington University.

PA R A C O N H E C E R M A I S

Â&#x;´šüDÚà ü šÂ† ï›y ¨DÂŽÂ&#x;´Â‘ ¨Â&#x;‡ ĂĽĂŽ Michael Novacek. Anchor Books, 1996. A pocketful of fossils. Michael J. Novacek em Natural History, vol. 103, nÂş 4, pĂĄgs. 40–43; abril de 1994. New limb on the avian family tree. Mark Norell, Luis Chiappe e James Clark em Natural History, vol. 102, nÂş 9, pĂĄgs. 38–43; setembro de 1993. The new conquest of central Asia. Roy Chapman Andrews. American Museum of Natural History, 1932.

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ARMADILHA FATAL DE DINOSSAUROS D I N

Em viagem ao deserto de Gobi, equipe de caçadores de fósseis escava um cenário de morte que revela novos indícios sobre como viviam os dinossauros Por Paul C. Sereno

O S S A U R O S 2

“M

AIS UM ESQUELETO COM UM CRÂNIO PERFEITO!”

Gritei para a equipe, cujos membros estavam todos de cabeça para baixo, observando o leito da escavação, que abrigava outros esqueletos. Em todos os meus anos como paleontólogo, nunca havia visto nada como aquilo. Nossa equipe de caçadores de fósseis estava prospectando, havia apenas 15 dias, no deserto de Gobi da Mongólia Interior, mas já tínhamos descoberto um verdadeiro cemitério de fósseis intactos. Ao longo das poucas semanas seguintes usaríamos cinzéis, picaretas e até máquinas de terraplenagem/escavação no sítio e desenterraríamos mais de uma dezena de exemplares de uma espécie de dinossauro semelhante à avestruz, que se tornaria uma das mais bem conhecidas do mundo. Mas a história logo ficaria muito mais rica que um mero levantamento geral de ossos fossilizados, por mais intactos e bem preservados que fossem, pudesse sugerir. Esse grupo de espécimes revelaria como esses dinossauros interagiam entre si, como sua sociedade era estruturada, e quais haviam sido as circunstâncias que cercaram suas terríveis e precoces mortes. Estávamos apenas começando a descobrir as primeiras pistas desse misterioso assassinato de 90 milhões de anos. Eu pouco desconfiava de que, o que estávamos prestes a descobrir, acabaria tornando este o sítio mais rico de uma única espécie de dinossauro que já encontrei. A SEDUÇÃO DO GOBI

AMERICANOS INEVITAVELMENTE associam descobertas de dinossauros no deserto de Gobi a Roy Chapman Andrews, o ousado e arrogante líder expedicionário do American Museum of Natural History de Nova York. Na década de 20, Andrews se aventurou nas regiões desérticas da Mongólia Exterior, retornando de lá com grande alarde com os primeiros ovos conhecidos de dinossauros, e fósseis do incrível velociráptor de garras falciformes. Mas Andrews não era o único aventureiro a vasculhar o deserto. Mais ou menos à mesma época, o explorador sueco Sven

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Ilustração por James Gurney


CONDENADOS A MORRER: dinossauros Sinornithomimus juvenis atolados em lama 90 milhĂľes de anos atrĂĄs.


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ACELERE A MÁQUINA: Sem essa escavadeira, emprestada de uma base militar chinesa próxima, a escavação teria levado meses, não semanas.

Montamos nosso primeiro acampamento de base não muito longe do pequeno posto avançado de Suhongtu. O vento do Gobi açoitava nossas barracas com armações de ferro do exército chinês, pulverizando uma camada de sedimentos e poeira sobre tudo o que havia dentro delas. Os cabelos logo ficaram duros e espetados como se tivéssemos passado gel neles. Banhos estavam fora de cogitação em vista da escassez de água e do frio intenso. Saíamos todos os dias para prospectar fósseis. Os membros da equipe caminhavam quilômetros sobre o terreno irregular, procurando por coisas interessantes que poderiam estar despontando das rochas. Na caça a fósseis é bom ter sorte, mas é melhor ainda ser abençoado com o “nariz”, o talento natural para “farejá-los”. O paleontólogo Dave Varricchio, da Montana State University, foi o primeiro a fazer uma grande descoberta: uma pegada com três dedos na parte inferior de uma saliência rochosa. Aquela marca, notável por seus curtos dedos laterais, era pequena para um dinossauro, mas maior que a mão de Varricchio. Deduzimos que ela provavelmente tinha sido deixada por um ornitomimídeo, ou “imitador de ave” grande. Em breve, não teríamos nenhuma dúvida sobre o que havia deixado aquela pegada impressa. De acordo com um mapa geológico chinês impresso uns 25 antes, a área ao redor do acampamento datava do Cretáceo Superior, há cerca de 90 milhões de anos. Fora da pegada, nossos achados ficaram limitados a ossos de pequenos dinossauros iguais a outros encontrados anteriormente no Gobi; diante disso nos transferimos para um amplo vale próximo, onde havia maior abundância de fósseis. Não demorou e os membros da equipe estavam cutucando vários achados, inclusive o que provavelmente era o crânio de um “bico-de-pato” primitivo que se projetava para fora da superfície. Outro fóssil parecia pertencer a um pequeno saurópode, quadrúpedes herbívoros que frequentemente atingem tamanhos colossais. O lugar mais interessante era um grande paredão vertical de camadas alternadas de rochas vermelhas e azuis, salpicado de ossos de pernas de vários dinossauros relativamente pequenos. Aquele não era um pare-

OS PRIMEIROS INDÍCIOS

EM MEADOS DE ABRIL DE 2001 nossa equipe de 16 pessoas, formada por caçadores de fósseis americanos, franceses, chineses e mongóis, havia se reunido em Hohhot. Nos separamos em grupos por quatro veículos de campo e um caminhão carregado com toneladas de suprimentos para a viagem de 700 km ao longo das margens do rio Huang He (rio Amarelo) e, de lá, rumo ao deserto.

EM SÍNTESE Uma expedição no deserto de Gobi da Mongólia Interior encontra evidências de um cemitério de 90 milhões de anos, contendo, inclusive, as sobras de mais de uma

dezena de esqueletos fossilizados de dinossauros parecidos com avestruzes. Evidências no sítio apontam para uma conclusão rara e singular: os fósseis não

foram depositados no local ao longo de milênios. Em vez disso, todos os dinossauros morreram ali, ao mesmo tempo. Ao estudar essa “vala comum”, pesquisadores

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descobriram detalhes sobre a estrutura da sociedade de dinossauros, as formas como essas criaturas interagiam, e a divisão de trabalho entre animais adultos e juvenis.

MIKE HETTWER

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Hedin recuperava fósseis inéditos na metade austral do Gobi, na Mongólia Interior, região que agora integra a China. Nesse intervalo, cientistas que prospectaram locais próximos ao sítio de Hedin desenterraram ninhos de ovos de dinossauros com pais ainda chocando e ráptores com garras falciformes que rivalizam as melhores descobertas feitas na Mongólia Exterior. Mas tanto a atenção de acadêmicos como do público em geral favoreciam a Mongólia Exterior; consequentemente dezenas de expedições internacionais em busca de fósseis têm prospectado a área desde sua reabertura ao Ocidente, há mais de uma década. Comparativamente, a Mongólia Interior permaneceu relativamente intocada. Eu era um estudante de graduação em geologia, de 27 anos, no meio de um grande giro ao redor do mundo, quando visitei a região autônoma da Mongólia Interior pela primeira vez, em 1984, primeiro ano em que a China permitiu que turistas estrangeiros viajassem pelo país sem um acompanhante designado. Após chegar à capital, Hohhot, a bordo de uma locomotiva a vapor movida a carvão, visitei o museu no centro do que então era uma cidade plana, com edifícios de apenas um andar. Além de seus limites urbanos, rochas da época dos dinossauros se estendiam por centenas de quilômetros rumo ao oeste, flanqueando a fabulosa Rota da Seda, que liga as estepes mongóis ao coração da Ásia central. Quando voltei a Pequim, tive um encontro com Zhao Xijin, professor no Instituto de Paleontologia e Paleantropologia de Vertebrados e um dos mais competentes caçadores de fósseis da China que, àquela época, já havia descoberto mais de uma dezena de novas espécies. Discutimos a possibilidade de explorar a área juntos em algum momento no futuro. Aproximadamente 16 anos depois, circunstâncias e timing finalmente coincidiram. Em 2000, voltei a Hohhot com Zhao para cuidar da logística de uma grande escavação na área. Descemos do trem e, ainda na plataforma, fomos cumprimentados por Tan Lin, geólogo e diretor do Instituto Long Hao de Geologia e Paleontologia de Hohhot. Aparentando ser muito mais jovem que seus 63 anos, Tan explicou animadamente os detalhes referentes a veículos e suprimentos necessários para uma expedição ao Gobi na primavera seguinte. Felizmente, não teríamos problemas para encontrar veículos expedicionários adequados em Hohhot. A cidade de um andar que eu havia conhecido havia sido substituída por uma agitada metrópole com amplos bulevares margeados por luminosos letreiros “pisca-pisca” de neon. Tan sugeriu que revisitássemos sítios levados à fama pelas descobertas de Hedin e expedições posteriores. Certamente haveria mais fósseis ali para serem desenterrados. Mas eu tinha outras ideias. “Qualquer lugar para onde ninguém foi” era meu refrão. No fim, a atração do desconhecido venceu e decidimos partir pela Rota da Seda na primavera, rumo aos remotos confins ocidentais do Gobi.


D I S P O S I ÇÃO D E F Ó S S E I S

Restos dos Mortos À medida que começaram a escavar os ossos os pesquisadores tomaram cuidadosamente notas de suas orientações. Este mapa, de ¿ö l¸ä ¿ð xäÔøx§xî¸äj ­¸äîßD Ôøx ¸ä l ³¸ääDø߸ä DǸ³îD­ ­D¥¸ß îD riamente para a direção sudeste. O grupo provavelmente viajava x­ UD³l¸ ÔøD³l¸ `¸ø DDl¸ ³D §D­DÍ 7­D xäîßD³ D Døäz³` D lx ossos pélvicos implica que as criaturas sofreram o ataque de ani­D ä `Dß³ `x ߸ä Ǹø`¸ lxǸ ä lx `Dßx­ Çßxä¸ä ³ø­D Dß­Dl § DÍ

Mongólia Interior Sítio de escavação D

Norte

Pequim

CHINA

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1 metro

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DE “MUD-TRAPPED HERD CAPTURES EVIDENCE OF DISTINCTIVE DINOSAUR SOCIALITY”, POR DAVID J. VARRICCHIO ET AL. EM ACTA PALEONTOLOGICA POLONICA, VOL. 53, Nº 4; 2008 (mapa dos ossos)

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dão natural. Esculpido por cinzel e picareta, tratava-se da parede traseira de uma escavação de fósseis. Alguém já havia estado ali antes de nós. Tan explicou que aquele sítio havia sido descoberto originalmente em 1978, durante um levantamento de mapeamento realizado por um geólogo e ex-colega de classe dele. “Olhe aqui”, disse ele, apontando para um pequeno símbolo de osso no mapa geológico. Utilizando aquela carta, Tan havia conduzido uma expedição conjunta sino-japonesa-mongol até aquele local quatro anos antes, em 1997. Como tempo e materiais estavam se esgotando, a equipe recolhera diversos esqueletos, mas encerrara suas atividades antes de concluir a escavação toda. Em minha mochila havia um artigo de 1999 sobre um novo ornitomimídeo do Gobi escrito por um jovem paleontólogo japonês, Yoshitsugu Kobayashi, que à época era aluno de graduação na Southern Methodist University. Agora eu me dava conta de que seu trabalho estava baseado em achados da escavação que estava à minha frente. Kobayashi e seus colegas haviam notado a presença de muitos fósseis assim como seu excelente estado de preservação; alguns até tinham gastrólitos ou pedras estomacais, seixos que antigos saurópodes (e atuais aligatores, focas e aves) ingerem para ajudar a triturar alimentos e auxiliar na digestão. Em 2003, Kobayashi chamaria esse dinossauro Sinornithomimus dongi. No entanto, persistiam mistérios: por que havia tantos fósseis preservados em uma área relativamente pequena? Todos teriam morrido ao mesmo tempo ou ao longo de milênios? E, se todos pereceram juntos, como isso ocorreu? A jazida estava localizada à base de uma pequena colina pedregosa em uma região desolada, açoitada pelos ventos do Gobi. O horizonte distante tinha se tingido de uma cor cinza-amarronzada, um aviso antecipado da aproximação de uma tempestade de areia/poeira. No deserto, é melhor avaliar esses alertas em minutos, não horas. Corremos para os veículos de campo na esperança de voltarmos rapidamente ao acampa-

Mapa por XNR Productions (China)

mento enquanto ainda podíamos navegar visualmente, seguindo as marcas que havíamos deixado no caminho de ida. Em questão de minutos o vento começou a arremessar nuvens de areia, lixando a tinta nas partes inferiores de nossos jipes. O pó penetrante, que literalmente entope os poros, e o frio de enregelar os ossos no final do dia foram plenamente compensados por nosso cozinheiro, que servia regularmente jantares de sete pratos, sempre sete pratos diferentes da noite anterior. Felizmente, o acampamento não ficava muito longe de um posto avançado do exército, que nos dava acesso a vegetais frescos. Para o meu paladar, a culinária chinesa é a melhor do mundo. Igualmente renomada é a cerveja, que bebíamos aos litros naquela temporada em comemoração por nossa sorte de desenterrar achados dignos de nota. Retornamos àquele vale diariamente nas semanas seguintes; muitos de nós determinados a desvendar o mistério do cemitério de ornitomimídeos. Um esqueleto levava a outro, à medida que nossas ferramentas avançavam e empurravam o paredão mais para dentro da colina. Outros membros da equipe estudaram e colheram amostras da face do penhasco, compilando um registro detalhado das rochas que continham aquele registro fóssil. Quando diversos exemplares de uma única espécie são preservados em uma área restrita, um paleontólogo deve questionar se aquilo é um agrupamento natural, ou seja, se se tratava de um grupo ou de um bando aparentado (como uma família) que havia se reunido ali, o que poderia acontecer em qualquer dado dia, só para ser surpreendido por uma morte fulminante? A maioria dos depósitos de ossos acumulados de uma única espécie não é tão interessante. Em vez disso, o conjunto é composto de indivíduos não aparentados que, ao longo de algum período de tempo desconhecido, morreram perto de uma cacimba, ou fonte de água, ou foram arrastados para o local por uma inundação.

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Em nosso dia de folga, viajamos até o posto avançado do exército chinês, onde os recrutas nos desafiaram para um jogo de basquete. Os professores Tan e Zhao ficaram assistindo à margem, observando o impressionante equipamento pesado estacionado ali por perto. Graças ao contato amistoso com os soldados durante o jogo de basquete, ficamos à vontade para falar de nosso dilema com os oficiais da base naquela noite, estimulados por rodadas entorpecentes de baijiu, uma aguardente eufemisticamente traduzida por “vinho branco”, embora seja servida apenas em “doses cowboy”, aquele pequeno trago áspero. Poucos dias depois, uma gigantesca escavadeira materializou-se no sítio de escavações. Conforme a lâmina raspava o topo da colina, apenas alguns centímetros de terra/pedra de cada vez, seguíamos atrás em busca de fósseis acima do cemitério. “Pare!”, gritou Jeff Wilson, debruçado sobre um bloco de pedra revirado pela gigantesca lâmina. Paleontólogo na University of Michigan, Wilson tinha descoberto alguns fragmentos de mandíbulas e dentes. Reviramos os montes de terra levantados de cada lado da lâmina em sua última passagem até encontrarmos todas as peças que pareciam nos faltar. Sepultado naquela massa compactada, a menos de dois metros acima do cemitério de dinossauros, havia um crânio de 45 centímetros de um predador desconhecido. No quarto dia, a escavadeira havia removido toda a colina, uma lâmina pouco acima do cemitério. Retomamos a escavação até desenterrarmos o último de 13 espécimes. Esqueletos normalmente “desmoronam” em uma superfície plana para serem sepultados sob apenas alguns centímetros de sedimentos, mas, à medida que cinzelávamos o lamito síltico-argiloso da principal linha limítrofe (horizonte) que continha os esqueletos, as patas traseiras de vários dinossauros pareciam ter mergulhado profundamente na lama. Alguns dos esqueletos de outro modo perfeitamente preservados não tinham ossos pélvicos. Esses dinossauros pareciam ter ficado presos, atolados na lama; só para serem vitimados mais uma vez por antigas criaturas carniceiras. Era precisamente o que esperaríamos ver se um bando de dinossauros em movimento ficasse atolado, subitamente, na mesma margem lamacenta. A hipótese de Lyon, formulada com base no pânico que ela deve ter “sentido” nos ossos, emergia como o mais provável cenário fúnebre.

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CENÁRIO DE MORTE

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UMA COLEÇÃO DE FÓSSEIS como essa era algo surpreendente; era (e é até hoje) a única amostragem conhecida de uma espécie de dinossauros sepultada “à la Pompeia”. À medida que a operação de escavação prosseguia, passamos muitas horas refletindo sobre possíveis cenários de morte. Talvez esses dinossauros tivessem sido vitimados por um vulcão próximo ou uma inundação súbita? “Talvez simplesmente tenham ficado presos na lama?”, sugeriu Gabrielle Lyon, membro da equipe, enquanto delineava os dedos do pé cerrados de um dinossauro sepultado com uma “agulha de joalheiro”, uma espécie de lima pontuda ou achatada. Para mim, a ideia de uma armadilha de lama parecia um tanto exagerada, ou improvável. Embora fosse uma escavadora experiente, Lyon era uma educadora e não uma paleontóloga ou geóloga. Animais modernos, como bovinos, às vezes morrem perto de açudes ou cacimbas; os pesados animais ficam atolados até seus joelhos na lama e acabam morrendo de sede, exposição ao sol e fome. Mas é extremamente raro que manadas inteiras pereçam dessa maneira (embora isso ocorra ocasionalmente com cavalos selvagens, salientou Varricchio, nosso perito em tafonomia, a ciência da morte e do processo de morrer). À medida que escavávamos, mais pistas se acumulavam. Dave notou padrões em forma de V na face da falésia, perto da linha do horizonte (limítrofe) que preservava os esqueletos. As camadas de lama, ou lamito, estavam deformadas para baixo, como se tivessem sido puxadas pela passagem de um objeto fino e afiado como a garra de um dedo do pé de um dinossauro. Isso seria evidência de uma dança mortal na lama? Infelizmente, não poderíamos continuar escavando por muito mais tempo. Nossa jazida de ornitomimídeos estava se aprofundando em um ângulo descendente para o interior da colina, dificultando a extração de ossos a cada dia. Uma escavação completa do sítio, com as ferramentas que tínhamos à disposição, levaria meses, senão anos. Felizmente, logo ficaríamos sabendo que na China tudo é possível.

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Se empacotássemos rapidamente os esqueletos remanescentes, a parte mais intrigante da história — como todos aqueles dinossauros morreram — seria perdida para sempre. Pistas sobre a causa, as circunstâncias e o timing da morte não estão apenas nos ossos, mas também na posição dos esqueletos, na presença de marcas de dentes ou ossos trincados, fragmentados, e no tipo de sedimento que é depositado antes, durante e após a morte. Precisamos analisar uma escavação dessas como uma cena de crime, e não como a arca de troféus de um paleontólogo. Logo passamos a acreditar que todos esses animais haviam encontrado seu fim ao mesmo tempo. Os esqueletos não estavam distribuídos aleatoriamente; todos os ossos pareciam apontar na mesma direção. Isso poderia ser resultado de uma inundação súbita ou de um rio que carregou vários conjuntos de ossos para o mesmo lugar, mas não conseguimos encontrar nenhuma evidência de que os ossos tivessem sido movidos dessa maneira. Todos os esqueletos estavam intactos. Além disso, as finas camadas sobrepostas de rochas vermelhas e azuladas da face do penhasco implicavam que a área costumava ser formada por lama e sedimentos finamente granulados. Encontramos lugares nas fendas cheias de lama infiltrada que sugeriram que aquela região havia passado por períodos úmidos e secos. Diminutas conchas achatadas de criaturas de água doce chamadas conchostráceos cobriam alguns dos esqueletos, vestígios de um antigo lago em expansão. Perto dos esqueletos, o lamito, uma rocha sedimentar formada pela solidificação de silte e argila, era quase puro, sem mostrar sinais de buracos de minhocas (ou vermes) ou de raízes de um solo que havia sustentado vida vegetal. Em síntese, as rochas ao redor dos esqueletos sugeriam o movimento sazonal de cheias e vazantes de um lago antigo, um oásis em uma área de outro modo árida.


CENAS DE UMA ESCAVAÇÃO (a partir da esquerda): o autor empunha uma picareta contra a dura rocha do Gobi; um braço de Sinornitomimus é encontrado incrustado em rocha; a equipe se refugia de uma tempestade de areia.

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ção e defesa de ninhos, chocagem de ovos e alimentação de recém-nascidos. Adolescentes, por outro lado, parecem ter perambulado por aí, se defendendo e sustentando por conta própria à medida que vagavam. Esse grupo em particular havia sofrido uma morte prematura. Para uma manada em movimento, a lodacenta armadilha teria tido um aspecto muito similar ao de outras áreas ao longo da margem do lago — lama, ou barro, talvez registre uma pegada, em vez de engolir um pé. Um par de esqueletos centrais encontrados na jazida, porém captura de forma extraordinariamente dramática a tragédia ocorrida há 90 milhões de anos. Esses dois animais estavam irremediavelmente atolados; seus corpos haviam tombado de lado, um em cima do outro, sobre a superfície, seus pés profundamente ancorados na lama. Seus esqueletos estavam excepcionalmente completos exceto por seus ossos pélvicos, que devem ter sido arrancados por animais carniceiros famintos. Um osso de quadril isolado ajudou a confirmar esse cenário; a porção central de sua “lâmina”, a parte mais larga, esmagada sob o peso do dedão de um atacante. Então o nível da água subiu, pelo menos temporariamente, selando o cemitério e sua trágica história de infortúnio suavemente em lama.

De volta à University of Chicago, membros de minha equipe de pesquisa limparam os esqueletos um a um sob o microscópio, revelando um notável grau de preservação. Os gastrólitos (pedras estomacais) não só estavam preservados, como pareciam reter a forma das moelas onde haviam pulverizado plantas há milênios. Também descobrimos uma fina película de carbono negro nos dois lados da moela. Esse material eram os restos fossilizados da última refeição dos dinossauros. Evidências adicionais ajudaram a confirmar um de nossos palpites sobre a escavação. No deserto havíamos notado que todos os esqueletos na jazida eram imaturos. A melhor maneira de estimar a idade de um dinossauro em um sítio em campo é examinar os ossos individuais que constituem a coluna vertebral (espinha dorsal). Cada vértebra é formada por um osso em forma de carretel (o centrum, a porção central de uma vértebra) abaixo e uma estrutura curva (o arco neural) acima. Se essas duas partes estão completamente fundidas, a espinha não está se desenvolvendo mais, e o dinossauro é um animal maduro, adulto. Todos os esqueletos coletados no sítio de Suhongtu tinham vértebras preservadas como duas partes distintas. Mas esse aspecto só fornecia uma estimativa grosseira da idade dos animais. De volta a Chicago fatiamos os ossos em seções, ou lâminas, muito finas para contar seus anéis de crescimento anual, exatamente como se faria com uma árvore. Descobrimos que os esqueletos tinham idades que variavam de um a sete anos; a maioria entre um e dois anos. Esse padrão nos revelou duas coisas. Primeiro, ele indicava que os Sinornitomimus deveriam levar cerca de dez anos para chegar à maturidade. E, segundo, percebemos que o grupo de Suhongtu era um bando de adolescentes; dinossauros juvenis perambulando em grupo. Com esse insight conseguimos desvendar a história completa dos dinossauros, não só o modo como morreram, mas também como viveram. Paleontólogos têm especulado sobre os hábitos sociais de dinossauros juvenis, mas, até hoje, o bando de Suhongtu fornece a melhor evidência sobre isso. Como o processo de desenvolvimento até a idade madura levava cerca de uma década em Sinornitomimus, animais jovens tinham muitas oportunidades de se congregar. Adultos estavam envolvidos em diversas atividades durante a época de reprodução — cortejo, constru-

Paul C. Sereno, µD r«§Üþ « «d ÜÍDOD D §D 7§ èrÍÒ Üë «{ ZD «» r «æ rêµrf ]ĂrÒ µDÍD cinco continentes e descobriu mais de duas dezenas de novas espécies de dinossauros. 5D¡O÷¡ ÷ Z«{æ§fDf«Í fD 0Í« rZÜ êµ «ÍDÜ «§d «Í D§ îD]õ« fr f èæ D]õ« Z r§Üû ZD µDÍD jovens moradores urbanos.

PA R A C O N H E C E R M A I S

Mud-trapped herd captures evidence of distinctive dinosaur sociality. D. J. Varricchio, P. C. Sereno, X. Zhao, L. Tan, J. A. Wilson e G. H. Lyon em Acta Palaeontologica Polonica, vol. 53, nº 4, págs. 567–578; 2008. China 2001 ÊyāÈym cT¹ ` y DmD ȹà 0Dù¨ 3yày´¹j 5D´ " ´ y B D¹ > ¦ ´Ëi ïïÈiëë paulsereno.uchicago.edu/expeditions/china_2001 Herbivorous diet in an ornithomimid dinosaur. Y. Kobayashi, J. C. Lu, Z. M. Dong, R. Barsbold, Y. Azuma e Y. Tomida em Nature, vol. 402, págs. 480–481; 2 de dezembro de 1999.

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O S S A U R O S 2


B I O LO G I A

SANGUE DE PEDRA

Cada vez mais, evidências de ossos de dinossauros mostram que, ao contrário do senso comum, materiais orgânicos podem, às vezes, sobreviver em fósseis por milhões de anos Por Mary H. Schweitzer


MONTAGEM MOSTRA uma réplica do Tyrannosaurus rex, conhecido como MOR555, um dos vários dinossauros cujos ossos produziram matéria orgânica.

EM SÍNTESE A visão convencional da fossilização defende que ao longo do tempo todos os compostos orgânicos desaparecem, restando apenas restos mineralizados inertes. Mas evidências crescentes indicam que, em certas condições, substâncias orgânicas, como restos de sangue, células sanguíneas e garras podem persistir em fósseis por milhões de anos. Essas substâncias fósseis podem ajudar a explicar como dinossauros se adaptaram às variações das condições ambientais e com que rapidez evoluíram.

Fotografia por David Liittschwager

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P R O C E S S O D E F O S S I L I Z AÇÃO

A História Convencional, com Detalhe Adicional

D

Morte

No quadro clássico do processo de fossilização de animais, pele, ­ùä`ø§¸äj x³îßD³ Dä x îx³lÆxä äx lx`¸­ÇÆx­j ßxäîD³l¸ DÇx³Dä ¸ä ossos. Células, proteínas e vasos sanguíneos dos ossos também se lx`¸­ÇÆx­j x ­ ³xßD ä l äÇxßä¸ä ³ §îßD­ äx ³¸ä xäÇDc¸ä ßx­D³xä `x³îxäÍ %¸ ³D§ l¸ Ç߸`xää¸ ¸ß­D äx ø­ `¸­Ç¸äî¸ ä¹§ l¸ `¸­ ¸ä ­ ³xßD ä l¸ ¸ää¸ ¸ß ³D§Í $Dä `y§ø§Däj Ç߸îx ³Dä x tecidos moles encontrados em vários ossos primitivos mostram que a fossilização nem sempre ocorre dessa forma. Cientistas não entendem exatamente a razão pela qual, às vezes, substâncias orgânicas persistem por dezenas de ­ § Æxä lx D³¸äÍ $Dä x§xä lx³î `DßD­ Dî¸ßxä Édestacados em vermelho) que podem ajudar na preservação e recuperação desses materiais.

O animal morre em um local onde, ȹà D¨ ù® ®¹ï ÿ¹j ´T¹ z myÿ¹àDm¹ por animais necrófagos.

I N O S S A

Primeira descoberta

U

O S 2

P

Ao contrário da aparência típica de um osso fóssil D¹ ® `à¹å`ºÈ ¹j ù® ´¹ åùUåïàDï¹ my ¹åå¹ m¹ T. rex analisado pelo autor continha estruturas que se assemelhavam a células do sangue.

OR MAIS DE 300 ANOS PALEONTÓLOGOS TRABALHARAM COM A HIPÓTESE DE QUE A informação contida em ossos fossilizados se restringe apenas ao tamanho e forma dos próprios ossos. Acreditava-se que quando um animal morre em condições adequadas para fossilização, minerais inertes do ambiente circundante acabam substituindo todas as moléculas orgânicas — como as que formam as células, tecidos, pigmentos e proteínas — produzindo basicamente um “molde” do que foram os ossos vivos, agora inteiramente formados de minerais.

A primeira indicação de que esse princípio fundamental da paleontologia nem sempre pode ser aplicado surgiu quando eu era aluno recém-graduado da Montana State University e estudava a microestrutura do osso de um Tyrannosaurus rex. Quando o examinei ao microscópio, o que vi — pequenas estruturas vermelhas aparentemente nucleadas, restritas aos canais dos vasos sanguíneos que percorrem os ossos — nunca havia sido observado antes, ao menos, que eu saiba. Elas se pareciam com células vermelhas nucleadas do sangue de vertebrados não mamíferos. Mas células sanguíneas de dinossauros — de acordo com as ideias que predominavam na minha disciplina — era impossível. Depois de discutir com membros da faculdade e com outros alunos de pós-gra-

duação sobre a identidade das esferas vermelhas o enigma chegou a Jack Horner, curador de paleontologia no museu e uma das maiores autoridades sobre dinossauros. Ele mesmo quis analisar minha descoberta. Ele observou pelo microscópio, durante o que pareceu horas, sem dizer nada. Depois, olhando para mim e franzindo a testa perguntou, “O que você pensa que são?”. Quando respondi que desconhecia, mas que elas tinham o mesmo tamanho, forma, localização e cor de células sanguíneas, ele resmungou: “Então me prove que não são”. Foi um desafio irresistível, que me ajudou a pautar minha pesquisa. Desde aquela descoberta, meus colegas e eu recuperamos vários tipos de restos orgânicos — incluindo vasos sanguíneos, células ósseas e peda-

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Ilustração por Raúl Martin

CORTESIA DE MARY H. SCHWEITZER (micrografia)

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Sepultamento

Enterro mais profundo

`DĂ `DcD z `šUyĂ ĂŻD Ăˆšà üymÂ&#x;ÂŽy´ïšü D´ïyĂĽ Ă•Ăšy animais necrĂłfagos ou a intempĂŠrie a destrua. É o que ocorre quando um rio com forte carga de sedimentos se espalha por planĂ­cies aluviais.

yĂˆšüÂ&#x;cTš ĂĽĂš`yĂĽĂĽÂ&#x;ĂżD my ĂĽymÂ&#x;ÂŽy´ïšü Dš ¨š´Â‘š my ÂŽÂ&#x;¨Â›Ă‡yĂĽ my D´šü y´ïyĂ Ă D D `DĂ `DcD UyÂŽ DUDÂ&#x;Ä Âš mD ĂĽĂšĂˆyà † `Â&#x;yj š´my ÂŽÂ&#x;´yĂ DÂ&#x;ĂĽ mD E‘ÚD ĂĽĂšUĂŻyĂ Ă F´yD ĂĽTš Š ¨ïà Dmšü ĂˆDĂ D š Â&#x;´ïyĂ Â&#x;šà mšü šüüšüĂŽ

Sedimentos de arenito, em particular, parecem proteger contra o desaparecimento completo de restos orgânicos, provavelmente porque a areia Ăˆšà šüD ĂˆyĂ ÂŽÂ&#x;ĂŻy Ă•Ăšy ÂŒ ĂšÂ&#x;mšü `šà à šüÂ&#x;ÿšü Ă•Ăšy ĂĽy †šà ŽDÂŽ mÚà D´ïy D my`šŽĂˆšüÂ&#x;cTš ĂĽyÂŚDÂŽ mĂ y´DmšüĂŽ

´ïyà à š Ăˆà šÂ†Ú´mš ĂŠÂŽDĂĽ ´Tš †ڴmš š üڊ `Â&#x;y´ïy ĂˆDĂ D D¨ïyĂ DĂ ĂŻyĂ ÂŽÂ&#x;`DÂŽy´ïy ĂŻy`Â&#x;mšü Žš¨yĂĽĂ‹ Ăˆšmy Ăˆà šŽšÿyĂ D ĂˆĂ yĂĽyĂ ĂżDcTš Ăˆšà Ă•Ăšy Ăˆà šïy‘y `š´ïà D ÂšÄ Â&#x;mDcTšj ĂżDĂ Â&#x;DcÇyĂĽ my Ăˆ y ĂŻyÂŽĂˆyĂ DïÚà Dj D¨zÂŽ my yÄ ĂˆšüÂ&#x;cTš K Ă DmÂ&#x;DcTš 򬕈 DĂżÂ&#x;š¨yĂŻDĂŽ %š Š ´D¨j š D´Â&#x;ÂŽD¨ chega a um equilĂ­brio quĂ­mico com o ambiente do subsolo, o que Ăˆšmy ĂĽyà ڎ DĂĽĂˆy`ïš Â&#x;ÂŽĂˆšà ïD´ïy ĂˆDĂ D D ĂˆĂ yĂĽyĂ ĂżDcTšĂŽ

Exposição Movimentos da crosta terrestre provocam soerguimento de camadas sedimentares Ă•Ăšy `š´ï{ÂŽ Ă yüïšü †šüüÂ&#x;¨Â&#x;ĆDmšü y D yà šüTš expĂľe os esqueletos tornando-os D`yĂĽĂĽÂ ĂżyÂ&#x;ĂĽ Dšü `DcDmšà yĂĽ my †ºüüyÂ&#x;ĂĽĂŽ $Â&#x;´Â&#x;ÂŽÂ&#x;ĆDĂ D yÄ ĂˆšüÂ&#x;cTš mš †ºüüÂ&#x;¨ K Dü†yĂ D mÚà D´ïy D yĂĽ`DĂżDcTš Ăˆšmy ajudar a proteger organismos frĂĄgeis de `š´ïDÂŽÂ&#x;´DcTš y my‘à DmDcTš y D´D¨Â&#x;ĂĽDĂ compostos orgânicos de fĂłsseis logo apĂłs terem sido escavados pode aumentar as `›D´`yĂĽ my Ă y`ĂšĂˆyĂ DcTš myĂĽĂĽyĂĽ ÂŽDĂŻyĂ Â&#x;DÂ&#x;ĂĽĂŽ

D I N O S S A U R O S 2

cinhos de material tĂ­pico de unhas, que forma as garras — de vĂĄrios restos fossilizados, indicando que embora essa preservação possa nĂŁo ser comum, tambĂŠm nĂŁo ĂŠ uma ocorrĂŞncia Ăşnica. Essas descobertas nĂŁo sĂł divergiam das descriçþes de processos de fossilização de livros-textos, mas tambĂŠm levavam a novas percepçþes sobre a biologia de animais de ĂŠpocas remotas. Ossos de outro espĂŠcime de T. rex, por exemplo, revelaram que o animal era uma fĂŞmea “em processo de postura de ovosâ€? quando morreu — informação que nĂŁo poderĂ­amos ter obtido a partir apenas da forma e tamanho dos ossos. E uma proteĂ­na detectada em restos de ďŹ bras encontradas prĂłximo a um pequeno dinossauro carnĂ­voro desenterrado na MongĂłlia ajudou a identiďŹ car que o animal tinha estruturas consistentes com penas de aves modernas, nĂŁo sĂł morfologicamente, mas tambĂŠm em escala molecular. Descobertas extraordinĂĄrias, como diz o velho adĂĄgio, exigem evidĂŞncias Ă altura. Os verdadeiros cientistas se esforçam ao mĂĄximo para contestar suas prĂłprias hipĂłteses, antes de conďŹ rmar que suas ideias estĂŁo corretas. Por isso, nos Ăşltimos 30 anos venho realizando todo tipo de experimento imaginĂĄvel para contestar a hipĂłtese de que os materiais que meus colaboradores e eu descobrimos sĂŁo componentes de tecidos produzidos por animais vivos do passado. No caso das microestruturas vermelhas que observei no osso do T. rex, imaginei que se elas estivessem relacionadas a cĂŠlulas do sangue

ou seus constituintes (como molĂŠculas de hemoglobina ou radicais heme que se agruparam depois de liberados por cĂŠlulas sanguĂ­neas agonizantes), elas teriam persistido de alguma forma — provavelmente muito alterada — apenas se os prĂłprios ossos estivessem excepcionalmente bem preservados. Em escala macroscĂłpica esse dinossauro atendia ao critĂŠrio. O esqueleto, um espĂŠcime praticamente completo do leste de Montana, conhecido como MOR 555, incluĂ­a vĂĄrios ossos muito bem preservados. O exame microscĂłpico de secçþes ďŹ nas de ossos dos membros revelou preservação igualmente intocada. A maioria dos canais de vasos sanguĂ­neos no osso denso estava vazia, nĂŁo preenchida por depĂłsitos minerais, como geralmente ocorre em dinossauros. Em seguida, comecei a me dedicar ao estudo da composição quĂ­mica do que pareciam ser cĂŠlulas sanguĂ­neas. AnĂĄlises mostraram que elas eram ricas em ferro, como as cĂŠlulas vermelhas e que o ferro era um elemento tĂ­pico. NĂŁo sĂł a formação elementar dos misteriosos objetos vermelhos (que denominamos LRRTs, acrĂ´nimo em inglĂŞs para “little round red thingsâ€?, ou “pequenas coisas vermelhas redondasâ€?) era diferente da formação de ossos no entorno prĂłximo de canais de vasos e tambĂŠm diferia dos sedimentos onde o dinossauro foi enterrado. Mas, para aprofundar ainda mais a conexĂŁo entre as estruturas vermelhas e as cĂŠlulas do sangue, eu 75


D I N O S S A U R O

queria examinar minhas amostras de radicais heme — pequenas moléculas contendo ferro que atribuem ao sangue dos vertebrados a cor vermelha e permitem que proteínas de hemoglobina transportem oxigênio dos pulmões para o conjunto do organismo. Por conterem um centro metálico os radicais heme vibram ou ressoam em padrões típicos quando são estimulados por laser precisamente sintonizado que absorvem luz de forma específica. Quando submetemos extratos de amostras de todo o osso a testes espectroscópicos — que medem a luz que um dado material emite, absorve ou espalha — nossos resultados mostraram que, em certas partes do osso do dinossauro, havia compostos consistentes com radicais heme. Um dos experimentos mais significativos que realizamos se referia à resposta imune. Quando o organismo detecta uma invasão de substâncias estranhas, potencialmente prejudiciais, produz proteínas de defesa chamadas anticorpos que reconhecem exatamente essas substâncias e se prendem a elas, neutralizando-as. Injetamos extratos de osso de dinossauro em camundongos, estimulando o aparecimento de anticorpos para certos compostos orgânicos do extrato. Quando expusemos esses anticorpos de dinossauros à hemoglobina de perus e ratos, eles se prenderam à hemoglobina — sinal de que extratos de ossos de dinossauros estimularam a produção de anticorpos em camundongos por conterem uma molécula similar à hemoglobina de animais vivos. Nenhum dos inúmeros testes químicos e imunes que realizamos resolveu o problema original proposto por Jack “provar que não eram” células sanguíneas de T. rex. Portanto, não conseguimos mostrar que a substância semelhante à hemoglobina era específica de estruturas vermelhas — as técnicas disponíveis não eram suficientemente sensíveis para permitir essa diferenciação na época em que realizei esses estudos. Por isso não pudemos afirmar definitivamente que essas estruturas se originavam de células do sangue. Quando publicamos nossas descobertas, em 1997, imprimimos às conclusões um tom conservador, afirmando que as proteínas da hemoglobina “poderiam” ser preservadas e que a fonte mais provável de proteína eram as células do dinossauro.

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EVIDÊNCIAS SE ACUMULAM

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A PARTIR DESSE ESTUDO INICIAL DO T. REX comecei a ter uma noção exata do que moléculas fósseis poderiam revelar sobre animais extintos. Ao obter proteínas poderíamos, em princípio, decifrar a sequência de aminoácidos de seus constituintes, como os geneticistas sequenciavam as “letras” que formam o DNA. Da mesma forma que as sequências de DNA, as sequências de proteínas contêm informação sobre relações evolutivas entre animais, de como as espécies variam ao longo do tempo e como a aquisição de novos caracteres genéticos pode ter conferido aos animais vantagens evolutivas em seu desenvolvimento. Mas, antes, eu deveria mostrar que proteínas primitivas estavam presentes em outros fósseis, além do maravilhoso T. rex que estávamos estudando. Trabalhando, nessa época, com Mark Marshall, então na Indiana University, e com Seth Pincus e John Watt, ambos da Montana State University, eu me interessei por dois fósseis bem preservados que pareciam promissores para recuperação de outras moléculas orgânicas. O primeiro foi uma linda ave primitiva chamada Rahonavis que paleontólogos da Stony Brook University e da Macalester College haviam desenterrado de depósitos em Madagascar datando do período Cretáceo superior, há cerca de 70 milhões a 66 milhões de anos. Durante a escavação eles notaram a presença de um material branco fibroso nos dedos do pé do esqueleto do animal. Nenhum outro osso na escavação parecia ter a substância, ausente em outros sedimentos do local. Eles conjecturaram que o material poderia se parecer com uma bainha resistente, formada pela queratina — proteína que reveste os ossos dos dedos do pé de aves vivas, compondo suas garras.

Proteínas de queratina são boas candidatas à preservação por serem abundantes em vertebrados, além do fato de a composição dessa família as tornar muito resistentes à degradação. Elas são de dois tipos principais: alfa e beta. Todos os vertebrados têm queratina alfa, que em humanos forma o cabelo, unhas e ajuda a pele a resistir ao desgaste e desidratação. A queratina beta não é produzida em mamíferos. Entre os organismos vivos, ela ocorre apenas em aves e répteis. Para saber se o material branco nos ossos dos dedos do pé era queratina, utilizamos as mesmas técnicas empregadas para estudar o T. rex. Curiosamente, testes de anticorpos indicavam a presença de queratina alfa e beta, sendo que as duas estavam presentes nas garras de aves e répteis vivos. Aplicamos também outras ferramentas de diagnóstico. Um dos métodos detectou aminoácidos localizados no revestimento do osso do pé, pela identificação de nitrogênio (componente de aminoácidos). Todos os resultados dos testes confirmaram a hipótese de que o material branco misterioso que revestia os ossos do pé da ave primitiva eram restos de suas garras letais. O segundo espécime que testamos foi um espetacular fóssil do Cretáceo tardio que os pesquisadores do American Museum of Natural History haviam descoberto na Mongólia. Embora os cientistas tenham denominado o animal Shuvuuia deserti, ou “ave do deserto” ele era, na verdade, um pequeno dinossauro carnívoro. Enquanto limpávamos o fóssil, Amy Davidson, preparadora do museu observou pequenas fibras brancas na região do pescoço do animal. Ela perguntou se eu sabia se eram reminiscências de penas. Aves são descendentes de dinossauros e caçadores de fósseis descobriram vários fósseis de dinossauros que preservaram impressões de penas, portanto, teoricamente, a sugestão de que Shuvuuia poderia ter tido uma cobertura de penas era plausível. Mas eu não esperava que uma estrutura tão delicada quanto uma pena pudesse ter resistido ao desgaste da intempérie. Eu suspeitava que as fibras brancas poderiam ter se originado de plantas modernas ou de fungos. Mas decidi observar com mais atenção. Para minha surpresa, testes iniciais descartaram a hipótese de o material estar associado a plantas ou fungos. As fibras eram ocas e continham filamentos minúsculos consistentes com a estrutura molecular da betaqueratina. Além disso, análises da composição dos misteriosos filamentos brancos indicaram a presença de queratina. Penas maduras em aves vivas são formadas quase que exclusivamente de beta queratina. Se as pequenas fibras da Shuvuuia estivessem relacionadas a penas, então elas deveriam conter apenas beta queratina, ao contrário da bainha das garras da Rahonavis, que continha os dois tipos de queratina. Na verdade, foi exatamente isso que encontramos quando realizamos nossos testes de anticorpos — resultados que publicamos em 1999. DESCOBERTAS EXTRAORDINÁRIAS

ATÉ AQUELE MOMENTO eu estava convencido de que os remanescentes originais de proteínas poderiam sobreviver em fósseis extremamente bem preservados e que dispúnhamos das ferramentas para identificá-los. Mas vários cientistas continuavam céticos. Nossas descobertas colocaram em xeque tudo o que eles supunham que sabiam sobre o colapso de células e moléculas. Estudos de moléculas orgânicas realizados em laboratório indicaram que proteínas não deveriam resistir muito mais que 1 milhão de anos. O DNA teria um tempo de vida ainda menor. Pesquisadores haviam declarado anteriormente ter recuperado DNA com milhões de anos, mas estudos posteriores não confirmaram os resultados, aumentando a controvérsia em torno dos anúncios de recuperação de moléculas muito antigas. A única ideia amplamente aceita era que moléculas fósseis não tinham mais que dezenas de milhares de anos. Em resposta a essa resistência um colega aconselhou-me a retroceder um pouco e demonstrar a eficácia de nossos métodos na identificação de proteínas primitivas em ossos fósseis, mas não tão antigos quanto

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D E S C O B E R TA S

Restos Orgânicos Primitivos /xäÔø äCl¸ßxä lxä_¸Tß ßC­ ßx_x³îx­x³îx îx_ l¸ä ­¸§xä x­ þDß ¸ä ¹ääx ä Ôøx lCîC­ lx lxąx³Cä lx ­ § Æxä lx C³¸äÍ

FPO

FPO

Filamento oco (centro) se assemelha à barba da pena pertencente a um pequeno dinossauro carnívoro conhecido como Shuvuuia deserti que habitava a Mongólia entre 83 milhões e 70 milhões de anos

Dedos do pé de uma ave chamada Rahonavis ostromi, que viveu há aproximadamente 70 milhões a 66 milhões de anos em Madagascar, contêm um material branco que parece ser remanescente do revestimento de proteína que cobria as garras do animal.

D I N O S S A U R MARYLOU STEWART Stony Brook University (osso do pé); MARY H. SCHWEITZER (filamento oco e vasos sanguíneos); DE “SOFT-T ISSUE VESSELS AND CELLULAR PRESERVATION IN TYRANNOSAURUS REX”, POR MARY H. SCH WEITZER ET AL., EM SCIENCE, VOL. 307; 25 DE MARÇO DE, 2005 (colágeno de osso medular).

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<Då¹å åD´ ù ´y¹å ¹ù ® ïDcÇyå my¨yå DÈDày`yàD® ÕùD´m¹ ® ´yàD å åy m å幨ÿyàD® my ÈymDc¹å my ù® ï ȹ `¹®ù® my ¹åå¹j ` D®Dm¹ ¹åå¹ `¹àï `D¨j do T. rex de Montana.

Osso medular — tecido especial formado durante um curto período, quando o corpo da fêmea prepara a postura de ovos — foi encontrado num T. rex de 68 milhões de anos descoberto em Montana.

original foi rompido, alguns fragmentos se desprenderam e foram colocados numa caixa para mim. Como meus estudos originais sobre o T. rex eram controvertidos, eu estava ansioso para repetir os testes em um segundo T. rex e essa descoberta era a oportunidade perfeita. Logo que observei o primeiro pedaço de osso que retirei da caixa, um fragmento do fêmur, eu soube que o esqueleto era especial. Revestindo a superfície interna desse fragmento havia uma camada fina singular — um tipo de osso que nunca tinha sido encontrado em dinossauros. Essa camada era muito fibrosa, cheia de canais de vasos sanguíneos e com uma textura e cor completamente diferentes do osso cortical que forma a maior parte do esqueleto. “Oh, céus, é uma menina — e está grávida!”, eu exclamei para minha então assistente, Jennifer Wittmeyer. Ela olhou para mim como se eu tivesse perdido o juízo. Tendo estudado fisiologia de aves, eu estava quase certo de que esse aspecto diferente era osso medular, um tecido especial que surge durante um período muito limitado (geralmente por cerca de apenas duas semanas), quando as aves se preparam para a postura. Esse tecido ósseo especial se forma para servir como fonte de cálcio para fortalecer a casca dos ovos, e quando o último ovo é posto, o osso medular é rapidamente reabsorvido. Uma das características que distingue osso medular de outros tipos de ossos é a orientação aleatória de suas fibras de colágeno, característica

ossos de dinossauro. Trabalhando com o químico analítico John Asara, da Harvard University, obtivemos proteínas de fósseis de mamutes que se estimava terem entre 300 mil e 600 mil anos. O sequenciamento de proteínas, usando uma técnica conhecida como espectrometria de massa, identificou-as, sem qualquer ambiguidade, como colágeno — componente importante de ossos, tendões, pele e outros tecidos. A publicação de nossos resultados em 2002 não despertou muita atenção. Na verdade, a comunidade científica a ignorou completamente. Mas nossa prova de princípio estava prestes a se tornar muito prática. Nos anos seguintes, uma equipe do Museu das Montanhas Rochosas finalmente concluiu a escavação de outro esqueleto de T. rex que, com 68 milhões de anos, é o mais antigo até o momento. Como o T. rex mais jovem descrito anteriormente, esse espécime — chamado MOR 1125 e apelidado de “Brex” em homenagem a seu descobridor Bob Harmon — foi recuperado na formação Hell Creek no leste de Montana. Não havia acesso por veículo ao sítio remoto, por isso um helicóptero fazia o transporte dos blocos cobertos de argamassa contendo os ossos desenterrados do local para o acampamento. O bloco contendo os ossos da perna era pesado demais para ser transportado pelo helicóptero. Por isso, para recuperá-la a equipe precisou arrebentar o bloco, separar os ossos e reacondicioná-los. Mas esses ossos eram muito frágeis e, quando o bloco

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D I N

que indica formação muito rápida. (É essa mesma organização que se forma logo no início da cicatrização de uma fratura óssea em humanos — por isso sentimos uma espécie de calo no local da fratura). Ossos de qualquer animal podem ser desmineralizados usando ácidos diluídos para revelar a arranjo das fibras de colágeno. Em aves modernas, quando os minerais são removidos do osso medular, sobram as fibras aleatoriamente orientadas. Mas esse era um dinossauro, não uma ave. Eu acreditava que praticamente todos os compostos orgânicos desapareceriam do osso do dinossauro e, se deixássemos a reação passar do ponto, poderia não restar mais nada. Por isso Wittmeyer e eu decidimos desgastar levemente a superfície. Para nossa surpresa, à medida que os minerais se dissolviam surgia uma saliência flexível e fibrosa de tecido. Eu mal podia acreditar no que estávamos vendo. Eu pedi a Wittmeyer para repetir o experimento várias vezes. Cada vez que mergulhávamos uma camada de osso diferente na solução ácida, restava um material fibroso elástico — exatamente como acontece quando osso medular de aves é tratado pelo mesmo método. Além disso, quando dissolvemos pedaços de osso cortical mais comum e mais denso, obtivemos tecido mais macio. Surgiram então na matriz em dissolução tubos ramificados ocos, transparentes e flexíveis muito parecidos com vasos sanguíneos. Suspensas dentro dos vasos havia pequenas estruturas redondas e vermelhas muito parecidas com aquelas do T. rex original, que acabaram direcionando minhas pesquisas, ou aglomerados amorfos de material vermelho. Experimentos adicionais de desmineralização revelaram células ósseas de aparência diferente, cha-

madas osteócitos, que secretam colágeno, e outros componentes que formam as partes orgânicas de ossos vivos. Brex parecia ter preservado material jamais visto num osso de dinossauro. Quando publicamos nossas observações na Science, em 2005, relatando a presença do que parecia ser colágeno, vasos sanguíneos e células de ossos, o artigo atraiu muita atenção, mas a comunidade científica adotou uma atitude de esperar para ver. Afirmamos apenas que o material que encontramos se parecia com esses componentes modernos — e não que era um deles, ou o mesmo — porque àquela época não dispúnhamos de dados químicos, apenas dados morfológicos. E depois de milhões de anos enterrado em sedimentos e exposto a condições geoquímicas variáveis o material preservado nesses ossos deveria guardar pouca semelhança química com o conteúdo original, quando o dinossauro estava vivo. O verdadeiro valor desses materiais só poderia ser determinado se sua composição pudesse ser entendida. Nosso trabalho estava apenas começando. Usando todas as técnicas mais avançadas para estudar o MOR 555, o Rahonavis, Shuvuuia e o mamute, comecei uma análise mais profunda desse osso de T. rex em colaboração com Asara, que havia aprimorado os métodos que usamos no estudo do mamute e estava pronto para testar o sequenciamento de proteínas mais primitivas de dinossauros. Essa tarefa foi muito mais complexa porque a concentração de compostos orgânicos nos dinossauros era várias ordens de grandeza menor que no mamute, muito mais jovem, e também porque as proteínas estavam muito degradadas. Mas finalmente conseguimos sequenciar os fragmentos da proteína. E

O S

E STUD O DE CAS O

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Dissecando um Dinossauro Bico de Pato

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Em 2007, paleontólogos Ôøx îßDUD§ DþD­ ³¸ §xäîx lx $¸³îD³D recuperaram um fêmur bem preservado do dinossauro bico de pato, Brachylophosaurus canadensis. Análises microscópicas revelaram que o fêmur continha estruturas semelhantes a células chamadas osteócitos incrustadas numa matriz branca de material Uß¸ä¸ Ôøx ÇDßx` D Ç߸îx ³D lx `¸§E x³¸ ɬ _Þ· ÞC C). Análises Ǹäîxß ¸ßxä `¸³ ß­DßD­ D Çßxäx³cD lx îx` l¸ ­¸§x x lxä`DßîDßD­ a hipótese de que estruturas semelhantes a colágeno e osteócitos

îxß D­ Ç߸þ ³l¸ lx UD`îyß Däi xĀîßDî¸ä lx ¸ää¸ä lx l ³¸ääDø߸ reagiram a anticorpos ativos para colágeno e outras proteínas que bactérias não produzem. E como se previa, se o osso contivesse proteína do dinossauro, os registros fornecidos pela técnica `¸³ x` lD `¸­¸ xäÇx`î߸­xîß D lx ­DääDj Ôøx lx³î `D sequências de aminoácidos em proteínas, se pareceriam muito com registros de aves modernas — descendentes de dinossauros — e muito diferentes dos registros de bactérias.

Osteócitos ([ijhkjkhWi hWc_Ò YWZWi WcWhhedpWZWi) e colágeno (cWjh_p Ò XheiW XhWdYW) foram observados no Brachylophosaurus.

CORTESIA DE MARY H. SCHWEITZER (micrografia).

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Brachylophosaurus canadensis

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foi gratificante quando nosso colega, Chris Organ, de Harvard, comparou as sequĂŞncias do T. rex com as de uma infinidade de outros organismos e descobriu que estavam mais intimamente relacionadas a aves e, depois, com crocodilos — os dois grupos de parentes vivos mais prĂłximos de dinossauros. Nossos artigos, publicados em 2007 e 2008 detalhando o sequenciamento, geraram controvĂŠrsias inamadas que se concentraram principalmente na nossa interpretação dos dados da sequĂŞncia. Alguns oponentes reagiram, aďŹ rmando que nĂŁo tĂ­nhamos produzido sequĂŞncias suďŹ cientes para basear nossa argumentação. Outros argumentaram que as estruturas que interpretamos como tecidos moles primitivos eram na verdade bioďŹ lme “geleca verdeâ€? produzida por microrganismos que invadiram o osso fossilizado. Meus sentimentos sobre essas consideraçþes estavam confusos. De um lado, cientistas sĂŁo pagos para ser cĂŠticos. De outro, a ciĂŞncia baseia-se no princĂ­pio da parcimĂ´nia — a explicação mais simples para todos os dados ĂŠ interpretada como a correta. E nossa hipĂłtese era sustentada por vĂĄrias linhas de evidĂŞncias. Eu sabia, no entanto, que embora fosse uma descoberta surpreendente em ciĂŞncia uma Ăşnica descoberta nĂŁo tem signiďŹ cado permanente. TerĂ­amos de sequenciar proteĂ­nas de outros ossos de dinossauros. Quando um voluntĂĄrio, que nos acompanhou numa expedição de verĂŁo, encontrou ossos de um dinossauro bico de pato, herbĂ­voro de 80 milhĂľes de anos chamado Brachylophosaurus canadensis (“Brachyâ€?), suspeitamos que o bico de pato poderia ser uma boa fonte de proteĂ­nas fĂłsseis, antes mesmo de desenterrĂĄ-lo. Na expectativa de que ele pudesse conter compostos orgânicos ďŹ zemos todo o possĂ­vel para liberĂĄ-lo do terreno de arenito rapidamente, enquanto minimizĂĄvamos sua exposição a produtos quĂ­micos, contaminantes e Ă s intempĂŠries. Poluentes do ar, variaçþes de umidade e agentes semelhantes seriam muito prejudiciais para as frĂĄgeis molĂŠculas, e quanto mais o osso ďŹ casse exposto a esses agentes, mais sujeito a contaminação e degradação estaria.

realmente se prendiam Ă s microestruturas dos dois dinossauros, no mesmo padrĂŁo que observamos em cĂŠlulas Ăłsseas de avestruzes. Embora tenhamos dados que indicam a presença de DNA dentro dessas cĂŠlulas, nossas descobertas nĂŁo sĂŁo conclusivas, a menos que obtenhamos sequĂŞncias de DNA consistentes com essas prediçþes para dinossauros — mas esse DNA pode estar fragmentado e muito corrompido para ser sequenciado. Uma crĂ­tica frequente ao nosso trabalho ĂŠ que ele ĂŠ inconsistente com os modelos de tecido e degradação molecular celular — todos eles predizem perĂ­odos de vida muito inferiores a 80 milhĂľes de anos. Por isso, realizamos outra sĂŠrie de experimentos para entender como, em condiçþes naturais, esses componentes poderiam ser preservados por perĂ­odos tĂŁo longos. Observamos que em todos os casos em que conseguimos recuperar vasos sanguĂ­neos e cĂŠlulas, tambĂŠm observamos minĂşsculas partĂ­culas de ferro incrustado que sĂł podem ser vistas sob a ampliação extrema de microscĂłpios de transmissĂŁo eletrĂ´nica. Nosso argumento ĂŠ que esse mineral pode provir do colapso de hemoglobina, rica em ferro, liberada pelas cĂŠlulas vermelhas agonizantes do sangue. Ă€ medida que as molĂŠculas de hemoglobina se rompem, o ferro biologicamente instĂĄvel liberado sofre reaçþes quĂ­micas que liberam radicais livres de hidroxila, altamente reativos. Essas molĂŠculas famintas atacam tecidos e roubam elĂŠtrons para manter sua estabilidade e, no processo, provocam a formação de ligaçþes cruzadas entre molĂŠculas do tecido. Essa reação, letal em organismos vivos porque molĂŠculas com ligaçþes cruzadas nĂŁo podem funcionar normalmente, ĂŠ muito semelhante Ă reação que ocorre quando se coloca um tecido em formaldeĂ­do — conservante que tambĂŠm provoca a formação de ligaçþes cruzadas. Experimentos mostram que vasos sanguĂ­neos recuperados de ossos modernos permanecem estĂĄveis em ĂĄgua Ă temperatura ambiente por mais de dois anos, se no inĂ­cio forem rapidamente embebidos numa solução de cĂŠlulas vermelhas do sangue, enquanto vasos sanguĂ­neos nĂŁo tratados se degradam rapidamente, em dias ou semanas. Esses resultados sugerem que radicais livres da solução sanguĂ­nea podem ter estabilizado os tecidos contra degradação prematura. Nossos resultados enfrentam muito ceticismo. AlĂŠm de serem extremamente surpreendentes, sĂŁo tambĂŠm promissores. O estudo de cĂŠlulas orgânicas de dinossauros poderia levar a novas percepçþes sobre como esses gigantes evoluĂ­ram, como responderam a grandes mudanças ambientais e, ďŹ nalmente, como viviam.

CONDIÇÕES ESPECIAIS

TALVEZ POR CAUSA DESSES CUIDADOS adicionais — e anĂĄlises imediatas — tanto a quĂ­mica como a morfologia desse segundo dinossauro foram menos alteradas que no caso do Brex. Como havĂ­amos previsto, encontramos cĂŠlulas incrustadas numa matriz de ďŹ bras brancas de colĂĄgeno nos ossos do animal. As cĂŠlulas exibiam os mesmos longos ďŹ lamentos ďŹ nos e ramiďŹ cados caracterĂ­sticos de osteĂłcitos, que poderĂ­amos rastrear desde o corpo da cĂŠlula atĂŠ onde se conectavam com outras cĂŠlulas. Alguns continham o que pareciam ser estruturas internas, incluindo possĂ­veis nĂşcleos. AlĂŠm disso, extratos de ossos do bico de pato reagiram a anticorpos ativos para colĂĄgeno e outras proteĂ­nas que bactĂŠrias nĂŁo produzem, refutando a ideia de que nossas estruturas de tecido mole eram simples bioďŹ lmes. Como se nĂŁo bastasse, as sequĂŞncias de proteĂ­nas que extraĂ­mos do osso se pareciam muito com as de aves modernas, exatamente como no caso do Brex. Relatamos essas descobertas na Science em 2009. Depois disso desmineralizamos ossos de organismos variando de galinhas modernas a material triĂĄssico coletado em diferentes ambientes e em diferentes continentes, para mostrar que podĂ­amos recuperar pelo menos trĂŞs dos quatro elementos preservados em mais de um dinossauro: vasos sanguĂ­neos, conteĂşdo vascular, osteĂłcitos e matriz formada por colĂĄgeno. Atualmente, dispomos tambĂŠm de vĂĄrias evidĂŞncias independentes, indicando que as microestruturas ramiďŹ cadas e alongadas das amostras retiradas do Brex e Brachy sĂŁo de fato cĂŠlulas Ăłsseas de dinossauros que viveram num passado distante. Num dos experimentos mais convincentes expusemos essas microestruturas a anticorpos monoclonais que se ligavam a proteĂ­nas expressas nos osteĂłcitos de aves vivas, mas nĂŁo em osteĂłcitos de aligatores que usamos como controle. Descobrimos que os anticorpos

Mary H. Schweitzer jå havia concluído a licenciatura para tornar-se professora de ciências do ensino mÊdio quando assistiu a uma aula de paleontologia por brincadeira. Isso reacendeu o interesse que ela mantinha desde a infância por dinossauros. Então, doutorou-se em biologia na Montana State University em 1995, e atualmente Ê professora do departamento de ciências marinhas, terrestres e atmosfÊricas e de ciências biológicas da North Carolina State University e curadora de paleontologia de vertebrados do North Carolina Museum of Natural Sciences. PA R A C O N H E C E R M A I S

Biomolecular characterization and protein sequences of the campanian hadrosaur B. canadensis. Mary H. Schweitzer et al. em Science, vol. 324, pĂĄgs. 626–631; 1Âş de maio de 2009. Â&#x;´šüDÚà Â&#x;D´ üšÂ†ĂŻ ĂŻÂ&#x;ĂĽĂĽĂšyĂĽ Â&#x;´ïyĂ ĂˆĂ yĂŻym DĂĽ UD`ĂŻyĂ Â&#x;D¨ UÂ&#x;šÂŠ ¨ŽüĂŽ Thomas G. Kaye et al. em PLOS ONE, vol. 3, nÂş 7, artigo nÂş e2808; julho de 2008. Protein sequences from mastodon and Tyrannosaurus rex revealed by mass spectrometry. John M. Asara et al. em Science, vol. 316, pĂĄgs. 280–285; 13 de abril de 2007.

yĂŻDž§yĂ DĂŻÂ&#x;´ ĂĽĂˆy`Â&#x;Š ` Â&#x;ŽŽÚ´š¨šÂ‘Â&#x;`D¨ Ă yD`ĂŻÂ&#x;ĂżÂ&#x;ĂŻÄ‚ Â&#x;´ †yDï›yà ž¨Â&#x;§y ĂĽĂŻĂ Ăš`ïÚà yĂĽ šÂ† ï›y Cretaceous alvarezsaurid, Shuvuuia deserti. Mary H. Schweitzer et al. em Journal of Experimental Zoology, vol. 285, pĂĄgs.146–157; agosto de 1999. Lita Preservation of Biomolecules in Cancellous Bone of Tyrannosaurus rex. Mary H. Schweitzer et al. em Journal of Vertebrate Paleontology, vol. 17, nÂş 2, pĂĄgs. 349–359; junho de 1997.

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CIÊNCIA BRASILEIRA

CHAMADO À AVENTURA D I

Implantação e desenvolvimento da paleontologia no Brasil exigiram sacrifícios que estão longe de superados Por Ulisses Capozzoli

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ANTIGA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA, recuperada, durante algum tempo abrigou o museu de paleontologia em Peirópolis, Uberaba. Essa antiga instalação foi substituída por uma nova e ampla construção apropriada à exposição e tratamento de fósseis (pág. 82).

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desenvolveu nessas áreas por influência direta do explorador alemão Alexander von Humboldt (1769-1859) e do naturalista francês Georges Cuvier (1769-1832). Francis de La Porte, o francês Conde de Castelnau (1812-1880), viajou pela América do Sul, incluindo o Brasil, entre 1843-47, coletando material que compôs as coleções de mamíferos cenozoicos descritos pelo paleontólogo também francês Paul Gervais (1816-1879), autor de Zoologie et palenteologie française, obra que à época complementou os trabalhos de Cuvier, personalidade dominante na história da paleontologia. Cuvier formulou as leis da anatomia comparada, a semelhança de caracteres morfológicos e, com isso, abriu as possibilidades de reconstruções paleontológicas. Com a anatomia comparada Cuvier demonstrou que ossadas fósseis, por exemplo, de mamutes e mastodontes, diferem de elefantes vivos, tanto asiáticos quanto africanos, evidenciando que se trata de espécies distintas. Com isso, deduziu o então desconcertante processo da extinção. CRIAÇÃO E DESTRUIÇÃO

EM BIOLOGIA E ECOLOGIA EXTINÇÃO é o completo desaparecimento de uma espécie, subespécie ou mesmo grupos de espécies. O momento da extinção é considerado como o da morte do último exemplar de uma espécie. Em espécies que adotam reprodução sexuada a extinção é praticamente inevitável quando apenas um único e último indivíduo sobrevive, ou quando isso ocorre apenas com indivíduos do mesmo sexo. A extinção não é um fenômeno estranho ao tempo. Na realidade, espécies se manifestam por processos de especiação e desaparecem pelo fenômeno da extinção. Georges Cuvier foi um dos mais ardorosos defensores do catastrofismo, a ideia de que a Terra sofreu processos violentos, incluindo inundações que modelaram as configurações tanto geológicas como biológicas atuais, o que explicaria, por exemplo, a presença de fósseis marinhos em regiões distantes da costa. Essa teoria, posteriormente, iria oferecer resistência ao evolucionismo por defender a criação de novas espécies a cada evento destrutivo, em lugar de admitir a evolução das espécies pela seleção natural concebida pelo darwinismo. O engenheiro e geógrafo brasileiro João Martins da Silva Coutinho (1831-1889) em sua época foi um dos impulsionadores da paleontologia no Brasil. No breve período entre 1875/76 ele dirigiu a terceira seção do Museu Nacional, com contribuições significativas, porque tanto antes quanto depois desse período fez generosas doações de material coletado em diversas expedições de que participou. Entre outras, tomou parte na Expedição Thayer — entre 1865/66, financiada pelo milionário americano Nathaniel Thayer Jr. (1808-1883) e organizada por Agassiz — em que esteve presente também o geólogo canadense naturalizado americano Charles Frederick Hartt (1840-1878), autor de Geologia e geografia física do Brasil, publicado em 1870. Sobre Silva Coutinho os dados pessoais também são comparativamente escassos, mas o historiador americano Warren Dean (1932-1994) é um dos que o situam na história da borracha no Brasil, na tentativa de uma exploração racional e cultivada desse recurso nacional, tarefa em que não teve sucesso. Em relação à vida pessoal chama a atenção sua determinação em manter sob sua custódia uma escrava de nome Magdalena.

UANDO A PALEONTOLOGIA CHEGOU AO BRASIL, POR

DIVULGAÇÃO MUSEU LLEWELYN IVOR PRICE

iniciativa do padre, geógrafo e historiador português Manuel Aires de Casal (17541821), já acumulava uma longa história, com início na Grécia Antiga, a partir de personalidades diversas, caso de Xenofonte, Heródoto e Aristóteles. Avicena, o nome latinizado de Abu ‘Ali al-Husayn ibn ‘Abd Allah ibn Sina (980-1037), polímata persa, deu aos fósseis, objeto de estudo da paleontologia, origem natural, a partir de material inorgânico. E o versátil e surpreendente Leonardo da Vinci (14521519) teria reforçado uma concepção de Giovanni Bocaccio (13131375) sobre fósseis serem remanescentes de organismos antigos. Em relação a Aires de Casal, é preciso dizer que escreveu Corografia brasileira, ou Relação histórica e geográfica do reino do Brasil, publicado no Rio de Janeiro em 1817 em dois volumes, inaugurando a edição de livros no país, e incluindo, pela primeira vez, uma versão impressa da famosa Carta, de Pero Vaz de Caminha. Peter William Lund (1801-1880), paleontólogo, zoólogo e arqueólogo dinamarquês, fugitivo da tuberculose, é considerado o pai da paleontologia e arqueologia nacionais, com trabalhos fundamentais em Lagoa Santa, ao norte de Belo Horizonte, Minas Gerais, onde descobriu e identificou mais de 12 mil artefatos fósseis. O botânico inglês George Gardner (1812-1848), também zoólogo, além de médico, o que em linhas gerais caracterizava um naturalista em séculos passados, despendeu três anos e meio de pesquisas concentradas no Nordeste e Brasil Central, com observações publicadas em uma obra de título longo, o Viagens no interior do Brasil: principalmente nas províncias do norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. O material coletado por Gardner na chapada do Araripe (ver Dinossauros da Bacia do Araripe, pág. 12) posteriormente foi analisado pelo zoólogo e geólogo suíço Louis Agassiz (1807-1873) que se

EM SÍNTESE A paleontologia no Brasil inicia-se no século 19, como ocorre com as demais áreas da ciência, por iniciativa do padre, geógrafo e historiador português Manuel Aires de Casal, mas, a seguir,

com contribuições de cientistas de vários países, entre eles o dinamarquês Peter William Lund. āÈym cÇyå ` y´ï cas que percorreram o país também deixaram um legado de coleta e interpreta-

ção de registros fósseis. O engenheiro e geógrafo brasileiro João Martins da Silva Coutinho foi um dos brasileiros que se destacou nessas explorações, ainda que seja pouco conhecido. Charles Frede-

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rick Hartt (1840-1878), autor de Geolo]_W [ ][e]hWÒ W \ i_YW Ze 8hWi_b, é exemplo de um sábio que se apaixonou pelo Brasil e dedicou sua vida breve à tentativa de consolidar a paleontologia no país.

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Intelectual e explorador com trânsito nacional e internacional, como representante brasileiro em diversas iniciativas, Silva Coutinho foi o idealizador da construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, para substituir a difícil navegação pelo rio Madeira. Em 1861 o presidente da província do Amazonas, Manuel Clementino Carneiro da Cunha (1825-1890), contratou Silva Coutinho, ainda na condição de militar, para construir um trecho de estrada de ferro que ligasse o rio Madeira ao Mamoré, que ele estimou em 50 léguas de extensão “em consequência da grande curva que descreve o rio ao poente”, segundo deixaria registrado.

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NOMES ESQUECIDOS DA HISTÓRIA

EM 1863 SILVA COUTINHO localizou depósitos fósseis de invertebrados do Paleozoico, no vale do Tapajós, no Pará, e no ano seguinte foi membro da comissão para definir as fronteiras entre Brasil e Peru, substituindo na chefia dessa organização o capitão-tenente José da Costa Azevedo, futuro barão de Ladário e ministro da Marinha em 1889. Silva Coutinho, na verdade, é apenas um entre os muitos nomes brasileiros que desempenharam serviços estratégicos ao interesse nacional, mas nem por isso são reconhecidos pela história nacional. As expedições Morgan, entre 1870-71, organizadas pela Cornell University, nos Estados Unidos, tiveram como chefe Charles Frederick Hartt, com participação do geólogo americano naturalizado brasileiro Orville Adelbert Derby (1851-1915). Dessa iniciativa resultou o reconhecimento do Paleozoico no Pará e do Devoniano e do Cretáceo da região do Ererê, no sudeste do Ceará, divisa com o Rio Grande do Norte. O legado que Derby deixou no Brasil é reconhecido não só por estudos geológicos e paleontológicos que realizou aqui desde sua juventude, mas também pela atuação no sentido da organização e construção de entidades técnico-científicas Em 1875, com a criação da Comissão Geológica do Império, sob a direção de Hartt, as pesquisas na área da paleontologia se expandiram no Brasil, e mesmo com a extinção dela, apenas três anos depois, com a morte de Hartt, sobreviveram as clássicas monografias dos geólogos americanos Richard Ratburn (1852-1918), Charles Abiathar White (1826-1910) e John Mason Clarke (1857-1925) envolvendo fósseis terciários e paleozoicos na Amazônia. Avanços significativos se deram na detecção do gênero Glossopteris (antiga ordem de samambaias com sementes conhecidas como Glossopterídeas) no sul do país pelo paleontólogo americano Nathaniel Plant e a associação florística conhecida como flora de Glossopteris, na bacia do Paraná, pelo paleobotânico francês Charles René Zeiller, em 1895.

Ulisses Capozzoli é jornalista especializado em divulgação de ciência, mestre e doutor em ciências pela Universidade de São Paulo, é autor de livros como Antártida, a última terra (Edusp) e No reino dos astrônomos cegos — uma história da radioastronomia (Record), {« d µ«Í fæDÒ èrîrÒd µÍrÒ fr§Ür fD ÒÒ«Z D]õ« ÍDÒ r ÍD fr «Í§D Ò¡« r§Üû Z« ·

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Hartt: expedições pelo Brasil imperial, 1865-1878. Marcus Vinícius de Freitas. Meta Livros, 2001. T. rex and the crater of doom. Walter Alvarez, Vintage Books, 1998. Arqueologia brasileira. André Prous, Editora UnB, 1992. Geologia geral. ¹åz y´à Õùy 0¹ÈÈÎ " ÿà¹å 5z`´ `¹å y y´ï `¹å m ï¹àD 3Î Îj Àµ~ Î The origins of modern Science, 1300-1800. yàUyàï ùïïyà y¨mj 5 y àyy 0àyååj Àµê Î ¹à¹ àD D UàDå ¨y àD, Manuel Aires de Casal, 1817. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me003003.pdf.

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A fase que vem a seguir ainda reunirá estrangeiros, mas já inclui um número crescente de pesquisadores nacionais, entre eles Eusébio Paulo de Oliveira (1882-1939) e Matias Gonçalves de Oliveira Roxo (1885-1954), considerado o primeiro paleontólogo brasileiro. Em 1907, a criação do Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil estimulou pesquisas em paleontologia com realização de um conjunto de trabalhos clássicos deflagrados pela monografia de 1915 de John Mason Clarke sobre fósseis devonianos na bacia do Paraná. Entre os pesquisadores estrangeiros que estiveram no Brasil, a saga vivida por Charles Frederick Hartt merece um registro, ainda que breve. Em cinco viagens, entre 1865 e 1878, ele percorreu o país e coletou, anotou e desenhou o que pôde, de amostragens de solo a exemplares de flora e fauna. Além de geólogo, Hartt era linguista, etnógrafo, desenhista e músico. Ele tentou a todo custo persuadir o imperador Pedro II a implantar um serviço de estudos geológicos no Brasil. Em 1878, com o trabalho atrasado por manobras costumeiras de políticos e burocratas brasileiros ele contraiu febre amarela e em 48 horas estava morto. Hartt tinha apenas 38 anos e estava sozinho aqui. Sua mulher não suportara a paixão dele pelo Brasil e havia retornado com os filhos para Búfalo, no estado de Nova York. Sua história está contada em Hartt: expedições pelo Brasil imperial, 1865-1878, obra indicada ao final deste artigo. Mais recentemente, Llewellyn Ivor Price, gaúcho nascido em Santa Maria (1905-1980) foi de importância estratégica para a paleontologia nacional. Filho de pais americanos, Price estudava química nos Estados Unidos, quando se deu conta de seu verdadeiro interesse. Viajando pelo Arizona soube, casualmente, que Barnum Brown, da University of Chicago, iniciaria escavações na região. Conseguiu uma vaga na expedição e, ao se apaixonar por paleontologia, foi indicado por Brown para a University of Oklahoma, onde se graduou em zoologia e geologia. Depois de atuar como professor em Harvard, veio para o Brasil a convite da Divisão de Geologia e Mineralogia (DGM), o atual Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Em 1945 Price trabalhava em investigações científicas em obras para retificação de um trecho ferroviário na região de Mangabeira, ao norte da cidade de Uberaba, no Triângulo Mineiro, quando observou operários, em um momento de lazer, jogando bochas, esporte em que concorrentes devem rolar bolas com o objetivo de aproximá-las, o mais possível, de uma bola branca. Intrigado com a forma ligeiramente irregular da bola branca, Price se deu conta de que se tratava de um ovo fossilizado de dinossauros. Assim, por obra da serendipidade, expressão que filósofos e historiadores da ciência utilizam para se referir a algo como “pura coincidência”, ainda que esteja longe de se restringir a uma situação como esta, começou a etapa que marca o estágio atual da paleontologia no Brasil.




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