EMMANUEL KATONGOLE & CHRIS RICE
Reconciliando TODAS AS COISAS UMA VISÃO CRISTÃ PARA JUSTIÇA, PAZ E CURA
Reconciliando TODAS AS COISAS
Emmanuel Katongole & Chris Rice
Reconciliando TODAS AS COISAS UMA VISÃO CRISTÃ PARA JUSTIÇA, PAZ E CURA 1ª edição Tradução: Josiane Zanon Moreschi
Curitiba 2013
Emmanuel Katongole e Chris Rice
Reconciliando todas as coisas Uma visão cristã para justiça, paz e cura
Coordenação editorial: Walter Feckinghaus Tradução: Josiane Zanon Moreschi Revisão: Sandro Bier Capa: Sandro Bier Editoração eletrônica: Josiane Zanon Moreschi Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Katongole, Emmanuel Reconciliando todas as coisas : Uma visão cristã para justiça, paz e cura / Emmanuel Katongole e Chris Rice. - - 1. ed. - - Curitiba, PR : Editora Esperança. ISBN
Índices para catálogo sistemático:
As citações bíblicas foram extraídas da Bíblia de Estudo NVI, Editora Vida (2003). Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total e parcial sem permissão escrita dos editores. Editora Evangélica Esperança Rua Aviador Vicente Wolski, 353 - CEP 82510-420 - Curitiba - PR Fone: (41) 3022-3390 - Fax: (41) 3256-3662 comercial@esperanca-editora.com.br - www.editoraesperanca.com.br
“Chris Rice e Emmanuel Katongole sabem o quanto custa uma reconciliação genuína, portanto, são líderes perfeitos para nos ensinar a não assumir a tarefa com leviandade ou realizá-la superficialmente. Os cristãos têm uma única visão a viver – a criação de uma comunidade de todo coração!” Marva J. Dawn, monitora em teologia espiritual no Regent College e autora de Truly the Community (Verdadeiramente a comunidade), Unfettered Hope (Esperança sem restrições) e My Soul Waits (Minha alma espera).
“Em vez de sugerir fórmulas ou passos fáceis, o padre Emmanuel Katongole e Chris Rice desafiam seus leitores a incorporarem uma espiritualidade que reconcilia. Com a textura irresistível das histórias da vida real, a credibilidade de suas próprias jornadas em reconciliação e humildes, porém profundas, reflexões teológicas, Emmanuel e Chris oferecem um ponto de entrada acessível e novo para as conversas cruciais sobre reconciliação.” Christopher L. Heuertz, diretor executivo internacional do Word Made Flesh e autor de Simple Spirituality (Espiritualidade simples).
“Minha única preocupação é que um número insuficiente de pessoas leia este livro! Dada a quantidade de seres humanos que deixam as coisas desmoronarem, este recurso é precioso para indivíduos, grupos e instituições. Haverá um futuro para nós se não aprendermos exatamente como curar e reconciliar?” Richard Rohr, frade franciscano da Ordem dos Frades Menores (O.F.M.), diretor fundador do Center for Action and Contemplation (Centro de Ação e Contemplação) em Albuquerque, Novo México.
“Reconciliando todas as coisas é um livro fiel, brilhando com a alegria e a esperança que vêm de andar com Deus e com o povo de Deus no mundo. Convidando todos a participarem da obra reconciliadora de Deus através da miríade de formas pelas quais vivemos divididos, Katongole e Rice fazem uma coisa nova – restauram uma visão profundamente teológica do dom da reconciliação de Deus e mostram como a manifestação desse dom se mostra nas histórias reais de pessoas que embarcaram nessa viagem. Essas histórias de dor e esperança deixam claro que o verdadeiro trabalho de reconciliação não tem tanto a ver com programas, estratégias ou consertar as coisas, mas com o trabalho comum, mundano e diário de viver fiel e pacientemente em nosso contexto local, particular e pessoal. E se o fizermos, se entrarmos humildemente no trabalho de Deus no mundo, o que pode acontecer? Nova criação!” M. Therese Lysaught, professora adjunta e assistente de cadeira do Departamento de Teologia da Marquette University.
“Este é um livro duro e esperançoso. Duro, não por ser difícil de ler, mas porque nos chama para o que os autores retratam como a jornada necessária, mas longa, dolorosa e nem sempre gratificante da reconciliação. Mas esperançoso, porque está repleto de insights perspicazes, histórias fascinantes e conselhos sábios. Se acreditarmos verdadeiramente que Deus está reconciliando o mundo com ele em Cristo, então este livro é uma leitura importante. Leia-o e atenda ao chamado para se juntar à grande história de reconciliação de Deus. Você vai se descobrir desafiado além do conforto, mas movido por grandes expectativas.” Leighton Ford, presidente da Leighton Ford Ministries em Charlotte, Carolina do Norte - EUA e autor de Tranforming Leadership (Liderança transformadora) e The Attentive Life (A vida atenciosa).
Dedicado a John Perkins, do Mississipi e Cardeal Emmanuel Wamala, de Uganda, santos do cotidiano que nos mostraram o caminho.
SUMÁRIO
Introdução.....................................................................11 1. Visões predominantes da reconciliação...................21 2. Voltando atrás: a reconciliação como o objetivo da história de Deus......................................41 3. Reconciliação é uma jornada com Deus...................51 4. Como as Escrituras nos remodelam........................63 5. A disciplina do lamento.............................................83 6. Esperança em um mundo sofrido..........................105 7. Por que a reconciliação precisa da igreja.............119 8. O coração, o espírito e a vida da liderança..........133 Epílogo: Percorrendo o caminho longo.......................153
Recuperando a reconciliação como a missão de Deus - Dez teses.......................................159 Agradecimentos.....................................................165 Recursos recomendados................................................167 Sobre os autores..............................................................171 Sobre a Duke Divinity School Center for Reconciliation............................................................173
INTRODUÇÃO
R
econciliando todas as coisas. É um título absurdo para um livro. Especialmente um tão pequeno como este. Se o título é ambicioso, é porque este livro surge da nossa profunda inquietação sobre o que significa viver fielmente em um mundo corrompido e dividido. Um de nós é americano. Um de nós é africano. Um é protestante, o outro é católico. Um é prático, o outro é teólogo. Ainda assim nossas jornadas se cruzam e desafiam categorias, fronteiras e lealdades fáceis. Estamos unidos como inquietos peregrinos em busca de algo melhor em um mundo dividido. A inquietação e as convicções deste livro crescem a partir de três viagens de peregrinação.
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Uma vida de peregrino Para mim (Chris), mesmo depois de sete anos em Durham, Carolina do Norte, continuo me sentindo um estranho em um território desconhecido. Eu sou tão branco e americano quanto a maioria dos meus queridos amigos da Blacknall Presbyterian Church. Meus filhos jogam em ligas de futebol e montam a cavalo. Vivemos em uma vizinhança urbana, tranquila e estável. Diplomado pela Duke Divinity School, onde agora eu trabalho, posso falar muito sobre o mundo acadêmico. Mas a educação mais importante que já recebi veio durante meus doze anos crescendo na Coreia do Sul como filho de missionários, e meus dezessete anos vivendo no centro de um bairro negro em Jackson, Mississipi. Lá estava eu, nascido nos Estados Unidos, mas crescendo na movimentada Seul durante os tumultuados anos pós-guerra da Coreia, quando vimos também um crescimento explosivo do cristianismo. E lá estava eu depois disso, estudando chinês no Middlebury College e aspirando uma carreira no governo. Fiz uma pausa de verão para ser voluntário no Mississipi, entre todos os lugares. Cheguei ao Mississipi em 1981 como um sonhador de vinte anos. Lá na Voice of Calvary Ministries – fundada pelo pastor e ativista do Mississipi John Perkins no centro da cidade e que foi abandonada pelas igrejas de todas as cores – cristãos de diferentes raças louvavam, trabalhavam e viviam lado a lado nas mesmas ruas, sete dias por semana. Tudo o que você pensar, a Voice of Calvary fez: abrigos, desenvolvimento econômico, ministério de jovens. Era um lugar emocionante de se estar.
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Fui para Jackson por três meses e fiquei por dezessete anos. Minha esposa, Donna, e eu nos conhecemos e nos casamos na Voice of Calvary, e nossos três filhos nasceram ou foram adotados lá. Eu vi nossa igreja quase ser dividida em uma crise racial. Experimentei revelações de como Deus pode trazer alegria, amizade e nova vida através da dor, do fracasso e da fraqueza. Ao longo do caminho tornei-me um amigo e colaborador improvável de Spencer Perkins, o filho do fundador, que cresceu em meio a intensa animosidade racial. Ajudamos a iniciar uma comunidade cristã chamada Antioquia, na qual nossas famílias viveram durante doze anos. Fundamos também um ministério nacional de reconciliação e escrevemos um livro para contar nossa história. Então Spencer e eu quase nos separamos em 1997 – uma dolorosa crise de relacionamento. Mas, de alguma forma, com a ajuda de amigos, aprendemos a dar um ao outro graça suficiente para seguir em frente e a confiar em Deus na necessidade. Tentar viver pacificamente em uma vizinhança, em uma igreja e com uma pessoa chamada Spencer, me ensinou que a reconciliação é uma longa e frágil jornada. Mas a lição mais importante daqueles dezessete anos no Mississipi foi essa: mesmo em um mundo profundamente dividido, mesmo no mais profundamente dividido relacionamento, o modo como as coisas são não é o modo como as coisas têm que ser. Depois da morte repentina de Spencer em 1998 e de um período de discernimento, nossa família abriu um novo capítulo. Aqui em um lugar diferente – do outro lado do caminho na Duke University – imediatamente me senti inquieto: podem lugares como Duke e West Jackson dizer alô, se tornarem amigos e transformarem um ao outro?
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Através dessa peregrinação dos Estados Unidos para a Coreia, para o Mississipi e para Duke, eu me encontrava constantemente ansiando e buscando comunhão entre mundos e fronteiras nas quais eu vivi dos dois lados – Ásia e América, negro e branco, os que têm e os que não têm, ação e reflexão, as tomadas de decisão da Blacknall Presbyterian Church e a espontaneidade do coral gospel da Voice of Calvary, o kimchi1 coreano e as costelas do Mississipi, a realidade dos tiros em West Jackson e a beleza dos jardins de Duke.
Um africano na América A segunda fonte de inquietação deste livro é encontrada na jornada de Emmanuel. Para mim (Emmanuel) essa também tem sido uma peregrinação inesperada, pois nunca me imaginei em um lugar como Duke. Aqui estou eu, um ugandense que cresceu na pequena vila de Malube. Um padre católico em um seminário metodista. Um africano vivendo nos Estados Unidos. Sou um filho de Uganda, nascido e criado na aldeia, e me lembro de acordar às 5 horas da manhã e cuidar do jardim antes de correr mais de três quilômetros até a escola. Mas também pude estudar em Uganda, Roma e Bélgica. Agora estou ensinando em uma rica universidade de pesquisa, indo para casa e voltando frequentemente em nome de uma estimulante conversa sobre a África. Meu pai veio de uma família pobre de Ruanda para Uganda, criando sete filhos com minha mãe. Ele mesmo 1
Prato tradicional coreano feito de legumes com temperos variados. (N. de Tradução)
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nunca foi à escola, e ainda assim se tornou um líder em nossa escola, mobilizando as crianças da vila a terem uma educação. Faleceu quando eu tinha doze anos. Meu irmão morreu de AIDS em 1993. Quando a guerra civil eclodiu em 1980, minha mãe fugiu de casa, pois os militares aniquilavam todos os seres vivos. Ela andou mais de oitenta quilômetros até Kampala e não voltou até seis anos mais tarde. Aqui estou, tanto com minha experiência de crescer na África sob o brutal regime de Idi Amin, quanto com meu envolvimento nas dinâmicas e ricas tradições da igreja africana. Em todo o meu estudo me encontro em busca de algo melhor do que a tribalização que divide a África, ou categorias como norte e sul, negro e branco. Aqui estou, insistindo na questão enquanto ensino: “Mas o que essa teologia significa para minha mãe? O que significa lá em Malube, onde árvores são cortadas por empresas poderosas, onde as estradas estão em ruínas, onde não existe água limpa, onde o padre mora em uma cidade distante? O que significa para nossas conversas sobre Deus e a paz nunca se desconectar dos desafios locais e reais, da escavação de poços, organização da educação e plantio de árvores?” Quer eu esteja construindo uma comunidade entre congregações africanas e americanas através do ministério Share the Blessings, quer esteja levando peregrinações dos estudantes e professores da Duke para Uganda, ou apoiando ugandenses que servem como padres em paróquias americanas, minha vida é estar na Duke e, ao mesmo tempo, nunca deixar a África.
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Uma jornada compartilhada A terceira fonte de inquietação deste livro vem da jornada que compartilhamos. Descobrimos um ao outro em uma sala de aula em Duke, Emmanuel era professor e Chris, aluno. Logo éramos amigos, descobrindo até mesmo que nascemos no mesmo ano. Finalmente uma viagem internacional notável surgiu das nossas duas jornadas através do Caminho de Reconciliação do Fórum Lausanne para Evangelização Mundial, em 2004. Chris foi solicitado a convocar o Caminho de Reconciliação e convidou Emmanuel para se juntar à sua equipe de liderança. A viagem levou a equipe da Duke, a Ruanda dez anos depois do genocídio, e ao fórum de outubro de 2004, na Tailândia, com 1.500 participantes. Durante aquela semana na Tailândia reunimos cinquenta líderes cristãos de vinte e um dos mais historicamente divididos lugares – da Coreia à Irlanda do Norte, da Índia à África do Sul. Enquanto adorávamos, as denominações e nações faziam refeições juntas, debatiam e refletiam sobre os nossos ministérios de reconciliação, algo lindo aconteceu: estranhos se tornaram companheiros, e uma comunidade global de inquietos nasceu. Dividindo um quarto na Tailândia, nós dois nos unimos e conversávamos até tarde todas as noites. De volta a Duke, as conversas se intensificaram com Greg Jones, nosso deão2, sobre uma nova e maior iniciativa centrada na reconciliação. Em dezembro de 2004 estávamos 2
Dignitário ou responsável máximo de um órgão colegial da Igreja. (N. de Tradução)
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andando por uma praia na Carolina do Norte como os novos codiretores do Centro de Reconciliação de Duke, compartilhando nossos sonhos de como um centro deveria ser se quisesse levar a sério tanto as realidades sociais quanto as Escrituras, tanto ação quanto reflexão, tanto a América quanto a África. No entanto, mesmo nessa crescente amizade, não tínhamos certeza de onde estávamos entrando. Como protestante e católico em igrejas que não compartilhavam do cálice da comunhão, sabíamos que a divisão da igreja estava no coração da nossa inquietação. Desde aquela caminhada em dezembro de 2004, caminhamos juntos nas vilas de origem um do outro em Uganda e no Mississipi. Chris viu a igreja na qual Emmanuel foi batizado na fé. Emmanuel viu a mesa de jantar da Antioquia, que unia Chris a uma comunidade amada. Agora, em três anos de jornada do centro, uma nova iniciativa está se formando em torno da reconciliação – um celeiro para futuros líderes (enviamos estudantes para o Mississipi e para Uganda), um centro de recursos e uma estação de abastecimento para nutrir líderes cristãos na América e em todo o mundo. Todo semestre é cheio de encontros – na Universidade de Duke, em toda a América e ao redor do mundo, com pessoas que trabalham em locais de dor profunda com grande esperança.Terminamos cada semestre naquele mesmo litoral da Carolina do Norte, caminhando na praia e nomeando as dádivas. Essa jornada não vale a pena sem alegria e celebração ao longo do caminho, sem nos lembrarmos da história maior na qual estamos envolvidos.
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As convicções neste livro As convicções que exploramos neste livro se tornaram claras apenas à medida que trabalhamos juntos para estabelecer o centro. Descobrimos que desenvolvemos convicções comuns fortes sobre reconciliação como visão e prática cristãs. De fato, em nosso entusiasmo pela constante construção de pontes entre mundos diversos, vemos uma jornada maior – uma busca pela nova criação de Deus e uma visão nova para a igreja – não a igreja das divisões atuais nem a igreja mergulhada em violência, mas a igreja como deve ser: a noiva de Cristo, vinda de todas as nações, línguas, tribos e denominações. Muitos dos nossos estudantes e outros jovens cristãos que encontramos estão à procura dessa nova visão. Estão ansiosos para quebrar a bolha da familiaridade e do conforto para servir na África do Sul, Uganda, Sudão, Chicago, Washington e Mississipi. Eles voltam muito inquietos, e nunca são os mesmos. No entanto, reconciliação não é apenas para estudantes de seminário ou “profissionais” do ministério, ou para aqueles que vão muito longe em nome da paz. A convicção básica deste livro é que reconciliação, como visão cristã, requer a vida de todas as pessoas, lugares e congregações – não é terreno de especialistas e profissionais. Este livro é para você, onde quer que você viva. Essa busca de pessoas comuns para a nova criação de Deus em um mundo corrompido é o tema. Em Reconciliando todas as coisas nossa intenção é traçar as linhas gerais de uma jornada de reconciliação que é distintamente cristã –
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uma mudança de posição, de ver a história das Escrituras a aprender a lamentar e a ver como é a esperança em um mundo corrompido. Não estamos satisfeitos com a maneira pela qual a reconciliação é comumente abordada dentro e fora da igreja. Então começamos por pensar criticamente sobre as visões predominantes de reconciliação. Duas palavras são fundamentais em todo o livro: jornada e dons. Reconciliação é, na verdade, um convite para uma jornada. Não é uma “solução” ou um produto final, mas um processo e uma busca contínua. Mas nós precisamos de dons para participar bem dessa viagem. A boa notícia deste livro é que Deus não deixou o mundo sozinho. Ele nos deu tudo que precisamos para nos sustentar na jornada. Um dom no coração deste livro é a esperança – uma esperança que flui a partir da convicção da nossa própria jornada da vida: o modo como as coisas são não é o modo como as coisas têm que ser. Onde quer que formos nos lugares mais corrompidos do mundo, Deus está sempre plantando sementes de esperança. Essa esperança está, muitas vezes, abaixo da tela do radar e é facilmente perdida. Neste livro compartilhamos histórias do surgimento da nova criação de Deus, a boa nova do que o Espírito Santo está fazendo em todo o mundo. Vemos profunda esperança nas vidas de fiéis que vieram antes de nós. Assim, parte da metodologia neste livro é mostrar a vida de líderes-chave em reconciliação e selecionar insights de seu trabalho. Dessa forma, vamos revisitar exemplos por toda parte. No final do livro propomos dez teses para “Recuperando a reconciliação como missão de Deus”. Esperamos fornecer um roteiro que começará a preencher o “todas
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as coisas”, explorando diferentes aspectos da visão cristã de reconciliação em relação a problemas e desafios reais.
Tornando-se mais cristão Uma das viagens que compartilhamos foi a Peregrinação de Dor e Esperança da Duke Divinity School, em 2005, em Uganda e Ruanda. Ao longo da nossa jornada de duas semanas, um destaque foi nossa visita ao cardeal Emmanuel Wamala, um dos mentores espirituais de Emmanuel em Kampala, Uganda. Cumprimentando-nos calorosamente em sua túnica branca e chapéu vermelho, Wamala falou eloquentemente sobre o desafio de viver fielmente. “Nós temos o livro”, ele disse, falando dos africanos e da Bíblia. “Mas o quanto sabemos sobre ele?” Mais tarde, o cardeal brincou com Dean Greg Jones que Duke deveria ser canonizada por suportar Emmanuel por todos esses anos. Então, refletindo sobre a presença de Emmanuel como um africano católico nesse seminário protestante na América, o cardeal disse palavras surpreendentes: “Não, você não o tornou mais católico. Você o tornou mais cristão”. No final, aprender a se tornar um peregrino fiel em meio à fragilidade deste mundo é se tornar mais cristão. Um provérbio ruandês diz: “Para ir mais rápido, ande sozinho. Para ir mais longe, andem juntos”. Quando aprendemos a desacelerar para dar espaço ao andar juntos, apesar das divisões, nos tornamos mais cristão. É disso que se trata este livro: se tornar mais cristão diminuindo a marcha.
1 VISÕES PREDOMINANTES DA RECONCILIAÇÃO
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ivemos em um mundo corrompido. Comece o dia com o jornal ou com um tempo de silêncio, em breve você ficará cara a cara com o pecado que nos separa de Deus e coloca muros entre as pessoas. A corrupção do nosso mundo é mais do que uma questão de doutrina cristã. É uma realidade que molda nossa vida diária. Em 1964, em Trosly-breuil, França, dois homens com necessidades especiais acordaram em uma instituição isolada, desligados de um mundo que tinha pouco tempo para eles. Inúteis para a economia que determina o sucesso para a maioria de nós, esses homens estavam destinados a ser pouco mais do que destinatários dos serviços de saúde mental. Enquanto isso, na mesma cidade francesa, um ex-oficial naval e jovem universitário promissor chamado Jean Vanier tinha acabado sua tese de doutorado. Apesar de toda a aparência de sucesso,
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Vanier era solitário. Como os homens na instituição, ele era isolado e não tinha certeza se alguém o amava por quem ele era. Vanier não tinha ideia de que tinha algo em comum com homens em uma instituição mental. Ninguém tinha lhe ensinado a questionar a divisão da sociedade entre pessoas “normais” e incapazes. Em 1970 John Perkins, um pastor e organizador de comunidades afro-americano que vivia no “lado negro” da cidade rural de Mendenhall, Mississipi, foi espancado quase até a morte por policiais brancos. O cristianismo que Perkins e os policiais compartilhavam não fez nada para desafiar o muro que o racismo havia construído entre eles. Na verdade, depois de uma agressão brutal, Perkins só podia esperar que a divisão o protegeria de mais violência. No tumulto de 1970 ele tinha boas razões para não querer ter nada a ver com os brancos. Em 1974 Billi Neal Moore, um soldado do exército de licença em casa, na Geórgia, tentou roubar Fred Stapton, de sessenta e sete anos, em sua casa. Quando Stapton ouviu o intruso, atirou na escuridão. Moore atirou também e o matou. “Quando percebi que realmente tinha matado uma pessoa, não acreditei”, disse Moore. Ele se declarou culpado do assassinato e foi sentenciado à morte. A família de Stapton perdeu seu pai e avô, Moore perdeu qualquer esperança de futuro. Muros literais se ergueram em torno de Moore para garantir que ele nunca mais encontraria as pessoas que suas ações haviam ferido. Unidos pela violência, Moore e a família de sua vítima estavam divididos pela sociedade que não podia imaginar redenção. Em 1990, um padre anglicano sul-africano branco chamado Michael Lapsley, na época capelão do Congresso
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Nacional Africano, abriu uma carta das forças dentro do governo do apartheid. A bomba explodiu duas mãos e um olho, destruindo seus tímpanos. Durante anos Lapsley havia trabalhado pacientemente por justiça em seu país, apenas para ser traído por sul-africanos brancos que o consideravam um traidor. Lapsley havia tentado cruzar a linha divisória e ficou cara a cara com o poder da divisão. Seria ele demasiado idealista, imaginando que a África do Sul poderia sair do apartheid e se tornar uma sociedade que abraçaria brancos e negros como iguais? No norte de Uganda, onde famílias vivem com medo em uma das mais esmagadoras (e menos comentadas) situações de violência, 139 crianças foram sequestradas de sua escola pelo Exército de Resistência do Senhor em 1996. Entre as crianças estava a filha de quatorze anos de Angelina Atyam, uma parteira e enfermeira. Atyam sabia que nunca mais veria sua filha. Milhares de pais antes dela haviam se resignado amargamente a uma realidade brutal que não podia ser mudada. Ela tinha todos os motivos para estar com raiva e com pouco espaço para a esperança de que alguma coisa poderia mudar. Embora nem todos nós tenhamos experimentado o trauma em grande escala da guerra ou a violência do racismo brutal, todos conhecemos a corrupção e a divisão em algum grau, seja através de divórcio, abuso, injustiça social, conflitos na comunidade ou dentro de nossas próprias famílias. Vivemos juntos em um mundo corrompido, e não precisamos viver muito tempo para aprender que precisamos de cura. Precisamos de reconciliação. Sabemos por experiência que nosso mundo está corrompido e precisa ser consertado.
Nosso mundo está corrompido O estado do mundo hoje é de crise geopolítica e estado de guerra, de conflitos étnicos e tribais, de famílias desajustadas e crianças traumatizadas, de exploração e degradação do meio ambiente. As sociedades estão divididas nas questões de classe, religião, política, poder socioeconômico, raça e acesso a recursos. Nações continuam a enfrentar as atrocidades da escravidão, exploração e genocídio. Resumindo, nosso mundo clama por reconciliação. Mas apenas a resolução de conflitos não é o suficiente. O que torna a real reconciliação possível? Como algumas pessoas são capazes de perdoar os mais terríveis dos males? E que papel Deus representa nessas histórias? A reconciliação faz algum sentido fora da história bíblica da redenção? Emmanuel Katongole e Chris Rice, codiretores do Center for Reconciliation, na Duke Divinity School, lançam uma visão de reconciliação que é bíblica, transformadora e holística, ajudando cristãos a imaginarem uma nova criação em suas vidas cotidianas. Eles recorrem a recursos da história cristã, incluindo suas próprias experiências individuais em Uganda e no Mississipi e trazendo uma reflexão teológica sólida para sustentar o trabalho de reconciliação individual, de grupos e de sociedades. Eles recuperam práticas tipicamente cristãs que ajudarão a igreja a ser tanto sinal quanto agente da reconciliação do amor de Deus no mundo dividido do século 21.
“Dada a quantidade de seres humanos que deixam as coisas desmoronarem, este recurso é precioso para indivíduos, grupos e instituições. Existe um futuro para nós se não aprendermos exatamente como curar e reconciliar?” Richard Rohr, O. F. M., Center for Action and Contemplation