Um novo caminho uma nova vida

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Adriano Peixoto Panazzolo Aline Figueiredo Freitas Pimenta com Sebastião Ribeiro

Um novo caminho

Uma nova vida Programa de Reassentamento Populacional da Rodovia do Parque − BR-448/RS

1º edição

Canoas STE − Serviços Técnicos de Engenharia S.A. 2013


Adriano Peixoto Panazzolo Aline Figueiredo Freitas Pimenta com Sebastião Ribeiro

Um novo caminho

Uma nova vida Programa de Reassentamento Populacional da Rodovia do Parque − BR-448/RS

1º edição

Canoas STE − Serviços Técnicos de Engenharia S.A. 2013


Panazzolo, Adriano Peixoto

Um novo caminho Uma nova vida : programa de reassentamento

populacional da Rodovia do Parque – BR-448/RS / Adriano Peixoto Panazzolo; Aline Figueiredo Freitas Pimenta com Sebastião Ribeiro. – 1. ed. – Canoas : STE – Serviços Técnicos de Engenharia S.A., 2013.

Prefácio A institucionalização da questão ambiental no Brasil deu-se com a edição da Lei nº 6.938/81, que instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente, cujo objetivo era preservar, melhorar e recuperar a qualidade ambiental propícia à vida, visando a assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, à segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana.

152p.; 23cm.

Trinta e dois anos depois, inúmeras normas infralegais surgiram, e a retomada do desenvolvimen

to da infraestrutura resultou, muitas vezes, em acúmulo de danos sociais e ambientais, eviden-

ISBN 978-85-67309-00-2

ciando falta de integração entre as diversas políticas públicas.

1. Assentamentos humanos – Rio Grande do Sul. 2. Gestão ambiental –

Rio Grande do Sul. 3. Rodovia do Parque. I. Pimenta, Aline Figueiredo Freitas. II. Ribeiro, Sebastião. III. Título.

É por essa razão que me sinto particularmente honrado por apresentar aos leitores este trabalho, que relata uma das mais exitosas experiências do DNIT no que tange à gestão ambiental – em particular, na dimensão social, em face das atividades desenvolvidas no âmbito dos programas

CDD 22. ed. 333.318165

de educação ambiental, comunicação social e reassentamento populacional. O DNIT, em parceria com a STE - Serviços Técnicos de Engenharia S.A. - Gestora Ambiental, modelou esse processo de modo que as ligações entre a natureza, o fluxo das atividades econômicas da região e a construção da rodovia fossem harmonizadas, o que permitiu o alcance dos resultados ora expostos neste inédito trabalho.

Apoio:

O equacionamento de soluções para os problemas ambientais advindos da construção da BR-448/RS foi, em muitos aspectos, inovador, e, na minha modesta opinião, pela primeira vez em obras rodoviárias os objetivos socioambientais foram alcançados por padrões eficientes, em que recursos econômicos foram alocados de forma que os benefícios e os custos resultantes à sociedade fossem de fato iguais.

Realização:

Mas, sem dúvida nenhuma, as grandes contribuições desse processo são o conhecimento e a habilidade desenvolvidos para compatibilizar a implantação da obra e a superação das questões sociais, por meio da construção da Vila de Passagem e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de relações comunitárias e sociais, o fomento de uma atividade econômica sustentável e o resgate da dignidade humana. Tarcisio Gomes de Freitas Diretor Executivo do DNIT


Expediente Coordenação geral: Adriano Peixoto Panazzolo (STE S.A.), Aline Figueiredo Freitas Pimenta e Pedro Luzardo Gomes (DNIT) Coordenação editorial: Carlos Alfredo Türck Júnior e Letícia Coradini Frantz Revisão técnica: Catarina Silveira Muñoz (DNIT), Joceane Gasparetto e Manuela Schneider (Prefeitura Municipal de Canoas) Reportagem: Andrea Weschenfelder e Sebastião Ribeiro Edição jornalística: Isabel Marchezan Revisão: Simone Diefenbach Borges Projeto gráfico e diagramação: Ulisses Romano (Visual Agência - Comunicação e Design)

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Edição: STE – Serviços Técnicos de Engenharia S.A. e Cartola – Agência de Conteúdo Fotos de capa: Consórcio Queiroz Galvão/OAS/Brasília Guaíba, Eduardo Rocha e Prefeitura Municipal de Canoas

Trabalharam no Programa de Reassentamento Populacional da BR-448/RS: Adriano Peixoto Panazzolo

Evandro Feltrin Teixeira

Marlene da Silveira

Aline de Oliveira Viegas

Janaína Pugliese dos Santos

Nêmora Silveira

Aline Márcia Paula Farias

Juliana Pugliese Christmann

Paula Cantergi Padilha

Ana Maria Fialho Borges

Lecir Ribas Marins

Roberto Carlos dos Santos Rocha

Andrea Weschenfelder

Letícia Coradini Frantz

Sara Cristina Kauer Rocha

Andressa Krewer Facin

Luana Rosado Emil

Sílvia Regina de Souza

Andrezza Pinto Nascimento

Luciane Duarte da Silva

Silvia Soares Aurélio

Bárbara Janaína Alves da Annunciação

Luís Adriel Pereira

Suzana Vellinho Englert

Carlos Alfredo Türck Júnior

Luis Eduardo Nunes

Suzielli Paiva Modkowski

Chaiana Teixeira

Marcela Nascimento Sternick

Tais dos Santos Rosa

Daniele Alves Branco

Marcela Rodrigues

Valéria Debom

Denise Natália Zambonin Longhi

Mário de Almeida

Vanessa Santa Helena de Almeida

www.rodoviadoparque.com.br

Introdução

O histórico da BR-448/RS

A relação com a comunidade

A Vila de Passagem

Os desdobramentos na Vila de Passagem

As casas definitivas

Conclusão

Pág. 7

Pág. 15

Pág. 63

Pág. 79

Pág. 95

Pág. 127

Pág. 149


Introdução A BR-448/RS como exemplo Legalmente previsto no Brasil desde 1981, o processo de licenciamento ambiental de projetos faz parte da rotina de qualquer empreendedor, seja na iniciativa pública ou privada. Ainda assim, é dinâmico e passa por aperfeiçoamentos à medida que surgem novas regulamentações, princípios, interpretações e jurisprudências. A avaliação de impactos – para posterior definição de medidas compensatórias ou mitigatórias de aspectos negativos ou potencializadoras de positivos – deve envolver os meios físico, biótico e socioeconômico. O senso comum, por vezes equivocadamente, associa ambiente a fauna, flora e condições do solo. Mas as pessoas têm papel central – marcadamente positivo ou negativo – quando o tema é sustentabilidade. Uma visão sacramentada na Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e DesenFoto: Eduardo Rocha


volvimento de 1992, a Eco-92, realizada no Rio de Janeiro, diz que: “Os seres humanos estão no

Reassentamentos

centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”.

Assim como as rodovias devem ser planejadas e construídas de forma a ter mitigados, compensados ou potencializados seus impactos na fauna, na flora, no solo, na água e no ar, o mesmo

Responsável por algumas das maiores obras do Brasil, o Departamento Nacional de Infraes-

deve ocorrer no que diz respeito à vida das pessoas que habitam a área afetada. Quando o

trutura de Transportes (DNIT), vinculado ao Ministério dos Transportes, tem sido modelo na

empreendimento demanda liberação de áreas de pessoas que vivem ou são donos da terra, é

execução de medidas mitigadoras, compensatórias ou potencializadoras do impacto de em-

realizado o processo de desapropriação em nome do interesse público, conforme previsto no

preendimentos no contexto socioeconômico e cultural das áreas afetadas. Nesse sentido, o

decreto-lei nº 3.365/41. Nesse caso, o proprietário recebe indenização. No entanto, há casos em

recente caso da BR-448/RS, ou Rodovia do Parque, é um exemplo, especialmente seu Plano

que a área necessária para duplicação ou abertura de uma via está ocupada por quem não é

Básico Ambiental (PBA) no que diz respeito à população diretamente afetada pela rodovia. Um

dono – muitas vezes, famílias em estado de pobreza que ocupam irregularmente área pública

dos Programas Ambientais é o reassentamento involuntário de 599 famílias da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), em um processo que tem a parceria do Ministério das Cidades e da Caixa Econômica Federal (com a construção de novas moradias por meio do Programa Minha Casa, Minha Vida), e da Prefeitura Municipal de Canoas, município onde está a maior parte das famílias realocadas (uma pequena parte é oriunda das cidades de Esteio e Sapucaia do Sul). A comunidade habitava um local conhecido como Vila do Dique. O Programa de Reassentamento Populacional da BR-448/RS não foi o único realizado pelo DNIT, mas, pelo número de pessoas de uma única comunidade a serem reassentadas e pelos resultados da ação, especialmente no acompanhamento social, serve de exemplo para outros projetos da mesma natureza. Além disso, as circunstâncias do meio em que é implantada a rodovia agregam complexidade ao empreendimento. Embora o trecho da Vila do Dique seja o mais delicado nesse sentido, por demandar a retirada da população, em toda a sua extensão a estrada também passa muito próximo de bairros residenciais e concentrações industriais, interferindo diretamente na vida da cidade – um desafio a mais para a avaliação de impacto ambiental. A facilidade de execução de uma obra não necessariamente está relacionada ao seu porte ou valor, mas muitas vezes ao contexto ambiental em que o empreendimento está inserido. É isso que fez do projeto da Rodovia do Parque um grande desafio, especialmente quando comparado ao porte do empreendimento, cujo trecho construído é de 22,24 quilômetros.

8

Um novo caminho Uma nova vida

Ação segue diretrizes da ONU As ações do DNIT seguem diretrizes fornecidas pelos Princípios Básicos e Orientações para Remoções e Despejos Causados por Projetos de Desenvolvimento, publicados em 2007 pela relatoria especial da Organização das Nações Unidas para Direito à Moradia Adequada: • Todas as medidas que tornem a moradia adequada no novo local devem ser concluídas antes da remoção/reassentamento, tais como a construção de casas, escolas, instalação de saneamento básico, entre outras; • A nova moradia, terra ou território deve ter qualidade superior ou equivalente à moradia original. Isso

inclui as mesmas condições ambientais, geográficas e estruturais, como, por exemplo, condições para o escoamento da produção, espaços de convívio social etc.; • A nova moradia deve estar localizada o mais próximo possível do local original, bem como de fontes de meio de subsistência ou outras soluções pactuadas. A adequação cultural e as tradições do grupo devem ser respeitadas; • Os custos de deslocamento para o trabalho ou para acessar serviços essenciais no novo local de moradia não devem pesar no orçamento das famílias; • Os locais para onde as pessoas serão deslocadas não devem estar

situados em áreas de proteção ambiental, em terras contaminadas ou próximo de fontes de poluição que possam afetar o direito à saúde mental e física dos habitantes; • O reassentamento deve ser realizado de forma justa e equitativa, não se admitindo discriminação contra grupos específicos, nem formação de áreas segregadas e guetos; • O reassentamento não pode resultar na violação dos direitos humanos da população transferida, nem afetar negativamente as condições de vida da população que já habitava anteriormente o local, devendo, pois, respeitar os elementos que compõem a moradia adequada.

Introdução

9


ou de terceiros. Nesses casos, em que fica caracterizada a ocupação por moradores em situação

moradia, presente no texto constitucional, é reconhecido pela Declaração Internacional dos Di-

de vulnerabilidade social, executar Programas Ambientais para mitigar, compensar ou poten-

reitos Humanos, de 1948, em seu artigo 25, e no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,

cializar o impacto nessas comunidades é uma das obrigações do DNIT como empreendedor. Os

Sociais e Culturais, de 1966, em seu artigo 11, entre outros. Já o Alto Comissariado para Direitos

Programas de Reassentamento podem envolver a realocação da família mediante indenização

Humanos da Organização das Nações Unidas estabelece que, nos casos nos quais o despejo

das benfeitorias; compra assistida, por meio da qual o Departamento adquire imóveis na região

forçado é justificável, ele deve ser empreendido com princípio de razoabilidade e proporcio-

impacto ambiental,

e acompanha a mudança das famílias; ou construção de loteamentos para reassentar os mo-

nalidade, não devendo causar situações de pessoas sem-teto ou vulneráveis de qualquer for-

como instrumento

radores, indicada em caso de grande número de pessoas em trechos não muito longos, opção

ma à violação de direitos humanos. Nos comentários gerais da publicação A Luta por Moradia

utilizada no caso da BR-448/RS.

Adequada: Despejos Forçados, de 1997, o órgão da ONU recomenda: “Onde aqueles afetados

“A avaliação do

nacional, será

administrativo pelo qual o órgão

de acordo com o máximo de recursos disponíveis, para garantir que uma adequada alternativa

as atividades

nerabilidade social deriva da legislação ambiental brasileira e é definida, em cada caso, nos

habitacional, reassentamento ou acesso a terra produtiva, conforme o caso, seja disponível”.

respectivos estudos ambientais – entre os quais, o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório

possam vir a ter um impacto

“A prefeitura de Canoas entendeu a importância da BR-448/RS para

adverso sobre o

a cidade e o Estado. Priorizamos em nosso planejamento o apoio

ambiental competente licencia a localização, a instalação, a ampliação e a operação de

O licenciamento ambiental

empreendimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais considerados efetiva ou potencialmente poluidores ou

Dentro da legislação ambiental, é preciso restar nítido que os Programas de Reassentamento

aqueles que, sob qualquer for-

decorrentes de obras de infraestrutura são parte do processo de licenciamento. A necessida-

ma, possam causar degradação

meio ambiente e

incondicional à obra e ao reassentamento.”

de da licença, por parte do órgão ambiental competente, de empreendimentos com poten-

estejam sujeitas

Jairo Jorge, prefeito de Canoas

cial de poluição ou degradação foi estabelecida pela lei federal nº 6.938/81 e recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Elaborados os estudos ambientais, bem como os planos

à decisão de uma

O estudo ambiental, a partir da caracterização do empreendimento e do diagnóstico do

básicos, os mesmos são submetidos à aprovação dos licenciadores, os quais adotam as me-

autoridade nacional

meio no qual será inserido, avalia a viabilidade ambiental do mesmo. Ou seja, os progra-

didas propostas, estabelecendo-as como condicionantes das licenças das obras, conforme

competente.”

mas voltados à mitigação ou compensação de impacto negativo às pessoas, bem como

prevê a lei federal nº 6.938/81 e as Resoluções Conama nº 001/86 e nº 237/97.

Princípio 17 da Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Eco-92

define o licenciamento ambiental como o procedimento

A responsabilidade do DNIT em realizar a realocação nos casos de famílias em estado de vul-

de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), que subsidiam as respectivas licenças ambientais.

A resolução Conama nº 237/97

são incapazes de prover para si mesmos, o Estado deve tomar todas as medidas apropriadas,

efetuada para planejadas que

O que diz a lei

ambiental. Para subsidiar a etapa de LI, o empreendedor elabora o Plano Básico Ambiental (PBA), que detalha os programas ambientais necessários para a minimização dos impactos negativos e maximização dos impactos positivos, identificados quando da elabo-

maximização dos impactos positivos, são parte integrante do licenciamento ambiental de uma obra, assim como outros, que podem ser voltados à redução de impactos nos ambien-

Já a inclusão no orçamento dos projetos e obras federais, como os relativos à infraestrutura de

tes físico e biótico.

transportes, de uma provisão de recursos para prevenir ou corrigir prejuízos de natureza social,

ração do EIA. Fonte: IBAMA

ambiental ou cultural é determinação do decreto presidencial nº 95.733/88. Esses recursos Ao elaborar um Programa de Reassentamento Populacional, o DNIT leva em consideração, além

devem ser de pelo menos 1% do valor total do projeto. Por isso, no caso da BR-448/RS, bem

do estudo ambiental, princípios definidos pela Constituição Federal e por normais nacionais

como de outras rodovias, o DNIT destina recursos, dentro do orçamento de cada projeto, para

e, ainda, por organizações e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. O direito à

prevenção, mitigação ou potencialização de impacto ambiental.

10 Um novo caminho Uma nova vida

Introdução

11


A CGMAB

Processo de gestão ambiental

Em 2004, foi criada a Coordenação Geral de Meio Ambiente (CGMAB) do DNIT, com obrigação de cuidar dos aspectos ambientais de todos os empreendimentos da autarquia em todas as suas etapas, desde o planejamento, passando pela implantação, até a sua operação. Isso resultou em um salto na valorização da questão ambiental em todas as suas obras. Em 2006, o Departamento investiu R$ 7,327 milhões em serviços ambientais de infraestrutura de transportes. Com a segunda fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC II) e o aumento das exigências ambientais por parte dos órgãos licenciadores, esse valor superou R$ 100 milhões em 2012. Um marco na execução de serviços ambientais nas obras de transporte foi a incorporação da gestão ambiental, concomitante à execução da obra. A duplicação da BR-101 entre Florianópolis/SC e Osório/RS foi a primeira obra do DNIT a contar com a destinação de recursos

A Gestão Ambiental dos empreendimentos rodoviários é o ato de administrar e ter gerência sobre o ambiente natural durante a execução (planejamento, acompanhamento e gerenciamento da implantação de programas ambientais voltados ao monitoramento ambiental, implantação de medidas compensatórias) e operação da via. Essa gestão tem como base três macroatividades: • Supervisão Ambiental: atividades que visam contemplar o efetivo e sistemático controle ambiental das obras e premissas estabelecidas nos

estudos ambientais antecessores, objetivando cumprir os preceitos do licenciamento ambiental e proporcionar condições para que a obra seja executada dentro das boas práticas de execução; • Gerenciamento Ambiental: atividades que envolvem a avaliação e revisão, com ênfase ambiental, do empreendimento no aspecto qualitativo, mirando a atualização da elaboração dos Programas Ambientais; apoio e gerenciamento de convênios celebrados com empresas especializadas ou instituições de pesquisa para implementação e desenvolvimento de

programas; gerenciamento junto aos órgãos ambientais e apoio institucional junto a outros atores; elaboração de um Sistema de Gestão Ambiental; alimentação de dados no Sistema de Apoio à Gestão Ambiental Rodoviária Federal para que todos os programas sejam desenvolvidos com a qualidade almejada e observação da legislação; • Execução de Programas Ambientais: execução e implantação dos programas ambientais descritos nas licenças ambientais e constantes no PBA ou no Plano de Controle Ambiental, em estrita concordância com esses estudos.

específicos para a gestão ambiental do empreendimento. Mas há vários outros casos de su-

Investimento anual em serviços ambientais do DNIT (em R$ milhões) 115,192

105,161

cesso na redução de impacto ambiental de rodovias, como a duplicação da BR-101/NE e da BR-116/RS e a pavimentação da BR-386/RS e da BR-163/PA. Cada uma dessas gestões resulta

100,351

Ao contar neste livro os pormenores dessa experiência, esperamos que técnicos da adminis-

33,402

tração pública ou privada possam extrair ideias para seus projetos de mitigação de impacto

7,327

2006

a Rodovia do Parque já deixou as suas, especialmente no que diz respeito ao seu Programa de Reassentamento Populacional.

79,279

25,431

em lições para os novos contratos de Gestão Ambiental. Mesmo com obras em andamento,

nas populações afetadas por empreendimentos, conhecendo de antemão os problemas que

2007

2008

2009

2010

2011

2012

podem advir de qualquer processo de reassentamento e, com isso, evitando-os ou traçando estratégias prévias para enfrentá-los.

Fonte: CGMAB/DNIT

12 Um novo caminho Uma nova vida

Introdução

13


Foto: Belfoto

O histórico da BR-448/RS A vida pregressa Quando funcionários da prefeitura bateram à sua casa em 2009, coletando dados e fixando um adesivo com o selo 309 atrás da porta, Nadiles da Silva desconfiou da história de que o cadastramento era o primeiro passo para sua família ser transferida da Vila do Dique, em Canoas, no Rio Grande do Sul. Quando, dois anos depois, um pessoal vestindo coletes azuis apareceu para atualizar o cadastro, manteve-se cética. Afinal, não era a primeira nem a segunda vez que chegavam à sua casa com a promessa de reassentamento em um local com melhores condições. Mesmo com as obras da BR-448/RS já iniciadas, com a previsão de que a estrada passasse sobre a vila, poucos dos 2,5 mil moradores do local levavam fé na casa nova. Havia famílias com aproximadamente 40 anos de vida junto aos diques de contenção contra cheias, e isso gerava um sen-

1


timento generalizado de descrença. Para Nadiles, o cadastramento realizado pela prefeitura de

− Ai, mãe, eu estou tão mal - reclamou o garoto.

Canoas em 2009, bem como o seu complemento feito pela equipe social da Gestão Ambiental da

− O que houve, te fizeram mal no colégio?

rodovia, contratada pelo DNIT em 2011, era apenas mais um. Afinal, há quase 20 anos ela mora-

− Não, estou com saudade do pai.

Foto: Eduardo Rocha

va ali, e a região continuava sem serviços básicos como água encanada, esgoto e energia elétrica. Nadiles chamou o filho para o colo e sentenciou: Nascida em 1974 em Chapecó, Santa Catarina, Nadiles é a décima segunda de 14 filhos do casal Manuel e Pedrolina da Silva. Naturais de Nonoai, no noroeste gaúcho, os pais trabalhavam na lavoura,

− Meu filho, hoje tu tens de entender que sou teu pai e tua

antes de se mudarem para o estado vizinho e o chefe da família conseguir um emprego na prefeitura

mãe. Ele não volta mais.

local. A filha que foi parar em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, estudou até a quinta série do primeiro grau e se casou aos 17 anos com o trabalhador rural Ivaldino Pereira. Moraram um

Os dias que se seguiram à morte do marido foram difí-

tempo no pátio da casa da mãe dela, um tempo no pátio da mãe dele, até se mudarem para Osório,

ceis. Vender o Chevette amarelo dele, ir atrás de pensão,

no litoral gaúcho, onde construíram um barraco no pátio da casa da irmã dele, e, enfim, irem para

reunir documentação. Quem passou madrugadas na fila

Canoas, onde se instalaram no pátio da casa de outra irmã dele. Até que, de pátio em pátio, conse-

do INSS com ela, em busca de benefício, ajudou-a com a

guiram construir uma casa em terreno próprio, embora ocupado irregularmente, em 1995.

papelada, esteve ao seu lado nesse momento, foi Arci, irmão de uma vizinha, e com quem Nadiles se juntaria três

Quando chegaram à Vila do Dique, em 1993, em busca de emprego na Região Metropolitana, o

Nadiles da Silva, moradora da Vila do Dique desde 1993

meses após o falecimento de Ivaldino.

primeiro filho de Nadiles, Marcos, tinha 15 dias de idade. Com Ivaldino, ela ainda teve outro menino, Renan, nascido em 1998. Depois ainda viriam, com o segundo marido, Arci Durão, Kaynan, de

Com um ou com outro, o que nunca mudou foi a condição precária de moradia no Dique, as

2003, e a menina Samyra, de 2008.

ratazanas que invadiam a casa após cada enchente, o eterno bate-bate de pregação das tábuas do assoalho, sempre soltas. Tão frágeis que as camas tinham de ser constantemente trocadas de

Se tem um dia que Nadiles não esquece na vida é 19 de maio de 1999. Era uma noite chuvosa na

lugar, para livrar seus pés das madeiras apodrecidas. Tão podres e cheias de cupins que em um

Região Metropolitana. As rádios transmitiam um jogo de futebol do Internacional, quando ela

final de ano, quando Nadiles saía do banho, pisou em uma madeira e feriu a perna, enterrada no

escutou tiros na rua. Primeiramente, achou que era seu marido que havia atirado. Segundo ela,

assoalho. Por mais que ela e o marido estivessem sempre usando parte do dinheiro da pensão dos

embora trabalhador e calmo quando não bebia, Ivaldino se transformava ao beber. E bebia. E

meninos (cerca de um salário mínimo) e alguma renda que o casal tinha com trabalhos normal-

andava armado. Já tinha passado três meses na prisão no ano anterior, por atirar em um homem,

mente sem carteira assinada, a casa estava sempre caindo aos pedaços.

após uma briga de bar (a vítima sobreviveu). Era natural que o marido atirasse. Ou que levasse um

16

tiro. Aos poucos, essa hipótese foi tomando os pensamentos da esposa. Mesmo com chuva, Nadiles

Por isso, quando a equipe de colete azul do DNIT, junto com a equipe da prefeitura de Canoas,

resolveu sair para procurar Ivaldino. Encontrou-o morto, a aproximadamente 50 metros de casa.

começou a atuar diariamente na Vila do Dique, realizando reuniões periódicas com moradores e

Agora, seriam apenas ela e os filhos, como deixou bem nítido no dia em que Marcos chegou triste

aos poucos revertendo a incredulidade da população com o reassentamento, Nadiles encheu-se de

do colégio, um tempo depois da morte do pai.

esperança com a possibilidade – agora real – de morar em uma casa decente.

Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

17


Foto: Andrea Weschenfelder

Os congestionamentos Com mais de 4,385 mil quilômetros que interceptam dez Estados de norte a sul do Brasil, a BR-116 é uma rodovia de muitos nomes e muitas faces. Uma das mais complexas está na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), no Rio Grande do Sul. Para quem precisa cruzar os 43 quilômetros que ligam a capital gaúcha a Novo Hamburgo, o nome BR-116 é sinônimo de dor de cabeça. Um trajeto que normalmente duraria 35 minutos não leva menos do que uma hora em alguns momentos do dia. Os engarrafamentos variam de cinco a 15 quilômetros por dia, registra a Superintendência Regional do DNIT no Estado. A estrada é passagem virtualmente obrigatória para quem se desloca de Porto Alegre em direção às mais importantes regiões econômicas do norte gaúcho e, principalmente, para aqueles que diariamente se deslocam para o trabalho ou a universidade entre as cidades da Região MeCongestionamentos na BR-116 perduram praticamente o dia inteiro

tropolitana. É também rota de passagem para cargas enviadas de alguns dos principais polos industriais do Estado – como os do Vale do Rio dos Sinos, Vale do Rio Taquari, Serra Gaúcha ou Polo Petroquímico de Triunfo – para a capital, sul do Estado e Porto de Rio Grande. Estudos indicam que o horário de pico do trecho (quando o tráfego supera 4 mil veículos por hora),

A conclusão de quem estuda engenharia de tráfego veio ao encontro do sentimento de quem con-

que ia das 17h às 19h em 1997, passou a ser das 7h às 12h e das 13h às 20h dez anos depois.

vive com a realidade da BR-116 nesse trecho: se a infraestrutura de trânsito não fosse reforçada, a mobilidade na região entraria em colapso.

No trecho mais movimentado, entre Canoas e Porto Alegre, o volume diário de veículos chegava a 120 mil na época, aponta levantamento do Laboratório de Sistemas de Transportes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Hoje, a estimativa é de um volume ainda maior, visto que a frota brasileira de veículos circulantes cresceu 34,7% entre 2007 e 2011, passando de 25,864 milhões

Porto Alegre

População

PIB (R$ bilhões)

1.409.351

37,788

para 34,857 milhões. O que também contribuiu para o esgotamento da BR-116 entre Porto Alegre

Canoas

323.827

16,444

e Novo Hamburgo, trecho no qual a rodovia é duplicada, além de ter pistas auxiliares em ambos os

Esteio

80.755

2,227

lados, integradas ao sistema viário dos municípios atravessados (Porto Alegre, Canoas, Esteio, Sapu-

Sapucaia do Sul

130.957

1,767

caia do Sul, São Leopoldo e Novo Hamburgo), foi o inchaço da região, cuja população mais do que

São Leopoldo

214.087

3,302

dobrou desde o início da década de 1970. Essa pequena parte da Região Metropolitana soma apro-

Novo Hamburgo

238.940

4,499

ximadamente 4 milhões de habitantes, respondendo por 37% da população do Estado, e gerou um

RS

10.693.929

215,864

Produto Interno Bruto (PIB), em 2009, de R$ 95,593 bilhões, representando 44,28% do PIB gaúcho.

18

Município

Um novo caminho Uma nova vida

Fonte: População: IBGE/2010; PIB: FEE/2009

O histórico da BR-448/RS

19


As alternativas As discussões sobre alternativas à sobrecarregada rodovia, implantada em 1939 e pavimentada em 1948, começaram na década de 1970. Há estudos da época, feitos pelo extinto Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), sobre a construção de um trecho que cruzaria diagonalmente a BR-116 na RMPA, constituindo-se em alternativa à estrada. De lá para cá, algumas obras que auxiliam no deslocamento regional foram implementadas. No entanto, foi na década de 1990 que uma alternativa definitiva à BR-116 no trecho virou assunto público no Rio Grande do Sul, sendo alvo não apenas de estudos, mas de mobilização das comunidades locais. À época, o governo estadual planejou o chamado Polo Rodoviário Metropolitano, que previa a construção de duas rodovias paralelas à BR-116. Uma seria a RS-010, a leste da BR116, ligando a BR-290, em Porto Alegre, à RS-239, em Sapucaia do Sul. A outra, a RS-080, ou Rodovia do Parque, cujo nome estava ligado ao fato de passar por área contígua ao Parque de Exposições Assis Brasil, em Esteio. Tratava-se de uma estrada que corria paralelamente à BR116, a oeste. As rodovias estaduais não foram construídas, apesar dos acalorados debates que suscitaram. A solução só chegou em 2005. Foi quando o governo federal anunciou a intenção de solucionar o problema, encampando a ideia da rodovia a oeste da BR-116. A nova estrada seria a BR-448/ RS e teria traçado semelhante ao da anteriormente planejada Rodovia do Parque. Além de passar atrás do Parque Assis Brasil, ela estaria muito próxima aos limites do Parque Estadual do Delta do Jacuí e passaria por uma pequena fatia da Área de Preservação Ambiental (APA) do Delta do Jacuí. Por isso mesmo, o apelido, já consagrado entre os gaúchos, foi mantido na proposta de comunicação da gestão ambiental da estrada. Embora a nova alternativa não vá solucionar 100% dos problemas de tráfego na RMPA, é sem dúvida a principal esperança para desafogar a BR cujos engarrafamentos causam mal-estar diário para seus usuários. A estimativa é de que ela absorva 40% dos veículos que hoje utilizam a BR-116 em seu trecho mais crítico, entre Porto Alegre e Sapucaia do Sul. Mapa ilustrativo da rodovia

20 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

21


Uma das fases mais importantes foi a definição do traçado. Algumas alternativas foram consideradas antes da decisão de uma estrada federal a oeste da BR-116, paralela ao Rio dos Sinos, sem excluir a opção a leste, que deve ser viabilizada com o projeto da rodovia estadual ERS010, ligando a BR-290 em Porto Alegre à RS-239 em Sapiranga do Sul. Uma opção tradicional para desafogar trechos sobrecarregados é a construção de uma rodovia de contorno, sem necessariamente passar próximo à via principal, para desviar o tráfego de passagem, ou seja, aqueles veículos que não circulam somente no trecho problemático, mas estão em viagem mais longa. No entanto, como 90% do tráfego da BR-116 na Região Metropolitana é local, isso se tornou inviável. A alternativa de alargamento da própria capacidade da BR-116 também foi descartada por diferentes motivos. Um deles foi a própria dificuldade de se desenvolver obras em uma rodovia que convive com engarrafamentos diários e se constitui em alternativa insubstituível para deslocamentos na região. O período de construções agravaria os congestionamentos e possivelmente geraria protestos da comunidade devido ao aumento de poluição sonora e visual, por exemplo. Além disso, as desapropriações de propriedades contíguas à via elevariam demais os custos dessa opção. O custo de desapropriações também seria um dos entraves para uma rodovia a oeste da BR-116, porém, que cruzasse a área urbanizada dos municípios. Ainda mais importante do que o valor do investimento foi a oposição das prefeituras e comunidades dos municípios atingidos, manifestada BR-116: capacidade de tráfego da principal via de entrada e saída de Porto Alegre está esgotada desde os anos 90

Foto: Trensurb

durante o EIA/RIMA, a qualquer escolha que envolvesse cruzar áreas urbanizadas. Especialmente em Canoas, mas também em Esteio e Sapucaia do Sul, o fato de a BR-116, assim como o Trensurb

Traçado

− o trem metropolitano −, cindir as cidades representa grandes transtornos à população. Por isso, os municípios solicitaram uma mudança no traçado original previsto: que deixasse de coincidir com o da antiga linha férrea para passar mais próximo ao Rio dos Sinos.

O caminho para a construção efetiva da Rodovia do Parque começou a ser construído pela Medida Provisória nº 274/2005, posteriormente transformada na lei federal nº 11.297/2006.

Após os estudos, o traçado final para a BR-448/RS foi definido: inicia-se no entroncamento da

A legislação inclui esse trecho da BR-448/RS no Sistema Rodoviário Federal. Com isso, ficou

BR-116 com a RS-118, em Sapucaia do Sul, e termina na BR-290, em Porto Alegre, junto ao Bair-

definido que esse projeto de rodovia alternativa à BR-116 na RMPA ficaria a cargo do governo

ro Humaitá, em frente à Arena do Grêmio (novo estádio do time de futebol porto-alegrense). A

federal, e a nova estrada poderia enfim ser incluída nos seus planos de investimento.

maior parte da rodovia está nos domínios dos municípios de Esteio e Canoas, onde se localiza

22 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

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a única comunidade diretamente afetada pela rodovia: a da Vila do Dique, que abrigava moradores em área de risco e com saneamento ambiental precário. A obra da estrada promoveria uma oportunidade para melhorar as condições de moradia daquela comunidade. Além disso, o traçado selecionado seria uma maneira de preservar a APA do Delta do Jacuí, constituindo-se a Rodovia do Parque em uma barreira física entre a cidade e a área preservada.

Características da BR-448/RS

O ambiente A BR-448/RS localiza-se em uma área de várzea do Rio dos Sinos e do Delta do Rio Jacuí. A faixa

• Extensão: 22,34 km

de domínio da rodovia ficou definida entre 40 metros e 200 metros a partir do leito, dependendo

• Municípios cruzados: quatro

das características de cada trecho. Quem cruzasse seu traçado antes das obras encontraria em

- Km 0 ao Km 1,9 - Sapucaia do Sul - Km 1,9 ao Km 7,590 - Esteio

volta muitas plantações de arroz irrigado pelas águas dos rios, arroios e córregos que abundam

- Km 7,590 ao Km 21,880 - Canoas

nessa parte do sul do país. Nos períodos pós-colheita, as terras costumam receber gado, de

- Km 21,880 ao Km 22,860 -

maneira que, às barbas da metrópole, não é raro ver a boiada pastando em propriedades rurais.

Porto Alegre

Além da atividade orizícola, que ocupa 103 dos 168 hectares da área de influência direta da obra,

• Extensão com pontes, viadutos e elevadas na linha geral: 4,45 Km • Número de pistas: duas

encontram-se pequenas propriedades com produção de hortifrutigranjeiros, várzeas preservadas e também os trechos de ocupação urbana, com presença de indústrias e residências.

• Número de faixas por pista: duas (entre BR-116, RS-118 e BR-386) e três (entre BR-386 e BR-290) • Largura da faixa: 3,60m

Flora Entre os campos bastante modificados pela utilização agrícola ou urbana, encontram-se algumas áreas pouco exploradas, onde a vegetação se desenvolve com menos interferência. O EIA/RIMA da obra identificou 204 espécies de plantas na área de influência, com alta presença de exóticas e invasoras. O domínio é de espécies rasteiras ou de baixo porte, mas há algumas exceções, como jerivá, araucária e grápia. Elas compõem um grupo de sete espécies ameaçadas da flora do Rio Grande do Sul que foram localizadas na área afetada pela nova rodovia. Complementam a lista das protegidas, porém passíveis de transplante, o butiazeiro, a corticeira-do-banhado, a figueira-vermífuga e a figueira-da-folha-miúda. Foto: Belfoto

24 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

25


Fauna

Flora transplantada Foto: Andrea Weschenfelder

A análise da fauna local identificou a ocorrência ou provável ocorrência, na região, de 23 espécies de anfíbios e 24 de répteis. Entre as aves, duas campanhas de amostragem mapearam 127 espécies. Ainda foram identificadas 10 espécies de mamíferos. Não foram localizados animais ameaçados de extinção, embora alguns tenham merecido destaque, seja porque são menos comuns, seja porque surpreenderam a equipe em um ambiente no qual, por ser tão tocado pelo homem e exposto às mazelas urbanas, eram menos esperados. Estão nesse grupo espécies como cardeal-do-banhado ou socoí-amarelo. A lontra, também encontrada, está quase ameaçada no Rio Grande do Sul e é considerada vulnerável no Brasil. A grande quantidade de rios, arroios, canais e banhados torna a água um elemento muito presente na paisagem próxima da BR-448/RS. Esses cursos e reservatórios de água são bastante utilizados pela população local para fins econômicos e de lazer. A pesca, como atividade profissional ou de entretenimento, é comum na região. Na área de influência direta do empreendimento, entre animais coletados e presentes em bibliografia, verificou-se a existência de 27 espécies de peixes. Entre os mais valorizados para consumo humano achados na região estão o jundiá e a traíra.

As árvores protegidas localizadas nas áreas afetadas pela Rodovia do Parque foram transplantadas para parques, escolas, para a própria faixa de domínio e até para a Vila de Passagem que receberia provisoriamente as famílias reassentadas. Com a necessidade de intervenção na flora local, a Gestão Ambiental da BR-448/RS realizou mais de

400 transplantes de árvores, como corticeiras-do-banhado, figueiras, butiás e jerivás. Bromélias e orquídeas também foram realocadas. O processo de transplante, comparado ao plantio de novas árvores, reduz o tempo de restabelecimento das plantas e, além de assegurar o salvamento de uma parcela da biodiversidade local, contribui para o embelezamento paisagís-

tico. Após o transplante, e seguindo o PBA da rodovia, há o monitoramento de cada árvore. Entre as espécies transplantadas, o percentual de sobrevivência total foi de aproximadamente 70%. Para isso, contribuiu o fato de os vegetais terem sido levados para locais muito próximos e com características semelhantes aos de origem.

Característica

Área (ha)

Área (%)

Cultivo de arroz

103,51

61,59

Área urbana

38,68

23,02

Várzea

23,34

13,89

Hortifrutigranjeiros

1,88

1,12

Corpos hídricos

0,41

0,24

Vegetação arbórea exótica

0,24

0,14

Total

168,05

100

Fonte: EIA/2008

26 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

27


Parque Estadual do Delta do Jacuí A área ambientalmente mais sensível da nova rodovia fica entre os quilômetros 15 e 21 da BR448/RS, no município de Canoas, próximo à divisa com Porto Alegre. Nesse trecho, a estrada passa pela Unidade de Conservação - Área de Proteção Ambiental (APA) Estadual do Delta do Jacuí. A APA, criada em 2005 pela lei estadual nº 12.371, protege um pedaço dos biomas Pampa e Mata Atlântica. Tem 22,826 mil hectares – entre os municípios de Porto Alegre, Canoas, Nova Santa Rita, Triunfo e Eldorado do Sul –, dos quais 14,242 mil hectares pertencem ao Parque Estadual do Delta do Jacuí, uma unidade de proteção integral. A APA engloba 25 ilhas, formadas por um emaranhado de cursos d’água, na verdade braços principais e secundários dos rios Jacuí, Caí, Gravataí e dos Sinos. Os quatro deságuam no lago Guaíba, popularmente conhecido como Rio Guaíba, situado ao norte da Lagoa dos Patos e ligado a esta por hidrovia. O parque estadual foi criado em 1976 para preservar um ecossistema único, rico em espécies associadas a ambientes aquáticos, e um gigantesco manancial hídrico. Desde sua fundação, está prevista a retirada, por parte do Estado, das famílias que nele habitam, normalmente em zonas de ocupação irregular, em áreas de risco. No entanto, até outubro de 2012, esse projeto não havia sido executado. O mapeamento com geolocalização das residências instaladas na área do parque, primeiro passo para a retirada, foi realizado pelo governo do Estado. Já no cinturão de mais de 8 mil hectares ao redor do parque, pertencente à APA, é permitida a ocupação legal, desde que seguindo princípios de sustentabilidade. A realocação dos moradores da Vila do Dique, capitaneada pelo DNIT, veio ao encontro das condicionantes da lei que criou a área de preservação, uma vez que a presença de uma comunidade carente de saneamento e muitos recicladores de lixo não contribui com a preservação ambiental. Embora com águas poluídas devido à ocupação intensiva das margens de cursos d’água que

Preservação das espécies e redução dos atropelamentos A diversidade de espécies animais estabelecidas na área de influência da Rodovia do Parque pode ser comprovada no dia a dia da construção da estrada. Avistamentos e encontros com a fauna local fizeram parte da rotina de operários e da equipe da Gestão Ambiental, que acompanha os casos. As ações para proteger a fauna incluíram desde o monitoramento das espécies encontradas no período de obras até a construção de cinco passagens de animais sob a rodovia, para evitar atropelamentos durante sua operação. Dessas, duas são pontes a transpor o Arroio Sapucaia e a Vala Mathias, e as demais são galerias, situadas em cotas superiores ao terreno natural, e com dimensões que permitam a entrada de luz natural a fim de garantir iluminação interna durante o dia. Esses passa-faunas têm especial relevância na BR-448/RS, uma vez que a rodovia cruza área alagadiça e, quando há inundação, os animais tendem a buscar refúgio na área seca, localizada do lado leste da estrada. Os operários responsáveis pela construção dos túneis e galerias receberam informações da Gestão Ambiental sobre a importância do projeto que estão implantando. Isso

contribuiu para que os trabalhadores dos consórcios construtores mantivessem a equipe da Gestão Ambiental informada da presença de animais, permitindo que muitos deles fossem resgatados e retira-

dos da área de obras. Entre os répteis e mamíferos mais presentes, estão o furão, o ratão-do-banhado, o tigre-d’água, o cágado-de-barbela, a cobra-d’água, a jararaca e alguns lagartos-do-papo-amarelo.

Foto: Andrea Weschenfelder

ali desembocam, a APA do Delta do Jacuí permite a preservação da fauna e da flora nativas.

28 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

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Proteção ao Delta do Jacuí A Área de Proteção Ambiental (APA) Delta do Jacuí, constituída por terras públicas e privadas, tem por finalidade a proteção dos recursos hídricos ali existentes, em especial as áreas de influência fluvial, os ecossistemas de banhado, restingas e floresta estacional decidual, com o objetivo básico de disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso

dos recursos naturais, de forma a conservar a diversidade de ambientes, de espécies e de processos naturais pela adequação das atividades humanas às características ambientais da área, além de garantir a conservação do conjunto paisagístico e da cultura regional. A APA Delta do Jacuí é constituída pelo Parque Estadual Delta do Jacuí,

O trauma do episódio foi decisivo para impulsionar a implantação de um sistema de proteção contra inuncom área total definida pela lei nº 12.371/2005, e tem como objetivos básicos a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico.

dações na RMPA. O extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) solicitou a seus engenheiros estudarem soluções para a região já na década de 1940 e, em 1949, estavam implantados diques para formação do chamado pôlder do aeroporto, na capital gaúcha. Embora a enchente em Porto Alegre tenha ficado mais famosa devido ao maior impacto econômico e pessoas atingidas, vários outros municípios também guardam em seus arquivos históricos tragédias marcadas pelas águas, em 1941 e outros anos, de forma que as obras do DNOS se estendem da zona sul porto-ale-

Os diques

grense até São Leopoldo. Em Canoas, por exemplo, as cheias cobriam bairros como Mathias Velho e Rio Branco, aproxi-

Desde sua povoação por colonos açorianos, em 1752, a população de Porto Alegre acostumou-

mando-se do centro da cidade. A solução para o trecho canoense foi a construção de diques

-se com períodos de cheias. O mesmo se pode dizer das comunidades instaladas na RMPA e

de contenção, formando quatro pôlderes – denominados Rio Branco, Araçá, Niterói e Mathias

banhadas pelo lago Guaíba e pelos rios que nele desembocam. Afinal, inundações são parte

Velho –, em um sistema que ainda conta com casas de bombas, canais de macrodrenagem e

da vida de aglomerados urbanos formados às margens de reservatórios e cursos d’água. No

galerias de comportas. A construção das barreiras físicas foi executada pelo DNOS no início da

século XX, houve dezenas de episódios em que as facilidades de uma cidade portuária trans-

década de 1970.

Enchentes, como esta no bairro Rio Branco, eram comuns antes da construção dos diques em Canoas

formaram-se em pesadelo para os moradores da capital gaúcha. Cheias relevantes foram registradas periodicamente. Mas nenhuma foi tão marcante quanto a ocorrida em 1941, quando a

Os diques de proteção de Canoas formam uma barreira, impedindo que a água do Rio dos

água encobriu a régua do porto até o nível 4,74 metros, marca histórica lembrada hoje por uma

Sinos inunde a área urbana. Sua parte ocupada irregularmente corresponde a um trecho de

placa no pórtico do Cais Mauá.

cinco quilômetros, ao longo do qual moram de forma irregular quase 600 famílias. A ocupação começou há mais de 30 anos. Uma foto aérea de 1971 demonstra o primeiro trecho

Cerca de 70 mil pessoas, aproximadamente um quarto da população, ficaram desabrigadas,

dos diques já construído e sem nenhuma moradia à sua margem. Imagens de 1978, no en-

além de conviver com falta de água e luz e paralisação de serviços essenciais como bondes e

tanto, já apresentam as primeiras ocupações. De lá até a chegada das obras da Rodovia do

correio. Por isso, na história da cidade houve enchentes e a Grande Enchente de 1941, quando,

Parque, a população ali concentrada seguia, em sua maior parte, privada de infraestrutura

entre 10 de abril e 12 de maio, choveu 619 milímetros.

e condições básicas de moradia.

30 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

31


A Vila do Dique

nico dos canos que ali desembocam, oriundos diretamente dos vasos sanitários, esse valo circunda o dique.

Deixando Porto Alegre pela BR-116, é possível acessar a Vila do Dique sem passar pelo centro de

Os pontilhões que o atravessam separam a população

Canoas. Para isso, basta pegar o acesso ao bairro Rio Branco. O visitante então se depara com uma

atendida pela infraestrutura urbana básica daquela ex-

típica comunidade de classe média de periferia, em uma zona relativamente tranquila, onde a igreja

cluída de grande parte dos serviços públicos.

e o comércio local ao redor da praça central dão um ar interiorano. Nos finais de tarde, é comum ver as crianças indo a pé, de uniforme, da escola para casa, enquanto trabalhadores chegam da labuta

Na região do bairro Rio Branco, o dique tem cota de co-

de ônibus ou bicicleta. Nessa comunidade, o supermercado não ostenta bandeira de multinacional

roamento de 6,5 metros. Em seu cume, ou, como dizem

e é comum os vizinhos reunirem-se na calçada para tomar chimarrão aos finais de semana.

os moradores, “lá em cima”, fica uma rua de chão batido, na qual o veículo mais esperado é o caminhão-pipa

No entanto, quem cruzar o bairro Rio Branco seguindo na direção oeste, onde fica o Delta do

da prefeitura, que abastece as casas com água três vezes

Rio Jacuí, encontrará um valo. Tomado por plantas aquáticas, alimentadas pelo material orgâ-

por semana. As moradias ficam “lá embaixo”, entre a

A vila, entre o arroio e o dique construído para conter as águas

elevação e o valo, no lado leste, ou o arroio, no lado oeste. Em alguns trechos, não se consegue sequer enxergar o telhado das casas, quase todas feitas de tábuas, de chapas de compensado, de lona ou do que houver para tapar os buracos.

Economia da periferia: a Vila do Dique mantinha um comércio com cara de interior

Apesar das condições precárias da maioria das habitações, esse trecho tantas vezes esquecido da cidade pode parecer a quem ali vive um agradável lugar para se habitar e criar a família. Estar afastado do asfalto tem lá suas vantagens. À margem da urbanização, a vida ganha ares rurais. Em uma manhã de sol do inverno gaúcho, um vendedor percorre a rua sobre o dique com sua bicicleta carregada de mercadorias, anunciando “pão sovado” e “cuca recheada” – espécie de bolo alemão coberto por farofa doce. Cada um se vira como pode. Uma placa anuncia “sacolé”, outra “trufas”, outra “tatuagens”. A economia da periferia tem suas peculiaridades. A rua elevada pelo dique é local de passagem, de trabalho, de diversão. É onde os vizinhos sentam para jogar conversa fora e tomar um mate, enquanto famílias passam os dias a separar o lixo reciclável coletado por carroceiros e carrinheiros que percorrem a RMPA. Em determinado ponto, as casas e os depósitos informais de lixo dão lugar a um descampado que virou canFoto: Belfoto

32 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

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Foto: Eduardo Rocha

cha de futebol. Logo ao lado, a menos de 100 metros do dique,

uma árvore, distante cerca de 200 metros, e diz: “Ali embaixo se matava, roubava, estuprava”.

passa o Arroio das Garças, aparentemente limpo, serpenteando

Mesmo com tantos relatos atuais de jovens mortos em decorrência da violência, não são pou-

entre arbustos e capinzais. No fim de tarde, o sol se põe sobre a

cos os habitantes que consideram a Vila do Dique um local “tranquilo” para se viver.

água, formando uma paisagem de tirar o fôlego. A poucos metros dali, no entanto, um cavalo alimenta-se com pimentões que já

A sensação de tranquilidade pode estar associada aos ares rurais que, em pleno século XXI,

estiveram à venda em um mercado da cidade. O lugar é tomado

alguns trechos dos diques mantêm. Não como antigamente, antes das moradias irregulares,

por um cheiro fétido, quase insuportável ao nariz dos desacostu-

quando aquele pedaço de terra era ocupado por chácaras. Nem como no tempo dos porcos,

mados. Crianças brincam junto aos montes de lixo acumulados

engordados às centenas com o lixo recolhido por catadores na cidade. Mas a proximidade com

pelos recicladores, no meio dos quais ratos, gatos, cães e galinhas

o Delta do Jacuí e a circulação ínfima de automóveis contribuem para o ambiente bucólico.

disputam os restos de comida. Nos primórdios da ocupação, os moradores locais eram principalmente prestadores de servi-

Como era

ços domésticos, pescadores, além dos criadores de animais de pequeno porte para revenda e consumo. Hoje, alguns ainda mantêm tais atividades ou são aposentados, mas muitos começaram a trabalhar com a triagem do resíduo sólido urbano, ou seja, com o lixo gerado pela

Olhando-se para a margem oposta do Arroio, que passa ao lado

cidade, que, durante essas décadas, além de aumentar, foi tornando-se uma matéria valiosa, a

das palafitas da casa de Beto Barbudo, é possível ter uma ideia de

partir do desenvolvimento de tecnologias para reaproveitamento e reciclagem.

como era a região dos diques antes da ocupação. Só “guanxuma e

Arroio das Garças passa ao lado das palafitas de algumas casas da Vila do Dique

maricá”, como descreve o morador, referindo-se à vegetação rasteira e à árvore espinhenta que dividem espaço na paisagem. Quando ele chegou, no início da década de 1980, já havia ocupações irregulares. Nem todas resistiram, muitos barracos caíram, outros tantos foram erguidos. Nos primórdios da Vila do Dique, o lugarejo ficava ainda mais afastado da cidade. Era o esconderijo perfeito para bandidos. Se a violência nos dias atuais também faz parte da realidade da vila, os mais antigos são unânimes: já foi muito pior. Os contadores de histórias desfiam nomes de célebres fora da lei. Uma senhora diz se arrepiar só de ouvir falar de um Muitos moradores não temiam violência e consideravam o Dique um lugar tranquilo para viver

tal Sérgio Balaca. Assassinado depois de praticar toda sorte de estripulias, é quase lenda na região. A mesma moradora olha para Foto: Eduardo Rocha

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O histórico da BR-448/RS

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Beto Barbudo Norberto Bião, ou Beto Barbudo, como é conhecido, já criou porcos. Mais de 100, até a proibição da criação devido a questões sanitárias. Em meados de 2012, tinha dois cavalos e cerca de 60 galos e galinhas. Chumbinho e Grandão, os dois equinos, cumprem jornada diária puxando as carroças usadas pela esposa e pelas duas filhas do pescador na coleta de lixo em mercados da região. As aves, Bião vende a R$ 15 a unidade. Somando o dinheiro que a família ganha com a catação de lixo, a venda de animais, a mensalidade por cuidar de mais de 15

“A violência era muito braba antes. De deitar no chão pra não pegar bala. Sempre de noite. Hoje não tem mais disso. Uns morreram, uns foram embora.”

barcos de terceiros e uma aposentadoria, Beto Barbudo acumula uma renda mensal familiar de pelo menos R$ 1,3 mil. Já o dinheiro da pesca fica todo com um dos filhos – que anuncia o quilo do peixe congelado por R$ 5. Dos seis filhos que Beto Barbudo e a esposa Teresinha tiveram, quatro vivem no mesmo terreno, com suas famílias, um em cada casa. A área é uma espécie de santuário familiar, coberta com um bosque de árvores plantado pelo patriarca. É difícil não prestar atenção quando as palavras saem, rápida e atabalhoadamente, por entre a barba espessa do velho morador. Ele é o típico habitante das ilhas do Delta do Jacuí. Filho de pescador, nasceu na Ilha do Pavão, viveu isolado com a mulher na Ilha do Humaitá, até se estabelecer há cerca de 30 anos no Dique. Com 60 anos, tem calafrios só de pensar em ir à cidade pagar uma conta. É um homem do rio e dali não sai “por nada neste mundo”, costuma dizer. Gosta mesmo é de ficar de

Dona Vita, ex-moradora da Vila do Dique

bermuda e chinelo de dedo, pescando, cuidando dos barcos ou alimentando suas galinhas e cavalos com os restos de comida coletados por Teresinha. Sua casa é repleta de bibelôs, fotos, quadros, brinquedos, santos, objetos, coisas mil − compradas, presenteadas, achadas no lixo − que preenchem cada centímetro das paredes e das prateleiras. Beto Barbudo construiu à margem do dique um estilo de vida tão próprio que torna o seu caso um dos mais complexos do Programa de Reassentamento. Como todos, ele terá de sair da área pública do Parque Estadual do Delta do Jacuí. A prefeitura municipal estuda a criação de uma marina em um local próximo chamado Prainha do Paquetá. Beto Barbudo poderá optar por casa nova ou indenização das benfeitorias. Foto: Solano Ferreira

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O histórico da BR-448/RS

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Diagnóstico por amostragem O perfil da população que habita a área dos diques foi detalhado no EIA/RIMA durante a caracterização do meio antrópico. O número total de moradias foi calculado em 599. Para os

Tempo de moradia do chefe de família na Vila do Dique

estudos, estabeleceu-se uma amostragem de 171 famílias, que mostrou-se satisfatória para

Até 1 ano

20,71%

te da totalidade é suficiente nessa fase inicial de análise ambiental. Essa prática pode estar

De 1 a 5 anos

44,97%

em desacordo com alguns representantes de órgãos ambientais que defendem o contato de

De 6 a 10 anos

18,34%

todas as famílias para a elaboração do EIA/RIMA. Mas a análise escolhida otimiza os recursos

De 11 a 15 anos

5,33%

públicos, visto que, quando da realocação efetiva das famílias, será necessário cadastrar toda

De 16 a 20 anos

4,73%

De 21 a 25 anos

a população, realizando assim o congelamento da área. Convém lembrar que há um intervalo

2,96%

De 26 a 30 anos

2,96%

Fonte: EIA/2008

traçar um panorama apurado da situação dos moradores. Essa metodologia demonstra, de forma confiável, o “retrato” da comunidade, pois representa 30% da população total. A caracterização dos habitantes da área de influência do empreendimento por meio de um recor-

de tempo entre elaborar os estudos e implantar os empreendimentos e que os possíveis impactos ambientais já são vislumbrados nessa porcentagem envolvida da comunidade, pois as mais variadas ações socioambientais são verificadas. Embora a ocupação da Vila do Dique tenha se iniciado na década de 1970, o EIA/RIMA revelou uma população que se expandiu rapidamente nos anos 2000. Aproximadamente dois

Última procedência do chefe de família

terços de todos os chefes de família entrevistados moravam há menos de cinco anos no local. A maioria (73%) tinha como procedência anterior a própria cidade de Canoas. O principal motivo alegado pelas famílias para se transferir à Vila do Dique foi a busca pela casa própria.

Motivos da mudança Obtenção da casa própria

45%

Motivos relacionados à melhoria da condição de moradia

22%

Obtenção ou melhoria das condições de trabalho

14,7%

Motivos relacionados à família

13,6%

Outros

4,7%

Fonte: EIA/2008

Atividades realizadas pelos moradores da Vila do Dique Coletor de material para reciclagem

27,57%

Dona de casa

21,89%

Autônomo

20,81%

Empregado do comércio ou serviços

12,18%

Aposentado e pensionista

6,22%

Dono de comércio ou serviço

2,97%

Trabalhador rural

2,43%

Diarista

2,16%

Desempregado

1,62%

Empregado na indústria

1,62%

Funcionário público

0,54%

Canoas

73%

Melhoria das condições de moradia e de trabalho e motivos relacionados à família também

RMPA

14%

foram citados. É comum observar a presença de grandes grupamentos familiares na área. Mui-

Outros municípios do RS

12%

tas vezes, os novos moradores são irmãos ou têm outras relações de parentesco ou amizade

1%

com habitantes que chegaram anteriormente. Vieram, portanto, já estimulados pela presença

Ocupações informais estão entre as principais atividades dos habitantes locais. A coleta de

do antecessor com o qual mantêm laços.

material para reciclagem é uma delas. Na época do levantamento, mais de um quarto dos

Outros estados Fonte: EIA/2008

Fonte: EIA/2008

entrevistados trabalhava com lixo. A separação do material reciclável se dá às margens da Na fase de elaboração do EIA/RIMA, também foi traçado um panorama da situação econômica

rua, em galpões e, principalmente, no pátio de casa, de forma que o local de moradia e o de

das famílias. Verificou-se a precariedade da condição laboral dos moradores da Vila do Dique.

trabalho se confundem, com prejuízos à sanidade das famílias.

38 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

39


É debaixo de um telhado de zinco colado na casa de madeira que Irene Gonçalves Martins

gravidade, dentro de canalizações improvisadas, até as casas, localizadas na parte baixa. Nos

passa a maior parte dos seus dias. Maquinalmente, desfia fardos de tiras plásticas coloridas

locais onde não havia essa diferença de nível, como no Beco do Boscheti, a água tinha de ser

enviadas por uma indústria de reciclagem da região. Quem recebe o material e repassa para

levada para dentro de casa em baldes e vasilhames. Não era assim no banheiro que servia à

Irene é o próprio filho, dono do único galpão de separação de lixo da Vila do Dique. A tarefa

família de Irene, onde um elevador de cargas improvisado elevava a caixa d’água. Mas o era nas

dela é separar as tiras por cor. O material segregado é reenviado à recicladora que o mandou

demais residências da rua.

para separação na vila.

Saneamento ambiental

“Vocês não têm

Irene morava no Beco do Boscheti, via sem saída de 120 metros que começa no dique e termina

ideia do que é dividir

em um canal ligado ao Arroio das Garças. Sua casa ficava às margens do curso d’água, onde,

com mais 17 pessoas

em outros tempos, antes dos carros-pipa abastecerem a região, ela lavava roupas e se banhava.

Qualquer ação de realocação de uma comunidade gera impacto

O córrego tomado por verde na outra margem forma uma bela paisagem, contrastando com a

social, principalmente se os moradores são afastados do seu recur-

poluição visual da vila, o cheiro de lixo orgânico em decomposição e o incômodo dos insetos

so de subsistência ou as relações de parentesco e compadrio não

que temos. Ainda

que nesse ambiente proliferam. Em 2012, aos 55 anos, mãe de cinco filhos, Irene lidava com o

são mantidas pela desagregação. Mesmo nos casos em que a situa-

bem que estamos

lixo o dia todo porque era o que lhe restava. Sem aposentadoria, recebia, em meados daquele

ção de moradia das famílias é precária, existem ônus sociais para as

ano, por volta de R$ 200 mensais, pagos pelo filho, pelo trabalho. Além dela, aproximadamen-

famílias reassentadas que vão além dos custos financeiros, como

te dez pessoas ajudavam na separação de resíduos sólidos no galpão, sem rendimento fixo.

o pagamento de transporte, impostos e prestações que antes não

histórias para contar

Quando foi feito o EIA/RIMA, mais de 70% dos trabalhadores da Vila do Dique recebiam menos

faziam parte de suas despesas. São os custos de desfazer laços de

são muitas, mas não

do que um salário mínimo e 36% dos moradores tinham algum tipo de benefício governamen-

vizinhança e de parentesco, de mudar as relações de trabalho e

tenho mais saúde

tal, principalmente Bolsa Família. Abastecimento regular de energia elétrica inexistia – as casas

renda. Com os reassentamentos, há riscos de desagregação dos sis-

só tinham luz graças às ligações clandestinas com a rede pública. Mas talvez nada seja mais

temas de produção, de empobrecimento pela eventual perda de

para viver aqui.”

indicativo das condições de precariedade da infraestrutura do que o fato de que quase um

fontes de renda, de enfraquecimento de redes sociais e instituições

quarto das moradias não dispunha de instalações sanitárias. Em outras palavras: abrigavam

comunitárias, de perda de identidade cultural.

o único banheiro

saindo daqui. As

Sônia Moraes, ex-moradora da Vila do Dique

Foto: Andrea Weschenfelder

famílias que utilizavam o mato ou o banheiro de vizinhos para fazer as necessidades. Estudar a forma como a população afetada por uma obra vive, A casa de Irene, por exemplo, não tinha banheiro. Ela dividia com outras 15 pessoas, de três

para poder avaliar suas condições, inclui não somente a apuração

casas da família, um sanitário na casa do filho. Por volta das 18h, havia fila para o banho.

de dados básicos – quantas casas possuem banheiro, esgoto, água

Como na maioria das residências do bairro, o abastecimento de água era feito por carros-pipa

encanada, luz elétrica; se as residências são de alvenaria ou de ma-

da prefeitura de Canoas. Em frente a cada moradia, ao nível do chão ou muito próximo dele,

deira; se têm uma relação adequada entre cômodos e número de

ficavam caixas d’água, bombonas e outros recipientes abastecidos pela mangueira acoplada

habitantes. Dados como esses são coletados no EIA/RIMA, e no

ao veículo. Como os reservatórios ficavam, em sua maioria, sobre o dique, a água escorria por

caso da Vila do Dique ficou nítida a possibilidade de se proporcionar

40 Um novo caminho Uma nova vida

Água encanada não existia no Dique, e banheiro era um luxo de poucas famílias

O histórico da BR-448/RS

41


a melhora desses indicadores mediante um Programa de Reassentamento. No estudo, o programa

A banheira de Maria Carmem Foto: Andrea Weschenfelder

é considerado uma compensação à comunidade local, e não um impacto, visto que muitas casas que entraram não estão na faixa de domínio da obra. Embora todo processo de realocação seja controverso, neste caso ele foi considerado, em estudo prévio, como uma possibilidade de me-

“Aqui chove muito,

lhoria de vida para famílias que há muito viviam com expectativa ou ameaça de despejo do local.

o valo enche e

Há que se considerar, entretanto, que o reassentamento representa certo desconforto para as

a água alaga a

famílias, pela alteração do cotidiano e por deixarem o lugar onde viveram por tantos anos. Avaliar

minha cozinha. Não

o impacto social da remoção das famílias, bem como mitigar os efeitos negativos desse processo, depende de uma análise mais ampla. As ciências sociais possuem ferramentas para que sejam

quero nenhuma

observados e analisados fatores mais ocultos da organização de uma população. Para isso, deve-

lembrança dessa

-se trabalhar com uma ideia desenvolvida a partir da década de 1970, a da integralidade do ser

casa. O futuro é de

humano – que implica avaliar o bem-estar, pensado não somente por saúde física, mas também mental e social. Nesse sentido, o saneamento ambiental pretende abarcar não apenas o acesso

boas perspectivas.

básico da população a água potável, tratamento adequado de esgoto e destinação de resíduos

Espero que seja bem

sólidos, mas também uma relação integral com o meio ambiente e sua capacidade de desenvol-

melhor que agora.

vimento de laços sociais, parentais, de compadrio e afetivos.

Pretendo arrumar

Ao seguir essa linha, o trabalho realizado no EIA/RIMA da Rodovia do Parque mapeou as relações

um serviço melhor e

de vizinhança na Vila do Dique. Verificaram-se laços muito fortes entre as famílias habitantes. Por

ajudar meu marido nas despesas.” Sheila Silveira da Rosa, ex-moradora da Vila do Dique

viverem em um local estigmatizado, não só pela falta de infraestrutura básica, mas pelo uso do lixo como meio de sustento para boa parte dos moradores, as famílias locais mantinham laços estreitos entre si. Com a inclusão social prejudicada por esse estigma, a estrutura de trabalho dependente da mão de obra familiar, como no caso dos recicladores, as relações endogâmicas e de compadrio são estimuladas. Reconhecer essa realidade, bem como as formas de trabalho na Vila do Dique, foi essencial para adotar mecanismos que respeitassem as relações e a forma de vida locais no PBA.

42 Um novo caminho Uma nova vida

A caixa de plástico, ela achou abandonada em um valão. Tinha menos de um metro de comprimento e volume de menos de 20 litros. O que antes servia para transportar perecíveis aos mercados era em 2012 a banheira de Maria Carmem Cunha, então com 53 anos. Com as pernas dobradas, ela conseguia sentar na caixa. Sem chuveiro em casa, quando não tomava banho na casa de uma amiga, era ali que se lavava. Primeiro, aquecia a água no fogão. Se faltava dinheiro para o gás, esquentava a panela em um fogareiro

improvisado na rua, alimentado por pedaços de madeira. Depois, enchia a caixa de água morna e mergulhava os cabelos na “banheira”, acomodando-se a seguir. Quem visse Maria Carmem não imaginava. No dia da entrevista, estava maquiada no capricho, a sombra prateada fazendo brilhar os olhos. Vestia uma bata azul com fios dourados e um short que deixava à mostra as pernas compridas. O corpo não condizia com o rosto cheio de vincos — herança de uma vida ao sol.

Desempregada, Maria Carmem sobrevivia com R$ 32 que recebia de Bolsa Família, mais doações esporádicas de filhos, amigos, um grupo da igreja. Morrer de fome não iria, que a solidariedade era uma das virtudes da qual a vizinhança da Vila do Dique se gabava. Dias melhores estão eternizados em fotografias, como uma em que aparece montada em uma égua, em dia de descanso. Atrás dela, a Variant do marido, Nilo, falecido em 2010 após um derrame cerebral. Ainda convivia com a dor da perda de um dos cinco filhos, assassinado, segundo ela, em um assalto, no qual queriam roubar-lhe o moletom. No Beco do Boscheti, Maria Carmem vivia em um barraco de três cômodos com pouco mais de 10 metros quadrados. Com ela, morava uma neta de oito anos, deixada pelo pai assassinado. A casa era organizada, mas tudo era improvisado. A cama era um sofá. A pia da cozinha, um balde com uma torneira plástica acoplada. O assoalho, repleto de furos feitos pelas ratazanas que à noite tomavam conta do barraco. Poucas pessoas na Vila do Dique precisavam tanto de uma moradia como Maria Carmem. Ela sabia disso e queria a nova casa. Mas dizia ter “paixão” pelo lugar onde vivia.

O histórico da BR-448/RS

43


Avaliação de Impactos Sociais A Avaliação dos Impactos Sociais (AIS) de um projeto tende a ser mais complexa do que a dos impactos no meio físico e biótico. Para avaliar, por exemplo, repercussões do projeto na fauna, flora e solo, os indicadores são mais objetivos. Já a análise social é mais complexa, pois envolve as formas

Idade dos moradores da Vila do Dique, conforme amostra do EIA/RIMA 0 a 10 anos

31,71%

11 a 20 anos

23,17%

21 a 30 anos

16,26%

31 a 40 anos

10,84%

de relacionamento, a cultura, a economia local e os costumes da população afetada, bem como

41 a 50 anos

9,90%

a sua relação com o meio ambiente e com o empreendimento em licenciamento. Além disso,

51 a 60 anos

5,69%

como os impactos em cada um dos meios (físico, biótico e antrópico) estão interligados, qualquer

61 a 70 anos

1,22%

alteração em um implica repercussões no outro, aumentando ainda mais a complexidade dessa

Mais de 71 anos

1,22%

avaliação. Sem contar que a análise de impacto social deve envolver tanto as partes diretamente

Fonte: EIA/RIMA/2008

afetadas por um empreendimento como as interessadas, que com elas se relacionam. absoluto. Até porque as relações e valores a serem considerados estão em constante mutação. Essas dificuldades são reconhecidas internacionalmente e dão origem a iniciativas que buscam

Esse processo envolve apontar mudanças projetadas nos seguintes aspectos, ainda segundo os

definir de forma científica o processo de AIS. A International Association for Impact Assessment

Princípios Internacionais de AIS.

(IAIA), após cinco anos de discussões em workshops, reuniões e seminários, publicou em 2003

Avaliação de Impacto Ambiental “Estudo realizado para identificar, prever e interpretar, assim como prevenir, as consequências ou efeitos ambientais que deter-

os Princípios Internacionais de Avaliação de Impactos Sociais. As ações tomadas na realocação

• Modo de vida das pessoas – como vivem, trabalham, ocupam o tempo de lazer, interagem no dia a dia;

das famílias da BR-448/RS seguem as orientações gerais desse documento, além de estarem

• A sua cultura: crenças, valores, costumes, linguagem;

em consonância com a legislação brasileira e com tratados internacionais dos quais o Brasil é

• A sua comunidade, no que diz respeito a coesão, estabilidade, identidades, acesso a serviços e

signatário. Empoderamento da comunidade local afetada, melhoria da posição social de mu-

facilidades;

lheres, redução das formas de dependência e da pobreza são alguns dos objetivos gerais que

• Seu sistema político: o quanto as pessoas podem participar das decisões que afetam a sua vida,

permearam todo o trabalho desenvolvido junto à população que vem sendo realocada devido

o nível de democratização e os recursos fornecidos para isso;

à construção da Rodovia do Parque e que constam na publicação da IAIA.

• Seu ambiente: a qualidade do ar e da água que as pessoas consomem; a disponibilidade e qua-

minadas ações, planos, programas ou projetos podem causar à saúde, ao bem-estar humano e ao entorno.” Caderno de Licenciamento Ambiental do Ministério do Meio Ambiente

lidade de comida; o nível de segurança e os riscos; a poeira e os ruídos a que estão expostas; a Apesar da complexidade da AIS, há dados objetivos que são fundamentais para a avaliação

adequação sanitária, a segurança física, o acesso e o controle sobre os recursos;

do impacto social de uma obra na comunidade, como os dados exibidos em gráficos e tabe-

• Sua saúde e bem-estar: saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental, social e espiri-

las do EIA/RIMA da Rodovia do Parque, a exemplo do perfil etário da população ou fontes de

tual, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade;

renda. No entanto, eles são uma pequena parte do trabalho, auxiliares na constituição de um

• Seus direitos individuais e de propriedade, especialmente se as pessoas são economicamente afe-

diagnóstico muito mais abrangente e complexo, que deve analisar a situação de momento

tadas ou sofrem danos pessoais que podem envolver a violação de direitos e liberdades;

da população, mas também projetar alterações, a fim de avaliar impactos potenciais. Ainda

• Seus receios e aspirações: sua percepção sobre segurança, o futuro da comunidade e aspirações

assim, é preciso aceitar que o conhecimento sobre os aspectos sociais não será completo ou

em relação ao seu futuro e o de seus filhos.

44 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

45


Como todo o processo de licenciamento ambiental envolve o desenvolvimento sustentável, isto é, o usufruto dos recursos naturais no presente sem comprometer o seu uso no futuro, a AIS deve considerar todos os impactos sobre os seres humanos e formas de interação das pessoas e comunidades com seu meio sociocultural, econômico e biofísico. E deve, acima de tudo, assegurar a maximização dos benefícios de um empreendimento, minimizando assim os custos. A natureza do impacto, isto é, se ele é direto ou indireto, também deve ser avaliada. Os impactos diretos são mais fáceis de se identificar e, consequentemente, de se propor medidas mitigadoras. É isto que se espera em um processo de licenciamento, quando o órgão licenciador determina a elaboração de um EIA: que se avalie os potenciais impactos ambientais de um empreendimento,

Ambiente mais humano e mais sustentável “A AIS inclui os processos de análise, monitoramento e gestão das consequências sociais, pretendidas ou não, positivas e negativas, de intervenções planejadas (políticas, programas, planos, projetos) e inclui quaisquer processos de mudança social provocados por essas intervenções. O seu objetivo primordial

é contribuir para a existência de um ambiente biofísico e humano mais sustentável.”

Princípios Internacionais de Avaliação de Impactos Sociais, documento elaborado por Frank Vanclay para a IAIA

visando subsidiar a tomada da melhor decisão acerca da concretização ou não do projeto, bem como, em caso positivo de implementação, a maneira pela qual ele deve ser levado adiante de forma a mitigar os efeitos negativos e potencializar os efeitos positivos da intervenção planejada.

Impactos positivos à população Direitos individuais “Algumas concepções de AIS centram a avaliação na proteção dos direitos individuais de propriedade, com exigência clara de declaração de impactos adversos, de forma a assegurar que os direitos individuais não são desrespeitados. Quando tais direitos são postos em causa, a AIS pode contribuir para os mecanismos de mitigação e compensação. Nesta perspectiva, a AIS tende a concentrar-se nos impactos negativos. Contudo, noutros contextos, particularmente em países

em desenvolvimento, deverá ser colocada menor ênfase nos impactos negativos ocorrentes em pequenos grupos de indivíduos ou nos direitos individuais de propriedade. Ao invés, deverá existir maior preocupação com a maximização da utilidade social e do potencial de desenvolvimento, embora assegurando que tal desenvolvimento é generalizadamente aceitável para a comunidade, equitativo e sustentável. A AIS deve também focalizar-se na reconstrução dos modos de vida. O desenvolvimento do bem-estar social da comunidade deve ser explicitamente

reconhecido como um objetivo das intervenções planeadas e, como tal, deve constituir um indicador a considerar em qualquer forma de avaliação. Contudo, a questão da distribuição diferencial dos impactos pelos diferentes grupos sociais e, particularmente, o impacto suportado pelos grupos sociais mais vulneráveis, deve constituir sempre uma preocupação central.”

Princípios Internacionais de Avaliação de Impactos Sociais, documento elaborado por Frank Vanclay para a IAIA

No caso específico da BR-448/RS, são evidentes os benefícios da rodovia à economia gaúcha, à mobilidade na RMPA e ao desenvolvimento do Estado como um todo. Mas, além dessa avaliação focada em um contexto maior, importante para justificar um empreendimento, também foram analisados os impactos positivos – assim como os negativos – de sua implantação para a população local. Entre as consequências positivas da implantação da BR-448/RS para a comunidade local, algumas são comuns a todos os empreendimentos rodoviários do gênero. São exemplos a geração de emprego e renda no momento da implantação, com ênfase para contratação de mão de obra local, garantida por medida mitigadora do afluxo populacional para a região; o fortalecimento do comércio e dos serviços locais, devido à massa salarial paga aos trabalhadores envolvidos no projeto; o surgimento de oportunidades de negócio geradas por investimentos na construção da estrada, como aquisição de áreas para pátios, vias e edificações necessários à implantação e

46 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

47


Classificação do impacto de melhoria da qualidade de vida dos moradores da Vila do Dique com respectiva justificativa Parâmetro Fase

Localização

Natureza

Ocorrência

Classificação Implantação

ADA

Positiva

Provável

Justificativa Antes de iniciar as obras, essa população deverá ser realocada.

operação da rodovia. Entre os impactos negativos, pode-se citar o tráfego de cargas em meio à área urbana durante a construção e o aumento do nível de ruído. Com a rodovia em operação, também são esperadas modificações na vida dos habitantes da região. Se a estrada não fosse construída, a perspectiva seria de crescimento das atividades urbanas na área, sem, no entanto, o planejamento e a organização necessários para transformar esse movimento em melhor qualidade de vida na cidade. Além disso, a nova estrada será altamente benéfica para a den-

O impacto está associado somente às áreas de

sa população que vive às margens da BR-116 em Canoas, Esteio e Sapucaia do Sul, que terá redução

ocupação irregular, localizadas ao longo do dique.

de emissões de poluentes e de fluxo de carga perigosa junto a suas moradias, por exemplo. Isso porque a nova rodovia reduzirá o tráfego e aliviará os congestionamentos na estrada mais antiga.

O que é qualidade ambiental?

Mas quem mais sentirá o impacto direto devem ser mesmo os habitantes da Vila do Dique. A

A pesquisadora Sâmia Maria

Melhoria da qualidade de vida da população realocada. É necessária a realocação das famílias do local de

implantação do Programa de Reassentamento Populacional representa uma interferência na

inserção da obra, sendo que o programa de reas-

vida das pessoas, com possibilidade de impactos negativos, como desagregação de relações.

sentamento deve prever melhorias na condição de vida dos moradores oriundos daquela localidade.

Contudo, também é esperada a melhoria da qualidade de vida da população, o que é considerado um impacto positivo.

A realocação é um impacto gerado diretamente pela obra. O traçado da rodovia coincide – no trecho

Origem

Direta

específico – com o dique de contenção, que foi ocupado irregularmente pelas famílias que atualmente

Duração

Temporalidade

Permanente

Médio prazo

um impacto positivo permanente, uma vez que a

Licença ambiental

Fonte: EIA/2008

48 Um novo caminho Uma nova vida

Irreversível

dades e obras, de forma a garantir a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental, que está diretamente relacionada à qualidade de vida.

A realocação das famílias requer planejamento

Desde o projeto de engenharia da BR-448/RS, técnicos da superintendência do DNIT no Rio

finalidade

Reversibilidade

O licenciamento ambiental estabelece mecanismos de controle de intervenções, serviços, ativi-

rodovia será construída no local.

e a elaboração de um plano específico para tal

A realocação de famílias daquele trecho é irreversível, porque ali será implantada a rodovia.

Estudos Ambientais da Universidade Estadual Paulista (UNESP), define qualidade ambiental como “a expressão das condições e dos requisitos básicos que um ecossistema detém, de natureza

residem no local. A realocação dos moradores pode ser considerada

Tauk Tornisielo, do Centro de

física, química, biológica, social, econômica, tecnológica e política, resultantes da dinâmica dos mecanismos de adaptação e dos mecanismos de auto-superação dos ecossistemas”.

Grande do Sul ficaram tocados com a situação precária de vida na área da Vila do Dique. Não obstante a importância da minimização dos impactos da rodovia no ambiente físico e biótico, era a realidade das famílias que ali viviam que sensibilizava os representantes da autarquia. Assim, com a construção da estrada, surgia a oportunidade de se fazer a diferença. Com isso, o DNIT não apenas estaria cumprindo seu papel legal, enquanto empreendedor, de mitigar ou

O histórico da BR-448/RS

49


compensar os impactos ambientais das obras e da operação da rodovia, mas também partici-

Conheça os 22 programas ambientais

pando ativamente de uma iniciativa que vai ao encontro da principal meta de um governo que posteriormente assumiria o lema “País Rico é País sem Pobreza”. De fato, a experiência mos-

Gestão Ambiental das Obras

trou a capacidade do departamento de realizar o compromisso da construção rodoviária tendo

Organiza e compatibiliza a implementação de cada um dos programas ambientais do Plano

como horizonte a sustentabilidade e assumindo a execução de um grande projeto social, em

Básico Ambiental (PBA), avaliando, aprimorando e acompanhando a execução de suas etapas,

parceria com a prefeitura local e órgãos da administração federal e estadual.

bem como interferindo diretamente na busca do sincronismo entre as atividades para a otimiza-

“Podemos medir o sucesso do

ção dos resultados. Ainda na fase do EIA/RIMA, foram empreendidas negociações com a Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luis Röessler (Fepam) sobre alternativas a serem construídas

Controle e Monitoramento de Particulados

para aquela população. Devido ao impacto regional da estrada planejada e ao fato de ela

Controla e monitora as emissões de material particulado (principalmente poeira e fumaça) na

Reassentamento à

passar por uma unidade de preservação ambiental do Estado, o licenciamento foi feito pelo

atmosfera, atendendo aos limites da legislação vigente, a fim de garantir a preservação da saúde

medida que não foi

órgão ambiental do governo gaúcho – e não pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos

e o bem-estar da comunidade e dos colaboradores da obra.

Programa de

registrado nenhum incidente grave de atrito com a comunidade, nem

Educação Ambiental Fomenta a preservação e o cuidado do meio ambiente com os mais variados atores sociais (comu-

A licença prévia para a construção da BR-448/RS foi entregue em março de 2008, já prevendo

nidade, rede escolar, colaboradores de obra etc.) por meio de atividades socioambientais.

1.075/2011 e 488/2012 do DNIT, da autarquia têm competência plena para, em suas jurisdições, “acompanhar e operacionalizar os procedimentos de licenciamento ambiental referentes a

destinação de uma porcentagem do valor do investimento para o Estado, a fim de empreender ações de regularização fundiária do Parque Estadual do Delta do Jacuí. Além dessa

protestos. A obra

Monitoramento e Controle de Ruídos

compensação ambiental, foram fixadas as demais ações de redução de impacto a serem de-

Monitora e implementa práticas e medidas empregadas pelos lotes de obra, reduzindo ou minimizan-

está andando.”

talhadas pelo DNIT. Isso ocorreu em agosto de 2009, quando a autarquia apresentou o Plano

do os impactos gerados pela emissão de ruídos na área diretamente afetada pelo empreendimento.

Catarina Silveira Muñoz, fiscal do contrato da Gestão Ambiental da BR-448/RS

De acordo com as portarias nº as superintendências regionais

Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A fiscalização da gestão ambiental ficou a cargo da superintendência regional do DNIT, sob a supervisão da CGMAB.

DNIT tem atuação regional

projetos e obras de infraestrutura, interagindo junto aos órgãos ambientais da esfera municipal, estadual e representações federais nos Estados”, bem como

Básico Ambiental (PBA), elaborado pela contratada STE – Serviços Técnicos de Engenharia S.A., com a previsão de 22 programas ambientais. Destes, certamente o de maior complexi-

Comunicação Social

dade é o Programa de Reassentamento Populacional.

Estabelece canal direto e sistemático de comunicação entre o empreendedor e as comunidades

promover os atos para cumprir as condicionantes das licenças.

beneficiadas pela obra por meio da criação e distribuição de material impresso, realização de palestras e participação em eventos e veículos de comunicação.

Monitoramento dos Recursos Hídricos Subterrâneos Direciona e especifica estudos e ações necessárias para o monitoramento dos recursos hídricos subterrâneos quanto a possíveis impactos ambientais relacionados à construção da rodovia por meio de 14 poços piezométricos.

50 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

51


Monitoramento dos Recursos Hídricos Superficiais

tário das espécies terrestres e aquáticas na fase de implantação da rodovia.

Gerenciamento dos Resíduos Implementa os procedimentos relativos ao sistema de gerenciamento de resíduos referentes à minimização, segregação, acondicionamento, tratamento e disposição final de todo o resíduo gerado nos canteiros e frentes de obras, de acordo com a legislação vigente.

Redução de Atropelamento de Fauna Aplica mecanismos que possam mitigar possíveis impactos à fauna causados na fase de operação da rodovia, ou seja, auxilia na travessia dos animais ou mesmo os impede de cruzar as áreas com maiores riscos. Os mecanismos mais utilizados nesses casos são túneis, pontes, cercas, refletores e placas de sinalização.

Supervisão Ambiental Estrutura, diagnostica e propõe medidas para as atividades desenvolvidas pela Supervisão Ambiental durante o empreendimento, estabelecendo a metodologia para o acompanhamento das obras pela equipe. Foto: Andrea Weschenfelder

Direciona ações necessárias, por meio do monitoramento dos recursos hídricos superficiais, quanto

Programa Ambiental de Construção

a possíveis impactos ambientais relacionados à construção da rodovia, em pontos específicos ao

Apresenta os critérios a serem empregados pelos lotes construtores durante a fase de implantação

longo do empreendimento.

da obra e indica os procedimentos operacionais para minimizar possíveis impactos ambientais.

Programa de Resgate de Flora e Fauna

Prospecção, Monitoramento e Salvamento Arqueológico

Reduz o impacto gerado pela perda e fragmentação de habitats de fauna e flora decorrentes da

Realiza a prospecção, o monitoramento e o salvamento dos sítios arqueológicos na área direta-

supressão de vegetação da área de influência direta do empreendimento.

mente afetada ou eventualmente identificados por ocasião da implantação da obra.

Monitoramento da Fauna

Reposição Florestal

Monitora as ações implementadas para mitigar os impactos ambientais causados à fauna. Iden-

Recompõe e revegeta áreas relevantes para a flora, fauna e qualidade dos recursos hídricos na área

tifica pontos de maior ocorrência de atropelamentos, verifica a funcionalidade e a eficiência das

de influência do empreendimento. O cumprimento da reposição florestal é estabelecido por lei e é

estruturas instaladas para a passagem da fauna. Realiza o manejo da fauna atropelada e o inven-

realizado por meio do plantio de espécies arbóreas nativas.

52 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

53


Controle de Processos Erosivos

Indenização dos Proprietários O objetivo principal é a desocupação da faixa de domínio para a construção da BR-448/RS, praticando indenizações justas, sob o ponto de vista econômico e social.

Adequação de Sistema Viário Implanta “caminhos de serviço” para facilitar a construção da rodovia, considerando também as vias de tráfego existentes e adequando-as para o trânsito de veículos relacionados à obra, com placas de identificação e sinalização adicional quando é necessária a interdição de alguma via.

Prevenção e Controle de Acidentes com Cargas Perigosas

Apresenta os procedimentos a serem empregados na operação da rodovia, na finalidade de evitar e minimizar os possíveis impactos ambientais causados nas operações que envolvam a logística de produtos perigosos.

Reassentamento Populacional Consiste na realocação assistida das famílias residentes ao longo do traçado com o objetivo de desocupar a área para implantação da BR-448/RS. Foto: Andrea Weschenfelder

Direciona, orienta e especifica estudos e ações, preventivas e/ou corretivas, necessárias quando

O Programa de Reassentamento Populacional previa a retirada e a acomodação em novas mo-

constatados indícios de processos erosivos ou instabilidades geotécnicas no trecho da rodovia.

radias de todas as famílias habitantes da Vila do Dique, até mesmo daquelas localizadas fora da faixa de domínio. A decisão levou em conta a necessidade de se preservar as relações de vizi-

Paisagismo

nhança e compadrio entre os habitantes da comunidade, bem como equidade entre as famílias.

Propõe ações que possam mitigar os impactos ambientais passíveis de serem causados a partir da

Ao mesmo tempo, a retirada da integralidade da Vila do Dique contribuiria para a preservação

implantação da rodovia, buscando incorporá-la na paisagem em termos estruturais e ambientais.

do Parque Estadual do Delta do Jacuí, reduzindo a interferência humana no ecossistema e o lan-

Este programa foca, prioritariamente, a revegetação da faixa de domínio.

çamento de esgoto diretamente no sistema hídrico. Por fim, deixar as moradias fora da faixa de domínio poderia se constituir em um estímulo para novas ocupações irregulares na área de pre-

Prevenção de Acidentes e Controle de Saúde Pública

servação e nas margens da rodovia, além de separar laços existentes entre as famílias. O controle

Visa à melhoria contínua das condições de trabalho nas obras e evitar a sobrecarga que o empre-

fica facilitado quando não existe imóvel algum no local. Por isso, a realocação de toda a Vila do

endimento possa vir a causar na estrutura de saúde pública da região.

Dique foi inserida entre as condicionantes ambientais para o empreendimento.

54 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

55


Reassentar as famílias era a opção mais adequada para o caso, uma vez que os moradores

consórcio Enecon/STE S.A. No total, as contratações do DNIT somaram R$ 1.081.085.143,58. Do

residiam em área pública e, portanto, não poderiam ser indenizados pelos terrenos sobre os

total investido, 5,4% foram nas ações socioambientais, o que inclui, além da gestão ambiental,

quais não tinham direito de propriedade. Contudo, lhes foi oferecida a opção de indenização

a compensação ambiental, a vila de passagem e obras de infraestrutura dos loteamentos. Nesse

não pela terra, mas pelas benfeitorias construídas. A prefeitura de Canoas estabeleceu como

percentual, não está incluído o valor do convênio entre Caixa Econômica Federal, Ministério

diretriz que o trabalho social devia priorizar o reassentamento, e as famílias indenizadas seriam

das Cidades e a prefeitura de Canoas (R$ 38 milhões) para construir as 599 unidades habitacio-

exceção. Somente foram indenizadas as famílias com direito a R$ 45 mil ou mais, valor que

nais. Cabe salientar que a administração canoense custeou ainda o terreno da vila de passagem

possibilitou aquisição de nova moradia.

e a manutenção desta.

Até poucos anos atrás, no caso de famílias instaladas irregularmente em faixa de domínio de vias a serem duplicadas, o próprio Tribunal de Contas da União (TCU) colocava óbice a gastos com indenizações, entendendo que o dever do poder público era simplesmente retirar as moradias. Antigamente, essa era uma prática também adotada em casos de construção de novas rodovias, atingindo as famílias que ocupavam irregularmente as áreas a serem interceptadas. Hoje, entretanto, a orientação geral e a interpretação jurídica são favoráveis às medidas social e ambientalmente mais responsáveis, no sentido de não manter famílias em situação de vul-

Proteção do direito à moradia

uma análise de cada caso. No entanto,

O parecer nº 00143/2013/FM/PFE/DNIT

do reassentamento de famílias no

da Procuradoria Federal Especializada

âmbito das condicionantes da licença

o parecer aponta para a legalidade das indenizações de benfeitorias (embora não das terras ocupadas), bem como

– DNIT da Advocacia Geral da União

ambiental. Para os invasores que não se

nerabilidade. O entendimento do TCU vem ao encontro da compreensão de que investimen-

ressalta o fato de a legislação nacional

enquadram nessa categoria, indenização

tos com realocação de famílias são parte da gestão ambiental da obra. Os programas sociais,

prever a responsabilidade de o DNIT

e realocação não teriam amparo jurídico.

ingressar com ação demolitória no caso

A legalidade de reassentamento ou a in-

de construções em faixa de domínio

denização de famílias carentes também

ocupadas irregularmente, mas também

foram reconhecidas na auditoria do TCU

de proteger direitos fundamentais, como

sobre realocação de famílias no caso da

à moradia. Diante dessas duas orien-

BR-101/NE, no processo nº 8.807/2007,

tações e dos conflitos de direitos, cabe

e em outros casos analisados.

sendo exigências das licenças ambientais fazem parte de um mesmo plano ambiental, assim como os programas de monitoramento da fauna, da flora e dos recursos hídricos.

O início das obras A versão final do PBA aceita pela Fepam permitiu a emissão, em agosto de 2009, da Licença de Instalação do empreendimento e o início das obras. As máquinas iniciaram a construção da BR-448/RS no final daquele ano. As obras foram divididas em três lotes, a um custo total de R$ 1.004.422.420,88. Também foram licitadas a contratação de supervisão, fiscalização e acompanhamento das obras, vencida pela Magna Engenharia e Ecoplan; a da gestão e supervisão ambiental, ganha pela STE S.A.; e a do gerenciamento, que ficou sob responsabilidade do

56 Um novo caminho Uma nova vida

Construtoras da Rodovia do Parque Lote 1

Consórcio Sultepa - Toniolo, Busnello

Lote 2

Consórcio Construcap – Ferreira Guedes

Lote 3

Consórcio Queiroz Galvão – OAS – Brasília Guaíba

O histórico da BR-448/RS

57


Parceria

aprovação de planos urbanísticos especiais e promulgação de decretos expropriatórios, entre outras medidas jurídicas envolvidas em programas de reassentamento populacional.

A Prefeitura Municipal de Canoas foi uma aliada de primeira hora do DNIT no projeto da Rodovia do Parque. Desde a definição da instalação da estrada, o executivo municipal dedicou-se a apoiar o projeto, tendo em vista o interesse local e regional da via. Ainda em 2009, ano

Diferenças

de expedição da licença de instalação, uma equipe da prefeitura iniciou os contatos com a população da Vila do Dique, realizando cadastramento e selagem de casas de todas as fa-

Vale salientar que a maior parte dos casos de realocação relacionados com obras de infraestrutura

mílias que lá viviam. O trabalho teve o propósito de congelar a área, limitando beneficiários

possui uma característica distinta da observada na BR-448/RS. No caso gaúcho, há uma concentra-

do Programa de Reassentamento Populacional, e ao mesmo tempo de elaborar o projeto de

ção de famílias em um trecho relativamente curto de rodovia – a Vila do Dique margeia a Rodovia

reassentamento a ser apresentado ao DNIT.

do Parque em menos de 10 quilômetros. Normalmente, no entanto, as rodovias demandam programas de realocação em distâncias muito maiores, o que dificulta o trabalho de acompanhamento e

Ainda em janeiro de 2010, o município e o departamento firmaram termo de compromisso

orientação das famílias, bem como a proximidade entre a equipe social constituída e os moradores

para realização de obras, construção de 599 unidades habitacionais, colaboração e coopera-

que serão indenizados ou reassentados. O desafio a ser enfrentado em projetos de estradas mais

ção técnica no desenvolvimento do projeto de reassentamento de famílias a serem realocadas

longas é que as moradias na faixa de domínio estão dispostas de forma muito mais esparsa, as

devido à construção da Rodovia do Parque. A formatação final das parcerias inclui, além da

características das famílias a serem realocadas divergem e os vínculos e relações pessoais são mais

prefeitura de Canoas e DNIT, Ministério das Cidades e Caixa Econômica Federal.

difíceis de serem mantidos.

As casas e os apartamentos a serem construídos e entregues às famílias realocadas devido à

O caso da duplicação da BR-101/NE – com trechos na Paraíba, no Rio Grande do Norte e em

implantação da BR-448/RS passaram a fazer parte do Programa Minha Casa, Minha Vida. As

Pernambuco – é emblemático nesse sentido. Foram cerca de 400 quilômetros de rodovia, envol-

novas moradias são totalmente subsidiadas pelo governo federal, ou seja, as famílias realo-

vendo a indenização para realocação de mais de 1.200 famílias. O trabalho contou com o apoio

cadas não pagam pela casa nova. O total investido em dois loteamentos de casas – Canoas

do Exército, que acompanhou o Programa de Realocação e coordenou o acompanhamento social

Minha Terra I e II – e em apartamentos – condomínio Morada Cidadã – foi de R$ 52 milhões.

das famílias realocadas, com o objetivo de fazer com que os indenizados permanecessem em condições de vida iguais ou superiores às que tinham na faixa de domínio da rodovia. Uma das metas

Embora fique claro o papel de liderança do empreendedor, enquanto responsável pelos pro-

era manter ou ampliar a qualidade de moradia e do acesso a serviços, além de estimular o de-

gramas de mitigação ou compensação de impactos, é fundamental buscar parcerias para a

senvolvimento de relações sociais e comunitárias de forma salutar em suas novas comunidades.

execução de projetos. Notadamente no caso de reassentamento de famílias carentes em função da instalação de rodovias, o Ministério das Cidades e as prefeituras locais devem ser os

Já no começo do trabalho, o mapeamento das famílias ao longo da rodovia se constituiu em

aliados principais. Os municípios têm atribuição constitucional para planejar e executar a

um desafio. O mapeamento posterior, para que os beneficiários continuassem sendo acompa-

política urbana, com instrumentos para isso garantidos pelo Estatuto das Cidades (lei federal

nhados pela equipe social nas moradias que adquiriram ou para as quais se mudaram mos-

nº 10.257/2001). As parcerias são necessárias para instituição de zonas de interesse social,

trou-se ainda mais complexo. Enquanto no caso da BR-448/RS o cadastro de todas as famílias

58 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

59


foi feito em alguns meses, e o acesso aos cadastrados durante todo o acompanhamento era

Como tantos outros casos, a BR-101/NE deixou lições incorporadas a novos projetos. O traba-

imediato, para mapear todas as famílias realocadas na BR-101/NE, a equipe social do DNIT

lho social no empreendimento foi importante para que as obras da rodovia evoluíssem com

levou cerca de um ano. Ainda assim, nem todas as 1.241 famílias que seriam visitadas foram

um baixo número de contestações judiciais sobre as indenizações para realocação da popula-

localizadas. Dessas, 1.166 foram entrevistadas e tiveram sua situação posterior acompanhada,

ção. A ausência de conflitos também foi uma marca do trabalho social na Rodovia do Parque,

enquanto as demais não tiveram seus endereços localizados ou foram indicadas como des-

o qual pode ser considerado exemplar para outros reassentamentos.

conhecidas. Se em um caso como o da Vila do Dique o cuidado no cadastro já é importante, no caso de famílias que habitam as margens de uma longa rodovia, ao longo de centenas de

A complexidade de se avaliar o impacto nos empreendimentos lineares de grande porte não

quilômetros, passando por áreas rurais, é fundamental. Pequenos erros no momento de ca-

se verifica apenas no meio antrópico. Projetos que envolvem distâncias maiores costumam

dastrar nomes e endereços podem significar um grande desperdício de tempo e recursos em

afetar diferentes ecossistemas. As mudanças de paisagem, as alterações nas características da

uma situação como a da BR-101 no trecho nordestino. A localização posterior à mudança dos

fauna, da flora, do solo e dos recursos naturais devem ser registradas e levadas em conta ao se

indenizados passa, muitas vezes, a depender de contatos com diferentes municípios, diferen-

avaliar o impacto ambiental de uma rodovia.

tes comunidades, localizados em áreas rurais de difícil acesso. Para ajudar nessa localização, é recomendada até mesmo a inclusão, no cadastro, de apelidos ou nomes pelos quais os beneficiários são mais conhecidos. No caso da BR-101/NE, a equipe social que fez o acompanhamento das famílias realocadas contatou 23 prefeituras de municípios pelos quais passa rodovia e mais de 90 instituições, a fim de mapear serviços públicos e de apoio social e comunitário que pudessem auxiliar na melhora das condições das famílias indenizadas. O trabalho foi mais fácil em municípios que fizeram parceria com a Caixa Econômica Federal para construir casas em loteamentos destinados aos antigos moradores da faixa de domínio da rodovia. O fato é que, antes ou depois da realocação, apesar das distâncias e das moradias esparsas, o trabalho social deve envolver relação direta com cada uma das famílias. Em muitos casos, o Exército, parceiro do DNIT, orientou para a confecção da documentação básica, como cédula de identidade, acompanhou famílias nos bancos para recebimento de indenizações, abriu caminhos para que buscassem benefícios sociais, e até supervisionou aquisições de novas moradias, dando informações para que as famílias não adquirissem imóveis em áreas de risco, áreas públicas ou com qualquer tipo de gravame.

60 Um novo caminho Uma nova vida

O histórico da BR-448/RS

61


A relação com a comunidade

Ao longo do processo de implementação do Programa de Reassentamento Populacional da BR-448/RS, concluiu-se que o tempo para estabelecer a relação com as famílias e para construção da infraestrutura das casas seria superior ao da chegada da obra na área diretamente afetada. Esta sobreposição de prazos e espaços é uma dificuldade nesse tipo de programa, visto que o custo de paralisação de uma obra rodoviária representa uma perda financeira robusta para os cofres públicos. A solução encontrada foi a construção de uma Vila de Passagem, um local com cerca de 300 moradias provisórias, ao lado da Vila do Dique, nas quais seriam instaladas famílias que deveriam sair imediatamente para que a obra da estrada se desenrolasse. Essa vila foi construída pelo próprio consórcio responsável pelo Lote 3 da rodovia.

Foto: Andrea Weschenfelder

2


A possibilidade de aluguel social, uma alternativa utilizada pelo DNIT em outras obras, por meio da qual as famílias com moradias no leito planejado da rodovia são realocadas em imóveis locados pelo poder público, foi cogitada como opção à Vila de Passagem. Essa hipótese, no entanto, foi logo descartada, devido a dificuldades operacionais. Como o número de famílias com retirada urgente e obrigatória chegava perto de 300, seria preciso encontrar igual número de imóveis disponíveis. Ainda que houvesse oferta, o valor da locação tenderia a disparar, dada a pressão da demanda repentina, a menos que a busca incluísse unidades habitacionais em uma região geográfica mais ampla do que o município de Canoas e as adjacências da Vila do Dique. Nesse caso, entretanto, seria de se esperar descontentamento

Objetivo geral do Plano de Reassentamento • Gestão do processo de liberação da faixa de domínio para a implantação da rodovia BR-448/RS nos locais onde existe ocupação de moradias, com apoio às famílias a serem reassentadas para que a mudança não traga prejuízos à comunidade.

das famílias por serem colocadas em imóveis distantes de sua realidade atual, de seus locais de trabalho, dos vínculos escolares, além de serem separadas de sua vizinhança e relações comunitárias. Para a gestão ambiental da BR-448/RS e para a prefeitura de Canoas, o aluguel social também seria um entrave ao desenvolvimento do trabalho, uma vez que o acompanhamento de centenas de famílias em locais esparsos é inviável. A necessidade de realocação de famílias provisoriamente em uma Vila de Passagem, com pos-

Objetivos específicos • Assegurar às famílias reassentadas as condições socioeconômicas de que dispunham no local de origem; • Atuar no sentido de disponibilizar meios para que essas famílias efe-

tivamente melhorem sua condição socioeconômica; • Implantar mecanismos que garantam a efetiva participação da população a ser reassentada no processo de realocação, possibilitando o exercício da cidadania em todas as fases do programa; • Acompanhar a implantação de moradias dotadas de infraestrutura básica (saneamento básico, drenagem pluvial, energia elétrica, acessos), dentro das possibilidades das áreas destinadas à realocação; • Assegurar junto ao poder público que as famílias sejam realocadas em áreas onde tenham acesso aos serviços sociais básicos (saúde, educação, transporte coletivo, entre outros), bem como a locais de comércio (para

compra e venda de produtos); • Garantir o acesso aos meios de produção de que já dispunham antes, bem como a manutenção dos vínculos de trabalho (permanentes, temporários, registrados, acordados etc.); • Assegurar a manutenção dos laços culturais e sociais das famílias; • Estimular o empoderamento da cidadania e melhoria da qualidade de vida; • Sensibilizar e fomentar a mudança de hábitos e cuidados com o meio ambiente; • Melhorar as condições socioambientais das famílias realocadas; • Promover o bom uso dos equipamentos individuais (apartamentos, casas) e coletivos (áreas condominiais, praças, galpões, sedes de associação etc.).

terior mudança para as casas definitivas, foi um dos primeiros desafios enfrentados pela equipe social montada pela STE S.A. (gestora ambiental contratada pelo DNIT) e pelas equipes da prefeitura de Canoas para o serviço.

O início

Apresentação A apresentação da equipe da Gestão Ambiental e da prefeitura de Canoas à comunidade da Vila do Dique foi no dia 18 de março de 2011, em uma reunião na Escola Monteiro Lobato, próximo às

Em março de 2011, essa equipe social assumiu suas funções. No primeiro mês, o trabalho foi no

áreas afetadas. Toda a comunidade foi convidada. O encontro teve a presença do prefeito munici-

escritório, focado no estudo sobre a comunidade, principalmente a partir do EIA, e na montagem

pal, Jairo Jorge, e do superintendente regional do DNIT no Rio Grande do Sul, Vladimir Casa. Cou-

do Plano de Reassentamento. Esse documento atende a diretrizes e requisitos estabelecidos no

be ao coordenador da Gestão Ambiental da BR-448/RS, Adriano Panazzolo, apresentar a equipe

Programa de Reassentamento como estipulado no PBA, agregando cronograma de ações a serem

do reassentamento e de outros programas, e a prefeitura de Canoas apresentou o cronograma de

executadas, definição da equipe ligada ao projeto e reafirmação dos objetivos do PBA. Inclui des-

reuniões com a comunidade. Àquela altura já havia sido desenvolvido um colete de identificação

de a previsão de um plano de comunicação com as famílias a serem removidas até a formalização

azul para o grupo, bem como a logomarca do empreendimento, de forma que os trabalhadores

das responsabilidades de cada parceiro do programa.

da Gestão Ambiental passaram a ser identificados pela vestimenta.

64 Um novo caminho Uma nova vida

A relação com a comunidade

65


Feitas as apresentações, a equipe social estava pronta para entrar em campo. O mês anterior fora marcado por treinamentos intensivos e montagem do Plano de Reassentamento. Foi formado um grupo de trabalho, coordenado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação e composto por STE S.A., DNIT, secretarias municipais da Saúde, Transporte e Meio Ambiente. Esse grupo definiu a metodologia do reassentamento, planejou e distribuiu as tarefas de cada um no processo. Todos os integrantes do grupo, antes de ir para a rua, mostravam-se conscientes do papel que teriam e dos objetivos gerais da ação.

Composição da equipe A equipe de Gestão Ambiental do Programa de Reassentamento foi formada por 10 pessoas, além da equipe existente de comunicação e educação ambiental: • Um coordenador de campo (nível superior)

As capacitações preliminares serviram para estudar os modos de agir na comunidade. Detalhes como a obrigatoriedade do uso de colete, crachá de identificação e Equipamentos de Proteção Individual, a exemplo de botas, foram absorvidos pelo grupo da STE S.A. Cuidados básicos,

• Dois assistentes sociais • Cinco agentes comunitários • Uma secretária • Um motorista

como não se encostar em cercas e materiais cortantes, a fim de evitar lesões e infecções por pica-

18 de março de 2011: em reunião aberta à comunidade, a equipe social é apresentada aos moradores do Dique

Foto: Andrea Weschenfelder

Isso foi importante para o primeiro desafio da equipe social: vencer a desconfiança da comunidade. O clima na reunião não era dos melhores. Previamente informados, porém sem grandes detalhes, de que haveria instalação de famílias em uma Vila de Passagem, muitos compareceram ao encontro dispostos a protestar contra essa possibilidade, com faixas e cartazes. O grande temor dos moradores sempre foi de que as famílias fossem alocadas nas unidades provisórias e ali esquecidas, sem jamais ir para casas e apartamentos definitivos. No entanto, com o desenrolar das apresentações, a solidez de um Programa de Reassentamento Populacional atrelado à construção de uma rodovia restou evidente, aplacando os ânimos dos dispostos ao protesto. Detalhes sobre localização das novas moradias, configurações das unidades habitacionais e do processo de realocação, apresentados na oportunidade pela prefeitura de Canoas e pelo DNIT, foram fundamentais para isso.

66 Um novo caminho Uma nova vida

Equipe social foi qualificada para usar equipamentos de identificação e segurança, tomar cuidados básicos e se comportar adequadamente

Foto: Andrea Weschenfelder

A relação com a comunidade

67


João-de-barro

das de animais, também foram passados aos membros da equipe, bem como a forma de abor-

Vulnerabilidade social

dagem, sempre se identificando e apresentando os objetivos do contato previamente. Tudo isso

Um estudo realizado pela Orga-

deveria ser feito com a máxima gentileza. Por serem elementos novos na região, os integrantes

nização das Nações Unidas para

da equipe social deveriam respeitar os costumes dos locais. E, fundamentalmente, deveriam ouvir as demandas da população, mesmo que não se tratasse de questões relativas ao DNIT. Até porque, como executores de um programa social específico, eles não poderiam resolver todos os problemas dos moradores, mas orientar ou encaminhar para órgãos competentes quando

Foto: Andrea Weschenfelder

fosse o caso. Isso incluiu mapeamento das necessidades individuais e verificação da oferta de

a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que originou o livro “Juventude, Violência e Vulnerabilidade Social na América Latina: Desafios para as Políticas Públicas”, trabalha

serviços e benefícios sociais disponíveis para cada situação. Com o conhecimento das neces-

com a seguinte definição para

sidades e direitos da população e das oportunidades oferecidas pelo poder público e terceiro

vulnerabilidade social, delineada

setor, pode-se abrir caminho para que as famílias busquem programas de renda, serviços de saúde e educação adequados ou cursos de qualificação, por exemplo.

por J.R. Vignoli e C.H. Filgueira:

“O resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos

Um dos princípios no trabalho da assistência social é o profissionalismo, a escuta das necessiNa conquista da confiança da população, a equipe social ganhou um aliado de primeira hora: o joão-de-barro. Pássaro comum na área da obra, bem como em todo território sul-brasileiro, o Furnarius rufus, nome científico da espécie, virou mascote da Gestão Ambiental da BR-448/RS. E ninguém poderia ser melhor do que ele para auxiliar na educação ambiental e representar o processo de realocação das famílias. O joão-de-barro é reconhecido pelo esmero na construção da casa de sua família. Por ser um obreiro nato, tem tudo a ver com a empreitada da nova estrada e das novas moradias para a população da Vila do Dique.

68 Um novo caminho Uma nova vida

dades cotidianas da vida das pessoas, contudo, sem envolvimento pessoal, evitando o “assisEm forma de personagem em gibis e material didático trabalhado com as crianças das escolas locais, em forma de boneco em atividades lúdicas e educativas, o mascote faz a festa com a meninada e seus pais. O personagem foi apenas uma das ferramentas trabalhadas em conjunto pelos programas de Reassentamento Populacional, de Educação Ambiental e de Comunicação Social, todos sob a mesma coordenação da STE S.A. O Planejamento Estratégico de Comunicação Social se iniciou com entrevistas a representantes de diferentes públicos relacionados com o empreendimento, de moradores da Vila do Dique a promotores e

autoridades políticas. A partir desse diálogo, chegou-se ao slogan “Um Novo Caminho, Uma Nova Vida”, que passou a ser associado a toda a Gestão Ambiental da nova rodovia. O conceito geral da Gestão Ambiental está representado também na logomarca comum a todos os programas, que traz uma estrada, uma folha e uma mão, simbolizando os meios físico, biótico e socioeconômico.

atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais econô-

tencialismo”. A assistência social é regulamentada no país desde 1993, por sua lei orgânica (lei

micas culturais que provêm do

federal nº 8.742/93), que, em seu artigo 15º, estabelece a legitimidade das ações emergenciais.

Estado, do mercado e da socie-

E é à luz dessa legislação e dos princípios que regem a atividade que a equipe envolvida nos trabalhos do Programa de Reassentamento Populacional da BR-448/RS atua.

dade. Esse resultado se traduz em debilidades ou desvantagens para o desempenho e mobilidade social dos atores”. Segundo os

O trabalho de assistência social pode ser executado por inúmeros profissionais – como psicólo-

autores, o “conceito de vulnerabilidade ao tratar da insegurança,

gos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e outros, entre eles assistentes sociais com formação

incerteza e exposição a riscos

para isso. A assistência social, como área de atuação, cumpre com o papel de pensar, articular

provocados por eventos socio-

e executar os serviços que abranjam o atendimento do cidadão em situações de vulnerabilidade social. Assim, passa a ser entendida como uma forma de garantia de direitos, a partir da informação e seguridade.

econômicos ou ao não-acesso a insumos estratégicos apresenta uma visão integral sobre as condições de vida dos pobres, ao mesmo tempo em que considera

Para os integrantes da equipe social, ver uma família passando frio e não se mobilizar para

a disponibilidade de recursos e estratégias para que estes indi-

doar o blusão do próprio corpo não é tarefa fácil. Mas o procedimento correto em casos de

víduos enfrentem as dificuldades

urgência é buscar uma organização formal que ofereça o suporte. Essa é uma missão que só

que lhes afetam.”

A relação com a comunidade

69


pode ser cumprida quando existe a compreensão macro do trabalho que está sendo execu-

Congelamento

tado. E o objetivo geral não é ajudar a todos com soluções paliativas, mas sim contribuir para que os assistidos conquistem uma melhoria da qualidade de vida, tendo acesso a seus direitos

A equipe social, ou “os de colete azul”, como já diziam os residentes da Vila do Dique, teve como

e também exercendo os deveres de cidadão. Por anos e anos, políticas paternalistas incutiram

sua primeira grande atividade atualizar os dados cadastrais de todas as famílias do local, traba-

nas populações carentes da região a visão de que eram merecedoras de favores ou benesses.

lhando em conjunto com a prefeitura municipal. A ordem era não apresentar a ação como um

Dar-lhes o direito à cidadania é abrir as portas de uma vida nova, empoderá-las. É, portanto,

novo cadastro, mas apenas como atualização das informações coletadas no congelamento de

um trabalho de longo prazo.

2009 executado pelo município. Isso era essencial para não transmitir a ideia de que o trabalho

32,56%

estaria incluindo famílias no Programa de Reassentamento, contrariando o que fora estabelecido

“Eu aprendi muito

em 2009 e incentivando novas famílias a ocuparem irregularmente os terrenos às margens dos

com soluções de engenharia

Famílias por cor do selo

diques, a fim de ganhar uma casa nova.

49,11%

18,33%

Foto: Andrea Weschenfelder

Na atualização cadastral, a metodologia para selagem foi trocada, com as famílias divididas em

fantásticas na BR-

três grandes grupos. Cada um recebeu selo de uma cor: verde, para as que deveriam sair antes

448/RS. Mas com

por estar na área diretamente afetada pelas obras; vermelho, para as que iriam direto para as moradias definitivas; laranja, para as casas que se estabeleceram após o congelamento de

certeza a coisa mais

2009. O momento do congelamento cadastral é uma definição fundamental para o andamen-

linda do projeto é o

to do programa, dada a alteração constante do local e a impossibilidade de se abarcar todos

trabalho social que

Verde: 276 famílias Vermelho: 183 famílias Laranja: 103 famílias Fonte: STE

aqueles interessados em ter melhores condições de moradia, mas que só foram habitar o local posteriormente ao processo de cadastramento com interesse de obter a casa nova.

está se fazendo.” Pedro Luzardo Gomes, Superintendente do DNIT no Rio Grande do Sul

Estas novas famílias ainda teriam sua ida para as casas e apartamentos definitivos definida posteriormente, após aprovação da Comissão de Acompanhamento de Obras, formada por representantes da própria comunidade. Além da inovação das cores, a selagem foi feita com pintura do número na parte externa das residências, a fim de facilitar a identificação por parte do DNIT e a fiscalização da prefeitura de Canoas. Essa metodologia também teve o objetivo de desestimular o estabelecimento de novas famílias no local. Os números dos selos ganharam ares de carimbo, à medida que foram inscritos dentro de uma moldura com a logomarca do Programa de Reassentamento. Mais do que um cuidado, isso reforçou a identidade do trabalho da Gestão Ambiental Equipe social: trabalho para garantir direitos a partir da informação e seguridade

70 Um novo caminho Uma nova vida

e a ideia de que não se tratava de mais uma selagem ineficaz, como outras pelas quais a popu-

Selagem das moradias originais: procedimento para facilitar a identificação das famílias e a fiscalização da prefeitura

lação local já passara. O uso de cores foi importante não apenas para orientar a equipe social,

A relação com a comunidade

71


Instalações sanitárias nas moradias

mas também para comunicar de forma mais didática o grau de prioridade de remoção de cada

para estabelecer os laços da equipe social com a comunidade. Coletar dados de uma popula-

família dentro do processo de reassentamento, com símbolos visuais passíveis de compreensão

ção socialmente vulnerável e desassistida é uma tarefa com inúmeros obstáculos. Era comum a

até mesmo para o não desprezível número de analfabetos na comunidade.

equipe deparar com crianças não registradas, adultos sem documentos, constantes alterações nas estruturas familiares, com novas uniões, separações, nascimentos de filhos, falecimentos.

22,95%

77,05%

No momento da nova selagem, além da pintura na fachada, foi tirada uma foto de cada chefe

Quando se trata de um grande número de pessoas e um ambiente no qual o exercício da cida-

de família ao lado do selo. Como regra, todos os atos relevantes da equipe social estão ampla-

dania é pouco estimulado, a manutenção de cadastros atualizados envolve uma alta complexi-

mente registrados por fotografias, vídeos e documentos. A prática é fundamental para ilustrar

dade administrativa na gestão ambiental de uma obra.

os relatórios enviados pela empresa executora da gestão ambiental à fiscalização do DNIT e também para prevenir a autarquia em quaisquer casos de contestação judicial, servindo como suporte na defesa jurídica. Além disso, as imagens servem como memória do processo, poden-

Com banheiro

do subsidiar futuros reassentamentos e ajudando na avaliação de dificuldades enfrentadas e

Sem banheiro

soluções criadas.

Fonte: EIA/2008

Mapeamento Terminada a atualização cadastral, tinha-se o perfil completo da população. Nesse momento, tornaram-se possíveis análises detalhadas, que confirmaram a situação geral apurada

Famílias por faixa de renda familiar mensal 1,12% 13,03% 22,95% 32,22%

Outra atenção foi para que as entrevistas com as famílias, no momento da atualização cadas-

no EIA/RIMA, porém com maior acurácia. Esses dados continuaram sendo atualizados no

tral, fossem feitas nas porta das casas, com o intuito de verificar se efetivamente as residên-

decorrer do trabalho social. A contagem mais recente, em setembro de 2012, indicava 2 mil

cias eram ocupadas. Sempre que houvesse qualquer desconfiança de que uma casa não era

pessoas beneficiadas pelo Programa de Reassenta-

habitada ou havia sido instalada com o fim único de servir como ponte para o recebimento

mento, quase a totalidade da Vila do Dique, em-

de moradia definitiva, a equipe social era orientada a pedir para ingressar na residência, bem

bora houvesse um pequeno número de famílias

como certificar-se com vizinhos do histórico do local e da efetiva utilização por moradores.

que viviam em áreas ocupadas nos municípios de

Nesse momento, foram verificados alguns casos de casas desabitadas, cujo propósito do

Esteio e Sapucaia do Sul.

pretenso morador parecia ser somente o benefício. Por vezes, havia até certa sofisticação na prática, com instalação de móveis para dar ares de lar a um esqueleto de madeira e telha.

Entre outros dados sobre o perfil dessa população,

Mas uma apuração mais detalhada é capaz de identificar a falta de uso dos equipamentos.

foi possível apurar que 85,85% das famílias viviam

Em uma das casas que foram retiradas pela prefeitura de Canoas por não abrigar família, a

com renda familiar inferior a R$ 1 mil por mês, sen-

equipe social encontrou um sofá, uma cama e uma televisão quebrada. Nada de geladeira,

do que 30,33% recebiam Bolsa Família. Além disso,

De R$ 0 a R$ 500

comida, lixo. As conversas com vizinhos reforçaram que se tratava de imóvel desabitado,

averiguou-se, por exemplo, que 27 moradias eram

De R$ 500 a R$ 1.000

uma “casa de fachada”, escassamente mobiliada com o interesse de receber selo e, conse-

utilizadas para fins comerciais, enquanto quatro

De R$ 1.000 a R$ 2.000

quentemente, o direito a uma moradia definitiva.

abrigavam casas de religião e uma era sede de asso-

77,05% 53,63%

ciação de moradores. E ainda que 129 residências,

De R$ 2.000 a R$ 3.000 Fonte: EIA/2008

Comércio na Vila do Dique: houve preocupação em manter atividades das famílias após a mudança

Os momento da retificação e confirmação dos dados do cadastro das famílias foi fundamental

72 Um novo caminho Uma nova vida

ou 22,95% do total, não contavam com banheiro.

A relação com a comunidade

73


A divisão

a presença constante da equipe social na Vila do Dique permita uma relação direta com qualquer interessado, o diálogo entre representantes e representados é uma demonstração clara e

Com a população local contada, mapeada e cadastrada, uma das primeiras medidas foi divi-

formal de que todos são parte do processo. Além disso, os integrantes da comissão podem as-

dir a Vila do Dique em cinco áreas, nominadas conforme referências locais: Dique Rio Branco,

sumir o papel de agentes de transformação da vida da comunidade, levando à população en-

Dique Canil, Dique Paquetá, Dique Prainha e Dique Fátima. A separação se deu com base em

sinamentos e oportunidades apresentadas pelo Programa de Reassentamento Populacional.

critérios geográficos, respeitando relações de parentesco e vínculos criados entre os habitantes

“Me criei no meio do mato, lidando com bicho. Por mim

de cada trecho, suas associações e lideranças. A classificação serviu para a formação de uma

Para que os integrantes da comissão desempenhassem seu papel de representação, não ape-

comissão de obras. O grupo, composto por 22 representantes comunitários (pelo menos três

nas decidindo pelos demais, mas sim com eles, houve uma intensiva de reuniões com o grupo

de cada dique), foi eleito pelos habitantes de cada comunidade, em encontros convocados

eleito no início do trabalho. Os encontros ocorriam aos sábados, dia escolhido pelos próprios

pela equipe social, os quais também serviram para dirimir as dúvidas, que ainda eram muitas,

membros como o ideal, e serviram para colocar a população a par das principais informações

da população local.

ligadas à obra: o andamento do Programa de Reassentamento Populacional, o estágio de construção da rodovia, a construção das novas casas e apartamentos, os serviços oferecidos pela

A convocação das reuniões para formar a Comissão de Acompanhamento de Obras era feita com

Gestão Ambiental e pela prefeitura de Canoas, as atividades desenvolvidas pela equipe social.

convites pessoais às lideranças, fixação de cartazes nos locais e entrega de panfletos. Mesmo com

Ao mesmo tempo, essas reuniões também foram utilizadas para capacitação do grupo. Era

Aqui tenho minhas

as formas escritas, a conversa com os habitantes sempre foi ponto indispensável no processo de

preciso não apenas reconhecer e respeitar a liderança dos eleitos, mas também capacitá-los

ferramentas, meus

comunicação. Não apenas porque parte do público-alvo é analfabeta, mas porque a tradição oral

para exercê-la de forma responsável e disseminar práticas ambientalmente responsáveis. Nessa

é muito forte na cultura brasileira. Essas reuniões, coordenadas pela prefeitura de Canoas, foram

linha, o grupo teve palestras sobre higiene ministradas por um técnico da Secretaria Municipal

realizadas em locais tão diversos quanto embaixo de árvores ou no leito da obra.

de Saúde, aprendeu sobre aproveitamento integral de alimentos em oficina que incluiu prepa-

não saía do Dique.

animais, tenho silêncio.” Maurício Winck, ex-morador da Vila do Dique

ro de bolo com casca de banana e debateu questões como a presença dos animais na comuni-

Comissão de Acompanhamento de Obras Na comunicação com a população da Vila do Dique, o respeito às lideranças locais foi fundamental. Sempre que houvesse novas informações sobre o processo de construção das casas

dade e os riscos de zoonoses a ela associados e a importância da organização dos recicladores em cooperativas, assunto trabalhado pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente.

O contato direto

e de reassentamento, os líderes eram comunicados e chamados a trazer a visão da popula-

Meio de transporte por família

22,77%

77,33%

Possuem carro ou moto Não possuem carro ou moto Fonte: EIA/2008

População da Vila do Dique por faixa etária + de 60 anos

2,99%

50-59 anos

5,87%

40-49 anos

9,30%

30-39 anos

12,45%

20-29 anos

18,26%

ção. Da mesma forma, esses representantes eleitos deveriam ser ouvidos sempre que algo

Apesar de indispensável, a comunicação via lideranças disseminadoras não pode ser a única

10-19 anos

24,13%

necessitasse de posicionamento da comunidade. Portanto, a constituição de uma comissão

forma de relação com a comunidade. O contato direto com a totalidade das famílias é essen-

0-9 anos

27%

de obras com nomes apontados pelas famílias beneficiadas é peça-chave do processo. Além

cial. Só assim se consegue desmanchar a atmosfera de desconfiança que reina em comuni-

de deliberar, esse grupo tinha o papel de levar para os moradores as informações relativas ao

dades carentes e com histórico de promessas não cumpridas. Mas falar apenas não basta. A

andamento das obras das novas casas e dos processos de relocação de famílias. Por mais que

percepção geral de que a BR-448/RS realmente viria para mudar a vida das 2 mil pessoas que

74 Um novo caminho Uma nova vida

Fonte: EIA/2008

A relação com a comunidade

75


habitavam o local só se consolidou após as visitas aos canteiros de obras. Primeiro, a Comis-

rurais em busca de uma vida melhor na cidade grande. Mesmo na metrópole, mantiveram hábitos

são de Obras foi convidada a percorrer os trechos em construção, desde o início da rodovia,

campesinos, sem contar a nostalgia de uma infância no campo – por menos recursos que tivessem.

em Sapucaia do Sul, até seu término, em Porto Alegre. Depois, foram promovidas visitas aos terrenos que abrigariam as novas casas e à Vila de Passagem. O que horas de conversa e expli-

O operário Maurício Winck, por exemplo. Natural de Sarandi, na Região Planalto do Rio Grande do

cações não conseguiam traduzir virava convicção após cada visita.

Sul, ele veio para Canoas em busca de emprego e oportunidades. Sua casa na Vila do Dique não

“As dimensões

tinha chuveiro. Cansados de tomar banhos de bacia, as duas filhas, os dois filhos, o neto e a esposa,

sociais do ambiente

Convencimento

era repleta de buracos, mas tinha espaço para Winck guardar suas ferramentas e os arreios dos dois

– designadamente,

cavalos. Era rodeada por lixo, mas também por mato. Ali, ele se sentia livre. Nos novos condomínios,

mas não

Outro desafio ao longo de todo o trabalho social foi convencer os moradores da Vila do Dique

temia o vizinho que ouviria rap, a impossibilidade de criar galinhas e de ter mais de um cavalo. Em

dos benefícios do reassentamento. Para quem não participa do processo, é até mesmo difícil com-

seu lar no Dique, onde muitos enxergariam tantas limitações, o operário via a liberdade.

exclusivamente, a

preender como famílias que vivem em barracos, sem água encanada ou esgoto, com luz instável,

paz, a qualidade

misturadas a ratos, baratas e outros vetores urbanos, titubeiem ante a possibilidade de se transferir

das relações sociais,

Resistências

a libertação do

Quando se inicia um processo de reassentamento, espera-se que surjam resistências. E que inte-

medo, o sentimento

Se é verdade que, para alguns, essa transferência era a oportunidade tão es-

resses sejam contrariados. Na Vila do Dique, o problema das drogas é presente. Não são poucos

de pertença –

perada por anos, para outros, representava um transtorno. Sem nunca terem

os casos de famílias que perderam seus filhos, especialmente para o crack. Há quem consuma e há

sido servidos por infraestrutura urbana básica, parte dos moradores da Vila do

quem venda. Não se sabe que prejuízos ou mesmo benefícios o tráfico de drogas – bem como ou-

são importantes

Dique tinha dificuldade até de avaliar os benefícios das novas moradias. Além

tras atividades econômicas legais e ilegais – terá com a mudança. Daí, a possibilidade de conflito.

para casas de alvenaria, interligadas à rede pública de água, luz e esgoto, frente a ruas calçadas e Canteiro de obras: construção da rodovia proporcionou acesso inédito a infraestrutura básica aos moradores do Dique

Maria Angelúcia Ferreira da Silva, queriam se mudar logo para a Vila de Passagem. A casa da família

infraestrutura urbana que compreende acesso facilitado ao transporte público e espaços de lazer.

aspectos de saúde e qualidade de vida

disso, por pior que fosse a vida no dique, abandoná-la significava abrir mão de alguns hábitos e assumir algumas responsabilidades. A necessidade de seguir

Diante disso, para o poder público, é importante demonstrar que o reassentamento é um proces-

regras de convívio social, na Vila de Passagem e nas novas moradias, era motivo

so inexorável, e que a equipe social não tem o papel de polícia. Da equipe, espera-se a criação de

de tensão para muitos. Uma das principais queixas dos resistentes à mudança

condições para que algumas famílias possam seguir um caminho distante do vício. Àqueles envol-

era relativa à falta de liberdade que teriam nas casas ou apartamentos novos.

vidos em um Programa de Reassentamento Populacional, cabe esclarecer, ouvir a opinião e rece-

Palavras como “prisão” ou “cemitério” foram muitas vezes usadas para des-

ber todos os integrantes de uma comunidade, não importa o papel social que ocupem no grupo.

das pessoas.” Princípios Internacionais de Avaliação de Impactos Sociais, documento elaborado por Frank Vanclay para a IAIA

crever o estilo de vida em condomínios verticais ou horizontais, como os que estavam sendo construídos para a comunidade. É preciso se colocar no lugar

É provável que qualquer programa social desenvolvido junto a populações carentes tenha de lidar

das famílias para compreender esse processo e, dessa maneira, revertê-lo com

com o problema da drogadição. Preparar-se para diferentes tipos de abordagem, dependendo de

ações educativas. Boa parte dos moradores do Dique veio de comunidades

cada local, é fundamental nesse caso.

Foto: Eduardo Rocha

76 Um novo caminho Uma nova vida

A relação com a comunidade

77


A Vila de Passagem O projeto A Vila de Passagem foi uma iniciativa emergencial para evitar atraso nas obras, que andavam a um ritmo mais acelerado do que a construção das novas unidades habitacionais. Os trabalhos no terreno destinado ao local transitório iniciaram-se no começo de 2011, e a estrutura ficou pronta em setembro do mesmo ano. Arquitetonicamente, a Vila de Passagem é muito semelhante aos alojamentos de trabalhadores em grandes obras de infraestrutura construídos Brasil afora. Feitos em Oriented Strand Board (OSB) – material composto por tiras de madeira e resina –, com piso de cimento, os módulos têm resistência suficiente para durar mais do que o tempo previsto de operação do local. Cada unidade foi construída com 18 metros quadrados, divididos entre uma peça grande e um ba-

Foto: Eduardo Rocha

3


nheiro ventilado, equipado com chuveiro, vaso sanitário, descarga e pia. Já o cômodo principal

unidade tinha espaço suficiente, mas também poten-

possui uma janela, uma pia e um bico de luz. Na parte externa, os módulos contam com um

cial de se transformar em um verdadeiro lar.

tanque e espaço gradeado para os botijões de gás, reivindicação da comunidade para que não

“Passei muita

fossem roubados. Todas as unidades possuem energia elétrica, água encanada e estrutura de

Para isso, uma das residências foi decorada, assim

esgoto, providas pela prefeitura municipal, sem encargo para os usuários. Mesmo com dimen-

como ocorre nos grandes empreendimentos imobi-

sões reduzidas, as casas passageiras ofereciam condições de infraestrutura, higiene e habitação

liários. Com participação da Gestão Ambiental, da

bastante superiores a praticamente qualquer moradia do Dique.

construtora do Lote 3 e da prefeitura de Canoas, foram adquiridos alguns objetos e móveis. Outros ainda

vergonha quando

A localização da Vila de Passagem não deixa de ser simbólica. Fica entre um dos trechos da Vila

foram doados ou emprestados por colaboradores da

fui à casa da minha

do Dique e o loteamento Canoas Minha Terra II, o primeiro dos locais de reassentamento de

STE S.A. Um dos princípios da ação era não fazer fic-

famílias realocadas devido à BR-448/RS pronto. Ou seja, como local transitório, fica geográfica

ção, ou seja, não decorar a unidade com objetos caros

e cronologicamente entre as moradias a serem destruídas, representando o passado, e as defi-

e inacessíveis para quem ali moraria. Assim, a mesa

nitivas, representando o futuro.

ganhou toalha de plástico; a geladeira, a companhia

sogra, pois meu filho pequeno levou um susto do chuveiro. Nunca havia tomado banho num. Para mim vai ser muito melhor viver na Vila de Passagem.” Ana Vilma Caldeira, ex-moradora da Vila do Dique

de um pinguim; o fogão, um pano de prato. CortiQuando a notícia da existência de uma Vila de Passagem chegou à comunidade da Vila do

nas para o box, toalhas no banheiro, colcha na cama,

Dique, causou uma onda de apreensão entre os locais. Não era de se esperar diferente, na

cada detalhe dava um pouco de vida aos cômodos.

medida em que esse não era o plano inicial. Os maiores temores manifestados por moradores eram de que seriam transferidos para o local provisório e ali esquecidos, jamais sendo removi-

Ao lado desse módulo, havia outros dois: um equipado apenas com os móveis e utensílios bási-

dos para as residências permanentes. Também havia o medo de que os módulos não tivessem

cos e outro totalmente vazio. As famílias foram levadas pela equipe social para conhecer os três.

dimensão para acomodar o mobiliário básico de uma casa.

Não apenas olhar, mas experimentar, sentar no sofá, circular pelo interior. Vivenciando o espaço,

Casa decorada: uma forma simples de encantar as famílias reassentadas e provar que era possível fazer dos módulos verdadeiros lares

perderam o receio, projetaram uma nova vida, saíram animadas com a mudança. O boato de

Módulo decorado

que o espaço seria insuficiente para comportar uma família de até quatro pessoas dissipou-se. A experiência da unidade decorada foi um sucesso. Além de comprovar a possibilidade de rece-

Os trabalhos de terraplenagem do Canoas Minha Terra II, contíguo ao espaço destinado à Vila

ber as famílias, reforçou o vínculo entre a equipe social e a comunidade. A maioria saiu satisfeita

de Passagem, ajudaram a aplacar o medo de esquecimento das famílias no espaço provisório.

da visita e com vontade de se mudar. Não foi nada planejado, mas o fato de as visitas terem

Já a insegurança com relação ao tamanho da unidade habitacional foi vencida com criatividade

ocorrido durante os rigores do inverno gaúcho ajudou. A Vila do Dique está situada na várzea,

pela equipe social. Diante de tantas dúvidas, a Gestão Ambiental da BR-448/RS decidiu mobiliar

sobre área alagadiça. Quando chove e faz frio, a umidade penetra pelo assoalho das casas. Uma

um dos módulos, para que servisse de exemplo e modelo aos futuros moradores. A ideia não se

casa com maior isolamento térmico, telhado sem goteiras e piso impermeável é com o que as

resumiu à colocação de sofá, cama, mesa, cadeiras, geladeira e fogão. Era preciso provar que a

famílias sonham no inverno.

80 Um novo caminho Uma nova vida

A Vila de Passagem

81


A infraestrutura

tos, avisar familiares, solicitar dispensa no trabalho e até mesmo se preparar psicologicamente. Além disso, a prefeitura de Canoas emitiu atestados de que os moradores participaram do pro-

“Esse projeto da Vila de Passagem foi muito bom para o nosso povo. Agora temos tudo na mão. Mudou

A infraestrutura da Vila de Passagem ia além dos módulos e ruas internas. Toda cercada, com

cesso de mudança, para que os transferidos pudessem justificar ausência em seus empregos,

portão de entrada, vigiado 24 horas por segurança particular, o local tem algumas caracterís-

além da falta dos filhos na escola.

ticas de condomínio fechado. Uma pracinha para as crianças, brinquedoteca, centro comunitário, salas para cursos, território digital com acesso à internet e campo de futebol são espaços

Também com a participação da Comissão de Obras, foram definidas regras para a mudança.

de lazer. Um galpão de reciclagem, baia para cavalos, espaço para estacionamento de carros

Atendendo a pedido da comunidade, ficou estabelecido que cada módulo habitacional abri-

completam a estrutura comum. Além disso, a equipe social intensificou ali os serviços presta-

garia até quatro pessoas. Casas que na Vila do Dique abrigavam cinco ou mais moradores, por-

dos à comunidade. A reunião das famílias em um condomínio comum, inicialmente uma solu-

tanto, dariam direito a duas unidades na Vila de Passagem. Quem tinha comércio no Dique re-

ção emergencial, se mostraria um poderoso catalisador do processo de formação de cidadãos

ceberia um módulo para sediar seu negócio – casos especiais seriam analisados pela comissão.

participativos e preparação dos moradores para a vida nas moradias definitivas.

VIla de Passagem: primeira etapa de uma nova vida

muita coisa. Estou feliz. Solucionamos nosso problema de saúde pública, não tínhamos água e nem luz própria e de qualidade, nem segurança,transporte coletivo e assistência

Uma nova vida As famílias que se mudariam para a Vila de Passagem foram mapeadas de acordo com as previsões de evolução da construção da rodovia. Teriam de sair não apenas as que seriam alcançadas pelo canteiro de obras, mas também as localizadas muito perto dele, já que a simples proximidade do bate-estacas era capaz de causar danos estruturais às frágeis moradias da Vila do Dique. Nem todas as 300 famílias se mudariam ao mesmo tempo. Por isso, para a operação da Vila de Passagem, é necessário um constante diálogo entre os construtores do Lote 3, a Gestão Ambiental e a prefeitura. É o ritmo de construção de cada trecho da estrada que define quem

de saúde.”

deve sair com urgência dos diques. Embora se pudesse planejar boa parte da operação, em

Helena Mousquer, ex-moradora da Vila do Dique

afetadas, há mudanças de curso. Para evitar um impacto ainda maior na vida dos moradores

um processo que envolve ao mesmo tempo obras de engenharia civil e a rotina de famílias a serem removidos, por meio da Comissão de Obras, a comunidade apresentou demandas. Delas, surgiram regras para o momento da mudança. Entre as solicitações acatadas estava a de que nenhuma família iria para a Vila de Passagem sem ser comunicada com um mínimo de 15 dias de antecedência. Era o tempo necessário para se planejar, arrumar malas, acomodar objeFoto: Eduardo Rocha

82 Um novo caminho Uma nova vida

A Vila de Passagem

83


Planejando a mudança

(além de 12 caixas de abelha), sendo os mais comuns cães, gatos, galinhas, bovinos e cavalos. A estatística informava que 112 famílias possuíam equinos, que desempenhavam um papel es-

Para que não houvesse surpresas no dia do deslocamento, a equipe social atualizou, mais

sencial na economia doméstica, por servirem de tração para as carroças nas quais os catadores

uma vez, o cadastro de todos que iriam para a Vila de Passagem, acrescentando informações

coletam o lixo da cidade.

essenciais, como quantidade exata de móveis e de animais, entre outras. As residências que contassem com número de móveis maior do que a capacidade do módulo teriam o exce-

Na mudança para a Vila de Passagem, ficou definido que cada família poderia levar no má-

dente guardado em uma unidade destinada a depósito. Antes de armazenada, cada peça

ximo um cavalo, a ser alojado em baia específica. Todos os equinos receberam um chip de

Cadastro de animais na Vila do Dique

recebeu uma etiqueta, sinalizando o proprietário.

identificação, como forma de manter o controle sobre o animal e dar mais segurança para os

Galinhas: 2.448

donos, anteriormente habituados a mantê-los praticamente dentro das casas por medo de A transferência dos animais mereceu atenção especial. Embora o Plano Diretor de Canoas im-

os terem roubados. Cães e gatos também receberam microchips de identificação, além de

possibilite, em tese, a criação de animais de produção, a Vila do Dique é repleta deles. Ao

serem revisados, vacinados e receberem medicações antivermes e outras necessárias. Tudo

todo, na atualização cadastral, foram mapeados nada mais, nada menos do que 4.055 animais

isso foi feito pelo Setor de Zoonoses e Centro de Bem Estar Animal da Prefeitura de Canoas.

Cães: 781

Foto: Divulgação PMC

A mesma equipe comandou um processo de castração de animais.

Gatos: 328 Cavalos: 196

A logística do deslocamento

Patos: 90 Bovinos: 74 Caprinos: 41

A mudança para a Vila de Passagem envolveu uma logística complexa. Para cada família

Suínos: 40

deslocada, era necessário um caminhão de mudança, com motorista e quatro trabalhadores

Pássaros: 26

para carregar os móveis, equipe social, um automóvel ou van para transportar os moradores,

Coelhos: 13

uma equipe da Guarda Municipal para evitar quaisquer conflitos, que, na prática, nunca exis-

Ovinos: 13

tiram, técnico e fiscal da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação e uma equipe

Gansos: 5

do Centro de Bem-Estar Animal da prefeitura de Canoas, para levar os bichos de estimação.

Abelhas: 12 caixas

Cada família transferida tinha um caminhão exclusivo – um cuidado a mais para evitar que móveis de duas famílias se misturassem e se extraviassem. A equipe social era dividida em duas, com uma parte apoiando a saída da Vila do Dique e outra realizando a recepção na Vila de Passagem. Quando havia crianças envolvidas, elas chegavam no local e eram imediatamente encaminhadas à brinquedoteca, onde eram entretidas com atividades lúdicas, enquanto os adultos se envolviam na preparação da nova morada e recebiam as orientações Mais de 4 mil animais foram cadastrados; cães, gatos e cavalos receberam chips de identificação

84 Um novo caminho Uma nova vida

necessárias.

A Vila de Passagem

85


Nos tempos de trabalho mais intenso, o contingente de trabalhadores envolvidos, que não

munidade. Mas a urgência da mudança dava-se mesmo pela proximidade do bate-estacas,

raro superava vinte pessoas divididas em duas equipes, realizou até 14 mudanças por dia. Nas

que chegava a derrubar copos das moradias próximas e ameaçava a estrutura das já frágeis

transferências, a equipe social acompanhava de perto cada família. O processo de mudança

casas às margens do Dique. Ederson já se prevenira escorando as paredes laterais da casa

costuma ocasionar diversas reações. Deixar um local no qual se habitou por anos, para ir para

com barras de madeira.

“A vida na Vila

outro, ainda que em melhores condições, não é simples. Em muitos casos, as famílias se emo-

de Passagem é

cionaram. Ampará-las e evitar quaisquer inseguranças, prestando todos os esclarecimentos

Ele e Lisiane eram colegas de colégio quando se apaixonaram. O rapaz tinha 17 anos, e ela, 16,

maravilhosa. Lembro

nesse momento, é fundamental. No entanto, é inevitável que os próprios integrantes da equi-

quando foram morar juntos, mudando-se para uma casa próxima à que ele sempre habitou com

pe também se sintam tocados emocionalmente, mesmo quando preparados para a situação.

a família, no bairro Rio Branco, contíguo à Vila do Dique. A residência do casal tinha cerca de 40

Pequenos gestos das famílias emocionaram a todos, como o de uma dona de casa que fez

metros quadrados e ficava bem em frente a uma engarrafadora

questão de encher um vaso com terra da Vila do Dique e nele cultivar uma planta e levá-la

de gás liquefeito de petróleo, responsável pelo cheiro caracte-

para a Vila de Passagem. Foi uma forma de ter na nova casa um pouco da história de anos e

rístico de gás de cozinha com o qual os vizinhos se habituaram

anos de vida na antiga.

a conviver. A instalação de luz e de água foi o dono mesmo que

daquele dique sem luz e sem água, das enchentes: as roupas boiando, e, quando a água baixava, ficavam as sanguessugas, os ratos, os sapos e as aranhas. Não tem preço chegar em casa e ter

providenciou. Como todos os outros vizinhos, usou um fio para Em todas as mudanças, o dono era convidado a acompanhar seus pertences. Só quem podia

puxar energia da rede pública, disponível a 80 metros de distân-

tocar nos objetos carregados eram os proprietários e os operários. Pequenas regras como essa

cia, do outro lado do valão que beira o dique e corre nos fundos

são importantes para que, se qualquer problema acontecer, as responsabilidades de cada par-

da sua casa. Nas primeiras instalações, ladrões de cobre rouba-

te estejam bem delimitadas. O papel da equipe social na mudança é registrar, com fotos ou

ram a fiação. Até que Ederson irritou-se. Escalou o mais alto que

vídeo, orientar e dar suporte à família. Como a mudança é um processo potencialmente tenso

pôde no coqueiro próximo ao poste de luz e ali prendeu o fio.

um chuveiro quente

e traumático, é normal que a emoção aflore. É indispensável, portanto, um acompanhamento

para tomar banho.

permanente das famílias realocadas nesse momento.

Não quero que meus filhos passem o que eu passei.” Fátima da Silva, ex-moradora da Vila do Dique

O problema com os larápios estava resolvido. Mas havia outros, como a ligação de água da casa. Naquele trecho da Vila

Quando o caminhão da mudança estacionou em frente à casa do gari Ederson Santos e da

do Dique, os moradores também abastecem suas torneiras

dona de casa Lisiane Rogoski, em um dia ensolarado do inverno gaúcho, era o fim de quase

ligando-as irregularmente na rede hidráulica pública. Antes de

uma década de muitos contratempos enfrentados na Vila do Dique. A transferência para a

chegar às casas, o encanamento ilegal cruza o valão. Quando chovia, o nível desse mesmo cór-

Vila de Passagem se deu com a chegada da obra da rodovia, que transformava a rotina da

rego que recebe o esgoto das casas costumava cobrir os canos e mangueiras responsáveis por

comunidade. No próprio dia da saída, o caminhão-baú que levava os móveis da família dis-

abastecer lares como o de Ederson. Como muitas dessas ligações eram furadas, a água que saía

putava espaço no dique com uma imensa carreta carregada de estacas de concreto destina-

das torneiras tornava-se um misto da que corre na rede pública e da que corre no valo.

Ederson Santos derrubou uma parede da antiga casa para fazer passar um armário na mudança: ela não deixaria saudades

das à construção da elevada da BR-448/RS, cada uma com 19,6 metros de comprimento e 12 toneladas. O transporte das barras gigantes, por um guindaste, até a área da obra, localizada

Ederson conta isso enquanto observa o córrego poluído pela janela dos fundos de casa. No

no outro lado da rua, era apenas uma das atividades que passavam a atrair a atenção da co-

meio dele, mostra o que outrora foram dois banheiros de sua casa. Restaram apenas as pala-

86 Um novo caminho Uma nova vida

A Vila de Passagem

87


fitas que os suportavam. Mal fixados na terra molhada, o resto desabou. Toda a casa, aliás,

A senhora reparou em alguma coisa no banheiro? Reparou nestas duas cordinhas?

vivia ameaçada pela irregularidade do terreno alagadiço. Certa vez, afundou quase um metro,

− Nunca vi descarga assim − respondeu a dona de casa.

aproximando-se do valão. Foi quando o dono recorreu a um macaco hidráulico para elevá-la.

− Isso é para economizar água. Lá no dique, a senhora não pagava água e luz. Aqui, também não

O esgoto a céu aberto aos fundos da residência também foi responsável por mais uma dor de

vai pagar. Mas, nas casas definitivas, sim. Então, a gente orienta para ir se acostumando. A cordinha

cabeça para a família: os ratos. Ederson e Lisiane até haviam comprado um berço para a filha,

da direita despeja três litros, a senhora usa para o xixi. A outra tem oito litros, usa para o cocô.

Ágata, de um ano e um mês na data da mudança, que, até o final do ano, ganharia um irmão.

− E se eu puxar errado?

Os dois preferiam, no entanto, que o bebê dormisse na cama do casal, junto deles, com medo

− Não vai estragar, mas a senhora não vai ter economizado. Outra coisa, a senhora tem uma fi-

dos roedores que invadiam a casa à noite.

lhinha. A gente orienta para que cuide as crianças, para que não atirem fralda e outros objetos no vaso. E cachorro, a senhora tem?

Para retirar todos os móveis do casal, os operários da mudança precisaram se esgueirar na

− Tenho, sim, o Mau-Mau.

estreita escadaria que ligava a residência ao topo do dique. Havia, no entanto, um roupeiro

− Então, vou dar um conselho, bota um portão para ele ficar preso.

que não passava no espaço da porta. O gari logo encontrou uma saída. Vestindo tênis, calça de abrigo e moletom, agarrou um pé de cabra e se pôs a golpear a parede frontal da casa, de

E, assim, as orientações para os recém-

madeira. Trinta minutos e algumas centenas de golpes depois, não sobrava uma tábua sequer.

-chegados se seguiam, até a entrega das

A casa não deixaria saudades.

regras de convivência da Vila de Passa-

Mudança para a Vila de Passagem incluiu a adoção de novas regras de convivência pelos moradores

gem, elaboradas pela STE S.A. e prefei-

Bem-vindos à Vila de Passagem

tura de Canoas com a participação da comunidade por meio da Comissão de Obras. Essa conversa inicial envolvia mui-

Lisiane, a filha Ágata e o bebê que ela carregava no ventre foram com o restante dos

tas vezes aspectos básicos, como a utili-

móveis para a Vila de Passagem. Lá, foram recepcionados por uma representante da pre-

zação correta do chuveiro ou a necessida-

feitura, que administra o local, e pela equipe da Gestão Ambiental. Quando uma família

de de instalar o botijão de gás na rua, por

chegava, todos os equipamentos eram testados na presença do novo morador: luzes,

segurança. Em se tratando de uma popu-

torneiras, descarga, chuveiro. Se algo estivesse estragado, já se comunicava aos adminis-

lação oriunda de local onde uma parte

tradores municipais para que providenciassem o reparo. Os detalhes sobre a construção,

das casas não possuía banheiro, não era

o local mais adequado para a colocação segura do fogão, assim como outras orientações

preciosismo. De fato, havia famílias que

úteis eram informados já nesse momento da chegada, quando também eram dadas as

precisaram aprender regras básicas de hi-

primeiras orientações sobre sustentabilidade. Como fez com cada um dos novos mora-

giene. Nesse sentido, a Vila de Passagem

dores, uma das integrantes da equipe de educação ambiental explicou o funcionamento

desempenhou um papel fundamental na

do vaso sanitário a Lisiane logo no primeiro contato:

transição para a nova realidade.

88 Um novo caminho Uma nova vida

Foto: Andrea Weschenfelder

A Vila de Passagem

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Regras de convivência Vila de Passagem • Conviver em harmonia com familiares e vizinhos, sendo sempre solidário e educado; • Não desperdiçar água e luz; • Não são permitidas extensões (“puxadinhos”) em casas, baias, garagens etc.; • As baias para cavalos deverão ser conservadas pelos donos, que devem mantê-las limpas, bem como as carroças; • As garagens são para carros e motos, sendo responsabilidade do dono cuidar do seu espaço, mantendo-o limpo e não ocupando vagas dos outros; • Preservar a área de lazer e mantê-la limpa: sujou, limpou; • Manter o portão de entrada fechado; • Ter cuidado com as instalações de gás, para evitar vazamentos e incêndios; • Os animais de estimação deverão ser presos com correntes, dentro dos pátios; • Não colocar lixo nas vias da Vila de Passagem, nem queimá-lo. Usar as lixeiras coletivas; • Não armazenar materiais para reciclagem fora do galpão de reciclagem; • Lembrar sempre que a educação gera educação, e bom senso gera harmonia; • O auditório será usado coletivamente para oficinas, reuniões e festas comemorativas, como Dia da Criança, Páscoa, Natal, Ano-Novo etc., sendo proibido o consumo de bebidas alcoólicas; • Não fazer barulho entre as 22h e 8h. Foto: Andrea Weschenfelder

90 Um novo caminho Uma nova vida

A Vila de Passagem

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Nadiles na Vila de Passagem

já foi um alívio. Aos poucos, Nadiles adaptava-se ao novo lar. Passou a frequentar os cultos evangé-

Em meados de 2011, a situação da casa de Nadiles na Vila do Dique ficou insustentável. Cada

licos celebrados segundas e quintas-feiras à noite

vez que caminhava, ela sentia como se estivesse pisando em ovos. Tinha de cuidar para não apoiar

no auditório comunitário da vila. Não gosta tanto

o pé nas tábuas soltas. Foi então que pediu ajuda à Defesa Civil e também manifestou à equipe do

quanto da igreja que frequentava anteriormente,

Programa de Reassentamento da BR-448/RS o desejo de se mudar para a Vila de Passagem.

onde era a segunda dirigente do coral e da qual

Devido à situação precária da moradia da família, o pedido foi aceito, e a mudança, mar-

se afastou devido à distância, mas a participação

cada para as 14h30min dia 18 de novembro de 2011. Naquele dia, às 7h30min já estava todo

ajuda a se manter em dia com a religião. Aos do-

mundo de pé na casa de Nadiles. O marido Arci saíra mais cedo para descarregar caminhões

mingos, pegou o hábito de ir à pracinha comuni-

em uma empresa próxima. É esse seu trabalho. Quando tem carga, ligam e chamam. Não há

tária com os filhos e tomar chimarrão acompa-

carteira assinada. O pagamento é por carregamento. Naquele período, o serviço estava parti-

nhada de outros pais e amigos.

cularmente escasso. Rendia cerca de R$ 300 por mês. Ainda tinha a pensão dos filhos, cerca de

Os filhos foram os que mais rápido se adap-

um salário mínimo, mas, no final do mês, nas palavras de Nadiles, “não sobrava dez centavos

taram. Em especial Kaynan. Dava para ver pela

para comprar um ovo sequer”.

alegria do menino ao pular corda com os ami-

A mãe e os quatro filhos ficaram em casa no dia da mudança – os três meninos ajudando a

gos em uma manhã de setembro de 2012. En-

embalar os pertences da família. As roupas foram ensacadas em lençóis e cobertores amarrados

quanto isso, ao som de música gospel, a mãe

na extremidade. Boa parte da louça foi acomodada dentro da banheira da filha Samyra, de quatro

cozinhava uma galinha no fogão de seis bocas. A cozinha fica no mesmo módulo em que ela

anos. Os alimentos foram colocados em sacarias de farinha. Naquele dia, Nadiles mal almoçou, de

dorme, separada da área de dormitório por um roupeiro. As paredes da casa são repletas de

tão nervosa. Quando o caminhão da mudança e os operários começaram a transportar a carga,

trabalhos feitos pelos filhos na escola, além de presentes dados por eles nos dias dos pais e das

a família pôs em curso a própria logística. Renan, o filho de 14 anos, iria de bicicleta, puxando a

mães, como o quadro que diz: “Mãe, existo porque sou fruto do teu amor. Obrigada por seu

coleira do cachorro da família, Preto. Marcos, de 19, e Nadiles acompanhariam a mudança e cui-

carinho. Eu te amo”.

dariam de Samyra. Kaynan, de nove anos, ficaria com o pai, que chegou às 15h e se encarregou da

Samyra dorme na cama com os pais. No módulo ao lado, sempre bagunçado, ficam os três

retirada dos fios da casa. O material, de cobre, foi vendido para recicladores e, segundo Nadiles,

meninos. Dormem em um beliche e uma cama, separados por um roupeiro da área de estar, onde

garantiu “a carne e o refrigerante para os churrascos no Natal e Ano-Novo”.

ficam o sofá e o televisor, conectado a uma antena que recebe a programação via satélite, median-

O clima era tórrido em Canoas naquele final de novembro. Ao chegar na Vila de Passagem

te uma mensalidade de R$ 49 por mês.

com a mudança, às 16h30min, Nadiles, suada, se deparou com a vizinha do módulo ao lado e

Mas a parte preferida de Nadiles é o pequeno pátio em frente à casa – uma área de menos de

pediu de cara um copo d’água. Começava ali, com Maria, uma de tantas novas amizades que

20 metros quadrados que ela usou para fazer uma horta. Ali, entre bicicletas, os tanques de lavar,

ela faria no local.

o cachorro Preto e as roupas no varal, plantou, em vasos e no chão, poejo, salsinha, erva-cidreira,

A família, por ter seis pessoas, foi instalada em dois módulos contíguos, de 18 metros quadrados cada. Ainda assim, é um espaço pequeno. Mas só o fato de pisar em um chão de cimento na casa

92 Um novo caminho Uma nova vida

Em vasos e no chão do pátio, Nadiles plantou temperos, chás, orquídeas e até um pé de algodão

chuchu, manjerona, onze-horas, cravinho, orquídeas e até um pé de algodão. Planeja transportar tudo para a casa nova, para onde se muda em 2013.

A Vila de Passagem

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Os desdobramentos na Vila de Passagem Locais O respeito às relações de vizinhança estabelecidas no Dique ao se acomodar uma família na Vila de Passagem não é garantia de satisfação para todos os transferidos. A nova forma de morar, com os módulos lado a lado, trouxe alguns problemas. Houve casos de famílias trocadas de módulo após solicitações, motivadas normalmente por desavenças com vizinhança. Uma das metas da equipe social é orientar os moradores para que consigam, sozinhos, resolver conflitos sem utilização da violência. Os atendimentos feitos no escritório de assistência social montado na Vila de Passagem demonstram que muitas rixas entre vizinhos eram questões administráveis com diálogo e negociação. Em muitos casos, a tentativa de resolver os problemas na base do grito e ameaças precedia qualquer tentativa de conversa e entendimento. Assim era a cultura local. Contribui para isso o fato de a maioria das famílias jamais ter vivido em condomínio ou sujeita a quaisquer regras formais de convivência. Embora houvesse regiões na Vila do Dique onde as casas eram bastante próximas, praticamente coladas, como regra geral, a proximidade na Vila de Passagem era muito maior.

Foto: Eduardo Rocha

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O importante nesta fase inicial, quando todos estão se adaptando a uma nova forma de viver, seja em local de passagem, seja em moradias definitivas, é estar aberto para escutar todas as demandas da população. Esse era o papel do escritório de atendimento social montado em um dos módulos da Vila de Passagem. A prefeitura de Canoas criou a coordenação da Vila de

“Antes, nós íamos

Passagem, um escritório para servir de interface entre moradores e prefeitura. No local, para conversas reservadas, um assistente social ficava à disposição para receber as demandas da

atrás da população

população. E elas eram diversas: problemas de agressão familiar, uso de drogas, doenças, de-

para ajudar. Depois,

savenças entre vizinhos originadas de brigas entre crianças, excesso de barulho, cachorro solto,

eles passaram a

entre tantas outras. O que não era alvo de atuação da equipe social terminava encaminhado para órgãos competentes, como Conselho Tutelar, Secretaria de Saúde, entre outros. Além

confiar no nosso

do encaminhamento, as situações continuavam sendo monitoradas pelos assistentes sociais.

trabalho e vir nos

O histórico dos atendimentos no escritório era rapidamente recuperável mediante consulta

procurar. A gente

à pasta pessoal de cada morador na Vila do Dique, mantida pela equipe social, onde ficam registrados os dados relativos ao indivíduo e os relatórios das interações.

percebe uma grande mudança positiva na vida

A mudança para a Vila de Passagem reforçou ainda mais os laços entre a equipe social e a comunidade. Diariamente, os assistentes sociais e educadores ambientais do Programa de Reassentamento Populacional realizavam rondas pelas ruas do local, visitando casas, ouvindo

das pessoas com a

demandas, incentivando práticas de higiene, disseminando conteúdos de educação ambien-

social relata que não há dificuldades em fazer o contato com os moradores. Abrir as portas

vinda para a Vila de

tal. Os atendimentos na Vila do Dique continuavam, mas, com a relação diária na Vila de Pas-

para transformação, sim, é difícil.

Passagem.” Letícia Coradini Frantz, engenheira civil, coordenadora setorial da Gestão Ambiental da BR-448/RS

Atuação da equipe social na Vila de Passagem: contato frequente foi fundamental para conquistar confiança dos moradores

sagem foi que a transformação na vida das pessoas e a inclusão social ficaram mais evidentes. A experiência demonstrou que, quanto mais sólidos e contínuos os laços da equipe social com

Um dos exemplos ocorreu quando do convite à população para assistir a uma peça de te-

a população, melhores os resultados do trabalho de ressocialização.

atro no centro da cidade, promovida pela distribuidora de energia elétrica AES Sul. Assistir a apresentações artísticas e às vezes até deslocar-se até a área central não faz parte do coti-

Contatos

diano da população. Seduzi-los, envolvê-los para que vivam novas experiências e deixem-se surpreender era o grande desafio. No caso do teatro, até mesmo aqueles adultos que muito resistiram mostraram-se absolutamente fascinados com a apresentação, entregaram-se ao

No entanto, não basta apenas manter contato com a população. O sucesso do trabalho pode

momento lúdico. Esse encantamento é importante na medida em que estimula a abertura

ser medido pela capacidade de abrir horizontes para a comunidade, fazê-la aceitar mudanças

ao novo. E o novo pode ser uma vida com maiores possibilidades e oportunidades para

que proporcionem melhor qualidade de vida, maior autonomia, novas experiências. A equipe

cada um dos beneficiários do Programa de Reassentamento Populacional.

96 Um novo caminho Uma nova vida

Os desdobramentos na Vila de Passagem

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Comissão da Vila de Passagem Foi necessária a criação de uma comissão específica da Vila de Passagem, uma equipe de moradores que, em conjunto com a prefeitura de Canoas e a equipe da STE S.A., estabelecesse uma rotina de diálogo e resolução de conflitos. Muitas foram as vezes em que essa comissão organizou mutirões de limpeza, reuniões específicas e assumiu tarefas de coordenação de atividades. Eram 18h30min de um dia de semana. Um grupo forma uma roda no salão do centro comunitário da Vila de Passagem, e uma integrante da equipe do Programa de Reassentamento da BR-448/RS lembra a pauta do dia: quem vai fazer os bolos? De que ingredientes precisam? Vai ter pipoca? Como alguns ainda esperavam que ela mesma desse as respostas, referentes à festa junina da comunidade, a representante da Gestão Ambiental apressou-se em deixar claro: − Eu não estou aqui para organizar. Vou no máximo orientar para que vocês organizem a festa! O grupo logo entendeu o recado. Uma líder comunitária assumiu o comando da reunião e, em meia hora, as tarefas estavam divididas. As primeiras festas da comunidade da Vila de Passagem, no Natal de 2011, Carnaval e Páscoa de 2012, tiveram grande participação da equipe social na organização. A partir daquela festa junina, o foco era estimular a própria comunidade a tomar as rédeas de seus eventos. Deu certo, e a festa de Dia das Crianças foi totalmente organizada pela Comissão da Vila de Passagem. Valorizar o poder das lideranças e organizações comunitárias locais é promover a cidadania e a inclusão social das famílias. Por isso, a formação da Comissão, com seis mulheres e quatro

Momento de mudança e de solidariedade As condições precárias de vida de famílias transferidas da Vila do Dique para a Vila de Passagem mobilizaram os profissionais encarregados de fazer as mudanças. Ao transportar os pertences das famílias, eles notaram que sobravam bens para algumas famílias, que aproveitavam a mudança para se desfazer de móveis e objetos, enquanto faltavam para outros. Foi assim que passaram a ficar atentos às sobras e necessidades, de forma a repassar itens deixados para trás para famílias necessitadas. Um morador transferido que não possuía cama ganhou a sua − sobra de uma família que abandonara o móvel − devido a essa mobilização da equipe. Desacostumados a lidar com situações de vulnerabilidade social, esses encarregados da mudança chocaram-se com realidades que presenciaram. Uma geladeira repleta

de carne apodrecida e um casal de bebês gêmeos dormindo perto do lixo, tapado de insetos, são cenas que ainda estão na memória dos trabalhadores. Assim como os momentos de brincadeiras com a criançada transferida para a Vila de Passagem, com quem jogavam bola no campo de futebol improvisado no local. Lidando diariamente com a transferência de famílias, os carregadores de mudanças também se mostraram gratificados ao ver a transformação na vida de algumas famílias levadas para as casas provisórias. Muitos passaram a adotar hábitos de higiene - como banhos diários, lavagem de roupas - que não mantinham na Vila do Dique por falta de infraestrutura adequada. No relato de um dos operários, após a mudança para a Vila de Passagem, muitos moradores pareciam nem ser os mesmos dos tempos de Vila do Dique.

Saúde

homens, foi incentivada pela equipe social. O grupo participou ativamente da organização de eventos, das discussões relativas à estrutura local e do gerenciamento de atividades, como

A prefeitura de Canoas desenvolveu um planejamento especial na área da saúde, voltado aos

distribuição de peças de roupa doadas para as famílias carentes. Em reuniões lideradas pela

moradores do novo local. As ações focaram tanto a população quanto os animais domésti-

prefeitura de Canoas, os problemas decorrentes do novo formato de moradia eram expostos

cos. Pofissionais da área mantinham moradores informados acerca de hábitos de higiene pes-

e debatidos, para, de forma conjunta, encontrar soluções junto ao poder público ou pela

soal e do meio em que vivem. A Unidade Móvel de Saúde da Prefeitura de Canoas prestava

própria comunidade.

atendimentos na Vila de Passagem a cada 15 dias, nas áreas de odontologia, clínica médica

98 Um novo caminho Uma nova vida

Os desdobramentos na Vila de Passagem

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Foto: Andrea Weschenfelder

Segurança e orientações de higiene. Além

A segurança no local provisório também era uma preocupação. Uma série de ações foram exe-

disso, a Secretaria Municipal

cutadas para a manutenção da ordem no interior da Vila de Passagem. Para tanto, a prefeitura

de Saúde também promovia

de Canoas disponibilizou dois vigias patrimoniais no local – eles controlavam o fluxo de entra-

atividades voltadas para o pú-

da e saída de pessoas, além de realizar rondas de moto dentro do loteamento provisório. Para

blico infantil sobre cuidados

dar apoio a esse trabalho, a Guarda Municipal realizava rondas periódicas na Vila de Passagem,

com a saúde.

além de participar de reuniões e eventos comunitários. Desta forma, tanto as equipes quanto as famílias se sentiamm mais seguras para realizar as ações necessárias.

As

ações

bem-estar

direcionadas animal

ao

tinham

A Secretaria de Segurança também procurou se fazer presente no cotidiano das famílias, tra-

como propósito o controle da

zendo às crianças da Vila de Passagem atividades lúdicas como o Teatro de Fantoches da Guar-

população canina dentro da

da Municipal, um projeto existente no município que tem por propósito tratar temáticas tais

Vila de Passagem com vistas

como consumo de drogas e violência escolar.

a garantir melhores condições

Crianças aprendem como cuidar da higiene para manter uma boa saúde

de higiene a toda a comuni-

Além disso, as questões ligadas à segurança na Vila de

dade. Quando da entrada das

Passagem são tratadas dentro do Grupo de Gestão In-

famílias no local, todos os ca-

tegrada, criado pela prefeitura de Canoas, com o pro-

chorros foram chipados para

pósito de discutir questões ligadas à segurança pública

que assim se pudesse ter al-

entre diversos agentes de segurança, tais como Brigada

gum controle de identificação

Militar, Polícia Civil, Bombeiros, Defesa Civil, subpre-

do animal, evitando com isso

feituras, PGM e outros.

Prefeitura de Canoas criou grupo de gestão para discutir a segurança; Guarda Municipal participou do cotidiano das famílias realocadas

as situações de abandono recorrentes dentro dessa pauta. Desde meados de 2012, a Vila de Passagem passou a

100 Um novo caminho Uma nova vida

Além disso, todos os moradores da Vila de Passagem que tinham interesse em

contar também com nove câmeras de monitoramento.

castrar seus animais receberam esse serviço gratuitamente. Os animais eram co-

Atendendo a uma demanda da população da Vila de

letados pela equipe de Bem-Estar Animal da Secretaria Municipal de Saúde, le-

Passagem, estas câmeras eram interligadas ao sistema

vados para o procedimento de castração e, na sequência, entregues novamente

de videomonitoramento da Secretaria de Segurança

às famílias, que recebiam orientações dos técnicos para os cuidados dos animais.

Pública e Cidadania, permitindo aos agentes de segu-

Foram castrados 70 bichos.

rança intervir com maior agilidade se necessário.

Os desdobramentos na Vila de Passagem

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Foto: Andrea Weschenfelder

A mudança nas escolas A transferência das famílias para a Vila de Passagem teve reflexos no comportamento da população em outros palcos da vida social. Nos colégios da região, os professores sentiram a transformação. A professora Gislaine de Souza, da Escola Municipal Rui Cirne Lima, de Canoas, leciona para dezenas de alunos envolvidos no Programa de Reassentamento Populacional. Quando houve a mudança da Vila do Dique para a Vila de Passagem, a primeira alteração de

“As crianças

comportamento percebida foi nos hábitos de higiene. Com chuveiro e banheiro em casa, vi-

andavam curvadas,

vendo longe do lixo e recebendo orientações permanentes da equipe de educação ambiental,

desanimadas. Hoje,

a meninada passou a se apresentar de banho tomado e com as roupas limpas. Isso também contribuiu para outro ganho observado pelos educadores: a elevação da autoestima desses

estão de peito

alunos. Vivendo em moradias mais dignas e ainda sendo transportadas ao colégio por ônibus

estufado. Elas se

escolar, disponibilizado pela prefeitura de Canoas para os estudantes moradores da Vila de

renovaram. Estão se

Passagem, as crianças passaram a exibir orgulho no lugar de vergonha. A professora Gislaine cita o caso de uma aluna da segunda série do ensino fundamental, a Geisi, de oito anos. Quan-

sentindo valorizadas.

do morava na Vila do Dique, era uma menina quieta, tímida. Ao se mudar para a casa provisó-

São parte desta

ria, ficou falante. O orgulho se manifestava a cada diálogo com a educadora.

conquista na vida

– Professora, a senhora é rica? – perguntou um dia Geisi.

dos pais.”

– Não.

Gislaine de Souza, professora da Escola Municipal Rui Cirne Lima, de Canoas

– A senhora mora em casa de rica? – Eu não – repetiu Gislaine. – Eu moro em casa de rica – contou a menina, referindo-se ao módulo da Vila de Passagem e emocionando a professora.

tal – foram realizadas em mais de 30 escolas na região de abrangência da Rodovia do Parque. Entre junho de 2010 e junho de 2012, foram 770 encontros com 9,5 mil estudantes. Por meio

Os detalhes sobre a nova vida passaram a ser assunto em sala de aula. Principalmente as

da arte-educação, que utiliza o jogo e a brincadeira como formas de educar, a equipe da Ges-

atividades na brinquedoteca da Vila de Passagem. No espaço, além de brincar, os pequenos

tão Ambiental desenvolveu oficinas, palestras, hora do conto e plantios, alcançando de forma

tinham lições ambientais, que depois iam para debate em sala de aula. No ambiente escolar,

interativa as mais diversas idades, em um esforço contínuo para a criação de multiplicadores

esse tema também foi estimulado pela própria ação da equipe de educação ambiental. As

dessa consciência. Para o trabalho, foram desenvolvidos materiais didáticos especiais, como

ações de sensibilização junto a professores e alunos – parte do Programa de Educação Ambien-

um gibi com o João-de-Barro, mascote da Gestão Ambiental, como personagem principal.

102 Um novo caminho Uma nova vida

Morar em casas novas, tomar banho todos os dias e usar roupas limpas elevaram a autoestima das crianças

Os desdobramentos na Vila de Passagem

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Não são poucos os casos em que os diferentes Programas Ambientais se inter-relacionam, como

para o local coletivo o que tinham de melhor. Era uma forma de fazer com que se sentissem par-

esse, relativo à atuação nas escolas. A educação ambiental tem lugar na Vila do Dique e na Vila

te da construção da brinquedoteca, onde tinham acesso às atividades recreativas e educativas.

de Passagem, permeando o Programa de Reassentamento Populacional. Ao mesmo tempo, as

Pintar, recortar, colar, desenhar, cantar, dançar eram apenas algumas das atividades oferecidas.

atividades educativas voltadas à sustentabilidade desenvolvidas com as crianças são levadas

Ao terem a possibilidade de se entregar a uma atividade lúdica, as crianças abriam-se a novos

à escola pelos alunos ou pelo Programa de Educação Ambiental, gerando debate sobre meio

horizontes, nem sempre possíveis no cotidiano de “vida real” da Vila do Dique. Colorir, em espe-

ambiente, mas também reflexões sobre o próprio processo de reassentamento das famílias.

cial, mostrou-se uma das paixões dos jovens que passaram a frequentar o espaço. O mundo das cores, o mundo do imaginário, é liberto nesse momento de pausa cotidiana da brinquedoteca.

Para que a mudança para a Vila de Passagem não interferisse nos estudos das crianças, a prefei-

Uma experiência comumente reprimida no dia a dia de famílias nas quais crianças muitas vezes

tura de Canoas manteve-se mobilizada desde o início do trabalho com a comunidade. As pri-

têm responsabilidades de adultos, devendo tomar conta das crianças ainda menores para que os

meiras ações consistiram em mapear as crianças e suas respectivas escolas com o propósito de

pais possam trabalhar e sustentar a casa.

viabilizar o acesso a estas, com o remanejo para escolas mais próximas do local de moradia ou disponibilização do meio de locomoção quando dentro da Vila de Passagem. Ao mesmo tem-

Um dos momentos mais esperados na briquedoteca era a Hora do Conto, com estórias

po, as ações na área de educação também visam ampliar o número de adultos em programas

clássicas adaptadas para transmitir mensagens educativas. O dia de vestir fantasias, incor-

de educação tais como o Educação de Jovens e Adultos, principalmente entre os recicladores.

porar personagens, também era aguardado

Equipe de educação ambiental promove atividades com as crianças na Vila de Passagem

com ansiedade, trazendo novas experiênOutras ações do eixo educação foram desenvolvidas com eventos culturais, como o Encontro

cias para a meninada. Em todos os casos,

com o Escritor, atividade promovida pela Secretaria Municipal de Cultura na qual um escritor

enquanto brincavam, as crianças eram con-

era convidado a ler uma obra sua às crianças e brincar com elas. As crianças receberam a visita

vidadas a ser corresponsáveis pelo espaço.

do escritor Celso Gutfrend durante as atividades da Colônia de Férias 2013.

Diariamente, eram escolhidos, entre os frequentadores do espaço, os ajudantes do

Brinquedoteca

dia. A atividade visava a estimular o senso de responsabilidade de cada um sobre o espaço, preparando desde cedo os indivíduos

No turno em que não estavam na escola, as crianças transferidas para a Vila de Passagem tinham

para exercerem a cidadania.

a opção de realizar atividades na brinquedoteca. Inicialmente prevista para ocupar apenas um módulo da Vila de Passagem, a brinquedoteca foi ampliada para dois módulos. Quando foi

A musicalidade também foi bastante explo-

instalada, a estrutura recebeu brinquedos da prefeitura de Canoas, além de alguns doados vo-

rada. No Carnaval de 2011, uma educado-

luntariamente por funcionários da STE S.A., que se solidarizaram com o trabalho da equipe am-

ra ambiental da equipe social formou uma

biental, e muitos outros levados pela comunidade, pelos recicladores e pelas próprias crianças

banda com instrumentos de brinquedo ou

moradoras da vila. A regra era, em vez de escolher os brinquedos que não usavam em casa, levar

improvisados: tambores de lata, chocalhos,

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Os desdobramentos na Vila de Passagem

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pandeiros. A iniciativa fez tanto sucesso que a educadora passou a utilizá-los ao chamar a criançada para a brinquedoteca. Enchia um saco com os instrumentos e percorria as ruas da Vila de Passagem. Cada criança que se juntava a ela começava a chacoalhar ou batucar. O barulho alertava os demais, que prontamente também corriam para fora de casa. Antes das brincadeiras se iniciarem, os pequenos formavam uma verdadeira banda puxada pela equipe de educação ambiental. O bloco tinha seu ponto de chegada no pátio da sala de brincadeiras. Era hora de lavar as mãos, sempre sob a orientação atenta de uma educadora ambiental. E não bastava passar sabonete e colocá-las debaixo da pia. Era preciso esfregar a palma, o entrededos, as unhas, seguindo as orientações da educadora. A atividade ensinava à criançada hábitos de higiene, ajudando também na prevenção de doenças, como a gripe A. O envolvimento das Brinquedoteca na Vila de Passagem: além da brincadeiras, lições de higiene para as crianças

crianças com a equipe fez com que cerca de 40 crianças, de seis a 12 anos, utilizassem o espaço

Cineminha Ambiental A existência de um centro comunitário na Vila de Passagem permitiu a exibição de filmes para as crianças locais, na atividade batizada de Cineminha Ambiental. Em média, 50 crianças participavam de cada sessão. Na projeção, vídeos divertidos e educativos, tratando de assuntos como preservação da fauna, higiene pessoal ou saúde bucal. Quando

foi abordado esse último tema, após a exibição, as crianças foram reunidas para ter lições práticas de escovação dos dentes, orientadas por técnicos da Secretaria Municipal de Saúde de Canoas. Além disso, terminados os filmes, as pautas foram discutidas com o público presente, a fim de permitir troca de impressões e melhor compreensão das mensagens.

Foto: Andrea Weschenfelder

diariamente.

Capacitação A mudança para a Vila de Passagem também aproximou a população dos serviços públicos. Presente não apenas na administração do local, a prefeitura de Canoas intensificou as ações junto à comunidade no local. Um dos eixos de atuação foi no sentido de facilitar o acesso a programas sociais e dar novas oportunidades de capacitação para o mercado de trabalho. As ações visavam proporcionar ao público-alvo meios de se atingir melhor qualidade de vida e independência, quer seja por meio de oficinas de capacitação profissionalizantes, quer seja pelo acesso a políticas sociais tais como o Bolsa Família. Desde o início do trabalho, o município ofereceu oportunidades de formação com as Frentes Emergenciais de Trabalho, do Pronatec, do Projeto Cidade da Solda, ou do Território Digital. As Frentes Emergenciais de Trabalho são cursos profissionalizantes com seis meses de duração voltados para a capacitação profissional na área de serviços gerais, zeladoria condominial, jardinagem e azulejista. Já o Pronatec – Senai/Senac faz parte da política pública Foto: Eduardo Rocha

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Os desdobramentos na Vila de Passagem

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federal na área, consistindo em cursos técnicos em diversas especialidades com inscrições abertas o ano todo. Os cursos têm duração de até dois meses e capacitam seus participantes para os seguintes ofícios: ajustador mecânico, auxiliar administrativo, recepcionista, vendedor, cabelereiro, cuidador de idoso, manicure e pedicure, costureiro, modelista, desenhista, montagem e manutenção de computadores e operador de computadores. O Projeto Cidade da Solda visava a propiciar o desenvolvimento regional e a qualificação dos moradores da cidade. A partir de uma seleção baseada em critérios sócio-econômicos, essa iniciativa capacitou 540 cidadãos canoenses como Soldador em Eletrodo Revestido. A assinatura do convênio entre Petrobras e o Instituto Integrar, bem como do termo de cooperação entre prefeitura de Canoas, Senai e demais parceiros ocorreu em junho de 2012. O curso tem carga horária de 240 horas e foi oferecido para turmas nos três turnos, com duração de três meses cada ciclo. A capacitação técnica, bem como a certificação, é realizada pelo Senai. Moradores da Vila do Dique e da Vila de Passagem entre 18 e 59 anos puderam participar. Na própria Vila de Passagem, foi inaugurado, em junho de 2012, um espaço com 11 computadores. O local faz parte do projeto Território Digital, da prefeitura de Canoas, que tem por objetivo oferecer cursos gratuitos de informática para jovens, principalmente, em situação de vulnerabilidade social e com falta de oportunidades de acesso à informática e ao mercado de trabalho. Além disso, o espaço ofereceu aos moradores da Vila de Passagem a oportunidade de realizar pesquisas e entretenimento na internet.

A sucata vira arte Um dos símbolos do trabalho realizado pela Gestão Ambiental da BR-448/RS foi a exposição “Que Árvore Você Quer para o Futuro? Não Faça do Lixo a Semente”. Ela foi composta de quatro obras, denominadas Mundo Eletrônico, Mutação da Infância, Carona Perigosa e Nossa Moradores da Vila do Dique e da Vila de Passagem participaram de curso para soldador promovido pela prefeitura de Canoas, Petrobras e Senai

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Pegada. Cada uma era formada por base de metal, fazendo as vezes de tronco e galhos, onde foram pendurados objetos descartados ou achados no lixo.

Os desdobramentos na Vila de Passagem

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As estruturas foram montadas pelo artista plástico e educador ambiental da BR-448/RS Eduardo Nunes, com a participação de outros artistas plásticos e dos próprios recicladores do Dique. Torradeiras estragadas, chuveiros elétricos queimados, teclados de computador, bonecas velhas, latinhas de cerveja, sapatos furados e centenas de itens que haviam virado lixo – muitos encontrados na faixa de domínio da rodovia – ganharam outro significado. E ajudaram a sensibilizar sobre problemas como violência no trânsito, violência infantil, destinação inadequada de resíduos sólidos e de lixo eletrônico. A instalação das árvores era acompanhada por uma exposição de fotos captadas pela jornalista Andrea Weschenfelder durante os trabalhos da Gestão Ambiental. Entre os diversos locais onde as obras foram apresentadas, está a Rio+20, conferência da Organização das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada no Rio de Janeiro, em junho de 2012. Artistas plásticos e recicladores, juntos, fizeram arte a partir de lixo

Foto: Caco Argemi

Foto: Carlos Türck

110 Um novo caminho Uma nova vida

Foto: Andrea Weschenfelder

Governador do RS, Tarso Genro, confere a exposição das criações originadas no lixo reciclável

Instrumentos musicais também foram produzidos a partir de resíduos sólidos

Os desdobramentos na Vila de Passagem

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Locais de exposição As fotos nesta e na página ao lado fizeram parte da exposição “Que árvore você quer para o futuro? Não faça do lixo a semente”, que passou por Shopping Total (Porto Alegre), Shopping Canoas, Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio Grande do Sul, Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Prefeitura de Sapucaia do Sul, Prefeitura de Esteio, Trensurb, Feira Internacional de Tecnologia para o Meio Ambiente de Bento Gonçalves, Centro de Convenções Ulysses Guimarães, DNIT (Brasília e Porto Alegre) e Rio+20, entre outros.

Fotos: Andrea Weschenfelder

112 Um novo caminho Uma nova vida

Fotos: Andrea Weschenfelder

Os desdobramentos na Vila de Passagem

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Oficinas

Embora o empoderamento das moradoras assistidas pela equipe social fosse uma das prioridades, também se buscou

Depois de um levantamento realizado na Vila do Dique sobre quais oficinas de capacitação os

oferecer atividades que atraíssem mais os homens, pouco

moradores estariam interessados em fazer, a equipe social passou a buscar parceiros para mi-

interessados nas oficinas de artesanato. A opção foi o pro-

nistrá-las. A primeira, oferecida pela própria STE S.A., responsável pela Gestão Ambiental, foi a

jeto Horta Solidária, uma parceria com a ONG Cooplantio

oficina de fuxico para mulheres.

Solidária, responsável por capacitar os interessados e doar as sementes e todo o material necessário para o cultivo de

O artesanato com fuxico aproveita restos de tecido para criar ou customizar acessórios como

hortigranjeiros.

niqueleiras, bijuterias, bolsas, broches, entre outros. Além da mensagem ambiental de reaproveitamento do tecido, a capacitação buscou sensibilizar as alunas para a oportunidade de renda gerada pela atividade. Outra oficina que atraiu o público feminino foi a de artesanato,

Galpão de reciclagem

Foto: Andrea Weschenfelder

Oficina de fuxico ensinou mulheres a aproveitar restos de tecido

oferecida pela empresa Acrilex – Regional Sul, com mais de 35 inscritos. Na atividade, os alunos receberam noções básicas de pintura em tecido e vidro reciclado, utilizando as técnicas

Junto à divisa da Vila de Passagem com o terreno que recebeu um dos condomínios de moradias

de decupagem e craquelê. A tinta que sobrou foi doada para a brinquedoteca. Também na

definitivas, foi erguido um galpão de reciclagem. A estrutura começou a funcionar em dezembro

linha do artesanato, foram oferecidas atividades de transformação do lixo em embalagens de

de 2011 e permaneceu ativa após a desativação da área provisória. Fez parte de um dos objetivos

presente, cata-ventos, arranjos de natal e porta-retratos.

da gestão ambiental, que era proporcionar condições de vida e de trabalho mais salubres à população de recicladores da região.

O resultado dessas oficinas veio ao encontro de um dos princípios que nortearam os trabalhos do Programa de Reassentamento: a valorização das mulheres, na trilha do Plano Nacional de Políti-

Na Vila do Dique, existiam os recicladores autônomos e aqueles que, de alguma forma, atu-

cas para as Mulheres. O documento aponta que atualmente as mulheres têm papel fundamen-

avam em conjunto. Os independentes, na maioria dos casos, trabalhavam com carrinhos de

tal na manutenção dos laços, na diminuição da violência e no aumento da escolaridade infantil

tração humana. Saíam pelas ruas de Canoas coletando na via pública, abrindo os sacos de lixo

nas classes populares. Com a disponibilização de atendimento social no escritório comunitário,

deixados nas calçadas para pegar o material reciclável ou recolhendo os resíduos de empresas,

onde os moradores da Vila do Dique e Vila de Passagem podem realizar atendimentos privativos,

condomínios, residências familiares – que são como clientes. Nesse caso, é comum que deem

e o estímulo a que a população exerça a cidadania, o Programa de Reassentamento Populacional

aos catadores o lixo misturado, seco e orgânico. A separação era feita depois, na própria Vila

registrou ocorrências que indicam o fortalecimento da figura feminina. Foram relatados casos de

do Dique, normalmente em local junto à residência, para evitar roubo de material. Os resíduos

mulheres que conseguiram denunciar o abuso que sofriam dos parceiros a ponto de romper com

sólidos têm valor, pois são vendidos pelos autônomos para atravessadores ou empresas de reci-

esse laço sem prejuízo na subsistência de sua família, conforme as garantias da Lei Maria da Pe-

clagem da região. O lixo orgânico vai para alimentação animal (galinhas, cavalos, porcos etc.) e

nha, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Há mais

humana (quando se trata de sobras de mercado que perderam valor comercial, mas ainda não

de um relato de mulheres que voltaram a estudar. Além disso, mais da metade dos integrantes

apodreceram) ou é queimado, jogado fora ao fundo das casas, no mato, em arroios que com-

das comissões de Obras e da Vila de Passagem são mulheres.

põem o Delta do Jacuí. Os restos de comida atirados nos terrenos eram alimento farto para ratos,

114 Um novo caminho Uma nova vida

Os desdobramentos na Vila de Passagem

115


Esse processo de separação e descarte de materiais, orgânicos ou não, no ambiente era semelhante para os autônomos ou para aqueles que trabalhavam em conjunto. A diferença é que esse segundo grupo trabalhava mais à semelhança de empresas, com divisão de tarefas. Normalmente era formado por famílias com um poder econômico um pouco maior, dentro dos padrões da Vila do Dique. Esse tipo de organização pressupõe hierarquia e algumas regras. Havia famílias que atuavam com três carroças operando na rua, coletando o lixo de “clientes”, e tinham até cavalo reserva, caso um se lesionasse. Quem estava numa posição superior no negócio normalmente trabalhava na linha de frente, sobre as carroças, recolhendo o lixo nas empresas e condomínios. Já a separação era tarefa para outros integrantes da família e vizinhos desempregados ou aposentados, que a realizavam por valores muito baixos ou até mesmo em troca de favores ou de restos de alimentos em bom estado encontrados entre os descartes dos clientes. Esse tipo de relação de trabalho era semelhante no caso do único galpão informal de reciclagem da Vila do Dique.

Alguns catadores do lixo do Dique formavam organizações, com hierarquia, várias carroças e até cavalo reserva

FOTO DIQUECARROCA.JPG Foto: Andrea Weschenfelder

Na Vila do Dique, restos de alimento se misturavam a material rejeitado pelas recicladoras junto às casas

moscas, outros animais e bactérias responsáveis por uma série de doenças que terminavam se tornando problema de saúde pública na região. Mas não eram a causa do principal dano ambiental, até por serem materiais de rápida decomposição. O maior problema eram pedaços de isopor, plásticos sujos e rotos e outros materiais inorgânicos que, devido ao mau estado, eram rejeitados pelas empresas recicladoras ou tinham valor comercial tão pequeno que valia mais a pena economicamente para os catadores largá-los no mato ou no arroio, independente da lenta decomposição e impacto ambiental. Foto: Andrea Weschenfelder

116 Um novo caminho Uma nova vida

Os desdobramentos na Vila de Passagem

117


Nadiles no galpão de reciclagem

Quando começou a trabalhar na cooperativa, o combinado era que cada um apresentaria ao fim do dia tudo o que levaria por sua casa, e o grupo fixaria um valor simbólico. Depois, permaneceu

Uma imensa bolsa − mais alta dos que os 1,60 metro de Nadiles − repleta de sacolas de lixo seco

a formalidade de mostrar os pertences retidos, mas o preço foi cortado.

é colocada sobre a mesa. A recicladora a esvazia pouco a pouco, trazendo para diante de si, como

Logo que chegou à Vila de Passagem, em 2011, houve um dia em que Nadiles flagrou o mari-

um caixa de supermercado na esteira, os resíduos atirados sobre a mesa. É preciso atenção para

do sozinho, em momento de reflexão, com os olhos cheios de lágrimas por falta de dinheiro. Foi

não errar. São mais de 30 categorias de plástico, metais, papéis, vidro − cada uma tem um saco ou

com alegria que no primeiro aniversário dele na casa provisória, dia 18 de julho de 2012, ela o

bombona específicos para ser depositada. Somente de plástico, são 14 tipos.

levou a um grande magazine e o presenteou com uma bicicleta nova, paga no crediário. À noite,

Ao longo de sua trajetória, Nadiles já havia trabalhado como faxineira, em casas de família ou empresas, sempre que o cuidado com os filhos não lhe exigia ficar em casa. Até março de 2012,

comemorou com uma carne assada na carcaça de uma geladeira, que faz as vezes de churrasqueira na casa da família.

quando sua inscrição no galpão de reciclagem da Vila de Passagem foi aceita, nunca havia lidado com isso. Logo que começou, as colegas de trabalho pensaram: “Esta aí nunca vai aprender”. Quatro meses depois, ela já se mostrava atenta para selecionar até mesmo aquilo que parece, mas não

Renda do trabalho no Galpão de Reciclagem permitiu a Nadiles presentear o marido com uma bicicleta nova no aniversário

é. Como uma embalagem plástica de adoçante líquido que pega na mão e demonstra. − Sabe o que é isso? Ninguém imagina, mas vai junto com a garrafa PET. Olha só, está escrito na parte de baixo: PET. São muitos os materiais que enganam. Os potinhos de leite fermentado, por exemplo, vão na pilha dos plásticos de “balde e bacia”. As bombonas de água mineral, de cinco litros, são azuis, mas classificadas como plástico transparente, explica Nadiles. Saber discernir os detalhes exige ainda mais atenção na esteira. Momentos de seriedade que ela quebra a cada objeto curioso encontrado no lixo. Ao vestir uns óculos de cor laranja do tipo usado para animar festa, ela faz as colegas de trabalho caírem na risada. Tem cada curiosidade no lixo, que assunto não falta para os recicladores. Cada um pode pegar para si os objetos que lhe interessem, desde que tenham aparecido em sua esteira de seleção. Nadiles já pegou telefone, alpargatas, aparelho de barbear elétrico, controle de videogame, dezenas de peças de roupas. Mas seu ponto fraco são mesmo os esmaltes e produtos de beleza. Sob as luvas de proteção, Nadiles esconde unhas multicoloridas, pintadas mergulhando-as em uma bacia com água e esmaltes de diferentes tonalidades. No trabalho − cabelos amarrados por um nó, botina, calça de abrigo e blusão de lã sujo pelo contato com o lixo − nem parece, mas ela é vaidosa. Em casa, tem uma coleção de mais de 100 vidros de esmaltes − poucos comprados, quase todos pegos na reciclagem. Cada semana, aparece com uma novidade nas unhas. Foto: Eduardo Rocha

118 Um novo caminho Uma nova vida

Os desdobramentos na Vila de Passagem

119


Parte do grupo também visitou uma cooperativa de recicladores formada em torno de um galpão vinculado à prefeitura de Canoas. O município tinha quatro galpões oficiais, geridos em sistema de cooperativismo, envolvendo cerca de 160 associados. Cada grupo recebia, além da carga dos caminhões de coleta de lixo municipal, um subsídio mensal de R$ 25 mil. O novo galpão da Vila de Passagem foi inaugurado como uma espécie de filial dos oficiais − sem subsídio mensal, mas recebendo o excedente de cargas de lixo seco não processado nos demais. Com 260 metros quadrados, ele suporta o trabalho de até 15 pessoas ao mesmo tempo. Se operasse em três turnos, poderia ser alternativa de renda para até 45 pessoas. Mas, em seu primeiro ano, o pessoal variou entre sete e 18. Um dos problemas, além da dificuldade de uma estrutura do tipo ser autossustentável sem subsídio, foi a inconstância da quantidade de cargas recebidas. Por outro lado, também houve forte resistência da comunidade em migrar do modelo de produção baseado na coleta e separação para o do galpão, em que o foco é apenas na separação. O maior entrave diagnosticado foi cultural. Acostumada com uma vida com características nômades, de andanças livres diárias pelas ruas da cidade, a maioria dos recicladores não se sentiu à vontade atuando em local fixo. Era difícil trocar sensação de liberdade da rua pela rotina repetitiva e a disciplina exigidas nas mesas de seleção do galpão. Mesmo que para os autônomos houvesse a perspectiva real de manter ou até ampliar os rendimentos, caso houvesse dedicação em um turno de oito horas no galpão, o gosto pelo serviço autônomo falava mais alto. Para as famílias que lideravam grupos de recicladores, a superação do rendimento Galpão de reciclagem: recicladores trocaram andança nas ruas pela rotina e disciplina da mesa de seleção

Foto: Andrea Weschenfelder

Obstáculo cultural

médio obtido no dique era mais difícil, já que ganhavam também com a exploração de mão de obra. Embora os cálculos da equipe do Programa de Reassentamento demonstrassem que era possível ter uma renda semelhante com o trabalho no galpão, a percepção dessa realidade pelas famílias mostrou-se de difícil compreensão, uma vez que o faturamento do trabalho

Para sensibilizar os recicladores da Vila do Dique sobre os benefícios do galpão de reciclagem

independente era maior. No entanto, uma contabilidade mais precisa, incluindo as despesas

que seria implantado, foram feitas 22 reuniões com o grupo. As três principais famílias envol-

com aquisição e manutenção dos cavalos, entre outras, poderia mostrar que não havia vanta-

vidas na atividade, que atuam como pequenas empresas, participaram do processo, além de

gem econômica de trabalhar na rua, considerando a soma dos rendimentos que os integrantes

autônomos. Nesses encontros, houve explicações sobre os prejuízos ambientais causados pelo

da família poderiam ter no galpão.

tipo de reciclagem praticado na Vila do Dique, sobre o problema de saúde pública, sobre a ilegalidade da coleta informal de resíduos sólidos na cidade.

120 Um novo caminho Uma nova vida

Na cooperativa, a remuneração individual é definida pelo número de horas trabalhadas no

Os desdobramentos na Vila de Passagem

121


local. Cada um recebe proporcional ao tempo que trabalhou. Associados que trabalhavam

O processamento correto do material reciclável, com uso de equipamentos adequados, tam-

oito horas diárias recebiam cerca de R$ 1 mil, líquidos, por mês, no segundo semestre de 2012.

bém é uma forma de melhorar a produtividade do galpão de reciclagem. Quando foi montada,

Apesar de o salário médio ficar acima do mínimo e acima da renda individual de muitas famí-

a estrutura recebeu doações de empresas que se engajaram no projeto. Uma delas foi a Vonpar,

lias, a falta de adaptação à forma de trabalho ocasionou uma alta rotatividade de associados.

fabricante de bebidas Coca-Cola, que, após intermediação da prefeitura de Canoas, doou a

Um dos fenômenos observados é que as mulheres mostraram se adaptar com mais facilidade

prensa, o elevador, a balança e as bombonas para separação e estocagem do lixo. Com isso,

ao serviço de seleção. Elas revelaram-se mais pacientes e atentas diante do trabalho repetitivo

“Vim para o galpão

das mesas. Já os homens costumam assumir as funções que exigem força, como deslocar as

porque, no futuro, não

bolsas e fardos de lixo dentro do galpão, manter a limpeza, carregar o caminhão do frete.

vai mais ter espaço para quem trabalha na rua. Só para quem se

Autogestão

organiza. No começo, o

A ideia do galpão de reciclagem é que os próprios trabalhadores do local possam gerir o negó-

galpão vendia somente

cio em forma de cooperativa. Para pavimentar os caminhos para isso, a iniciativa contou com

para um intermediário.

um consultor da Gestão Ambiental da BR-448/RS, cuja função era mostrar caminhos para o

Depois, fomos fazendo

desenvolvimento dos negócios. O primeiro desafio era aumentar a competitividade do novo

contato com as empresas e pegando preço melhor pelo material.” José Fagundes, Presidente da cooperativa do galpão de reciclagem

galpão, agregando valor ao material recebido. Para isso, foi preciso aperfeiçoar o processo de seleção desenvolvido pelos recicladores na Vila do Dique. Pesquisa de campo demonstrou que, no local, os catadores separavam o lixo em sete categorias diferentes. Contato feito com as empresas de reciclagem da região responsáveis pela compra do material segregado, bem como a experiência de alguns recicladores antigos que aderiram ao galpão, apontou que o mercado trabalhava com até 36 materiais diferentes, e que os compradores estariam dispostos a pagar mais, caso a separação no galpão incluísse um número maior de categorias e etapas de processamento então realizadas nas indústrias recicladoras. Por exemplo: uma empresa que pagava R$ 1,50 pelo quilo do tubo de alumínio de desodorante passaria a pagar R$ 2,50

era possível organizar o espaço interno de maneira mais eficiente, poupar custos logísticos

se o mesmo fosse entregue já sem a peça plástica que compõe o spray − e assim passou a ser

com embarques de cargas mais pesadas e menos volumosas, controlar o peso da produção

feito no galpão. Além disso, descobriu-se que havia mercado para outros produtos antes não

local, entre outras vantagens. Outros parceiros também se aliaram ao projeto, como a Refina-

comercializados no trabalho na Vila do Dique, como as caixas de leite Tetrapak, descartadas

ria Alberto Pasqualini, que passou a destinar ao galpão caminhões com lixo reciclável, a Rossi

nos arroios e matos, mas que tinham valor comercial de R$ 0,06 o quilo, e passaram a ser sele-

Engenharia e os próprios consórcios construtores da BR-448/RS, doando resíduos sólidos dos

cionadas no galpão da Vila de Passagem.

canteiros de obras.

122 Um novo caminho Uma nova vida

Negócio mais rentável: recicladores ampliaram leque de materiais coletados, agregaram valor ao produto vendido e aumentaram a renda

Os desdobramentos na Vila de Passagem

123


Foto: Andrea Weschenfelder

A desativação da Vila de Passagem A Vila de Passagem será desativada quando todas as famílias que a ocupam estiverem acomodadas nas casas definitivas. O cronograma depende da liberação das novas residências. A equipe social acompanha todo o processo, de maneira que ocorra de forma harmônica, como todas as mudanças realizadas na primeira etapa. A avaliação é de que o processo de saída da Vila de Passagem para moradias novas tende a ser mais tranquilo, uma vez que as famílias vão para casas maiores e melhores. A ansiedade por sair de um lugar onde tinham raízes, registrada na saída da Vila do Dique, não se repete. Após o reassentamento das famílias nas casas definitivas, a equipe social ainda permanece por um período de adaptação da população ao novo local, em um trabalho com foco na consolidação da organização comunitária e de suas lideranças. O atendimento social também é mantido, com encaminhamento das demandas,

Saída da Vila de Passagem para as casas definitivas terá acompanhamento contínuo da equipe social

especialmente as relativas à instalação em um novo local, para escolas, postos de saúde e órgãos competentes.

Educar para transformar Outra empresa que apoiou as atividades do galpão de reciclagem foi a distribuidora de energia AES Sul, que desenvolve o projeto Educar para Transformar junto às comunidades de 39 municípios nos quais atua. A iniciativa tem como meta atingir 150 mil pessoas, incluindo capacitação de 2 mil professores e instrumentalização com material didático de 6,4 mil educadores. As ações discutem sustentabilidade em quatro eixos: energia, água, mobilidade e lixo. Dentro dos trabalhos relativos a este último tema, o Educar para

124 Um novo caminho Uma nova vida

Transformar fechou uma parceria com a Gestão Ambiental da Rodovia do Parque para que uma parte da sucata encontrada no galpão de reciclagem fosse transformada em instrumentos musicais. A confecção teve a coordenação da equipe de educação ambiental, que orientou os associados da cooperativa de reciclagem nas oficinas de fabricação dos 4 mil instrumentos encomendados. Na oficina, tampinhas de garrafa viraram chocalhos, garrafas plásticas compuseram um berimbau, latas de achocolatado

Foto: Andrea Weschenfelder

se transformaram em tambores. Todo o material foi fabricado para utilização em dinâmicas em sala de aula e capacitações de professores, dentro das atividades do Educar para Transformar. A contrapartida da AES Sul veio em aperfeiçoamento da estrutura do galpão, com a construção de uma copa e cozinha, incluindo geladeira, fogão e forno de micro-ondas. Com isso, os associados passam a ter onde armazenar o lanche e almoço, além de realizar as refeições com mais higiene, em área específica.

Diretores do DNIT são recebidos pela equipe da Gestão Ambiental para conhecer as casas definitivas

Os desdobramentos na Vila de Passagem

125


As casas definitivas Um dos grandes trunfos do Programa de Reassentamento Populacional da BR-448/RS é a localização das novas moradias. Os três loteamentos construídos para abrigar as famílias ficam em bairros próximos às áreas do dique, o que garante a minimização do impacto social da Rodovia do Parque. As famílias realocadas continuam convivendo com os mesmos vizinhos, podendo fazer compras no mesmo supermercado, ter seus filhos estudando nas mesmas escolas, exercer suas atividades laborais nas mesmas regiões. Ao todo, as novas moradas somam 599 unidades. São 168 casas no loteamento Canoas Minha Terra I, no bairro Fátima, mais 175 no Canoas Minha Terra II, no bairro Mato Grande, e ainda 256 apartamentos no condomínio Morada Cidadã, também no Fátima. As habitações foram construídas por meio do Programa Minha Casa, Minha Vida, sem custos para a população realocada. A Caixa Econômica Federal foi o agente responsável pela documentação e entrega dos imóveis às famílias. Foto: Eduardo Rocha

5


Todas as novas unidades habitacionais têm dois quartos, um espaço de estar e jantar, um banheiro, cozinha e espaço para área de serviço. As casas ficam em um terreno de 120

A infraestrutura de cada conjunto habitacional

metros quadrados. Já os apartamentos estão localizados em um condomínio com centro comunitário equipado de auditório, além de espaços para conjuntos comerciais. Tanto os loteamentos Canoas Minha Terra quanto o Morada Cidadã contam com praças e área de lazer e infraestrutura urbana completa, incluindo ruas asfaltadas, abastecimento de água, saneamento básico e iluminação pública.

Canoas Minha Terra I • 175 casas de 43,5m² cada • Dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço • Lotes individualizados de 120m² • Uma praça com academia ao ar livre • Ruas pavimentadas, abastecimento de água, saneamento básico e iluminação pública Foto: Divulgação PMC

Canoas Minha Terra II • 168 casas de 43,5m² cada • Dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço • Lotes individualizados de 120m² • Uma praça com academia ao ar livre • Ruas pavimentadas, abastecimento de água, saneamento básico e iluminação pública

Apartamentos da Morada Cidadã Moradores visitam um loteamento pronto para se familiarizar com as novas casas

Foto: Andrea Weschenfelder

Resistência No primeiro levantamento feito pelo DNIT na Vila do Dique, apenas oito famílias manifestaram interesse em se mudar para o Morada Cidadã. Acostumados a viver sempre em casas

• 256 apartamentos de 45,72m² cada • Dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço • Duas praças com quadras esportivas, arquibancadas e academia ao ar livre • Centro comunitário com auditório, sanitários, cozinha e sala administrativa • Conjunto comercial com oito lojas e sanitários

e próximo de áreas verdes, muitos moradores consideravam apartamentos como “prisões”.

128 Um novo caminho Uma nova vida

As casas definitivas

129


Como, no entanto, 256 moradias são em edifício, uma das tarefas dos integrantes da equipe social foi esclarecer a população sobre as condições do condomínio. Como ocorreu em outros casos, foi somente com a visita de integrantes da Comissão de Obras e de outros moradores da Vila do Dique que o preconceito quanto aos apartamentos foi se dissipando. Ao serem levados de ônibus até unidades iguais às que receberiam, entrar nos imóveis, visualizar o tamanho, conferir a qualidade e a infraestrutura dos prédios, uma parte cedeu aos

Os critérios para escolher uma casa: • Localização geográfica (10 pontos):

• Pessoas com deficiência física na

• Ter um comércio (8 pontos): marca-

marcaram pontos as famílias que esco-

família (4 pontos): marcaram pontos as

ram pontos as famílias que mantinham

lheram o loteamento ou condomínio mais

famílias que tinham pessoas com defici-

comércio.

perto de onde viviam na Vila do Dique.

ência na casa.

• Tempo de moradia (10 pontos): mar-

encantos do condomínio. A visita aos apartamentos-modelo foi fundamental para dissemi-

• Número de pessoas por família (10

• Trabalho com reciclagem (4 pontos):

caram pontos as famílias que moravam

pontos): marcaram pontos as famílias

marcaram pontos as famílias que traba-

na Vila do Dique de cinco anos.

nar as informações relativas à qualidade dos condomínios e unidades habitacionais. Muito

que tinham mais de três pessoas na casa.

lhavam com reciclagem.

• Idosos na família acima de 65 (4 pon-

• Ter cavalos (5 pontos): marcaram pon-

caram pontos as famílias que receberam

tos): marcaram pontos as famílias com

tos as famílias que tinham cavalos.

selo no congelamento de 2009.

embora as características já tivessem sido informadas em reuniões, conversas com a equipe social e por meio de panfletos, somente com a conferência in loco houve alguma reversão do desinteresse nas unidades do Morada Cidadã.

• Possui selo de 2009 (10 pontos): mar-

idosos na casa.

Critérios Mesmo assim, o número de apartamentos disponíveis superou o número de interessados

Para demonstrar o funcionamento do sistema, foram marcadas reuniões com a comu-

em viver no Morada Cidadã. O impasse foi resolvido pela própria Comissão de Obras.

nidade. Em uma delas, na Associação dos Moradores do Bairro Rio Branco, a Secretaria

Mais uma vez, os representantes eleitos pela comunidade definiram os rumos do Pro-

Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação de Canoas, responsável por manter

grama de Reassentamento. Nas reuniões do grupo, com a orientação da equipe social,

o cadastro das famílias e formalizar as transferências, apresentou a tabela e fez simula-

foram estabelecidos os critérios para definição de quem teria preferência para escolher se

ções de preenchimento com informações prestadas pelos próprios presentes. Em meio

gostaria de ir para o Morada Cidadã ou para os loteamentos Canoas Minha Terra I e II. As

ao burburinho gerado antes da simulação, incluindo lamentações de quem não queria ir

discussões iniciais levaram à definição das situações que contribuiriam para que um mora-

para apartamentos, uma assessora da secretaria tentava explicar os motivos do estabele-

dor tivesse preferência sobre outro. Após, o grupo definiu quais dessas situações deveriam

cimento de critérios:

ser mais relevantes, atribuindo um valor a cada uma. As categorias foram marcadas em uma planilha de dados, cujo preenchimento resultava em uma pontuação e consequente

− Existem critérios para que se possa pensar não só no individual, mas também no coletivo. É

geração de um ordenamento das famílias. Quem marcasse mais pontos teria prioridade

importante que as pessoas não pensem que alguém foi para uma casa porque é meu amigo ou

para escolher onde morar. Alguns aspectos que favoreceram a moradia em casa, como

amigo do fulano.

trabalhar com reciclagem, ter cavalos ou a presença de pessoas portadoras de deficiência na família, foram valorizados. Além de critérios de antiguidade, privilegiando quem vivia

As explicações, no entanto, não foram suficientes para aplacar a tensão de alguns. Um dos volun-

há mais tempo na Vila do Dique.

tários para realizar a simulação no seu caso, mais nervoso e exaltado, repetia:

130 Um novo caminho Uma nova vida

As casas definitivas

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− Se for para ir para um apartamento, me compra um caixão. Se for para ir para apartamento, me compra um caixão... A pontuação desse morador indicava que ele poderia escolher uma casa. Mas isso só seria comunicado quando os dados de todos fossem checados e consolidados. Apesar da objetividade dos critérios, a insegurança e os questionamentos sobre quem receberia apartamentos persistiram.

As novas casas O loteamento com a obra mais avançada era o Canoas Minha Terra II, localizado em terreno lindeiro com a Vila de Passagem e junto ao galpão de reciclagem. No entanto, quando as primeiras casas foram erguidas, em julho de 2012, trouxeram mais apreensão do que alívio à população. Construídas de forma industrial, com tecnologia inovadora, elas têm as paredes de concreto revestidas com PVC. Bastou uma unidade ficar pronta para o boato se espalhar como rastilho de pólvora pelas comunidades da Vila de Passagem e Vila do Dique: “Vão nos colocar em casas de plástico”. As informações prestadas previamente − de que todas eram feitas de concreto, de que o PVC tornava a manutenção mais fácil, de que inexistiam prejuízos à durabilidade, até pelo contrário − não bastaram para convencer a comunidade. O preconceito só foi quebrado, novamente, quando integrantes da Comissão de Obras e outros representantes da comunidade foram levados a um loteamento semelhante, no qual as casas tinham sido erguidas com a mesma tecnologia. Ao mirarem um bairro inteiro com as casas todas brancas, devido ao revestimento de PVC, e tocarem insistentemente na parede para se certificar que era mesmo de concreto, os moradores se convenceram de que as casas eram bastante resistentes, e mais do que isso: em conjunto, faziam uma figura bem bonita. Quem participou da visita, então, voltou espalhando: “As casas não são de plástico”. Além da excursão, foi marcada uma reunião, no centro comunitário da Vila de Passagem, para que técnicos da Caixa Econômica Federal e da empresa construtora explicassem a nova tecnologia, que permitia obras mais ágeis, além de longa durabilidade das moradias. Quarenta moFoto: Eduardo Rocha

132 Um novo caminho Uma nova vida

As casas definitivas

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radores − e, como sempre, dezenas de crianças − compareceram ao encontro. O arquiteto da Caixa Econômica Federal Everton Eltz explicou que, para fazer parte do Minha Casa, Minha Vida, uma tecnologia de produção deve ser testada e aprovada. As casas com revestimento de PVC passaram nesse teste, demonstrando ter duração de mais de 40 anos. Um vídeo demonstrando a forma de construção e as características técnicas foi apresentado pela empresa Kaefe Engenharia, contratada para a construção. Entre as vantagens do sistema

“É nítida a diferença de comportamento, com

construtivo inovador estão a rapidez de montagem, a simples manutenção, uma vez que as casas não têm reboco ou pintura e são facilmente laváveis, a alta resistência e o conforto térmico.

relação às novas casas, entre os moradores que vieram da Vila de Passagem e da Vila do Dique. Os hábitos de higiene e a adaptação à

A primeira casa Manhã de 21 de dezembro de 2012. É sexta-feira e chove torrencialmente em Canoas. Na Vila de Passagem, uma árvore de Natal montada com garrafas pet lembra que faltam quatro dias para o feriado cristão. O presente de algumas famílias, no entanto, chegará antes.

nova casa são melhores entre aqueles que

O de Angélica da Cunha é um deles. De calça jeans e blusa floreada, ela está sentada em uma

estiveram na Vila de

das dezenas de cadeiras reunidas debaixo de um gazebo instalado entre a Vila de Passagem

Passagem.”

e o Loteamento Canoas Minha Terra II. Divide espaço com algumas autoridades, jornalistas e

de um sonho para muitos, e o superintendente regional da Caixa Econômica Federal, Mauro

vizinhos, moradores da Vila do Dique ou da Vila de Passagem. A cerimônia é singela ante seu

Roberto Bom, ressalta a importância de se ter um endereço.

Marcela Nascimento, coordenadora de campo do reassentamento

simbolismo. Depois de cerca de sete anos desde o anúncio do governo federal de que faria

Foto: Andrea Weschenfelder

a Rodovia do Parque, mais de três anos desde que a prefeitura cadastrou os moradores dos

Terminadas as falas das autoridades, Angélica é chamada ao palco. Ali, recebe a chave da pri-

diques e um ano e nove meses desde a entrada da equipe social do DNIT, os primeiros mora-

meira de 599 casas que serão entregues, até que a estrada esteja finalizada, a moradores da

dores receberiam as chaves de suas novas casas.

Vila do Dique e arredores. A dona de casa é alvo dos flashes de fotógrafos, câmeras de vídeo,

Prefeito de Canoas, superintendentes do DNIT e da Caixa entregam a primeira casa a Angélica da Cunha

gravadores de áudio. Sem aparentar euforia ou nervosismo, mantém um ar de tranquilidade e O prefeito de Canoas, Jairo Jorge, em seu discurso, lembra as décadas de reivindicações dos

não muda o tom da voz ao dar entrevistas.

moradores da Vila do Dique, junto aos quais construiu boa parte de sua vida política, e quando a luta era por uma bica d’água para ser dividida pela comunidade. O superintenden-

Quando perguntada sobre o que vai melhorar em sua vida, não fala das qualidades físicas da

te do DNIT no Rio Grande do Sul, Pedro Luzardo Gomes, diz que o momento é a realização

sua casa nova, mas sim do fato de que agora terá um endereço formal. Agora terá comprovante

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rão. O marido continuará a viver da coleta de lixo e de carretos com a carroça; a renda mensal, incluindo Bolsa Família, continuará próxima a um salário mínimo; ela seguirá fazendo compras na mesma vizinhança, perto de onde ficava sua casa na Vila do Dique. Tudo isso, ela só consegue contar no dia seguinte ao recebimento da chave, quando finalmente toma posse da casa. Ao chegar em sua nova moradia, pela manhã, Angélica escutou as orientações técnicas sobre a unidade e as boas-vindas da equipe social, além de dicas sobre como manter boas relações de vizinhança, economia de energia e de água. Ainda recebeu um manual de utilização com a planta da casa. À tarde, foi a vez de mais um ato simbólico: a assinatura do contrato. Servidores da Caixa Econômica Federal transformaram a casa 370 em um escritório avançado do banco. Representantes das primeiras famílias reassentadas – oriundas algumas da Vila de Passagem e outras da Vila do Dique, devido à necessidade de liberação imediata de áreas – fizeram fila para assinar. São mais de 70 assinaturas e rubricas necessárias

Contratos: Caixa transformou uma das casas em escritório avançado para as assinaturas

nas diferentes vias do contrato. Impossível ler cada detalhe rapidamente. Um representante da prefeitura ajuda os servidores da Caixa a explicar o principal. A casa tem valor de R$ 55 mil, integralmente bancados pelo governo federal. Os novos moradores também têm suas obrigações.

Angélica não precisará mais usar o endereço de amigas para comprar no crediário

Foto: Eduardo Rocha

− Não pode vender, não pode alugar, não pode ceder para outros − explica um funcionário da

de residência, não precisará mais comprar móveis e eletrodomésticos no crediário usando o

prefeitura.

nome e o endereço de amigas. Algumas coisas mudarão. A casa é nova, de concreto revestido por PVC, ela terá água encanada, luz, com as respectivas contas, um pequeno pátio que ganhará uma cerca para abrigar o cavalo do marido. Depois de 20 anos na Vila do Dique tomando banho de banheira, ela também terá agora um chuveiro. Mas tantas outras coisas não mudaFoto: Eduardo Rocha

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Preparação Antes da entrega de cada quadra de um loteamento, o conjunto de famílias que ali moraria era convidado a organizar, juntamente com as equipes da prefeitura de Canoas e do DNIT, a vizinhança dessa quadra. Com isso, objetiva-se garantir que os vínculos de amizade e solidariedade desenvolvidos ao longo do período em que moraram nos diques permaneçam. O resultado dessa ação vem se mostrando muito positivo se comparado a outros processos de reassentamento nos quais as unidades habitacionais foram sorteadas entre os futuros habitantes ou àqueles em que a vizinhança é composta por famílias oriundas de áreas distintas da cidade. Ainda na etapa preliminar ao recebimento das residências, as famílias foram convidadas a refletir sobre a qualidade da rua em que querem morar e o papel de cada uma para que a rua ideal (limpa, segura, agradável etc.) se torne realidade. Além das responsabilidades do município, a limpeza e a manutenção das ruas dos loteamentos dependem da postura de cada família. A reflexão sobre a rua ideal também visa estabelecer alguns padrões de construção junto às famílias, tais como altura dos muros, tipos de cerca, formas de ampliação da casa ou cobertura para a garagem do carro. O resultado dessa ação também já se pode observar na prática, uma vez que as casas já entregues são protegidas por cercas similares, as ruas do loteamento estão limpas e não há ocupação indevida das calçadas, algo bem diferente do que se via nos diques. Esse processo envolveu questões ligadas a mediação de conflitos, uso consciente de recursos naturais, gestão dos espaços comuns, tais como os centros comunitários e os condomínios, e o incentivo à composição de uma associação de moradores. Foto: Andrea Weschenfelder

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Foto: Eduardo Rocha

A mudança de Nadiles Às 8h15min de um sábado de janeiro de 2013, um pequeno caminhão de mudanças e uma Kombi da prefeitura de Canoas estacionam em frente à casa de Nadiles na Vila de Passagem. As ruas do local estão um pouco mais sujas do que de hábito. É que nos últimos dias novas famílias chegaram da Vila do Dique, ocupando os módulos de quem já recebeu a casa definitiva. “Demora um tempo para o pessoal adquirir novos hábitos”, explica a integrante da equipe social que se aproxima para dar início à mudança de Nadiles para o Canoas Minha Terra II. Está nublado, a chuva vai e vem, mas a moradora recebe animada a equipe. − Bom dia! − Ué, Nadiles, onde estão as tuas plantas, o teu jardim? − Ah, levei tudo ontem. Arrumei uma carroça e já deixei na casa nova. − E o pessoal? − O Arci tá lá, fazendo uma areazinha atrás para botar o tanque. Os dois grandes (os filhos Renan e Marcos) até dormiram lá. Sem demora, o pessoal da mudança começa a pegar os móveis e utensílios. Estantes, camas, caixas com sapatos, caixas de brinquedo, bola de futebol, vai tudo no caminhão. Kaynam, o menino mais novo, ata uma corda no pescoço do cão, Preto, para levá-lo a pé. A caçula, Samyra, alheia ao movimento da mudança, permanece imóvel, deitada na cama, agarrada a uma boneca suja e esfarrapada – ela tem outras mais novas, mais limpas, mais bonitas, mas não desgruda desta. E só se levanta quando os operários têm mesmo de levá-la. Quando o carregamento está quase terminando, as nuvens pretas na rua dão lugar aos raios de sol. Nadiles não deixa de reparar. − Samyra, olha lá o arco-íris!

les, uma hora depois do início da mudança, embarcou com a filha no veículo da prefeitura para per-

Nadiles em frente à casa definitiva: geladeira, aparelho de som e estante novos, comprados no crediário

correr o pequeno trajeto que separa sua casa provisória na Vila de Passagem da sua casa definitiva.

− O Patati Patatá canta uma música daquilo – reponde a pequena, apontando para o arco-íris e referindo-se a uma dupla de palhaços que faz sucesso na tevê.

Muita coisa mudara em sua vida nos últimos meses, desde sua saída da Vila do Dique. E continuava mudando. Há cerca de três meses, o marido tinha arrumado um emprego como vigilante

O momento tem até uma fortuita trilha sonora: na Kombi da prefeitura toca The Sound of Silence, clássico de Simon & Garfunkel. O clima da manhã não podia ser mais tranquilo. E foi assim que Nadi-

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nas obras da BR-448/RS, garantindo renda fixa à família. Já ela tinha deixado o trabalho no galpão de reciclagem, por desentendimentos com colegas.

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Agora, queria voltar a trabalhar em outra área para novamente ajudar o marido nas finanças

“As novas casas ganham uma configuração bastante diferente da realidade da Vila de Passagem

da casa. Eles ainda tinham de pagar as contas da geladeira, do aparelho de som e da estante que

e mais distante ainda da estrutura de habitação no Dique. Os próprios moradores conceituam de

a família comprara no crediário para a casa nova. E Nadiles tinha usado suas economias para ir a

outra forma o local onde moraram nas três etapas: 1)Vila Dique, 2)Vila de Passagem e 3)Casas

Santa Catarina no Natal, visitar a mãe, de 77 anos, cujo estado de saúde era frágil. Há nove anos

definitivas.

que não a via. Foi com os quatro filhos, e lhe fez bem rever a mãe e os irmãos. Depois de passar por todas as etapas, as famílias na nova casa se referem à antiga morada como Quando desceu da Kombi para concluir sua mudança, Nadiles foi recebida por outra integrante da equipe social.

‘barraco’. Embora essa denominação tenha geralmente um sentido pejorativo, nota-se que ela está relacionada muito mais à forma estrutural do que a uma avaliação qualitativa. Como define uma das moradoras: ‘É que lá não era casa, era barraco, porque, assim, não tinha esgoto e a luz

− Seja bem-vinda! Que aqui você recomece.

era daquele jeito, mas lá era meu também’, havendo ainda um sentimento saudoso quando se

− Já recomecei! – respondeu, animada, Nadiles.

referem aos seus antigos ‘barracos’.

Análise

A estada na Vila de Passagem ganha também suas interpretações. Os moradores se referem ao local como ‘pavilhões’ ou como ‘aquele aperto’. No local, as famílias organizavam sua vida em um espaço menor, se comparado ao que muitos tinham na Vila do Dique, principalmente se

Quando Nadiles chegou ao Canoas Minha Terra II, o loteamento já ganhava ares de bairro, com

considerada a possibilidade de circulação e a indefinição entre a ‘casa’ e a ‘rua’, que permitia a

dezenas de famílias habitando as novas casas e construindo ali suas histórias. A ocupação deu-se

ampliação da ‘casa’. Na Vila de Passagem, ao final do dia, as cadeiras de praia também toma-

de maneira um tanto heterogênea – tanto quanto as músicas que escapavam das janelas de casas

vam as calçadas, mas essa ocupação da ‘rua’ era em menor proporção do que na Vila do Dique,

e automóveis da vizinhança na manhã em que ela se mudou. Sertanejo, rock anos 80, funk e pop

provavelmente pela menor disponibilidade de sombra. A dificuldade repetidamente narrada, em

ecoavam pelas ruas. A diferença mais evidente do ponto de vista visual era relativa à organização

relação à estada na vila transitória, é a sensação de ‘não posse’, do ‘não é meu’. Os moradores

do espaço externo nas residências ocupadas por catadores de lixo, normalmente com utilização de

contam a dificuldade que foi não poder ‘mexer em nada’, fazer melhorias, ou mesmo arrumar,

cavalo e carroça, e nas demais. As ruas e pátios nos quais se concentrava o primeiro grupo exibiam

por não estarem habitando o seu lugar.

um maior volume de resíduos sólidos. Especialmente entre as residências das famílias com outras fontes de renda podia se observar já nas primeiras semanas de ocupação detalhes que denotam

Ao habitarem esses lugares, as famílias passaram não só por mudanças físicas de espaço, mas de

maior cuidado com a moradia. Caixas de correios novas, enfeites nas portas e nos pátios, cortinas

sensações, sentimentos e percepções. No decorrer do processo, com constante sentimento de in-

nas janelas, cercas planejadas e até mesmo uma casa pintada de rosa chamavam a atenção.

certeza, tiveram posse (mesmo que não formalizada), não-posse, para voltar a ter a posse de sua moradia. Pode-se identificar, a partir das narrativas analisadas, que a principal diferença da Vila do

Para apurar o sentimento e a adaptação dos moradores à casa nova, a equipe do DNIT em-

Dique para as moradias definitivas não é tanto o fato de terem a titulação do espaço que habitam,

preendeu uma breve pesquisa, incluindo em sua metodologia entrevistas a um universo res-

mas o fato de, agora, morarem em ‘casas’, não mais em ‘barracos’ ou ‘apertos’.

trito de proprietários. O estudo chegou a algumas conclusões:

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Foto: Eduardo Rocha

As ‘casas’, então, são significadas como lugar onde há saneamento, no qual se distinguem espaços (cozinha, sala, quarto, banheiro). Essas divisões podiam até existir nos ‘barracos’, mas de forma improvisada, ou não tão nitidamente delineada. As casas ainda têm um grande diferencial, a elas há um endereço correspondente, sendo que uma das primeiras ações dos moradores em sua nova casa foi a compra/instalação das caixas de correspondência. A forma de percepção do espaço de moradia ganhou novo sentido a partir da experiência. Assim a casa, agora, é o local de correspondência e cuidado. A percepção do ambiente interno e externo, privado e público, casa e rua, também passou por alterações. Na Vila do Dique, a casa e a rua se confundiam, em alguns casos sem marcações específicas entre um e outro terreno (até porque vários núcleos de uma mesma família dividiam o mesmo). A rua é espaço público, mas não só de passagem, de lazer, e por vezes acaba por ser espaço privado onde algumas famílias mantêm sua sociabilidade ou até mesmo constroem galinheiros e baias para abrigo de seus animais. Na Vila de Passagem, embora pequenos, cada núcleo familiar ficou com um módulo, havendo divisão por meio de cercamento. Os ‘pavilhões’ foram divididos em vários módulos, e se distinguiam bastante da rua por esta ter calçamento. E assim as definições fluidas entre o espaço público e o espaço privado começaram a ter a definição de fronteiras mais precisa a partir da Vila de Passagem. Na Vila do Dique o espaço da casa se confunde com a rua, como pode ser observado nas fotografias. No loteamento Canoas Minha Terra II, até o momento, parece haver a definição de um espaço intermediário entre casa e rua. Os moradores ressaltam a possibilidade de ter ‘o seu pátio’. Novas classificações do espaço, assim como novas noções de propriedade, vêm se delineando no processo de mudança. O ‘pátio’ agora faz parte da casa e, principalmente, é de responsabilidade individual, não mais coletiva. Os cercados se tornam, então, signo de arranjo diferente entre a ‘rua’ e a ‘casa’; o ‘público’ e o ‘privado’. A fronteira do pátio é uma das formas pelas quais se materializa a sensação de propriedade para essas pessoas. Assim, se há alteração na forma de perceber a ‘casa’, a forma de habitá-la também se modifica.

territorialidade que se constitui pela nova forma de habitar dos antigos moradores da Vila do Dique

A maioria narrou alguma forma de alteração na rotina cotidiana, seja pela facilidade de acesso

parte, então, de uma percepção da casa como local do cuidado privado. As narrativas ressaltaram

ao posto, proximidade do mercado, mudança da escola dos filhos ou aumento dessa distância. A

‘sua casa’ e ‘seu espaço’, constituindo uma sociabilidade menos abrangente.”

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Propriedade particular: novas moradias despertaram nas famílias sentimento de cuidado com um espaço próprio, que no Dique não existia

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Foto: Ireno Jardim

Fotos: Eduardo Rocha

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Foto: Divulgação PMC

Foto: Divulgação PMC

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Conclusão O pioneirismo O direito ao bem-estar e a uma moradia norteia políticas públicas do governo federal, está garantido na Constituição Federal, na Declaração Universal de Direitos Humanos, em normas, leis, tratados e princípios. Garantir a melhora nas condições de vida e de habitação de mais de 2 mil pessoas em apenas um empreendimento é motivo de orgulho para toda a equipe do DNIT envolvida no processo. Experiências semelhantes já tinham ocorrido com as ampliações e construções de outras rodovias. Mas o caso da BR-448/RS mostrou-se emblemático pelo número de pessoas abrangidas em uma mesma comunidade e pelo envolvimento direto da Gestão Ambiental no trabalho social desenvolvido. O DNIT tem o objetivo de ser referência na área de empreendimentos de transportes, e o resultado do reassentamento da rodovia gaúcha demonstra que a autarquia tem capacidade para conduzir, contando com parcerias estratégicas, projetos de grande porte, de forma a mitigar ou compensar possíveis impactos das obras nas comunidades afetadas.

Foto: Eduardo Rocha

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Responsabilidade ambiental A legislação ambiental brasileira não deixa dúvidas quanto à responsabilidade do empreendedor

Os resultados positivos do trabalho, no caso da BR-448/RS, puderam ser medidos pela ausên-

em executar programas para reduzir o impacto ambiental das obras. O DNIT, nos últimos anos,

cia de impedimentos da população à continuidade das obras, pela transformação dos hábitos

tem se estruturado para atender a essas exigências de forma cada vez mais eficiente, demonstran-

das famílias após o contato com as equipes social e de educação ambiental e pela confiança

do um crescente compromisso com o meio ambiente. Recentemente, consolidou-se o entendi-

mútua entre comunidade e trabalhadores da Gestão Ambiental. Quem teve o privilégio de

mento de que o meio antrópico pode ter tanta ou maior importância do que os físico e biótico

acompanhar de perto as atividades constatou a dedicação de todos os envolvidos no Progra-

na análise do impacto de uma obra de infraestrutura de transportes, a depender do meio no qual

ma de Reassentamento Populacional e a vibração do grupo com as conquistas de cada família

o empreendimento está iserido. Esse reconhecimento abriu espaço para o aprofundamento das

reassentada. Restou a certeza de um trabalho bem executado.

medidas que visam a reduzir os possíveis efeitos negativos das obras na vida das pessoas. Entre elas, os programas de reassentamento associados à melhoria da qualidade de vida das famílias

Por isso, a experiência da Rodovia do Parque deve servir de modelo para outros programas de

afetadas diretamente por estradas. A Gestão Ambiental da BR-448/RS é um reflexo dessa visão.

reassentamento executados no País, sempre respeitando as peculiaridades de cada caso e de cada região. Um dos aprendizados proporcionados pelo trabalho na BR-448/RS, por exemplo,

Realocar famílias e incluir socialmente

foi o de que a utilização de uma Vila de Passagem, nos casos em que casas definitivas demorem mais do que a obra, é viável. Mais do que isso: nos casos em que as famílias a serem reassentadas vivem em condições precárias, o local transitório serve como uma escola, para prepará-las

O trabalho realizado no empreendimento demonstrou que um processo de reassentamento vai

para os desafios da moradia definitiva, além de propiciar um estreitamento da equipe social

muito além da retirada de famílias da área afetada pela rodovia e instalação em um novo local,

com a população.

liberando a área para as obras da estrada. Para que haja efetiva melhoria na qualidade de vida da população, é preciso um trabalho de acompanhamento e comunicação permanente com

Por ser um ator relativamente novo na execução direta de políticas de inclusão social, sempre

as famílias impactadas. O caso da Rodovia do Parque comprovou que o sucesso desse processo

associadas à redução do impacto social de um empreendimento de transportes, o DNIT ainda

passa pela presença contínua de uma equipe social na comunidade, pela valorização das insti-

tem a evoluir com cada experiência. Estabelecer padrões mais objetivos de avaliação do suces-

tuições e lideranças locais, pela realização de repetidas reuniões e visitas técnicas com os mo-

so ou correção do trabalho social realizado nos Programas de Reassentamento Populacional

radores, pela transparência em todos os contatos e informes à população, pela priorização de

é um dos desafios. Mesmo assim, a experiência da BR-448/RS, bem como de outros progra-

grupos de maior vulnerabilidade, como portadores de deficiência e idosos, entre outros. Como

mas semelhantes já realizados pelo DNIT, demonstra o acerto da autarquia em assumir sua

empreendedor, o DNIT deve não somente fazer a realocação, mas também trabalhar para as

responsabilidade no processo de reassentar e incluir socialmente famílias afetadas por obras

comunidades serem sustentáveis, em um projeto que depois deve ser continuado por demais

rodoviárias. E constitui uma importante base para a fixação de novas diretrizes para Programas

órgãos da administração pública. A responsabilidade da autarquia é limitada à prevenção, mi-

de Reassentamento Populacional. Afinal, conforme demonstram os valores fundamentais da

tigação ou potencialização de impactos, não cabendo ao empreendedor a responsabilidade

Avaliação de Impacto Social, definidos pela IAIA, “o conhecimento e a experiência locais são

permanente por executar políticas sociais junto às famílias realocadas.

valiosos e podem ser utilizados para melhorar as intervenções planeadas”.

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Conclusão

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