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Em 2000, diante do prédio que nasci, em Budapeste. Minha avó Ilona com os filhos por volta de 1930. A esq. minha mãe, Eva e à dir. meu tio Matyás.
CAPA
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Meu tio Matyás por volta de 1931, no início do que poderia ter sido uma brilhante carreira.
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Minha mãe com o irmão Matyás em Budapeste por volta de 1939.
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Cartão-postal de Matyás, do front em 31/10/1942. O cartão foi escrito no verso da foto dele com a noiva Olga, também desaparecida durante a guerra.
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Casamento de meus pais na sinagoga da Rua Dob em 05/03/1946.
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Foto de 1946, logo após o casamento de meus pais; com meu tio Imre, tia Lili e minha prima Judite.
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Nos banhos de Szécsényi em maio de 1947 com meus pais.
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Com 4 anos pouco antes da fuga.
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Abril de 1957 na Av. 23 de Maio nº 6, nossa primeira residência no Brasil com minha mãe e o Janós, meu irmãozinho de 6 meses.
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Em frente a mesma casa com minha mãe, Judith minha prima e na porta minha avó Ilona.
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1964, Pça da República em São Paulo. Já com aparente prosperidade.
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Os bons tempos chegaram. Nosso primeiro carro um magnífico Skoda. Da esq. para dir. Marian Szegö, grande amiga que conhecemos no campo de refugiados, seus filhos János e Thomas e eu. Do outro lado meu pai e meu irmão János. Foto de 1961.
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Rua Manoel Dutra, esquina com a Rua Dr. Luiz Barreto no bairro do Bixiga. Rua de paralelepípedo como atualmente e acima nosso 1o caminhão Ford F350 em frente à Casa de Carnes Wessel em 1962.
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Fevereiro de 2000. Tocando a campainha para entrar no nº 21 da Rua Paulai Ede, prédio onde nasci. Em pé: Marina, eu, meus sobrinhos Márton e Bianca. Sentados: minha filha Tatiana, minha mãe Eva, minha esposa Sonia e meu filho Daniel.
CONTRACAPA
WESSEL ISTVÁN
Wessel Os
UMA HISTÓRIA SEM CORTES
Copyright © 2004 by István Wessel Todos os direitos reservados. Impresso no Brasil. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada, reproduzida ou armazenada em qualquer forma ou meio, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc sem a permissão por escrito da editora. EDIÇÃO DE ARTE, DIAGRAMAÇÃO E CAPA Tatiana Wessel FOTO de capa Paulo Lima FOTO DA CONTRACAPA Marcio Scavone CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS acervo da família, com as seguintes
exceções: Graciela Widman (p. 33, 197); Mauro Holanda (p. 32, 176); Meca Assumpção (p. 164); Niels Glogowski (p. 109-110, 168); Paulo Lima (p. 34, 37,46,47,49, 190) REVISÃO Tábata Marques Coelho / W11 1ª edição pelo selo Francis, maio de 2004
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Wessel, István, 1947 – Os Wessel : uma história sem cortes / István Wessel. – São Paulo : Francis, 2004 ISBN
85-89362-38-8
1. Família Wessel 2. Húngaros – Brasil 3. Imigrantes – Brasil I. Título 04-1900
CDD-929.2
Índices para catálogo sistemático: 1. Família Wessel : Histórias : Biografia 929.2
Direitos desta edição reservados para W11 EDITORES LTDA.
Rua Ernesto Nazaré, 31 05462-000 São Paulo SP Fone: (011) 3812 3812 e-mail: w11@w11editores.com.br site: www.w11editores.com.br
AO MEU PAI LÁSZLÓ E MEU IRMÃO JÁNOS, DE SAUDOSA MEMÓRIA. A MINHA MÃE EVA, MINHA ESPOSA SONIA E MEUS FILHOS DANIEL, TATIANA E MARINA (POR ORDEM DE ENTRADA EM CENA).
“Você só será perdoado por sua felicidade e seu sucesso, se generosamente consentir em dividi-los.” ALBERT CAMUS, 1956
Sumário Introdução 31 1 | Os sons na aula de esgrima 41 2 | O castelo de meu pai 53 3 | No front russo 61 4 | A glória de minha mãe 71 5 | Stálin dá uma mãozinha 83 6 | Fantasia operática e fuga 89 7 | Nosso Grande Hotel Sacher 97 8 | O espanhol, que língua difícil 105 9 | Milionários! 119 10 | O açougueiro elétrico 127 11 | Os trabalhos e os dias 139 12 | Lições de mundo 145 13 | A grande arte 155 14 | Aos olhos da multidão 169 15 | Perfume de carne 177 16 | O gesto do adeus 183 17 | Eu, autor 191 Agradecimentos 199
Introdução
M
inha família tem exercido o mesmo ofício há cinco gera-
ções. Somos açougueiros. Em 1830, na Hungria, meu trisavô já vivia de seu próprio açougue. Nossas certidões de nascimento registram toda essa trajetória, porque na Hungria esses documentos exibem, além do nome, a profissão do pai. Está lá, na certidão
de meu pai, datada de 22 de novembro de 1916: pai: Márton Wessel, profissão: mestre-açougueiro. Na minha, de 29 de março de 1947, idem: pai: László Wessel, profissão: mestre-açougueiro. Essa tem sido nossa profissão e profissão de fé, aquela em que afirmamos nossas crenças, nossas convicções e as escolhas que fizemos. É o que se conta neste livro, que é um pouco uma saga de imigração, um pouco um case de sucesso, um pouco livro de aconselhamento e desenvolvimento pessoal: a longa
Página-dupla anterior: certidão de nascimento de meu pai Foto que reproduz imagem do Festival de Tata de 1934. Na foto, os homens da família: László, István, János, Daniel e Márton em 1990
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Daniel aprendendo o oficio com 5 anos e em 2003 dirigindo a Wessel Na página ao lado: minha mãe e a neta Tatiana em 2003
história de dedicação e fidelidade à vocação que deu tudo, e tanto, à minha família. Uma história cheia de peripécias e atribulações, superadas com a confiança que nos dava o fato de fazermos o que mais sabíamos fazer. Ter um ofício, conhecêlo e exercê-lo bem, deu-nos coragem para escolher pelo otimismo, sempre, mesmo quando essa escolha comportava os maiores riscos. Pudemos optar pelo que nos dizia o coração, que em qualquer situação anseia por uma vida melhor, porque nosso coração esteve e está naquilo que fazemos. A história recente de nossa família é composta de uma lista encadeada dessas escolhas, em que sempre pesaram a profissão de meu pai – e de nossos antepassados – e o otimis mo de minha mãe. O fato de termos saído de Budapeste, na Hungria, em 1956, pouco depois da invasão soviética, é o
Wessel István episódio mais tenso e dramático desta história de escolhas. O fato de podermos, hoje, ativos, felizes e bemsucedidos, olhar para trás e vermos como foi correta a nossa decisão, é seu episódio mais feliz e duradouro – e não é final, porque continua a apontar
para
um
futuro
melhor, ainda e sempre ligado à nossa profissão e ao otimismo que nos infunde. Somos todos profissionais ou, no mínimo, habitantes da cozinha. Quando meu filho Daniel completou 12 anos – hoje ele está com 30 –, minha mulher e eu tentamos convencê-lo a submeter-se a um daqueles enfadonhos testes vocacionais. Ele se recusou e deixou claro: “Quero ser açougueiro, continuar o que meu avô e meu pai já haviam continuado”. Minha filha Tatiana, hoje com 28, designer gráfica em franco progresso – avaliem pelo belo projeto gráfico deste livro –, chegou a fraquejar há alguns anos dizendo que considerava a gastronomia “uma possibilidade” para seu futuro. Marina, 24, ainda gosta de brincar – mas na cozinha. Em nossos primeiros dias de vida em comum, Sonia, minha mulher, me ligava na Manoel Dutra, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, primeiro e atual ende-
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Escultura com imagem de Imre Nagy – principal mentor da revolução de 1956
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reço de nossa matriz, para perguntar o que era e como se preparava a carne ainda congelada que ela tinha na mão. As descrições eram confusas e a interpretação, dramática: eram sempre mais de 10 horas da manhã e ela nem sabia que a carne deveria ser, primeiro, descongelada – depois, preparada. Hoje Sonia é uma grande cozinheira, como sempre foi grande companheira de vida e de trabalho. E nessa cozinha não posso esquecer minha mãe, Eva – ou melhor, quero sempre lembrar: em nossa opinião, ela prepara muito bem doces e salgados; na opinião perfeccionista dela, tudo fica aquém do esperado. O perfeccionismo que se traduziu em gosto cultivado de minha mãe e a competência profissional de meu pai foram o segredo do sucesso de nossa empresa – e minhas escolas. Aprendi aí que eu seria açougueiro, como ele, e que acrescentaria uma visão – a dela – ao nosso ofício. Essa combinação determinou que nosso negócio se desenvolvesse num empreeendimento gastronômico
Wessel István centrado no domínio da carne, sempre, e no gosto que minha mãe nos incutiu pelo melhor de tudo na vida. Nesse processo aprofundei meus conhecimentos sobre vinhos, destilados e todas as cozinhas, e apliquei-me na elaboração de novos sistemas de relações públicas e de marketing para a empresa. Quase ao mesmo tempo me vi escrevendo sobre carne, gastronomia e bem-viver em livros e na melhor imprensa do país – e a falar sobre tudo isso no rádio e na TV. Nossa opção, mesmo que cheia de riscos, por uma vida melhor e mais feliz nos trouxe ao Brasil e à fartura, e nos proporcionou todas as nossas conquistas. Em 1969 pela primeira vez, depois em 1983, e daí com alguma regularidade, voltei a Budapeste e à Rua Paulai Ede, 21, na região central de Peste, a parte baixa da cidade – a uma quadra da Ópera, um dos destaques arquitetônicos da capital e, como se conta aqui, um marco na história recente da família. Nesse endereço morei até os nove anos; aí meu irmão János nasceu e, apenas quatro meses depois, daí saímos uma noite em fuga que nos levaria ao Brasil. Em todas as visitas eu me senti como se voltasse a um pedaço congelado no tempo. O prédio continuava igual, um tanto mais desgastado pelos anos, as paredes mais cinzentas; o reboco, que já caía das casas quando eu era criança, nunca foi reparado: um símbolo de que nada havia mudado. Ali perto, no Parlamento, ainda se viam – e se vêem – as marcas das balas que atingiram o prédio durante a revolução de 1956. Em toda
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a vizinhança a imagem era a mesma, repetida há anos – e, o mais incrível, as pessoas que a habitavam só estavam mais velhas. No comunicador eletrônico à porta do prédio onde morei até sair da Hungria, lia sobre o número do apartamento ao lado do que fora meu, o mesmo nome de família dos mesmos vizinhos de quase 50 anos antes: Juhász. Nada ilustra melhor a diferença de destinos que foi colocada à escolha de um mesmo povo, àquele ano de 1956, na Hungria. As tropas soviéticas tinham invadido e tomado o país, e controlavam o poder por meio de seus títeres políticos. Para os que não tinham compromisso com a revolução havia apenas dois destinos possíveis: ficar e aceitar as consequências do jugo soviético, ou fugir. As duas opções exigiam predisposição para enfrentar o desconhecido. Nós sabíamos que fugir seria nossa única chance de melhorar de vida. Os riscos eram enormes, e ainda assim achamos que valeria a pena corrê-los. Aqueles nossos vizinhos, István e Manyi Juhász – um casal com dois filhos pequenos, que vivia mais ou menos nas mesmas condições que nós (ele era tenente do exército) –, agiram como a maioria dos húngaros: em meio à instabilidade política e à violência que assolavam o país, optaram pelo que parecia mais razoável – ficar e se agarrar ao pouco que tinham, fossem sonhos ou lembranças. Meus pais, antes de partir, tiraram um quadro que tinham na parede e colocaram na parede da sala dos Juhász, para que sempre se lembrassem de nós. E foi com profunda
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emoção que durante minha visita em fevereiro de 2000, ao visita-los deparei com o quadro no exato lugar onde minha mãe havia colocado em 7 de dezembro de 1956. Os Juhász são um símbolo. Representam quase todas as famílias de classe média de Budapeste: os que não saíram. Nossa história simboliza e representa a exceção ao caso: os que saíram, deixando tudo para trás. “Era uma decisão mais difícil e arriscada que a de fugir do nazismo”, disse meu pai em 23 de fevereiro de 1994, aos 78 anos, num depoimento sobre sua vida ao Arquivo Histórico Judaico Brasileiro. “No nazismo, não havia opção – era fugir ou perecer; no comunismo, havia a
Os dois István: Juhász e Wessel em 2000 na casa dos Juhász. Na parede, o quadro presenteado por minha mãe quando deixou Budapeste em 1956
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Tumulo de Márton Wessel, pai de László
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opção de sobreviver, e manter o mínimo para tanto. Eu preferi deixar para trás a escassez e atravessar um oceano em busca de uma vida melhor. E agora, passados todos estes anos, posso ir para onde quero, sair quando quero, comprar uma passagem de avião, ficar num hotel onde não ousaria nem sequer tomar um café”. Nós nos acostumamos a ouvir meu pai dizer, ironicamente, toda vez que nos deparávamos com a prosperidade e opulência do mundo que escolhemos: “Puxa, igualzinho à Rua Paulai Ede...”. Da Rua Paulai Ede, de Budapeste,
da
Hungria,
enfim, só levamos nossas raízes – de que nos orgulhamos. Até algum tempo atrás, achávamos que nem estava mais lá o túmulo de meu avô paterno, que infelizmente não conheci. Ele havia morrido vinte anos antes do meu nascimento, na década de 1920, quando as pessoas morriam de gripe – a gripe espanhola –, e numa epidemia dessas ele se foi. Vieram
Wessel István os nazistas, os comunistas, as viagens dentro do país se tornaram difíceis e fugimos para o Brasil antes de sabermos o que poderia ter havido com o cemitério de Tata, a cidade de meu pai, de meu avô, e dos avós e bisavós deles. O primeiro a voltar lá fui eu, na viagem que fiz com Sonia, em 1983. Procurei o cemitério – e o encontrei: ainda existia, apesar de quase abandonado. Havia lá uma pessoa que “tomava conta”. Disse-lhe o nome da família que procurava. O homem pesquisou os livros dos anos 20, intactos, encontrou um registro e apontou-me a localização de um túmulo. De coração na mão, fui na direção indicada, caminhando em meio ao mato já crescido que ocultava quase todas as lápides, gastas e inclinadas. Estava lá, inscrito: Wessel Márton, o mesmo nome do mestre-açougueiro que constava na certidão de nascimento de meu pai, emitida em Tata. Toquei o túmulo de meu avô, que eu não conhecera – e que meu pai vira pela última vez quando contava apenas dez anos de idade – e desatei em prantos. Era como tocar o passado do qual havíamos fugido, mas que também havia nos dado tudo: nossa profissão, nossa coragem. Esta é a história desse passado, e de tudo que se passou até aqui.
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Os sons na aula de esgrima
1
C
alculo que fosse lá pelas quatro da tarde. Era outono, dia 23
de outubro de 1956. As tardes já terminavam frias em Budapeste. A Hungria, como toda a Europa Central é muito fria no inverno. Havia poucos automóveis e o barulho mais comum no centro de Budapeste era o de bondes. A troca de trilhos nas curvas e o atrito dos metais provocavam um som típico. Budapeste, embora ainda se ressentisse dos danos da Segunda Grande
Guerra, com muitas das feridas ainda não cicatrizadas, continua va a guardar com justiça sua fama de “pequena Paris”. O apelido fora adquirido no começo do século 20, quando a vida noturna das duas cidades quase se equivalia – e a comida também. A gastronomia húngara sempre foi muito rica, principal mente quando o assunto é sobremesa. Uma briga secular
Minha mãe e eu em 1991, na porta do prédio em que morava
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entre Viena e Budapeste se travava por causa da origem de determinados doces. Difícil dizer qual das mil-folhas era mais perfeitamente leve e quebradiça. Mas não foi só no delicado terreno das mil-folhas que a Hungria causou problemas de diplomacia culinária. Todos imaginam que o croissant tem origem na França, não é verdade? Pois não tem. O croissant nasceu na Hungria, em 1686, quando os turcos foram expulsos de Budapeste depois de 250 anos de domínio. Claro, os turcos não se conformaram e, na calada da noite, cavaram túneis para preparar a invasão e a volta pelo centro da capi-
Minha mãe na tal. Os padeiros, que como tais trabalhavam à noite, percebeDoceira Gerbeaud em 2000 ram o barulho e mobilizaram a resistência da cidade, que aca-
Wessel István bou por expulsar definitivamente os imperiais otomanos. Para celebrar a proeza, a prefeitura encomendou aos padeiros a feitura de um pão que simbolizasse a vitória. E os padeiros fizeram o croissant (o crescente), um pão na forma do ícone mais evidente da bandeira turca. A história não foi inventada na Hungria, ressalte-se: é contada pelos próprios franceses, na Larousse Gastronomique. Enfim, aquela era mais uma das tardes em que as pessoas tomavam café e comiam doces na Gerbeaud, confeitaria fundada em 1858 na Vörösmárty Tér, a praça central mais elegante – até hoje – de Budapeste. Tudo parecia normal, calmo, até estranhamente apático quando cheguei, como em todas as terças-feiras, ao local onde teria minha aula de esgrima. Para minha mãe, línguas, esporte e cultura eram fundamentais. Eu estudava inglês, aprendia esgrima e todos os domingos íamos aos museus. Em Budapeste sempre houve intensa vida cultural, e seus museus de arte e de his tória sempre foram importantes, bem-cuidados e funciona vam normalmente, apesar da permanente vigilância do regi me sobre os alvos da curiosidade dos cidadãos. Com a Ópera, bem no centro da cidade, passava-se o mesmo. Eu jamais me esqueceria da Ópera de Budapeste, e não apenas por meu gosto para com as artes líricas: marcas mais profun das foram deixadas por momentos passados fora do prédio, à porta da Ópera.
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Eu já estava trocado e treinando quando sons altos, constantes e cada vez mais altos, invadiram a sala de esgrima. O som do trilho dos bondes desapareceu e deu lugar a esses, que eram igualmente metálicos, mas de timbre desconhecido para nós, os meninos reunidos na sala. Aos poucos juntavam-se a esses sons os de gritos em uníssono, de multidão. Fomos olhar pela janela – a sala de esgrima ficava num segundo andar – e vimos a Hungria nas ruas. Eram tanques cobertos por dezenas de insurgentes contra o regime comunista, que tratavam de equilibrarse sobre eles. A população lotava a Avenida Andrássi e gritava seu apoio aos rebeldes. A aula de esgrima acabou, a Revolução Húngara acabara de se iniciar. Chegara a esperança de novos tempos, de liberdade de expressão e de possibilidades de uma vida melhor. Faltava tanto de tudo que se chegava a sonhar com “luxos” como a liberdade de ouvir rádio – e de ondas curtas. Nunca me esqueço do grande rádio Phillips, de doze válvulas, que meu pai havia comprado e sabiamente instalado no alto do armário. Eu deveria ter uns seis ou sete anos. Meus pais nunca me diziam para não mexer nas coisas deles, simplesmente tiravam da minha frente tudo aquilo que pudesse estar em risco diante de um menino sempre curioso como eu. Ou que pudesse colocar o menino em risco: tirar o rádio do meu alcance era também um preventivo contra a lavagem cerebral, talvez necessário desde o dia, em 1953, em que eles me pegaram chorando ao pé do rádio. Eu havia acabado de
Wessel István ouvir, disse em resposta à perplexidade deles, “que nosso pai, o camarada Stálin, havia falecido”. O rádio de cima do armário era uma janela, talvez a única, que eles podiam manter aberta para o mundo ocidental. A Voz da América era transmitida a partir de Viena, a meros 250 km de Budapeste, e sua recepção, embora cheia de chiados e sumiços momentâneos, era boa. Ouvir estação de rádio do exterior era o supra-sumo da aventura, da informação, do sonho e do crime. Televisão era coisa do futuro, o rádio era a ponta da tecnologia. Minha mãe ouvia religiosamente – o termo é aqui quase literal – a Voz da América. O programa a ajudava a manter em forma a língua inglesa e saber o que se passava à frente da Cortina de
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Fachada do Mercado Municipal em Pest
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Ferro – no mundo, enfim. Ouvir rádios ocidentais era proibido, e talvez por isso mesmo, ainda melhor. Uma das características marcantes e paradoxais que meu pai manteve em toda sua vida era a de não correr riscos. Marcante porque ele não os admitia: o limite do difícil para ele estava nas situações que ele se sentia em condições de controlar; e paradoxal, porque ele sempre acabou se decidindo por correr e enfrentar os maiores riscos, quando o risco de não corrê-los acabou por parecer-lhe ainda maior. Correr riscos significava se expor ao desconhecido, o que procurava evitar. No caso do rádio, ele temia que a vizinha viesse a nos Detalhes internos do mercado
delatar em troca de alguma vantagem e, em determinado momento, não teve dúvidas: num gesto radical sem nenhu-
Wessel István ma consulta prévia, vendeu o rádio de minha mãe. Queria dormir tranquilo e, admitamos, tinha esse direito. Talvez não tivesse o direito de privar minha mãe, uma jovem de menos de trinta anos, de tudo que mais lhe interessava – o mundo, seu interesse absoluto até os dias de hoje. Nossos professores de esgrima não deixaram que saíssemos do prédio, sabiamente. Os pais aos poucos chegavam para nos buscar, correndo as ruas em meio aos velhos prédios marcados pela Segunda Grande Guerra, que terminara então há pouco mais de dez anos. A lembrança de tanques nas ruas ainda era, para eles, muito próxima. Para nós, que tínhamos todos em torno de nove ou dez anos, era tudo aventura, e medo nenhum. Víamos pelas janelas que as enormes bandei ras húngaras pendentes dos prédios tinham grandes furos no centro, em sinal de protesto: o brasão da República Popular da Hungria fora ferozmente recortado. Minha mãe chegou em poucos minutos e corremos para casa. Por medida de pre caução nos abrigamos no porão do prédio de casa, à Rua Paulai Ede número 21. Logo mais, à noitinha, meu pai chegou em casa, bem e inteiro, e juntou-se a nós.
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Foi a primeira noite de angústia. Os dias e noites seguintes foram de muitos combates entre o exército húngaro e os revolucionários – que venciam, segundo as notícias que a princípio chegavam vagamente até nós, no prédio. Tinham total apoio popular. Eram políticos de direita, de centro e de centro-esquerda, soldados insurgidos e jovens, muitos estudantes de 16 a 18 anos, sonhadores, idealistas, húngaros. A euforia era geral e as conquistas rebeldes passaram a ser divulgadas pela imprensa, que experimentava a liberdade depois de oito anos de censura. Então vieram os soviéticos, e suas colunas de tanques e de infantaria simplesmente passaram por cima da revolução e dos revolucionários. Simples e literalmente, pois milhares de jovens foram, sem clemência, esmagados pelos tanques russos ao tentar o inútil enfrentamento. Muitas foram as execuções sumárias, muitos foram os enforcamentos decididos na hora, inúmeras as delações – mas nenhum arrependimento. Os dias de glória transformaram-se em prédios destruídos, em famí lias despedaçadas e em poças de sangue. Entre nosso susto na aula de esgrima e o fim trágico da revolução passaram-se ape nas sete dias: quatro de sonhos e três de desespero. Foram sete dias igualmente definitivos na vida dos que acabariam por perecer e na daqueles que sobreviveram ao massacre. Tudo mudou em nosso mundo, e as vidas que se perderam não foram em vão – pelo menos para nós, os 100 mil húngaros que
se decidiriam a deixar o país com a derrota da revolução. Em um ambiente de consternação e de profunda frustração, de medo e de decepção, a vida tentava voltar ao normal na cidade e as aulas de esgrima estavam prestes a recomeçar. O país comunista se reorganizava lentamente, num processo que envolvia condenações em julgamentos militares arbitrários e a montagem de um sistema tenebroso de informações e segurança. Paralelamente, uma nova organização se formava: a indústria de emigração. Em poucos dias, multidões fugiam da Hungria através de brechas desguarnecidas na fronteira com a Áustria, em razão da convocação de soldados fronteiriços para lutar nos centros urbanos. Famílias inteiras desapareciam subitamente. Estavam na Áustria, com toda certeza. As decisões eram tomadas com muita rapidez, pois
Salames húngaros mundialmente famosos
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Ilona, minha avó com o János na casa da 23 de maio
era certo que as “brechas” estavam por fechar-se, e logo.
Na página ao lado: minha mãe, o János e eu na frente da casa da 23 de maio
expressa de que eu a recebesse. Mas minha mãe não queria a
Fiquei muito feliz quando “herdei” uma escrivaninha de um colega de escola que fugira com os pais – ele deixara ordem escrivaninha, não queria nada que lá estivesse. Queria a liberdade também, e foi taxativa: “Laci (diminutivo carinhoso de László)”, disse a meu pai, “vamos fugir”. “Imagine!”, meu pai rugia em resposta. “Temos um bebê de quatro meses (meu irmão János) em casa – e mais a sua mãe (minha avó Ilona), com 72 anos!” Minha mãe não se abalou e não quis discussão. Oito anos antes, em 1948, ela já quisera fugir e acabara por aceitar o mesmo argumento de que meu pai agora voltava a lançar mão, o de que seria muito arriscado sair com uma criança de um ano: eu. Ela sentia que essa era a oportunidade, e que não poderia ser desperdiçada. Nossa fuga foi decidida naquele mesmo dia. Bem, resolver era uma coisa – fugir, outra. No mesmo instante, meu pai saiu
Wessel István atrás de meios para nos lançarmos à fuga. Nada me foi escondido: minha relação com meus pais foi sempre de muita confiança e respeito. Eu sabia de todos os planos de fuga e estava consciente do castigo que receberíamos no caso de uma indiscrição de minha parte. Naquela época, e sob aquele regime, era frequente que arrancassem informações de crianças para incriminar seus pais. Sabíamos disso muito bem, tanto eles como eu, e que nada escondêssemos uns dos outros era a prova e a garantia de que vivíamos uma relação sólida e indissolúvel de confiança. Ainda naquela noite, meu pai reuniu-se a minha mãe e a mim para dizer que havia contatado o dono de um caminhão que fazia o traslado de fugitivos até a fronteira; lá, um guia nos levaria à Áustria. O dia marcado era 8 de dezembro de 1956; a hora: dez da manhã; o local: em frente à Ópera.
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O castelo de meu pai
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eu pai cedera à firmeza da decisão de minha mãe, mas
chegar até aquele momento, àquela manhã em frente à Ópera, significava deixar para trás muito mais do que alguns poucos pertences – ele sabia disso então, e soube sempre. László Wessel, meu pai, conheceu só liberdade, aconchego e amor quando era criança e vivia feliz em Tata, a vila em que nasceu, a 70 quilôme tros de Budapeste. Não soube o que era sofrimento ou persegui ção, mesmo tendo nascido numa época de grandes mudanças, em plena Primeira Guerra Mundial, e no centro da grande potência europeia. “Nasci no lugar de Francisco José”, ele dizia, em tom de galhofa. De fato, ele nasceu no dia 22 de novembro
de 1916 – o dia seguinte, exatamente, ao da morte do imperador que mudara o mapa político da Europa Central, Francisco José,
Carteira de açougueiro de László em 1949
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primo e marido da eternizada Sissi, chefe do Império Austro-Húngaro durante 68 anos, no reinado mais longo da história da Europa. A vida em Tata seguiu tranquila, porém, e a de meu pai ainda mais: ele crescia em meio aos mimos de meu avô Márton, de minha avó Berta – Berta Mandel, de solteira – e de meu tio Imre, seu irmão dez anos mais velho. Meu avô lhe dava tudo, fosse o que fosse, o que quisesse. Deu-lhe uma charrete com um cavalo de raça, luxo para poucos nessa época. Levava o menino ao teatro, em Budapeste. Apresentavao aos grandes atores e atrizes da época, que fre quentemente veraneavam em Tata. Berta Mandel, minha avó Na página ao lado: Márton Wessel, meu avô
Tata era seu lugar, assim ele sentia e considerava. As raízes da família estavam lá – e as do ofício também. Lá seu pai tinha o açougue e o pequeno frigorífico que tocava com seu irmão. Lá seu bisavô, meu trisavô, tocava um açougue já em 1830. Lá ele começou a seguir os passos paternos, como depois eu vim a seguir os seus, e meu filho, os meus. Não lhe faltava incentivo para isso. Enquanto trabalhava com o filho maior, meu avô sempre dava espaço no açougue para o caçula. “Meu brinquedo já era carne”, costumava contar meu pai. “Lá no açougue tinha um bal cão baixinho só para mim, e meu pai sempre me dava pedaços de carne para cortar” – normalmente fígado ou pulmão, mais macios
Wessel István para o corte. Quando as freguesas pediam um pouco de carne para o gato ou o cachorro, meu avô Márton lhes dizia para pegar com o László. “Elas não pagavam por isso, claro; era minha brincadeira” – e um treinamento precoce. Em Tata, meu pai aprendeu tudo que viria a aplicar na vida profissional e, apesar de todas as facilidades que conheceu na infância, foi lá também que ele aprendeu cedo que tudo depende de trabalho duro – e de criatividade. Ele sempre contava para nós, seus filhos e seus netos, que muito pequeno seu pai lhe ensinara a manter a carne bem conservada até mesmo durante a primavera: no inverno, ele o pai e o irmão faziam um pequeno iglu – a geladeira de que podiam dispor à época, e aí conservavam a carne por muito tempo. Tata era uma cidade bem pequena, mas não era um fim de mundo – era, e ainda é, linda, e tinha uma vida movimentada, que girava em torno do “castelo do príncipe”. Esse castelo abriga hoje um museu de história antiga e medieval da Hungria, e é o único em todo o país a conservar intacto o fosso defensivo, que circunda sua área ainda cheio de água e que serve, agora, à criação de peixes. Sua construção no século 15, com quatro torres no estilo gótico, foi ordenada pelo Rei Sigismundo; durante a Renascença, o castelo trocou de mãos muitas vezes e passou por
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sucessivas renovações até sua quase total destruição pelos turcos, durante a ocupação otomana. À época em que meu pai nasceu, fora reconstruído em estilo neogótico, no final do século 19, pelo famoso arquiteto Jakob Fellner, contratado da nobre família Esterházy. Os Esterházy pretendiam morar aí, mas acabaram por considerar o castelo inadequado para viver mesmo depois da reforma, e encomendaram a Fellner, então, a construção de um palácio vizinho: acabariam por iniciar, aí, uma série de reformas e construções urbanas, dirigidas por Fellner, que deram a Tata a beleza romântica e incomum que conserva até hoje. Os Esterházy e seus convidados circulavam pela vila como se fosse seu jardim. Frequentavam o teatro, a igreja, e eram clientes do comércio local. Meu avô tinha excelentes relações com “o príncipe”, seu cliente no açougue. Na verdade, ele tinha boas relações com todos na vila. Sua generosidade era reconhecida e não fazia distinções. Em 1919, um ano depois da dissolução do Império Austro-Húngaro, com mudanças de fronteira e o fim da monarquia, o revolucionário Béla Kun instalou um breve e caó tico governo comunista – o segundo da história, depois do sovié tico, do qual recebeu apoio – e baniu do país o culto a qualquer religião. Em Tata, próximo à casa de meu avô, havia uma igreja franciscana, e seus padres viram-se obrigados a fugir. O judeu Márton Wessel os escondeu. A comunidade local era muito unida, aliás, e a família de meu avô, como as de outros tantos judeus que ali viviam, não conhe -
Wessel István cia discriminação. Meu pai foi educado nos princípios do judaís mo, embora tenha seguido pouco a religião. Ia à sinagoga só nas grandes festas, como o Rosh Hashanah (o Ano-Novo judaico) e o Yom Kippur (o Dia do Perdão). E fez seu Bar-mitzvah, a cerimônia da maioridade religiosa, em 1929, aos 13 anos. Comemorou com uma festa sem alegria. Três anos antes, em 1926, meu avô Márton morrera de gripe espanhola. Para meu pai, foi uma espécie de expulsão do paraíso. Minha avó Berta nunca superou a perda e perenizou a tristeza dos filhos. Ela passou a viver em razão da memória do marido, e ia todo dia ao cemitério visitar seu túmulo, o mesmo que vim a conhecer tantos anos depois. Meu tio Imre, então com 20 anos, assumiu a educação do irmão caçula e a direção do açougue do pai. Vivia sob tensão. Preocupava-se com a saúde da mãe, que sofria do coração. Alguns anos mais tarde, minha avó teve de ser internada num sanatório. Morreu oito anos depois de meu avô. Meu pai passou a ajudar meu tio Imre no açougue. Não foram considerados os anos de “treinamento” com as carnes “de brin quedo”. Agora, era dureza: um ano na faxina para aprender que “açougue não tem cheiro ruim e, se cheira mal, de duas uma: ou lá tem carne estragada ou não o limparam direito”. Ele aprendeu logo a fazer a faxina perfeita e passou a aprendiz, estágio em que ficou mais três anos. Aí aprendeu o trato com instrumentos, o afiar correto das facas e os cortes apropriados a cada animal. Em 1933, Tata assistiu a uma prova muito difícil pela qual
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László Wessel, então com 18 anos, se propunha a passar. De um lado estavam os hentes, açougueiros especializados no trato da carne de porco; de outro, os mészaros, profissionais da carne bovina. Perante uma comissão formada por um representante da prefeitura e por dois açougueiros, meu pai tentaria provar que poderia ser um hentes és mészaros, o que lhe garantiria autorização para trabalhar com todas as carnes. O teste era para os fortes. Com suas próprias ferramentas, o rapaz deveria abater um boi, um vitelo e um porco; daí retalhá-los, preparar todos os tipos de frios e embutidos e fazer um teste de atendimento no balcão. O jovem László Wessel foi aprovado com distinção. E foi a última distinção com que Tata o agraciou. A vida faria com que ele deixasse muito cedo a vila onde crescera como a mais feliz das crianças. Recém-casado, meu tio Imre decidiu mudar-se para Budapeste com a mulher, Lili Stromer Wessel. Sugeriu que meu pai o acompanhasse, o que ele só fez depois de dois anos mais, de tocar sozinho o açougue, e de dar uma chance final a Tata. Seguir era preciso, porém, e ele mudou-se para Budapeste. Aí abriu por conta própria uma banca de carnes no mercado central e em meros dois anos, de 1938 a 1940, estava próspero. No meio do caminho, em 1939, prestou outro exame, dessa vez para mestreaçougueiro, e tornou-se, aos 23 anos, o mais jovem mestre-açou gueiro a se diplomar na Hungria! Foi por essa época, quando a Hungria mais lhe parecia ser o país no qual passaria toda a sua vida, que ele ouviu falar pela pri-
Wessel István meira vez no Brasil como opção. Meu pai deixou Tata no quase imediato pré-guerra; da Alemanha, muitos judeus já haviam emi grado. Nada ainda fazia prever o horror dos anos seguintes, mas os parentes de minha tia Lili, em todas as cartas que enviavam a ela e a meu tio, insistiam para que eles saíssem da Europa. Eles tinham saído já no fim dos anos 20, e contavam maravilhas do lugar que haviam escolhido: o Brasil. Nem meu tio Imre, nem minha tia Lili – e muito menos meu pai – se deixaram impressionar pela descrição daquele paraíso tropical. A vida teria sido muito diferente para meu pai se ele tivesse cruzado o Atlântico nessa época, e não vinte anos depois. Mas ele nunca pensou nisso. Primeiro, para ele não valia a pena ficar pensando no “se tivesse sido diferente”. Segundo, era de seu feitio deixar para trás o que ficava para trás. Tata ficara para trás. Meu pai não voltaria para lá antes de 1989 – como prometera, só quando caiu o comunismo – com minha mãe, meu irmão János e minha cunhada Carmen. A casa em que vivera quando criança havia desaparecido, junto a toda a felicidade que um dia conteve. Ele visitou a escola onde estudara e o cemitério que eu “desco brira”. Encerrou o dia de visita à terra natal num restaurante à beira do lago, onde preparavam carpa pescada na hora. Meu pai adorava carpas. E aí guardou na memória a volta ao lugar onde nasceu: sob o sabor das carpas. Tata ficara para trás. Ele estava agora em Budapeste. E, ao que tudo indicava, para sempre.
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C
No front russo
laro, todas as indicações estavam erradas. Da liberdade de
tudo viver na infância, László passou a experimentar as mais tremendas limitações da vida. Sua banca de carnes foi muito bem no mercado central de Budapeste até 1940, mas a cidade – e sua banca, e o país – estavam no caminho do nazismo, que se esten dia para o leste europeu à força da até então invencível blitzkrieg
deflagrada pela Alemanha em guerra. O governo húngaro era relativamente simpático aos alemães e, mesmo confrontado pelos partidos opositores de esquerda, começou por permitir a passagem das tropas nazistas pelo território do país; depois, pres - Matyás Sugar, sionado pela burguesia temerosa do comunismo e pelos partidos de direita, acabou por aderir plenamente ao Eixo e por enviar tropas húngaras para lutar junto aos alemães no front russo.
o tio que nunca conheci, no campo de trabalhos forçados
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Meu pai tinha 1,78 m de altura, um corpo forte que sempre inspirou resistência, e apenas 24 anos. Não escaparia a uma convocação, e não escapou. Vou deixar que ele mesmo conte o que se passou a seguir, reproduzindo o extraordinário depoimento que ele prestou sobre essa parte de sua vida ao Arquivo Judaico: “Em 1940, fui convocado e entrei para o exército húngaro. Por dois anos, estivemos aquartelados em várias regiões da Hungria. Como eu era um precoce mestre-açougueiro, fui encaminhado para a cozinha da escola de cadetes. O cozinheiro era de um hotel de primeira linha de Budapeste, que se formara na Suíça e também havia sido convocado. Nós nos conhecíamos do mercado central. Ele me reconheceu e sabia que eu era competente. Aprendi muito com ele, e ele aprendeu comigo. Como eu não tinha folgas – os judeus não obtinham licença para sair – estava sempre trabalhando na cozinha. Acompanhava tudo o que o cozinheiro fazia e fui aprendendo a preparar comida grã-fina, porque para os cadetes, os futuros oficiais a quem se destinava a comida, tinha de tudo, do bom e do melhor. Tinha cozinheiro só para a carne, confeiteiro, padeiro, e todos profissionais de primeira linha. Em 27 de novembro de 1942, porém, fomos levados como gado para a região do rio Don, na União Soviética. Era uma tropa de 200 homens, dos quais ao final sobrariam seis – eu entre eles. A tropa inicial foi dividida em quatro grupos de 50,
Wessel István que o trem ia deixando pelo caminho. Eu seguia no trem, cozinhando em vagão aberto, onde sempre está a cozinha. Passamos por muitas cidades, Minsk, Briansk e, em Starioskol, ficaram os últimos 50, eu entre eles. Ainda não matavam judeus em campos de concentração na União Soviética, mas havia missões especiais para eles, como explodir minas. E havia o frio. Se não era o fuzilamento, era o ‘acabamento’. Quando desembarcamos em Starioskol, logo quiseram saber se havia um cozinheiro ou açougueiro no grupo. Eu me apresentei. Exigiram que matasse quatro bois para provar que eu era realmente açougueiro. Eu tinha levado minhas facas da Hungria. Matei um boi. ‘Ah, você é açougueiro’, disseram. ‘Não – respondi – sou sapateiro, por isso estou matando um boi’. Eles riram da piada e me mandaram dirigir a cozinha. A profissão me salvou a vida. Cozinhei para os oficiais húngaros de 1942 a 1944. De certa forma, eles me protegiam. A mim e a mais três pessoas. Três músicos. Eu cozinhava para as festas que os músicos entretinham. Em Kiev, certa vez, fizeram uma grande festa, para quarenta pessoas. Eu disse que, para preparar o cardápio que eles queriam, iria precisar de produtos da Hungria. Eles queriam também umas vinte mulheres. ‘Isso não é problema’, eu lhes disse. Eles me arranjaram bebida e cigarros para a negociação. Pegamos um caminhão, fomos à Rua Aurora (conhecida zona de prostituição de São Paulo, N.A.) de Kiev e falamos com umas mocinhas.
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Demos como adiantamento uma garrafa de rum e um pacote de cigarros. Combinamos de pegá-las duas horas mais tarde. Voltamos com um ônibus e lá estavam elas, prontinhas. Eu fiz o jantar. A comida estava muito bem-apresentada, e a festa foi um sucesso. Em janeiro de 1943, os soldados húngaros e alemães começavam a morrer de frio nos campos de batalha soviéticos. Os russos aguentavam, claro. Eu não morri porque os oficiais me davam os mesmos agasalhos que eles usavam, já que eu era o cozinheiro deles. Os húngaros sofriam mais, porque os alemães não confiavam neles, e por uma simples razão: os húnga ros não queriam guerra. Na hora da luta, os alemães os forçavam a seguir na frente. Ainda mais que os húngaros, porém, sofriam mesmo os soldados italianos. Eles haviam saído da Itália em maio de 1942 com uniformes de verão. Em mangas de camisa. E assim chegaram ao inverno russo. Quando a roupa de inverno chegou, ficou estocada por um dia num depósito antes de ser distribuí da. Só que os russos tomaram o depósito antes que as roupas chegassem aos italianos, que tiveram de suportar nas mesmas mangas de camisa uma temperatura de 20 graus abaixo de zero. Eles tratavam de proteger-se com alguns cobertores, mas a maioria deles morreu congelada. As caminhadas eram a parte mais difícil. Andávamos 40 quilômetros num dia. E a cada 20 quilômetros parávamos
Wessel István para descansar. Nessas paradas, quem se sentava, não levantava mais. Se nos sentávamos, começávamos a dormir, e congelávamos. Com os oficiais húngaros andei muito, cheguei até as proximidades da fronteira norte da Hungria. Certo dia, pouco antes do Natal de 1944, um deles veio me avisar: ‘Olha, filho, chegou uma ordem do alto comando. Dentro de 24 horas todos os judeus devem ser fuzilados’. Eu estava condenado à morte. Iria morrer no dia seguinte. Mas nesse dia, que seria o último, o mesmo oficial veio me procurar. ‘Vou mandar você para um campo de concentração’, disse, ‘assim você escapa ao fuzilamento. Vá ao depósito, pegue toucinho e pão. Você tem algum ouro?’, perguntou. ‘Tenho um anel de noivado’, eu disse. ‘Pegue aquela garrafa, faça um buraco na rolha e esconda o anel dentro dela’, ele me disse, ‘porque os alemães vão querer tudo o que você tiver de valioso. Que Deus o abençoe’. Fui transportado à fronteira no Natal. Os alemães nos esperavam, e daí fomos levados para Mauthausen, primeiro. Depois, Minskirchen. Esse não era tão conhecido como Auschwitz, era dos ‘bacanas’. De 17 mil pessoas, ficamos reduzidos a mil e poucas em apenas um mês. Não havia câmara de gás. Nem fuzilamento. Nem frio. Nem nada. Não havia comida. Havia piolhos. E muita gente pegou aquele tipo de tifo, com manchas, do piolho. Mais uma vez, tive sorte. Não gostaram do meu sangue. Eu estava coberto de
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piolhos, como todos, mas sem uma única mordida. Em 5 de maio de 1945 fomos libertados. Os americanos nos levaram um caminhão de chocolates e um caminhão de cigarros. Nos deram comida e levaram os doentes para hospitais. Mas 80% dos doentes não sobreviveram. Apesar das ambulâncias, dos médicos, de todos os cuidados, eles não sobreviveram. Não conseguiam nem abrir a boca. Eu não precisava de nada. Estava bem, apesar dos meus 48 quilos – o normal, para mim, sempre foi 88. Fui levado, com outros que também estavam bem, para um estádio, antes usado Certificado de saúde de meu pai em 21/05/1945
para o treinamento da Juventude Hitlerista, a Hitlerjugend, em alemão. Para lá levaram os judeus, e lá jogaram uns 200 prisio neiros alemães para nos servir. Os americanos, armados, obri-
Wessel István gavam os alemães a limpar banheiros e a fazer todo o serviço. Os judeus apenas recebiam comida. E quem era o chefe da cozinha? Eu, naturalmente. Eu ia à cidadezinha mais próxima, chamada Wells, e lá pedia o que precisava. Os americanos pagavam tudo. Em um mês, as 200 pessoas que estavam nesse estádio estavam recompostas. Havia bastante comida. E remédios, e médicos. Todos esses sobreviventes recuperaram-se nesse estádio antes de voltar para seus países. Até pouco tempo antes, muita gente não sabia de nada do que tinha acontecido nos campos de concentração. Eu tinha alguma ideia porque estava sempre em contato com os oficiais. Mais tarde, vi tudo. E, devo confessar, me sentia feliz. Feliz porque meus pais já tinham morrido e não precisaram passar por aquilo. Feliz porque eu pude enterrá-los. Eu vi in loco tudo o que se mostra nos filmes sobre o Holocausto. E o que vi era mais feio do que nos filmes. Muito mais feio. Depois que recuperei peso fui mandado de volta para a Hungria. Os americanos organizaram tudo. Chegamos a Budapeste e fomos todos para uma sinagoga, onde podíamos procurar informações sobre parentes. Havia listas com endereços e achei o do meu irmão. Mas antes de seguir até a casa dele, fui à da minha noiva, que era a duzentos metros dessa sinagoga. Meu então futuro sogro me recebeu com lágrimas. ‘Sua noiva...’.
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A Grande Sinagoga da Rua Dob Na página ao lado: foto do casamento de meus pais
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Ela fora executada no dia 12 de janeiro de 1945, meses antes do final da guerra. Tinha 19 anos. Fora reconhecida como judia, ao andar na rua, por um grupo de radicais que simples mente executava as pessoas à beira do Danúbio e atirava seus corpos ao rio. Quem levou a notícia à família foi um rapaz que estava com ela e conseguira sobreviver, porque levara apenas um tiro em um braço, atirado ao rio e salvo uns dois quilômetros corrente abaixo”. Arrasado, meu pai despediu-se do ex-futuro sogro e caminhou lentamente em direção à casa de meu tio, não muito longe dali. Queria muitíssimo vê-lo depois de cinco anos sem nenhuma notícia da família, ou mesmo da Hungria. Mas temia outro choque. Ao chegar lá, pensou o pior: Imre estava de cama. Recuperava-se de tifo, que contraíra na Tchecoslováquia. Tinha estado por dois anos no
campo
de
concentração
de
Teresienstadt, e voltara doente. Foi uma “sorte” que caísse nesse campo, todos acharam. “Teresienstadt era o show-room dos alemães”, contava meu pai. “Lá tinha de tudo, até lavanderia, e foi para lá que os alemães levaram a comissão de investigação da Cruz Vermelha Suíça para mostrar ‘como era o lugar onde ficavam, e como eram tra tados os judeus’”. Mesmo com todos os
Wessel István “bons tratos” de Teresienstadt, meu tio voltou para casa, bateu à porta e, ao atendê-la, sua filha Judith, de oito anos, perguntou-lhe candidamente: “O senhor está procurando quem?” Meu tio havia sido levado para o campo de concentração em 1943, apenas dois anos antes. Minha prima não conseguiu reconhecer o pai naquele monte de ossos. Foi nesse exato momento, quando se narrava a história de meu tio ao chegar à porta de casa, que à mesma porta batia o destino. Era o irmão de minha tia Lili que vinha fazer uma visita. Trazia uma amiga. Era Eva Sugar, minha mãe. Ela falava com animação, expressava muita vida, e não parecia deixar que a tragédia pela qual também passara interferisse no seu estado de espírito. Irradiava um otimismo e uma força de caráter que impressionaram imediatamente meu pai. Meses depois, em novembro de 1945, os dois se encontraram na rua. Por um acaso, que meu pai disse depois não ser exatamente acaso. Começaram a se ver, a sair juntos e em apenas seis sema nas estavam casados. A cerimônia civil foi em 28 de fevereiro de 1946. A religiosa, em 3 de março, na enorme sinagoga da Rua Dob, onde todos os parentes de minha mãe haviam se casado. Ela tinha 21 anos de idade; ele, 29.
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A glória de minha mãe
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eu pai e minha mãe poderiam ter-se conhecido
antes, em 1940, no dia em que ele subiu no trem, na estação central de Budapeste, para atender à convocação do exército. Ela estava ali, naquele dia, naquela hora, com os pais, para se despedir de seu único irmão, meu tio Matyás, de 21 anos, que embarcava no mesmo trem e atendia à mesma convocação que meu pai. Só que meu tio nunca mais voltou. Minha mãe ainda se lembra bem do dia gelado em que, por coincidência, partiram o irmão e o futuro e ainda desconhecido marido. Naquela noite igualmente fria, a mãe dela, minha avó Ilona, passou horas vestida apenas de camisola na sacada do apartamento em que moravam. Queria sentir na pele o mesmo frio que, imaginava, o filho estaria sentindo.
Minha mãe, com os pais na sacada do prédio por volta de 1942
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Durante a guerra, vez ou outra aparecia um soldado com uma carta de meu tio para a família. A guerra acabou, e nada mais se soube dele. Meu avô Lipót, pai de minha mãe, iniciou um cal vário em busca do filho. Ia de repartição em repartição atrás de informações. Matyás Sugar, meu tio, no campo de batalha
Escreveu a todas as autoridades possíveis. Nada. Imergiu nessa procura de 1945 a 1949. Morreu nesse ano, abatido pela perda. No exato momento em que seu pai morreu, minha mãe pensou pela primeira vez em sair da Hungria e tentar a vida em algum outro lugar. Dois primos haviam decidido partir para a Austrália. Ela nunca se esqueceu de como recebeu a notícia; um dos primos chegou certa noite em sua casa e lhe disse baixinho: “Amanhã vamos embora”. Ao seu ouvido, eram palavras mágicas, que animavam seu espírito inquieto e cheio de iniciativa que mais tarde haveriam de fascinar meu pai. Esse tinha sido o seu jeito desde pequena – tranquilo, animado e feliz. Ela nascera no dia 15 de abril de 1924 – neste 2004, completou 80 anos muito tranquilos, ani mados e felizes – e, como meu pai, era a caçula, era coberta de carinho por meus avós e tinha no único irmão, também mais
Wessel István velho – em cinco anos –, um bom companheiro de brincadeiras. A família de minha mãe vivia em Budapeste e tinha boa situação financeira, como a de meu pai. E, como aconteceu com ele, o próspero mundo familiar ao redor de minha mãe ruiu quando ela ainda era criança. Seu pai, meu avô Lipót, tinha uma loja de moda e roupas no bairro mais sofisticado de Budapeste, em sociedade com um cunhado, irmão de minha avó Ilona. Como se vê acontecer em tantas famílias, esse meu tio-avô era um sócio, um parente e tinha um vício: as corridas de cavalos. Ele viria a perder vultosas quantias em apostas e, quando a situação chegou ao limite, meu avô gastou tudo o que tinha para pagar as dívidas do cunhado. A família conseguiu reestruturar-se graças à força de minha avó que, por outra dessas raras coincidências que marcaram as vidas de meus pais, abriu uma banca de venda de aves numa feira de Budapeste. Sua família trabalhava no ramo, e ela sentiu que poderia tocar um tal negócio. Meu avô abatera-se demais com a situação para poder ajudar, e foi minha mãe que a assistiu tanto na banca como no trabalho de casa. Minha avó tomou a dianteira do negócio e descobriu-se uma comerciante nata. A família logo pôde ver resultados concretos desse dom: minha avó acabou abrindo uma avícola. Em meio a esses esforços e iniciativas, minha mãe crescia de bem com a vida. Ela se lembra desse período até com entusiasmo. Todos trabalhavam muito, mas ela não deixou de ver os
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amigos aos domingos – nem de nadar – e apoiava-se em uma grande lição que aprenderia à época para jamais esquecer: nunca se deve ter vergonha de trabalhar. Ela teria tudo se confiasse no poder contido nessa lição, e sabia disso. Havia ainda uma vantagem: de parte a parte, seu ambiente familiar cultivava a educação e a cultura. Minha mãe cursou o primário em uma escola judaica – as famílias dos meus avós maternos eram muito religiosas, principalmente a de minha avó Ilona, os Szemzo. Depois, passou a uma escola escocesa, em que todos os professores falavam em inglês. Aí ela aprendeu a língua que lhe seria tão útil mais tarde para a sobrevivência. Aí, em excursões às montanhas, promovidas frequentemente pela escola, minha mãe descobriu sua paixão pelas caminhadas rumo aos picos. Chegar ao topo depois do esforço da subida era uma sensação inigualável, que jamais esqueceria. Enquanto minha mãe era criada no binômio trabalho-estudo, meu tio Matyás concentrava-se apenas em estudar: todo o investimento familiar dedicado a ele fora aplicado em sua educação. Ele pôde até se formar, o que era pouco comum à época, o que lhe valeu um bom emprego, logo depois, como secretário bilíngue na multinacional Lever. Meu tio não era religioso como os parentes de minha avó. Um tio dele, por exemplo, colocava os tfilim, os filactérios, nos braços e na cabeça todos os dias para as orações – só os judeus praticantes o fazem. Na segunda metade dos anos 30, meu tio
Wessel István começou a perceber que, onde estava e sob aquele mando, pouco importava ser judeu praticante ou não. Para os governantes húngaros, que tanto simpatizavam com os nazistas, importava ser judeu. Determinou-se que os judeus não poderiam trabalhar em certos setores ou exercer determinadas profissões. Meu tio teve de deixar a Lever. Passou a vender ovos. Para o antissemitismo nazista, nenhum detalhe era relevante: um judeu era um judeu. Poucas comunidades judaicas se identificavam tanto com o país em que se fixaram ou haviam logrado incorporar-se e integrar-se tão bem como a húngara – a alemã, talvez. Muitas famílias haviam mudado o nome anos antes para que soasse mais húngaro. Os Sugar, por exemplo, haviam sido Schwarz, nome de raiz alemã muito comum entre judeus na Europa Central. Nem todos os parentes de meu avô adotaram o Sugar, alguns mantiveram o Schwarz, mas na família de minha avó, justamente a mais religiosa, a mudança foi coletiva. Minha avó Ilona e todos os seus 13 irmãos fizeram a troca ao mesmo tempo. De Stern, nome de origem alemã também comum na região, passaram ao totalmente húngaro Szemzo. Ainda que alterar o nome de família fosse quase mais que uma declaração de nacionalidade, para os nazistas de nada valia um sobrenome. Logo começaram a surgir as notícias sobre os campos de concentração e sobre os grandes deslocamentos forçados de judeus – a princípio, no interior da Hungria. Nas
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pequenas vilas era mais fácil identificar os judeus, pois todos se conheciam. Eram notícias assustadoras, mas não o bastante. Na capital, e mesmo no interior, judeus e não judeus imaginavam que se tratasse de campos de trabalho, e que os deslocamentos eram feitos em prol de “esforços construtivos”. Minha mãe conta a história de familiares do interior que foram despachados em vagões de carga e que, pouco depois de o trem sair, jogaram um bilhete da minúscula e única janela do vagão em que estavam. O bilhete foi recolhido por alguém e chegou até as mãos de minha mãe e meus avós. Dizia-se aí que eles estavam de viagem para um lugar chamado Auschwitz, onde teriam trabalho a fazer. A perseguição acabou por chegar a Budapeste, e os judeus mais conhecidos e reconhecidos da cidade estavam entre os que tinham fortuna e os artistas. Esses foram os primeiros a cair. O medo tornou-se terror; os jovens homens judeus eram convocados para o exército, e todos os demais integrantes da comunidade ficavam sujeitos à deportação para os campos ou às ações violentas na própria cidade, que chegavam a lincha mentos e execuções sumárias. Em Budapeste, o terror era acrescido da ação daqueles grupos que executaram a noiva de meu pai, jovens radicais organizados em grupos que tocaiavam e pegavam de surpresa os judeus que reconhecessem na rua e os executavam à beira do Danúbio. Os corpos eram atirados ao rio, levados pela correnteza e nunca mais encontra -
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dos. Os massacres começaram em 1939 e foram constantes até os últimos dias da guerra. No dia 19 de março de 1944 as tropas alemãs ocuparam a Hungria e a perseguição passou a ser mais organizada – e mais abrangente: nesse último ano da guerra, 440 mil judeus húngaros seriam mortos. Com a ajuda dos civis radicais, os alemães confinaram todos os judeus da capital em espaços predeterminados. O prédio em que morava minha mãe foi destinado apenas a judeus, expulsos de suas casas em outros bairros – ela e meus avós, pelo menos, não tiveram de mudar. Com eles foi morar outra família, contudo, um casal com três filhos, deslocados de uma área “não-judaica”. Foi um aperto, mas minha mãe só tem boas memórias do período: as famílias se deram muito bem e a filha adolescente do casal agregado tornouse amiga de minha mãe de toda a vida. Ibolya – esse era o seu nome – iria ainda protagonizar com ela o episódio mais dramá tico, na verdade milagroso, que minha mãe viveu durante a guerra, o de sua quase deportação para um campo de concentração. Aconteceu em seguida, e vou deixar que minha mãe conte: “No dia 15 de outubro de 1944, os alemães foram à nossa casa. Estavam convocando todas as pessoas entre 16 e 40 anos
Ibolya e Sonia, minha esposa, em frente à casa de Ibolya
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a comparecer no dia seguinte a um certo local, um estádio de futebol. Em casa, éramos duas a calhar com idades nesse âmbito, minha amiga Ibolya e eu. Disseram que estavam arregimentando pessoas em condições de fazer algum trabalho braçal. Arrumamos as nossas coisas, nos despedimos de nossos pais e, no dia seguinte, fomos para esse campo de futebol. Éramos muitos lá, centenas. Encontramos lá a Olga, que era noiva de meu irmão Matyás. À noite, nos levaram para dormir em uma olaria. Ficamos muito assustados, já ouvíramos falar em fornos crematórios. No dia seguinte, encontrei entre aquelas pessoas outra amiga minha, a Sári, e morri de rir, acho que de nervoso, ou de surpresa, não sei. Ela me olhou muito séria e me perguntou: ‘Do que é que você está rindo? Você está na mesmíssima situação que eu!’. Daí ficaríamos juntas, Ibolya, Olga, Sári e eu durante todo o tempo em que durou esse episódio. Nessa manhã nos dividiram em grupos e nos enviaram, a pé, a um vilarejo não muito distante de Budapeste. Aí fica mos durante uma semana, cavando trincheiras. Um dia nos disseram: “Vamos voltar para casa! Esta noite mesmo vocês vão ver as luzes de Budapeste”. Ficamos mais desconfiados que contentes. E com razão, porque de fato eles nos organizaram novamente em grupos para seguirmos, e o caminho que pegamos era inverso ao de casa. Caminhávamos em direção à fronteira austríaca, de onde, logo soubemos,
Wessel István seríamos deportados para algum campo de concentração. Era caminhada o dia inteiro, de quinze a vinte quilômetros, e dormíamos ao relento. Eu me lembrava das caminhadas montanha acima com os colegas de escola e pensava que quando chegasse lá no alto estaria bem. Fome, cansaço e dor até que não incomodavam, mas eu pensava muito em meus pais e ficava preocupada. Estariam bem? Minha mãe sempre me dizia: “Quem ganha tempo, ganha vida”. E, não sei por que, talvez porque pensasse tanto em meus pais, nesses dias essas palavras não saíam da minha cabeça. A fronteira estava a uns 120 quilômetros. Éramos vários grupos, que acabaram por se distanciar entre si – uns tinham mais maletas, outros tinham pessoas mais velhas; o meu era o primeiro, o que ia à frente. Eu não tentei fugir, não deixei de caminhar, mas resolvi me atrasar, seguir com algum dos grupos que estavam atrás. Então eu e minhas amigas saímos do nosso grupo e nos escondemos em uma casa perto da estrada, onde nos deram de comer. Ficamos aí um dia inteiro. No dia seguinte nos juntamos ao grupo que caminhava com bom atraso em relação ao nosso. Acabamos por chegar à fronteira sete dias mais tarde do que chegaríamos se estivéssemos naquele grupo inicial – os que estavam ali chegaram em dez dias, nós em 17. Pode parecer que esse atraso não faria nenhuma diferença – afinal, de todo modo, nós estávamos lá no local de deportação –, mas fez toda, e salvou nossas vidas. Quando nós chegamos ao
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posto de fronteira, havia um adido da Suécia, um da Suíça e outro de Portugal procurando cidadãos de seus países entre aqueles grupos de deportados. Eles tinham chegado um dia antes e partiriam um dia depois. Um guarda gritou para nós: ‘Quem tem passaporte sueco, fique aqui, atrás deste homem; quem tem passaporte português, fique aqui, atrás deste; quem tem passaporte suíço, atrás deste’. Algumas pessoas se adiantaram, de passaporte na mão, mas eu percebi que ninguém os conferia, ninguém checava. Eu disse então para as minhas amigas: ‘Vamos lá para trás do sueco’. Gritei: ‘Nós temos, está aqui, está aqui!’. Os adidos sabiam que nós não tínhamos passaporte algum, nada – e nunca nos pediram para ver o que jamais poderíamos ter mostrado a eles”. O sueco colocaria minha mãe, as amigas e mais todos aqueles que mentiram por suas vidas em um vagão de carga em direção a Budapeste. Iam ensanduichados, e com as seguintes recomendações: quando o trem parar nas estações antes da final, não dêem um pio; não comam, não bebam, não se mexam; não deem um pio! Ninguém pode perceber que vocês estão aí den tro. E nem um pio!’. Desembarcaram em Budapeste à noite, ainda auxiliados por funcionários diplomáticos suecos e levados para o prédio da embaixada sueca. Lá passaram o restante da noite e, no dia seguinte, voltaram para suas casas. As preocupações de minha mãe com meus avós durante todo o período de sua peregrinação até a fronteira eram
Wessel István infundadas: eles estavam bem e, quando chegou em casa, atiraram-se sobre ela aos abraços. Quando se afastaram, seus olhos recaíram como se atraídos por um ímã sobre os pés de minha mãe. Os olhares dos três fixaram-se nos sapatos que ela usava e, depois de um hiato longo e involuntário de silêncio, os três caíram na gargalhada. Minha mãe saíra de casa com sapatos muito frágeis para enfrentar a lama da Hungria naquela época do ano. Antes de chegar ao vilarejo em que cavaria as trincheiras, os sapatos já tinham perdido as solas. Ela pisava na lama, as solas grudavam e pá!, uma hora ela se viu só com a parte de cima do pé esquerdo; andou pouco mais e pá!, noutra hora só tinha a parte de cima do pé direito: as solas ficaram presas no barro. Ela jogou fora o que restara dos sapatos e passou a andar descalça, os pés congelando no chão frio. Ao chegar à vila, os guardas que acompanhavam os retirantes perceberam-na descalça e lhe indicaram uma construção em cujo interior minha mãe encontrou uma pilha enorme de sapatos usados – todos de homem, pesadões e de números muito maiores que o dela. Ela escolheu o par que lhe pareceu mais adequado e o usou durante quase um mês por todo o percurso de 120 quilômetros até a fronteira. Quando voltou para casa, continuava calçando os mesmos sapatos. E os três, meus avós e minha mãe, ainda acharam graça.
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Stálin dá uma mãozinha
uando minha mãe voltou de sua dramática aventura de
guerra, meus avós já estavam de malas prontas para sair de casa: uma nova lei determinava que a área dos judeus seria uma só: o gueto. Minha mãe seguiu com eles. A escola primária em que havia estudado estava no perímetro do gueto e fora transforma da em hospital. Durante todo o tempo que passou aí, confina da, ela prestou serviços ao hospital. Sua volta da fronteira, a par tida para o gueto, tudo acontecera em dezembro, pouco antes do Natal; em janeiro, os russos chegaram, desfizeram o gueto, meus avós e minha mãe retornaram ao seu antigo apartamento e retomaram suas vidas. Da família, muitos haviam morrido nos campos de concentração; outros estavam prestes a partir para bem longe. Meu tio não voltaria. Em breve, restaria muito
Minha mãe e eu em 1955
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pouco dos Sugar na Hungria, e minha mãe começaria a ficar, ela também, muito ansiosa por partir. Nos primeiros anos depois da guerra, muita gente esperava que as coisas melhorassem. Em 1948, o Partido Comunista tomou o poder na Hungria e, no ano seguinte, declarou-se a República Popular Húngara. Os russos começavam a investir pesado na reorganização do país, agora sob seu completo domínio, e a esperança de justiça social mobilizava muita gente. Prometeu-se muito. Prometeu-se que não haveria mais religião e, portanto, não haveria mais perseguição religiosa. Muitos judeus não acreditaram nisso e decidiram logo sair do país – ou não voltar para lá. Foi a segunda leva de emigrantes judeus; a primeira se dera nos anos 30, quando Hitler começou a ganhar força na Alemanha. Os sionistas partiram para a terra que logo seria o Estado de Israel, criado em 15 de maio de 1948, e muitos foram para os Estados Unidos e para outros países distantes, como o Brasil e a Austrália. Eu havia nascido em 1947, minha avó Ilona fora morar conosco depois da morte de meu avô, e meu pai dizia com toda a franqueza que tinha medo de sair do país. Era sua única razão para ficar. Ele e minha mãe não tinham ilusões quanto ao novo regime e confiavam apenas na própria capacidade de lutar pela vida e seguir em frente. Logo depois que se casaram, meu pai abriu um novo açougue. “Se eu abrisse uma casa de joias, ganharia muito mais, à época – mas eu não entendia do negó -
Wessel István cio”, brincava. Mesmo assim, ele conseguiu ganhar o suficiente para o sustento da família, e ainda economizar. A liberalidade econômica tão arraigada entre os húngaros, porém, definitivamente não estava nos planos dos poderosos soviéticos. Cada vez mais, a Hungria era forçada a se adaptar aos padrões estatizantes do sistema soviético e, em 1950, toda a propriedade privada foi confiscada e estatizada. Meu pai perdeu sua loja e foi trabalhar como empregado em outro açougue: “Eu passei a trabalhar no açougue de alguém de quem o tinham tomado e, no meu, um outro foi trabalhar”, contava. O que ganhava equivalia em poder de compra a um salário mínimo brasileiro, hoje. Simplesmente não dava para sustentar a família, mesmo com o salário de minha mãe, que trabalhava numa mercearia do governo. Vivemos até 1956 recorrendo ao que meu pai havia economizado de 1946 a 1950. Pelo menos uma despesa não havia: aluguel. Recém-casados, meus pais foram morar num apartamento semidestruído durante a guerra – o da famosa Rua Paulai Ede, 21. Eles o reformaram, consertaram tudo, e tiveram do governo vinte anos de isenção de aluguel. O apartamento até que ficou bonitinho, embora o prédio não estivesse propriamente arrumado. O elevador não funcionava. A máquina fora atingida por uma bomba que não explodiu. Anos depois retiraram a bomba, mas nunca chegaram a reparar o elevador. Foi a queda sem explosão dessa mesma bomba que destruiu parcialmente nosso apartamento, o que motivou a reforma feita às expensas
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de meus pais e a isenção, por tantos anos, do aluguel. Tínhamos a bomba em boa conta, e não reclamávamos do estrago que fizera no elevador – ainda que morando no quarto andar. Nunca nos queixávamos de ter de subir e descer escadas, nem mesmo nos momentos em que era preciso pegar a pouca lenha que havia no porão para o aquecimento. Foi uma época difícil, de escassez e luta pela sobrevivência. Era preciso ser criativo. Meu pai percebeu, por exemplo, que não se mediam os estrados de madeira usados no chão do açougue onde passara a trabalhar. Os fiscais do governo – presença constante em todos os lugares – apenas contavam o número de estrados. Ele então serrava uns dez centímetros de cada e, pedacinho por pedacinho, levava para casa para usar como aquecimento durante o inverno. Nada disso abalava o caráter de meus pais; eles tinham um ao outro, e mantinham a disposição de seguir adiante. Meu pai de algum modo continuava a trabalhar no que gostava e sabia fazer. E, nos fins de semana, reunia-se com os amigos para jogar bara lho. Minha mãe aproveitava as folgas para passear comigo. Nossos locais de passeio preferidos eram os museus, onde pas sávamos horas apreciando todas as formas de arte. Nossa forte ligação foi reforçada nesses passeios, e o prazer da fruição esté tica que sempre me acompanhou certamente nasceu aí. Mesmo durante sua segunda gravidez, minha mãe continuava a me levar em passeios, às vezes aos arredores de Budapeste. Eu me lem -
Wessel István bro, e ela também, que, mesmo grávida, desceu uma montanha em trenó comigo. No dia 30 de julho de 1956, meu irmão János nasceu. Minha mãe ainda amamentava seu bebê quando a revolução estourou, em 23 de outubro, para ser debelada apenas sete dias depois. E nada, nem a condição de mãe de recém-nascido, nem o estado caótico e perigoso das coisas, a abalava na decisão que então tomou conta de todas as suas ações. Sua certeza quanto à necessidade da fuga já era bem maior que o temor de meu pai de levar adiante a ideia, mesmo com dois filhos pequenos – um de colo – mais a sogra, sobrevivente da tragédia de perder marido e filho. De alguma forma, foi um de seus filhos pequenos – eu –, que paradoxalmente acabou fazendo meu pai pender para a opinião de minha mãe. Eu era um menino aplicado, um devoto das artes, um filho e um amigo, mas... lembram-se do episódio do rádio? Quando meu pai me flagrou em prantos ao lado do aparelho, dizendo, com a voz embargada pela emoção: “Nosso pai Stálin faleceu!”, ele parece ter-se dado conta de que o pai ali era ele, e que ele não estava disposto a ceder seus inalienáveis direitos de paternidade àqueles encolhedores de cabeça. Minha mãe tinha razão. E agora, naquela manhã de 8 de dezembro de 1956, estávamos nós dois, pai e filho, minha mãe e seu bebê de colo, e ainda minha avó, meus tios e minha prima, todos em frente à Ópera prestes a subir em um caminhão e fugir rumo a um novo mundo.
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Fantasia operática e fuga
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u ansiava pela grande aventura. Fugir, por mais angustiante
que fosse para meus pais, para qualquer adulto, era só isso para mim: uma grande aventura. Eu tinha 9 anos. Minha avó Ilona, 72. Meu pai acabara de completar 40. Minha mãe, 32. E János, imagine, 4 meses. Morávamos a umas duas ou três quadras da Ópera e o caminho até lá era meu velho conhecido. Esse era o trajeto de meus mais frequentes passeios. Íamos até lá pelo Körút, a avenida circular, quase todos os domingos, eu sempre no meio de meus pais e de mãos dadas com os dois. Nesse dia, o passeio foi ligeiramente diferente. O cenário não mudara. As árvores estavam secas como em todos os dezembros, e o vento frio que passava entre os prédios de não mais que seis andares parecia tornar suas paredes ainda mais
Primeira foto do János, meu irmão, no jornal, aos 6 meses chegando ao Brasil
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cinzentas. Os edifícios do Körút eram em estilo francês, para fazer jus à “Pequena Paris” em que Budapeste se tornara no início do século. Uma das diferenças mais evidentes então entre Budapeste e a verdadeira Paris era que, em 1956, mais de dez anos depois do fim da guerra, Paris estava totalmente restaurada; Budapeste nem tinha sido reconstruída por completo, e a revolução voltara a destruí-la parcialmente. Dessa vez, eu não faria o trajeto entre meus pais. Meu pai saiu na frente carregando pesada mochila e, alguns minutos depois, saímos minha mãe, com János no colo, minha avó e eu. Quando chegamos à Ópera meu pai já conversava com o motorista do velho caminhão russo que aguardava a carga combinada: nós. Chegaram depois meu tio Imre com tia Lili e minha prima Judith. Mais alguns desconhecidos, e a carga estava completa. A viagem fora contratada para nos levar até perto da fronteira da Áustria, onde seríamos entregues a um guia especial que nos faria chegar à fronteira. Estava prevista para sair às 10 da manhã e atrasou um pouco; às 11 já chacoalhávamos na traseira do caminhão russo. Íamos todos, menos meu pai, na carroceria coberta com lona. Meu pai subira à cabine e seguia ao lado do motorista. Dava para cortarmos com uma faca os sentimentos de desconforto, de incertezas e, a princípio, de muito medo. Foram longas horas de viagem, porém, e o medo se dissipou em algum tédio. Percorrer os mais ou menos 150 quilômetros até a frontei -
Wessel István ra levou toda a tarde. Foi proposital, pois a viagem a pé deveria ser iniciada ao anoitecer, entre cinco e meia e seis horas da tarde – nessa época do ano, noite fechada. A cada parada do caminhão correspondia uma quase parada cardíaca em todos nós: lá atrás ninguém podia avaliar o que acontecia. Fora isso, pode-se dizer que o trajeto até a cidade de Mosonmagyarovár foi tranquila. Chegamos, conforme planejado, às cinco e meia, e a verdadeira aventura que mudaria o rumo de nossas vidas estava só então prestes a começar. Era inverno, e a temperatura nessa hora já beirava zero grau. O guia especial nos aguardava, e foram feitos os acertos financeiros, algo em torno dos US$ 400 ou 500, talvez uma vigésimaquinta parte do que seria o correspondente a esse valor em 2004. Os últimos preparativos eram comer, ir ao banheiro e aga salhar-nos bem. Meu pai deixou preparada uma garrafa de rum que poderia ser usada tanto para aquecer-nos como para um eventual suborno, caso fôssemos pegos pelos guardas da frontei ra. János recebeu uma vasta mamadeira, sua fralda de algodão foi trocada e a suja jogada no lixo, com dor no coração: era novinha. Por recomendação do dr. Lakos, um grande amigo de meus pais que fugira com a família uma semana antes – e já estava em Viena –, minha mãe ministrou um calmante a János, para que não acordasse e não chorasse durante o percurso. Feitos os preparativos, todos a postos. Em minutos, parti mos para uma noite de caminhada. O trajeto escolhido era
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perfeito e levava a uma região de fronteira desguarnecida – lembre-se que a guarda fronteiriça, como todo o efetivo do exército, havia sido deslocada para os centros urbanos e trabalhava, nesse momento, na reorga Festival gastronômico de Tata, Hungria em 1934. No centro, de óculos, meu pai, László
nização das cidades e no enforcamento sumário dos líderes da revolução. O arame farpado da fronteira estaria devidamente secionado e a trilha oculta entre os milharais secos da região. Naquela noite fria e enluarada de dezembro, os altos pés de milho não deixariam que ninguém nos visse durante a travessia. Meu pai carregava a enorme mochila com nossas roupas e seguia à frente do grupo, com o guia. Logo atrás, minha tia Lili e sua filha Judith. Meu tio Imre e minha mãe seguravam as alças da cesta onde meu irmão dormia tranquilamente. Em seguida, minha avó e eu. Minha avó era uma mulher razoavelmente gorda, mas muito disposta, e não podia, e não queria, nos decepcionar. Na decisão da fuga, avaliando as duras condições que enfrentaría mos, ela chegou a pedir que fôssemos sem ela. Meu pai foi taxativo: “Então ficamos todos” – e, olhando bravo para minha
Wessel István mãe: “Entendeu, Eva?!”. Bem, se havia algo que minha avó Ilona não queria era atrapalhar os planos de fuga, e diante da firmeza de meu pai, ela parou com a história de ficar. Decisão que a fez ainda mais forte e mais motivada. A cada passagem por um riacho, fazíamos uma parada para descanso. Nessas travessias, meu pai tirava sapato e meia e transportava cada um dos membros da família. Pisar em água quase congelada não era novidade para ele. No “passeio” que fizera à Rússia, durante a guerra, seus pés se “acostumaram” a esse tipo de desconforto. O dedo grande do pé direito, aliás, fora congelado e, em função disso, todo o pé perdera parcialmente a sensibilidade. Completadas as travessias, parávamos para descanso. Foi em uma dessa paradas que tivemos a grande perda da viagem. Meu tio Imre, carregava com uma das mãos o moisés do meu irmão e, com a outra, uma sacola cheia de fotos da família, tiradas nos 50 anos passados. Ao levantar-se para prosseguir viagem, ele pegou na alça da cesta de vime de meu irmão e a sacola cheia de fotos acabou ficando no chão, envolvida na penumbra da madrugada. Só duas fotos não foram colocadas nessa sacola, as que meu pai não arriscaria perder: a foto do Festival Gastronômico de Tata de 1934 – um ano depois que ele se tornara um hentes és mészaros – e a foto do casamento de seus pais, de 1900. Ele as guardaria com muito cuidado por toda a vida, nos quarenta anos que se seguiram.
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E estão reproduzidas neste livro, no portfólio inicial. Depois de mais algumas paradas, nosso guia desejou boa sorte e se despediu. “Sigam em frente”, apontou. “Lá está a Áustria”. Mais alguns riachos, mais algumas paradas e nada de Áustria. Já passava das duas da madrugada. Todos estavam cansados e muito apreensivos. Logo o János precisaria mamar, sua fralda já estava molhada, e com o frio da madrugada, abaixo de zero a estas horas, ele poderia ficar doente. Meu irmão já tinha dado muitos sustos em sua breve existência. Nascera prematuro, de oito meses, quase asfixiado pelo cordão umbilical, e só chegou em casa, recuperado, depois de completar 30 dias de vida. Enquanto meu pai refletia sobre nosso futuro, olhou ao redor e percebeu algo de novo, que nunca vira. Montes de feno empilhado em formato totalmente estranho. Consultou o irmão, a sogra, os dois do campo, e concordaram: muito pro vavelmente já teríamos passado a fronteira. Um pouco adiante divisou-se ao longe uma luz muito fraca e meu pai anunciou: “Vamos entrar naquela casa, seja dos guardas da fronteira, seja de alguma família austríaca. Vou preparar a garrafa de rum caso tenhamos a má sorte de encontrar soldados húngaros”. Com a aproximação, a luz ficava mais intensa e nossos cora ções batiam com maior intensidade. Era a luz de uma casa aus tríaca preparada para receber refugiados.
Wessel István Entramos e nos confraternizamos. De repente todos, de pura excitação, estavam novamente descansados. A casa era de uma propriedade rural cujos moradores estavam acostumados a receber “visitas” desde que os fugitivos da Hungria começaram a aparecer, então há aproximadamente trinta dias. Eles telefonaram para uma localidade próxima de onde, em pouco tempo, surgiu um trator arrastando uma grande carreta. Subimos com nossa bagagem e fomos em frente. Pouco mais de meia hora depois estávamos em Andau, pequena cidade fronteiriça preparada pela Cruz Vermelha Internacional para receber e tratar dos refugiados. O destino era um pequeno ginásio de esportes recheado de refugiados que se acomodavam como podiam no chão da quadra esportiva. As mães com crianças pequenas foram separadas para eventual tratamento, troca de fraldas dos bebês, administração de leite, chocolate e tudo o mais que precisassem. Mais fugitivos chegavam a cada instante. Procuramos um espaço e nos acomodamos no chão como foi possível. Meu pai, sempre previdente e cuidadoso, vendo a quantidade de pessoas que andavam quase pisando umas nas outras, instalou-me embaixo de uma mesa: “Aqui ninguém vai pisar em você”, ele me disse. Era apenas o mais simples dos gestos do pai mais atencioso que poderia haver, mas não consigo me lembrar do episódio sem que me sufoque um nó na garganta.
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Nosso Grande Hotel Sacher
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inda aí, no ginásio, demo-nos conta de que o timing de
minha mãe, que já salvara sua vida e a de suas amigas na mesma fronteira da Hungria com a Áustria no fim da guerra, fora novamente perfeito e nos safara do pior em nossa fuga. Soubemos que a Ibi – como chamávamos Ibolya, a amiga da “deportação” – tentara fugir com o marido uma semana depois de nós, no mesmo caminhão em que nós havíamos sido transportados, usando exatamente as mesmas vias – e fora interceptada pelas autoridades húngaras. Faltou-lhes, precisamente, timing: a fronteira já estava guarnecida pelos soldados que voltavam do front revolucioná rio urbano, e eles foram pegos tentando atravessá-la. Ibi ficaria traumatizada com a experiência e nunca mais
Foto do Provence, navio que nos trouxe ao Brasil
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tentaria sair da Hungria, onde ficou até a morte, em 2002. No Brasil, nós permaneceríamos sempre em contato com ela. Meus pais compravam daqui e lhe enviavam os supérfluos que ela não podia comprar na Hungria, mandavam o dinheiro de que ela precisava para consertar o banheiro de casa, e chegaram a trazê-la em visita ao Brasil. As outras duas amigas das “semanas da deportação” também tiveram destinos diversos: Olga emigrou para Israel, e Sári, para os Estados Unidos. Mas nós tivemos toda a sorte do mundo e, passados os percalços, tomadas as primeiras precauções, começávamos o futuro, ainda que se divisasse de forma um tanto nebulosa. Na manhã seguinte, deixamos o ginásio e fomos transferidos para uma casa com muitos beliches. Daí, colocados em um ônibus e levados a Viena. Fomos instalados em um pequeno hotel, pertinho do centro da cidade. Pequeno perto dos de hoje, mas naquele 9 de dezembro de 1956 parecia maior e melhor que o lendário Hotel Sacher, na mesma Viena onde estávamos, aquele que tornou o Sacher Torte famoso no mundo inteiro. É bem ver dade que o banheiro era no corredor, mas em cada quarto havia uma pia onde podíamos escovar dentes, lavar as mãos e até comer alguma coisa. Logo no primeiro dia, recebemos da
HIAS
(Hebrew
Immigrants Aid Service, Agência Judaica de Ajuda a Refugia-
Wessel István dos) tíquetes para alimentação e transporte, além de completa assistência médica – que incluía óculos novos para quem necessitasse. Vivemos como reis em Viena. Meus pais me levaram a passear, conhecer e mostrar a cidade. A sensação era única, irrepartível e não se repetiria. Estaria sonhando? Apenas dois meses antes, meu pai tinha de “roubar” pedaços do estrado de madeira do açougue que dirigia para garantir algum aquecimento no frio inverno que se aproximava. Certo dia, sumi. Saí para dar um passeio e conhecer a cidade. Escolhi alguns quarteirões e vaguei por ali. Inglês eu já falava, pensei. Começara a aprender a língua inglesa aos sete anos e do alto de “minha vasta bagagem cultural” abordei um guarda de trânsito para fazer alguns comentários. O assunto era da maior importância, queria lhe dizer que lindo estava o dia, e que maravilha poder conversar com um guarda sem ter medo dele, que sensação nova era aquela em minha vida... Depois de uma hora talvez, voltei ao nosso “Sacher”. Meus pais estavam descabelados, em desespero com meu sumiço. Teria cabimento? Bem, mas não estávamos em Viena a passeio. Meus pais tinham de pôr mãos à obra para escolher nosso destino defi nitivo e preparar tudo para prosseguir em direção a ele. Tinham só uma certeza: queriam mudar-se para longe da Europa, o continente das más lembranças, dos horrores da guerra, do comunismo e do inverno implacável. Podiam
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sonhar, já que a
HIAS
pagaria não só o transporte de todos
para qualquer lugar do mundo, como ainda arcaria com o aluguel do primeiro ano de uma moradia, no destino que fosse. Pagaria não é a palavra certa; emprestaria, na verdade, com o compromisso moral de que as quantias cedidas seriam restituídas à Organização tão logo cada um tivesse condições de se sustentar em seu novo país. Excluída a Europa do frio e do medo, sobrava o resto do mundo. O Canadá era uma opção simpática. Muitos de nossos parentes emigraram para lá, mas o frio canadense eliminava essa escolha. Sobrava a Austrália entre as possibilidades viáveis. Tínhamos e ainda temos muitos parentes lá, entre eles aqueles primos que sussurraram ao ouvido de minha mãe, logo depois da guerra: “Amanhã vamos embora”. A decisão estava tomada. Iríamos para a Austrália, mais exatamente para Melbourne, cidade de clima tropical com inverno ameno. E lá estaria a família Lakos, do médico que recei tara calmantes para meu irmão de colo em fuga. Eva Lakos, sua mulher, era a melhor amiga de minha mãe. Portanto, a escolha da Austrália se mostrava perfeita. No mesmo dia, lá foram meu pai e meu tio Imre para a fila da Embaixada Australiana, em Viena, atrás dos vistos de entrada. Muitos países estabeleciam quotas. Todos aceitavam os imigrantes húngaros em fuga, mas cada um, dependendo de suas condições, recebia apenas um certo número de famílias.
Wessel István Até a indevassável Suíça abriu as portas para algumas centenas de famílias. A Austrália, um país enorme, certamente abrigaria milhares de famílias. Não haveria problemas para nos receber, imagine. De fato, meu pai entrou, preencheu todos os documentos visando a uma tramitação rápida dos papéis e saiu dizendo ao irmão, o próximo da fila, que estava tudo em perfeita ordem. Então, meu tio entrou. E saiu. O oficial da imigração lhe disse que o último refugiado a ter sido atendido, László Wessel, tinha preenchido a quota existente. Garantiu que novas quotas seriam abertas – provavelmente em alguns dias. Meu pai voltou à sala, explicou ao oficial que eles dois eram os únicos membros restantes de toda a família Wessel, e que não poderiam correr o risco de se separar. De nada adiantou. Ele tinha o visto, o irmão não teria – pelo menos por enquanto. Meu pai colocou sobre a mesa do oficial o protocolo que lhe dera e disse: “Seu país não me interessa mais”. Virou os ombros, e partiu. E lá estavam os dois de volta à dúvida, na calçada em fren te à Embaixada da Austrália em Viena: para onde iriam? Sempre que meu pai me contava essa história, ele dizia que o episódio havia lhe provocado um sentimento único, e que não transparecia na mera descrição dos fatos. Não era raiva, nem medo, nem dúvida. Era uma sensação de liberdade que ele só experimentara quando imaginou, lá atrás, durante a guerra, na fronteira da Rússia com a Hungria, que seria fuzi-
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lado no dia seguinte. Fora um dia de total liberdade; ele poderia dizer o que quisesse, fazer o que quisesse – em algumas horas, estaria morto. Lá, naquela calçada vienense, junto ao irmão que ele admirava e queria tanto, sentiu exatamente o mesmo. O mundo era imenso, eles não falavam nenhuma língua fora o húngaro e não tinham um centavo no bolso. Qualquer país seria igual para eles. Meu tio atirou no ar uma ideia sem nenhum compromisso: “Minha mulher tem aqueles parentes no Brasil, lembra? Aqueles que nos diziam pra sair ainda antes da guerra”. Meu pai emendou, sem hesitar: “Vamos para o Brasil”. Decidida num processo tão criterioso como esse, era evidente que o risco da escolha ter sido errada era inexistente. E da embaixada da Austrália foram os dois para a do Brasil. Tiveram já à entrada uma amostra de que o país escolhido era hospitaleiro. Quotas? O que é isso? O Brasil não tinha limites, abria as portas para todos que lá quisessem se estabelecer. Meu pai e meu tio preencheram seus papéis e voltaram alegres ao nosso “Sacher” levando as novas. Para minha mãe, foi uma total decepção. Na Austrália estavam mais de cinquenta parentes (dela), além de sua melhor amiga. Demorou muito até que ela digerisse o caso; era um fato consumado, porém, e ela sempre se recompunha frente à realidade, por dura que fosse. Até que tudo fosse organizado, passaram-se semanas. Ao
Wessel István todo, ficamos em Viena por 45 dias. Era inverno, mas estávamos tão aquecidos pelo calor das nossas emoções que nem nos demos conta perfeitamente de como – e de quão rapidamente – tudo se passou em seguida. Não me lembro bem, deveria ser por volta de 22 de janeiro o dia em que partimos de trem rumo a Gênova, aonde chegamos pela manhã e fomos diretamente ao porto. A viagem de trem tomara uma tarde e mais uma noite. Olhamos do cais para o navio enorme que nos levaria a Santos: Provence, era seu nome. Embarcamos na terceira classe, estava bom demais. Casa e comida à vontade, o que mais poderíamos querer a essas alturas de tais vidas? As mulheres ficaram separadas dos homens, elas e eles em duas cabinas de quatro beliches, e nós, meu irmão e eu, mais minha mãe e minha avó, separados de todos em outra. Nunca nossa família estivera tão unida.
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O espanhol, que língua difícil
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viagem, no entender de todos, foi monótona – mas as
refeições, fartas e cheias de surpresa, eram uma aventura. A tripulação insistia em nos servir umas ameixas pretas temperadas estranhíssimas. Estávamos travando os primeiros contatos com o exótico na comida. Como, as mesmas ameixas pretas no macarrão? Quem ousou experimentar, cuspiu. Imaginem só, alguém esperar gosto de ameixa e deparar-se com o de uma azeitona temperada. Então nos dávamos conta do completo isolamento a que fomos submetidos durante toda a vida, fosse pela guerra, fosse pelo regime que se instalou na Hungria em seguida. Os limites impostos não se restringiam à liberdade de ir e vir iam muito mais longe. Nossa cultura alimentar (falar em
Foto em Santos, na chegada em 1957
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gastronomia seria um absurdo) se restringia às especialidades húngaras – salames, gordura de ganso e, claro, páprica. Uma mera azeitona era algo totalmente desconhecido. O que mais iríamos descobrir? Pior: como pedir um prato, uma coisa de comer? Não sabíamos o que era uma azeitona nem conhecíamos seu nome em húngaro – como pedi-la em uma língua que, àquelas alturas, era ainda mais desconhecida que a própria azeitona? Durante a viagem, todos teciam extensos comentários sobre as dificuldades que encontrariam no aprendizado de uma língua nova, latina, e, portanto mais distante da nossa que qualquer outra. Todos expressavam sua fé em superar essas dificuldades, porém, uma vez que haviam passado por outras muito piores, e sobrevivido. O espanhol era difícil, mas nós iríamos aprendê-lo. Podemos dizer que a primeira impressão que tivemos do Brasil, ao desembarcar em Santos no dia 8 de fevereiro de 1957, já foi gastronômica e, como tal, nos marcou muito. Pelo fato de termos saído da Hungria sem documentos não pudemos simplesmente desembarcar, nem mesmo nos apro ximar dos parentes que aguardavam ansiosos no cais. Fomos levados diretamente ao trem que nos transportaria à Hospedaria do Imigrante, no Brás, em São Paulo, onde pernoitaríamos e, no dia seguinte, seríamos registrados e receberíamos nossos documentos. Entre o embarque no trem e sua
Wessel István partida, algumas horas se passaram. Pelas janelas do trem tomaríamos contato com as pessoas, parentes e amigos, que nos aguardavam. Eles estavam corretamente crentes de que tínhamos fome, e se apressaram em nos trazer comida. Foram até um boteco no cais e compraram dúzias (era o que me parecia) de mistos frios, que teriam a sobremesa de uns abacaxis arrematados diretamente do “marreteiro” do carrinho de mão. Passaram o tesouro pela janela do trem e nesse mesmo instante tivemos a certeza de que estávamos chegando ao país certo. Ou quase, porque não é que nem o espanhol aqui se falava? Era algo ainda mais obscuro e desconhecido – o português. Sanduíches de presunto e queijo se fazem em todo mundo, na Hungria inclusive, mas com uma grande diferença: o pão é sempre maior que o recheio. Aqui, não: eram toneladas de precioso presunto e de queijo prato ultrapassando a bem delimitada borda do pão. Comemos com gosto. Pãozinho francês fresco, presunto, queijo... era maravilhoso. Terminados os sanduíches ficamos olhando para aquele estranho objeto, espinhado e verde, que jamais tínhamos visto antes, nem em fotografia. Pelos sinais que adivinhávamos através das janelas, tratava-se também de comida. Meu pai, sempre com uma faca a postos para exercer a profissão, mesmo nas horas mais insólitas, resolveu agir. Cortou a estranha fruta no sentido do comprimento, tirou lascas e provou. Foi uma das melhores
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sensações que jamais experimentáramos. Que terra havíamos escolhido! Nosso “porto seguro” eram aquelas pessoas, parentes e amigos, que à chegada só vimos através das janelas do trem. No jargão dos refugiados, eram os “velhos húngaros”. “velhos” e “húngaros”, pois haviam deixado a Hungria havia muito tempo (no entender deles) e estavam no Brasil há “longos” oito ou dez anos. Eles resolveriam os nossos problemas – que certamente não Na página anterior: Lista de passageiros do Provence arquivada na Hospedaria do Imigrante Minha mãe, Eva, e Judith na casa da 23 de maio
faltariam: todos precisariam de casa, de emprego, de educa ção para os filhos. Não seria uma tarefa simples. À chegada, nem todas as boas expectativas se confirmavam. Aliás, salvo raras exceções, a decepção foi generalizada. Só o tempo faria desaparecer o arrependimento de alguns com a escolha do Brasil – de outros, nem isso. O exemplo mais pró ximo que tivemos entre os decepcionados foi muito próximo: nosso tio Imre voltaria à Hungria com minha tia Lili pouco menos de três anos depois, em 1959. Minha prima Judith ficaria. Ela se casou em 27 de novembro daquele mesmo ano com Robert Kollin, um jovem engenheiro húngaro. Uma semana depois de retornar da lua-de-mel, seus pais regressa-
Wessel István ram à Hungria. Minha tia Lili morreu em Budapeste em dezembro de 1965 – e, então, meu tio Imre voltou ao Brasil,onde morreria em 1987, aos 81 anos. A família Burger dava um exemplo diferente. Eles tinham um bom e íntimo amigo no Brasil que os motivou a vir. Acontece que esse bom amigo, o sr. Koltai, não gostava de viver no Brasil e cogitou até em sugerir que eles não viessem. Pensou melhor e resolveu incentivá-los, por temer que o interpretassem mal – os Burger poderiam achar que ele, Koltai, não queria tê-los aqui. Só há pouco tempo, em conversa com meu xará, o sr. István Burger (recentemente fale cido), fiquei sabendo o quanto os Burger eram gratos à, digamos, insinceridade generosa do sr. Koltai. “Nos Estados Unidos, nossa segunda opção”, disse, “nunca teríamos as oportunidades que tivemos aqui”. A família Burger era um bom exemplo também de um dos dois grupos básicos de imigrantes
húngaros
que aqui desembarcaram: os com e os sem profissão. Os “com” teriam, pelo menos no início,
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Na página ao lado: János e Imre (filho e irmão de László) em foto de 1982
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A Família Burger em 1982
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uma vida “mais fácil” do que os “sem”. “Com” profissão eram aqueles adestrados nos ofícios artesanais, ou os que fossem engenheiros e, com menos chances, médicos. Meu pai era “com”. Ser açougueiro era ter um ofício que poderia ser exercido relativamente da mesma forma, aqui ou em outro lugar. Os cálculos de engenharia tampouco tinham de ter sua linguagem traduzida. Já os advogados, caso do sr. Burger, ou os auditores, caso do sr. Ernesto Kreisler, teriam de realmente esquecer tudo o que sabiam e buscar uma nova atividade. De que valiam aqui os conhecimentos de direito húngaro? E da tributação e contabilidade do país natal? Esses imigrantes tinham uma árdua tarefa pela frente – mas acabariam por sair-se bem. O sr. Burger tornou-se um bem-sucedido corretor de seguros; o sr. Kreisler, um próspero importador de ferramentas. Os médicos tiveram que revalidar seus diplomas, ainda que próforma, mas vieram a ter o reconheci mento muitas vezes admirado da clas se e dos pacientes. Entre os médicos, acompanhei uma das sagas mais cheias de peripécias da emigração húngara para o Brasil, a do dr. Imre Szmuk. Nós nos conhecíamos desde a Hungria.
Wessel István Os Szmuk moravam em Mátyásföld, nos arredores de Budapeste, e em certa ocasião fui passar as férias escolares na casa deles. O dr. Szmuk me apresentou então às primeiras frutas tropicais que experimentei – nada tão exótico quanto o abacaxi, mas para mim, à época, tão surpreendentes quanto. O dr. Szmuk fora em excursão a Viena para acompanhar a seleção húngara de futebol e voltou de lá com a surpresa. Durante os duros anos stalinistas, sair da Hungria era virtualmente impossível; a única possibilidade de fazê-lo era acompanhar os jogos de futebol da seleção húngara realizados em Viena. Lembremos que então a seleção húngara estava no auge; a Hungria se sagrara vice-campeã mundial, em triste derrota para a Alemanha, no mundial de 1954 e seu time à época era então – e até hoje – considerado um dos melhores de todos os tempos. Para que os húngaros pudessem assistir aos jogos de sua fantástica seleção no exterior, eram organizadas excursões de um dia, só para Viena, só para assistir ao jogo, e só podendo voltar em seguida. A oportunidade era dada a um só membro por família, e por jogo. Questão de segurança: ninguém ousaria se evadir sozinho, com o resto da família no país. Na noite em que voltou de uma dessas excursões, o dr. Szmuk chegou com uma surpresa em cada mão: uma banana e uma mexerica. Éramos quatro meninos, os dois filhos dele, Peter e Ivan, um outro amigo, e eu. A banana foi cuidadosa -
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mente descascada e cortada em quatro, uma parte para cada menino. A mexerica era mais problemática, pois o número de gomos não era divisível por quatro. Eram quatorze gomos. Ele deu três para cada menino, um para sua mulher, a austríaca Helga, e outro ele comeu. Imre Szmuk cursara Medicina na Itália. Na década de 1930, sendo judeu, já não era aceito em nenhuma faculdade na Hungria: foi conseguir uma vaga na Universidade de Bolonha. Terminou a faculdade em 1938, quando a guerra era iminente. Szmuk decidiu-se por sair da Europa e seguir à Palestina, hoje Israel. Descobriu que do centro da Europa, incrivelmente, partiria um navio clandestino rumo à Palestina. A embarcação sairia de Viena e, pelo Danúbio, seguiria a Budapeste, daí para a Romênia e para o Mar Negro. No Mar Negro a tripulação e os passageiros passariam para outro navio, que através do Estreito de Bósforo ganharia o Mediterrâneo e finalmente a Palestina. O navio, de bandeira austríaca, zarpou na data acertada. No dia seguinte chegava a Budapeste, tudo conforme o com binado. Ciente da precisão do roteiro e dos horários do navio, Szmuk chegou a desembarcar em Budapeste para se despedir da família. Como previsto, aportou na Palestina no final de 1938. Ainda no navio, relacionara-se bem com o capitão, um velho lobo do mar austríaco, e melhor ainda com a filha dele, a jovem Helga. Casaram-se ainda no que
Wessel István restava de ano, e passaram a viver na Palestina. Médico em exercício, Szmuk alistou-se no Royal Medical Corps – a Palestina era então protetorado britânico – e serviu no próprio país como médico até ser enviado para a Birmânia, em 1942. Antes de partir, porém, Helga engravidou de seu primeiro filho, Peter. O serviço militar na Birmânia foi um pouco mais longo do que esperava – os japoneses haviam maltratado muito os prisioneiros ingleses, os médicos tiveram anos de trabalho em tratá-los – e Szmuk só voltou à Palestina em 1947. Quando conheceu o filho Peter, este já contava quatro anos de idade. Terminada a guerra, tudo calmo no Oriente Médio, o dr. Szmuk resolve fazer um passeio com mulher e filho na terra Natal, a Hungria, em 1948. A finalidade era descansar um pouco depois de tantas mudanças. Imre não havia renunciado à cidadania húngara e pôde tranquilamente entrar na Hungria – mas sair, jamais. As autoridades não permitiram que se fosse, que voltasse à Palestina, ou que simplesmente ultrapassasse os limites do país. Num simples passeio, Szmuk perdeu tudo: a casa, os pertences, a terra que escolhera, a liberdade. Tinha a família e, cada um de seus familiares, uma mala de roupas. Os Szmuk acabaram por assentar-se e não tiveram problemas de ordem política ou financeira, porque Imre era médico de reconhecida competência. Tiveram lá seu segundo filho, Ivan, e a família manteve uma boa posição
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o tempo todo. Só puderam sair de lá, contudo, pelas mesmas vias e no mesmo dezembro de 1956 em que saíram fugidos outros 100 mil, nós entre eles. Encontramos os Szmuk em Viena, pois haviam fugido na mesma semana que nós. Ficamos todos muito felizes, primeiro, e decepcionados, depois, ao saber que planejavam emigrar para os Estados Unidos, sonho dourado daqueles e, talvez, de qualquer refugiado. Despedimo-nos e esperávamos que o destino nos brindasse com um reencontro em algum lugar, algum dia. O reencontro tardou muito menos do que jamais poderíamos imaginar. Logo na primeira semana de Brasil, eu brincava com János Szegö, cuja família nós conhecêramos já no nosso primeiro dia de liberdade na Áustria, e ele comentou que me apresentaria um novo amigo. Tratava-se de um menino que morava com os pais e o irmão mais velho na mesma pensão onde os Szegö passaram os primeiros dias de estadia brasileira. Num domingo, János me “apresenta” Ivan Szmuk, para minha grande surpresa. Eles estavam aqui em São Paulo, em carne e osso. Perguntei surpreso ao Ivan: “Vocês não iam para os Estados Unidos?” E ele respondeu: “Fomos barrados. Os americanos disseram que meu pai tinha sido médico-chefe de um hospital na Hungria e, portanto, só poderia ser comunista”. Tratava-se de estupidez e absurdo comuns na guerra fria e naquele período marcado pelo macartismo.
Wessel István Tal como aconteceu conosco, a família Szmuk passou sua primeira noite em São Paulo na Hospedaria do Imigrante, onde os refugiados eram examinados para a possível aferição de algum problema importante de saúde. Os médicos que faziam esses exames eram jovens da Escola Paulista de Medicina e, ao chegar a vez de Imre Szmuk ser examinado, o médico de plantão leu seu nome no prontuário, levantou os olhos e perguntou: “O senhor é o dr. Imre Szmuk, do Método Szmuk de análise de sangue?” Imre assentiu com a cabeça e foi imediatamente convidado a visitar a faculdade, onde seu método fazia parte do currículo normal. De comum refugiado, passou instantaneamente a professor da Escola Paulista de Medicina.
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O
Milionários!
começo de nossas atividades no Brasil não ganhou esse
caráter quase cinematográfico que ganhou, para mim, esse começo da história brasileira dos Szmuk , mas teve lá o seu glamour. Fomos de cara notícia de jornal, duas vezes. Primeiro noticiaram nossa chegada com uma leva de outros
refugiados; depois na seção de curiosidades, estava a foto de meu irmão János, com seis meses de vida: o mais jovem entre os refugiados. Meu pai era dos refugiados “com profissão”, e boa. Ele e meu tio Imre conseguiram empregos como desossadores já na segunda ou terceira semana depois de nossa chegada. Alugamos uma casa e o aluguel era financiado pela
HIAS.
As
refeições eram feitas na casa dos parentes de minha tia Lili,
Jornal Diário da Noite de 9 de fevereiro de 1957, dia seguinte à chegada
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que generosamente nos recebiam todos os dias. Foram eles que conseguiram empregos para meu pai e meu tio. Ganhavam salário mínimo. Já era pouco naquela época, mas dava para começar. Segundo contas de meu pai duas décadas depois, o salário mínimo de 1958 dava para comprar 100 kg de coxão mole (o coxão mole era sua moeda-padrão). Apenas como ilustração: 100 kg de coxão mole em março de 2004 custariam R$ 800 – ou seja, o valor de três salários e um quarto; um salário mínimo compraria 33 kg. Do frigorífico que primeiro o empregou, meu pai passaria para a casa de carnes provavelmente mais sofisticada da cidade, à época, a Vilex, na Rua Augusta, a principal do bairro rico e de fina freguesia do Jardim América, em São Paulo. O dono era muito generoso com ele; pagava-lhe menos que um salário mínimo, já que descontava uma parcela por “desconhecimento da língua”, e todo santo sábado, depois do expediente, lhe dava uma lata de goiabada. Meu pai era muito agradecido, menos pela goiabada e mais pelo presentão que o patrão provavelmente não sabia que lhe dava: a possibilidade de conhecer a fina flor da clientela da cidade e a generosidade do consumidor brasileiro. No Brasil, ninguém reclamava quando o pedaço da carne pesava acima da quantidade pedida – na Hungria, as pessoas ficariam furiosas –; o cliente mandava “deixar assim” e, ainda por cima, dava gordas caixinhas. Na Vilex, meu pai
Wessel István começou a traçar o seu futuro. Dizia para minha mãe: “Este é sem dúvida o país em que devemos ficar. Se a melhor fornecedora de carnes na cidade é essa, estamos feitos. Seremos muitíssimo melhores”. Daí para frente a coisa foi, vamos dizer, “fácil”. Dinheiro nós não tínhamos; garra, vontade e técnica, sobravam. Não me lembro de nenhum momento, nessa época, em que a falta de dinheiro fosse motivo de desânimo ou tristeza. A certeza no sucesso era tal que a falta de dinheiro teria de ser temporária. Meu pai passou a comprar todos os jornais e a procurar alucinadamente nos classificados os anúncios de “Açougue – Vende-se”. Uma casa bancária húngara se propusera a financiar a compra. Em pouco tempo de frenética busca meu pai encontrou à venda um açougue que lhe pareceu adequado, na Rua Domingos de Morais, na Vila Mariana, bairro de classe média em São Paulo. O advogado húngaro, dr. Jorge Feldmann, que o assistia já estava com o contrato pronto e a data marcada para a assinatura. No dia apontado, os dois seguiram de ônibus para o local em que assinariam a com pra e, ao descer, meu pai encontra uma banca, pára, compra um jornal e o abre no caderno de classificados. Dr. Jorge intrigou-se: “Para que o senhor vai procurar anúncios de venda se estamos a caminho de assinar a compra de um açougue? O senhor quer logo montar uma rede?” Meu pai
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Minha mãe, Eva, em 1959 no primeiro açougue na Rua Manoel Dutra no 434
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respondeu de bate-pronto: “Se esse não der certo, eu não posso perder tempo”. Uma vez mais, entre tantas e provadas vezes, o feeling dele estava correto. O contrato não foi assinado, por alguma discordância entre os advogados. No caminho de volta ele não desgrudou os olhos dos classificados daquele mesmo jornal e dia, e leu um anúncio que os fez brilhar: “Açougue recém-montado, todo em aço inox, espaço grande atrás, porão. Ver à Rua Manoel Dutra, 434”. Meu pai era muito pragmático e não dava a menor atenção ao que tivesse chei-
Wessel István ro, que fosse, de superstição – mas, dessa vez, fraquejou: 434 era o número de seu registro junto aos columbófilos – criadores de pombos-correio – na Hungria, e com esse número vencera várias provas. Ele sentiu que a sorte o bafejava novamente, e se fazia perceber pelo número. Naquela mesma tarde, ele e o advogado foram ver o tal açougue. Ao chegar lá, meu pai tomou-se imediatamente de amores pela casa: o anúncio descreveu exatamente o que ele via à sua frente. Deu uma boa volta a pé pelos arredores, avaliou a vizinhança, e se convenceu de que aquele era o lugar, bastava que o preço fosse conveniente. No domingo seguinte, ele me levou ao local e percorreu comigo o mesmo trajeto que fizera dias antes pelos arredores. Contamos uns dez açougues em um raio de 1 km, e eu me sobressaltei: ”Mas, papai! É muito açougue por perto! Muita concorrência!”. Ele saiu-se com outra de suas respostas taxativas e na ponta da língua: “Muito açougue significa muito cliente. Seremos melhores que os outros e a fregue sia vai comprar de nós”. Só, ou “só”, faltava agora arranjar um fiador para fazer a compra parcelada do açougue. Para recém-chegados como nós, conseguir um fiador não era tarefa simples. Os paren tes de minha tia não quiseram correr o risco. Chegamos a compreender – mais ou menos: compreendemos que preci sávamos de solução e não podíamos contar com os parentes.
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A ajuda veio de alguém que nem sequer nos conhecia. Meu pai conversou com seu amigo Kreisler, que falou com a prima da mulher, e estávamos salvos. A sra. Vera Kaufmann concordou em ser a avalista de meu pai baseada apenas na descrição do primo Kreisler. A compra foi feita e a sra. Vera Kaufmann nunca foi incomodada. Assumimos o açougue em um sábado, dia 23 de março de 1958, ao final do expediente. A féria do fim de semana ainda seria do José, o antigo dono. Pegamos as chaves no fim do dia e domingo, logo cedo, fomos para lá fazer a limpeza, arrumar a carne e rezar para que tudo desse certo. Empregado, nem pensar. O funcionário que o José tinha foi dispensado por ele mesmo. Minha mãe ficaria no caixa ou cortando carne, meu pai desossava. Quando não estivesse na escola, eu mesmo ficaria no caixa. Na segunda-feira, nosso açougue já funcionava. A primeira surpresa não demorou meia hora: na hora de pagar, uma freguesa entregou uma caderneta em vez de entregar o dinheiro. Meu pai não entendeu nada. Ela explicou: “O senhor marca na caderneta, e no fim do mês eu pago”. Se havia duas coisas que meu pai detestava na vida, a primeira era não pagar – a segunda, não receber. E esse foi o argumento que ele deu em resposta ao da freguesa. Ele pagava à vista, e era assim que queria receber. A mulher foi embora furiosa, praguejou, ameaçou nunca mais voltar.
Wessel István Rogou praga antes de sair: “Desse jeito, ó alemão, você vai é fechar as portas”. Não pegou. Na sexta seguinte, meu pai fez muito ansioso o balan ço de sua pri mei ra sema na no negó cio. Terminadas as contas, que fazia em cálculos simples e pre cisos, ele conferiu, conferiu outra vez, e voltou a conferir: o que recebera como balconista da Vilex em todo o mês anterior coincidia com o resultado que obtivera em seu próprio açougue em uma única – e apenas a primeira – semana. Ele levantou os olhos do papel e gritou à minha mãe: “Eva, estamos milionários!” Estavam, de fato. Eram jovens, saudáveis, tinham força de vontade e competência. E meu pai era um profeta muito superior àquela primeira freguesa, que previu o fechamen to das portas: o que ele sabia de carne era mais, muito mais do que a concorrência poderia jamais imaginar.
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O açougueiro elétrico
M
eu pai mal falava o português, mas descobriu rapida-
mente todos os canais de compra e aplicava tudo o que aprendera na Vilex. A grande experiência da banca no mercado municipal de Budapeste, lado a lado com açougueiros experientes e bem-sucedidos, também lhe foi de grande valia aqui. Uma das táticas básicas na estratégia comercial que usava lá, por exemplo – a de oferecer carne mais bem-cortada e mais barata às pessoas que estavam no fim da fila do concorrente –, não se aplicava aqui diretamente, mas poderia ser adaptada. Os açougues do bairro não ficavam um ao lado do outro para que o cliente ao fim de uma fila estivesse vulnerável à sua oferta; então, meu pai passou a afixar ofertas à porta, em cartazes bem visíveis. E a oferta era extraordinária: ele escolhia um
Meu pai, László, em nosso açougue da Rua Manoel Dutra no 434
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determinado tipo de carne e o vendia sem lucro nenhum. O raciocínio era muito simples: “Faço de conta que essa carne eu não comprei. Não preciso ter lucro, basta não perder dinheiro. Atraio a dona de casa por meio desse item e a convenço a levar todos os demais. O resultado final é lucro”. A rotina do açougue estabeleceu-se rapidamente. Minha mãe chegava às 10 da manhã, quando meu pai já havia desossado os quartos, e atendia à freguesia, cortando a carne no balcão. Meu pai já estava em ação desde a Inauguração no novíssimo açougue no número 420 da mesma Rua Manoel Dutra, em 1964
madrugada, quando ia ao Tendal da Lapa (antigo centro municipal de distribuição de carnes) escolher as carnes que venderia ao longo do dia. Acompanhava o entregador, chama do à época de carroceiro, e assistia à descarga da carne. Começava a desossar em seguida e vendia até as 6 da tarde, de segunda a sábado – aos domingos, só até a hora do almoço. A capacidade de trabalho de meus pais era extraordinária. Eles haviam comprado aquele primeiro açougue em 1958, sem nenhum capital e com dinheiro emprestado, e apenas quatro anos depois meu pai já comprava uma casa velha na mesma Rua Manoel Dutra, no número 420, onde planejava
Wessel István construir e instalar seu açougue-modelo. Imaginava algo nunca visto no Brasil – e lograria concretizar sua visão. Tinha 48 anos muito vividos e garra de adolescente. Foi o “arquiteto” da nova casa. E o engenheiro, e o empreiteiro. Deu palpite em tudo. Incentivou um amigo engenheiro a montar uma fábrica de câmaras frias só para atender às novas instalações do açougue – e tocou a obra da fábrica! Estava empenhado, de fato, muito mais do que em uma construção, na obra de sua vida. Quatro anos depois de chegar a um país desconhecido, sem nem sequer falar a língua corrente, destituído de quaisquer recursos financeiros apreciáveis, ele começava a erguer as bases dessa obra. Em 1964, no mês de maio, a nova loja foi inaugurada com estrondoso sucesso. Atendia-se a média de mil fregueses por dia. A fila de clientes virava a esquina e mantinha-se por horas e horas a fio, de segunda a sábado. Com as novíssimas instalações, meu pai resolveu renovar também os conceitos de administração do negócio e deu-se início a uma reformulação completa da empresa. A atenção passou a centrar-se nos clientes mais exigentes, aqueles que buscavam no açougue do “seu” László o que reconheciam como os melhores cortes possíveis de carne, a higiene de ambiente mais absoluta e a atenção mais considerada. Por essa época, o número de clientes estrangeiros passou a ser maior que o de brasileiros: o nosso era o único açougue
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em que eles encontravam os produtos e o atendimento a que estavam acostumados em seu países de origem. Era o início do avanço da indústria automobilística no Brasil, e os americanos da Ford e da Willys, os alemães da Volkswagen e os franceses da Simca rapidamente descobriram “seu” László. Chegamos a fazer um glossário com os nomes dos cortes de carnes em várias línguas para que os clientes, como se estivessem frente a um cardápio, pudessem escolher. Empregávamos então muitas pessoas e eu já não precisava ajudar no caixa quando nos horários de folga da escola. Eu continuava a, geneticamente, gostar do açougue, mas estava tomado momentaneamente por outra paixão: a eletrônica. Quando repeti o primeiro ano científico, não tive a menor dúvida: me inscrevi em um curso técnico de eletrônica, que também equivalia ao segundo grau, como os cursos clássico e científico. Era 1965, o Brasil completava um ano de “revolução”, o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart, e as profissões técnicas pareciam muito promissoras. Meu pai sempre ria da tal revolução: “Só aqui mesmo, uma revolu ção sem mortos nem feridos. Pra mim são férias”. Ele tinha então 49 anos (oito anos menos que eu agora, que incrí vel...) e, além da força e disposição fora agraciado por Deus com muita sagacidade. Em Deus, aliás, ele não acreditava, talvez pelas peças que Ele lhe pregara ao longo da vida – o
Wessel István fato, porém, é que era um homem abençoado. Antes mesmo de começar o curso de eletrônica eu já havia montado um rádio de galena, e minha carreira (a meu ver) parecia definida. Assuntos técnicos sempre me interessaram, e meu pai me dava o maior apoio. Ele sempre permitiu que eu vivesse minhas próprias experiências profissionais e dizia que, quando eu terminasse o curso, me ajudaria a montar uma pequena fábrica de produtos eletrônicos. As válvulas saíam de moda – chegavam os novíssimos transistores. Grandes progressos tecnológicos estavam ao alcance da mão! Tudo isso lhe parecia uma boa oportunidade e, apesar de certamente já sonhar com a continuidade da família no ramo, ele me dava grande incentivo. János tinha apenas 10 anos, e suas tendências profissionais eram ainda uma incógnita. Claro, ele esperava que em algum momento eu tomasse a iniciativa de entrar para o negócio. Mas ele não a provocava; nós nos sentávamos para conversar sobre meus “novos empreendimentos” sem nenhum constrangimento, nenhuma pressão. Ainda na Hungria eu percebia uma clara diferença entre as opiniões de meus pais a respeito de meu futuro profissional. Minha mãe queria que eu estudasse, que tivesse outra atividade. Queria me poupar da vida dura que via meu pai levar – acordar de madrugada num inverno de 30 graus abaixo de zero, cortar-se de vez quando, ganhar pouco... não era o que ela sonhava para mim. Já meu pai tinha um discur-
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so pronto e convicto: “Somos lavrados de madeira dura, não empenamos à toa!”. Meu futuro na Hungria não teria sido nada fácil. Eu era filho de “capitalista”, e dificilmente seria aceito em uma universidade. Mesmo como ex-dono de um açougue cuja propriedade lhe arrancaram em Budapeste, ele continuava a ser, para o regime, um capitalista. E eu, portanto, já estava contaminado por seus princípios espúrios. Felizmente eu estava no Brasil e podia cursar eletrônica, em que me empenhava. Comprei alguns kits, montei ampli ficadores e os vendi a vários pais de amigos e amigos de meus pais, o mercado mais próximo para um principiante. Vendi e instalei e fiz funcionar. Eram ainda a válvula, precisavam esquentar por alguns minutos, mas funcionavam. Milagre! Meus pais me achavam um gênio. Exagero, claro – mas que achavam, achavam. Lembro-me de duas passagens em que eu poderia ter-me saído um Bill Gates, embora à época ele ainda usasse fraldas. Acabei não fundando um império como o dele, provavelmente pelo fato de minha sede estar no Bixiga, e não em Silicon Valley. Mas tive a oportunidade bem à minha mão... Primeiro, resolvi criar um controle remoto para a nosso aparelho de a
TV
TV
convencional. O princípio era simples: virar
de cabeça para baixo, remover os potenciômetros de
volume com liga e desliga, o horizontal e o vertical; identifi car os fios e simplesmente prolongá-los em cinco metros.
Wessel István Tirar o seletor de canais para fazer a seleção remotamente me parecia complicado e desnecessário, já que se assistia a apenas um dos três canais disponíveis, o canal 7, TV Record. Era o canal dos filmes de Roy Rogers, do Vigilante Rodoviário, de Lassie e das Aventuras Submarinas, além de transmitir o Repórter Esso, indispensável, todas as noites. O maior problema, aquele que fazia o telespectador sentar e levantar, sentar e levantar, eram os controles do vertical e do horizontal. Qualquer leitor de safra anterior a 1950 sabe do que estou falando. Se necessário, por favor, explique do que se trata para algum leitor mais jovem e inexperiente em matéria de TV em branco e preto.
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Com meu pai na sala da Rua Manoel Dutra no 400 em 1960 com a televisão que foi minha vítima
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Para formar um chicote (nome técnico dado a muitos fios elétricos amarrados ou juntados de alguma forma), usei a espiral colorida que se usava para envolver o fio do telefone – que, à época, era um fio grosso recoberto por um tecido preto que costumava ficar muito encardido. Daí essa espiral rígida de plástico colorido que o recobria e que usei para proteger os muitos fios que formavam o tal do chicote. Funcionou, mas a Philips infelizmente desprezou o meu invento. A Philips desprezou, mas a família aplaudiu. E que mais que eu poderia querer da vida em termos de sucesso? A segunda chance de me imortalizar na eletrônica quase custou a vida de minha avó. Dessa vez, o boicote à minha iniciativa foi da Telefunken. Ainda não tínhamos dez anos de Brasil, mas já vivíamos muito bem. Minha mãe, sempre amante da música, comprou (ou, para ser justo com os dois, pediu para que meu pai comprasse) um Stéreo Dominante da Telefunken. Era uma rádio-vitrola com um segundo rádio por baixo, chamado Fremo, marca fantasia de receptor com frequência modulada, conhecida hoje como transmissões em
FM,
FM.
Não havia
mas era essa a modalidade usada pelas
emissoras para transmitir dos estúdios às antenas retransmissoras. Quem tivesse um Fremo podia (com uma anteninha no telhado) receber o som mais puro captado diretamente dos estúdios. Era um grande avanço. O móvel era lindo. Todo em imbuia por fora e marfim por
Wessel István dentro, laqueado, brilhante. Minha ideia era melhorá-lo, modernizá-lo. Queria embutir o equipamento numa estante nova que meus pais tinham acabado de comprar. Coloquei o joelho por cima do lindo móvel e, diante do espanto quase apopléctico de minha avó Ilona, meti a serra no móvel. Não tinha volta. Minha ideia era remover (na serra) a frente do aparelho e usá-la como frente do aparelho já embutido na estante. Minha avó quase morreu, mas devo ressaltar que meus pais avaliaram a obra como a de incompreendido gênio, e chegaram a exibi-la a admirados – se for cabível o termo – amigos. Em geral, qualificava-se de “espantoso” o talento que a idealizara. Ainda nesse ano, 1966, minha mãe fazia sua primeira viagem de volta à Europa e aos Estados Unidos, em companhia de duas amigas. Meu pai não podia nem pensar em viajar, pois “quem é que ficaria no lojinha?” De qualquer forma, tão logo pôde, ele proporcionou à minha mãe uma grande viagem. Viajar tomava muito mais tempo nessa época, e ainda alcancei minha mãe por carta aérea com o pedido de um rádio transmissor receptor a válvula: eu acabara de imaginar a montagem de uma estação de rádio amador. Instalei uma antena no teto do prédio em que morávamos, na mesma rua do açougue, e esperei com ansiedade a volta de minha mãe para poder iniciar as transmissões. Ela voltou, eu comecei a operar a estação e foi uma alegria.
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Minhas transmissões só interferiam em um dos canais de televisão – não era a Record – e só nos aparelhos do prédio ao lado, o que tornou mais fácil controlar a fúria dos vizinhos. Não demorou muito para que eu bolasse uma estação volante. O aparelho que minha mãe havia trazido tinha um suporte para instalação sob painéis de carro, e vinha também com alimentação em seis volts (a bateria dos carros na época era de seis volts, e não 12). Instalei o trambolho de seus 40 cm de largura e mais de 12 kg sob o painel do Aero Willys. Pequeno problema a solucionar: a instalação da antena. Tinha de furar a capota do carro. Furar e vedar o furo, além de me comprometer a, quando o vendesse, eliminar o furo na capota. Não era um grande furo, tinha uma polegada de diâmetro talvez, mais do que suficiente, porém, para que eu, hoje, cortasse relações temporariamente com o meu filho caso ele se atrevesse a me colocar tal proposição. O transceptor só deveria ser ligado com o carro em funcio namento e andando. Motor ligado, caso contrário a bateria, por força das válvulas, não duraria mais que alguns minutos; e andando, porque motor em funcionamento com o carro parado não tardaria a ferver. Ferver motor era um dos pro blemas cruciais da época. Contava-se uma quantidade enorme desses problemas quando subíamos a Serra do Mar pela estrada de Santos. Só o Fusca era refrigerado a ar, o que a VW explorava sabiamente em suas primeiras campanhas publici-
Wessel István tárias: o ar não ferve, e de Fusca você poderia subir a serra sem risco de vexame. Nem o controle remoto, nem a destruição do lindo móvel, nem o rombo na capota do Aero Willys fizeram meus pais mudar de ideia: eu era um gênio. Eles sempre me apoiavam e me ungiam de um orgulho permanente. Daí que fosse natu ral acentuar-se minha inclinação pela eletrônica, ainda mais à medida que o curso avançava e chegava ao fim. Finalmente me formei, e estava pronto para prestar os exames vestibulares. Era dezembro de 1967. Em vez de inscrever-me para as provas, perguntei a meu pai se me aceitaria para trabalhar no açougue, junto a ele. A resposta foi a única possível: – Claro que sim, meu filho!
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Os trabalhos e os dias
M
al havia secado a tinta em meu diploma de técnico em
eletrônica e eu já estava em meu lugar: atrás do balcão, cortan do carne. A profissão não era exatamente uma novidade para mim. Além da potente carga genética de açougueiro que recebi em minha concepção, desde que chegamos ao Brasil eu costu mava, nas férias, madrugar e sair para comprar as carnes com meu pai. Durante essas sessões de negociação e escolha de car nes eu aprendia muito só de ficar a seu lado. Em primeiro lugar, aprendi a importância da agilidade de cál culo. Meu pai nunca quis, nem aprendeu a usar uma calculado ra. Por uma única razão: não lhe fazia a menor falta. Perdi a conta – a expressão vem bem a propósito – de quantas disputas ele ganhou com pessoas que recorriam à máquina de calcular.
Nossa primeira equipe em 1960, com carcaças penduradas
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Era intuição e treino, um potencializando o outro. Treino era permanente, pois ele, como perspicaz comerciante que era, estava sempre fazendo contas. Ele testava, calculava e recalculava. Conferia e mandava conferir. Mandar conferir parecia ser mera formalidade, mas não era. Ele dizia que “quem faz a conta não deve confiar só na própria conferência, porque ele tenderá a repetir o mesmo erro”. Quem fazia a conferência final era eu. Meu pai me dava esse treino em minúcias que, insignificantes para um leigo, para um comerciante de carnes revelavam a condição mais vantajosa de compra: aquela do produto com a menor percentagem de osso e a melhor qualidade de carne. Naquele ano de 1967 ele já era reconhecido como o introdutor de uma nova forma de comércio de carne no Brasil, inteiramente baseada na qualidade superior de produto e atendimento: essa era a sua fórmula de sucesso. Daí insistir tanto em me ensinar todos os detalhes de checagem e cálculos de custo-benefício que assegurassem que a nossa carne fosse a melhor. Depois de me ensinar a comprar carne, meu pai me ensinou a vender carne. Eu havia começado a trabalhar no balcão lá atrás, lembrem-se, nas horas vagas de meu tempo de estudo no ginasial. E não era fácil, todos os fregueses queriam a atenção de “seu” László, não daquele pirralho cujo único predicado era ter nascido seu filho. Agora tinha de me tornar de fato um balconista, e para isso precisava seguir outra recomendação expressa de meu pai: eu precisava saber cortar a carne muitíssimo bem. “Só quem sabe
Wessel István fazer pode mandar”, dizia. Tinha toda, completa razão. Em nossa profissão, a destreza manual faz toda a diferença. Aprendi a fazer fazendo e, aos poucos, aprendia a liderar. Meu pai insistia em me dizer que encontrar pessoas para fazer não era tão difícil quanto encontrar pessoas para mandar e “tomar conta”. Tomar conta era estar a par de todos os detalhes: o sucesso estava, e está, nos detalhes. Era impensável que ele não supervisasse pessoalmente alguma encomenda. E também conferia todas as carnes que vendia por atacado. Conferir, como já se disse dele, era sua palavra de ordem. Nunca era demais. Estávamos em constante conferência, em mais de um sentido, e a confiança entre nós tinha de ser aquela, inarredável, que nos levou a planejar e encetar juntos nossa fuga da Hungria. Compromisso assumido era inegociável, e o que me comprometi a fazer naquele dezembro de 1967 tratei de seguir à risca, por toda a minha vida: cuidar de nossa empresa, que ainda não havia completado 10 anos, enquanto me fosse possível. Assim que me dispus a “tomar conta do lojinha”, meu pai se dispôs a sair de férias. Poucos meses depois, em abril de 1968, ele e minha mãe planejaram e levaram adiante suas primeiras e merecidas férias juntos – as primeiras férias verdadeiras de suas vidas. Foram à Europa, na volta triunfal dez anos depois de saí rem fugidos de um regime de força, sem perspectivas e sem a menor ideia do que seria o futuro. Voltar como turistas, imagi ne. Viajariam por vários países, incluindo Suíça, Alemanha e
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Áustria. Viena era o ponto mais próximo da Hungria que meu pai admitia chegar: para lá, jurou que não iria. Não enquanto lá estivessem os comunistas. Os amigos zombavam dele: “Eles não vão sair nunca...” Ele mantinha em pleno vigor seus poderes proféticos, porém: predizia que ainda iria ver a Hungria livre – e então voltaria a ver a Hungria. Veria ambos, de fato, como já se contou. Tão logo o regime caiu, em 1989, ele voltou a Budapeste, com minha mãe e meu irmão János, para comemorar e comer carpas. Aquela primeira viagem de férias tomaria cinco longas semanas. Em gesto solene, meu pai entregou-me sua “caderneta preta”, nosso “CPD”: tudo estava e sempre esteve lá, enquanto ele viveu. O faturamento dia a dia, totalizado por semana e por mês; as despesas todas, discriminadas; os salários dos funcionários, eventuais vales e adiantamentos, contas a receber. A pagar, não: ele pagava tudo à vista, “para facilitar a vida”. “Tudo que está nas geladeiras é nosso”, dizia. Não devíamos nada a nin guém. Gostava de vida simples, sem luxos, embora sempre con fortável – e, sobretudo, sem preocupações. Evitava o que quer que pudesse trazê-las, como evitava, sempre, os riscos. Perder dinheiro estava fora de cogitação. A passagem da caderneta ao filho era uma demonstração suprema de reconhecimento e de confiança, e eles viajaram absolutamente tranquilos. De vez em quando mandavam uma carta – um telefonema era impensável, à época, dadas as dificuldades e o tempo que tomaria.
Wessel István Vê-los partir, e não apenas daquela vez, sempre foi uma experiência traumática para mim. Lembro todos os detalhes de cada partida deles com o mesmo nó na garganta. Poderia ser insegurança, ou o pavor imaginado de perdê-los, não sei, nem vem ao caso – era terrível. Claro, a angústia durava algumas horas, depois relaxava, como sempre, diante dos fatos consumados. Eu sempre digo que meus braços são muito curtos e, sendo assim, muita coisa na vida estava fora do meu alcance: eu não pretendia abraçar o mundo. Depois vinha em minha ajuda o dia a dia, meu grande companheiro. Eu acordava cedo, às cinco e meia, para abrir as portas: só nós tínhamos a chave, e só nós as abríamos e fechávamos. O expediente começava (e ainda começa) às seis e meia; levantando uma hora antes, eu tinha tempo de me arrumar, chegar ao bar da frente às seis e dez, tomar café, ler jornal por dez minutos e abrir às seis e vinte para que os funcioná rios tivessem tempo de se trocar e começar a produzir. Acordar cedo foi um dos ensinamentos mais importantes que tive no começo da vida profissional. A tese de meu pai era: deve ríamos acordar uns quinze minutos antes da hora, sempre. Se estivéssemos descansados, esses quinze minutos não fariam a menor falta; se estivéssemos cansados, não seriam esses quinze fatídicos minutos que iriam resolver a questão. Daí que por toda a minha vida acordei cedo, e sempre 15 minutos antes da hora, receita ideal para não esquecer nada em casa – como, por exem plo, a chave da loja...
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F
Lições de mundo
oi no fim de 1968, ano de grande importância para o
mundo e, guardadas as proporções, para mim em particular. Passou por aqui uma prima da minha tia Lili. Vinha do Uruguai, país que a acolheu no final da década de 40, e dirigia-se à Holanda, onde morava desde um casamento que, embora tardio, fora de película, como dizem uruguaios e argentinos – e com príncipe encantado. Chamava-se Lili também, Lili Strommer. Partira com suas duas irmãs da Hungria rumo a Montevidéu logo depois da guerra. As mulheres da família Strommer tinham algo muito forte em comum: eram todas empreendedoras, ativas, e até certo ponto assustavam os homens. Eram uma versão femini na de verdadeiros “homens de negócios”. Meu pai tinha a
“Uncle” Boy na cozinha em Roterdã
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seguinte frase sobre as irmãs: “Essas só não vendem fogo porque queima a mão. De resto...” Lili Strommer representava no Uruguai grandes marcas dinamarquesas de equipamentos industriais, além de se ocupar de negócios com exportação de carne para a Europa. Foi nesse métier que se relacionou, a princípio apenas comercialmente, com um grande importador de carne holandês. Depois ela estenderia o âmbito das negociações, sabiamente, e terminaria por casar-se. Nos encontramos muitas vezes durante sua passagem por São Paulo, e ela gostou de mim desde a nossa primeira conversa. Eu era um garoto de 21 anos cheio de vida e de vonta de de aprender, de preferência fora do Brasil, e ela me contava muitas coisas que me interessavam sobre o marido, o frigorífico do marido, as qualidades do marido como empresário, como homem – e como marido. Ele costumava receber e aconselhar jovens que quisessem aprender o seu ofício, e os hospedava em sua própria casa. Aceitar o convite que ela subitamente me fez, para um estágio na Holanda nos frigoríficos do marido, demorou meio segundo. Em janeiro de 1969, chegava o convite por carta, assinado por ele. No dia 31 do mesmo mês eu partia para lá. Primeira parada, Genebra, na Suíça, onde passei alguns dias com ami gos brasileiros e encontrei a filha de meu futuro anfitrião, Míriam, que me fez um relato pessoal do que seria “estagiar”
Wessel István com seu pai – um homem formal, duro e perfeccionista. Daí liguei à Holanda para detalhar minha chegada e tive uma amostra do que ela dizia. “Chegando a Schiphol (o aeroporto de Amsterdã)”, dizia o homem, “encaminhe-se ao balcão de informações; meu motorista, Bertus, estará à sua espera, vestido num terno azul-força aérea”. Como manda quem pode e obedece quem precisa, lá chegando fui direto ao balcão de informações. Bertus, um holandês de uns 45 anos, alto, muito bem vestido, com quepe da cor do terno, perfeitamente cortado, certamente feito sob medida, estava à minha espera. O carro era um Oldsmobile do ano, exatamente da cor do terno do motorista, “como sr. Frenk gosta”. O Olds anterior era prata, e prata eram os ter nos de Bertus. O sr. Frenk, Uncle Boy para os íntimos, era bem como sua filha o descrevera: um homem sério, durão, metódico, que gostava muito de ensinar os jovens. Ela só esqueceu de mencionar um detalhe: tratava-se de um homem extraordinário. Chegamos a Roterdã uma hora depois e fomos diretamen te à steak house que o sr. Frenk mantinha quase que exclusivamente para receber pessoas importantes e fazê-las degustar seus produtos. Uncle Boy me esperava à porta do restaurante. Nos apresentamos, ele me levou à mesa e em alguns minutos eu já cometia minha primeira “gafe” em território holandês. Marotamente, e com vontade de conhecer melhor seu
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jovem estagiário, o sr. Frenk perguntou-me o que eu tomaria para acompanhar a carne. A resposta partiu naturalmente: “Um refrigerante”. A testa de Uncle Boy franziu-se em desagrado e decepção: “Como é que o filho de um açougueiro pode comer uma carne destas sem um bom copo de vinho ou, pelo menos, de cerveja?” Dessa forma apenas aparentemente repreensi va recebi a primeira das inúmeras lições que teria no verdadeiro curso de aperfeiçoamento humano que fiz com o sr. Frenk. Uncle Boy me obrigava a trabalhar no frigorífico, com a mão na massa – no caso, a carne –, de gravata sob o jaleco branco. Afinal, eu era hóspede e “sobrinho” do sr. Frenk. E gravata, nele ou nos outros, ele só deixava afrouxar em casa, assim mesmo depois do jantar. Terminada a refeição, ele preparava o próprio café expresso, com o blend de cafés de sua preferência, sentava-se à sala de visitas, servia-se de um digestivo e acendia um havana. Esse era o ritual, e foi numa noite dessas que ele me perguntou: “Você aceita um charuto?” Era sinal de que o gelo entre nós começava a derreter. Como não era fumante, recusei. Ele insistiu: “Charuto não é cigarro, não é um vício, é um prazer para raros momentos. E como não existe vida melhor que vida boa, os bons momentos devem ser valorizados”. Assim, aos 22 anos, iniciei-me no desfrute dos charutos. Em casa de Uncle Boy, quase sempre
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cubanos, e quase sempre da marca Partagás Corona, em tubos de alumínio cor creme, alternados às vezes pelos Suerdieck Havana Supremo, do Brasil. Nossa relação evoluía. De “sobrinho” passei rapidamente a “filho”, e nessa categoria permaneci durante os mais de trinta anos de nossa convivência. O processo de refinamento do gosto que eu iniciara pequeno e intimamente com minha mãe, ainda em Budapeste, acelerou-se naquele curso intensivo de civilidade e etiqueta que tive naqueles dias com o sr. Frenk. Ele era um homem-escola, com um currículo de larga abrangência, e formava homens do mundo. Uncle Boy era especial em tudo. Sempre que iamos à Holanda ele fazia questão de reservar pessoalmente o apartamento no Park Hotel Roterdã. Pessoalmente, significava pessoalmente mesmo! Ia à recepção e encomendava uma habitação na prumada que avistava seu apartamento a poucas quadras dali. Assim, logo ao chegar, poderia acenar para ele da janela do meu quarto. Em um de meus inúmeros retornos à Roterdã senti uma diferença grande na recepção que ele me fez no escritório de sua casa: tirou dois quadros da parede, que ganhara de seu pai, há muito tempo, e me presenteou. Só me fez um pedido especial: que fossem colocados na parede de meu escritório tal como no dele, olhando um para o outro.
As gravuras do touro e a vaca que vieram de Roterdã para a Manoel Dutra
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Esses quadros são duas gravuras em metal que retratam um boi e uma vaca, símbolos de nossa profissão. Claro que isso foi feito, pois era o mínimo que eu poderia oferecer em retribuição a uma pessoa tão importante em minha vida. Certa vez, em um jantar oferecido naquela mesma steak house a um grupo de armadores japoneses, e ao qual fui convidado, aquele homem fantástico ministrou-me uma fantástica, simples e definitiva lição sobre as virtudes do bom relacionamento. Uma lição que poderia ter por título Como construir pontes entre pessoas e personalidades usando ferramentas que manejam hábeis a mútua confiança. Uncle Boy tinha um inglês perfeito, de primeira, britânico, tão bom que o empurrou à presidência do Instituto da Carne do Reino Unido, com sede em Londres – mesmo sendo ele holandês e morando na Holanda: foi a primeira vez que um nãobritânico presidiu aquela entidade centenária. Mas no jantar daquela noite, aquele holandês de metro e oitenta desembestou a falar com seus convidados num inglês com forte sotaque... japonês! Mais que de outras passagens em que o acento me pareceu divertidamente bizarro, lembro-me quando lhe perguntaram sobre qualidade e preços de diamantes. Ele respondeu: “Bigh báta yerow stons ar tsip...” (“big but yellow stones are cheap”, “pedras grandes, mas amareladas, são baratas”). Mais tarde ele me explicaria a atitude como um artifício para conquistar a confiança dos interlocutores. Não que-
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ria parecer nada presunçoso diante de seus clientes e tratava de ser o mais “parecido” possível com eles. Uncle Boy tinha extraordinária desenvoltura social e exercia inúmeras atividades. Participava de ações comunitárias judaicas em todo o país, era líder corporativo – tinha o cargo de vice-presidente da Associação Mundial dos Abastecedores de Navio – e um empresário-modelo. Além do frigorífico, ele possuía uma importante empresa de shipchandling, ou abastecimento de navios. Roterdã era o maior porto do mundo, e o abastecimento dos navios que lá aportavam era o “pequeno” negócio que seu pai havia fundado nos anos 30. A Frenk & Son era um “brinco” de empresa. Em 1969 já tinha um enorme centro de processamento de dados – lem-
Com a tia Lili e a Soninha em Roterdã
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bre-se que os computadores da época também eram enormes – além de cinco linhas de telex para receber os pedidos dos navios que se aproximavam. Os telex eram verdadeiras metralhadoras que disparavam pedidos 24 horas por dia. Seu pessoal de compras ia atrás dos produtos solicitados e, quando o navio atracava, lá estava o contêiner com tudo que havia sido pedido, fossem equipamentos, víveres, ou a lâmina de barbear predileta do capitão. O estágio no
VVH,
o frigorífico do sr. Frenk, viria a ser
também muito importante para o futuro de nosso negócio. Foi lá que, pela primeira vez, vi como era maturada a carne modernamente. Meu pai contava que na Hungria se pendurava a carcaça bovina e deixava-se maturar por duas semanas, mas ele não acreditava que o método fosse seguro na produção em grande escala, e mais ainda no Brasil, onde os diferentes tipos de carne eram consumidos de forma totalmente desigual. Não havia razão para investir na maturação de carnes que não valeriam um centavo a mais por isso, como o músculo, por exemplo. O filé mignon, no outro extremo, não necessitava de maturação, pois amaciar carne macia era totalmente despropositado. O método que aprendi na VVH era perfeito: o investimento em maturação se fazia apenas nos cortes em que realmente valesse a pena. As peças de carne eram embaladas a vácuo e colocadas na câmara de maturação, onde permaneciam
Wessel István durante 21 dias a zero grau – sem congelar portanto. Depois desse período, a carne era desembalada e vendida como outras carnes, porém muito mais macias. Quando voltei da Holanda, vender essa ideia a meu pai foi muito fácil. Ele sempre entendeu com rapidez o que era bom para a empresa. Além de amaciar a carne, o método nos traria o benefício de estender a vida de prateleira do produto, dando-nos maior e melhor condição de compra. Havia um único senão: não deveríamos divulgar o revolucionário processo, ou enfrentaríamos um problema cultural de difícil solução. Enquanto a propaganda dos açougues fosse feita sobre o slogan “carne fresca diariamente”, não seria inteligente anunciar que tínhamos carne de 21 dias, diariamente. Com muita discrição passamos a receber elogios quanto à maciez de nossas carnes, e quando alguém queria mais explicações, tínhamos que inventar toda a sorte de respostas. Era gado especial, criado de maneira especial e blablablá. Passaram-se cinco anos antes que viéssemos a divulgar o método – e, então, começamos a ser copiados. Sempre me perguntei, depois disso: - Não teria sido melhor continuar contando a história do “gado especial”?
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N
A grande arte
ão ficou na história da maturação: a ida à Holanda abri-
ra minha cabeça. Eu já não me satisfazia apenas em cortar carnes; queria criar conceitos novos, produtos novos, ampliar. Passei a atormentar meu pai de forma sistemática, com uma inquietude criativa constante e regular. O que o salvou de enlouquecê-lo foi um breve interlúdio: meu casamento. Conheci a Soninha por meio de sua mãe, Clara, antiga cliente de meu pai. Um dia ela foi ao açougue no lugar da mãe, buscar a carne encomendada, e no lugar do meu pai estava eu atrás do balcão. Entreguei a carne, ela me entregou o charme. Marcamos de assistir a uma sessão de slides lá em casa. O risco parecia grande, e mesmo assim ela não apareceu com uma amiga – apareceu com dois amigos. Um, seu irmão, o
Nosso casamento no sítio em Vargem Grande Paulista
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outro, seu namorado, imagine – este, aliás, e por coincidência, antigo amigo meu. Foi em abril de 1971. Um ano e pouco depois, no dia 25 de junho de 1972, nos casamos sob uma frondosa acácia, em nosso sítio na Raposo Tavares. Era um sinal: levaríamos nossa vida em comum sempre sob a copa ampla de árvores generosas – e não vai aqui apenas uma metáfora. Quando voltamos da lua-de-mel passada entre Europa e Israel, nos instalamos na Alameda Franca, nos Jardins - por coincidência, apenas, rua em que moravam os pais da Soninha. Mas estávamos enfeitiçados pela acácia frondosa e assim que recebemos os prospectos de uma série de prédios de apartamentos que seriam erguidos próximo à Chácara Flora, o bairro mais arborizado de São Paulo, juntamos o correspondente ao valor da entrada e compramos um daqueles apartamentos na planta. Nunca mais sairíamos do bairro e, desde essa época, nossas noites são embaladas pelo canto dos pássaros e nossas manhãs começam sob a luz que se filtra através das copas das árvores. Eu sabia que teria em Sonia a companheira de toda a minha vida, como minha mãe fora a de meu pai, e a certeza me dava o amparo de que precisava naquele exato momento de minha vida junto à nossa empresa, aquele em que meu pai me passava gradativamente o bastão do comando. Mais soli dez e apoio sentiria formando a família que – quase – planejamos. Queríamos muitos filhos, mas gravidez, para a Sonia,
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não era exatamente uma tarefa a que seu corpo se dispusesse com facilidade. Batalhamos muito os dois primeiros. Graças à nossa teimosia, Daniel nasceria no dia 13 de julho de 1974; Tatiana chegaria convocada pela mesma insistência em 2 de julho de 1976. Marina viria, em 5 de março de 1980 por feliz descuido, porque subitamente a dificuldade de Sonia em engravidar desapareceu – e justamente quando havíamos dado as tarefas por encerradas. Enquanto isso, no front empresarial, eu permanecia em batalha semelhante à do front doméstico, e ainda procurava com insistência gerar novos negócios para a empresa. Mas onde estariam seus embriões? Nós tínhamos uma loja que atendia por dia a mais de trezentos clientes externos, além de fornecer de dez a vinte mil refeições diárias a cantinas de grandes indústrias. Ter uma única loja em uma cidade com as dimensões de São Paulo me assustava. Esta era uma cidade diferente, pensava. Na Europa uma loja fica no mesmo lugar por décadas e mais décadas, com os mesmos funcionários e os mesmos clientes – aqui, não. Eu percebia que nossos clientes mudavam de casa e bairro empurrados pelo crescimento da
Na primeira semana de namoro com a Soninha que se apresentava com o Paulinho Nogueira, no festival da tv Record, em 1971
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cidade, partiam para pontos mais distantes do centro e, consequentemente, ficavam mais distantes de nós. Essa percepção me assustava, ainda mais porque notava que o trânsito ficava pior a cada dia. Era fundamental que abríssemos uma segunda loja. Mas, como? Como manter o controle sobre a qualidade, assunto que para meu pai era absolutamente inegociável? Eu acabei por convencê-lo de que, se fizéssemos todos os cortes de carne em nossa matriz, onde a carne seria embalada e pesada, não haveria o risco de comprometer a qualidade. Precisaríamos, claro, dos equipamentos modernos de pesagem que havia conhecido na Holanda. Importamos então aquelas “revolucionárias” balanças eletrônicas que, imaginem, pesavam e calculavam o preço do produto! Era novidade absoluta, ninguém fora capaz de tal ousadia por aqui até então. Essas balanças nos possibilitariam criar o açougue sem açougueiro: trabalharíamos apenas com carnes pré-embaladas, e poderíamos aprofundar nosso comprometimento junto ao consumidor quanto à confiabilidade do nosso produto. Nessa época, os açougues não eram exatamente exemplos de honestidade na pesagem, e aquelas balanças acabavam de vez com o acréscimo do dedão maroto. As máquinas expressavam o peso preciso e calculavam o valor exato. Liquidavase igualmente com a instituição da gorjeta. Claro, os brasileiros não a inventaram – mas certamente a aperfeiçoaram.
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Nossos balconistas pareciam atender aos clientes exatamente de acordo com o desejo deles, e sem discriminá-los – mas não era o que acontecia. Por força da malfadada gorjeta. Havia dois tipos de clientes para os atendentes: os que davam e os que não davam gorjeta. Nenhum balconista iria “perder” seu tempo com os clientes que só diziam obrigado; esses eram quase mal atendidos, e mereciam o mínimo de cortesia possível. Já para os clientes das gorjetas polpudas, tudo era possível. Até pagar menos do que deviam: aos balconistas interessava mais a gorjeta, e eles se davam à generosidade com a carne – a nossa carne. Em uma loja de carnes pré-embaladas os clientes não teriam motivo para pagar gratificações; o bal-
Com meu irmão János na Manoel Dutra por volta de 1980
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conista seria um mero separador de pedidos, e não teria contato direto com o produto. Definidas as regras, passa mos a procurar o ponto onde a primeira filial se localizaria. Nossa atenção voltava-se para a Avenida Faria Lima, que despontava como grande corredor comercial de São Paulo. Nossa previsão se confirmaAnúncio no O Estado de São Paulo indicando a inauguração da loja da Faria Lima
ria, e por sorte encontramos uma loja para alugar no melhor ponto da avenida, quase em frente ao shopping Iguatemi. Era novembro de 1974; Daniel, meu filho, tinha quatro meses – e eu apenas 27. Resolvemos inaugurar não apenas uma nova loja, mas um conceito em comércio de carnes – e tudo ainda antes do Natal. No dia 19 de dezembro de 1974, nossa primeira filial era inaugurada. Abrimos às 8 da manhã, quando imaginei que nossos clientes já houvessem recebido o jornal O Estado de S. Paulo e lido nosso anúncio, que dizia: “Família Wessel: os segredos da carne, de pai para filho, desde a velha Hungria até a nova Faria Lima”. Entrincheirei-me atrás do balcão, orgulhoso de um proje to que tornei realidade, e esperei os clientes que, presumi, chegariam em hordas, satisfeitíssimos com o Açougue
Wessel István Definitivo. Tínhamos ido atrás deles, estávamos próximos de suas casas! E nada. Os clientes eram poucos, e naquela segunda quinzena de dezembro estavam mais preocupados com a compra dos presentes de Natal do que com as encomendas de pernil de vitela. Os poucos que entravam olhavam, achavam lindo – era, de fato – e perguntavam pelas mesas de corte de carne. “Não há”, eu dizia, “todos os cortes são feitos em nossa matriz, sob direta supervisão do sr. László. “Não lhes pareci muito convincente. “Só tem carne em pacotes fechados?”, eles voltavam a perguntar. “E se eu quiser sete fatias? Sou obrigada a levar dez? Ou cinco? Hmm, isso não vai dar certo”. Eu voltava a insistir com as pessoas no acerto do sistema e lhes pedia, em respeito ao nosso nome (marca era coisa do futuro), que ao menos experimentassem um pacote. Caso não ficassem satisfeitas, eu faria questão de lhes devolver o dinheiro. Elas concordaram – e ninguém devolveu o que levou. Passaram-se alguns dias e os mesmos clientes começaram a voltar – para comprar. Fiquei muito satisfeito em vêlos, até ouvir a primeira pergunta que faziam: “E então, já estão cortando carne na frente do cliente? Porque do jeito que está não vai funcionar!” Era uma ducha de água fria, e parecia levar abaixo meu lindo projeto. Só que em seguida a mesma pessoa pedia um pacote de carne. Pareceu que haviam combinado: durante
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todos os primeiros dias de funcionamento da segunda loja, cada cliente que entrava dizia a mesma coisa: “Isso aí não vai dar certo. Me dá dois pacotes”; “Vê se arruma carne pra cortar na nossa frente, me dá quatro pacotes”. A cada ameaça, um pedido. Dois meses depois, eu pude constatar: o projeto era bom. Melhorou mais ainda quando meu irmão János entrou na empresa. Ele tinha 18 anos, estava louco para trabalhar e sempre teve ótimo tino comercial, muito melhor que o meu. Eu herdei mais as características maternas; ele, as paternas. O comércio estava em seu sangue: em poucos meses, ele transformou a loja da Faria Lima em um grande sucesso. Graças a ele, a ideia vingou: poderíamos, sim, ter uma casa de carnes sem açougueiro, uma revolução para a época. Um amigo querido foi muito importante na evolução de nosso negócio, Júlio Ribeiro. O Júlio já era então um dos mais respeitados publicitários do país e me chamou a atenção para o logotipo no nosso luminoso: aquilo era uma marca, poderosa, a maior herança que poderíamos deixar a nossos filhos. O resto era ativo físico, apenas – mas a marca, dizia Júlio, transcendia tudo que pudesse ser tocado. Levamos um tempo para entender o que isso pudesse significar. Até então nosso negócio era vender carne, e era só no cuidado com a carne que nossa atenção era centrada. O Júlio foi paciente, porém, explicava calma e pausadamente, e nós
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acabamos por entender, ainda que de forma um tanto nebulosa, o que ele insistentemente queria dizer. Tivemos então a ideia de experimentar essa tal de marca. Resolvemos lançar, com o nosso nome, uma faca e uma travessa de madeira para o corte doméstico de carnes. Os modelos das travessas eu busquei na Dinamarca, onde os designers esbanjavam talento no desenho de utilidades domésticas. Tivemos de fazer adaptações, já que as medidas europeias destinavam-se a servir para o corte de pequenos pedaços de carne. Quem ousaria, na Dinamarca, comprar uma peça de carne com mais de 2 kg? Era o mesmo que matar um boi para uma grande comemoração. Procuramos um bom fornecedor que secasse as madeiras em estufa, para não empenar ou rachar, e lançamos uma bonita linha de duas ou três peças com a marca Wessel gravada a fogo. Eram lindas e logo começavam a fazer sucesso. Não havia absolutamente nada no gênero à venda no Brasil; as pessoas compravam para uso próprio e para dar até de presente. Em cada tábua estava gravada nossa marca, que seria lembrada, e associada a bons momentos, a cada vez que se fizesse um churrasco. Eu come çava a entender o que o Júlio queria dizer.
Com meu grande amigo Julio Ribeiro no Reveillon de 87 em Nova York
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Os utensílios de churrasco que serviram de “grande mídia” para a marca
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A faca Wessel ainda estava longe de ser a peça que eu realmente queria com nossa marca. A grande mudança aconteceu quando estivemos, Sonia e eu, em Thiers, na França. Thiers é a capital da cutelaria francesa e fomos visitar uma das fábricas mais famosas da França, a Sabatier. Procurei o endereço perguntando aos transeuntes até cruzarmos com um senhor de chapéu, com um cachorro poodle toy a tiracolo. Perguntei a ele sobre o endereço e ele me respondeu: “Eu sou Sabatier. A fábrica já está fechada, mas com prazer posso levá-los até lá. Entramos e ficamos boquiabertos. Era como se estivéssemos em pleno século 19. Tudo artesanal, das forjas às mesas de acabamento. Comprava algumas de suas facas quando Sabatier me perguntou: “De onde vocês vêm?” Nossa resposta o espantou: “Mas no Brasil está um de nossos maiores concorrentes no mercado internacional! A Mundial faz facas forjadas de excelente qualidade”.
Wessel István Guardei a informação. Voltando ao Brasil, não esperei nem um dia. Liguei para a Mundial e falei diretamente com o presidente, um certo sr. Sopher. Disse que eu queira fazer uma linha de facas forjadas, da melhor qualidade, com nossa marca gravada na lâmina. O sr. Sopher, lá no fundo, deve ter se divertido com tamanha petulância, mas deve ter achado também que nossa marca associada à deles poderia ser bom negócio para as duas partes. De qualquer maneira, fazer facas com marca gravada era um pouco estranho para a cultura daquela antiga indústria de origem suíça. Sem querer dizer não, mas longe de dar a bênção, a Mundial encontrou uma saída honrosa: propôs uma compra inicial de 20 dúzias de cada modelo. Comprar duzentos e quarenta facas de cada tipo era, além de uma exorbitância em valor, um ato de coragem. As facas forjadas custavam três ou quatro vezes mais que as estampadas que até então vendíamos. Na realidade, valiam a diferença. Baseado em nada mais que feeling, convenci meu pai de que devíamos fazer o investimento. Ele, um homem educado comercialmente no duro regime comunista, queria saber em primeiro lugar como seria controlado o estoque: essas facas seriam verdadeiros objetos de desejo, não só dos clientes, como certamente também dos funcionários. O fato é que a compra foi feita, e por muitos anos essas facas foram best-sellers no Brasil na linha de utensílios de mesa
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Três gerações dos Wessel: János, meu irmão, László, meu pai, Daniel, meu filho, e eu
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de qualidade superior. Por dez anos, ainda, não haveria importação desses chamados “supérfluos”, e as facas venderam bem durante todo o período. Passados vinte anos da implantação da venda dos utensílios em lojas, fizemos um levantamento e contabilizamos empiricamente mais de 500 mil peças vendidas. Parece pouco para vinte anos, mas se imaginarmos que cada uma dessas peças – fossem facas, tábuas especiais de corte, frigideiras de ferro fundido, jogos americanos, luvas térmicas, aventais diversos, churrasqueiras e tantos outros utensílios – levava a marca Wessel gravada, tínhamos aí uma mídia das mais importantes, alternativa e eficaz, que traria lucro financeiro e projetaria, mais que qualquer outra, a nossa marca. Sabíamos, então mais do que perfeitamente, do que é que isso se tratava.
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Aos olhos da multidão
esmo que não se revelasse depois o sucesso que foi, a
loja da Faria Lima teria já nos servido imensamente por abrir-nos os olhos para a importância de todo o processo de marketing no desenvolvimento de nosso negócio. Foi nesse ponto que meu pai e eu entendemos muito rapidamente que teríamos que destinar verbas para publicidade, por exemplo. Hoje, nem se fala, mas já naquela época anunciar custava ver dadeiras fortunas (para nós, ao menos), e ainda assim com pramos duas meias páginas no Estadão para alardear a dife rença e a excelência de nossa nova loja e de seu novo produto, a carne em pacote. E havia ainda que investir em divulgação, o que era bem diferente de publicidade e igualmente necessária. Foi ainda
A loja da Faria Lima por volta de 1977
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Júlio Ribeiro que nos indicou aquela que seria a primeira assessoria de imprensa a trabalhar conosco, tam bém à época da inauguração da segunda loja. Acho que fomos tão bem convencidos por ele que, nos 30 anos seguintes (até hoje, portanto) nunca deixamos de ter assessorias trabalhando para nós. Tudo que fizemos a partir daí passou a ser imediatamente divulgado por nossas assessorias, e viemos a colecionar milhares de recortes de jornais e revistas com reportagens sobre nossas atividades. No início nem entendíamos bem seu verdadeiro papel, mas o Júlio, sempre pacientemente explicava: “Vocês têm tantos diferenciais em relação à concorrência que isso tem que ser divulgado”. Desde as primeiras pautas que nosso assessor produziu, todas foram aceitas pelos mais importantes veículos da imprensa. Demos dezenas de entrevistas para jornais, revistas, rádio e televisão. Esse trabalho acabou trans formando os Wessel em referência quando o assunto era carne, primeiro, e no tema mais amplo da gastronomia, 72/86 - Fichas de depois. Nessa época, a imagem do comércio de carnes era receitas que fizeram toda a diferença na composta de lojas sujas, moscas, funcionários encardidos e, fixação da marca talvez o pior, carnes duras.
Wessel István Percebemos em seguida que não vendíamos produtos prontos, e sim matérias-primas, que dependiam de um correto preparo para receber a aprovação do cliente. Se dirigíssemos nossa divulgação para o savoir faire da carne, estaríamos beneficiando a venda do nosso produto. Então criamos fichas de receitas, preparadas por nós, que tiveram sucesso imediato. Eram todas de fácil preparo e ao mesmo tempo sofisticadas – e com algo importante em comum: davam certo. A primeira pergunta que ouvimos dos clientes foi: “Onde podemos conseguir os temperos para executar as receitas?”. Claro, não demorou muito e estávamos vendendo enorme variedade de temperos, ervas e condimentos. Outro de nossos cases de grande sucesso também veio a acontecer por conta da obsessão do público consumidor por novidades. Em qualquer novidade enxergávamos potencial de divulgação sem custo de nossos produtos e de nossa marca, e em 1980, lançaríamos uma mega-novidade que nos traria resultados proporcionais em termos de divulgação: um produto revolucionário chamado carpaccio. Hoje em dia, explicar o que é carpaccio é quase chamar o interlocutor de ignorante, tal a popularidade do prato nos restaurantes de todo o mundo. O carpaccio foi criado no famoso Harry’s Bar de Veneza, a “pátria” de escritores como Ernest Hemingway, de coquetéis como o bellini e dessa carne crua em fatias finíssimas a que deram o nome do
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Capa da Veja São Paulo, em Setembro de 1985
grande pintor veneziano do século
Na página ao lado: matéria do O Estado de São Paulo de 17/07/1998 sobre os 40 anos da Wessel no Brasil
O fato é que jamais o carpaccio havia sido produzido para con-
XV,
Vittore Carpaccio.
Em 1980, poucos restaurantes no mundo serviam carpaccio e, confesso, nem me lembro onde o provei pela primeira vez. sumo em casa. Essa carne tem algumas particularidades: deve ser cortada em fatias muito finas (com espessura de 1 mm, aproximadamente) e congelada sem perder a cor – sendo um prato de carne crua, sua aparência tem que ser impecável. Desenvolvemos o método de congelamento, a forma de fatiar, pesquisamos a receita do molho e a forma de servir. Fizemos alguns anúncios na revista Gourmet e colocamos a placa nas lojas: “Temos carpaccio, fatiamos na hora”. Foi uma
Wessel István sensação. A primeira matéria sobre o novo prato, que tinha vocação de sobra para entrar na história da gastronomia, saiu no Jornal da Tarde, de São Paulo. Dizia no título: “Carne crua para quem não gosta de carne crua”. Em vinte anos, foram vendidas 2,5 milhões de caixinhas de 250 g de carpaccio. Cortar na hora deixou de ser viável alguns meses depois do lançamento, tal o sucesso do novo prato, perfeito para servir nos dias quentes. Desenvolvemos então a embalagem para que o carpaccio pudesse ser vendido em supermercados, padarias finas e mercearias. É até hoje um de nossos produtos mais vendidos em qualquer época do ano. O espaço que viemos a ganhar nas principais publicações brasileiras foi tão amplo e nossa relação com a imprensa tão forte e intensa que, por um processo simbiótico, acabei de alguma forma por me tornar também um “quase” jornalista. Escrevia aqui e ali, às vezes nos maiores jornais do país, às vezes em obscuras revistas, sobre gastronomia. A revista Gourmet, talvez por surgir fora de época, acabou por ser fechada, infelizmente – mas na década de 90 surgiria a revista Gula. Meu pai, meu irmão e eu, que estávamos ligados 24 horas por dia em gastronomia, nos sentimos órfãos quando fechou a Gourmet e saudamos
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entusiasmados o surgimento de Gula. No número 5 assumiu sua direção um experiente jornalis ta, com 25 anos de Veja e larga experiência internacional. Em nosso primeiro encontro, percebi que o sisudo José Antonio Dias Lopes, o nosso Dias, era uma pessoa distinta, em mais de um sentido. Era muito desconfiado, como todo jornalista. Almoçou comigo sem muito falar, mas consegui vender-lhe a ideia de fazer uma matéria sobre o Mercado Municipal de São Paulo, a grande fonte da boa comida, e um espaço de primoroso projeto arquitetônico datado dos anos 30. Seria minha estreia em Gula. A reportagem foi publicada e, claro, fiquei muito orgulhoso. Texto meu, fotos da minha ilustre pessoa fazendo compras e uma linda fotografia de minha família, todos comendo melan cia. Depois dessa matéria, fiz outra e outra mais, até que nos setenta números da revista que saíram desde essa data, raro é o número que não tenha ao menos uma matéria minha. Do primeiro almoço, nasceu uma grande amizade. O Dias Minha primeira matéria na revista Gula
é uma pessoa especial. Primeiro, me ensinou a escrever direito. Depois, muitas coisas mais de sua rica cultura e sin cera amizade. Lealdade acima de tudo. É assim que ele se
Wessel István comporta em todas as situações. Gula passaria quase a ser minha segunda casa, vivenciamos juntos, entre puros e Portos, todas as fases da revista que acabaria sendo um marco no mundo editorial. A gastronomia acabaria por ocupar enorme espaço no mundo editorial, dentro e fora do Brasil. Toda revista importante, de interesse geral, passou a tratar do tema. E eu passei a ser convidado cada vez com mais frequência a escrever sobre. Depois, a falar: apresentava quatro boletins semanais sobre gastronomia na rádio Eldorado e depois na rádio Bandeirantes, ambas de São Paulo. Na TV, passei a dar dicas de gastronomia em um programa de alcance nacional. Achei simplesmente justo chegar à
TV.
Afinal – só eu e
meus pais lembrávamos – eu era muito menos o criador do carpaccio doméstico do que o inventor do controle remoto.
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O
Perfume de carne
s anos 90 nos prometiam – a nós, brasileiros – o ingresso nos
tempos modernos. Ouvíamos falar em globalização. As importações seriam abertas e faríamos parte do mundo. Eram boas novas. Na empresa, adentramos a década fazendo basicamente o que sempre fizemos: vendendo carne. Não sabíamos bem o que queríamos – mas, ao menos, a década de 80 nos deixara claro o que não queríamos. Franquias e restaurantes, por exem -
plo, foram experiências que nos deram dores de cabeça. Em 1990, meu pai, meu irmão János e eu éramos sócios em cinco lojas e em cinco restaurantes. O János então me propôs uma troca: eu sairia dos restaurantes e ele da Wessel. Meu irmão queria tocar sua vida de acordo com seu feeling. Sentia-se um pouco como se tivesse dois pais – o nosso e eu mesmo, que tinha
Córner Wessel no Pão de Açúcar
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quase dez anos mais que ele. Aguentar um pai já é fogo, imagine dois. E tendo de conviver o dia-a-dia com eles. E os dois cheios de ideias prontas, experimentadas e provadas. Com a separação dos negócios eliminamos o desgaste e nossa relação melhorou. E a empresa voltava ao leito original. Não teríamos mais restaurantes. O que teríamos? Qual seria o futuro? Mais: quando é que alguém se faz essa pergunta? Quando se está consciente de que tudo precisa ser questionado, imagino, e de forma permanente. Sempre digo aos meus filhos que a segunda coisa a ser feita todas as manhãs – a primeira é escovar os dentes – é a seguinte: perguntar-nos a nós mesmos se o que fizemos ontem valerá para hoje. Só ao fazermos a pergunta descobrimos como é preciso que seja feita, e quantas vezes a resposta é um sonoro não. Naquele começo de década, a resposta a essa pergunta recorrente que nos fazíamos era aquele sonoro não todos os dias. Nada do que fizéramos ontem servia para hoje: era pre ciso, novamente, ousar mudar – e ousar vencer. Tínhamos imaginado que os supermercados sucumbiriam às circunstâncias dos novos tempos, cada vez mais exigentes de qualidade, de zelo na produção e de responsabilidade social. Estávamos enganados. Os supermercados foram ágeis em modernizar-se, em adaptar-se à crescente conscientização de seus clientes e mudaram com impressionante rapidez métodos de trabalho e atuação de mercado até então retrógrados e
Wessel István “míopes”. Não iriam entregar os pontos da noite para o dia e entregar a enorme fatia de mercado que detinham para os pequenos e médios comerciantes. Tudo seguia igual – menos para nós. Enquanto nossos vizinhos voltavam a se queixar da concorrência do setor de supermercados, alvo de suas lamúrias há anos, foi exatamente aí que resolvemos investir. Tínhamos uma das marcas mais conhecidas do mercado e sabíamos de seu poder de alavancagem de produtos quando bem e corretamente usada. Procurei duas das melhores redes de supermercados com a seguinte proposta: criar um departamento Wessel dentro de suas lojas, inteiramente operado pela Wessel, e sem risco algum para os contratantes. Bastaria que nos cedessem espaço refrigerado. As duas redes se interessaram imediatamente e, em dezembro de 1996, começamos um novo negócio: reinventamos nossa empresa, cujos conceitos comerciais se desgastavam com o tempo, dentro das lojas de supermercados. Não criamos nada de novo; aplicávamos aos supermercados o mesmo conceito que os produtos cosméticos propuseram às lojas de departamentos. Seríamos nos supermercados uma espécie de Lancôme – da carne, porém, âmbito em que éramos novamente os pioneiros. Era uma atividade completamente nova e não tínhamos estratégia ou procedimentos elaborados para sua aplicação. Sabíamos como vender carne em nossas lojas; vendê-las na casa
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dos outros era algo completamente diferente. Fora que nossas lojas eram apenas duas, fiscalizadas pela família; nos supermercados, víamos as lojas multiplicando-se mês a mês. Em 24 meses, abrimos 25 lojas – ou melhor, 25 departamentos Wessel, nas duas redes. Toda uma estrutura teve que ser montada: duas engenheiras de alimentos, um supervisor e Sonia, minha mulher, fazendo a supervisão da supervisão. Meu pai chegou a ver o início dessas mudanças, e a dar a sua bênção: aos quase 81 anos, era ainda um sagaz observador das novidades que introduzíamos na empresa. Entendeu de imediato as vantagens do sistema e apoiou sua aplicação desde o primeiro momento. Certo dia sentei-me ao lado dele na cama em que jazia, cansado, e conversamos longamente. Um supermercado de uma das redes com as quais tínhamos acor do estava por ser reinaugurado depois de uma reforma, em um bairro bom da cidade. E eu estava de partida para a Feira do Livro, em Frankfurt. Ele me disse, “Quando você voltar de viagem, coloque nossos produtos nessa loja, é um bom ponto”. Eu receava que não houvesse tempo para que ele visse a loja com nosso departa mento lá montado. Seu fim, eu sabia, estava próximo. Pensei bem e disse-lhe que a Wessel estaria implantada lá ainda antes de minha viagem, em menos de uma semana. E assim foi feito. Corri com as obras e ao cabo de uns poucos dias meu pai visi tava nossas instalações, num sábado. Estava tudo pronto para
Wessel István a inauguração, como ele queria. Hoje essa é uma das melhores lojas que temos. Ele, novamente, tivera visão – e razão. Foi dessa época também a proposta que fiz à minha mãe: “Você, ao lado da Sonia, vai também supervisar as lojas. Faça três visitas por dia e aplique o que você sabe muito bem: observe e aponte o que não está em ordem”. Ela achou que era um favor que eu lhe fazia, apenas para que se ocupasse. Não era favor algum, óbvio – se alguém o faria, era ela –, havia um pouco dessa intenção de fazê-la ocupar-se, claro, mas o fato é que eu estava aplicando aquela antiga premissa de meu pai: não existe overdose de supervisão. Era como conferir conta: quanto mais, melhor. Depois, o trabalho continuava a crescer e precisávamos de todos os braços habilitados e provados no ramo. Começamos a atuar no sistema delivery, de entregas em domicílio, de uma das redes parceiras. O sistema delivery só trabalha com pesos exatos, pois cada pacote tem preço fixo, publicado em catálogo. Aprendemos mais que depressa a “fabricar” cortes de carnes com peso não variável. Não foi difícil, mas tivemos de aprender. Dessa forma pudemos entrar no catálogo de janeiro de 99, com distribuição de cento e oitenta mil exemplares. Eram mais 180 mil consumidores expostos à nossa marca e aos nossos produtos. Eu precisava dos braços de minha mãe, de minha mulher, de meus filhos, de meus parentes, de meus amigos. Os de meu pai, em breve, já não teria.
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O gesto do adeus
oi nos anos 1990 que passei a me dedicar cada vez mais a
escrever. Tornava-se intensa minha colaboração em jornais, revistas e emissoras de rádio e TV, especializados ou não. Em
Gula cheguei a publicar 150 artigos, lidos, cada um, por mais de 100 mil pessoas todos os meses. Em
VIP
somei outros 60
artigos, sempre ligados à gastronomia. Na rádio Eldorado, uma estação ligada ao jornal O Estado de S. Paulo, foram mais de 800 programas. Na rádio Bandeirantes, outro tanto. Na televisão, já havia apresentado uma centena de programas transmitidos para todo o território brasileiro. O ano de 1997 foi particularmente ativo. Resolvi em janei - Meu pai, László, ro produzir um novo livro. Eu já havia escrito e publicado um, Os segredos da família Wessel - O livro sobre carnes, em 1982, que
em sua última visita a Budapeste, em 1992
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encarava mais como uma ferramenta do marketing da empresa. Era inspirado no livro de histórias e receitas de um importante açougue nova-ior quino instalado na Madison Avenue, que eu então acabara de visitar. Achei a ideia muito interessante do ponto de vista mercadológico e tratei de levá-la adiante assim que retornei. Robert e Judith no lançamento do livro Wessel – Os Segredos da Carne, em 1997
Desta vez imaginava um projeto mais pessoal, um coffee table book em edição luxuosa, muito bem ilustrada, com importante parte histórica e, sobretudo, rica em informações. Tive pressa em escrevê-lo. Não sei bem por quê; o fato é que senti vontade de terminá-lo tão logo pudesse. Preparei os
Na página ao lado: cena da fila durante a noite de autógrafos
textos, organizamos as fotos e em seis meses e uma semana Wessel – Os segredos da carne foi lançado. A noite de autógrafos deu-se na loja mais sofisticada de uma das redes de supermercados com as quais trabalhávamos em parceria. Era a recém-reinaugurada loja da alameda Gabriel Monteiro da Silva, da rede Pão de Açúcar. Levamos para a festa umas 700 pessoas, e 520 livros foram vendidos – muito, diziam meus editores, um recorde de vendas para noites de autógrafo. Meu pai esteve lá por algum tempo, já estava fisicamente bem fraco, e foi capaz de transmitir uma energia tão pode rosa que nem nos meus melhores tempos de eletrônica eu
Wessel István poderia mensurar. Acho que foi a razão de o livro ter sido tão bem-sucedido: em um ano vendeu toda a primeira edição – um sucesso, para um livro ilustrado e caro – e ganhava o Prêmio Jabuti, o mais importante prêmio editorial do livro no Brasil, na categoria Produção Editorial. Papai estava particularmente feliz – estava sempre feliz, nunca o vi de outro modo, e naquela noite, feliz de um modo especial. Era mais uma realização importante de sua família, o que ele mais prezara durante toda sua vida. Antes de sair, ele se voltou para mim e disse, uma outra vez: “Tal qual na Paulai Ede utca (rua, em húngaro)...”
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Wessel – Os segredos da carne seria levado pela editora, a DBA
Melhoramentos, e exibido ainda naquele ano na Feira
do Livro de Frankfurt, a mais importante do mundo no gênero. Não resisti e segui à Alemanha junto ao meu bebê – digo, meu novo livro. Ligava todos os dias ao Brasil para ter, sobretudo, notícias de meu pai. Havíamos passado por muitos sustos com ele nos meses anteriores; as notícias que recebi, felizmente, eram boas – tranquilizadoras, inclusive. No fim de semana ele havia até mesmo saído de barco com meu filho. Os dois eram mais como pai e filho que como avô e neto, não se largavam. Daniel era para ele como um terceiro filho, meio fora de hora. Como havia feito comigo, ele o ensinava incansavelmente sobre todas as particularidades do negócio de carnes, compra e venda. Meu pai sabia que tinha pouco tempo para educá-lo, e essa seria sua contribuição derradeira para a continuidade do nome Wessel, a empresa. Daniel já era a quinta geração da família no ramo, e meu pai não queria de maneira alguma que fosse a última. Cheguei de Frankfurt na sexta-feira 24 de outubro de 1997. No domingo, 26, fiz o que sempre faço: fui correr cedo para depois passar na casa de meus pais, tomar um café e dar uma prosa. Cheguei lá pelas 10 horas, como sempre, e nos senta mos à cozinha, como sempre. Algo, no entanto, não se passou como sempre, algo muito significativo aconteceu.
Wessel István Meu pai foi ao quarto, trouxe de lá um de seus tesouros mais íntimos – a foto original do casamento de seus pais, em 1900, instalada em um porta-retratos – e me entregou. Olhei para minha mãe e senti meus olhos se encherem de lágrimas ao mesmo tempo que os dela. Sabíamos o que a foto significava para ele; era a única imagem de seus pais que sobrevivera a duas guerras mundiais, a campos de concentração, à fuga da Hungria. Era uma das duas únicas fotos que ele levara junto consigo e que por essa razão não havia sido perdida com a sacola de fotografias que meu tio Imre deixou pelo caminho em nossa fuga. O gesto era claro. Ele se desfazia de um símbolo importante, e de sua ligação com o passado. Desfazia sua ligação com as pessoas mais amadas e mais importantes de sua longa vida. Chegara o momento da separação. Não dissemos uma única palavra. O gesto da entrega era muito mais forte, e me comprometi calado a cuidar daquela imagem com todo o carinho. Depois os convidei para almoçar, mas minha mãe disse que já haviam combinado almoço com um casal de amigos. Pena. De qualquer maneira, disse a eles, vocês conhecem os meus filhos, sempre acordam tarde. Se mudarem de ideia... Um pouco depois do meio-dia, minha mãe me liga: “Seu pai está muito cansado e cancelamos o almoço. Já estávamos vestidos para sair, mas vou esquentar alguma coisa e ficar por
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aqui mesmo”. Disse-lhe que passaria mais tarde para vê-los. Duas da tarde, outra ligação dela: “Seu pai está bem, vamos nos vestir, ele quer almoçar com vocês”. Ótimo! Se ele estava de fato cansado ao meio-dia nunca soube com certeza, mas o que sabia é que ele cancelava qualquer compromisso para almoçar com seus filhos e netos. Reservei mesa em um restaurante tranquilo, sem barulho, para que pudéssemos conversar bastante. Nos encontramos lá, e tivemos um almoço muito bom. Meu pai estava ótimo, minha mãe aliviada e com seu costumeiro bom humor, meus
filhos
não
se
insul ta ram
–
tudo
per fei to.
Permanecemos no restaurante até depois das quatro, ele sempre disposto. Depois eles foram para casa e encerrou-se mais um domingo feliz. Na quarta-feira, 29, ele convidou meu irmão János, a namorada e os pais dela para jantar em um de seus restaurantes prediletos. Jantaram, conversaram, traçaram planos para o casamento dos filhos, a comemorar-se no aniversário dele, dia 22 de novembro. Faltava menos de um mês. Na quinta-feira, 30, meu pai foi ao pedicuro – para ele, uma atividade essencial: as unhas daquele pé adormecido nos “passeios” na Rússia – como ele sempre se referia aos trabalhos forçados durante a guerra –, o mesmo pé que lhe permitiu cruzar os regatos gelados conosco no colo durante a nossa fuga, encravavam sem que ele percebesse. O cantinho que a
Wessel István unha do dedo grande empurrava era insensível, mas o resto do dedo não. Se a unha encravasse, cortá-la era um sofrimento e tanto. À moça que o tratava disse que não mais a veria – mas ainda assim, à saída marcou a data do atendimento seguinte, exatos vinte e um dias depois. E dirigiu para casa normalmente. Na sexta-feira, 31 de outubro de 1997, recebo uma ligação de minha mãe às 9 horas: “Seu pai desmaiou. Não é novidade, eu sei, mas ele voltou a si estranho, diferente das outras vezes. Venha até aqui”. Coração partido, pressão a não sei quanto, voei até sua casa. Quando cheguei lá, ele já estava bem. Cansado mas bem. Havia desmaiado inúmeras vezes nos seis meses passados. Fora o susto de minha pobre mãe, tudo terminara bem. Em poucos minutos, toda a família estava lá. Ele conversou com todos, e deu-me a impressão que “despachou” com cada um. Ao János, meu irmão, advertiu – mais uma vez, pro feticamente: “Cuide de sua saúde, não brinque com seu peso”. Garantiu à Sonia, minha mulher, que no dia seguinte estaria bem, e que juntos visitariam “aquele apartamento que eu tanto gostaria que vocês comprassem”. A mim, transmitiu uma única mensagem: “Cuide bem de todos”. Em seguida nos fomos, um a um. Uma hora depois, meu pai, o mestre-açougueiro László Wessel, adormeceu. Dessa vez, para sempre.
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Eu, autor
eses depois da morte de meu pai, em abril do ano
seguinte, Wessel – Os segredos da carne ganhou o Jabuti, que lhe dediquei intimamente como uma espécie de homenagem póstuma. Ao receber o prêmio, lembrei-me do dia em que terminei aquele meu outro e primeiro livro, em 1982, e anunciei a
meu pai que levava os originais à Editora Melhoramentos, para editá-los. Ele ajustou os óculos e me disse, com tom de dono do negócio: “Não vamos gastar dinheiro com isso agora...”. Demorei a convencê-lo de que não só nada custaria, como eu ainda receberia direitos autorais pela venda dos livros. “Como é que alguém vai investir para publicar um livro para nós?”, ele perguntava, incrédulo. Tive de explicar que a editora teria lucro com a venda do livro, que esse era seu
Na entrada do prédio em Budapeste, na Rua Paulai Ede 21, em 2000
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negócio, e que não se tratava de nenhum favor. Quando publiquei o segundo, 15 anos depois, ele já vibrava com a ideia dos livros e me incentivava a escrevê-los. Foi naqueles dias passados na Feira de Frankfurt, logo depois do lançamento ao qual meu pai, então já fisicamente enfraquecido, levara toda a energia inesgotável de seu espírito, que me veio a ideia de escrever um livro que falasse sobre aquele homem, sobre sua mulher, sobre o passado terrível ao qual sobreviveram e o futuro luminoso que acabariam por construir. Era um mundo maravilhoso aquele da feira do livro, e eu circulava por lá como criança em carrossel. Numa dessas voltas, parei em frente ao lindo estande da Hungria, entrei, e comecei a folhear seus muitos livros. Para mim, que saí da Hungria com nove anos, a língua húngara tinha sempre um quê de mistério. Entre nós, da família, o húngaro não era uma língua – era um código, que usávamos quando não queríamos que outros nos compreendessem. Daí que estar naquele território da língua húngara na Feira de Frankfurt chegou a me emocionar, até mais do que se estivesse na própria Hungria. Pensei que seria maravilhoso levar alguns livros em húngaro para meu pai, seria um ótimo presente. Ele gostava de ler, e ler em húngaro certamente o faria mais feliz. A Feira de Frankfurt não é aberta ao público em geral, porém, e nem vende livros no varejo; durante os quatro primeiros de seus cinco dias de duração, dedica-se de forma exclusiva aos negó-
Wessel István cios editoriais, em que o principal produto à venda são os direitos de tradução das obras lá expostas e representadas. Só no dia de seu encerramento, sempre um domingo, abre-se a feira ao público e vendem-se os livros em exposição. Eu sabia disso tudo e mesmo assim arrisquei. Dirigi-me a um dos expositores no estande e contei minha história. Era János Köbanyai, de uma editora chamada Mult és Jövö (Passado e Futuro), e expliquei-lhe que gostaria de levar alguns livros para meu pai, mas que deixaria Frankfurt três dias antes do término da feira e não poderia, portanto, esperar até o domingo para comprá-los. Ele entendeu, concordou em vendê-los e até me ajudou a escolher alguns títulos. Terminada a transação, Köbanyai me perguntou se eu era escritor ou editor. Disse-lhe que nem exatamente um, nem outro. Expliquei que havia escrito uma obra cuja editora a trouxera para expor no estande do Brasil. Mostrei-lhe o livro e ele ficou admirado com sua qualidade gráfica – o texto, claro, era português: não lhe dizia rigorosamente nada. Fizlhe uma breve sinopse do conteúdo e ele se interessou por saber mais sobre a história de minha família. A seu pedido, acabei por demorar-me num longo relato de nossas peripé cias, desde a fuga da Hungria até então. Ele adorou a história e me sugeriu no ato que a contasse em livro – que publicaria! Aceitei a ideia de imediato, e emocionado. Claro! Era a forma ideal, a mais adequada, de prestar uma
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homenagem a meus pais, a seu extraordinário passado, e à luta que empreenderam com o ensejo único de mudar para muito melhor o futuro da família. Mal dormi à noite – a história já serpenteava em minha cabeça. Como a contaria? Qual seria a estrutura da narrativa? Seria mais um livro sobre a história de uma família de imigrantes? Köbanyai queria que o livro falasse tanto da empresa como da família, que saiu da Hungria para o Brasil sem falar a língua portuguesa, sem dinheiro, só com a vontade – enorme – de vencer. Seria um case de empresa, então? Decidi que seria tudo isso. De volta ao Brasil, procurei uma amiga de adolescência, a jornalista Marcia Glogowski, para ajudar-me a levar adiante aquela tarefa – que agora já me parecia missão. Propus a ela que dividisse comigo o trabalho. Ela conhecia bem toda a minha família e sua história; teria todas as condições para fazer uma pesquisa histórica e recolher os relatos de meus pais – com o material, montaríamos toda a saga familiar anterior ao período que eu mesmo testemunhara, como personagem. Decidi que começaria a minha narrativa pelo dia 23 de outubro de 1956, na aula de esgrima interrompida pelo ruído nas lagartas dos tanques sobre os paralelepípedos. Quando estivéssemos em frente à Ópera de Budapeste, prontos para partir em fuga, intercalaria no relato a epopeia de meu pai. Contaria de sua infância esplêndida, em que nada lhe faltou; da dura expulsão desse pequeno paraíso familiar; da vida
Wessel István peregrina e solitária que se seguiu, em que tudo lhe seria tirado, até quase a vida; e diria de como o ofício, nosso ofício há gerações, haveria de salvá-lo em qualquer instância, de qualquer e insolúvel impasse, até chegar a redimi-lo de todo o sofrimento, e levá-lo a construir a melhor das vidas para toda a grande e próspera e amada família que deixou. Quando ele voltasse da guerra e encontrasse aquela que seria sua mulher, eu passaria ao relato da milagrosa sobrevivência de Eva Sugar, minha mãe. Contaria de sua fibra e seu caráter extraordinários; de sua aventura de guerra em que mil anjos a levaram de volta para casa; da intensa luz de seu espírito, que encantaria meu pai e todos que a conheceram; de sua tremenda determinação, que acabaria por empurrar-nos à vida melhor pela qual ansiávamos, tão melhor que nem os nossos sonhos mais dourados fariam prever. E, sim, não poderia esquecer, e não vou: contaria de sua mão, que segurava a minha nos passeios aos museus e à montanha com tanto afeto e zelo que eu me sentiria protegido pelo resto da vida. Nessa altura da narrativa, todos nos juntaríamos na mesma história de paixão e fuga: meu pai, minha mãe, meu irmão János, eu, meu tio Imre, minha tia Lili, minha prima Judith. Chegaríamos à terra abençoada, para nós, e decepcionante, para outros, do Brasil. E então o livro tomaria o rumo do case de sucesso que meu editor húngaro sugerira. Eu passaria a contar como meu pai construiu do absolutamente nada o
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melhor açougue de São Paulo e como, em pouquíssimo tempo, nossa empresa se tornaria uma referência em gastronomia em todo o Brasil. Diria como meu pai nos educou para fiar-nos profissionalmente apenas na qualidade, nada mais, fosse do produto, fosse das pessoas, fosse do comando – fosse da nossa própria qualidade, como homens e comerciantes. E aproveitaria a deixa para dar ao leitor suas receitas de sucesso: os princípios inarredáveis que o guiaram por um caminho vitorioso, em que não sofreria um único percalço, e em que pôde dar-se ao luxo de nunca mais correr riscos. Fiquei com a impressão de que, se seguisse essa linha e desse tal estrutura à nossa história, o livro acabaria ganhando ainda um certo tom de obra de auto-ajuda – ou, como diz o editor, de “desenvolvimento pessoal”. E achei que não seria nada mau, nem minimamente inadequado. Nada encontraria de desabonador em fazer meu livro figurar nessa categoria. A nossa não foi outra senão uma história de auto-ajuda e desenvolvimento pessoal. Vim a aprender, tive a vida inteira para isso, que essas são as melhores histórias, e as que pertencem à mais cobiçada das categorias narrativas: são histórias que não se interrompem – histórias sem-fim. Em nossa história, a de nossa família, nunca deixamos de nos ajudar, nunca deixamos de nos desenvolver, e nesse afã nunca somos interrompidos – nem sequer pela morte. Morreu minha avó Ilona, em 1970. Morreu meu pai, nosso centro e esteio, em 1997. Morreu, apenas dois anos
Wessel István depois, meu irmão János, que infelizmente não deu ouvidos às últimas palavras que meu pai lhe dirigiu: continuou fumando e nunca emagreceu. Mas aqui seguimos sua história de ajuda e crescimento, que passa por nossos cromossomos, instala-se no de nossos maravilhosos filhos, os meus, Daniel, Tatiana e Marina e do János, Bianca e Márton, e aponta para uma história contínua, a desenrolar-se por um futuro que se perde na distância e ainda assim de previsível brilho, luminoso, de contínuos finais felizes. Uma história sem-fim. Uma história sem cortes.
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Minha mãe com os cinco netos em 2003. Da esquerda para a direita, primeiro os que estão em pé e depois os sentados ao lado dela: Daniel, Bianca, Márton, Marina e Tatiana
Agradecimentos
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lgumas pessoas viajaram comigo na aventura maravi -
lhosa que foi escrever um livro sobre a história de nossa família. Adrenalina pura. A decisão de escrevê-lo aconteceu cinco dias antes da morte de meu pai. E foi justamente seu falecimento que reforçou em mim a ideia de não parar. A primeira ajuda, pedi à jornalista Marcia Glogowsky, minha amiga de adolescência que acompanhou nossa família nos últimos quarenta anos. Entrevistou minha mãe diversas vezes, teve coragem de ouvir e transcrever depoimentos de meu pai para o Arquivo Histórico Judaico Brasileiro. Ajudou-me muito. Conheceu minha avó, compartilhou de muitos dos bons momentos de nossa vida no Brasil. Viu-me tirar carta de motorista. Passeamos muito no Simca do pai
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UMA HISTÓRIA SEM CORTES
dela, Sr. Benjamin Solitrenick, considerado na época, um irresponsável por emprestar seu carro pra os amigos das filhas. Acho que de alguma forma retribuí. Apresentei-lhe seu marido Niels que nos acompanhou ao atual Museu do Imigrante, onde ainda como hospedaria, passamos nossa primeira noite no Brasil. Lá no Museu, ajudados pela Diretora Sra. Midori, localizamos o Registro de Passageiros do Provence, navio que nos transportou de Gênova a Santos em 1957. Foi o Niels, grande profissional da fotografia, que fez a foto da página com nosso registro de entrada à hospedaria. Ele e a Marcia sentiram o mesmo que eu depois de quarenta e tantos anos sem passar pelos arcos do lindo prédio. Nos conhecemos logo depois de nossa chegada ao Brasil. Haja coração! O Paulo Lima, excepcional fotógrafo, é uma amizade recente. Começou por questões profissionais e se firmou por pura afinidade e respeito. Um grande amigo. Em uma viagem a trabalho estivemos juntos na Hungria para tomar bons Tokaji e testar os ótimos alimentos lá produzidos. O Paulo, a exemplo do Niels e da Marcia, me acompanhou ao passado que calou fundo em minha alma. Fomos juntos visitar a casa onde morei em Budapeste e constatamos que os vizinhos eram ainda os mesmos. Imaginem... Foi ele que me fez tocar a campainha, entrar no prédio e na casa dos Juhász, nossos vizinhos até 8 de dezembro de 1956. Registrou tudo em
Wessel István cores, preto e branco e principalmente, na memória. Devo a ele a linda foto da capa do livro e os da visita aos Juhász. Nossa amizade mudou depois desse dia. Para melhor. Por último ficou minha filha Tatiana. Um dos meus grandes orgulhos. Como profissional das artes, sua vocação você poderá avaliar daqui pra frente. Temos o mesmo senso de humor. Rimos e choramos juntos. Entendemos-nos (e às vezes, desentendemos) sem ter que pronunciar uma única palavra. Seu bom gosto e profissionalismo estão presentes em cada uma das páginas deste livro. Sem nenhuma corujice! Revivemos juntos a história de nossa família a cada página diagramada, nos entreolhamos nos momentos exatos. Foi muito bom. Obrigado Titi, minha querida filha.
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Este livro usa a fonte tipográfica Janson, que por muito tempo julgou-se ter sido criada pelo holandês Anton Janson em Leipzig, entre os anos de 1668 e 1687. Posteriormente comprovou-se, contudo, que a Janson foi trabalho do húngaro Nicholas Kis (1650-1702), discípulo do holandês Dirk Voskens. A Janson é um nítido exemplo da influência que exerceu a tipografia holandesa em toda Europa antes do surgimento dos designs do inglês William Caslon (1692-1766). FOTOLITOS E IMPRESSÃO DA
GEOGRÁFICA, EM PAPEL PÓLEN BOLD DE 90 G.
EDITORA FRANCIS,
OUTONO DE
2004.
A
CENTENÁRIA SAGA DE UMA
FAMÍLIA QUE, FIEL AO QUE AMA E AO QUE FAZ, VENCEU AS MAIS TERRÍVEIS ATRIBULAÇÕES TRANSMITINDO DE PAI PARA FILHO SUA RECEITA INFALÍVEL DE FÉ E OTIMISMO.
Este livro emocionante narra mais de 150 anos da extraordinária e comovente aventura da família Wessel, que duas guerras e dois regimes genocidas acabaram por expulsar de uma outrora romântica Hungria, em que tinham raízes profundas. O destino os leva a fugir para um longínquo e desconhecido país, o Brasil, onde em pouco tempo revolucionam o comércio de carnes e redi mensionam seu ofício, o de açougueiro, ao qual dedicaram o talento de cinco gerações.
“Embora não seja um romance, este livro reúne todos os ingredientes de um bom exemplar do gênero: ação, suspense, acasos e a força incomum dos personagens e pode ser lido na cama ou na mesa. A carne — de qualidade igualmente incomum, o que fez e faz a fortuna da família — pontua a saga que começou na Hungria de séculos atrás e vive alguns de seus melhores capítulos no Brasil contemporâneo.” MARCO ANTONIO DE REZENDE, jornalista
“Os Wessel são o maior presente que a Hungria deu ao Brasil. Parece que sempre estiveram aqui. Mais brasileiros, impossível.” J. A. DIAS LOPES, diretor da revista Gula e colunista gastronômico de O Estado de S.Paulo
ISBN 85-89362-38-8