BeOS.exe Willian Vasconcelos
1 A Ameaรงa
- Lyla, você pode nos dar o relatório detalhado da situação até o momento? – disse o homem de longo casaco negro ao entrar na sala. O autor da frase exibia um semblante tenso, assim como os outros onze ocupantes da sala, todos em seu devido lugar ao redor de uma grande mesa. Todos em grandes e confortáveis poltronas. Temperatura ideal. Estofado inteligente que se ajusta ao corpo. Doze homens. Uma grande mesa negra com um círculo de metal incrustado bem ao centro. As luzes baixam. O círculo se acende. Luz amarela. Holografia. Logo os dozes pares de olhos se fixam na figura que se revela em uma beleza amarela. Lyla. - A partir de que ponto cronológico Sr. Iliev? – indagou a imagem, uma jovem mulher de aparência árabe usando um vestido simples. - Desde o começo Lyla, desde o começo... Preciso estar atento a algum detalhe que nos informe como chegamos até esta situação e como iremos resolver isto. - Muito bem, senhores, darei inicio ao relatório verbal, se puderem por gentileza conectarem o cabo de holografia residual em seus plugs, poderemos começar. “Clicks” foram ouvidos pela sala. Um cabo fino com um conector plugado na entrada atrás da orelha direita de cada um dos presentes garantiria uma imagem e uma ambientação perfeita na mente de cada um dos diretores da GeoLive, o maior conglomerado corporativo do que se habitualmente nomeia de mundo. Alocado na memória residual, esse “passeio” poderia ser eliminado apenas com um Clearware, um software de faxina mental comum. - O ano em que os fatos se iniciaram para atingir o atual estado segundo minha matriz de vetores e probabilidade, é o ano de 2213, ou seja, há exatos 135 anos. O ano em que foi implantada a primeira colônia terrestre em Marte. Tanto o projeto como a instalação foram de responsabilidade da USRTech, uma joint-venture da empresa americana Behavior e da russa Dekaiev. O projeto de instalação da colônia batizada de Alpha 1 foi executado em 180 dias terrestres. A Alpha 1 tinha capacidade para acomodar inicialmente 500 pessoas, capacidade essa aumentada pelas expedições de expansão realizadas em 2215 e 2216 que permitiram a criação de mais 2000 vagas na colônia. - Por favor, Lyla – disse o homem sentado a direita de Iliev, que atendia pelo nome de Sulfur – Seja mais objetiva, todos nós sabemos a história de Alpha 1 e de suas colônias-satélites, assim como também sabemos da Lepra Marciana, não precisa nos contar esses detalhes, seja mais objetiva. - Isso, se possível Lyla, seja o mais objetiva possível – concordou Iliev recostando-se em sua poltrona. - Sim, como desejam. Devo realizar o relato a partir de que parte da história senhores? - Acredito que logo no momento em que a crise estourou em Marte seja o momento mais indicado para iniciar o relato, não é senhores? – respondeu o senhor de prótese mecânica na mandíbula, Cecil Flarriot. - Tudo bem senhores – Prosseguiu Lyla com sua voz doce e digital – Vamos iniciar com a crise de cinco anos atrás. Imagens injetadas. Era possível ver cada detalhe da mega-estrutura construída em Marte. Suas grandes abóbodas. Seus cadáveres. Lepra. Um tipo letal. Iliev podia até mesmo sentir o cheiro pútrido de morte e abandono, mesmo sem nunca ter estado lá. E
pra que precisava? Seu cérebro acreditava que esteve lá, isso bastava. A infecção causou pavor. A elite terrestre estava em Marte. Ar puro reciclado. Água pura reciclada. Status. E agora não passavam de corpos. Matéria orgânica entupindo os ambientes esterilizados. Brancos no auge. Asquerosos no presente. Iliev se agacha e contempla a face de porcos gananciosos, madames siliconadas. Retorcidos, destruídos, podres. Pessoas boas demais para morrer entre os artificiais, os mutantes, os simples humanos terrestres. Iliev sorri. Tiveram o que mereceram. - Olhem, aí vem o pessoal do Serviço de contenção – disse Flariott, de olhos fechados enquanto esfregava as mãos. - Sr. Iliev? Tenho permissão de relatar este episódio? – Lyla sempre em seu tom doce e semblante simpático que só um sistema de I.A. Pretender podia gerar. - Sim, Lyla, não há inocentes nesta sala. O tom mecânico, desprezível até, de Iliev fez com que o ambiente pesasse toneladas. O silêncio foi quebrado pelos passos do Serviço de Contenção. Estava de volta a Marte. Os homens de branco passaram por ele. As mascaras caricaturais dos soldados se assemelhavam a uma mascara Kabuki grotesca. Gritos. Disparos. Sangue. Carne queimada. Os clérigos da Igreja da Purificação diziam que a Lepra era uma forma de Deus depurar os erros. “Não se foge da ira Divina”. Era o sermão predileto deles. Já a Congregação das Almas de Silício dizia que isso era uma vingança da tecnologia contra “os humanos que queriam ser puros, fugindo da óbvia evolução das próteses mecânicas”. Iliev sempre achou que religião era para fracassados e desesperados. - A população das colônias foi totalmente dizimada pela doença e pela ação do Serviço de contenção da GeoLive. Há um ano um sinal de vida foi recebido no Mainframe da estação espacial D.Pedro I, de propriedade da Antares Tech. O sinal foi repassado a nós da GeoLive, já que Marte é nossa jurisdição. - Chegamos ao ponto senhores. - interrompeu Iliev. - A GeoLive imediatamente enviou um esquadrão do Serviço de Contenção com oito membros e mais um time de cinco cientistas. Assim que passaram pela órbita de Fobos, nossos sistemas Hawkings e Descartes, os núcleos de nosso Mainframe, perderam o contato. Os senhores presentes nesta sala, os diretores das diversas faces da GeoLive, optaram por colocar o assunto em prioridade zero, ou como o senhor mesmo disse na época Sr.Sulfur, o assunto foi jogado “ na cova”. - Eu disse isso? – espantou-se o corpulento diretor - Sim, disse. – respondeu secamente Iliev. - O assunto só voltou à tona há 26 horas – prosseguiu Lyla – quando a nossa sonda Boris registrou catorze sinais, de natureza não identificada, vindo em direção a Terra. Os sinais não foram captados pelos sensores de Fobos. Trinta minutos depois os sinais chegaram a Neo-Bombay, cidade sob jurisdição da Tartra-Elemental. Doze minutos após chegarem à cidade, o Mainframe ativou o firewall e a barreira de contaminação. Bloqueio de nível 7 . Nosso Mainframe encontrou sinais de atividade orgânica e de atividade de silício consciente, ou seja, senhores, Híbridos. Há exatas vinte e quatro horas, trinta e seis minutos e vinte e nove segundos, Neo-Bombay não emite sinal algum, apenas o informe de infecção e bloqueio. Silêncio. Provocador. Acusador. Eram culpados. Sabiam o que eram aqueles catorze sinais. Algo saiu vivo de Marte. E chegou aqui. Uma nova crise seria um
desastre. Impulsos percorriam conexões sinápticas. Pensamentos. O que fazer? O que acontece em Neo-Bombay? O barulho de um corpo se levantando. Olhares penetrantes. Olhares para Cecil Flariott. - Bom eu tenho uma solução senhores. - E o que seria Cecil? – indagou Iliev. - Como sabem a EmbryoLive, da qual sou diretor, está trabalhando em andróides e borgs para a futura colônia em Titã. Além é claro da produção de Mantenedores de vidas e peças tecno-orgânicas de reposição, as próteses e órgãos artificiais. Acredito que uma de nossas pesquisas resultou em algo que pode nos ajudar a descobrir o que se passa em Neo-Bombay, e quem sabe, resolver esta situação. - E o que seria Flariott? – indagou Jamal De Souza, diretor do braço responsável por sistemas de combustíveis alternativos do GeoLive, a PowerLive. Cecil se encaminhou até a porta, pediu um momento, saiu e logo retornou com um jovem ao seu lado. - Senhores eu lhes apresento Liam nosso protótipo de humano artificial. – disse Cecil passando a mão no ombro do jovem que encarava os presentes. - O que ele tem de diferente que a série A7 não tem? – indagou em tom presunçoso Pedro Andiev Sulfur. - Bom, o nosso Liam possui uma rede neural 39% mais eficiente e rápida, possui 812 mil células vídeo receptoras e vídeo transmissoras. O grande truque senhores é que este novo modelo emula o cérebro humano com uma precisão de 99,96%. Ele pensa, reage, é sensível a estímulos motivacionais, estímulos sensoriais e tudo isso com a velocidade de raciocínio cinco vezes mais rápida que os modelos atuais. Além disso – prosseguiu andando pela sala – Liam possui um sistema nano tecnológico de reparos, o que pode garantir uma vida útil de aproximadamente 900 anos. - A cidade não está fechada? Por que a gente não usa uma bomba bioassimiladora e some com todo mundo? É tão simples... – Sulfur disse levantando-se e indo olhar o jovem. A aparência do artificial era a de um humano caucasiano, rosto com traços orientais, dezessete anos aproximadamente, olhos azuis e cabelos negros e compridos, atingindo a altura do nariz. Tinha uma estatura mediana. Um metro e setenta e cinco aproximadamente. Vestia uma calça negra de tecido grosso, botas pesadas e uma jaqueta que chegava até a altura dos joelhos, do mesmo tecido grosso que a calça. Tudo preto. - O que esse pirralho pode fazer? – indagou com desdém o corpulento diretor. - Se quiser servir como exemplo, diretor, posso arrancar sua cabeça por me chamar de pirralho. – disse Liam com um sorriso irônico e voz suave, como se acabasse de dar cumprimentos a recém casados. - E então Iliev? A decisão é sua... – disse Flariott limpando as lentes de mono diamantum. - É melhor que arriscar vidas humanas e assumir mais problemas. Liam está encarregado da missão de entrar, verificar e caso seja necessário resolver a situação em Neo-Bombay.
- Sim, partirei imediatamente Sr. Iliev. Lyla prepare armamento e locomoção em cinco minutos. – disse o artificial saindo da sala.
2 A Dupla Aceleração continua. Sete minutos tinham se passado desde a partida da sede da sede da GeoLive. A moto equipada com propulsores Exxion 8 rasgava a estrada. A sinalização de neon passava de forma quase imperceptível. O velocímetro indicava a velocidade de 470 km/h. - Liam? – a voz surgiu dentro do capacete enquanto uma pequena imagem holográfica de uma jovem de cabelos curtos e rebeldes surgia no painel da moto – Eu sou Kari, seu sistema de navegação, pesquisa e contato. - Hum, muito prazer Kari, está a par da missão? - Certamente senhor. Neo-Bombay está a três minutos. A entrada está lacrada. Acredito que terá dificuldades para entrar. Estou tentando hackear o sistema da cidade, mas a criptografia tem chaves de um terabyte aleatórias que são trocadas a cada 2 minutos. - Continue tentando Kari. Já era possível notar a silhueta amedrontadora da cidade. Os prédios pareciam lanças a transpassar as espessas nuvens carregadas de chumbo e silício. Ar tóxico. Os respiradores não eram acessórios da moda caótica de Neo-Bombay. Eram itens de série. Arranha-céus gigantescos dividiam espaço com construções milenares e fabricas gigantesca. A população era de 4 milhões de pessoas, 700 mil mutantes e cerca de 1500 artificiais. Dezessete etnias. Clima hostil. Violência cotidiana. A cidade mais antiga. A única cidade que trazia traços culturais desde a grande hecatombe, quando ainda era chamada de Nova Babel. Velhos tempos. Eles não mudaram muito. Um grande portal surgiu no meio da estrada. Neo-Bombay. Híbridos. Qualquer tentativa de criar uma raça hibrida era expressamente proibida pelo Pacto de Moscou em 2033. A desobediência custava à vida. Nunca quebrada. Sempre respeitada. Era lei e por incrível que pareça era obedecida. - Fui enviado para verificar os sinais de vida hibrida que originaram a infecção nesta cidade. Meu nome é Liam e sou funcionário da GeoLive. – gritou o jovem artificial. - Entendido senhor, sou o sistema central de segurança da cidade de NeoBombay, propriedade da Tartra-Elemental. Sua identificação é verdadeira. A cidade está em bloqueio de nível 7. O protocolo natural exigiria a autorização do gerente do Mainframe. Ele não pode ser encontrado. Uma vez que adentrar os muros da cidade estará por sua conta e risco. Concorda? – a voz mecânica parecia esconder algo. - Concordo. Trovões foram emitidos. As imensas portas da cidade se abriam. Lamurientas. Malditas. Mortas. A moto acelerou. Kari surgiu no painel. - Estranho – disse ela contemplativa – nem foi necessário hackear o sistema.
- Deixe isso pra lá, Kari. Procure pelos sinais e por humanos importantes. A grande via expressa sumia em meio aos prédios cobertos de fuligem. Ar pesado. Soturno. Era como se a cidade toda estivesse morta. Um cemitério com túmulos de centenas de andares. Túmulos negros que sumiam e às vezes pareciam entrelaçados. A elevação acentuada da via fez o motor roncar generoso e com ajuda do eco, o rugido se assemelhou a uma criatura pré-histórica. - Liam? Consegui hackear e grampear as câmeras de vídeo, estamos nos setor 2246 e totalizei 9883 sinais de vida. Todos híbridos. Com base nesses dados posso concluir que estamos tratando de um vírus com alto grau de propagação e ação. - Algum sinal de humanos puros? - Ainda não. O que faremos? - Me leve até um grupo de híbridos, vamos tentar contato. A moto voltou a ganhar velocidade. Kari informara que um grupo de cerca de quarenta híbridos estava há alguns metros dali. Freio, acelerador. Curva fechada. A luz do painel queimando os olhos. Kari. - Liam? Má noticia. Terminei a varredura na cidade. O vírus dizimou a população. Encontrei apenas um sinal puro. Está a 3.3 km ao norte. Há alguns sinais híbridos por perto. Sugiro ação imediata. O propulsor despejou potência como as antigas cataratas despejavam litros de água. Liam repassava mentalmente as armas à disposição. Uma pistola de pulsos com reguladores de efeito Duchoviny X23, um bastão eletrocutor de 18 megawatts e uma navalha de lâmina de mono-carbono. Simples, leve e letal. Ajustou a visão. Três criaturas de forma humana. Bizarras. Todos tinham facilmente mais de 2 metros de altura. Ossos brotavam de todos os lados. Pontas metálicas. Membros desproporcionais. Bolhas e infecções de pele horrendas. A primeira criatura possuía uma mandíbula metálica bem desenvolvida. A segunda trazia um exoesqueleto metálico partindo da coluna e cobrindo toda parte esquerda do corpo. A terceira caminhava como um quadrúpede e possuía grandes hastes metálicas saindo do crânio. Liam tirou a pistola do coldre. Seriam hostis? Teve certeza assim que a primeira criatura fez com que usasse seu armamento. Suas células oculares viram o pequeno projétil ser cuspido do cano da pistola revestido de um pulso devastador e logo em seguida abrir um pequeno buraco na “testa” do hibrido e um pequena nuvem vermelha borrifar o ar cinza da cidade. O mesmo destino das outras duas criaturas. Borrifos vermelhos, lascas de ossos e metal. Grunhidos agonizantes. Um braço. Um toque. Um acidente. A moto derrapou arrastando Liam por 230 metros até se chocar com um veiculo militar abandonado. O rastro de poeira foi assentando. “Essa máquina mata fascistas”. Um adesivo bem apropriado para uma maquina militar. Uma sombra se formou a sua frente. - Moço, por favor, pode me ajudar? – a voz doce partiu de uma menina de cabelos castanhos dourados. - Kari? Ela é pura? - Afirmativo, é o sinal que captei há pouco. O nome dela é Alissa Ubler. 8 anos. Você está bem Liam? - Já estive melhor. Não quebrei nada. Mas foi uma queda e tanto. - Ela é uma fada moço? – questionou Alissa
- Eu, fada? Não. Sou um sistema de navegação, interação, analise e comunicação baseado em I.A Pretender com projeção holográfica da mente na qual fui baseada. – respondeu Kari com a habitual fala técnica – e não o ser mitológico conhecido como fada, mas fico lisonjeada com a comparação com as belas figuras. – completou tentando parecer gentil diante da cara de interrogação da criança humana. - A moto já era... – suspirou Liam – Pelo menos achamos o sinal puro. - Liam, vou me transferir para seu sistema portátil – avisou Kari, sumindo do painel da moto e aparecendo flutuando na pequena tela na luva de comandos esquerda do jovem artificial – Prosseguindo, preciso que colha uma amostra para analisar e enviar os dados para Hawkings e Descartes. Liam andou até os cadáveres dos três híbridos que o atacaram. Alissa vinha logo atrás. Ao passar pelo hibrido que provocou sua queda, Liam fez questão de esmagar o que sobrara da cabeça do inimigo, o que sobrou do cérebro da criatura derramou-se sobre o chão. Era possível ver os terminais de carbono fundidos a pedaços orgânicos. Liam retirou um fragmento e pôs na lamina do terminal em que Kari se encontrava. - Esse fragmento basta. Vou analisar e enviar os dados para o Mainframe. Ficarei off por um tempo Liam, pode sobreviver e cuidar da criança? - Tudo bem.
3 Híbridos Alissa seguiu Liam até a moto. Sentia-se assustada pelo jovem artificial de aparência sombria, apesar de tê-la salvo dos híbridos, os príncipes dos livros que os pais liam sempre antes de ir para cama, sempre tinham roupas esplendorosas. Esse príncipe trajava negro. Não tinha espada e sim uma arma que explodia cabeças. Não tinha compaixão com os inimigos. Não tinha cavalo branco. E tinha uma fada que não era fada. Mas se tinha uma fada, com certeza era um príncipe do bem. Estranho. Mas ainda sim um príncipe. Um baque surdo interrompe os pensamentos da pequena humana. Cadê o príncipe? Ah! Lá está ele lutando com outro híbrido! - Desgraçado! O hibrido havia acertado Liam violentamente no rosto. Sorrateiro. Violento. Preciso. Uma maquina. - Impuro! Junte-se a nós! – disse a voz rouca e metalizada do hibrido. - Você... – Liam tentava afrouxar as mãos envolta de seu pescoço – Você é diferente dos que me atacar... Atacaram... - Ah... Aqueles ali? São prematuros, tem pouco tempo de contaminação... Já eu... Eu sou um original. - Você veio... Foi você que começou a... Epidemia? – disse Liam enquanto tentava alcançar a faca. - Epidemia? Epidemia? É assim que chamam a gente? De vírus? Nós somos a salvação! A boca se abriu muito além do que um ser humano comum poderia conseguir. A pele acinzentada. O cheiro de ar ionizado escapando da boca escura e cravejada de
dentes serrilhados. Saliva negra. Movimento brusco. Sangue. Ferro. Muito Ferro. Viscoso. Negro. Carne e metal sendo rasgados. A lâmina da faca de Liam rasgou a garganta do hibrido. Os estalos e gargarejos soaram confusos. A faca aprofundou. Subiu. Mais estalos. Carne e metal sendo rasgados pela faca. Alta tecnologia virótica sendo destruída por um utensílio pré-histórico. A mente artificial de Liam tinha um quê de ironia. Rolou o cadáver cinzento do hibrido para a direita e levantou-se. Alissa estava encolhida atrás da moto, assustada, quase aliviada. Pressão no ombro. Arremessado. Um híbrido o arremessou contra uma lixeira. Um grito estridente chegou aos receptores auriculares de Liam. Alissa. A criatura caminhava em direção a criança. Uma mulher. Ou melhor, o que sobrou de uma mulher. Vestido vermelho bonito. Unhas feitas. Pele necrosada em volta do pescoço. Cabos brotando pelo corpo. E após uma fração de segundo ela jazia deitada ao chão sem a metade de cima da cabeça. Liam. Outro híbrido, esse pequeno, provavelmente uma criança por volta dos onze anos envolveu Alissa com cabos que saiam do braço do pequeno híbrido, deixando a humana como um pequeno escudo a sua frente, visivelmente para evitar um disparo certeiro de Liam. Aprendiam rápido. - Alissa!! – Gritou o jovem soldado artificial. Algo explodiu a parede a sua esquerda. Detritos. Híbrido. Perfuração. Tudo durou frações de segundos. Liam tinha uma perfuração no ombro. Imobilizado numa parede. O hálito pútrido e férreo do híbrido exalando em sua face. A lança que feria o ombro de Liam se prolongava além do cotovelo do hibrido. Como uma arma escondida saída pela palma da mão. A lança acabou com os atuadores do braço. A arma caiu. O braço não respondia. - Você... Você matou um dos nossos... Você matou Dante! – Sibilou o híbrido agressor. - Você tá falando daq-daquela suca-sucata!? –Liam tentava ganhar tempo e pensar em uma saída. - Maldito... Mas é típico dos humanosss... Vocêsss noss deixaram lá... Pra morrer – era possível ver o ódio queimando nos olhos multicores da criatura. - Sabe-e o que é... Mais interessante... Eu nem sou humano! - TRAIDOR! – Urrou o hibrido movimentando-se para dar cabo da vida daquele garoto artificial. Liam utilizou o bastão de energia transpassando o hibrido na altura do que seria o local do coração. O sangue negro e pegajoso espirrou em sua face. Ativou. A fagulha elétrica percorreu seu corpo e o do híbrido. A criatura retraiu a lança urrando insanamente. Liam aproveitou e alcançou a arma. Sabia que o bastão somente retardaria a ação do inimigo. Primeiro disparo. A perna direita do hibrido despedaçou-se. Urro. Sangue. O cheiro de metal fundido. Carne queimada. E lá se vai a outra perna. Braço direito. Esquerdo. Sádico. Eficiente. - Agora, enquanto eu recupero meu braço, vai me dizer o que querem com a garota? – disse Liam enquanto se aproximava da criatura. - Nunca... Seu desgraçado... Um clarão surgiu do console no braço de Liam. Kari. Finalmente. - Desculpe a demora. Onde está Alissa?
- Os híbridos a levaram. Capturei esse. Mas acho que não vai falar. – era visível o desapontamento na voz do artificial. - Acho que posso ser útil. A análise do Mainframe revelou que o vírus, que recebeu o nome de Hybride, é um nano organismo de reparação biológica que sofreu mutação ao contato com o vírus da Lepra marciana. Com isso posso tentar invadir a base de dados do vírus e dessa forma acessar o cérebro desse híbrido antes que ele morra. - Faça isso Kari. Mas rápido, por favor. Ainda precisamos da criança. A criptografia randômica do vírus não ofereceu muita resistência. Kari pode ver como o vírus agia. Alastrando-se. Gerenciando a tudo. Bloqueiam-se os sentimentos. Tudo funcionando na base lógica. Zero e um. Kari reconhece um padrão. Ela é como um fantasma apoderando-se de um corpo vivo. Não adianta esconder. Não há como manter segredos a salvo de um fantasma. - Liam? Acredito que nós e os híbridos temos algo em comum. Enquanto queremos acabar com a praga, eles querem deixá-la mais forte. Alissa é o ponto em comum. Ela é a resposta. Este aqui era um dos originais. Os outros estão no reator sete. Lá! – Kari apontou para a grande chaminé que brotava do chão e rasgava as nuvens. - Vamos. – disse Liam enquanto abria um veiculo estacionado.
4 Reator 7 As quatro rodas cintilaram. Potencia despejada. Velocidade. A todo instante um híbrido desavisado chocava-se contra o veiculo. Sangue podre. Carne e metal. A cada segundo a torre que comportava o reator sete alongava-se no horizonte. O motor da cidade. - Liam, acredito que você tenha que mudar o setup da sua arma de leve destruição para destruição em massa. - Já está. Lá está o portão. - Há seis originais. O que vai fazer? Liam nem respondeu. Colocou o carro em piloto automático, abriu o teto e mirou. O coice que a arma deu jogou-o para trás. Fez se ouvir um silvo. O pulso rasgava o ar. Até que o forte estrondo ecoou. O portão do reator veio abaixo. Algumas pernas foram dez metros em direção oposta aos corpos pertencentes. Liam esboçou um sorriso. Apenas esboçou. A grande sombra que ocultou a sua visão do céu cinzento de NeoBombay e dos braços e cabeças dançando no ar, acabou por arruinar aquele que seria um belo sorriso. Uma fração de segundo depois, Liam estava rolando pela via expressa após ser arremessado do veiculo pela criatura. Quando finalmente terminou de rolar, sentiu o crânio sendo pressionado contra o asfalto. O hibrido salivava. Liam tentava golpeá-lo com chutes, mas a criatura parecia nada sentir. O asfalto começava a ceder à grande pressão feita pelo hibrido. Ao artificial só restou tentar algo esmurrando o braço do hibrido. Após inúmeros golpes, o sangue negro e viscoso começou escorrer. A criatura soltou alguns grunhidos antes de arremessar Liam em direção ao que restou da entrada do reator. Nos milésimos de segundos que se passaram, ainda quando seu corpo cruzava o ar em direção a entrada do reator, Liam alcançou a faca. Teria que servir. A arma ficou
no carro, que se chocou com o muro do reator. O barulho de vidro reforçado se quebrando fez se ouvir. Liam escorregou pelo chão até se encontrar com um armário metálico. Estava dentro do reator. Precisamente na sala dos guardas. Armas. Pequeno e médio porte. O agressor não tardou a aparecer pela janela. Ao ver Liam, urrou. Possivelmente chamando outros híbridos. O chamado foi interrompido por uma rajada que decapitou a criatura.
5 Culpa - O que você quer comigo? – Indagou Alissa. - Você tem uma anomalia criança, todos nessa cidade foram ótimos receptáculos para o vírus, menos você. – disse o hibrido que liderava a invasão e a epidemia. - Klaus? Mestre Klaus? – Um hibrido que possuía pernas parecidas com a de cangurus aproximava trazendo um relatório em suas mãos – aqui estão os resultados do teste da menina. - Ah finalmente Kiriacos! O que tem a dizer? – retrucou Klaus, o líder, suas mãos traziam grandes laminas que arrastavam as pontas no chão. Magro. Havia laminas saindo do corpo por toda a parte. - A garota produz uma enzima que estava extinta na raça humana há cerca de 600 anos. O método de contagio através dos esporos não surte efeito. E o pior, ela desenvolveu imunidade a contaminação. -Maldição! – Gritou o hibrido arremessando um armário contra a parede. Estavam na sala de esterilização. Ultima sala antes do reator. - Calma, mestre, ainda pode realizar o ritual. - Não vejo outra alternativa. Prepare-o Kiriacos. - Como desejar. Klaus andava lentamente de um lado ao outro. O som do metal de suas mãos arranhando o chão causava calafrios em Alissa. Aquilo tudo pra ela não passava de um pesadelo. A mãe e o pai não foram rasgados por aqueles monstros. Eles estão lá em baixo na cozinha preparando o café da manhã. - Por que você tá me prendendo aqui? Eu quero ir embora! - Cale a boca. - Eu não fiz nada! Por que você ta me deixando de castigo!? - Não fez nada!? Vocês humanos nunca tem culpa de nada não é?! – esbravejou a criatura rosnando a cara retorcida a poucos centímetros da assustada garota – Criaram aquela utopia em Marte pra que? Para largar todo mundo pra morrer com aquela praga, que eles mesmos criaram aqui! Eu e meus amigos fomos largados pra morrer naquela droga de planeta! Com a doença que nós criamos! Com a doença que fomos pagos pra criar!
Alissa chorava copiosamente. Talvez por medo. Talvez por pena. Era uma criança, mas entendia exatamente o que aquela coisa a sua frente sentia. Kiriacos voltou trazendo uma maca, cabos e correntes. Alissa assustou-se. - Mas, agora, criança, todos vão pagar. Nem mesmo você que é imune ao nosso “filho” vai escapar. Ainda vai servir de incubadora para uma nova versão do vírus. Um grande estrondo. A porta de metal retorcido estraçalha o corpo de Kiriacos. -Vai sonhando aberração.
6 Vórtice - Aberração? Eu? Vocês nos criaram! Toda essa raça nojenta e hipócrita. Usaram-nos e depois descartaram. Mas nós conseguimos sobreviver, seu artificial de merda! - disse Klaus esbravejando enquanto se voltava em direção da porta. - Cara, isso foi há anos e você ainda repete essa ladainha? É defeito de programação? Porque seus amiguinhos que desmembrei pelo caminho estavam repetindo esse mesmo papo furado – disse o soldado da GeoLive. - Maldito! –Bradou o hibrido partindo para o confronto. Klaus avançou com grande velocidade e quase não percebeu a faca de Liam decepando seu braço direito. Os dois se chocaram. A criatura biomech segurava com violência o pescoço de Liam, pressionando contra a parede. Uma pequena aresta brotou da ferida no braço do hibrido. Um novo membro se formava. - M-Merda! Kari, que p-porra é esse cara!? - Liam, ele possui um sistema de reparos similar ao seu, só que mais evoluído. O novo braço da criatura ganhou o formato de uma grande lâmina. Testada e aprovada no peito do artificial. Um grande curto circuito. Liam sentiu suas forças se esvaindo. - Liam! Sua bateria de força foi destruída. Seu sistema de reparo não tem capacidade suficiente para consertar isso. Você irá atingir massa critica em 55.3 segundos! – informou Kari O monstro gargalhava fartamente. Alissa chorava. O artificial apostou em uma tática suicida. Por transmissão de rádio informou Kari. Era a única alternativa. - Você já era artificial. Nós híbridos dominaremos essa podridão de planeta! E vou começar com essa pirralha chorona. - Kari, agora! Em uma fração de segundos, o reator, uma imensa bobina começou a rotacionar, Liam disparou em uma corrida. Tinha 44.1 segundos. O reator atingiu alta velocidade 10 segundos após. Liam concentrou todas suas reservas de energias em arrastar Klaus através da parede em direção ao grande reator, que começava a criar um grande campo energético. Os dois foram puxados pelo campo de energia e flutuavam enquanto grandes fagulhas estalavam por toda a parte. Kari acelerou ao máximo o reator. Alissa observava fascinada e aterrorizada o tempo se moldar em torna do reator, tudo passava mais depressa do lado de dentro da grande bolha temporal gerada pela grande bobina. Até
mesmo o som parecia diferente. Um grande trovão. E o reator reduziu sua velocidade gradativamente até parar. Não havia sinal de Liam ou do hibrido. Kari se projetou ao lado de Alissa. - Fada? O que aconteceu com eles? - Alissa, eles se perderam no espaço tempo. - Ele não vai voltar? – disse a pequena garota de forma melancólica. - Difcilmente, mas entenda, ele fez aquilo para nos salvar, para salvar a todos que vivem neste planeta. Ele se atirou na dobra gerada pelo reator levando consigo o líder dos híbridos. Imediatamente ao sumirem pela dobra temporal, todos os sinais híbridos se desativaram... - Mas fada... Do que adianta ele salvar a gente e desaparecer?! Aquele monstro disse a mesma coisa... As pessoas usam umas as outras, e depois se esquecem delas... Eu não vou esquecer o meu príncipe! Outro grande estrondo. Como se o céu estivesse sendo estilhaçado. Ou seriam as vidraças de toda a cidade? Impossível saber. A figura de negro desceu silenciosamente, até tocar o solo com suas botas. - Liam! – exclamaram em uníssono a criança humana e a projeção holográfica. - Como conseguiu voltar tão rápido? – indagou Kari. - Rapido?! Você chama 17 anos de rápido!? - Mas príncipe você só sumiu por um minuto... - Demorou dezessete anos para reconstruir meu corpo em outro plano de realidade, só assim foi possível voltar para esta linha temporal. - O hibrido? - Se perdeu de mim durante a viagem... Se quiser saber, foi tarde! Bom ainda tem muito lixo hibrido pra caçar... - Na verdade Liam, todos os sinais híbridos se apagaram assim que sumiram pela dobra temporal... – completou Kari - Bom, vamos voltar para a GeoLive, tenho que reportar tudo aos diretores. Vem Alissa – disse com um gesto de mão – Vamos procurar um cavalo para sair logo daqui. Logo o trio estava de volta a estrada, deixando pra trás um imenso e macabro cemitério hibrido, repleto de corpos e segredos. Talvez nem tão secretos assim.