Cidade Atravessada - TCC 2022/2º

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE BELAS ARTES WANDER ROCHA ARAÚJO

BELO
CIDADE ATRAVESSADA
HORIZONTE 2022

WANDER ROCHA ARAÚJO

CIDADE ATRAVESSADA

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao colegiado de Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais.

Habilitação: Gravura Orientador: Eugenio Paccelli Horta BELO HORIZONTE 2022

Tenho muito a agradecer

Aos meus pais, primeiramente, que me criaram com um espaço e uma abertura para as experiências, sinestesias, ferramentas, ferros-velhos, sucatinhas, materiais de desenho, massinha, objetos e móveis antigos, repletos de memória e formas desenháveis que só hoje em dia posso retribuir e trazer para as minhas imagens. Obrigado por me apoiarem tanto e permitirem que eu pudesse chegar até aqui, pelo acolhimento às minhas tantas máquinas e prensas antigas.

Minha avó Leny, agradeço por ter sido a primeira a me levar para as caminhadas e errâncias pelo bairro, as aventuras com cantil, cuidando com tanto carinho e amor, cercado de plantas e liberdade. Te amo muito viu, Vó.

Meus amigos Yan e Júlia e Lara, que não sei nem como começar a agradecer, por tornarem toda experiência de descoberta acadêmica tão leve e prazerosa, desde as primeiras rotinas, matérias e caminhadas ao bandejão, até as mudanças de habilitação, correrias de trabalhos para entregar, desesperos de TCC, montagens de exposições, escrita de projetos para residência, fofoquinhas e vinhozinhos, amo muito vocês.

Lara, não sei como teriam sido esses últimos 4 anos sem a sua companhia, foi um aprendizado sobre carinho, cuidado, amor, dengo, cinema, música, plantinhas, receitas e arte. Obrigado por todos os puxões de orelha quanto ao meu medo de escrever e a falta de confiança para escrever sobre meu trabalho. Obrigado por tanto e por tudo, viu?

Vinícius e Pedro Pablo, agradeço por todo carinho e apoio, por sempre estarem presentes pra cada bagunça que arrumo pra nós aqui no atelier, nos projetos de forno, prensas, guilhotinas, materiais, desenholas e cafés.

Obrigado Géuva e Vavá, por tanto carinho e apoio, por criar um ambiente tão aconchegante desde a primeira visita a Escola de Belas Artes.

Agradeço ao querido George, que me acolheu mais do que como um simples aluno ou um colega de atelier, mas como um amigo. Obrigado por me incentivar a fazer uso da gravura como algo múltiplo e volante, a não ter medo de mostrar e apresentar sempre da melhor forma o meu trabalho para qualquer um. Obrigado por todas as oportunidades, pela residência no seu atelier com o Fábio, pelos ensinamentos e amizade.

Agradeço também aos meus amigues que fiz durante a graduação, que tive a honra de fazer aulas juntes, como aluno, como monitor do atelier de Lito e também do de Metal. Espero que tenha sido tão especial pra vocês quanto foi para mim, sempre foi uma convivência muito leve, os cafés, as corridas pra pegar o ônibus da gravura, pra tirar placa do ácido, enfim.

Agradeço também aos professores que me trataram com tanto carinho durante a graduação, Liliza Mendes, Daisy Turrer, Tânia Araújo, Isabela Prado, Rodrigo Borges, Rosvita Kolb, Patrícia Franca, Joice Saturnino, Juliana Gouthier, Eliana Ambrósio, João Cristelli, Amir Brito, Conceição Bicalho e meu orientador, Eugênio Paccelli, pelo suporte e por ter aceitado me ajudar a tocar esse Tcc pra frente, por comprar as ideias e me ajudar a enxergar o desenho como escrita.

Agradeço aos amigos que fiz fora da faculdade, Victor, obrigado pelas companhias e projetos, revisões desse trabalho. Paulo Sayeg e Ulysses pelas aulas e pelas trocas tão ricas de gravuras, desenhos e conversas sobre poética. Erick Santos, Riki e Bin Kondo, Paula Miranda e Zizi Baptista. Pedro Hiller, por todo acolhimento, e pela oportunidade de conhecer de perto um acervo tão rico de gravuras, pinturas, esculturas, pelo carinho e respeito pelas minhas imagens.

Obrigado também ao meu querido Figo, o melhor gato, pelo grude e por ter tanto carinho comigo.

Veremos neste trabalho, uma escrita que vem difícil, que trava, que quebra, que não tem a fluidez acadêmica que nos acostumamos a ler durante a graduação, e quero manter essa linguagem para que faça sentido pra mim durante esse momento de escrita e reflexão sobre o que venho produzindo até então.

Minha linguagem é imagem, me faço entender através do desenho, no caderno, nas gravuras, e da tentativa de representar os objetos, pessoas, e o movimento da cidade. Desenho enquanto converso, enquanto ando de ônibus, em pé, agachado na rua, paro o que estou fazendo e desenho o cachorro dormindo.

Meus diários de bordo não seguem planejamentos, volta e meia contamino um caderno de escrita com desenhos e vice-versa. Espero que eu possa me fazer claro e que seja uma leitura tão interessante quanto foi pra mim quando resolvi aceitar/comecei a enxergar o que eu fazia como escrita.

Desenhos, setas, fragmentos de textos e livros sem referência, recortes de papel, post-its, gravuras coladas, listas - de compras, de objetos, de palavras, tarefas, mapas, nomes de artistas, músicas, tudo isso eu carrego até hoje. Esse hábito de compartilhar bilhetes com referências para quem eu gosto, ou que acho que possa servir de alguma forma, como alguém que entrega um panfleto ou santinho na rua despretenciosamente, eis o que posso dizer sobre o que faço.

Nesses diários de bordo comecei a perceber que o desenho para além da representação “realista”, para ganhar uma certa alma/uma certa autenticidade, precisa, necessariamente, dos pitacos da nossa família espiritual, que é basicamente a maneira com que nos deixamos contaminar pelas nossas referências, sejam elas da área do desenho, da música, do cinema, etc. Sêneca, em uma de suas cartas a Virgílio fala lindamente a respeito dessa nossa troca, e de como devemos lidar com o que agora podemos chamar de nossa família espiritual: “Devemos imitar as abelhas, pondo de lado tudo o que colhemos durante as nossas diversas leituras — pois o que é separado se conserva melhor. Em seguida, é preciso aplicar todos os nossos cuidados e toda a nossa inteligência para juntar esses múltiplos achados, visando dar-lhes um único e mesmo sabor(...)”

“(...)Façamos o mesmo com os nutrientes espirituais: não deixemos intactos os que absorvemos, para que eles não nos fiquem alheios. Vamos digeri-los, caso contrário eles irão alojar-se na memória, e não na inteligência. Cabe a nós compreendê-los bem e transformá-los em nossos, para que, da multiplicidade nasça a unidade: da mesma maneira que um número nasce de vários outros, quando os somamos entre si. O nosso espírito deve fazer esta operação: deve ser manifestado. Mesmo que encontremos semelhança entre ti e o autor que tu colocaste num pedestal, quero que te assemelhes a ele como um filho e não como um retrato: um retrato é algo morto!”

“Se pode construir uma história do caminhar como forma de intervenção urbana que traz consigo os significados simbólicos do ato criativo primário: a errância como arquitetura da paisagem, entendendo-se com o termo paisagem a ação de transformação simbólica, para além de física, do espaço antrópico (...) A ‘cidade’ que é descoberta pelas errâncias dos artistas é uma cidade líquida, um líquido amniótico em que se formam espontaneamente os espaços de alhures, um arquipélago urbano a ser navegado indo à deriva.”

(Walkscapes: O caminhar como prática estética - Francesco Careri)

Tenho lido, e pensado sobre a ação de caminhar como uma prática artística, como mais uma ferramenta para o fazer. A partir de que momento podemos considerar o que fazemos como arte? O que é válido/digno assumir como fonte de inspiração/trabalho/produto final?

Talvez a criação não se dê só na parte prática afinal, demorei a aceitar isso. Batia na tecla de que só o trabalho de atelier, a parte prática da imagem sendo materializada no suporte era algo que realmente movimentava o artista, mas não encaro tanto dessa forma.

Acredito que as imagens se dão a partir das nossas experiências, as buscamos no imaginário, nas lembranças. O nosso repertório de vivências é o que realmente nos inspira e é capaz de nos levar a dar forma, a produzir, a desenvolver uma poética pessoal.

“A cada instante existe mais do que a vista alcança, mais do que o ouvido pode ouvir, uma composição ou um cenário à espera de ser analisado. Nada se conhece em si próprio, mas em relação ao seu meio ambiente, à cadeia precedente de acontecimentos, à recordação de experiências passadas.”

(A Imagem da Cidade - Kevin Lynch)

“O observador aprende os elementos da paisagem à medida que a atravessa. Dialética de andar e olhar que constitui a experiência escultórica.”

(A Imagem da Cidade - Kevin Lynch)

“As excursões dadaístas e errâncias surrealistas são as primeiras tentativas de leitura da cidade através de sua configuração espacial. (...) Para os surrealistas, o fundamental era se perder na cidade; o trabalho se realiza na experiência da errância. (...) Para os dadaístas, na cidade as coisas se oferecem à percepção em profusão e liberdade e, segundo os princípios desta poética, seria possível reeditar as leis do inconsciente, através do encontro fortuito com os objetos, pessoas e lugares.”

“Guy Debord não se preocupa em historiar arqueologicamente a sociedade,(...) A imaginação e a fantasia deveriam tomar de assalto o vazio existencial da cidade,ressignificando-a, despertando um passado mítico e simbólico aprisionado em suas construções e e seus monumentos. Cada quarteirão na cidade teria a possibilidade de despertar os mais diferentes sentimentos e paixões.”

(Além dos Mapas - Cristina Freire)

E é isso que eu gosto de perceber e despertar com as minhas imagens, com esses recortes de cidades inventadas a partir de recortes e lembranças do que foi visto e transformado no desenho. Um sentimento de familiaridade e identificação com o imaginário de quem vê e “lê” o meu trabalho.

Acredito que o caminhar na cidade tentando perceber o que acontece e registrar de alguma forma, desenhando, escrevendo, filmando é uma maneira de fugir um pouco do automatismo da rotina. Dá vontade de seguir um dos lemas que os Flâneurs tinham como contrapartida à compulsão consumista e acelerada capitalista parisiense do séc XIX que consistia em sair com uma tartaruga numa coleira para andar mais lentamente. Parar pra desenhar na cidade foi um dos exercícios que mais me fizeram entrar em sintonia com esse tema, parar em lugares muitas vezes incômodos e sem jeito de manusear os materiais, em posições desconfortáveis, ter que abandonar o desenho e precisar descer do ônibus, ou quando as pessoas que estamos desenhando saem do lugar, enfim. Tudo isso começou a fazer parte do meu processo de criação e levei isso pra outros suportes que não somente o desenho, mas para a gravura em metal, litografia e xilogravura.

“Em 1839, era elegante levar consigo uma tartaruga quando se passeava. Isto dá uma ideia do ritmo do flanar nas passagens.”

(Passagens - Walter Benjamin)

No atelier de Litografia que eu dei o meu primeiro mergulho na memória das paisagens urbanas, descobrindo não só uma técnica e um novo caminho pra pensar imagens, mas uma dinâmica diferente, por se tratar de um atelier de gravura. Que é um ambiente que precisa de atenção aos equipamentos, aos químicos, a organização e aos cuidados durante cada etapa.

Fui desenhando impulsivamente, sem pensar muito onde eu chegaria com o desenho, estava empolgado com o novo material, os crayons e o lápis dermatográfico, a textura da pedra, descobrindo as raspagens, encostando na pedra (apesar das instruções de que qualquer toque, ou material gorduroso,

como o suor da pele poderia resultar em manchas na imagem final), eu queria ver e descobrir toda potencialidade do material.

E na gravura, independente do suporte, metal, lito, xilo, tem muitas possibilidades, são muitas técnicas que dá pra aprofundar muito, e eu particularmente me envolvi muito com a litografia a ponto de me candidatar a monitoria do atelier. Foi uma chance de conhecer de perto todo processo e me sentir confortável pra ajudar no desenvolvimento das imagens dos alunos, foi a minha primeira experiência nesse papel de “ensino”.

O que eu acho que foi mais importante pra mim nesse período como monitor foi esse contato direto com a organização do atelier, que eu me propús a organizar e pensar na melhor forma de facilitar o uso durante as aulas. Foi uma experiência muito rica, e conheci muitos artistas incríveis, fiz muitas amizades importantes e percebi que é um ambiente que eu me sentia confortável.

Faziaumcircuitodiáriodeaproximadamente4ônibus,2parairdeContagem à UFMG e 2 para voltar, passava cerca de 3 horas no total dentro daquele ambiente assistindo o que “passava pela janela” e o que mais houvesse de interessante dentro do ônibus. Sapatos antigos, bancos quebrados, janelas sujas com adesivos, parafusos rolando, pessoas pulando roleta, aquela capa de banco com bolinhas de madeira no banco do motorista.

Tudo isso vira material na nossa cabeça, vai pro imaginário, e volta em forma de desenho, volta e meia quando eu começo a desenhar alguma imagem que me remete a algum ônibus, eu tento pensar nas pessoas que eu sempre me encontrava diariamente, seja nos pontos de ônibus ou durante a viagem.

“O desenho interno, por exemplo, que é a ideia, a vontade, a disposição, quandosurge,vemjuntocomumaconsciênciasuadeassumirounão.Porque, quando você assume, imediatamente percebe que é um compromisso que vai exigir muito de você. Pois nessa manifestação, o que nos leva a realizar? São as técnicas. Estou falando de um ponto de vista de todos os tempos, vamos dizer assim. Porque a técnica é o pressuposto do conhecimento. Você vai buscar o conhecimento para poder realizar aquilo que idealiza.”

“A base do desenho é o designio, o percurso e o projeto. Designio é o desejo de expressar algo que te toca profundamente. Todo ser humano tem essa necessidade de comunicação, e as comunicações se manifestam das mais diferentes maneiras (...) (...)Mas, quando nos dedicamos a alguma forma de comunicação, é interessante, porque aí descobrimos a função da linguagem, que são essas manifestações da sensibilidade humana. O canal mais adequado para manifestar sua sensibilidade todo ser humano tem.”

“Então, escrever também seria uma forma de desenho?(pergunta-se a Evandro)”

“Ah, sem dúvida. A letra é desenho. Veja o que os poetas fizeram! Para mim, os desenhos são anotações que faço nas minhas caminhadas. Isso me alimenta, porque eu fico olhando para essas coisas e daqui geralmente extraio outra forma.”

(Arte, Trabalho e Ideal - Evandro Carlos Jardim em entrevista)

Adoraria que a minha letra fosse facilmente compreensível.

Gosto de como os meus textos vão se organizando nas páginas dos cadernos, sempre respeitando as imagens que aparecem do nada para ilustrar alguma palavra ou complementar um pensamento, e sempre foi assim.

As imagens aparecem como algumas situações que presenciamos no diaa-dia. E pra mim o meu trabalho não/nem sempre obedece/obedeceu uma linha muito sistemática para dar forma. As imagens acontecem, de forma muito cuidadosa, carinhosa, dedicada, mas de maneira irresponsável.

Não é uma irresponsábilidade como quem não se preocupa com o próprio trabalho ou como se eu não o valorizasse. Mas uma irresponsábilidade da falta de controle/previsibilidade, as imagens vêm sem muito planejamento, de forma muito espontânea.

Cenas e objetos da cidade ficam registradas na memória e em meus cadernos de desenho (folhas avulsas, post-its, bloquinhos do Vavá, etc.)

Isso foi/tem sido a minha forma de participar da paisagem, e agora que descobri, e parei finalmente para pesquisar referências teóricas e certos eventos da história da arte, como é muito bem registrado em “Walkscapes” e em outros livros, as passagens que mencinoam as derivas/andanças/ caminhadas dos dadaístas, surrealistas e situacionistas.

Me descubro em uma posição mais segura para me localizar e até mesmo me afirmar como “errante”, que passa e registra o que mexe comigo na cidade, e isso basta. Isso basta pois tem sido o combustível criativo que me movimenta e me põe para pensar e produzir. Em transformar experiência em gravura e desenho.

Acho que precisei desse tempo do curso para perceber e descobrir formas, ambientes e como nosso trabalho atinge determinadas pessoas dependendo do contexto inserido, e a partir disso desenvolver/compreender/saber qual a melhor e mais saudável forma de lidar/enxergar meu processo de criação. Durante uma boa parte do curso eu quis acreditar que eu “funcionava” da mesma forma que as minhas referências, que se eu seguisse as fórmulas e dicas que sempre vemos em livros, documentários, entrevistas essa seria o grande pulo do gato pra quebrar qualquer bloqueio criativo que me acometesse.

Percebi que esses momentos de “improdutividade” podem servir como um respiro pra nossa produção. Não precisamos encarar nosso processo criativo com uma cobrança fordista, de produção em massa, forçando a barra de tudo.

É importante saber respeitar esses tempos e buscar formas de aproveitar, de enxergar como um espaço para coleta de referências, de material como filmes, música, viagens, descanso e lazer. Afinal, qual o problema? Muito dos meus cadernos de desenho que mais gosto são registros de viagens e de momentos de lazer, paisagens diferentes que conversam com as paisagens do meu dia-a-dia.

Quando a gente consegue manter uma rotina de trabalho, é importante se planejar pra lidar com as partes que não envolvem a produção “da obra” propriamente dita, como a organização e manutençao do espaço. varrer e deixar as coisas numa certa configuração pra facilitar o uso e o acesso aos materiais é essencial.

Durante a pandemia, eu ainda era monitor do atelier de gravura em metal, e tive a sorte e a oportunidade de montar um atelier de gravura em casa, encontrei uma prensa, um prelo, eu já havia conseguido estruturar um espaço pra fazer as corrosões e preparo das matrizes antes do isolamento para otimizar as minhas idas no atelier da faculdade só indo para imprimir.

Durante a pandemia eu fui selecionado para a primeira edição do Prêmio Marcello Grassmann de Artes Gráficas, uma premiação que consistia na seleção de 3 artistas do Brasil todo, e que teríamos que realizar o projeto inscrito durante alguns meses e teríamos acompanhamento das artistas Luise Weiss, Maria Bonomi e Mayra Laudanna. O meu projeto inscrito era o de continuar uma pesquisa iniciada num programa de residência artística que eu fiz no atelier De Etser dos queridos George Gütlich e Fábio Sapede em São José dos Campos em que eu tive uma imersão num outro tipo de paisagem, e iniciei uma série de gravuras de nuvens, em xilogravuras e gravuras em metal.

Acho que não cabe trazer tudo que se passou durante a premiação aqui, mas sim as imagens, a fim de mostrar uma outra face do meu trabalho, que muitas vezes fica de lado por eu já ter uma visibilidade com os meus trabalhos com as cenas urbanas e gravuras. Acredito que esse Tcc traz um pouco esse carinho que eu deixei faltar para com os meus processos de criação durante a graduação, e como eu demorei a querer mostrar e expor(atualmente na exposição coletiva no Centro Cultural) uma seleção e um aglomerado de desenhos que fiz mas mantive guardados, ou fechados nos cadernos de processo, “dando mole” mesmo.

“A ideia que perpassa todo o livro “Walkscapes” e que o autor expõe de modo convincente é que, em todas as épocas, o caminhar tem produzido arquitetura e paisagem, e que essa prática, quase inteiramente esquecida pelos próprios arquitetos, tem sido reabilitada pelos poetas, pelos filósofos e pelos artistas capazes precisamente de ver aquilo que não há, para fazer brotar daí algo.” (Walkscapes: O Caminhar Como Prática Estética - Francesco Careri)

Um dos caminhos que fiz a fim de desenvolver uma identidade para as minhas imagens foi o de buscar referências que trabalhassem com temas e materiaissemelhantes. Conversar com esses artistas através das imagens foi a grande descoberta, tentar fazer quase que uma investigação, uma engenharia reversados traços, pensar como fizeram cada gesto, como seguraram o carvão, o lápis, as ferramentas.

Não é com o intuito de copiar, mas de alimentar o repertório, de nos instigar a querer buscar aquele tipo de traço, aquela relação com o fazer, aquele gesto que acontece não importa a qualidade do material ou do papel. Quando a gente precisa desenhar, a gente desenha, sinto isso, e muitas vezes bons desenhos acontecem em materiais ditos “ruins”-- quem teve a brilhante ideia de deixar o papel jornal tão gostoso de desenhar?

“Eu sou assim, quem quiser gostar de mim, eu sou assim.. Meu mundo é hoje, não existe amanhã pra mim, assim morrerei um dia...” esqueci o resto da música..

Paulinho da Viola

Transcrição nas páginas a seguir

Acho que cada vez mais, minhas imagens simplesmente são, não partem de uma análise profunda e mística que faço dessa cidade que habito.

Gosto de desenhar, do hábito de participar da paisagem como mais um que trabalha exercendo a sua função e transita /precisa passar por esses lugares, que precisa pegar aquele ônibus, e está sujeito a toda infinidade de situações que a cidade não prevê. Gosto muito de ler análises bem escritas de autores e pesquisadores em relação a tudo isso que presenciamos na cidade, parece que quando falam/ pensam descrevem tudo isso que também tento representar, de certa forma, minhas imagens ganham um pouco mais de legitimidade, se tornam mais relevantes. Como se o texto ilustrasse as minhas gravuras e desenhos.

Há uma passagem no livro “Paisagens Urbanas” de Nelson Brissac Peixoto que depois que eu a li, comecei a marcar o livro com uma gravura, que na minha opinião ilustrava perfeitamente o que estava sendo descrito no livro.

“Tudo é textura: o skyline confunde-se com a calçada; olhar para cima equivale a voltar-se para o chão. A paisagem é um muro.”

Essa gravura ( logo abaixo) é impressa duas vezes em cima da mesma área, apenas girando a matriz fazendo com que as linhas do chão(calçada) crie uma textura no céu ao ser reimpressa, já sem tanta tinta na matriz.

A frase “A paisagem é um muro” também me fez associar com as texturas da gravura em metal, com essa maneira de contemplar o que acontece na cidade, como quem observa uma mancha de musgo ou descascado num muro e tem essa experiência com a Pareidolia(fenômeno psicológico comum conhecido por fazer as pessoas reconhecerem imagens de rostos humanos ou animais em objetos, sombras, etc).

“O olhar hoje é um embate com uma superfície que não se deixa perpassar. Cidades sem janelas, um horizonte cada vez mais espesso e concreto. Superfície que enruga, fende, descastca. Sobreposição de inúmeras camadas de material, acúmulo de coisas que recusam a partir”

“Olhar um objeto é mergulhar nele. Os objetos circundantes tornam-se horizonte, a visão é um ato de dois lados. Ou seja: ver um objeto é ir habitá-lo e dalí observar todas as coisas.”

(Paisagens Urbanas - Nelson Brissac Peixoto)

Esse tipo de relação com o objeto, essa conversa e essa tentativa de trazer as texturas da cidade pro relevo na gravura em metal é algo que eu gostei de assumir como poética, como uma identidade no meu trabalho.

Essasduaspáginassãodeumprojeto em aberto para uma história em quadrinhosnãolinear,semnarrativa específica, sem personagens fixos e que se intercalam com uma escrita intuitiva que tem como ponto de partida o mesmo lugar de onde saem as gravuras e desenhos. Tudo vem de dentro, da experiência de cruzar a cidade

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