Por um(a) (Cica)triz Dáblio Vê Foche" o Junior* O meio ideal para a poesia, na minha opinião, e o meio mais direto de “u"lidade” social para a poesia é o teatro. T. S. Eliot, O uso da poesia e o uso da crí!ca
A declaração epigrafada de Eliot** prossegue: “[...] Em uma peça de Shakespeare, podemos obter vários graus de significado. Para o público mais simples, há a trama; para os mais instruídos, há o caráter e o conflito dos personagens; para o mais literário, as palavras e frases; para os dotados de maior sensibilidade musical, o ritmo, e para os dotados de maior sensibilidade e capacidade de entender, um significado que se revela gradualmente.” O exemplo dado pelo poeta e ensaísta inglês refere-se ao dramaturgo renascen"sta e data de 1933. Todavia, o que Eliot afirma bem pode ser aplicado (e muito bem) às “Cicatrizes”. Porque há intensidade (elemento essencial à manifestação do poé"co), tanto no texto quanto no trabalho dos atores. Para sermos francos, neste segundo elemento há uma intensificação maior do texto, que verbalizado, e por pessoas que vivem (no palco) o que estão a representar com tanta veracidade. As marcas (“cicatrizes”) deixadas pela vida em cada personagem do “Quarteto Fantás"co” (desconhecemos termo mais adequado para o momento) servem de mote, por exemplo, para a afirmação da iden"dade (o Velho, uma ví"ma da Ditadura Brasileira), tanto a sua, enquanto batalhador quanto da luta própria luta em si. Interessante notar que as marcas que a peça deixou em nós contrapõem-se a cicatrizes. Num caminho oposto, deixa um sinal de Esperança. De pensarmos na possibilidade do diálogo com ví"mas de sistemas totalitaristas, de quem perdeu um ente querido e carrega essa dor sobre a cicatriz de lembrança dolorosa, que o tempo apenas tenta amenizar. A pedra mágica, de aparência ígnea (vai ver o era, mais do que em sonho, mais do que como uma simples ilustração dramá"ca, figurada sob uma forte luz vermelha sobre o banco feito de pneu), rejeitada na condição de solução para as cicatrizes do Velho, deverá servir para quem realmente a aceite (ou precise dela, de igual modo). Contudo, isto exposto, não nos atenhamos a essa projeção monocromá"ca (tão onírica quanto real – teatro de verdade não permite diferirmos entre o real e o imaginário; a Opereta e o Teatro d'Aldeia atestam isso, para todos os fins). Prossigamos. O “p(l)ano de fundo”, sob a forma da trilha sonora (entre outros efeitos, o da chuva torrencial que perpassa muitos momentos da peça) conduz-nos exatamente ao local (floresta, bosque, matagal etc.) em que se supõe estar o garoto “Cara Suja”. Quando cessa a chuva, nalgum outro ponto os pássaros (personificados pelos assobios humanos) manifestam seu (en)canto. (Mais à frente um coro de três vozes fornece fundo para uma aventura de menino. Transformação.)
Par"ndo da declaração de Eliot e supondo ipso fato que o teatro seja manifestação da poesia (por que não haveria de sê-lo?), cada personagem consegue ser, ao mesmo tempo: verso e estrofe. Cada ator/atriz é, a um tempo, parte e todo. Carrega consigo mesmo a significação do ato, da peça. É vida que se transforma. Que se revive – num plano paralelo ao da realidade. “Mas isto parece tão óbvio”, alguém poderia contestar. “Logo, qual o valor ou sen"do dessa observação?” Ocorre que o seu valor só pode ser sen"do, notado pela visão e pela audição, ao acompanhar o desenrolar da trama. Sinônimo de teia, não por acaso, neste caso. Quando dois momentos tão diversos da vida (um garoto e um idoso) s'encontram, tendo ao centro uma sequência de encontros (e separações) entre outras almas, há que se compreender, pela sensibilidade, o significado disso. Dois homens, duas mulheres. E um infinito chão para con"nuarmos nossa caminhada. Talvez tentando trilhar – ou para darmos con"nuidade aos vocábulos trama/teia, tecer – um novo sen"do a essa nossa busca pela solução de nossos problemas. Afinal, eles sempre estarão ao nosso lado – reais ou pura fantasia. A lição que fica? A de que devemos lidar com as marcas que a vida deixa em nós. Bem como as que nós deixamos nos outros. Ser criança de novo ou assumir nossas feridas como símbolo indelével de nossa luta pela Liberdade (uma das Causas mais justas e democrá"cas) é uma escolha. Que talvez não possa ser desfeita. Mas que precisa, antes de mais nada, de Liberdade para se realizar. A peça nos deixou uma “impressão de viagem”. A de que a Arte e a Vida são elementos indissociáveis. Que se relacionam mutuamente – muitas vezes mais do que pode a nossa filosofia sonhar. Ademais, o teatro de verdade depende muito mais da qualidade de seus mantenedores/realizadores do que dos recursos com os quais eles possam contar. Shakespeare e Eliot (arriscamos esse palpite) certamente concordariam com isso.
* Publicitário, Professor de Língua Portuguesa da Rede Municipal de Poá/SP e autor de livros (poesia em geral). Lattes (mas não Mordes): http://lattes.cnpq.br/5353489394665912 ** ELIOT, T. S. Conclusão. In: ______. O uso da poesia e o uso da crítica. Trad. Cecília Prada. São Paulo: É Realizações, 2015. p. 154
Fotos: Dáblio Vê Fochetto Jr.