Capítulo 6
Réquiem para a mediocridade
AMADEUS
Amadeus é um filme para ser visto exercitandose a reflexão moral. A dificuldade para nós do mundo pós-moderno, dada a complexidade da tarefa, é ainda maior, porque a atmosfera do pensamento religioso influente no cotidiano das
i
filme é composta pelos últimos suspiros de um
a r e veja o trail
A
mítica
relações
história
das
ambivalentes
protagonizadas por Antonio Salieri e Amadeus Mozart se passa no século XVIII, época na qual o homem, em busca de conhecimento, ainda
que
imbuído
do
pensamento
racionalista
do
não
iluminismo,
abria
mão do reconhecimento da intervenção divina em sua sorte e destino. As noções de pecado e a graça, mesmo esmaecida, estava, presentes
qu
pessoas, na política e na cultura.
no dia a dia, como referência no
entendimento
universo
e
da
humana.
Leopold
do
condição Mozart,
pai do compositor é um bom exemplo disso, pois, embora fosse um homem reconhecidamente mundano,
resguardava
sua religiosidade a ponto de colecionar imagens de santos. Por sua vez, Mozart, seu
discípulo,
afirmava
suas crenças e princípios religiosos, muitas vezes, ao se colocar como anti ateísta.
“Recebendo o total de 10 indicações ao Oscar,”Amadeus” é um dos filmes mais intensos que o cinema já realizou”
“EM OUTRAS PALAVRAS O QUE O CONSUMIA ERA UMA GRANDE
A
INVEJA” ideologia materialista marxista do
socialismo, seguindo acidentalmente a perspectiva cristã, fala que os ricos são aqueles a priori culpados. Dar aos pobres e doar à Igreja comprava
enfim,
os
um pedacinho do paraíso, garantia
derivados que giram em torno do
absolvição. Na utopia atual a salvação
pecado capital da avareza. E assim
está no coletivo, pensar em consumo,
viveremos todos felizes e iguais. São
viver o conjunto e prover o conjunto.
Tomás de Aquino em suas reflexões
No coletivo ninguém quer nada só
sobre
para si, ninguém engana, fralda, tira
considerações que discerniram entre
vantagem, como também não tem
aqueles que de fato fariam o pecador
pena de gastar o seu dinheiro consigo
entrar no inferno, os capitais, e aqueles
mesmo e com outros;
que somente deixariam o pecador
os
reconhecidos
pecados
pecados
capitais
fazia
na porta do inferno, os venais. Daí que pensar sobre as questões morais necessariamente
implica
transitar
entre o particular de caso a caso e aquilo que pertence ao universal.
Assim, para captar o contexto da história de Salieri e Mozart, é preciso ultrapassar algumas barreiras para compreender que o filme desvela um mundo diferente do atual, no qual o embate entre diferentes concretudes da graça divina no âmbito humano baliza a interpretação sobre a realidade desses dois homens. Faz-se necessário transcender e encarar a possibilidade de que os assuntos espirituais sejam da ordem da preocupação humana com implicações diretas nas relações e no cotidiano. Somente assim podese entender a personagem de Salieri como aquela que introduz o espectador no mundo terreno e supraterreno em que ocorreu a vinda do grande gênio musical Mozart. Na primeira cena, Salieri aparece como uma figura velha e perturbada pela demência e confessa aquilo que ao longo da vida corroeu a alma: sua mediocridade diante o dom divino de mozart. Em outras palavras, o que o consumia era uma grande inveja.
invejosos
deles
contra
ela.
O conceito de Klein propriamente dito é muito controverso e bastante contestado por entender que a pulsão de morte de Freud (grosso modo, os impulsos destrutivos), por ser inata, esteja presente nas primeiras relações entre mães e filhos. Isso quer dizer que, logo que o bebê nasce, ele sofre conflitos de amor e ódio em relação
A
à mãe que o alimenta, sentindo por inveja também foi conceituada por
Melanie Klein, matriarca da psicanálise inglesa, em um último grande artigo por ela escrito, em 196 sentido dentro de sua história pessoal, segundo Phyllis Grosskurth, Sabe-se
sua
principal biógrafa.
pela
correspondência
documentada na biografia que Klein foi vítima de sentimentos invejosos da mãe, que se empossou dos cuidados dos netos, do marido e da casa da filha, por ocasião de um dos seus longos internamentos por depressão. Nas cartas, a mãe esmerava-se em detalhes sobre
o
próprio
relacionamento
com a família de Melanie, enquanto paralelamente
incitava-a
a
permanecer na clínica de repouso, portanto distante dos seus. Entre os irmãos, Melanie também penava com os constantes ressentimentos
ela uma intensa inveja. O seio da mãe constitui-se no primeiro objeto de inveja, investido como tal à medida que o bebê é confrontado com uma insatisfação
advinda
daquilo
que
a mãe não dá por guardar para si mesma.
Nesse
universo,
percebe-
se que a atmosfera das relações do bebê com o ambiente familiar, mesmo logo no início da vida, é complicada. Pesa nas relações primitivas a própria destrutividade do bebê, imprimindo ao ambiente - basicamente a mãe - sua expectativa persecutória e retalhadora.
O
rot
eiro
é base
ado na peça de Shaffer Salieri, o compositor medíocre, tem
A
a bênção de ser no mundo e pelo principal crítica formulada por
Winnicott em relação a esse conceito de inveja se atém à atribuição precoce de algo que só seria possível a um bebê com um ego mais amadurecido. Inveja é sentimento. Portanto, assim como os sentimentos ambivalentes, é preciso ter experiência em termos de desenvolvimento. O bebê, em seu início de vida, não se sabe existente, não sabe de si. Portanto, muito distante de algo inicial, sentir inveja alude a uma pessoa constituída num ser unitário. Veremos como se estabelece a questão da inveja no filme. Na interpretação moderna do diretor Milos Forman, baseada na peça homônima de Peter Shaffer, a história desses dois homens são desiguais, e cada um deles acumula sucessos e fracassos em diferentes esferas.
mundo reconhecido, gozando uma situação privilegiada ainda em vida. Passados os tempos aureos, morre esquecido como homem e como músico. Passa seus últimos dias em um asilo, enlouquecido pela dor de se saber medíocre diante do outro. Por
sua
vez,
Mozart,
conforme
a versão filme, com toda a sua genialidade musical, enfrenta em vida a incompreensão diante de sua obra, morrendo à míngua ainda jovem. No entanto, a obra suplanta o
breve
tempo
de
vida
desse
autor e perdura até hoje nos anais musicais pertencentes ao acervo da cultura ocidental. É importante ressalvar que, na realidade, isso não é tão radical, pois Mozart teve a obra reconhecida em vida apesar das dificuldades na carreira. , apesar das dificuldades na carreira.
N
esse quadro, o contraponto
entre é
as
duas
acentuado
vínculo
com
personagens pelo
o
intenso
mundo
de
Salieri e o oposto desapego de Mozart. Na construção das personagens,
não
há
dúvida
sobre a influência do discurso religioso. Desprezo a tudo o que é mundano é um gesto muito bem recebido no perfil de uma personagem que se quer genial. Na fórmula, o gênio agraciado pelo dom divino combina com incompetência mundana. Na outra ponta, a competência mundana nunca
está
acompanhada
da
genialidade. Mais uma vez está reeditada
a
incompatibilidade
entre essas duas esferas, material e espiritual.
Salieri, nascido mais tarde, sofre as
mesmas
dificuldades
de
alguns religiosos atuais: pauta sua vida em termos de barganha. Fazia promessas que a duras penas conseguia cumprir. Não comia doces. Não tinha relações sexuais. Ou seja, abstinha-se ou, pelo
menos,
tentava
manter-
se afastado de tudo o que era reconhecido Entretanto,
como aos
pecado.
moldes
do
pensamento de Santo Agostinho, a sombra do pecado permanece na
intencionalidade.
Apesar
de não fazer, Salieri desejava. Mas todo esse esforço tinha um sentido: tudo isso era dado em troca de ser um virtuose na música. Esse era o objetivo de sua barganha.
“E que a minha loucura seja perdoada, porque metade de mim é amor, mas a outra metade também” Oswaldo Montenegro