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Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . viii
Uma abordagem preliminar ao Estudo da Fotografia do Privado, D. Garcia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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As inspirações de Alone in the Dark - Analogias entre o cinema de horror e o género survival horror, A. Narciso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Fronteiras esté cas: a lusofobia nos processos ar s cos, M. Sales . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Projeto "O Arquivo do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna (1828-2010): sua preservação e difusão", P. Ferré, S. Boto e M. Tavares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Prá ca Ar s ca - uma forma de inves gação, S. Navarro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Sobre a matéria do vazio, G. de Jesus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
O contexto do projeto Ephemeral Expanded, A. Carvalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
O Piano em Pessoa e Menino de sua avó: duas criações pessoanas, A. Rosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
Projeto | Página Literária do Porto, C. Vieira, I. Novo e H. Padrão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
PREFÁCIO A palavra jornada, de origem provençal, significava, originalmente, “coisa que se faz num dia”. Na língua inglesa existe o termo journeyman – que na Idade Média servia para definir aquele que estava entre o aprendiz e o mestre. No fundo, definia a pessoa que estava no caminho e a caminho de algo. Quando as Jornadas do CIAC foram criadas, pensou-‐se que nome se poderia dar a um encontro entre pesquisadores de cidades diferentes e com diferentes percursos de investigação. Sabíamos ainda que destas jornadas fariam parte mestres e aprendizes. E tínhamos a certeza que todos, mestres ou aprendizes, caminhavam juntos à procura de respostas para suas muitas e variadas questões. Assim nasceram as Jornadas do CIAC – um espaço para reflexão e para trocas, um espaço de aprendizagem. Todos nos convertemos em journeyperson: reconhecemos que o processo de aquisição do saber não cessa e que a investigação só pode viver se houver curiosidade, se houver o desejo autêntico da descoberta. Num dia os colaboradores do CIAC convidam a comunidade envolvente para partilharem connosco as nossas inquietações e descobertas, independentemente de sermos mais ou menos mestres, de estarmos no princípio ou no meio do caminho. Uma jornada faz-‐se num dia, mas os dias são muitos e precisamos preenche-‐los sempre e por isto, nossa jornada vai se repetindo duas vezes por ano, a cada ano, para que o centro possa, continuamente, promover encontros e partilhas, dado que os nossos investigadores e colaboradores não estão fixados no mesmo espaço geográfico e com as Jornadas, conseguimos, pelo menos por um dia, encurtar ou eliminar as distâncias. Mirian Tavares Coordenadora do CIAC
APRESENTAÇÃO As Jornadas de Investigação do CIAC atingiram, a 31 de janeiro, a sua sétima edição. Numa época de viragem em que novos objectivos e inéditos desafios se colocam às Humanidades e às Artes, mais do que nunca importa mostrar que o CIAC continua a formular questões e a procurar respostas nestas áreas. Foi este o desígnio que orientou a organização deste encontro: a discussão em torno da procura de linguagens e da viragem aos novos suportes. Enquanto montra dessa já característica – podemos arriscar -‐ irreverência científica do CIAC, as Jornadas têm vindo a afirmar-‐se, desde o início, como espaço de reflexão plural onde a partilha académica é o foco, vinculada à necessidade de intercâmbio de perspectivas, experiências, pontos de vista ou de referências teóricas e práticas. Esta última edição do evento, que assumiu inteiramente a carga genética das Jornadas anteriores, sentou à mesma mesa, convictamente, desde investigadores juniores, que começam a dar os primeiros passos na investigação com a preparação dos seus projectos de mestrado, a seniores, detentores de um trabalho e de um curriculum consagrado, mas que não quiseram deixar de partilhar com a comunidade científica os seus projectos. Com a transversalidade e a transdisciplinaridade que são características do CIAC, estas VII Jornadas de Investigação acolheram comunicações e apresentações de projectos situados no cruzamento entre áreas tão distantes mas tão afins como as Artes Visuais, a Comunicação, a Literatura, a Fotografia, o Teatro, o Património ou as emergentes Humanidades Digitais. A organização deste livro de actas resume e proporciona, assim, o acesso aos textos resultantes das diversas comunicações apresentadas. Sandra Boto Organizadora
VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014 Sandra Boto (Org.)
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UMA ABORDAGEM PRELIMINAR AO ESTUDO DA FOTOGRAFIA DO PRIVADO Daniela Garcia1 Universidade Nova de Lisboa
Resumo: Este texto tem por objectivo servir de ponto de situação da minha investigação de Doutoramento, sobre a fotografia do privado, expondo as principais linhas da investigação nas VII Jornadas do CIAC. Nessa perspectiva, opero uma breve distinção de géneros aparentados com a fotografia do privado, traçando a sua origem e apresentando os casos de estudo, que nos permitirão chegar aos resultados conclusivos. Palavras-‐Chave: Fotografia; Snapshot; Privado, Família, Mediação Vivemos atualmente numa sociedade de comunicação mediada onde a imagem, assumindo a sua ubiquidade, conquistou uma função performativa nas nossas ações, comportamentos e crenças, e na qual a experiência visiva do mundo se vai substituindo à experiência vivida. A investigação que levamos a cabo emerge num contexto de euforia imagética e procura ordenar um território visual e informativo, que apesar de amplamente disseminado numa variedade de géneros e subgéneros, de práticas e usos em contextos diversos, carece de uma teorização que permita a sua compreensão enquanto prática social e fenómeno cultural em ascensão. O estatuto artístico hoje sobejamente reconhecido à fotografia não obsta à sua prática generalizada por parte de fotógrafos amadores ou meros utilizadores, conferindo-‐lhe um caráter ambivalente, no que toca à sua produção e recepção. O objectivo da presente investigação é contribuir para o desenvolvimento do campo de estudo da fotografia, nomeadamente da fotografia do privado: género comumente caracterizado pela baixa qualidade, parcas preocupações estéticas, mas de grande valor 1
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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afectivo e que foi durante muito tempo excluído da produção teórica e crítica sobre fotografia. Apesar do interesse teórico pela fotografia se ter intensificado nas últimas décadas, sobretudo a partir da década de 70, um dos aspectos que caracterizam os estudos fotográficos é a sua juventude, havendo em consequência disso algumas áreas lacunares das quais se salienta o estudo da fotografia do privado. Tratando-‐se do elemento central na nossa investigação procurámos clarificá-‐la e distingui-‐la dos géneros afins, usando uma abordagem sociológica consoante Pierre Bourdieu (Bourdieu, 1965) de que aqui damos brevemente conta. Desde logo esta tarefa se apresenta mais fácil através da negação: não se tratando de fotografia com pretensões artísticas, não se inclui por isso na grande categoria da fotografia artística em que facilmente identificamos os géneros da paisagem, retrato, arquitetura, entre outros, e não sendo praticada por profissionais afasta-‐se também de práticas com índole menos estética como o fotojornalismo ou a fotografia publicitária, mas ainda assim com pendor autoral. Os dispositivos tecnológicos utilizados são geralmente algo rudimentares2, servindo o propósito de uma utilização empírica e de um baixo custo, o que em certa medida condiciona os resultados em termos da qualidade das imagens. Em termos de objecto, a fotografia do privado apresenta afinidades com a fotografia de família, muito embora não se confine a esta, de acordo com Patricia Holland (Holland, 2009:121): “The evolution of private photography has indeed been family based but that link is historically contingent, not, as is often assumed, the consequence of ‘natural’ necessity”. O género em estudo apresenta ainda afinidades com a fotografia popular, vernacular e a fotografia instantânea ou snapshot. Assim, vejamos: a fotografia de família foca maioritariamente as fases de crescimento e alterações de parentesco dos vários elementos do agregado, e foi até finais do séc. XIX realizada em estúdio. A fotografia popular é praticada por uma classe média e estende-‐se para além dos limites da casa, à fotografia de viagens e turismo, servindo os fins desta classe social, e dando origem a uma estética própria -‐ a estética popular que geralmente se opõe à erudita, da fotografia artística3. Característica mais acentuada aquando do surgimento do género, já que atualmente o acesso à tecnologia profissional é ditado apenas pela diferença de preço, que não raramente é insignificante. 3 No caso da fotografia popular, a formação da sua estética ficou a dever-‐se muito à tarefa de indexação do mundo natural, e foi apontada por muitos como sendo a responsável por a fotografia não ter sido incluída no seio das artes. 2
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A fotografia vernacular é a que dentro dos géneros afins se apresenta como mais problemática, considerada por muitos autores como inerentemente paradoxal. Esta é muitas vezes orientada pelas leis do comércio, subvertendo as determinações a que estamos habituados, colocando por vezes a legibilidade à frente da estética. Aqui englobam-‐se uma multiplicidade de outros sub-‐géneros como os álbuns, os postais, as fotografias que vão adornar as portas do frigorífico ou as lareiras, e toda uma vasta gama de aplicações de objectos-‐fotográficos que vão desde a joalharia aos objetos de uso quotidiano. Este género vernacular remonta ao surgimento dos daguerreótipos, enquanto o snapshot remonta ao surgimento das primeiras Kodak Brownie nº1 e deve a sua designação a um tipo de caça furtiva em que os tiros, shots, são disparados sem um propósito específico, tomando-‐lhe de empréstimo o carácter espontâneo. O snapshot traduz-‐se normalmente em fotografias tiradas por fotógrafos amadores com dispositivos fotográficos rudimentares, previsíveis, de conteúdo estereotipado, e conservadoras no estilo. O seu aspecto mais peculiar reside simultaneamente na sua baixa qualidade estética e elevada capacidade de comoção e o seu poder e interesse ultrapassa a esfera do sujeito representado, bem como o respectivo agregado. Apesar de os primeiros retratos tirados em estúdio, que incluímos no género da fotografia de família, terem consistido um importante marco na formação da imagem de si4, estes revelam-‐nos ainda muito pouco sobre o carácter privado patente no género que designamos com o mesmo nome. Assim, consideramos por isso que o surgimento da fotografia do privado só aconteceu de facto com a disponibilização da tecnologia fotográfica às massas, o que ocorreu em 1888 nos Estados Unidos e em 1919 se falarmos do caso Português. Doravante os registos fotográficos sofreram uma profunda alteração, a par da própria noção de doméstico, que teve um grande desenvolvimento no Reino Unido no designado Período Vitoriano. A mudança de paradigma segundo o qual se passou a encarar a domesticidade veio dar visibilidade a certos momentos e actividades que antes eram tidas como deveres, passando a ser vistas como prazenteiras e fazendo parte do charmed circle of home (Wells, 2009:121), e como tal dignas de registo. É portanto a partir deste momento que se pode começar a falar de uma estética do privado. 4
Uma vez que na época do surgimento dos daguerreótipos, estes permitiram muitas vezes a primeira confrontação do indivíduo com a sua imagem. VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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Em jeito de breve apanhado, os géneros aqui apresentados atravessam os seus limites num território comum que designamos fotografia do privado e que se distingue por surgir do quotidiano para ser integrado no quotidiano, independentemente do seu autor. Mas se por um lado identificamos como traço fundamental o facto de a fotografia do privado surgir do quotidiano para ser integrada no quotidiano, recentemente o seu contexto de recepção tem vindo a ser alterado. Por volta dos anos 60 começou a surgir nos Estados Unidos o interesse por práticas fotográficas que se configuravam como marginais. Este período marca uma inversão de tendências, passando estas práticas a serem objecto de interesse por parte dos próprios fotógrafos, que identificaram desde logo uma estética e começaram a encená-‐la (como é exemplo Walker Evans, Jacques-‐Henri Lartigue, Nan Goldin, entre outros) e de críticos e historiadores, que começam finalmente a incluir este género nos seus compêndios sobre fotografia. Beaumont Newhall foi o primeiro a incluir um capítulo dedicado a estas práticas, intitulado Instant Vision, na sua The History of Photography from 1839 to the present, (Newhall, 2009:217) na 1ª edição datada de 1982, e também dos curadores que começam, um pouco mais tarde, em 1991, a organizar exposições incluindo fotografias anónimas provenientes de coleções particulares. É sobre esta última que o nosso estudo incide na fase de análise de conteúdo. De uma lista de 12 exposições que considerámos de relevo, selecionámos quatro como nosso caso de estudo: Snapshot: The Photography of Everyday Life, (SFMoMA), 1998, marcou o início da vaga de interesse pelo snapshot enquanto artefacto cultural; Other Pictures: Vernacular Pictures from the Thomas Walther Collection, (MET), 2000; The Art of the American Snapshot (NG), 2007; e Ana Maria Holstein Beck: Álbuns de Família (NFAML), 2013. Estas exposições, e sobretudo as três primeiras, têm em comum o facto de tentarem trazer o snapshot para o campo da arte, mas abordando-‐o de maneira distinta. Enquanto a exposição do San Francisco Museum of Modern Art procura encontrar no snapshot o eco de uma estética fotográfica entretanto adoptada por vários artistas, marcada por uma dominante nostálgica que é por vezes incontornável quando se lida com estes géneros fotográficos, na exposição do Metropolitan Museum of Art procuraram evitar o discurso assente na nostalgia baseando a seleção de imagens em critérios assumidamente de gosto por parte do colecionador. Na exposição da National Gallery, a aposta é para algo diferente
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e arrojado, percorrendo, através de uma seleção de fotografias da coleção de Robert. E. Jackson, aquilo que consideraram ser uma forma de arte popular especificamente americana. Na fase de investigação em que nos encontramos, propomo-‐nos analisar detalhadamente os catálogos destas exposições, dada a impossibilidade de as termos visitado, tendo em vista encontrar diretrizes comuns nas quatro exposições e nos discursos produzidos para e a pretexto delas, como refere Nancy Martha West no seu texto Telling Time: Found photographs and the stories they inspire, para a exposição Now is Then no Newark Museum: Despite their differences, those written texts – poetry, fiction, critical essays, curatorial introductions, websites, and blogs – share such a similar set of characteristics that they now constitute a discourse. And like all discourses, this one encodes a variety of concerns that converge in distinct narrative impulses. (West, 2008: 80) Pretende-‐se que o culminar desta fase de trabalho leve à criação de um quadro de referência, a partir do qual se procederá posteriormente à elaboração de uma teorização que tem como fim promover a mediação da fotografia enquanto prática social do foro privado e fenómeno cultural do domínio público, uma vez que após quase duas décadas passadas sobre as primeiras exposições do género a transição destas imagens da esfera do privado para contextos públicos continua a gerar polémica e a fazer-‐nos questionar se esta aparente discrepância nas abordagens curatoriais não será enfim prova de que não existe uma abordagem possível, pelo menos apenas uma.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BOURDIEU, Pierre. (2003). Un arte médio: Ensayo sobre los usos sociales de la fotografía. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, [1965]. NEWHALL, Beaumont (2009) The history of photography from 1839 to the present day. New York: Museum of Modern Art, [1949]. WELLS, Liz (2009) (Ed.) Photography: a Critical Introduction. N.Y: Routledge. WEST, Nancy Martha (2008). “Telling Time: Found photographs and the stories they inspire.” in Now is then: snapshot from the Maresca Collection, Marvin Heiferman (ed.). New York: Princeton Architectural Press pp.78-‐89.
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AS INSPIRAÇÕES DE ALONE IN THE DARK – ANALOGIAS ENTRE O CINEMA DE HORROR E O GÉNERO SURVIVAL HORROR Ana Narciso Universidade do Algarve
Resumo: Ao seguir as investigações de Noël Carroll sobre o horror e os seus paradoxos e de Bernard Perron, que analisa o género aplicado a formas de entretenimento digital, este estudo visa compreender as inspirações do cinema nos videojogos survival horror. Através de uma breve análise morfológica e narrativa das ideias cinematográficas aplicadas em Alone in the Dark, pretende-‐se desvendar a atração que o género suscita nos jogadores, mesmo quando são transmitidos conteúdos perturbantes. Palavras-‐chave: Alone in the Dark, Cinema, Horror, Survival Horror, Videojogos “Why are we disturbed by fictions? And why do we seek out fictions that disturb us?” Noël Carroll Introdução Desde a criação da imagem em movimento que o cinema marcou multidões tornando-‐se um meio comunicativamente forte e rico. Como McQuail (2003:24) refere, “a prática de combinar mensagens fortes com entretenimento tinha sido estabelecida há muito na literatura e no teatro, mas os novos elementos no cinema foram as capacidades de chegar a imensa gente e de manipular a realidade da mensagem fotográfica sem perda de credibilidade”. De facto, as criações cinematográficas permitiram olhar para o mundo e viajar sem deslocação física. Como Betton (1987:1) defende, “com coisas, e não com palavras, numa linguagem que cabe a nós decifrar, o cineasta oferece-‐nos uma visão pessoal, insólita e mágica do mundo”. Com grande emoção, os espetadores puderam constatar as maravilhas da imagem em movimento no ano de 1895. L’Arrivée d’un train en
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gare de La Ciotat, para além de englobar todo um ângulo de ação, retratou a simples casualidade do dia-‐a-‐dia. Graças à profundidade de campo que permitiu vislumbrar a chegada de um comboio e ao forte plano sequência que possibilitou a visualização de uma atividade comum, Louis Lumière conseguiu transmitir sensações de pânico e medo. Mas se o cinema de horror se define por transmitir sensações de apreensão, angústia, suspense e mistério, porque não pensar nesta obra como pioneira de algumas sensações vistas posteriormente no mesmo género? Um ano depois, Georges Méliès criou o filme Le Manoir du Diable e, desde então, o cinema de horror não perdeu a sua importância. Como diz Crane (2004:150), “the unparalleled exercise in fright seems incredibly robust and quite even immortal”. Com o final da 1ª Guerra Mundial, surge um movimento que se veio a revelar importante na história do cinema: o Expressionismo Alemão, vinculado ao qual vários cineastas criaram obras que perduram no tempo. Das Cabinet des Dr. Caligari, em 1919, transformou mentalidades graças aos cenários escuros, perspetivas deformadas e maquilhagem excessiva, características nunca vistas até então. Mais tarde, em 1922, foi criada a personagem de Nosferatu que se distinguia pela sua peculiaridade e pela sua capacidade em infligir horror no espetador. Como se vê, o cinema de horror surge cedo na história do cinema, “along with westerns, musicals, and gangsters films, horror is one of cinema’s basic genres, one that emerged early in the history of the medium” (Prince, 2004:1). Continua a ser um género constantemente trabalhado pela atração que oferece e estendeu-‐se ao videojogo como meio de comunicação digital. Como Tinwell e Grimshaw (2009:2) afirmam, “the survival horror game genre deliberately gratifies the pleasure humans seed in frightening themselves and, in this, it is no different to horror cinema.” As influências do cinema no videojogo – a procura do horror
Segundo Noël Carroll (1990:8), há um visível paradoxo no género. Porque consegue o público
ficar assustado com algo que não existe e, já que o horror transmite desconforto, porque se continua a procurá-‐lo?
Em 1928, com o filme surrealista Un Chien Andalou, Buñuel apelou ao espetador passivo. A
imagem de um corte de um olho com uma lâmina foi uma forma de transmitir a recusa do conformismo, atitude que a audiência devia adquirir. Assim, por vontade própria, submete-‐se a todos
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os eventos que lhe são mostrados devido aos seus interesses cognitivos. Na verdade, em todo o processo de apreensão de uma narrativa, a curiosidade tem um grande peso sendo que os videojogos conseguem envolver o jogador a um outro nível. O jogador tem, na grande maioria das vezes, que investir e ceder o seu corpo assim como a sua identidade para a construção de narrativas ficcionais. É o personagem, vive um mundo paralelo construído virtualmente e tenta levar a cabo os seus objetivos. Como Luís Nogueira (2008:195) afirma, “é através da metamorfose do corpo, e, logo, da própria identidade, que o ator se oferece ou convoca a ilusão ao interpretar um personagem”. Se no constante dia-‐a-‐dia é possível sentir medo pelos outros em várias situações (como por exemplo, por alguém a atravessar uma estrada com trânsito a alta velocidade), porque não se pode igualmente sentir medo pelas personagens ficcionais? Tanto no cinema como posteriormente nos videojogos, o espetador consegue ficar assustado pois cria um sentimento faz-‐de-‐conta. Acredita na ficção e, por isso, sente medo (Carroll, 1990:63). A manipulação da imagem de modo a provocar sentimentos de apreensão no espetador serviu de inspiração para o videojogo assim como a imposição de realidades ilusórias. Como Perron (2012:14) afirma, “to find pleasure in horror film, it is necessary to play by its rules”. Alone in the Dark como o primeiro videojogo do género survival horror Com o desenvolvimento da indústria dos videojogos, o horror logo deixou as suas marcas nalgumas criações na década de 801. Porém, é em 1992 que é lançado o primeiro videojogo com inspirações claramente cinematográficas. Alone in the Dark fundou igualmente um novo género na indústria: o survival horror e as suas inovações impuseram ao meio novos requisitos de qualidade:
Although the 3D graphics of Alone in the Dark were crude and blocky by today’s standards, with flat-‐shaded rather than textured polygons, they were remarkable for their time. Combined with superb atmospheric sound effects and a rich soundtrack, the overall presentation created a potent feeling sense of horror. (Loguidice e Barton, 2009:2) Criado pela produtora francesa Infogrames e com influências dos contos Cthulhu Mythos de H.P.
Lovecraft e do filme Night of the Living Dead de George Romero, a história baseia-‐se na aventura de um detetive que investiga um suicídio numa enorme mansão. A resolução de puzzles é uma constante 1
Videojogos como Haunted House (1982), Halloween (1983) e Sweet Home (1989).
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ao longo do inevitável percurso e o mistério criado pelas melodias assustadoras e por ângulos de câmara fixos contribuem para uma experiência de horror. Em Alone in the Dark é possível encontrar criaturas letais e são esses encontros que distinguem o género. Como Perron (2004:2) afirma, “the conflict between the avatar and those monsters is the dominant element of horror”. Se um videojogo é um mundo novo e original que, através do uso de mecânicas como a narrativa, a arte e o som, consegue transmitir a sua essência (Grip, 2010, s.p.), neste género o jogador ainda consegue criar laços emocionais com criaturas e, inevitavelmente, com as personagens. Tal como Carrol (1990:59) refere, “in consuming horror fictions we are not only involved in relations with horrific beings; we are also in relations with fictional protagonists”. No cinema, os planos utilizados, para além de manipularem a história, definem a sua imersividade. Os videojogos adaptaram esses mesmos planos de modo a escolher o grau de envolvimento emocional, espacial e temporal. Em Alone in the Dark, a base morfológica consiste no plano médio que reproduz de modo realista o ângulo de visão pretendido. Criado em sistema operativo MS-‐DOS, utiliza planos, contra-‐planos e posições de câmara que serviram de modelo para videojogos criados posteriormente como, por exemplo, a série de videojogos Resident Evil2. Como Rouse (2009:23) confirma, “the early Resident Evil games featured fixed camera angles that forced players into some pretty terrifying experiences. (…)This allowed the games to pull off some uniquely cinematic scary moments, such as walking down a dark hallway toward the camera and thereby not seeing what was ahead”. As inspirações cinematográficas de Alone in the Dark No cinema, há uma grande ligação entre o espetador e o espaço que lhe é mostrado. Para essa ligação existir, existem planos cinematográficos que ajudam à imersão de quem vê a ação. Também nos videojogos, esses pontos de vista são muito utilizados e podem distinguem-‐se entre três: God’s View, Third-‐Person View e First-‐Person View.
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Primeiro videojogo criado em 1996, Capcom.
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Conforme a figura 1 (ver anexo), é na visão em terceira pessoa que o jogador consegue uma maior identificação com a personagem, um envolvimento com a narrativa que lhe é contada e, consequentemente, com o espetáculo que lhe é oferecido. Os criadores de Alone in the Dark, Frederick Raynal e Franck de Girolami, aproveitaram este ponto de vista para mostrar todos os ambientes, pela primeira vez no género, criados em 3D: “Alone in the Dark is an early blend of 2D and 3D technology; specifically, of software based 3D polygons for characters and items, and prerendered 2D imagens for backgrounds” (Loguidice e Barton, 2009:1). No início do videojogo são utilizados vários planos cinematográficos: o plano geral que permite situar o local e dar a conhecer a mansão onde irá decorrer toda a ação; e o plano subjetivo em que vemos a nossa personagem através de um demónio na mais alta janela da habitação, graças à posição em plano picado da câmara. Ao longo do videojogo esta posição adquire uma forte importância pois reflete a vulnerabilidade do ser humano face às criaturas, situação muito trabalhada nas histórias de horror. Como Carroll (1990:126) afirma, “the conflict between humanity and the inhuman, or between the normal and the abnormal, is fundamental to horror”. A profundidade de campo é igualmente utilizada para mostrar as deslocações da personagem pela mansão e torná-‐las imersivas. De uma forma geral, o plano americano foca por vezes a personagem pela altura dos joelhos ou cintura, pelo que o plano médio é o mais trabalhado. Pode ver-‐ se constantemente a personagem e as criaturas por inteiro assim como o espaço envolvente. No final do videojogo, o detetive, que desvendou durante todo o percurso o misterioso suicídio, consegue finalmente encontrar uma saída da enorme mansão. Com enorme satisfação, apanha boleia num carro para sair daquele lugar. Na última cena, o jogador é exposto a um grande plano que mostra a face do condutor do automóvel: uma caveira. Segundo Nelson Zagalo (2009:59), “o facto de se apresentar um close-‐up facial intensifica e dramatiza o evento no ecrã”. Assim, este plano proporciona um final inquietante. Em termos narrativos Alone in the Dark também segue conceitos cinematográficos como, por exemplo, o suspense. Por ser uma história de detetives em que a procura de pistas e a resolução de enigmas é uma constante, são geradas perguntas na mente do jogador, ao longo do percurso, às quais espera obter resposta até ao final da narrativa. Como Carroll refere (1990:137), “a question/answer relationship is a necessary condition for narrative suspense”. Para além das perguntas fundamentais, há espaço para constantes micro-‐questões que ajudam a ligar os vários acontecimentos; e como Perron (2004:3) completa, “micro-‐questions raised by expected dangerous and harmful events have”.
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De facto, a influência cinematográfica na indústria dos videojogos na década de 90 é notória e, hoje em dia, é trabalhada de forma contínua. Por vezes são introduzidas cutscenes3 onde diferentes planos e diferentes movimentos de câmara são mostrados de forma a conseguir uma maior tensão e dramatização da narrativa. No género, uma cutscene “can depict a horrible scene in a filmic way” (Perron, 2004:7). São também utilizadas para desenvolver a história e personalidade de cada personagem assim como o tempo e espaço da ação. Tal como Domingo (2008:312) refere, “se reconoce una mayor complejidad de la categoría temporal en los videojuegos, sobre todo tras la mayor valoración de la función de las cut-‐scenes narrativas”. Em Alone in the Dark é utilizada uma cutscene que mostra a chegada da personagem à mansão e o lento caminho na sua direção. O jogador só tem o controlo da personagem quando entra pela porta principal e a mesma se fecha atrás de si e, devido a esta imposição cinematográfica, o jogador percebe imediatamente sob que perspetiva irá jogar: “this sequence gives na initial sense of the game’s third-‐person perspective presentation” (Loguidice e Barton, 2009:7).
Outro aspeto a realçar prende-‐se com a escuridão. Tanto no cinema de horror como no
género survival horror, revela-‐se um conceito insubstituível. A imaginação do jogador funciona, de forma constante, quando a luz é fraca ou mesmo nula. Imagina o que estará para além e, sem pensar, procura os seus próprios medos. Assim, a redução da visibilidade remete para o inevitável medo pelo desconhecido ao que Pinchbeck (2009:85) acrescenta “darkness limits our perception, creating space for tension and doubt to flourish”. Como se constata, os videojogos têm vindo a aproximar-‐se cada vez mais do cinema. Os ângulos e as posições de câmara, a construção de cenários e a caracterização de personagens levam à manipulação emocional do espetador, fator que inspirou o videojogo. Porém, estes dois meios apresentam uma clara diferença. Enquanto os filmes apresentam ao espetador uma realidade fixa e inalterável, “the spectator canoot participate in the situation” (Perron, 2004:7), os videojogos permitem uma interação com essa realidade e oferecem ao jogador a possibilidade de a moldar, “participant’s actions have an appropriate and understandable impact on the world the computer
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Uma cutscene é uma interrupção narrativa no videojogo que adquire as características de uma filmagem cinematográfica. É usada para narrar acontecimentos, introduzir informações ou destacar algum pormenor no videojogo. Com a tecnologia atual podem tornar-‐se interativas.
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presents” (Loyall e Aarseth, 2004: 1). Devido à interatividade associada, atualmente, os videojogos superam o cinema ao permitirem níveis profundos de imersividade. Conclusão Com este estudo verificamos que a criação de videojogos é inspirada por técnicas cinematográficas. Quando o desenvolvimento tecnológico permitiu, essas técnicas foram aplicadas e, até à atualidade, continuam a ser utilizadas. O cinema de horror, desde o seu surgimento, procurou lidar com pesadelos do inconsciente humano, com questões que envolvem a natureza da existência ao explorar variadíssimos receios e fobias, entre eles, o antigo medo pelo desconhecido. O seu público acredita nas ficções que lhe são mostradas e, por vontade própria, deixa-‐se envolver. É, portanto, através desta exposição consciente ao medo, que a narrativa dá satisfação ao espetador, ao ver que as suas questões são respondidas ao longo do tempo. Estes fatores acabaram por influenciar os videojogos, nomeadamente Alone in the Dark, o primeiro do género survival horror. Os ângulos de câmara fixos, por resultarem no género, são um dos aspetos morfológicos essenciais. O jogador sabe que algo está ao virar da esquina mas só conseguirá descobrir quando chegar perto. Os criadores tiraram partido das desvantagens de Alone in the Dark, especialmente da lentidão das ações, para aumentar a sensação de pânico. Quando a personagem é ferida, acaba por ficar ainda mais lenta, aspeto muito utilizado posteriormente pelo seu realismo. Sendo o objetivo do videojogo o desvendar de mistérios e a contínua procura por uma saída, o jogador tem, de forma inevitável, de entregar-‐se à narrativa e às emoções transmitidas. Presentemente, consegue submeter-‐se a várias metamorfoses a nível psicológico graças a diversos aspetos como o poder das narrativas, a interatividade, a imersão e a emoção que os videojogos despoletam. Assim, o videojogo vai mais além do que o cinema pois permite que o tempo da narrativa seja o agora. Desde o princípio e apesar de os dois meios terem uma grande ligação, pode notar-‐se um certo afastamento, já que até aspetos totalmente cinematográficos como as cutscenes estão a tornar-‐se cada vez mais interativas nos videojogos.
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De facto, o jogador pode tomar decisões mesmo dentro de uma pequena filmagem. Pode concluir-‐se então que apesar de ter sido o meio inspirador, o cinema ainda não consegue superar o videojogo devido à sua interatividade.
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Figura 1 – Ponto de vista e Imersão (Luz, 2009)
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FRONTEIRAS ESTÉTICAS: A LUSOFOBIA NOS PROCESSOS ARTÍSTICOS Michelle Sales Escola de Belas Artes/ Universidade Federal do Rio de Janeiro Resumo: O conceito da lusofonia traz sempre como limite o enquadramento de identidades culturais diferentes numa padronagem homogênea ou mesmo que tem como eixo central irradiador a cultura portuguesa, ou Portugal recuperado como um lugar de origem ou ponto de partida. Através da revisão desse conceito, pretendemos discutir de que forma essa lusofonia pretendida gera tensões e embates com as culturas das ditas "ex-‐colônias portuguesas" e apresentar a reação inversa através de uma contundente lusofobia, espécie de contra-‐cultura a essa dita "multicultura" lusófona. Inicialmente, queremos destacar e abordar essa questão através da obra dos artistas visuais angolanos: Délio Jasse, Yonamine Miguel e Kiluanji Kia Henda. Palavras-‐chave: Yonamine Miguel, Délio Jasse, Kiluanji Kia Henda, lusofobia Este trabalho é movido pelo interesse em falar das relações entre Portugal e as ex-‐ colônias africanas, particularmente Angola, discutindo as tensões existentes nesse atravessar de fronteiras. A foto abaixo ( Vide Figura 1), do artista Délio Jasse, é germinal nessa discussão não apenas porque dá corpo a essa idéia de fronteira de que quero falar, mas sobretudo porque trata mais dos vazios e dos desertos que habitam essas fronteiras. Dois homens que atravessam a aridez da paisagem de modo precário, lento e com dificuldade, transformados pelo processo específico de tratamento de imagem criado pelo próprio artista em fantasmas, seres eternizados de um lugar de pouca transformação, pouca informação e alguma sinalização. O fato de não sabermos de onde vêm e para onde vão não impede a contundência de uma imagem que insiste em locomover-‐se, impondo um ritmo singular. Ao invés de uma estrada em linha reta, uma curva, no lugar da seara nova, um imenso vazio que repele o interesse e a exploração.
A imabagem da fronteira excessivamente recorrente no pensamento atual que
discute as trocas culturais, as diásporas, a situação pós-‐colonial (ou se quisermos pós-‐ Independência) de muitas ex-‐colônias é na maioria das vezes território vigiado e vazio. VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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Outra imagem ainda de Délio me serviu para questionar o título deste trabalho. Na fronteira entre o ponto de partida e o ponto de chegada há um ponto morto, um cemitério a céu aberto cujo acesso só é facilitado para fantasmas tão presentes quanto a própria paisagem da imagem (Vide Figura 2). Essa natureza morta da fronteira, que entretanto se renova pelo seu caráter de essencialmente contraditório é tanto o ponto de interseção como o lugar do vazio. Ao sair inicialmente em busca de artistas, cineastas, filmes ou obras que pudessem fazer alusão a esse imenso imaginário em comum que a cultura é capaz de expressar através dos limites de uma língua ou de uma linguagem, fui deparando-‐ me com fronteiras estéticas (entre Brasil, Portugal e África) que se atravessam, sim, e não é acidentalmente, mas atravessam-‐se mais no sentido do vazio, da morte e da precariedade que as fotografias acima podem melhor representar. O contato direto com o trabalho do Délio, tendo acesso imediato a projetos passados e futuros e com algumas das obras em mãos, transformou grande parte das intenções iniciais deste projeto de investigação que tinha como mote inicial abordar a representação da lusofonia nos processos artísticos, nomeadamente o cinema. Além de Délio, a estreita relação com o artista Kiluanji Kia Henda, angolano residente em Luanda, e com o interesse pela irreverência da obra do angolano Yonamine Miguel, residente em Lisboa (mas em trânsito), tornou a questão presente da lusofonia como tema nos processos artísticos uma reflexão incontornável.
Mais adiante, quero abordar a lusofonia em aspectos mais teóricos do ponto de vista
que talvez apenas um brasileiro vivendo no Rio de Janeiro do século XXI poderia ter.
Desse pensar a lusofonia, entretanto, que acabaria por sedimentar uma revisão
bibliográfica um tanto esgotada em Portugal e pouco conhecida no Brasil fez-‐me deparar com uma imagem igualmente seminal para este trabalho (Vide Figura 3).
A exposição Tuga Suave, de 2008, entre outras obras e imagens trazia a que referi
acima. Apagando parte da inscrição contida num maço de cigarro comum, Yonamine cria: “Português prejudica gravemente a sua saúde e a dos que o rodeiam”. Segundo o artista, quando interpelado, justifica que o que fez foi simplesmente revelar o que já estava ali contido. Po outro lado, essa apropriação vulgar de um objeto pronto abre voluntariamente grande discussão nos meios e no fazer artístico, trazendo à tona a relação do angolano
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Yonamine com um processo criativo cuja paternidade pode ser atribuída a Marcel Duchamp. Além do objeto pronto, entretanto, Yonamine opera uma descontrução de sentido nesse objeto, marcado não só nesse maço de cigarro, mas em toda sua obra, apropriando-‐se de um discurso político – de um Ministério da Saúde ou do Estado – para revelar um outro: o quão mal o português faz à saúde.
Essa rejeição portuguesa, essa fobia mesmo, é o que tentarei explorar na obra destes
três artistas angolanos e que para já é percebido de maneira recorrente e por vezes sistemática e desejada.
Para evocar aqui o conceito de lusofonia (ainda que de maneira parcial já que o
trabalho terá desenvolvimento mais alargado) gostaria de começar por um breve texto do curador e pesquisador de arte António Pinto Ribeiro (2014) publicado no site Buala. O ensaio intitulado “Para acabar de vez com a lusofonia” chama atenção a dois aspetos: o primeiro é um registro histórico que nos lembra a forma com que a lusofonia é lançada por Portugal ainda no século XIX sugerindo um direito histórico de ocupação, requerendo as terras que iam de Angola a Moçambique, apresentadas num Mapa Cor-‐de-‐Rosa que foi duramente rechaçado pelo governo britânico. O segundo aspeto é a maneira com a qual essa ideia da lusofonia é apropriada pelo governo de Salazar a fim de negociar a permanência portuguesa na Africa lusófona, enquanto as potências européias discutiam os termos da independência e descolonização de suas antigas colônias.
Muito particular é a importância do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, autor do
ensaio O luso e o Trópico, texto que serviu para consolidar e fundamentar cientificamente as bases da continuidade da ocupação colonial portuguesa e da relação com as colônias africanas nos anos 1950 em diante e até o 25 de Abril de 1974.
Ainda que o pensamento de Freyre já estivesse presente na intelectualidade
portuguesa antes dos anos 1950, a partir daí o uso direcionado do conceito criado pelo brasileiro de luso-‐tropicalismo querendo referir a um tipo particular de colonização foi sendo utilizado pelo Estano Novo português a fim de reivindicar novamente a posse histórica de certos territórios africanos. Ou seja, este tipo particular de colonização que Freyre defendeu e sugeriu quer ressaltar a empatia e a plasticidade natural do povo português, mestiço já na sua gênese, acostumado a conviver com árabes e judeus na Penísula Ibérica, e por ser
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bicontinental, entre a Europa e a Africa estaria mais propenso a uma relação mais harmónica e de maior troca. O tal luso-‐tropicalismo teria criado nações mestiças, tanto quanto é a própria metrópole portuguesa, baseada em relações de afeto e empatia geradora de um manancial multicultural no qual Freyre não enxergava contradições. O fato de Portugal ter, no século XX, uma sólida e influente Igreja Católica fazia do povo português um missionário nato, criando uma sociedade menos eurocêntrica do que cristocêntrica na África, baseada nas noções de irmandade e fraternidade cristãs.
Claro que a ocupação portuguesa na África foi bastante mais complexa do que essa
ideia. Basta pensarmos também na diferença estabelecidada do processo colonial em países como Cabo Verde ou Angola, Moçambique ou Guiné Bissau, para falar dos principais. Entretanto, queremos aqui apenas apresentar este conceito, guardando sua problemática e desdobrando-‐o num texto futuro. Serve-‐nos aqui para voltar à ideia do surgimento de uma reação violenta e contrária a essa “lusofonia”, espécie de contracultura que só surge inegavelmente no seio da problemático de um “mundo que o português criou”, para usar outro importante título de Freyre.
Na exposição Tuga Suave, Yonamine inclui por entre uma pilha de jornais, uma obra
em vídeo no qual uma mão vestida com luva de borracha (Wash, 2008) apaga uma superfície de vidro para, em seguida, "revelar" o artista que surge por entre as chamas de um programado incêndio. A metáfora do incêndio como destruição de uma memória (pois é a pilha de jornal que pega fogo) reforça o gesto da luva de borracha que insiste no apagamento.
A alusão ao tempo presente é claro com o uso recorrente dos jornais. Yonamine fala
de um país cujo passado histórico foi sistematicamente apagado em detrimento de interesses maiores. Esse passado colonial reivindicado no Tuga Suave é apagado pela posterior Guerra Civil, pela ocupação russa, cubana e agora chinesa e coreana. São muitas camadas históricas que Yonamine trabalha nas formas visuais como layers que se somam, produzem um acúmulo que nem sempre é esclarecedor e quase sempre resultará em imagens profundamente perturbadoras e desestabilizadoras.
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Yonamine apresenta no Tuga Suave uma série de intervenções feitas diretamente nas
paredes da galeria em que a obra esteve exposta, dialogando diretamente com a street art, com o grafite, com a colagem, com a serigrafia. Nas telas, Yonamine transpõe e repete essa natureza acumulativa das suas imagens incluindo camadas de imagens: jornais, pintura, serigrafia, grafite. Esse acúmulo é a outra face da moeda do processo de apagamento histórico a que Yonamine faz referência na instalação Tuga Suave, pois o excesso e a desordem gerados pelo primeiro não são mais esclarecedores do que o vazio deixado pela rasura da borracha, sendo os dois processos complementares e sucessivos, no caso de Angola.
Ainda sobre Yonamine e a instalação Tuga Suave, a imagem que se segue (Vide Figura
4) dá continuidade ao debate sobre a relação que pode existir entre Portugal e Angola. A imagem de fundo, uma fotografia retrabalhada, usada também no tríptico My people (2008) faz clara alusão ao povo angolano, numa situação de aglomeração assemelhando-‐se a uma plateia. Sobre essa imagem uma serigrafia com a imagem novamente do maço de cigarro e a inscrição “Português faz mal à sua saúde e à dos que o rodeiam”, estabelece uma tensão visual num primeiro nível, sugerindo uma tensão política entre angolanos e portugueses. Tuga Suave de Yonamine faz referência, está claro, ao passado colonial e à herança cultural portuguesa. Também faz alusão aos brandos costumes, ao tipo particular de colonização cujas bases Gilberto Freyre consolidou cientificamente. A plasticidade nata do povo português e a empatia genuína com os povos africanos foram ideias largamente defendidas pelo Estado Novo português, tornando-‐se matriz ideológica da permanência portuguesa na África. Após a pressão internacional com o fim da Segunda Guerra Mundial, essa comunidade imaginada lusófona foi sedimentada através de um reajuste linguístico transformando as antigas colônias em províncias ultramarinas, parte do território de um país pluricontinental e multirracial. Como esclarece Cláudia Castelo (2013): Em 1951, no quadro da revisão da Constituição Política da República Portuguesa, o presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, apresenta uma proposta de revogação do Acto Colonial, que contempla a sua integração no texto constitucional, com mudanças de terminologia e outros pequenos ajustes. Segundo o governo, a clara afirmação da unidade nacional, apesar da dispersão geográfica de Portugal por vários continentes, é o principal objectivo a atingir. O
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termo «Império Colonial Português», com conotações negativas no novo contexto internacional, seria banido. O termo «colónias» daria lugar à “antiga” designação de «províncias ultramarinas». Apesar das reacções negativas de alguns procuradores à Câmara Corporativa, nomeadamente do ex-‐ministro das Colónias Armindo Monteiro, a proposta recebeu o apoio da maioria dos deputados da Assembleia Nacional e foi aprovada. Na nova formulação, Portugal aparece como uma «nação pluricontinental», composta por províncias europeias e ultramarinas, integradas harmoniosamente no todo nacional uno e indivisível. Escudando-‐se no facto de nominalmente não possuir «colónias», o Estado Novo considera que não tem que prestar contas à comunidade internacional do que se passa no interior das suas fronteiras. A tónica da política ultramarina seria, daí em diante, a «assimilação». Essa assimilação, referindo-‐se a um tipo de relação estabelecida entre o povo
africano com a matriz lusófona é defendida mais pelo viés do afeto e da empatia do que pelo poder colonial exercido à força e tem como impacto profundo, no plano das ideias, uma aceitação cultural do povo africano às referências portuguesas, adotando-‐as quase que sem resistência e sem esforço. Essa comunidade imaginada da lusofonia guarda, portanto, neste nível, um discurso que corrobora a violação cultural e que mitifica o processo de colonização ocorrida nos países africanos que ainda hoje tem a língua portuguesa como língua oficial.
Como reação a esse discurso oficial da assimilação e da pacífica relação entre o
colono português e os povos africanos, queremos referir um tipo particular de contra-‐ cultura, espécie de subversão à lusofonia multirracial, a ideia de uma lusofobia. Uma rejeição que acontecerá por dentro, utilizando a matriz portuguesa para contestá-‐la, questioná-‐la ou mesmo negá-‐la.
Para aprofundar essa questão, a série de trabalhos intitulado Homem Novo (2010-‐
2012), de Kiluanji Kia Henda faz alusão ao período pós-‐Independência no qual o discurso nacional sedimentou a necessidade pela criação de uma nova realidade, uma nova sociedade e de um novo homem. Kiluanji apropria-‐se aqui da história para recriá-‐la livremente de um ponto de vista subjetivo e ficcional.
A série de fotografias Balumuka (Ambush) (Vide Figura 5) que acompanha o trabalho
Homem Novo passa-‐se na importante Fortaleza de São Miguel, primeira construção militar em Luanda feita pelos portugueses ainda no século XVI. Kia Henda visita, em 2010, a construção que já foi um ponto estratégico no tráfico de negros durante o período colonial e
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fotografa antigas estátuas de Afonso Henriques e Vasco da Gama, já retiradas e também a estátua da Rainha Nzinga, importante líder da resistência à colonização portuguesa, em meio a canhões e carros usados durante o período da Guerra Fria. No Forte de São Miguel há através das fotografias de Kia Henda um sugerido embate entre as estátuas que de um lado relembram o passado colonial, como a imagem de Afonso Henriques em primeiro plano e do outro a Rainha Nzinga, importante símbolo de resistência à colonização portuguesa. Separados mais pelo tempo do que pelo espaço, entre um lado e outro canhões e armas de guerra que se referem a lutas do passado e do presente. Na busca pela reconstrução histórica de seu país, ou mesmo interessado em ficcionalizar o passado colonial e os anos que se seguiram, Kia Henda parte dos lugares de ausência e de silêncio, dos lugares desocupados da cidade de Luanda. Nos anos pós-‐ Independência, como o artista prefere intitular, os pedestais de Luanda foram sendo paulatina e rapidamente esvaziados. As imagens que remetiam aos mitos e aos heróis da colonização portuguesa são retirados e em substituição a essas imagens há ainda um enorme vazio. Os anos que sucedem ao período de independência são anos de ocupação russa, cubana e mais recentemete coreana e chinesa que criam para a cidade de Luanda e seu processo histórica camadas e camadas sobrepostas de imagens e representações. O próprio título do trabalho em que a série de fotografias se inclui, Homem Novo, faz alusão a uma nova condição política para Angola que se impõe com o fim do período colonial. Para além da adesão à ideologia marxista e aos então países comunistas, como União Soviética e Cuba, criar um homem novo era condição incontornável para a consolidação de Angola como um Estado-‐Nação. No trabalho Icarus 13, (Vide Figura 6) Kiluanji acrescenta a sua capacidade de recriar histórias, uma boa dose de humor. Segundo o próprio artista, este trabalho tem como origem uma anedota acerca do então primeiro presidente moçambicano (1975 – 1986) Samora Machel no qual inspira nos africanos o desejo de viajar até o Sol. No texto que acompanha a instalação Icarus 13, Kia Henda salienta a necessidade da viagem ser feita à noite, segundo o Presidente, e de exigir grande treinamento. Tudo pela superação aos russos e aos americanos que já foram à Lua (?).
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A espaçonave Icarus 13 construída em Luanda é, na verdade, o mausoléu onde os restos mortais de Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola independente, estão. O título da fotografia confunde o olhar e a semelhança real da construção com a forma de uma espaçonave aprofunda a dúvida e a ficção em torno da viagem ao sol começa a aprofundar-‐ se. Noutra imagem, vemos mais do contexto da cidade de Luanda em relação à suposta espaçonave. A associação da viagem ao sol à trajetória política de Angola pós-‐independência é inevitável. Preenchendo a história com ricas metáforas, Kia Henda reconta o otimismo talvez ingênuo, a necessidade de superação (física, política, militar) e também o dever de construir coletivamente um projeto de futuro, mesmo que guiados pelo deslumbre de uma viagem ao sol: tudo parte de um contexto de um país pós-‐independência assolado em instabilidades sociais e políticas, atravessado por uma longa guerra civil (1975 – 2002) e com a tarefa de instituir um Homem Novo. Na imagem seguinte, um (falso) observatório de astronomia, “encontrado” no meio do deserto na Namíbia, imagem que também trata de ambições e vazios.
Numa conversa com o artista, Kia Henda explica que a construção acima é na
realidade um banheiro público, de certa forma “abandonado” no meio do deserto e se relaciona com a próxima imagem, cuja precariedade estabelece um contraste com o título da fotografia (Vide Figura 7).
A viagem é um ponto de partida para refletir acerca de uma condição temporal
que atinge não só Angola, mas a África de uma maneira mais geral e, claro, de uma situação política. A maneira com que o Ocidente reforça narrativas que têm como ponto de partida o processo colonizador nos países africanos, levando-‐os sempre ao passado, às raízes e às marcas e registros da colonização marca inclusive o campo teórico atual que tem o conceito de pós-‐colonialismo como um elemento central para pensar os países africanos e não só. Esse registro da continuidade, atestando uma situação pós-‐período colonial assenta o olhar seja para Angola, seja para antigas colônias, a partir do solo europeu.
O projeto fictício Icarus 13, mesmo fracassado enquanto “projeto de viagem”, é
uma idéia que direciona os países africanos para uma ação e um desejo no futuro. Por outro lado, Icarus 13 envolve também a celebração, o otimismo e a ousadia, remetendo-‐nos a certa euforia que alimentou os discursos, as narrativas e os projetos de uma África pós-‐
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Independente, recriada aqui pelo artista num cenário irônico ao mesmo tempo desgastado e esperançoso. A última imagem aqui resgatada para repensar esses espaços da lusofonia e apresentar o tema da lusofobia é uma visão geral da instalação Icarus 13, também apresentada na 29º Bienal de São Paulo.
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ANEXOS
Fig.1-‐ Délio Jasse, Untitled
Fig.2-‐ Délio Jasse, Untitled
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Fig.3-‐ Yonamine, Série Tuga Suave, 2008
Fig.4-‐ TUGA SUAVE, 2008, Yonamine Miguel | serigrafia sobre papel | silkscreen on paper
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Fig.5 -‐ Balumuka (Ambush) | 40cmx30cm x 12 | Impressão em papel matt sobre alumínio | 2010
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Fig.6-‐ Kiluanji Kia Henda, The spaceship Icarus13, Luanda, 2007
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Fig. 7-‐ Kiluanji Kia Henda, Astronomy Observatory, Namibe Desert, 2007
Fig. 8 – Instalação vista na 29ª Bienal de São Paulo “There is always a cup of sea to sail in”, São Paulo 2010
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PROJETO “O ARQUIVO DO ROMANCEIRO PORTUGUÊS DA TRADIÇÃO ORAL MODERNA (1828-‐2010): SUA PRESERVAÇÃO E DIFUSÃO” Pere Ferré, Sandra Boto e Mirian Tavares Centro de Investigação em Artes e Comunicação / Universidade do Algarve Resumo: O Romanceiro é um género poético tradicional que circula desde os finais da Idade Média na memória dos povos de expressão portuguesa, galega, castelhana e catalã, difundindo-‐se desde então oralmente de geração em geração. Trata-‐se, portanto, de um património imaterial de uma vitalidade excecional e de uma riqueza ímpar que importa preservar. O presente projeto, acolhido pela Fundação Manuel Viegas Guerreiro e pelo CIAC, e financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, pretende salvaguardar e tornar acessível ao grande público o Arquivo do Romanceiro Português, absolutamente único no contexto ibérico, através dos novos recursos digitais. Resumen: El romancero es un género poético tradicional conservado, desde finales de la Edad Media, en la memoria de los pueblos de expresión portuguesa, gallega, castellana y catalana y transmitido oralmente desde aquella fecha, de generación en generación. Es, de este modo, un patrimonio de excepcional vitalidad y de una riqueza sin par que urge conservar. Este proyecto, desarrollado por la Fundação Manuel Viegas Guerreiro y por el CIAC, con el apoyo de la Fundação Calouste Gulbenkian, pretende conservar y, a la vez, hacer accesible al público en general, el Archivo de Romancero Portugués, a través de los nuevos recursos digitales. Palavras-‐chave: romanceiro; tradição oral moderna portuguesa; arquivo; novos média; Humanidades Digitais.
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1. O projeto que aqui apresentamos, “O Arquivo do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna (1828-‐2010): sua preservação e difusão”, é uma investigação acolhida pela Fundação Manuel Viegas Guerreiro, de Querença (Loulé), que tem estatutariamente como vocação a promoção do património cultural local e nacional, em parceria com o CIAC – Centro de Investigação em Artes e Comunicação, a quem cabe coordenar as atividades de caráter técnico referentes à digitalização, conceção de bases de dados e disponibilização dos materiais em rede. Trata-‐se de uma candidatura aprovada para financiamento na edição de 2013 do concurso “Recuperação, Tratamento e Organização de Acervos Documentais” promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian. Os trabalhos, que tiveram início em setembro de 2013 e com conclusão prevista para agosto de 2014, são coordenados por uma equipa nuclear constituída por três investigadores com experiência na área: Pere Ferré assume a coordenação geral da investigação; Mirian Tavares, a coordenação técnica e de comunicação e Sandra Boto assume as funções de responsável pela edição dos registos textuais e sonoros do arquivo. 2. Importa, antes de passarmos à explicação técnica e detalhada dos objetivos e atividades do projeto, enquadrar brevemente o género poético a que este arquivo se encontra dedicado bem como as especificidades do mesmo, de forma a percebermos a sua importância patrimonial no contexto nacional e internacional. Partindo do facto de o Romanceiro ser um género literário que ostenta uma vetusta tradição que remonta à Idade Média, perdurando nas memórias populares desde então até ao presente, assumiremos, sem qualquer dificuldade, estarmos perante um património imaterial de uma riqueza ímpar com óbvias necessidades de preservação a que só os novos recursos digitais podem dar resposta. Paradoxalmente, é a disseminação dessas mesmas novas tecnologias e dos new media a responsável pela talvez definitiva aniquilação da vitalidade e função da poesia tradicional no seio das comunidades rurais em que ainda escassamente permanece, votada ao estertor. Foi no século XIX que se deram os primeiros passos na recolha e classificação do Romanceiro como património literário em Portugal, pelas mãos dos Românticos, desde que
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Almeida Garrett se lançou, nos anos 20, na compilação de versões de romances tradicionais com o objetivo de provar que a literatura portuguesa não só não carecia de uma poesia popular legítima e nacional, como o Romanceiro português apresentava uma qualidade superior à da baladística dos outros povos europeus. Em 1828, portanto, Garrett dava à estampa, pela primeira vez, versões de romances da tradição oral moderna portuguesa e por este motivo este ano veio a instituir-‐se como baliza cronológica inicial no âmbito deste arquivo e, por conseguinte, deste projeto. Devemos, contudo, ao século XX, a consolidação e aprofundamento das ações de recolha de campo e de preservação destes textos orais com propósitos bem mais científicos, ora etnográficos, ora filológicos, ora linguísticos. Em qualquer um dos casos, a perceção do Romanceiro de tradição oral como um património memorial carente de uma intervenção concertada, devido ao risco de desaparecimento provocado pela perda da memória das populações que cantam romances, traduziu-‐se na organização de múltiplas campanhas de campo, bem como numa ação de divulgação dos textos anteriormente publicados, através da sua reedição em coleções que pretendiam levar ao público académico (e não só) esta poesia de transmissão oral. Relembro, por exemplo, a publicação do Romanceiro Geral Português, da responsabilidade de Teófilo Braga (1906-‐1909) ou os monumentais volumes do Romanceiro Português de Leite de Vasconcelos (1958-‐1960). Mas as mencionadas campanhas de recolha deram, na verdade, resultados notoriamente positivos, pois permitiram efetuar o levantamento, em território português, de centenas e centenas de novas versões de romances e, inclusivamente, de novos temas de romances, que até à época se duvidava ou ignorava que tivessem frutificado na tradição portuguesa, como o tema épico “Afuera, afuera, Rodrigo”1, cuja existência em Portugal só foi confirmada a partir das prospeções das equipas de Pere Ferré no Arquipélago da Madeira, nos inícios da década de 80 do século XX, embora Estácio da Veiga tivesse publicado em 1870 uma versão tão refundida deste romance que se colocasse em dúvida a sua legitimidade. Na verdade, a partir do último quartel do século XX, este interesse manifestado por Pere Ferré e pelas equipas por ele lideradas no levantamento deste género, a partir da 1
Excetuando a criativa e controversa versão de Veiga, 1870: 19-‐22, só voltaram a ser publicadas mais versões deste romance, em Portugal, com Ferré, 1982: 27 e 27-‐28. VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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tradição oral, conduziu à edificação de um grande arquivo constituído pelo fruto das recolhas efetuadas na tradição oral e pelo levantamento bibliográfico e textual exaustivo das versões de romances editadas desde o século XIX até aos nossos dias. Construiu-‐se, assim, a partir deste trabalho de exumação, um arquivo único à escala ibérica, onde se encontram depositados materiais absolutamente inéditos, a par da esmagadora maioria das versões de romances da tradição portuguesa dadas à estampa de forma dispersa, tornando assim acessível ao público textos que, de outra forma, só com grande esforço de pesquisa poderiam ser localizados. Na realidade, as múltiplas recolhas de prospecção pelo território português continental e insular de finais do século XX, inícios do século XXI permitiram angariar centenas de horas de gravação (mais precisamente, as recolhas de campo levadas a cabo entre 1976 e 1997 por Pere Ferré produziram a compilação de um total de 660 horas de gravação, em 609 cassetes contendo versões de romances), depositadas no então designado “Arquivo do Instituto sobre os Estudos do Romanceiro Velho e Tradicional. Versões inéditas (1976-‐1997)”, pertencente ao entretanto extinto Instituto de Estudos do Romanceiro Velho e Tradicional da Universidade Nova de Lisboa. Este arquivo, juntamente com o “Arquivo Geral do Romanceiro Tradicional Português. Versões editadas (1828-‐2000)”, também outrora depositado nesse Instituto, e que acolhe fotocópias de todas as versões de romances já publicadas desde que Almeida Garrett encetou o interesse pelo romanceiro tradicional no primeiro quartel do século XIX, veio posteriormente a formar um único núcleo documental, textual e sonoro, o “Arquivo do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna”. Esta alteração é efetivamente tardia, dando-‐se já em 2009, com a definitiva transição dos materiais audio para a Universidade do Algarve. São estes dois acervos que constituem atualmente o objeto deste projeto. Compreende então o “Arquivo do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna (1828-‐2010)” (figs. 1 e 2), depositado atualmente no Algarve, o produto do trabalho de investigação bibliográfica e de campo das equipas de Pere Ferré, tanto no que respeita aos materiais sonoros como no que se refere ao arquivo em papel contendo cerca de 6.500 versões já publicadas e cerca de 5.000 transcrições de textos inéditos. Iniciado na Universidade Nova de Lisboa durante os anos 80 do século XX, onde permaneceu até ao ano
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2000 (o acervo em papel) e até 2009 (o acervo sonoro), várias vicissitudes têm marcado a vida destes documentos, sobretudo algumas de ordem física, como as repetidas inundações que os assolaram quando se encontravam depositados no Centro de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade do Algarve, primeiro espaço que acolheu o Arquivo aquando da sua chegada ao Algarve. Não se pense, contudo, que o trabalho de constituição do arquivo se encontra estanque ou dado por concluído. Bem pelo contrário, não podemos deixar de aludir que o trabalho de angariação de versões, tanto na sua vertente textual como sonora, é entendido enquanto processo em constante atualização e naturalmente ininterrupto. A atualização do arquivo não cessa, portanto, devido ao constante surgimento de novas publicações e de versões de romances tradicionais que continuam a ser dadas a conhecer e cuja incorporação é prioritária. Definimos, pois, tendo em conta este pressuposto, o ano de 2010 como baliza final para tratamento no âmbito deste projeto. Ressalte-‐se ainda que este arquivo, nas suas duas vertentes, permitiu potenciar significativamente os estudos teóricos em torno desta poesia de tradição oral e, por conseguinte, melhorar o conhecimento dos seus mecanismos. Referimo-‐nos concretamente a uma lista significativa de trabalhos académicos nacionais e internacionais como artigos, comunicações nacionais e internacionais, teses de licenciatura, de mestrado e de doutoramento, que, desde os anos 90, têm vindo a usufruir da consulta dos materiais aqui depositados 2 . Sobretudo, devemos uma chamada de atenção para a obra Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna Portuguesa (1828-‐1960), (da autoria de Pere Ferré e com colaboração, entre outros, de Mirian Tavares e Sandra Boto, com quatro volumes já publicados com a chancela da Fundação Calouste Gulbenkian, entre 2000 e 2004), bem como para a Bibliografia do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna (1828-‐2000), de Pere Ferré e Cristina Carinhas, publicada em Madrid pelo Instituto Universitario Seminario Menéndez Pidal, em 2000. Esta bibliografia constitui, com efeito, uma ferramenta fundamental para os estudiosos que se dedicam a esta área do conhecimento. 2
Eis uma brevíssima amostra dos trabalhos académicos nacionais e internacionais levados a cabo com recurso ao Arquivo do Romanceiro Português: Araújo (2000); Boto (2011); Carinhas (1995); Marques (2003); Pires (2006); Rico (2005); Salazar (2011) e Valenciano (1994). Sublinhe-‐se ainda que várias investigações de doutoramento e pós-‐doutoramento em curso continuam atualmente a usufruir da consulta dos materiais sonoros e textuais depositados neste arquivo. VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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Fica clara, deste modo, a importância deste acervo e a urgência de que se reveste a sua preservação, através do recurso à digitalização, reconhecendo que a sua manutenção nos formatos em que se encontram os materiais (cassetes áudio, para o arquivo sonoro, e em papel, para o arquivo dos textos) constitui uma séria ameaça à sua preservação, bastando, para tal, pensarmos que as cassetes áudio constituem suportes extremamente perecíveis e efémeros e que o papel (os textos encontram-‐se fotocopiados) está sujeito a sofrer os danos causados pela humidade, calor, possíveis intempéries e até incêndios, correndo assim o risco de desaparecer definitivamente o esforço de gerações de investigadores que se dedicaram ao levantamento destes documentos e, por conseguinte, de uma parte valiosa da nossa memória coletiva e patrimonial. 3. Reconhece-‐se, em segundo lugar, e apesar do que se disse acerca do papel desempenhado por estes arquivos na investigação académica sobre a balada ibérica, que o impacto destes acervos junto do público se encontra ainda muito aquém do desejável. Se pensarmos nas possibilidades que os novos média oferecem atualmente na difusão da informação e do conhecimento através de plataformas em rede, concluiremos sem esforço que é urgente a sua disponibilização na web de forma a beneficiar, desta forma, utilizadores / investigadores de todo o mundo com interesse no romanceiro ibérico, o que só o recurso ao digital e a um interface em rede pode corrigir. A adaptação às novas tecnologias da informação impõe-‐se, assim, como uma obrigação a todos os núcleos documentais de interesse patrimonial pois é justamente essa vertente coletiva (o que é absolutamente adequado ao Romanceiro tradicional) que demanda a sua mais ampla divulgação, como um imperativo de ordem cultural que não pode ser contornado. Outros projetos mais ou menos semelhantes, no que respeita a plataformas de difusão relacionadas com a literatura de tradição oral, serviram de inspiração a este. Referimo-‐nos concretamente a duas plataformas. Refira-‐se, por um lado, o “Pan-‐Hispanic Ballad Project”, da University of Washington e liderado pela Professora Suzane Petersen3, que foi a primeira plataforma a acolher uma base de dados dedicada ao romanceiro ibérico, congregando várias sub-‐tradições e com a qual colaborámos na cedência de versões 3 Disponível em http://depts.washington.edu/hisprom/ VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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portuguesas já publicadas. Trata-‐se de um recurso de extrema utilidade, embora careça ainda de ser completada nalguns campos devido, naturalmente, à vasta ambição do projeto em si. Por seu turno, o segundo projeto que nos serviu de guia do ponto de vista não só do conceito e das potencialidades a explorar, mas também da elaboração do interface, foi o “Arxiu de Folkore”, da responsabilidade da Professora Carme Oriol e vinculado à Universitat Rovira i Virgili de Tarragona, em Espanha, com quem temos vindo a estreitar laços de cooperação institucional4. 4. No sentido de concretizar o objetivo de disponibilizar em rede esta plataforma do romanceiro português, que assumirá a designação www.romanceiro.pt, previu-‐se a constituição de uma equipa organizada em torno de dois eixos: 1) Os responsáveis pela componente técnica e tecnológica do projeto (digitalização dos materiais, construção de uma base de dados e disponibilização online do arquivo): -‐ A responsável, Mirian Tavares, no que diz respeito ao parceiro CIAC, pelas atividades que requerem o domínio da tecnologia ao serviço da preservação e boa difusão dos materiais do arquivo: -‐ Procedeu-‐se também à afetação de um técnico multimédia ao projeto que presta apoio às atividades de edição dos materiais e à concepção gráfica do site e da imagem do projeto, em geral; -‐ Contratou-‐se um informático em regime de prestação de serviços com vista à criação e gestão das bases de dados e programação da plataforma; 2) Os responsáveis pela componente científica / filológica, que supervisionam as ações levadas a cabo e garantem a boa execução das tarefas, tendo em vista as práticas de edição de textos orais e o conhecimento dos mecanismos que regem o romanceiro tradicional:
-‐ O coordenador do projeto, Pere Ferré, e Sandra Boto, ambos especialistas
na área do romanceiro tradicional. 4 Disponível em http://arxiufolk.arxiudefolklore.cat/ VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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Pensamos, passando por três estádios de trabalho calculados para 12 meses de trabalho intensivo que enunciamos a seguir, poder devolver o “Arquivo do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna (1828-‐2010)” ao espírito que presidiu a sua constituição: proporcionar ao público interessado uma parcela da sua memória coletiva, de forma organizada, com uma lógica de busca intuitiva e de livre acesso: 1)
Passagem do conteúdo das cassetes áudio (arquivo sonoro) do formato analógico para formato de alta qualidade (.aiff), a ser convertido noutros formatos para divulgação na web (nomeadamente mp3); digitalização de todo o arquivo em papel (versões éditas e inéditas) para ficheiros de imagem (.tiff) -‐ esta primeira fase garante a passagem dos materiais para formatos digitais antes das intervenções de edição e está a ser coordenada por Mirian Tavares.
2)
Tratamento dos registos sonoros já digitalizados, sua edição e (re)classificação; revisão das transcrições efetuadas no passado e realização das transcrições em falta, a partir dos materiais áudio (edição de texto); revisão das classificações dos materiais obtidos após a digitalização do arquivo em papel, a partir da classificação adotada internacionalmente, o Índice general del romancero: tarefa coordenada por Pere Ferré e Sandra Boto.
3)
Construção de uma base de dados com todos os materiais obtidos e sua disponibilização em rede no site www.romanceiro.pt, com vínculo à Plataforma Crossmedia do CIAC (em http://crossmediaplatform.ciac.pt/) e aos sites de eventuais futuros parceiros que possam entretanto vincular-‐se ao projeto: tarefa coordenada por Mirian Tavares, com a colaboração de Pere Ferré e Sandra Boto.
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5. No momento em que apresentamos esta comunicação, o projeto já se encontra em curso e, portanto, gostaríamos de dar aqui conta do estado dos trabalhos, de acordo com as fases e tarefas descritas antes. Na realidade, tarefas preparatórias com vista às fases 2 e 3, segundo aqui foram descritas, encontram-‐se atualmente em curso, a par com a primeira grande tarefa. A conversão dos ficheiros sonoros de formato analógico para digital, contendo registos de versões recolhidas pelas equipas de Pere Ferré até 2005 encontra-‐se finalizada, tendo sido levada a cabo por uma empresa certificada e com significativa experiência na área. Seguir-‐ se-‐á o trabalho de transcrição, revisão das transcrições previamente efetuadas e de edição dos registos para futura incorporação na base de dados. Por seu turno, prosseguem os trabalhos de preparação com vista à digitalização dos cerca de 10.000 documentos que constituem o arquivo em papel contendo as versões de romances tradicionais publicadas em Portugal. Este arquivo requer, pela sua complexidade intrínseca (reúne pretensamente todas as reedições das mencionadas versões), uma etiquetagem prévia, folha a folha, de modo a evitar as perdas de documentos e a proporcionar um mais eficiente reconhecimento do arquivo digitalizado, através da mimetização da organização em pastas do original em papel, reproduzindo inclusivamente as suas cotas identificativas (figs. 3, 4 e 5). Pensa-‐se que em breve este arquivo em papel esteja em condições para ser digitalizado. Paralelamente, deram-‐se já os primeiros passos com vista à implementação das bases de dados, nomeadamente no que respeita ao seu design e atualização. Refira-‐se que estas assentavam numa primitiva estrutura concebida durante os anos 90 no software Microsoft Works. Dispúnhamos já, neste formato, de uma base de dados relativa às versões de romances tradicionais publicados e outra relativa às versões de romances inéditas fruto das recolhas de Pere Ferré, que estamos a tentar fazer confluir num interface comum. Como se depreende, as limitações impostas pelo sistema Microsoft Works serão agora ultrapassadas, de forma a incluir ficheiros de som (mp3), imagem (.jpg) e novos campos relativos à descrição das versões que anteriormente não foram contemplados serão agora incorporados. Uma vez que se encontram praticamente definidos os requisitos das bases de dados, tarefa levada a cabo em cooperação com o informático do projeto, passámos então à fase de testes, em que nos situamos atualmente. Do mesmo modo, uma vez dados neste
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momento os primeiros passos necessários à implementação do site www.romanceiro.pt, encetou-‐se uma fase de discussão sobre a definição das funcionalidades da futura plataforma, que se encontra em curso. 6. Como se pode observar, muito trabalho resta por levar a cabo de forma a concluir os objetivos que atrás expusemos, embora não verifiquemos neste momento uma significativa derrapagem no cronograma aprovado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Em síntese, o apoio concedido pela Fundação Calouste Gulbenkian veio permitir não só concretizar, através do presente projeto, a urgente recuperação, por via da digitalização, deste bem patrimonial e a sua divulgação pela comunidade científica, como cremos lançar com este trabalho as bases para futuros projetos de alargamento desta plataforma a outros recursos. Potenciá-‐la com novas possibilidades de pesquisa cruzada e alargada no campo das correspondências com o romanceiro antigo, com o romanceiro dos restantes povos de expressão castelhana, portuguesa, catalã e galega e com a balada europeia (através da inclusão de versões antigas, manuscritos, partituras, música, textos críticos e bibliografias, etc.) constitui o nosso foco de investimento para o futuro. É neste sentido que estamos a pensar a plataforma em construção, obedecendo à preocupação de criar um produto aberto à incorporação de novos recursos e parceiros científicos, assim nos permitam, nos tempos vindouros, as oportunidades de financiamento.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ARAÚJO, Teresa (2000). Teófilo Braga e o Romanceiro de Tradição Oral Moderna Portuguesa. Questões de História e Teorização. Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa [edição policopiada]. BOTO, Sandra (2011). As Fontes do Romanceiro de Almeida Garrett. Uma Proposta de "Edição Crítica". Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor no Ramo de Línguas, Literaturas e Culturas, Especialidade de Estudos Literários, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (url: http://hdl.handle.net/10362/7205). BRAGA, Teophilo (1906). Romanceiro Geral Portuguez, I: Romances heroicos, novelescos e de aventuras. Lisboa: Manuel Gomes. BRAGA (1907). Romanceiro Geral Portuguez, II: Romances de aventuras, historicos, lendarios e sacros. Lisboa: Manuel Gomes. BRAGA (1909). Romanceiro Geral Portuguez, III: Romances com forma litteraria do seculo XV a XVIII. Lisboa: J. A. Rodrigues & Co. CARINHAS, Cristina (1995). Romanceiro das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira (1825-‐1960). Edição Crítica. Tese de Mestrado apresentada à Universidade Nova de Lisboa. FERRÉ, Pere, com a colaboração de Vanda Anastácio, José Joaquim Dias Marques e Ana Maria Martins (1982). Romances Tradicionais, Funchal: Edição da Câmara Municipal. FERRÉ, Pere (2000). Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna. Versões Publicadas entre 1828 e 1960, vol. I, com a colaboração de Cristina Carinhas, Ramón dos Santos de Jesus e Eva Parrano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. FERRÉ, Pere (2001). Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna. Versões Publicadas entre 1828 e 1960, vol. II, com a colaboração de Teresa Araújo, Cristina Carinhas e Mirian Nogueira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. FERRÉ, Pere (2003). Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna. Versões Publicadas entre 1828 e 1960, vol. III, com a colaboração de Sandra Boto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
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FERRÉ, Pere (2004). Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna. Versões Publicadas entre 1828 e 1960, vol. IV, com a colaboração de Sandra Boto e Patrícia de Jesus Palma. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. FERRÉ, Pere e CARINHAS, Cristina (2000). Bibliografia do Romanceiro português da Tradição Oral Moderna (1828-‐2000). Madrid: Instituto Universitario Seminario Menéndez Pidal. MARQUES, José Joaquim Dias (2003). O Romanceiro de Estácio da Veiga. Tese de Doutoramento apresentada à Universidade do Algarve. PIRES, Natália (2006). O Léxico do Romanceiro da Tradição Oral Moderna Portuguesa, Tese de Doutoramento apresentada à Universidade A Coruña. RICO, Amparo (2005). Romancero de la provincia de Valencia: recopilación, catálogo y estudio, Tesis doctoral. Universitat de València. SALAZAR, Flor (2011). Romances vulgares tradicionales. Identificación, características y clasificación. Creación de un índice general ejemplificado del Romancero Vulgar. Tesis doctoral. Universidad Complutense de Madrid. VALENCIANO, Ana (1994). Los romances tradicionales de Galicia. Catálogo ejemplificado de sus temas. Tesis doctoral. Universidad Complutense de Madrid. VASCONCELLOS, José Leite de (1958). Romanceiro Português, I. Coimbra: Por Ordem da Universidade. VASCONCELLOS, José Leite de (1960). Romanceiro Português, II. Coimbra: Por Ordem da Universidade. VEIGA, Estacio da (1870). Romanceiro do Algarve. Lisboa: Imprensa de Joaquim Germano de Sousa Neves.
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ANEXOS
Fig. 1: Detalhe do arquivo contendo as fotocópias das versões de romances publicadas em Portugal desde 1828.
Fig. 2: Pequena amostra das 609 cassetes áudio produto das recolhas de campo contendo versões de romances tradicionais, depositadas no Arquivo. VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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Fig. 3: Exemplo de ficha individual relativa a uma das versões já publicadas do romance “El moro que reta a Valencia” publicada por Manuel da Costa Fontes em 1987 e reeditada pelo mesmo editor no mesmo ano. Cada versão é acompanhada por uma ficha semelhante que irá ser transposta para a nova base de dados.
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Fig. 4: Reprodução da imagem do texto da versão mencionada na ficha da Fig. 3. Trata-‐se da primeira publicação constante na respetiva pasta do arquivo juntamente com a ficha, onde duas notas marginais manuscritas em pé de página dão indicações sobre a sua sigla bibliográfica e sobre a sua cota identificativa.
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Fig. 5: Imagem da segunda edição desta versão, que acompanha, na pasta correspondente depositada no Arquivo, o texto reproduzido na Fig. 4 e a ficha da Fig. 3. Observa-‐se, em pé de página, uma etiqueta manuscrita contendo a sua cota identificativa. Os números à margem do texto indicam o número das páginas na publicação original.
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PRÁTICA ARTÍSTICA – UMA FORMA DE INVESTIGAÇÃO Sara Navarro Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa
Resumo: A fim de tentar sublinhar o valor da investigação-pela-prática artística, no meu trabalho, interesso-me particularmente pela forma como a arte pode questionar e, de certa forma, representar o pensamento de outras disciplinas, assim como pela contribuição que pode dar no campo da sua divulgação e da relação interdisciplinar entre diferentes áreas do saber.
Palavras-chave: Arte, Arqueologia e Transdisciplinaridade.
De caráter assumidamente teórico-prático, o meu trabalho propõe uma justaposição ou um cruzamento entre duas vertentes distintas: por um lado, a arqueologia, abordada numa perspetiva teórica; por outro, a escultura, numa perspetiva mais enfocada na prática e na criação artística. No âmbito de um modelo bipartido, em que as dimensões teórica e prática assumem valor e impacto equiparados, propus-me criar objetos escultóricos evocadores de formas da cerâmica pré-histórica (autonomizando-se e afirmando a sua individualidade e originalidade pelas alterações de escala praticadas, por uma manipulação original dos esquemas decorativos e pela rutura com a funcionalidade). Pretendo com estes objetos de terracota, realizados pela técnica da manufatura cerâmica pré-histórica, evidenciar a prática de uma exploração criativa e investigadora da relação entre a mão e a matéria, no sentido do saber fazer artesanal e ancestral. Ambiciono com a sua criação enriquecer o olhar científico lançado sobre os objetos arqueológicos, iluminando-o com uma experiência subjetiva de autor e proporcionando a sua (re)interpretação estética, materializada num corpus de esculturas cerâmicas e de
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documentos fotográficos, que ganham deste modo um peso específico totalmente equiparado à produção teórica. O olhar do artista, debruçado sobre os vestígios materiais provenientes de sítios arqueológicos, é naturalmente diferente do olhar do arqueólogo, metodologicamente mais direcionado para as questões tipológicas e cronológicas. O olhar do artista, através da própria prática artística, procura entrar nos gestos dos produtores, recriá-los e senti-los como seus, entrar nos pensamentos e nas motivações que estão por trás de cada gesto, investigar e experienciar a função simbólica dos artefactos produzidos. Penso que o código linguístico, pela sua especificidade, nem sempre tem capacidade para comunicar a totalidade e complexidade das impressões sensoriais que constroem a nossa experiência da materialidade. Trata-se de um olhar que vai além da linguagem escrita utilizada habitualmente nas abordagens académicas, configurando uma materialização das ideias através de um processo criativo que pode, assim, permitir um envolvimento mais direto com a cultura material, expandindo a consciência dos materiais e explorando novas abordagens interpretativas. Deste modo, interesso-me particularmente pelo papel do artista como participante ativo nos processos de interpretação e de comunicação ligados ao conhecimento científico. O artista metamorfoseia-se em investigador que dá corpo às suas próprias visões e ideias através das obras criadas. A prática artística vive da negociação constante entre materiais e tecnologias e o mundo imaterial das ideias e dos significados. Esta produção artística interpretativa e experimental permite e incentiva, por sua vez, nos observadores, uma multiplicidade de perspetivas e de interpretações, facto este que está inteiramente contido no conjunto das minhas motivações. Neste sentido, a organização de exposições faz também ela parte integrante do corpus do meu trabalho, conferindo-lhe a dimensão de uma partilha de subjetividades que claramente o enriquece e anima, no sentido de lhe conferir como que uma vida própria em cada um dos observadores.
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Expor é suspender, é separar os objetos do respetivo contexto de origem. As consequências de expor variam, mas podemos encontrar uma constante – destaca os objetos do fluxo geral da vida, colocando-os à disposição para a contemplação e para o pensamento. No meu trabalho, a ficção é posta, no ato da exposição, ao serviço do propósito escultórico, diretamente relacionado com a morfologia das peças criadas e com a sua intervenção no espaço expositivo, onde os volumes, apesar do seu peso, não permanecem firmes sobre a terra. As formas sujeitas a um processo esquematizador reformulam os pressupostos utilitários originais, deixando de lado os conceitos mais funcionais e adotando um novo sentido mais contemporâneo, baseado na construção, rutura, deformação e adição de significados. Ou seja, de volumes escultóricos e de sentidos semânticos subversivos das formas originais, onde a contemporaneidade da exposição constrói uma desregulada retórica da essencialidade, da recriação, da depuração, da sensualidade e do poético. Na exposição Formas de Terra e Fogo (Museu de Portimão, 2012), as peças, que exprimem claramente a sua própria massa inerente às propriedades físicas do material cerâmico, aparentam, pela técnica de instalação, estar em suspensão, livres do próprio peso. Esta extrema leveza aparente, ou visual, permite que as esculturas saiam da condição de objeto, ultrapassem a sua materialidade e ganhem novos significados simbólicos. Suspensas no espaço da exposição, as peças, dotadas de um investimento de energia que as impele contra a gravidade, vencem a resistência do seu próprio peso e pairam como corpos animados ou planetas num espaço cósmico. É no museu, ou no espaço da exposição, que, através da emoção estética, o observador pode metamorfosear as peças, ou os objetos, em ideias. As peças aproximam-se de uma corporização abstrata, isto é, se por um lado assumem a forma enquanto tal, por outro, a maneira como são colocadas no espaço expositivo contribui para uma superação da sua objetualidade formal. As peças colocam o observador num domínio da escultura que pressupõe uma envolvência conceptual sem a qual as peças não se distinguiriam de objetos vulgares, utilitários. Configurando uma ontologia anímica, em diferentes tempos e diferentes culturas, determinados objetos tornam-se animados e passam a ser entendidos como corpos vivos.
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Lembrando os ídolos das antigas civilizações, podemos entrever nas peças, através da transfiguração e do movimento de ascensão, um sentido xamânico da arte, no qual estas, enquanto instrumentos de poder, se veem carregadas de significados simbólico-rituais que ultrapassam a sua materialidade. De forma diferente, mas com o mesmo sentido, as mesmas peças da exposição Formas de Terra e Fogo, na exposição Do Magma às Estrelas (ruínas romanas de Milreu – Faro, 2012), utilizam o caráter arqueológico do espaço expositivo para se relacionarem ou dialogarem com o observador. Mais uma vez, a suspensão de algumas das peças, no espaço das ruínas, imprime às esculturas um caráter transcendental, cósmico ou cosmológico, neste caso, também, acentuado pelo próprio título da exposição. Colocadas de forma mais ou menos dissimulada nos estratos arqueológicos das ruínas, a sua exposição pressupõe o transporte ou a deslocação do observador entre diferentes tempos, espaços ou mundos. Articulando um inovador diálogo entre arte e arqueologia, esta exposição propiciou uma nova experiência visual em que se sublinham as semelhanças táteis e cromáticas entre a terracota das peças e a estratigrafia do sítio. Com uma poderosa significância de interpretação do passado no contemporâneo, a ligação entre arte e arqueologia permite ao observador comprometer-se mais ativamente com o passado. Aqui, a exposição surge como um “laboratório experimental” onde, numa escavação imaginária, o observador é levado a usar a imaginação visual para dar vida ao passado que ecoa nas peças. Se, por um lado, a partir da exposição posso questionar a forma como a cultura material permanece, ao longo do tempo, como herança patrimonial, por outro, posso, numa equação oposta, pensar sobre a natureza do impacto do sítio arqueológico sobre as peças. A exposição de obras de arte contemporânea em sítios arqueológicos pode ser, para além de boa-de-olhar, boa-para-pensar, na medida em que transforma o lugar e desafia o observador, redirecionando-o para uma inovadora posição de compromisso entre o contemporâneo e a envolvência arqueológica do espaço. Caracterizadas pela morfologia, simbologia e pelo processo de produção, as peças podem ser entendidas como testemunhos de uma origem, de um espaço-tempo ancestral, para o qual parecem querer transportar o observador que com elas se relaciona. A exposição configura uma passagem do mundo da matéria, do mundo da terra, para o universo das ideias, dos significados simbólicos da
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memória. Mais do que um objeto estático, encerrado nas suas limitações materiais e conotações utilitárias, as peças representam um caminho, um destino, um movimento entre a matéria e a memória que as habita. Sabendo eu que a arte é indissociável da sequência de objetos históricos que lhe servem de enquadramento, o conceito de herança e continuidade no domínio da arte é central para o trabalho que realizo no âmbito da minha investigação. Penso que cada obra humana se coloca, de forma mais ou menos consciente, no interior de uma cadeia de obras similares, ou de sequências formais, que atravessam os tempos. Neste sentido, uma sequência formal, ainda que esteja inativa durante milénios, pode sempre ser reativada pelo estímulo de novas técnicas ou de novos acontecimentos. Independentemente dos ciclos históricos, podemos verificar a ocorrência de sequências formais numa história aberta onde não existe nada que não possa voltar a ser atual (Kubler, 1962).
A arte que desempenha o seu papel tradicional de antecipação tem também a capacidade de se relacionar com modos de agir e de pensar que ressoam muito profundamente no imaginário dos homens e os enviam às raízes mesmas da sua civilização. (Tiberghien, 2009) Deste modo, a minha atenção não se dirige para o original, mas para a cópia, reprodução ou repetição, que conferem sentido às criações artísticas ao mesmo tempo que as tornam reconhecíveis. Na realidade, penso que as grandes transformações são mais aparentes do que reais: mediante uma análise rigorosa, essas mudanças revelam-se como uma repetição de pequenas variações. Entendo o comportamento humano como manifestação essencialmente ritual e não situo a essência da experiência estética na originalidade, que pretensamente criaria a partir do nada. Nesta linha, julgo que a procura das raízes da arte pode permitir compreender a grande diversidade estética e cultural da humanidade, apreciar a relatividade das conceções homogéneas e lineares da história e, em última análise, aprender a ver. Pode permitir ampliar as nossas fronteiras de compreensão das formas artísticas e a multiplicidade de normas ou critérios de representação existentes (Jiménez, 1996).
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As coisas possuem uma ‘idade sistémica’ que pouca relação tem com a idade cronológica: as obras humanas são como as estrelas cuja luz partiu em direção ao observador muito antes de lhe aparecer. (Perniola, 2003) As duas vertentes da minha investigação, a teórica e a prática, embora tendo cada uma delas peso específico próprio, estruturam-se e evoluem dialeticamente, conduzindo a um almejado recíproco e original enriquecimento que abre novos horizontes e perspetivas em ambas. Esta é verdadeiramente a grande ambição subjacente ao trabalho que realizo. Neste sentido, a prática artística é usada, ao mesmo tempo, como metodologia de pesquisa (que sublinha e identifica questões) e como meta-discurso (que gera e transmite conhecimento) em simbiose com a reflexão teórica. Na interpenetração entre os campos da teoria e da prática, procuro salvaguardar a independência destas duas vertentes autónomas, em que a produção artística, seguindo o seu rumo, não pretende de forma nenhuma assumir um papel de ilustração da reflexão teórica. Do mesmo modo, também esta não pretende tornar-se a simples legenda do texto visual, seguindo antes o seu próprio caminho, entrosado mas autónomo. Dois universos distintos com inúmeras pontes de contacto, de diálogo e de interação. O contexto académico do trabalho/investigação encoraja-me, assim, tanto ao desenvolvimento de conhecimento teórico e à reflexão como à prática artística. Acompanhada pelo exercício teórico, a prática artística é, neste âmbito, uma experiência que propicia o emergir de questões, um processo de pensamento em que o fazer assume importância equiparada à do resultado final. A fim de tentar sublinhar o valor da prática artística como metodologia de estudo, defendo o conceito da arte-enquanto-processo e, nesse sentido, exploro e investigo as fases criativas, que precedem a realização dos objetos de natureza artística, como fontes privilegiadas de informação. Mais ainda do que o resultado final da produção artística, interessam-me as atividades que geraram novas ideias facilitadoras das interações entre arte, arqueologia e público. Entre outros aspetos, a interface entre arte contemporânea e arqueologia pode gerar novas perspetivas sobre o estatuto do objeto, a partir de um novo olhar sobre a cultura material. Um olhar estético que, ao contrário do tradicional e mais científico olhar
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arqueológico, não está subjugado ao projeto de explicar o passado, mas sim livre para apenas o interpretar. Centrada no carácter reflexivo e subjetivo da cultura material, proponho o desenvolvimento de novos métodos, menos positivistas e mais estéticos, em que o olhar dos artistas pode ser integrado na metodologia arqueológica, com vista a desenvolver novos modos de ver e registar, de pensar e representar. Rompendo com a objetividade e a cientificidade, por vezes excessivas, de algumas correntes mais científicas do pensamento arqueológico, o diálogo entre as práticas da arte e da arqueologia pode levar à introdução de métodos mais estéticos que afastem a arqueologia da convencional ideia de gerar uma clara representação do passado subjugada à proposta científica de verdades a partir de factos. A negociação entre a objetividade versus afetividade (emoção estética) é talvez aquela que ao mesmo tempo pode separar e unir arte e arqueologia num novo paradigma. As questões de afeto estético e beleza, que estão na base da arte, são frequentemente secundárias à objetividade do processo de escavação, documentação, pesquisa, registo, reconstrução e representação arqueológica. No entanto, é compreensível que os arqueólogos, nas suas autorizadas auto-representações de mundos materiais objetivos, considerem atraente a relação entre artista e arqueológo, na medida em que ela permite estabelecer, em simultâneo, uma autoridade crítica e objetiva, característica da arqueologia, e incluir a componente acrítica do afeto, característica da arte, na perpetuação de uma aura no processo arqueológico contemporâneo (Russell, 2011:174). Neste sentido, penso que ambas as disciplinas podem usar a interpretação e o pensamento criativo, envolvendo-se em atos de intuição, reconhecendo padrões e relacionando observações e ideias previamente não associadas, incidindo tanto na objetividade como na subjetividade, no materialismo como no idealismo (Bonaventura e Jones, 2011: 3). O não-explicativo, o não-representacional e o não-temporal, característicos da arte contemporânea, podem proporcionar à arqueologia uma libertação de excessivos preconceitos teóricos rumo a uma observação do passado mais contemporânea. A linha não-temporal e a compreensão de que os objetos da cultura material arqueológica, apesar
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de terem existido em diferentes tempos no passado, estão hoje conectados, podem levar a potenciais benefícios resultantes da justaposição de objetos, lugares, pessoas e eventos antes separados. Quer os objetos sejam ou não evidências de um passado, a nossa ligação com eles é decididamente contemporânea, porque estamos hoje, aqui e agora, juntos, a olhar para eles (Bailey, 2008:17). Tal como acontece com a prática artística contemporânea, a meu ver, é crucial que o trabalho da arqueologia não se limite à análise hermética do passado e se envolva na pluralidade e multivocalidade do pensamento contemporâneo (Bailey, 2008:17). O mundo é um palimpsesto de temporalidades em que passado e presente se misturam na formulação de um futuro. A arqueologia não se centra num passado objetivo, mas antes na ideia, no sonho de um passado e, neste sentido, a cientificidade excessiva tem levado muitos arqueólogos a contarem somente metade da história. A narrativa arqueológica deve centrar-se tanto no fascínio da descoberta como na mediação entre os objetos e o mundo atual (Russell, 2008:2). A interdisciplinaridade leva, geralmente, à criação de pensamento original. Rumo a um novo território intelectual, a prática interdisciplinar implica assumir riscos, criar ruturas, dar saltos, abdicar, quebrar convenções, renunciar à facilidade de continuar dentro do que é expectado e, claro, do que é aceite. Há muito que os artistas compreenderam que a transgressão das fronteiras disciplinares e a resistência a categorizações levam a um desenvolvimento disciplinar, visando o crescimento e possibilitando uma ontologia transversal. Penso que, tal como a arte, a arqueologia pode beneficiar ao localizar-se num campo expandido, num contexto mais alargado, que é simultaneamente arqueológico, histórico e artístico. Em suma, ainda que ciente das diferenças entre as disciplinas, acredito que as propostas culturais da arte contemporânea podem ser um instrumento valioso para a análise arqueológica, assim como o conhecimento de trabalhos arqueológicos sobre as culturas passadas se tem, ao longo da história, mostrado revelador para a prática artística. Não espero que os artistas se tornem arqueólogos, nem que os arqueólogos se tornem artistas, cada disciplina tem a sua própria agenda. Não obstante, defendo que se podem aplicar os conhecimentos específicos de cada uma num trabalho comum, em que as duas
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disciplinas se justaponham na procura de um espaço e de um diálogo coeso, num contínuo campo de interação simbiótica entre práticas, numa experiência conjunta que ultrapasse a simples visita recíproca. Embora esta seja, em grande parte, uma história ainda por escrever, espero evidenciar a relevância do cruzamento entre o mundo da arte e da arqueologia, na formação, visão e conceção da cultura contemporânea. A forma como a prática artística pode questionar e, de certa forma, representar o pensamento de outras disciplinas interessa-me particularmente, assim como a contribuição que pode dar no campo da sua divulgação e da relação interpessoal entre diferentes áreas do saber. Com o objetivo de avançar com conhecimento, tanto na arte como na arqueologia, procuro capacitar a prática artística como uma ferramenta eficaz e inovadora para a interpretação e comunicação de questões que estão geralmente associadas à cultura material arqueológica, ligadas quer ao estudo das coleções de artefactos quer à dinamização dos museus ou sítios arqueológicos. Espero, assim, concorrer para uma maior valorização da potencialidade da investigação-pela-prática artística, fornecer um enquadramento teórico para a temática em questão e apresentar um exemplo metodológico de investigação em arte que possa ser aplicado a outras futuras investigações de colaboração interdisciplinar. O meu principal argumento, neste âmbito, é que devemos praticar a interdisciplinaridade como metodologia de trabalho totalmente reconhecida e valorizada e adotá-la, na sua grande variedade de inter-relações possíveis, como linha de orientação para futuros cruzamentos entre arte e arqueologia ou entre arte e outras disciplinas cognatas. O objetivo mais ambicioso do meu trabalho é a contribuição para a construção de um modelo para projetos futuros, em que a preocupação com a interpretação da cultura material arqueológica se desenvolva a partir de um link entre arte e arqueologia. Projetos em que se venham igualmente a desenvolver atividades de experimentação criativa que continuem a contribuir para os dois campos de conhecimento, o arqueológico e o artístico. Atividades que, fugindo aos cânones disciplinares, encontrem deste modo uma verdadeira
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transdisciplinaridade e explorem a interação pessoal não só entre artistas e arqueólogos como também entre artefactos, museus e públicos. Espero que o meu trabalho possa ser visto como um catalisador deste inovador modus operandi no âmbito da investigação teórico-prática. Espero que ele se integre enriquecedoramente nas recentes correntes que procuram o compromisso interdisciplinar em contexto académico, produzindo nelas impacto positivo e, idealmente, tornando-se gerador e inspirador de novos estudos e novas práticas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAILEY, D. (2008). “Art to Archaeology to Archaeology to Art”. In: Archaeologies of Art: Papers from the Sixth World Archaeological Congress. Dublin: UCD scholarcast, pp. 2-18. BONAVENTURA, P.; JONES, A. (2011). Sculpture and Archaeology. London: The Henry Moore Foudation. KUBLER, G. (1962). The Shape of Time: Remarks on the History of Things. New Haven (CT) Yale University Press. TIBERGHIEN, G. (2009). “Natureza, Arte e Formas Arcaicas.” In Resumo das conferências A Arte antes e depois da Arte. No ano da inauguração do Museu do Côa. Lisboa: Culturgest. JIMÉNEZ, J. (1996). Las raíces del arte: El arte etnológico. In História del Arte. 1: El mundo antiguo. Alianza Editorial, 41-83. PERNIOLA, M. (2003). O Sex Appeal do Inorgânico. Coimbra: Ariadne Editora. RUSSELL, Ian A. (2008). «Art, Archaeology and the Contemporary». In: Archaeologies of Art: Papers from the Sixth World Archaeological Congress. Dublin: UCD scholarcast, pp. 2-7. RUSSELL, Ian A. (2011). «Art and archaeology. A modern allegory». In: Archaeological Dialogues. Cambridge: University Press, 18 (2), pp. 172-176.
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ANEXOS
Fig. 1 Modelação pela técnica dos rolos. Fotografia R. Soares (2011).
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Figs. 2 e 3 Cozedura em fogueira. Alimentando a chama, Fotografias R. Soares (2011).
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Figs. 4 e 5 Cozedura em fogueira de ar livre ou a céu aberto. Fotografias R. Soares (2012) O mais simples sistema de cozedura, certamente utilizado na pré-história.
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Fig. 5 Cozedura em fogueira. Pormenor de “ponto de rubro” na parede interna de uma peça. Fotografia R. Soares (2012)
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Figs. 6 e 7 Exposição Formas de Terra e Fogo, escultura de Sara Navarro, Museu de Portimão, 2012. Fotografias R. Soares (2012)
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Figs. 8 e 9 Exposição Formas de Terra e Fogo, escultura de Sara Navarro, Museu de Portimão, 2012. Fotografias R. Soares (2012)
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Fig. 10 Exposição Do Magma às Estrelas, escultura de Sara Navarro, villa romana de Milreu, 2012. Fotografias R. Soares (2012)
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Fig. 11 Exposição Do Magma às Estrelas, escultura de Sara Navarro, villa romana de Milreu, 2012. Fotografias R. Soares (2012)
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Fig. 12 Exposição Do Magma às Estrelas, escultura de Sara Navarro, villa romana de Milreu, 2012. Fotografias R. Soares (2012)
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SOBRE A MATÉRIA DO VAZIO Gustavo de Jesus Universidade do Algarve Resumo: O seguinte texto é fruto de uma reflexão continuada que, tendo como origem o trabalho desenvolvido durante o processo de mestrado, se materializa na procura de uma coerência entre este trabalho e outros anteriormente desenvolvidos e que tem como finalidade uma melhor percepção sobre as razões que me levam a construir objetos artísticos. Palavras Chave: Corpo, Invisível, Matéria, Vazio
Os atomistas, Lêucipo e Demócrito, foram, certamente, os primeiros a falar de vazio.
Para eles tudo era composto por átomos fisicamente invisíveis e o vazio existia exatamente no espaço entre eles. Para Lêucipo era o vazio que permitia o movimento dando-‐lhe, no entanto, um carácter de não existência: “o vazio é não ser e portanto não pode ser parte do que é” (Russell, 1946:65). Parménides, por sua vez, refutava esta teoria de Lêucipo: “Dizes que há o vazio; logo o vazio não é o nada; portanto não é o vazio” (Russell, 1946:66). Embora a complexidade do assunto fosse muito mais abrangente é facto que nos apercebemos de um outro fenómeno, a existência do invisível como elemento essencial do vazio.
Plutarco, em A vida de Rómulo, diz-‐nos que este, para a fundação de Roma, mandou
buscar arquitectos à Etrúria. Que foi aberto um grande buraco redondo e, para dentro dele, foram atiradas oferendas simbólicas de frutos da terra. Cada homem deitou também para essa cova um punhado de terra do lugar onde nasceu. À cova deram o nome de MUNDUS. À sua volta rasgaram a terra com uma charrua puxada por um boi e uma vaca delimitando assim circularmente o perímetro da nova cidade que estava a nascer. Roma surge assim como uma materialização do invisível arrancado do vazio que a terra esconde.
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Este vazio que a terra esconde tem sido usado, ao longo de milénios, por artistas na
procura da verdade nas suas obras. Carlos Vidal, aludindo a Heidegger, refere-‐se deste modo à obra de Cabrita Reis, A Casa da Serenidade, de 1990, “um mundo instituído para abrir o que se fecha, a terra” (Pereira, 2013:9).
Na cultura ocidental o vazio ganha força a partir da paixão e ressurreição de Cristo com
a ausência do corpo. Didi Huberman refere-‐se-‐lhe como sendo o início da crença. Essa ausência de corpo vem dar forma a dois modelos diversos de vazio e que são alimentados pelo iconoclasmo que prevalece até à contra reforma: o primeiro, na forma de aura, quando Cristo é subtraído da cruz e esta, nua, passa a representar a presença do seu corpo, acção que perdura até aos nossos dias; o segundo que se desvela, na forma de volume, quando se retira a pedra que tapa o sepulcro e se percebe a ausência do corpo. Está-‐se, sem dúvida, perante a crença do vazio, do corpo invisível. É a partir deste momento que nasce a necessidade de descoberta e recriação dum corpo. Do corpo do defunto, tanto do defunto latente na memória como do defunto em que nos iremos tornar. Refiro, na minha tese, que “a vida existe entre duas mortes” (Jesus, 2013:109). Este dilema universal de onde vim, para onde vou? impulsiona-‐nos na procura do corpo invisível, no vazio ventre e no vazio terra.
É neste esquecimento de passado e futuro que surge a obra de arte, não como fruto
desse esquecimento mas como processo de recuperar e arrancar o que se encontra encarcerado nesse mesmo vazio.
E é nessa procura que a minha obra nasce. Os quatro objetos que apresentei na tese
de mestrado são, todos eles, fruto dessa busca: MUNDUS pode assim ser um objecto iniciático, uma paideia, um processo, um objeto em construção sem fim definido, aliás, como todo o corpo do meu trabalho. Uma busca, uma katábasis, uma anábasis, corpo mergulhado na terra na tentativa de obter conhecimento; ORÁCULO tem intenção de representar, do mesmo modo, essa carência de busca no lado de lá, com todo o peso histórico que a palavra carrega até aos nossos dias. Penetração no vazio, o outro lado do espelho, o prego como elemento de interconexão entre os dois lados, tal como a ligação de Cristo à cruz. A cadeira que arrasto do atelier, como presença obrigatória do meu corpo que imponho frente ao espelho;
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MODULOR tenta emergir da dialética entre o corpo consciente e o corpo imaginário, como se a partir da consciência do próprio corpo se percebesse o corpo existente no vazio e nele se procurasse o corpo em falta, somente como corpo representativo de corpo; Por fim, SIMULACRO 19 surge como aura, como presença inventada, nem mimética, nem semelhante mas somente como corpo desejado e necessário ou como criação abstrata desse corpo. A terra esconde assim esse corpo desejado e desconhecido que suponho ser do domínio da imagética e do desejo de qualquer ser humano e que, ao tentar materializá-‐lo, o transforma na matéria que é pertença exclusiva do vazio.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BAUDRILLARD, J. (1991). Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d’Água. HEIDEGGER, M. (2008). A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70. HUBERMAN, G. D. (2011). O que nós vemos, O que nos Olha. Porto: Dafne Editora. JESUS, G. (2013). Play. Dissertação de Mestrado em Comunicação, Cultura e Artes. Faro: Universidade do Algarve. JUNG, C. G., Franz, M. L., Henderson J. L., Jacobi J. & Jaffé A. (2002). O Homem e os seus Símbolos (20ª ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. RUSSELL, B. (1946). History of Western Philosophy. London: George Allen & Unwin Ltd. PEREIRA, J. C. (2013). Olhar e Ver: 10 Obras para Compreender a Arte. Lisboa: Arranha-‐céus.
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O CONTEXTO DO PROJETO EPHEMERAL EXPANDED, ENTRE O EFÉMERO E O DOCUMENTO
Ana Carvalho1 Instituto Superior da Maia
Resumo: O texto debruça-‐se sobre a performance audiovisual ao vivo, como expressão artística efémera, e aí levanta a problemática da relação entre o efémero e o documento. Neste contexto, o projeto Ephemeral Expanded é apresentado como um contributo para a construção de identidade e de memória futura. The text focuses on live audiovisual performance, as ephemeral artistic expression, and raises the issue of the relationship between the ephemeral and the document. The project Ephemeral Expanded is presented as a contribution to the construction of identity and future memory of this artistic expression. Palavras-‐chave: Audiovisual, performance, efémero, documentação, identidade.
Introdução O texto desenha um percurso através das práticas artísticas efémeras, em particular na performance audiovisual ao vivo e na relação que esta estabelece com o documento, no sentido de aí apresentar o projeto Ephemeral Expanded. Sobre este, abordaremos os temas de investigação e as relações que gradualmente se estabelecem entre efemeridade e documentação no sentido de construir dinâmicas que se expressam em resultados futuros. 1 Ana Carvalho é compositora e performer vídeo. Os temas da identidade, individual e coletiva, são centrais no seu percurso desde 2004. Os diversos projetos que tem vindo a desenvolver refletem o processo como prática artística. Visualmente, procura simbolismos nos elementos da natureza e o trabalho colaborativo é essencial. Os seus interesses de pesquisa concentram-‐se na relação entre efémero e documento do ponto de vista do artista e como parte inclusa do processo criativo. A sua tese de doutoramento tem o título A materialidade do Efémero: Identidade da performance Audiovisual ao Vivo e a Possibilidade de Documentação e Construção de Memória. VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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A. Carvalho / O contexto do projeto Ephemeral Expanded,
Entendemos a expressão artística efémera pelo período entre o início e fim de um evento que limita a experiência da obra. Podemos identificar, como artes efémeras, diversas instalações elaboradas com materiais de curta duração, como o cartão, por exemplo. Da mesma forma também podem ser identificadas as artes performativas, ou seja, eventos que carecem da presença e participação do artista e da audiência. Entre este género de obras efémeras performativas contam-‐se os eventos musicais, teatrais e de expressão corporal. Situar-‐nos-‐emos no contexto das artes performativas, desenvolvidas a partir do diálogo entre som e imagem durante um evento e que designamos por performance audiovisual ao vivo. A performance audiovisual ao vivo define uma prática artística efémera de construção poética com som e imagem. Cada projeto-‐evento, potencialmente, resulta do estabelecimento de relações entre diversos meios, campos artísticos e do conhecimento. No sentir de que as artes se desenvolvem por afetação, esta é uma prática intermédia. A título de exemplo, numa aproximação à música, observamos o recurso à improvisação, numa aproximação ao teatro, o recurso à composição como veículo de comunicação, especialmente em eventos colaborativos e finalmente, numa aproximação à imagem em movimento, o recurso a uma linguagem de captura e edição. Os desenvolvimentos tecnológicos (analógicos e digitais), associados à performance audiovisual ao vivo, são marcantes das suas características e estéticas. Identidade e construção de memória A reflexão teórica no contexto da performance audiovisual ao vivo debruça-‐ se, entre outros temas, sobre a identidade e sobre os diversos contextos em que esta é apresentada: desde a galeria, o club e a sala de cinema. Contudo, a densidade deste discurso é pequena e pouco notória. A existir como tal, este discurso situa-‐se, de forma fragmentada, associado ao discurso fílmico, ao discurso performativo e ao discurso tecnológico. A identidade é um dos temas que nos interessa sob diversas perspetivas: da proximidade à prática e como exercício reflexivo sobre o fazer; pela construção de identidades entre a biografia e a ficção, como é o caso das personas construídas como performers; numa perspetiva completamente teórica, através das VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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possibilidades de visibilidade associadas ao ritual, ao uso das linguagens e à relação entre o indivíduo e o seu contexto social. A permanente mudança, que é característica das práticas tecnológicas performativas, permite-‐lhes a expansão para novos contextos, novas ferramentas e novas metodologias (veja-‐se o Mapping que passou, em cerca de três anos, de trabalho de autor a prática, com festivais dedicados, da aplicação a áreas definidas para a adaptação, a áreas móveis e à visualização em 3D), contudo, simultaneamente, impede o desenvolvimento de um contexto teórico próprio, mantendo-‐se a análise superficial e localizada em discursos exteriores. As problemáticas e os temas para reflexão apresentam-‐se incoerentes e confusos, dadas as abordagens serem díspares porque baseadas em evidências para análise fatual escassas. A relação entre efémero e evidência é fundamental para a construção de um discurso teórico com profundidade e para a definição de identidade. Segundo Judith Butler (2005: 35), uma ideia, um indivíduo ou um acontecimento existem quando expressos através de normas e códigos exteriores a si. Dar conta de si é expressar singularidade e essa é possível pelo recurso à linguagem. Na performance audiovisual ao vivo, a linguagem (ou as linguagens), pode tomar diversas aproximações: do comportamento, do texto, da imagem, do movimento, do som, do ‘ao vivo’, entre outras. A linguagem é veículo de representação na expressão efémera e o seu uso frequente por parte de uma comunidade transformou o que eram eventos informais em projetos colaborativos e festivais organizados por todo o mundo. Os resultados da combinação de linguagens bem como de tecnologias estão na base do que carateriza a performance audiovisual ao vivo. Rosi Braidotti apresenta, na sua definição de nomadismo, um sentido de fluxo entre línguas: “o poliglota é um nómada linguista” (Braidotti, 1994: 8), entre saberes e é extensivo ao fluxo entre linguagens. O nomadismo, entendido desta forma, é uma característica a ter em consideração na ação de reflexão sobre as possibilidades de documentação no sentido de permitir obter resultados tão inovadores quanto inesperados. O papel do artista é fundamental na construção de identidade. A performatividade, como definida no trabalho de Judith Butler, refere-‐se ao indivíduo enquanto elemento de ação e, através desta, de afetação sobre o coletivo, abrindo a VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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possibilidade de causar mudança. O interesse prestado às linguagens, e à sua utilização pelo artista, abre também a possibilidade de encontrar formas de construção de visibilidade. A ação de documentar, como parte inclusa do processo de criação, passa pela combinação entre linguagens, materiais e tecnologias inerentes a esta expressão artística e pela combinação com outras que lhe são exteriores. Desta combinação nómada, resultante do cruzamento entre linguagens, reside a possibilidade de emergirem elementos entre a evidência e a expressão artística. Esta possibilidade de construção discursiva da performance permite, no presente, a definição de uma identidade teórica e prática de forma a que futuramente sirva de base para a construção da sua memória. O documento na sua relação com o efémero Entendemos a construção de identidade e de memória pela análise de evidências. Estas evidências são, no caso presente, documentos. Na falta de objeto, como é o caso das artes performativas, é a documentação o rasto que permanece de um evento. Ao documentar os processos artísticos e os eventos, os artistas bem como os demais elementos da prática artística: curadores, técnicos, público, entre outros, refletindo sobre a sua expressão, contribuem para a construção de uma identidade baseada em documentos. A relação entre a arte objetual e a arte momento (evento) encontra um paralelo no Mesmo reproduzível, ou seja, no objeto que, através de diversos meios se propaga e o Mesmo que não se reproduz, ou seja, o evento que de si não deixa vestígios. A autora Peggy Phelan questiona acerca de “como reter o poder do não-‐ registável pelo seu levantamento dentro de um quadro teórico. Ao expor o lado ‘escuro’ no interior do próprio contexto teórico, será talvez possível construir uma maneira de conhecer que não toma a vigilância do objetual, visível ou não, como seu objetivo principal” (Phelan, 1996: 3). De que forma, portanto, pode ser construída evidência do evento performativo? A existência de uma conjuntura atual prolífica do real (discursivo), como a ciência, a biografia e a psicanálise, e outros, é indicadora de uma quase infinidade de possibilidades para a construção de uma ontologia do VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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Mesmo não reproduzível. No que respeita à arte objetual, esta apresenta-‐se como o real-‐visível, ou seja, como efeito-‐verdade (evidência de si) discursivo. Por outro lado, “a performance, na medida em que pode ser definida como representação sem reprodução, pode ser entendida como um modelo para outra economia da representação, em que a reprodução do Outro como o Mesmo não é assegurada” (Phelan, 1996: 3). A ação de representação sem reprodução de si apresenta-‐se como uma possibilidade de real que difere daquela que é reproduzida. O documento não é evento mas exterior a este. O dispositivo, como descrito por Giorgio Agamben, é uma rede heterógena que se estabelece entre os elementos discursivos, institucionais, arquitetónicos, leis, medidas administrativas e discursos científicos, morais e filosóficos de uma determinada época. Como sistema estrutural, é simultaneamente compulsivo e regulador dos indivíduos em permanente instabilidade (em constante mudança). No sistema artístico, esta instabilidade é a brecha através da qual se operam mudanças, como podemos observar através do exemplo das mudanças provocadas pelas várias ações das vanguardas, nomeadamente o Fluxus (a que se associa a performance). Este Movimento é exemplo de como a construção da identidade está relacionada com a significação e repetição das ações do indivíduo e do coletivo. Cada indivíduo é participante do coletivo e, como tal, elemento de construção de identidade e, pela sua ação (ritualizada) e pela continuação da ação, é simultaneamente elemento de mudança em si e no contexto. De ambas as formas, o indivíduo participa ativamente na construção do coletivo. A ação de dar testemunho – participar – acontece através do diálogo que cada um estabelece com o outro. A relação entre a construção de identidade e performance, enquanto ação planificada sobre o real, faz sentido pelo ritual que não separa o sujeito da ação. É o indivíduo-‐ artista que vamos encontrar como unidade cuja relação pretendemos estabelecer com o coletivo. Ao pensar a documentação o artista escolhe concebê-‐la ou não como parte integrante do trabalho sendo esta escolha, por si só, significado. A escolha de não documentar é, obviamente, válida. É a documentação que apresentamos como rasto do evento e cuja intenção é complementar e amplificar em vez de reproduzir. No contexto da arte contemporânea, a obra joga frequentemente com esta dualidade entre documento VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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e efemeridade e muitas vezes combina também prática e teoria. No contexto da performance audiovisual ao vivo, esta combinação é recorrente, pois o discurso teórico é elaborado maioritariamente pelos próprios artistas. Projeto VJ Theory O projeto VJ Theory (2005 a 2009), agora em arquivo, consistiu no desenvolvimento de uma plataforma que chama os artistas à participação na formulação de um discurso teórico sobre a sua prática artística. Para além das diversas ações de discussão e construção colaborativas, publicaram-‐se, online e em suporte físico, trabalhos individuais e colaborativos de artistas, mas também de teóricos, interessados em explorar a zona de interseção entre a teoria e a prática. Desta forma, no processo de construção de uma comunidade, o projeto incitou o desenvolvimento de teoria e filosofia associadas às práticas audiovisuais. Das diversas atividades, destaca-‐se o livro VJam Theory – Collaborative Writings on Realtime Visual Performance que resulta de um processo de escrita colaborativa online através de blogs temáticos e da contribuição aberta à comunidade através de mailing lists e forums. Outros projetos surgiram entretanto com intenção de disponibilizar documentação teórica e referências históricas, como por exemplo o See This Sound e o Visual Music Archive. A época em que estes dois projetos se enquadram é um fator de distinção entre estes e o primeiro. Enquanto que o primeiro afeta uma época, entre 2005 e 2009, em que escassas referências bibliográficas existiam que apoiassem o trabalho académico de professores e estudantes, os segundos são resultado do crescente interesse e produção académicos. Projeto Ephemeral Expanded Uma vez terminado o projeto anterior, procuraram-‐se novos desafios correspondentes ao panorama atual e que, de forma semelhante, contribuíssem para a construção situada na interligação entre prática e reflexão teórica. VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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Tendo por base a interdisciplinaridade nas práticas artísticas, o projeto Ephemeral Expanded sublinha a relação de permanente questionamento entre o efémero e o documento. Esta aproximação é direcionada para o artista como elemento do coletivo e da comunidade da prática no sentido de o levar à exploração desta relação como parte do processo criativo e da performance. Neste sentido, o presente projeto entende as questões relacionadas com a documentação como fundamentais na construção de identidade e de memória futura das práticas efémeras e, pela combinação das opções metodológicas e das referências teóricas, afirma-‐a como um contributo para a contínua interdisciplinaridade entre as práticas artísticas, os estudos de documentação, as redes digitais e os estudos culturais, em particular, e, para as artes e humanidades, em geral. O campo de atuação desenvolve-‐se pela participação em redes colaborativas com artistas e investigadores, com centros de investigação, festivais e instituições artísticas. No sentido de uma permanente atualização, o desenvolvimento do projeto inclui a recolha de informação documental elaborada por artistas, a investigação de um corpus teórico relativo a diversos campos artísticos e a investigação das possibilidades de planificação de estratégias de documentação. Os resultados são apresentados nos contextos académicos e artísticos (em contextos nacionais e internacionais) em suporte físico e digital, através da participação em um conjunto de publicações, pela edição de cadernos em formatos impressos e digitais, através de performances e através de um website dedicado. Projeta-‐se para um possível futuro a construção de uma listagem de partituras, armazenadas e passíveis de consulta e utilização. A inclusão de documentos elaborados pela audiência é um tema a investigar de futuro, visto que, em diversos casos, é a forma mais relevante de expressar o que é o evento. Neste momento afiguram-‐se dois resultados em processo de concretização. O ponto de partida do projeto The Audiovisual Breakthrough encontra-‐se no reconhecimento da confusão em torno dos termos usados para definir o que acontece nas práticas audiovisuais performativas contemporâneas. Cada uma das definições: live cinema, expanded cinema, VJing, performance audiovisual ao vivo, tem uma história e refere-‐se a um ângulo ou contexto específico dentro da produção VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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artística. De forma a facilitar a construção de um discurso próprio, científico e de cariz internacional, são necessárias definições mais precisas no sentido de descrever a produção contemporânea. O projeto tem como finalidade elaborar definições para as cinco principais significações assim como são utilizadas no contexto contemporâneo. O livro a ser publicado resulta de um processo de discussão online entre cinco artistas / curadores / escritores, e do encontro destes com vários artistas no festival Sound.Frame, a decorrer entre Março e Abril de 2014, em Viena. A organização é de Ana Carvalho (performance audiovisual ao vivo), Cornelia Lund (visual music), Eva Fischer (VJing) e nele participam, para além das organizadoras, também Gabriel Menotti (live cinema), Adeena Mey (expanded cinema) e Mary Pfeifer (que organiza um questionário direcionado à participação da comunidade internacional). Esta publicação é desenvolvida em diálogo permanente com a comunidade à qual se dirige. No estudo da composição como possível exercício de combinação de linguagens, entre artes e entre o processo criativo e a performance, cuja reprodução é sempre diferente, encontramos interesse na composição e elaboração de partituras. Partindo de um evento organizado no Harvestworks, em Nova Iorque, em Dezembro de 2012, desenvolveu-‐se o conceito para a gradual elaboração de uma coleção de pequenos cadernos sobre partituras de artistas que trabalham o audiovisual em contextos performativos. A publicação do primeiro caderno é, portanto, relativa ao evento em Nova Iorque, e tem como título: Notations and Score for Live Audiovisual Performance. A publicação contém entrevistas, fotografias, partituras e textos dos artistas convidados (Adam Kendal, Andrea Parkins, Benton C-‐ Bainbridge, Katherine Liberovskaya). Este será o primeiro de um conjunto de cadernos relacionados com composição para eventos audiovisuais performativos. VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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Conclusão De momento, o projeto Ephemeral Expanded toma uma direção do efémero para o documento dentro do contexto da performance audiovisual ao vivo. A médio prazo pretende-‐se estabelecer questões semelhantes em outros contextos artísticos bem como inverter a direção (do objeto para o efémero). Nestes movimentos, o conhecimento toma múltiplos caminhos e combina diversos contextos: os documentos, registos da experiência, poderão vir a integrar bibliotecas, galerias e museus a fim de contribuírem para os contornos de novos contextos. Constituem-‐se assim um conjunto de dinâmicas com abrangências diversas promovendo a atuação através da elaboração de evidências que auxiliam a contextualização e resultam das múltiplas relações entre disciplinas do conhecimento. A metodologia em uso é, simultaneamente, resultado do cruzamento de experiências entre as comunidades artísticas contemporâneas (como é o caso da Arte Generativa, da Software Art e da Network Art, entre outras) com potencial para a investigação nestas mesmas artes, e por relação com as artes audiovisuais performativas. VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio (2009). What is an Apparatus?. California: Stanford University Press. BRAIDOTTI, Rosi (1994). Nomadic Subjects: Embodiment and Sexual Difference in Contemporary Feminist Theory. Nova Iorque: Columbia University Press. BUTLER, Judith (2005). Giving an Account of Oneself. Nova Iorque: Fordham University Press. PHELAN, Peggy (1996). Unmarked: The Politics of Performance. Londres: Routledge. VJ THEORY (ed.) (2008). VJam Theory: Collective Writings on Realtime Visual Performance. Falmouth: realtime books.
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O PIANO EM PESSOA E MENINO DE SUA AVÓ: DUAS CRIAÇÕES PESSOANAS Armando Nascimento Rosa1 Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC) Ouço tocar um piano, e ao fundo Da música rir. Falto Ao sonho, olho; é nesse segundo Andar do prédio alto. (…) Ali naquele segundo andar Talvez sejam felizes. Passo, e o meu sonho daquele lar É como um sonho de outros países Fernando Pessoa, Transeunte (21/8/1921)
Menino de sua Avó e O Piano em Pessoa são duas realizações distintas entre si cuja conexão mútua se situa na obra pessoana que a ambas motiva. O Piano em Pessoa coloca em música poemas escolhidos do poeta, num conceito exclusivo de canto e piano, numa parceria com o pianista António Neves da Silva. Menino de sua Avó é nome de peça teatral, escrita para Maria do Céu Guerra e Adérito Lopes, na qual se reinventa e efabula a relação entre Fernando Pessoa e a sua louca avó Dionísia. Esta minha intervenção pretende proporcionar uma visão paralela destes dois projetos de criação artística, dinamizados por uma investigação em ação, tangencial ao domínio dos estudos pessoanos, em que ambos os projetos participam, cada um a seu modo. Começo por dar conta da realização dramatúrgica e cénica de Menino de sua avó, a 1 Dramaturgo, ensaísta e criador musical; professor na Escola Superior de Teatro e Cinema, do Instituto
Politécnico de Lisboa; investigador membro integrado do CIAC. VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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partir do texto que redigi para o programa e, simultaneamente, para o prefácio da edição em livro da peça homónima (Lisboa: Redil Publicações, 1ª edição, 2013), com estreia cénica em 10 de Abril de 2013, no Cinearte, em Lisboa, numa produção d’A Barraca. 1. Menino de sua avó: Espetáculo de muitos encontros Estou convencido de que o espetáculo Menino de sua avó, numa produção teatral d’A Barraca, com a peça homónima que para ela escrevi, resulta de um encontro mágico, há muito prenunciado, por conjunção astral inspiradora que o nosso Fernando Pessoa por certo saberia mapear. Em 1988, celebravam-‐se os cem anos do nascimento do poeta, a Maria do Céu Guerra preparava O Menino de sua mãe, com textos de Pessoa, e eu, com as vinte e uma Primaveras que então tinha, terminava a minha primeira peça de teatro. Nesse arrebatamento que me levou a abraçar a escrita para a cena, ao descobrir nela a mais desafiadora das criações com palavras animadas de vida, mal sabia eu que um quarto de século depois os nossos caminhos se cruzariam aqui, no lugar do teatro, sob o signo de Pessoa, o inventor maior de poetas e, por isso mesmo, um poeta-‐ator pelo ofício do verbo. Menino de sua avó (Dueto cénico em sete encontros) teria porém uma mais recente eclosão, depois de umas vinte e tantas obras dramáticas escritas, etapas que são sempre para um dramaturgo se preparar para a que vai gerar a seguir. Há uns sete anos já que eu desejava invocar na cena a doida avó de Fernando Pessoa, essa avó Dionísia cujo nome não poderia ser mais apelativo para o teatro lhe inventar uma sábia loucura comunicante, decerto bem diferente da demência progressiva em que ela foi mergulhando em vida, desde cedo, a atestar pelas notícias biográficas que se lhe referem. Pessoa convive com a loucura da sua avó paterna desde que nasce na casa do Largo de São Carlos, em Lisboa, pois Dionísia já habita com o filho e com a nora ao tempo em que o seu neto único (sobrevivo) chora e abre os olhos pela primeira vez. Ao regressar da África do Sul, Pessoa volta a viver com duas tias e a avó Dionísia e, quando esta morre pouco depois, há de ele herdar o dinheiro com que lança a tipografia e editora Íbis, seu primeiro e malogrado investimento VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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editorial. Ao falecer, Pessoa é sepultado no jazigo da avó, no Cemitério dos Prazeres; e ambos ficam a sós nessa última morada comum, como mo confirmou Richard Zenith, visto que os restos mortais de Joaquim de Seabra Pessoa, pai do poeta e filho de Dionísia, nunca para lá iriam. O ciclo vital do berço à tumba é para Pessoa simbolicamente acompanhado por esta avó insana com o nome do deus do teatro declinado no feminino. Ambos tinham por isso de vir um dia à luz e à sombra da cena. Mas para que uma dupla deste peso se materialize, forçoso é que se verifique um horizonte de entusiasmo partilhado, capaz de dinamizar a empresa arriscada e exigente de reinventar Dionísia sob os desígnios do génio do seu neto poeta. Dionísia nasceu para a cena como se o seu nome helénico bebesse da fonte imaginante do mesmo drama-‐em-‐gente que Pessoa criou, no seu metateatro de poetas. E tal só foi possível porque contei com uma cúmplice e interlocutora muito especial, a quem, antes ainda do espetáculo, o nascimento desta peça se deve. Depois de assistir em 2011, n’A Barraca / Cinearte, ao espetáculo D. Maria, a louca, com texto do autor brasileiro Antônio Cunha, felicitava Maria do Céu Guerra pela sua justamente premiada criação cénica e confidenciei-‐lhe haver uma outra louca sobre a qual um dia gostaria de escrever: Dionísia Seabra, a avó de Pessoa. De imediato, Maria do Céu fez uma careta para mimar o rosto que se vê nas fotos com a pessoana avó anciã, na casa da Rua da Bela Vista, à Lapa. -‐ Já temos a personagem! -‐ disse eu. -‐ E essa peça será para mim! -‐ disse a Céu, desafiadora, desfazendo a careta. -‐ Mas primeiro terei de a escrever -‐ respondi. E o pacto ficou então selado, suspeitando eu que o ator e então meu aluno de mestrado, Adérito Lopes, que contracenava oculto e mudo no disfarce de escrava negra da rainha louca em terras do Brasil, viria a ser o intérprete do neto poeta -‐ persona desta vez com muito verbo a seu cargo, em contraste absoluto com a anã silenciosa -‐ na estreia primeiríssima de um dueto cénico com o nome pessoano de Menino de sua avó. Nome este que se presta simultaneamente a um jogo evocativo para com essoutro espetáculo de Maria do Céu Guerra, a que atrás aludi, O menino de VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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sua mãe, com textos vários de Pessoa, apresentado primeiramente no Teatro São Luiz, em Lisboa, e depois no antigo espaço do Politeama (onde a ele então assisti), em 1988-‐ 1989, e no qual a atriz e encenadora interpretava em estreia absoluta A carta da corcunda para o serralheiro, texto espantoso e inteiramente desconhecido até então; breve e singular obra-‐prima dramatúrgica, revelado pela investigação de Teresa Rita Lopes (que o publicaria pouco depois, em 1990, no segundo volume de Pessoa por conhecer – Textos para um novo mapa). Por tudo isto, e porque o datiloscrito com a carta assinada por Maria José, a única mulher heteronímica que Pessoa criou, não se encontra datado, eu quis que avó e neto brincassem aqui, por antecipação, com essa ficção que ele escreverá no futuro -‐ inspirada de facto numa mulher que debruçava o seu curvado olhar numa janela dessa Rua Coelho da Rocha onde ele viverá a partir de 1920. E dada a maturidade de escrita ali evidenciada, A carta da corcunda para o serralheiro seria escrita por um Pessoa com muito mais idade do que os vinte anos que ele tem ao tempo deste seu primeiro encontro com o fantasma metateatral da sua avó defunta. Menino de sua avó constitui a minha terceira incursão, em escritas de cena, explicitamente motivada pelo universo pessoano, e quis também algum horóscopo de Rafael Baldaia que a peça se estreasse dez anos depois de Audição -‐ com Daisy ao vivo no Odre Marítimo (pela Cassefaz, no Teatro Maria Matos, em Fevereiro de 2003, com encenação de Élvio Camacho) e cinco anos depois da estreia lisboeta de Cabaré de Ofélia (no Teatro da Trindade, numa coprodução com o Cendrev, em Junho de 2008, com encenação de Claudio Hochman); e coincidindo ainda a publicação brasileira destas duas peças em livro (São Paulo: Escrituras Editora) com o momento em que o texto de Menino de sua avó tem, por sua vez, a sua primeira edição. Este é um dueto cénico, conforme o designei, em sete encontros entre avó e neto, onde se fundem gravidade e humor, poesia e compaixão, desde o momento em que ambos estão ainda vivos, em 1906, até mais de um século depois, no tempo presente do espetáculo, quando Dionísia visita o seu laureado neto no Mosteiro dos Jerónimos, enfim «separado» da avó (desde 1985) por via da honorífica trasladação.
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Continuo pois este herético e fantasmático ofício de nigromância teatral que caracteriza grande parte da dramaturgia que compus até hoje. O nigromante era o mago que conjurava os mortos, para deles obter adivinhação e clarividência em benefício dos vivos. E o teatro é o lugar onde o corpo, a voz, a psique dos atores se dedicam a materializar a ficção onde vivos e mortos se indistinguem no gesto criativo de os «fingir tão completamente»; para que os espectadores experienciem em si mesmos a surpresa apaixonante e memorável que o coletivo dos fazedores da cena lhes reserva, em cada espetáculo renovada. E o teatro é esta arte de autorias múltiplas que permanentemente me energiza, ao deparar-‐me com as criações interpretativas de todos os que contribuem para que o evento cénico ganhe a realidade partilhada que é a sua. Não me considero detentor da pulsão de encenador e talvez por isso mais me agrade a expectativa de ser surpreendido com os olhares que vão moldando, em formas e soluções diversas, as palavras cénicas propostas: como o foi aqui a alegria de encontrar de novo o maestro António Victorino de Almeida (ele que foi também o compositor musical nos espetáculos em que me estreei como dramaturgista profissional, no primeiro Teatro da Politécnica, fundado por Mário Feliciano em 1989); ou a possibilidade de assistir de perto ao labor cenoplástico de José Costa Reis, em diálogo constante com a imaginação exigente de Maria do Céu Guerra, que foi, ela mesma, no seu conhecimento e sintonia para com a obra pessoana, a responsável por eu ter aprofundado caminhos na composição escrita, que resultaram, por exemplo, na reinvenção que faço do nascimento do heterónimo juvenil Alexander Search, em pleno Índico, ou na evasão de Dionísia e Fernando do hospício de Rilhafoles. Uma evasão que é também a viagem mítica para um outro limiar, além da vida, além da morte, onde avó e neto coabitarão no espaço onde o tempo já não tiraniza. O desejo que auguro é que esta seja para o espectador uma experiência inesquecível, no xamanismo profano que o teatro possibilita, enquanto arte da memória, capaz de nos fazer viajar no tempo fabuloso de um espetáculo; porque viajar é preciso para que viver também o seja.
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1.1.
Historial cénico de Menino de sua avó até esta data À data da sua primeira edição em livro, Menino de sua avó apresentou-‐se numa
digressão ao Brasil em 26 e 27 de outubro de 2013, correspondendo ao honroso convite da Secretaria Municipal de Cultura e Fundação das Artes de Niterói para proceder à inauguração cénica do Teatro Popular Oscar Niemeyer, em Niterói, Rio de Janeiro, onde o lançamento internacional do livro teve lugar. Menino de sua avó conheceu a sua estreia cénica em 10 de Abril de 2013, numa produção do Teatro A Barraca, na sala maior do Cinearte, em Lisboa, estando em cena até 28 de julho de 2013. Durante este período, o espetáculo interrompeu as suas apresentações em Lisboa para realizar algumas digressões pontuais, no país e no estrangeiro: à 13ª edição do Folia -‐ Festival de Teatro de Lousada, no dia 29 de abril; ao Rio de Janeiro, no Teatro Dulcina, nos dias 3, 4 e 5 de maio, como espetáculo teatral de encerramento das comemorações do Ano de Portugal no Brasil; e à 14ª Mostra Internacional de Teatro de Santo André, no dia 26 de maio. Outras digressões do espetáculo incluíram uma ida ao Teatro Municipal de Bragança, em 21 de novembro de 2013, e a Tondela, ao Auditório da ACERT, em 6 de dezembro, participando na 19ª edição do FINTA – Festival Internacional de Teatro de Tondela. O espetáculo Menino de sua avó procedeu a uma reposição em Lisboa, para uma nova carreira de dois meses de apresentações no espaço d’A Barraca onde estreou, com início a 30 de Janeiro de 2014, data coincidente com a sessão de lançamento da 2ª edição do livro, permanecendo em cena até 30 de Março de 2013. Neste período, o espetáculo interrompeu a carreira em Lisboa para empreender duas digressões pontuais: ao Porto, no Teatro Helena Sá e Costa, entre os dias 6 e 9 de Março; e a Setúbal, ao Fórum Municipal Luísa Todi, no Dia Mundial do Teatro, 27 de Março de 2014. VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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2. O Piano em Pessoa: música e canto na poesia pessoana O Piano em Pessoa resulta da minha parceria, enquanto autor musical e intérprete, com o pianista António Neves da Silva e procura, através da articulação exclusiva entre voz e piano, manifestar e desenvolver as potencialidades da poesia pessoana no que diz respeito à sua musicalidade e cantabilidade intrínsecas, dadas em espetáculo. Muita da poesia de Fernando Pessoa (em especial a ortónima, mas não só) aparece com esta vocação explícita, havendo nela em inúmeros casos a referência à voz, ao canto, ou ao tipo de ritmo e melodia, que indiciam ter esses textos sido escritos por um poeta que os destinou a serem canções, pensadas para diversos estilos. Junta-‐ se a esta evidência a presença muito frequente do piano como instrumento musical convocado no imaginário da prosa e da poesia pessoanas; razão pela qual o projeto ganhou a sua denominação. Partindo destas premissas, O Piano em Pessoa reúne um repertório que em concerto se constitui por um conjunto de quinze canções originais, com poemas de Pessoa (por ele escritos em português, inglês, e também em francês), nos estilos mais heterogéneos, resultantes do sentido e atmosfera dos poemas selecionados para cada uma das canções. Os temas musicais d' O Piano em Pessoa viajam assim por uma grande versatilidade de estilos; podendo ir do fado ao jazz, da bossa nova ao blues, ao tango ou à marcha popular. Num conceito de canto e piano, capaz de despertar o interesse de uma transversalidade de audiências, para além do espetro de investigação e comunicação estritamente académicos, O Piano em Pessoa explora a musicalidade inerente à poesia do mais universal dos escritores portugueses e integra música composta e cantada pelo autor destas linhas, sendo alguns dos temas assinados em coautoria com o pianista António Neves da Silva, que é o responsável pelos arranjos e pelas respetivas versões, harmonizadas para piano, de todas as canções do repertório. O repertório atual d’ O Piano em Pessoa integra os seguintes quinze temas de criação musical original para poemas de Pessoa (menciono a autoria heteronímica, entre parêntesis, relativa aos dois poemas que não são assinados pelo ortónimo):
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«Um piano na minha rua»; «Há quanto tempo não canto»; «Ma Blonde»; «No dia de São João»; «Song of dirt» (Alexander Search); «Meu pobre Portugal»; «Ó sino da minha aldeia»; «D.T. (It really doesn’t matter)»; «Minha boneca que tem»; «Quero beber as estrelas»; «Transeunte (Oiço tocar um piano)»; «Looking at the Tagus»; «Olha Daisy (Soneto já antigo)» (Álvaro de Campos); «Um cantar velado e lento»; e «Rivers». Cinco destas composições que integram O Piano em Pessoa pertenceram originariamente à banda sonora de duas peças de teatro, com temática pessoana, já mencionadas no tópico anterior respeitante a Menino de sua avó: Cabaré de Ofélia (estreado pelo Cendrev em 2007 no Teatro Garcia de Resende, em Évora, e em Lisboa no Teatro da Trindade, em 2008) e Audição -‐ Com Daisy ao vivo no Odre Marítimo (Teatro Maria Matos, Lisboa, 2003; e com três outras produções distintas, estreadas em 2004 por diferentes coletivos teatrais, no Funchal, em Setúbal, e em Montemor-‐o-‐ Novo). 2.1.
Historial de concertos d’ O Piano em Pessoa até esta data
O Piano em Pessoa teve o seu concerto de estreia absoluta em Barcelona, a 9 de outubro de 2012, na Aula Magna da Faculdade de Filosofia Universidade de Barcelona, como espetáculo de encerramento do Colóquio Internacional «Fernando Pessoa en Barcelona»; uma participação que contou com o apoio do CIAC (Centro de Investigação em Artes e Comunicação) / FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), e da Universidade de Barcelona. Em Portugal, O Piano em Pessoa estreou-‐se em Lisboa num espaço consagrado a celebrar em permanência a obra do poeta. O concerto teve pois lugar no Auditório da Casa Fernando Pessoa, a 31 de janeiro de 2013, para uma sala sobrelotada de público, interessado em conhecer um projeto que interpreta, em simultâneo, a expressão lusófona e o multilinguismo, inerentes à poesia pessoana, por intermédio da linguagem universal da música.
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Ao longo de 2013, foram realizados outros concertos d’ O Piano em Pessoa; nomeadamente no Porto (Auditório da Fundação Eng. António de Almeida), em 12 de junho, e em Setúbal, em 24 de agosto, como concerto de abertura da XV Festa Internacional de Teatro, no Salão dos Paços do Concelho desta cidade. O último concerto d’ O Piano em Pessoa realizado em 2013 teve lugar num espaço privilegiado de Lisboa: a sala principal do Teatro da Trindade, no dia 30 de Novembro de 2013, a convite da Fundação INATEL, constituindo o Concerto comemorativo do 125º aniversário do nascimento de Fernando Pessoa, num evento que assinalou também um importante passo de reconhecimento público e institucional por este projeto de criação musical. A mais recente apresentação pública d’ O Piano em Pessoa viria por isso a acontecer de novo na sala principal do Teatro da Trindade (em lotação esgotada), no dia 22 de Março de 2014, a convite uma vez mais da Fundação INATEL, com a apresentação de três temas selecionados do repertório, na finalização da iniciativa comemorativa do Dia Mundial da Poesia, que, para além da minha colaboração como coordenador literário do evento, contou com um título inspirado neste mesmo projeto musical: «Poesia em Pessoa».
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PROJETO | PÁGINA LITERÁRIA DO PORTO Célia Vieira, Isabel Rio Novo, Helena Padrão1 Instituto Universitário da Maia Resumo: O projeto Página Literária do Porto, implementado em 2008, disponível no endereço www.paginaliterariadoporto.com, visou a criação de um portal de literatura que congrega vários subsites de escritores portuenses contemporâneos ainda vivos. O objetivo desta comunicação é o de apresentar uma síntese dos resultados obtidos e dos desafios levantados durante o processo de implementação desta plataforma. Palavras-‐chave: cidades criativas, História da Literatura, humanidades digitais Introdução O pressuposto de que a inovação, a criatividade e a cultura podem ser motores do crescimento económico (Florida, 2002; Caves, 2002; Tremblay, 2008) tem levado várias cidades a desenvolver, em alguns casos com sucesso, estratégias de promoção de uma identidade cultural que surge como fator diferenciador numa competitividade interurbana imposta pela globalização. Neste contexto, a cultura, no seu sentido mais lato, tem oferecido aos poderes municipais uma mais-‐valia, de interesse fundamentalmente turístico, na construção de uma imagem simbólica que serve de âncora ao desenvolvimento de atividades económicas territoriais (Charbonneau F. et alii, 2003). É assim que temos assistido a uma ambígua fusão entre os conceitos de cidades criativas e indústrias culturais, enquanto reflexo, nas sociedades pós-‐industriais, de um novo capitalismo cognitivo-‐cultural (Power e Scott, 2005), concretizado na ciência e na cultura aplicadas, enquanto atividades geradoras de valor acrescentado. Mas nem sempre a instrumentalização política e económica das 1
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atividades criativas tem conseguido servir os fins primeiros de uma cidade criativa (Belanciano, 2008), a saber: a contribuição para o desenvolvimento de cidades sustentáveis, o aumento da vitalidade e da interação social e o apoio concreto aos criadores e aos agentes culturais locais, tendo, por esse motivo, sido objeto de estudos críticos que denunciam a dificuldade em conciliar interesses económico-‐políticos com a promoção de eventos, serviços e espaços culturais que resultem da efetiva vontade e participação dos criadores e dos indivíduos (Levine, 2004; Bourdin, 2005). Mesmo se devemos aceitar que, internacionalmente, existe uma grande diversidade das estratégias e políticas de dinamização e promoção das cidades criativas, este estado de indefinição é sempre acrescido quando, ao nível nacional ou regional, não foi ainda estabelecida uma política pública de atuação (Costa et alii, 2006). Na ausência de políticas consensuais nacionais, os indicadores avançados pelas instituições internacionais (Comissão Europeia, UNESCO) podem servir de parâmetro para os projetos que se inscrevam, de acordo com requisitos muito exigentes e bem definidos, no conceito de cidade criativa. Assim, por exemplo, no caso das cidades literárias, o seu reconhecimento funda-‐se na qualidade, quantidade e diversidade de iniciativas editoriais; na qualidade e quantidade de programas educacionais que incidem sobre a literatura nacional e estrangeira nos vários níveis de ensino; no papel essencial desempenhado pela literatura no ambiente urbano; na quantidade de instituições públicas e privadas dedicadas à preservação, promoção e divulgação da literatura; na experiência na organização de eventos consagrados à literatura nacional e estrangeira; no esforço editorial depositado na tradução de obras literárias e no envolvimento ativo dos (novos) média na promoção da literatura e do mercado de produtos literários2. Para além deste horizonte de atuação, os relatórios sobre as experiências e modelos de maior reconhecimento levam a concluir que existem ainda outros fatores e caraterísticas que distinguem as cidades criativas (Bradford, 2004): uma cidade criativa interroga-‐se sobre a sua identidade, a sua história e o seu devir, afirmando e promovendo, num contexto global, essa imagem única; uma cidade criativa reconhece a importância da arte e da cultura e dos seus principais atores na sociedade contemporânea e oferece aos habitantes possibilidades de participação em iniciativas 2
Tradução livre dos requisitos enunciados no portal da UNESCO. Cf. http://www.unesco.org/new/fr/culture/themes/creativity/creative-‐cities-‐network/literature/ VII Jornadas de Inves gação do CIAC -- 2014
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culturais e de expressão da sua criatividade individual; finalmente, uma cidade criativa encontra na colaboração com o meio universitário uma garantia de excelência e autenticidade e a sua plataforma essencial de reflexão. Considerando que, pela sua tradição e dinâmica, a cidade do Porto poderia acolher um projeto fundado na exploração das suas potencialidades enquanto cidade literária e considerando, por outro lado, que a implementação de massivos e eficazes sistemas de informação, no âmbito dos programas de dinamização de cidades digitais promovidos pela União Europeia, permitindo a aplicação de poderosos instrumentos de difusão a produtos culturais, se apresentava como uma circunstância favorável para um incremento das interações e das práticas inovadoras, desenvolvemos um portal, a Página Literária do Porto, que visa a divulgação online de informação literária e de dados relacionados com a vida, obra e autorreflexão criativa de autores portuenses vivos. Pela diversidade de suportes semióticos implicados, a Página Literária do Porto, desenvolvida no contexto do projeto PortoDigital, exponencia os modos de adaptação da literatura a estruturas hipermédia, potenciando não apenas a preservação, a promoção e a divulgação da literatura, como também o estímulo da criatividade e a aproximação entre os autores e a comunidade leitora. Balanço Na primeira fase do projeto Página Literária do Porto, em 2008, implementamos um portal de literatura, disponível no endereço www.paginaliterariadoporto.com, que congrega vários subsites de escritores portuenses contemporâneos ainda vivos, permitindo concentrar numa única aplicação online informações sobre a sua bibliografia ativa e passiva, notas críticas sobre a sua obra, fotobiografia, imagens do seu espólio literário, bem como uma entrevista inédita, no âmbito da qual o criador apresenta uma reflexão acerca da sua própria obra literária. Nesse momento, constituíam prioridades para o projeto: efetuar o levantamento e a análise das plataformas online já existentes, de modo a compreender com exatidão as especificidades desta aplicação e a detetar lacunas existentes em recursos análogos; implementar e operacionalizar a plataforma; dar início ao levantamento de dados
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e obter a colaboração dos mais prestigiados autores portuenses contemporâneos; divulgar junto da comunidade científica nacional e internacional o projeto. Estes objetivos tiveram continuidade no ano seguinte, permitindo que o projeto ganhasse credibilidade junto da comunidade de criadores e, sobretudo, permitindo o levantamento de dados que eram fundamentais para os nossos propósitos de investigação científica, a saber: -‐ a análise da dimensão autorreflexiva da criação literária, mediante a recolha e análise de depoimentos que patenteiam a consciência crítica do criador sobre a sua própria obra. O estudo das poéticas explícitas dos autores, isto é, dos textos em que o autor refletia sobre a sua criação e a de outrem, sobre os princípios e saberes em que se devia fundar o texto literário, manifestas nos vídeo-‐documentários realizados, oferecia informação relevante sobre o processo criativo, permitindo investigar questões atuais pertinentes para a abordagem da criação contemporânea e da evolução do pensamento literário em Portugal; -‐ a reconstituição da história literária das décadas mais recentes, pela análise das perspetivas dos autores sobre as gerações suas contemporâneas e pelo acesso aos seus espólios originais. Neste sentido, a recolha dos testemunhos de diferentes gerações de escritores forneceu corpora preciosos para a reconstituição da evolução literária e para a compreensão de interações geracionais; -‐ a análise das representações ficcionais da cidade pela reunião de um corpus de textos que patenteiam imagens do Porto na literatura contemporânea. Deste modo, em 2010, já na 3ª fase do projeto, foi possível dar início a um tratamento de dados que culminou, entre outros resultados, num estudo sobre a dimensão autorreflexiva da literatura (Vieira e Rio Novo, 2011). Como era nosso objetivo recolher dados originais que pudessem integrar um corpus de análise coerente, procedemos sistematicamente à criação de vídeo-‐documentários de cada um dos autores associados ao projeto, coligidos numa série intitulada “Porto Escrito” e disponíveis online, na secção “vídeo” da página de cada um dos autores (com link para o Youtube). Estes documentos fornecem dados passíveis de constituírem um corpus homogéneo, na medida em que tinham como base um guião de entrevista comum. Com algumas variações, decorrentes de algum grau de imprevisibilidade no diálogo com os autores, as questões que integraram as
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entrevistas incidiam nas seguintes variáveis para análise: i) a perspetiva dos autores sobre a situação da literatura na atualidade; ii) a perspectiva dos autores sobre as gerações literárias suas contemporâneas e sobre os princípios de literariedade, relevando aspectos pertinente sobre a evolução literária; iii) aspetos relevantes na sua formação literária; iv) o modo como o espaço urbano influencia o imaginário literário. Na análise dos testemunhos de António Rebordão Navarro, Albano Martins, Carlos Tê, Luísa Dacosta, Fernando Guimarães, Manuel António Pina, Miguel Miranda e Daniel Maia-‐ Pinto Rodrigues, ganhou relevo o modo como os escritores intervêm como unidades históricas no processo literário e na construção de sentido. Com efeito, concluímos que os seus testemunhos são documentos essenciais para a compreensão do sistema literário e para a reconstrução da evolução do pensamento literário, na interação que se estabelece entre os fragmentos metaliterários integrados nos seus testemunhos e a tríade constituída pela teoria, a crítica e a história literária. Uma das conclusões curiosas que obtivemos, por exemplo, diz respeito à noção de geração literária. Parte dos autores entrevistados pertence, de acordo com a tradição crítica, à chamada Geração de 50. No entanto, estes autores, mesmo se reconhecem a existência de um segmento cronológico que corresponde a esta década, durante o qual a produção e a receção do texto literário foi caraterizada dominantemente por um certo vocabulário, certos códigos e uma certa metalinguagem que configuram o que se designa por período literário, eles não assumem qualquer tipo de dimensão coletiva na sua atividade. Mesmo se participaram em publicações coletivas, como revistas que marcaram, do ponto de vista teórico, esse período, eles não se sentem integrados num grupo. E, mesmo se reconhecem que tinham uma relação de proximidade com outros autores da mesma década, afirmam que a sua relação era sobretudo afetiva e não literária e que os autores seus contemporâneos não exerceram qualquer tipo de influência sobre a sua escrita. Mesmo nos casos em que havia estudos críticos que aproximavam a sua obra da obra de outros autores seus contemporâneos, todos se afirmaram como únicos, diferentes, quase como se cada um fosse um sistema autónomo. Em contrapartida, os mesmos autores (os escritores nascidos entre os anos 20 e 30) declararam que existe uma nova geração à qual eles se opõem e com a qual não se identificam. Esta geração mais recente, na opinião deles, possui um conceito
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de literariedade diferente e não partilha o mesmo cânone literário. Um dos aspetos a salientar, assim, desde logo, nos testemunhos dos autores, incidiu no facto de compreenderem o sistema literário como um polissistema, isto é, uma estrutura definida por relações de oposição entre sistemas que coexistem na sincronia. Nessa rede de oposições, tem relevo a oposição geracional, na medida em que se traduz também em diferentes opções estéticas. Esta perspetiva revela que o funcionamento da estrutura literária é um sistema onde se cruzam vários subsistemas definidos por relações de oposição: sistemas inovadores versus sistemas conservadores; sistemas canónicos versus sistemas não canónicos (Vandemeulebroucke, 2008). No mesmo sentido, os autores nascidos entre os anos 20 e 30 assinalaram, na oposição entre a atualidade e o passado, uma evolução literária que corresponde a uma mutação de pensamento mais ampla, a da passagem do Modernismo ao Pós-‐modernismo, posição corroborada, aliás, também por vários ensaístas (Fokkema e Bertens, 1997; Fokkema, 1988). Simultaneamente, esta análise deixou em aberto hipóteses que requerem maior aprofundamento no âmbito da sociologia da literatura e da sociologia do texto, no estudo tanto das condições sociais de produção literária, como da relação entre os géneros literários e a as representações ficcionais do espaço urbano, passíveis ambas de abordagens interdisciplinares. Acreditamos, pois, que, à medida que aumenta a base de dados da Página Literária do Porto mais desafios se levantam na reconstituição da evolução do pensamento literário contemporâneo. Conclusões Constituem objetivos atuais do projeto, do ponto de vista pragmático, por um lado, incrementar o número de escritores com páginas pessoais na Página Literária do Porto e, consequentemente, aumentar os corpora coligidos; e, por outro, captar financiamento externo para a Página e manter uma estratégia de parcerias com instituições culturais. Ao mesmo tempo, do ponto de vista científico, os materiais já recolhidos permitem-‐nos encetar um trabalho de síntese que conduza a uma visão enriquecida sobre a História Literária na década de 50. Para tanto iremos sistematizar os dados relativos:
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-‐ ao modo como a evolução literária se processou em articulação com as comunidades culturais e literárias com as quais a literatura portuguesa daquela época estabeleceu um relacionamento mais próximo. Concretamente pretendemos dar continuidade ao levantamento sobre a rede de revistas culturais e sobre as relações intertextuais mantidas entre revistas literárias ibéricas, francesas e ibero-‐americanas naquele período; -‐ à perceção geracional e ao modo como essa perceção conduziu ao estabelecimento da categoria periodológica designada de Geração de 50, pelo levantamento de metatextos de críticos e historiadores da literatura coetâneos ou posteriores ao período considerado; -‐ à autorreflexão crítica dos escritores e teorizadores da literatura, abrindo os corpora para áreas de análise pouco exploradas, como é o caso da autorreflexão sobre o processo criativo. A expansão e divulgação pública da base da informação reunida na Página Literária do Porto encontra-‐se, porém, em risco, dado que, neste momento, o ambiente tecnológico em que o portal foi desenvolvido, há já seis anos, encontra-‐se obsoleto e não dá resposta satisfatória às necessidades de utilização previstas. Com efeito, uma das questões mais prementes no âmbito global das Humanidades Digitais é a dificuldade em conciliar, por um lado, a constante mudança tecnológica e, por outro, a necessidade de garantir, por um longo período de tempo, a atualização e a preservação das bases documentais disponibilizadas (Arellano, 2004; Roland, Lena e Bawden, 2010). Urge, pois, realizar a migração desta plataforma para um novo ambiente, com uma configuração mais estável, de modo a que seja possível assegurar, numa nova configuração, a integridade dos dados processados e ampliar os recursos. Para tanto, a integração no CIAC apresenta-‐se como uma oportunidade ótima, dado que esta unidade de investigação tem em curso uma estratégia de confluência de todas as suas plataformas num sistema computacional de uma nova geração. A futura migração permitirá que a Página Literária do Porto continue a cumprir os objetivos para os quais foi criada e que, desse modo, seja um contributo válido para a reconstrução da história literária na época contemporânea.
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