O Mosteiro
m a r a v i l h a s
Despertar do Colosso
O
I lus t r ac ao d e
To r s t e i n N o r d s t r a n d
Texto de
Pete速 Lerangis
capítulo
um
Bar ba Ruiva
Na manha em que seria feita a previsão da minha morte, um homem grande e descalço, de barba ruiva, passou bamboleando à frente da minha casa. A temperatura rondava os zero graus e isso não parecia incomodá-lo, mas parecia ter tomado um péssimo pequeno-almoço porque soltou um arroto que podia ter saído de uma tuba. Em Belleville, Indiana, não costumam passar gigantes descalços e a arrotar, com ar de viquingues. Mas não cheguei a vê-lo de perto. Nesse instante, eu, Jack McKinley, estava a ser atacado no meu quarto... Por um réptil voador. Podia ter usado um despertador. Mas tinha ficado acordado até tarde, a estudar para o teste de matemática do
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primeiro período, e tenho o sono pesado. O pai não podia
acordar-me porque estava em Singapura, aonde tinha ido em negócios. E a Vanessa, a empregada que eu chamo de minha não-prestadora-de-cuidados, dormia sempre até ao meio-dia. Precisava de um som forte. Alguma coisa que me impedisse de continuar a dormir. Foi então que vi, ainda na minha secretária, o vulcão de papel da Feira de Ciências do último mês. Estava cheio de bicarbonato de sódio. Peguei na cafeteira do meu pai, enchi-a de vinagre e liguei-a ao vulcão com um tubo de plástico. Programei o temporizador para as 6h30 da manhã, altura em que a cafeteira libertaria o vinagre no interior do vulcão, provocando uma explosão de gosma. Juntei uma rampa à base do vulcão para recolher essa gosma. Na rampa, pus uma bola de bilhar, que desceria até uma catapulta de mola na cadeira. A catapulta lançaria pelos ares um grande e velho Feiossauro de plástico, uma mistura vermelho-clara de águia com garras e de leão. Bum! – quando o Feiossauro batesse na parede, eu só não acordaria se estivesse morto. Infalível, certo? Nem por isso. Por volta das 6h28, eu estava no meio de um pesadelo. Já tinha tido aquele sonho demasiadas vezes: vou de toga a correr pela selva, perseguido por uns animais parecidos com porcos, que rosnam e se babam, enchendo de guinchos um céu com fumo. Bonito, não? Costumo acordar desse sonho quando, debaixo dos meus pés, se abre uma brecha no chão.
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Mas, desta vez, caí pela brecha. Bem para dentro da
escuridão. Para a minha morte. Quando estava quase a bater no solo, o Gigante Gasoso arrotou na vida real. Fui acordado pelo som. O vulcão-cafeteira explodiu. E o Feiossauro atingiu-me entre os olhos. Em poucas palavras, foi assim que começou a pior manhã da minha vida. A última manhã em que eu despertaria na minha cama. «@$%^&!», gritei, o que quer dizer que não posso dizer-vos as palavras exatas. Saltei da cama em agonia. Foi então que vislumbrei o Barba Ruiva no passeio, o que me fez cair ao chão, envergonhado por alguém me ter visto, mesmo que fosse um desconhecido esquisito e sem sapatos. Infelizmente, o meu rabo aterrou em cheio numa das asas afiadas do Feiossauro, o que me fez gritar novamente. Já era demasiada gritaria para alguém que tinha acabado de fazer treze anos. Deixei-me estar ali deitado, de dentes cerrados, arrependido de não ter usado o despertador. Imaginei a Vanessa a provocar-me: «Pensas demais, Jack.» Algo que ela costumava dizer umas cem vezes por dia. Talvez porque eu pense mesmo demais. Sempre pensei. Levantei-me do chão, de mãos agarradas à cabeça. O Barba Ruiva ia descendo a rua, batendo com os pés no chão.
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«Da próxima vez, mantém a boca fechada», resmunguei
entredentes enquanto cambaleava a caminho da casa de banho. Devia ter percebido quem ele era e por que estava ali. Mas não conseguia parar de pensar no pesadelo, persistente como o sabor de queijo bolorento. Tentei substituí-lo com pensamentos de matemática. Infelizmente, a sensação era a mesma. Vi ao espelho que o Feiossauro me tinha feito um golpe na testa. Não era demasiado fundo, mas tinha mau aspeto e ardia. Abri a torneira, molhei uma toalha e afastei para o lado um monte de cabelo castanho cor de rato, de modo a destapar a ferida. Quando lhe toquei ao de leve, reparei num pequeno tufo de cabelos louros projetando-se desde a parte de trás da minha cabeça. Estranho. Nunca os tinha visto antes. Sem o pai ao pé de mim para me incomodar, há uns tempos que não cortava o cabelo, pelo que aqueles cabelos louros pareciam fios à solta. Ao inclinar-me para olhar mais de perto, um rangido agudo fez-me rodar sobre mim próprio. – Vanessa! – gritei. Ah-ha! Ela tinha ouvido o meu grito. Imaginei-a a esconder-se, com medo, atrás da porta, a planear um modo de não ser responsabilizada pelo que tivesse acontecido. Mas ela não estava ali.
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Olhei para o relógio da casa de banho: 6h39. Tinha
de sair de casa por volta das 6h45. Mas queria ver aquela pequena mancha loura; tinha tempo suficiente. Abri o armário da casa de banho e peguei num espelho de mão em que não tocava há anos. O pai e eu tínhamo-lo comprado para um trabalho da segunda classe. Quando peguei nele, olhei para a mensagem que tinha na moldura de plástico. Voltei o espelho. Tinha fixado uma foto à superfície da parte de trás. Nela, eu tenho quatro anos e estou com um volumoso sobretudo de inverno. Vou a descer com um trenó uma ladeira pouco inclinada. O tempo tinha transformado o branco da neve em amarelo-esverdeado. A minha mãe estava no cimo da ladeira, a rir, vestida com o seu casaco